confronto entre o segundo reinado e a repÚblica velha … · segundo reinado com a prática...

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1 JOSÉ MARIA DOS SANTOS CONFRONTO ENTRE O SEGUNDO REINADO E A REPÚBLICA VELHA A QUESTÃO MILITAR CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO PENSAMENTO BRASILEIRO CDPB 2011

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JOSÉ MARIA DOS SANTOS

CONFRONTO ENTRE

O SEGUNDO REINADO E

A REPÚBLICA VELHA

A QUESTÃO MILITAR

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO

PENSAMENTO BRASILEIRO – CDPB

2011

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SUMÁRIO

Biobibliografia

O principal legado da obra de José Maria dos Santos

TEXTO DE JOSÉ MARIA DOS SANTOS

A POLÍTICA GERAL DO BRASIL (Primeira Parte)

Introdução

A OBRA DO SEGUNDO REINADO

Capítulo I – O Segundo Reinado em confronto com os períodos

de Pedro I e da Regência

Capítulo II – A maioridade e a política de conciliação

Capítulo III – A Lei dos Círculos

Capítulo IV – A situação geral no início da guerra do Paraguai

Capítulo V – As reações da batalha de Curupaiti na política interna

Capítulo VI – A crise ministerial de 1868

Capítulo VII – A Lei do Ventre Livre

Capítulo VIII – A Abolição

Capítulo X – O fim do Segundo Reinado

A QUESTÃOMILITAR

Nota Introdutória – Antonio Paim

TEXTO DE JOSÉ MARIA DOS SANTOS

Capítulo II – Pedra de tropeço

Capítulo III – A interferência Hispano-Americana

Capítulo IV – A héjira do caudilhismo

Texto sobre Quintino Bocaiuva

(*) Nota do editor: o capítulo IX consiste numa “visão do Brasil colonial”, distante

do objeto da transcrição.

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BIOBIBLIOGRAFIA

José Maria dos Santos (1877/1954) era natural da

Paraíba, tendo nascido em sua capital, João Pessoa. Adquiriu

sua formação acadêmica na Escola Militar do Rio de Janeiro,

considerado estabelecimento de ensino de alto nível, com a

singularidade de que nem todos os seus alunos seguiam a

carreira militar. Este seria o caso do nosso autor.

José Maria dos Santos preferiu a carreira de jornalismo,

na qual se destacaria como articulista renomado. Graças a isto,

viria a exercer a direção de import6antes periódicos em São

Paulo. Na capital paulista, seria, sucessivamente, diretor

destas publicações diárias: Jornal da Tarde, Tribuna

Paulista e Jornal do Comércio. Em que pese haja ascendido a

tais postos de direção nos mencionados órgãos paulistas,

manteve assídua colaboração em jornais do Rio de Janeiro.

Participou da Conferência de Paz que teve lugar em

Versalhes, no ano de 1919, evento que se tornaria marco

histórico, tendo em vista que estabeleceria as regras da

convivência européia posteriores à Primeira Guerra Mundial.

Durante algum tempo, residiu na França, onde tornar-

se-ia correspondente do jornal carioca Folha da Manhã e

colaborador de Le Figaro, um dos principais jornais da capital

francesa.

José Maria dos Santos ocupa lugar de primeiro plano na

historiografia brasileira, entre os autores que, no século XIX,

deram continuidade ao trabalho pioneiro dos fundadores. Seu

principal livro seria denominado de Política geral do Brasil

(1930). Figura na coleção que deu continuidade à Brasiliana,

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na Editora Itatiaia (Belo Horizonte), chamada de Reconquista

do Brasil.

Ao Partido Republicano Paulista dedicou estes livros:

Os republicanos paulistas e a Abolição (1942) e Bernardino

de Campos e o Partido Republicano Paulista – Subsídios

para a História da República, publicado postumamente, em

1960.

É autor também desta obra de teoria política: Os

Fundamentos Reais da Liberdade , edição da Athena Editora

(São Paulo, 1942).

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O PRINCIPAL LEGADO DA OBRA

DE JOSÉ MARIA DOS SANTOS

José Maria dos Santos ocupa um lugar especial na

historiografia brasileira porquanto não apenas se destaca como

um dos principais continuadores da obra dos fundadores como

o fez de forma original. Essa originalidade prende-se ao fato

de que haja efetivado o confronto da experiência liberal do

Segundo Reinado com a prática autoritária da República

Velha. Esse confronto encontra-se na obra fundamental que

nos legou: Política geral do Brasil.

Com o seu aparecimento data de 1930, não podia prever que os

traços que então destaca preservariam inteira atualidade ao

longo da experiência republicana subseqüente. Vejamos,

brevemente, como apresenta a questão.

Parte da tese de que as desordens morais e econômicas que

então assolavam o país começam exatamente com o regime

republicano. Veja-se qual o traço essencial que destaca: a seu

ver o que a nossa República tem de real e objetivo é o seu

sentido autoritário. e prossegue: o que tivemos com a

implantação da República não foi uma simples alteração na

forma de governo, de monárquico para republicano. Ocorreu

de fato “a substituição de um regime de livre consulta, na qual

o governo, dependente dos votos do parlamento, não podia

entrar em conflito permanente com a opinião pública, por um

outro regime intransigente e autoritário, todo baseado na

vontade exclusiva do Chefe do Estado.”

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Com vistas a provar a sua tese, o autor procede a uma

caracterização detalhada do Segundo Reinado, confrontando-o

com os ciclos anteriores, para concluir que o Brasil em 1889

“era uma grande monarquia liberal representativa deforma

parlamentar, organizada no gênero dos Estados Modernos que

o historiador inglês H. G. Wells chama de repúblicas

coroadas”, tal qual existiam na Inglaterra, na Bélgica e nas

monarquias escandinavas. Segue-se a análise do que denomina

de “deformação republicana”.

A conclusão da obra corresponde a uma erudita síntese da

evolução do Ocidente, a fim de tornar patente que o governo

representativo de forma parlamentar equivale a um ponto alto

nesse processo evolutivo. Estão criticadas, de um ponto de

vista liberal, as alternativas propostas pelo positivismo e pelo

marxismo, que tanto sucesso, dizemos nós, vieram a alcançar

nos círculos republicanos brasileiros. É de assinalar-se a

perspicácia com que o autor aproxima o nacionalismo do

comunismo. Anteviu também que a ascensão do autoritarismo

e do totalitarismo, no primeiro pós-guerra, nada mais

significavam que surtos anti-liberais e anti-democráticos.

O espírito de sua análise está todo contido nesta afirmativa::

“A idéia de que a guerra, como terrível e ancestral reguladora

das relações humanas, viera sacudir o mundo do seu pobre

sonho de liberdade, para novamente trazê-lo à justa e

inevitável compreensão da força como fundamento único

possível da ordem social, não passou de uma transitória

perturbação do período militar. O exato sentido da fase atual

de evolução dos povos civilizados não pode ser descoberto

nem na Rússia da GPU nem na Itália dos “fasci de

combattimento”. É nas nações de alta e nobre consciência

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coletiva que, da imensa voragem da guerra ou das angústias da

neutralidade, conseguiram salvar intactos os seus direitos e as

suas liberdades, para segura e corajosamente enfrentar os

grandes problemas econômicos que a tremenda convulsão

devia abrir ao encerrar-se.”

Decorridos oitenta anos da publicação de Política geral do

Brasil, pelas breves indicações precedentes evidencia-se sua

enorme atualidade. Em boa hora a Editora Itatiaia, sediada em

Belo Horizonte, a incluiu na Coleção Reconquista do Brasil

(2ª série, volume 153), colocando-a, assim, no lugar que de

direito lhe cabe na Brasiliana.

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TEXTO DE JOSÉ MARIA DOS SANTOS

A POLÍTICA GERAL DO BRASIL

(Primeira Parte)

Introdução

A República de 15 de novembro, com os seus

antecedentes de propaganda de idéias subitamente rematada

por uma rebelião militar vitoriosa, teve a estranha virtude de

alterar por completo o senso político dos brasileiros. A

corrente liberal, que fora a característica predominante da

nossa evolução histórica desde as reivindicações municipais da

época colonial, e que, depois de atravessar atormentada e

revolta o primeiro reinado e a Regência, enchera com o seu

fluxo bem ordenado todo o período de Pedro II, estacou

violentada e surpresa no acidente de 1889. O Governo

Provisório, na sua feição de vontade pessoal predominante no

meio de conselheiros irresponsáveis e submissos, deu-nos

imediatamente uma nova e para nós desconhecida figura da

liberdade – a liberdade republicana da Bolívia de Melgarejo ou

do Equador de Garcia Moreno, liberdade simples e fácil, que

se objetiva apenas nas frases de uma proclamação ou nos

compassos de um hino, mas também só deixa de ser cômica

quando se faz sinistra...

A um povo como o nosso, longamente habituado a

identificar o poder pessoal como sendo a própria tirania, e que,

tenazmente e sob todas as formas, combatera esse poder em

Pedro I e no regente Feijó, seu próprio território e, mesmo

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para além das suas fronteiras, nos ditadores Oribe, Rosas ou

Solano Lopez, aquele forte aparelho do governo provisório não

podia deixar de parecer estranho e profundamente suspeito.

Dado porém o caráter de fulminante ocupação militar da

grande surpresa de 15 de Novembro, nenhum protesto eficaz

ou simples discussão foi imediatamente possível.

Na América pós-colonial, onde a ficção da investidura

divina chegou tarde demais para ter crédito, nunca pode o

despotismo dispensar os atavios da liberdade. OP esforço

principal e constante dos publicistas nesta parte do mundo,

tem quase exclusivamente consistido em demonstrar, entre

duas violências, quanto o poder pessoal absoluto se coaduna e

identifica com a mais perfeita democracia, desde que,

transmissível a períodos certos, não possa fundar-se em

direitos hereditários. Pouco importa que durante um desses

períodos ou no sucessivo decorrer de todos eles, venha a

sociedade a sofrer da ignorância, da maldade ou mesmo da

parvoice dos seus governantes. O essencial é que todo o filho

do Novo Mundo possa julgar-se legalmente habilitado a vir um

dia a tiranizar também os seus concidadãos. Neste igualitário

princípio é que se concretizam e resumem todos os

fundamentos da liberdade americana...

O Brasil, pela tradicional evolução das suas instituições

políticas anteriores, fora o único país que evitara aquela

compreensão especial da democracia. As palavras tinham para

nós outros uma significação diversa. Mas, a partir de 1889, na

imprensa, nas assembléias e, posteriormente, nas cátedras

universitárias, como elemento de consolidação doutrinária, as

expressões tão simples e claras que até então soubéramos

empregar no trato do direito público, foram sendo substituídas

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por um calão bárbaro, extraído do “Federalista” de Madison e

Jay, e das ingênuas proclamações dos libertadores hispano-

americanos... A liberdade assumiu também aqui o aspecto

local do continente. Fizemo-nos “presidencialistas” por nossa

vez, e o sistema do Governo Provisório, todo baseado no poder

pessoal do chefe do Estado, entrou para a constituição da

República e passou a ser a nossa forma definitiva de governo.

Pode-se dizer que, ao abalo dessa escandalosa inversão

histórica e doutrinária, a corrente liberal condutora da nossa

existência política anterior, iludida e desorientada, refluiu toda

para o passado. Tendo de aceitar nos fins do século XIX, como

a imagem fiel e mais perfeita da democracia moderna, um

governo praticamente moldado no velho Estado-Leviathan de

Thomaz Hobbes, nós perdemos imediatamente o senso exato

das coisas e o próprio sentido das palavras. A vida social e

econômica do Brasil assentou toda sobre um equívoco e,

partindo desse erro inicial, o nosso povo, como entidade

política, passou a caracterizar-se sobretudo pela mais profunda

e absoluta desorientação mental. Seja pelas decisões dos seus

governantes, seja pelas reações que estas produzam sobre os

sentimentos e os interesses coletivos, os brasileiros são sempre

levados a situações diametralmente opostas àquelas que

faziam, de início, o objeto de seus cuidados. Assim é em

política geral, em economia, em finanças ou em qualquer dos

demais ramos da nossa atividade coletiva. Tudo falha,

corrompe-se ou se desvirtua, podendo-se neste país contar

apenas como certo o ridículo, que natural e constantemente

decorre de um tal estado de coisas.

Há quem afirme, com a mais notável segurança, que

essas deploráveis condições são a conseqüência inevitável da

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ignorância e do atraso do nosso povo, e mesmo da sua própria

índole, que – ao que parece – é má, devido à intervenção de

certos elementos raciais ou étnicos, irremediavelmente

pejorativos. Outros, de conhecimentos não menos profundos,

procuram para os nossos desastres nacionais, já velhos de mais

de trinta anos, fatores recentes de ordem externa, como a

guerra de 1914, com as suas conseqüências sociais e

econômicas sobre certos países da Europa. Não obstante, se

reduzirmos as asas da nossa imaginação aos salutares limites

do senso comum, para prestarmos atenção apenas aos fatos

reais da nossa história política, facilmente nos aperceberemos

de que as desordens morais e econômicas de que hoje

sofremos, começaram exatamente com o regime da

constituição de 24 de fevereiro, constituição essa na qual se

fixaram em definitivo as disposições preliminares e a

orientação geral do Governo Provisório.

Ora, se as constituições políticas têm qualquer ação

sobre a vida dos povos que são chamadas a reger, e se a

observação honesta dos fatos serve de alguma cousa na

formação de um conceito histórico qualquer, força é ter como

ponto de partida da nossa situação atual, a lei pela qual

trocamos as nossas instituições anteriores.

Entretanto, a desordem mental a que atrás nos

referimos, tornou-se tão profunda e generalizada que, em face

de todas as nossas infelicidades nacionais, a maior

preocupação das oposições organizadas em partido, ainda hoje

se resume em procurar o melhor meio de manter e reforçar

aquela mesma constituição. Os libertadores do Rio Grande do

Sul querem-na com algumas alterações superficiais e de pura

forma, enquanto os democráticos de São Paulo a desejam

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retrocedida à pureza do seu texto primitivo. Todos porém,

unidos na idéia principal da sua conservação – no que ela tem

de real e objetivo que é o seu sentido autoritário –

evidentemente se acham de acordo com os círculos

governamentais que são, por ofício, os seus defensores

obrigatórios. Entre as três correntes, não existe diferença

essencial de propósitos. Existem simplesmente os pontos de

uma eventual conciliação, sobre uma mesma ordem de

interesses... É apenas um tríplice concurso, donde nenhuma

modificação séria pode surgir aos negócios deste país.

Os brasileiros precisam afinal se convencer de que a

marca essencial do acontecimento de 15 de Novembro, a

alteração jurídica que no futuro lhe deu sentido real e

significação prática, não foi a mudança da designação verbal

de monarquia para república, nem a troca de um imperador

vitalício e hereditário por um presidente mais ou menos eleito

para um certo período. Foi, sim, a substituição de um regime

de livre consulta, no qual o governo, dependente dos votos do

parlamento, não podia entrar em conflito permanente com a

opinião pública, por outro regime intransigente e autoritário,

todo baseado na vontade exclusiva do chefe do Estado. É isso,

no fundo e apesar de todos os disfarces mais ou menos

teóricos, o que unicamente estabelece e consagra a

constituição de 24 de fevereiro, não passando as suas excelsas

declarações de direitos, de leves e fulgurantes roupagens,

atiradas imprudentemente e sem muito jeito sobre um

grosseiro arcabouço de ferro.

Considerada a nossa revolução republicana sob esse

aspecto, que é o seu aspecto verdadeiro e exato, nós nunca nos

afastamos tanto da república, como no momento em que a

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proclamamos e constituímos. Este é o fato significativo e

essencial, que devemos fixar bem e ter como base de todas as

nossas cogitações, se realmente temos a vontade de encontrar

remédio aos males atuais da nossa pátria.

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PRIMEIRA PARTE

A OBRA DO SEGUNDO REINADO

CAPITULO I

O SEGUNDO REINADO EM CONFRONTO COM OS

PERÍODOS DE PEDRO I E DA REGÊNCIA

Quem quer conhecer, em toda a sua extensão, os

resultados do chamado sistema republicano presidencial no

Brasil, deve, antes de tudo, indagar das condições gerais deste

país em 1889.

O Brasil, nas vésperas da república, era realmente e em

todos os seus aspectos políticos, uma grande monarquia liberal

representativa de forma parlamentar, organizada no gênero dos

estados modernos que o historiador inglês H. G. Wells chama

de “repúblicas coroadas”(1), como a Inglaterra e cada um dos

países de governo próprio do império britânico, a Bélgica, a

Holanda e as monarquias escandinavas. Nós éramos

governados por um presidente do conselho, escolhido pelo

parlamento, pois, apesar da ativa interferência que a coroa se

reservava na formação dos ministérios, nenhum governo novo

ousaria apresentar-se aos corpos legislativos, sem ter a prévia

certeza da maioria dos votos destes. Pelo sistema das

negociações preliminares, entabuladas entre os encarregados

da formação de ministérios e os diversos grupos em que se

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dividia a representação nacional, era de fato o parlamento

quem indicava os programas governamentais, A essa regra

geral e obrigatória, só podiam fugir os gabinetes nomeados nos

momentos de grandes transições políticas, quando o Chefe de

Estado, exercendo as suas funções legais de poder moderador,

era levado a dissolver a câmara dos deputados, para uma

consulta ampla e profunda à opinião do país por meio de novas

eleições gerais.

Sob esse regime, conquistado através das lutas

sangrentas e constantes, que mantivemos contra as pretensões

do poder pessoal durante todo o primeiro reinado e o

interregno da Regência, nós chegáramos a ser não somente o

primeiro e o “leader‟ incontestável dos povos sul-americanos,

como mesmo, sob certos aspectos particulares, a mais séria e

bem constituída de todas as nações do Novo Mundo. Havíamos

firmado definitivamente a nossa paz interna; estabelecido

vitoriosamente, pela diplomacia ou pelas armas, a nossa

situação internacional; formado o nosso direito privado sobre

bases de uma tão grande elevação moral, que já servia de

modelo à organização civil de outros Estados, e colocado as

finanças públicas em um tal pé de solidez e seriedade, que o

nosso país, com os seus doze milhões de habitantes e nos

limites dos seus recursos econômicos da época, gozava de um

crédito que honraria qualquer dos maiores povos da terra.

Se procurarmos saber qual foi a característica principal

e constante do período que realizou todo esse esplêndido

trabalho de organização nacional, facilmente nos

aperceberemos de que essa característica foi a liberdade.

Efetivamente, de um extremo ao outro do reinado de Pedro II,

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na direção dos negócios públicos predominou sempre a

opinião coletiva.

Essa linha geral daquela grande época da nossa história

logo ressalta, desde que se estabeleça uma comparação,

mesmo abreviada, com os dezoito anos que a antecederam até

a Independência. Desde 1822 até 1840, o poder pessoal,

objetivado na faculdade assumida pelo Chefe de Estado de

escolher os ministérios de sua vontade exclusiva, atirando-os

em luta permanente contra os corpos legislativos, foi o eixo

em torno do qual girou tumultuariamente toda a nossa

atormentada existência política. Não foi outra senão a

preocupação de salvar o princípio desse poder que no dia 12

de novembro de 1823 levou Pedro I a dissolver violentamente

a primeira assembléia constituinte do Império. Os incidentes

de caráter nacionalista que se produziram no Rio de Janeiro, a

partir da noite de 5 daquele mês, quando dois oficiais de

artilharia, de origem portuguesa, espancaram o jornalista

David Pamplona Corte-Real, no Largo da Carioca, e que

depois se prolongaram até a dissolução do parlamento, foram

apenas a gota d´água que fez transbordar o vaso. A verdadeira

luta entre a coroa e o parlamento, abriu-se no dia 3 de maio,

quando o imperador inaugurando solenemente os trabalhos

legislativos, julgou oportuno ministrar alguns conselhos sobre

a orientação constitucional, terminados pela frase

característica: “Espero que a constituição que fareis mereça a

minha imperial aceitação...”(2). Apenas Sua Majestade tinha -

se retirado, levantam-se entre os deputados os primeiros

protestos. O imperador não tinha regras a dar à Constituinte,

nem podia estabelecer condições de sua aceitação ao que ela

votasse, porque a constituição ia ser um ato soberano da

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vontade nacional, legitimamente expressada no parlamento. Os

irmãos Andrada fazem ouvir palavras de moderação. “A

nação”, exclama Antônio Carlos, “elegeu um imperador

constitucional, deu-lhe o poder executivo e o declarou chefe

hereditário. Nisto não podemos nós bulir”(3). José Bonifácio

apóia com veemência esse ponto de vista e adota-se afinal, na

resposta à fala do trono, o período do voto de graças, pelo qual

uma maioria de quarenta deputados contra vinte, dava a sua

confiança ao imperador e ao ministério, sem atender naquelas

palavras; Mas, com o ardor dos trabalhadores constituintes,

surge a questão de saber como seria promulgada a constituição

do Império. O trono esperava como seu o direito de promulgá-

la; mas na constituinte levantou-se imediatamente a doutrina

da soberania nacional intransmissível. A nação livre se

organizava. O imperador só tinha que jurar a constituição,

dentro da qual encontraria estabelecidas e prescritas todas as

suas atribuições de chefe funcional do Estado.

Era o clássico “sine qua non” das altivas Cortes

Aragonesas do século XII, que os pares e comuns da

Inglaterra, após haverem destituído o rei Jayme II, retomaram

em face de Guilherme de Orange e que ficou sendo a base

condicional da coroação dos soberanos ingleses. A luta entre

Pedro I e a nação caracterizou-se claramente, e quanto

rebentam os incidentes do mês de novembro a que atrás nos

referimos, foram os próprios Andradas, Antônio Carlos e

Martim Francisco, os que com maior veemência trouxeram

para o seio do parlamento os ecos do tumulto popular das ruas.

O imperador manda avançar as tropas de São Cristóvão e o

brigadeiro Morais, de espada à cinta e retinindo as esporas,

penetra no recinto da Câmara com o decreto de dissolução,

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Mas entre Pedro I e o país a sorte estava lançada. Depois de

oito anos de guerra civil ininterrupta, durante os quais não

foram poupados os serviços dos pelotões de fuzilamento e do

carrasco, o primeiro imperador partia fugitivo a bordo de uma

fragata inglesa, deixando afinal os brasileiros senhores dos

seus destinos.

Quando, no dia 7 de abril de 1831, Pedro I entregou o

ato da sua abdicação ao major Miguel de Frias, para que este o

levasse aos revolucionários do Campo de Sant‟Anna,

tacitamente ficou provado que o Brasil jamais poderia viver

tranqüilamente sob qualquer governo de forma autoritária e

pessoal. O mês anterior se assinalara por uma séria de marchas

e contra-marchas entre os dois princípios extremos do

autoritarismo e da liberdade política concretizados no processo

de escolha dos ministérios. Pedro I, insistindo na afirmação da

sua qualidade de imperador constitucional, sempre que a

ocasião se lhe oferecia, achava, entretanto, que a nomeação

dos ministros era um ato do poder majestático, no qual não

cabia a interferência do parlamento. A constituição jurada a 25

de março de 1824 assim o entendia. Mas essa constituição fora

uma outorga sua, que não passara sem protestos

veementíssimos, como aquele grande e extraordinário voto de

frei Joaquim do Amor Divino Caneca, distribuído impresso,

por ocasião do juramento daquela carta aos habitantes de

Pernambuco. O povo e os seus representantes jamais

aceitavam a doutrina imperial sobre a escolha e a permanência

dos ministérios. A vida dos sucessivos governos foi, por isso,

uma luta permanente como a opinião pública e o parlamento,

até que em 20 de3 março de 1831, em face de uma situação

francamente revolucionária, o chefe do Estado viu-se levado a

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aceitar a demissão do ministério do Visconde de Alcântara,

para designar um outro no qual, com Bernardo José da Gama,

entravam os liberais Carneiro de Campos e Holanda

Cavalcanti. Mas, como poderia conter a exaltação popular um

governo que dela nascia? No dia 25, aniversário do juramento

da constituição, o imperador é ostensivamente mal recebido

numa numerosa manifestação aos gritos de “Viva Pedro II!...”

Os ministros que nesse momento se achavam ao lado do

monarca, limitam-se a convocar a assembléia para uma sessão

extraordinária, o que só podia vir dar maior prestígio ao

movimento popular, e no dia 5 de abril, Pedro I, abandonando

toda prudência, demite o ministério liberal, para organizar um

governo nitidamente reacionário, onde o Visconde de

Alcântara reaparece ao lado do Marquês de Inhambupe. A

agitação popular chega então ao seu cúmulo. No dia seguinte o

povo amotina-se no Campo de Sant”Anna e manda dizer ao

imperador, pelos seus juízes de paz eleitos, que era necessário

despedir aquele gabinete de áulicos, para imediatamente

reintegrar no poder o ministério anterior. O imperador

peremptoriamente recusa, proferindo então o dilema que

constituíra toda a orientação do seu reinado: “Tudo farei para

o povo; mas nada pelo povo!”. No dia 7, a operação militar de

12 de novembro de 823 ia recomeçar. Mas, desta vez, ela

desenvolvia-se em sentido inverso. As tropas avançariam da

cidade para São Cristóvão, cobrindo a marcha do povo

amotinado...

O governo da Regência, que se seguiu à abdicação

forçada de Pedro I, não teve a elevação necessária para

encarnar o espírito real e profundo do movimento de 7 de

abril. A bem dizer, a Regência tomou da revolução apenas o

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seu lado estreitamente nacionalista, sem conseguir o imperador

de origem estrangeira e afastados os elementos portugueses da

sua confiança imediata, os diretores da nova situação julgaram

que o principal estava feito. A revolução havia posto o

problema político nos seus termos exatos e insofismáveis: - os

ministros, isto é, o governo deve depender sempre da

confiança pública, expressada nos votos do parlamento.

Entretanto, os regentes e os seus ministros, sem

compreenderem que a agitação popular donde surgiram carecia

de um certo tempo para desaparecer completamente, foram

tomados de pânico ante os motins subseqüentes, e rapidamente

tenderam para a reação sistemática. O senado vitalício, ainda

nomeado por Pedro I, constitui-se em barreira contra a reforma

constitucional concebida pela câmara dos deputados. As

discussões eternizam-se entre as duas casas do parlamento, e

quando, em 1834, é afinal votado o “Ato Adicional” pelas duas

câmaras reunidas em constituinte, a única alteração

constitucional que integralmente se salvou da redução

sistemática a que todas as demais foram submetidas, foi a

supressão do Conselho de Estado.

Ora, o desaparecimento do Conselho de Estado, sem a

concomitante extinção do poder moderador, só podia servir

para tornar mais absoluto o exercício pessoal do poder

executivo, e quando, no ano seguinte, o padre Diogo Feijó

recebeu a alta investidura de regime único, o problema político

que continuara insolúvel, reassumiu nitidamente o seu caráter

específico. É na sessão legislativa de 1837 que se tem talvez o

espetáculo mais impressionante e sugestivo desse indomável

esforço do sentimento liberal contra o princípio autoritário.

Logo na abertura, no dia 3 de maio, a resposta à fala do trono

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apresenta-se clara e decisiva. Ela reconhece que a cooperação

do parlamento com o poder executivo é a base de uma situação

normal no regime representativo. “Mas esta cooperação

(textual), a câmara dos deputados faltaria aos seus mais

sagrados deveres se a prestasse a uma administração que não

goza da confiança nacional”. O deputado Visconde de Abaeté,

que defendia o ponto de vista governamental, levanta-se contra

aquelas expressões. “Fundando-se nas atribuições dos

poder5es políticos, declarados independentes pela

constituição, ele entendia que à coroa pertencia a exclusiva e

livre nomeação dos ministros, e que a doutrina apregoada pela

comissão do voto de graças (comissão que redigia na câmara

do império a resposta à fala do trono) tornava a câmara tão

onipotente, que os ministros não passariam de seus

pupilos”(4). Apesar de defendido assim por um dos mais

eloqüentes oradores daquele tempo, o ministério não pôde

resistir à maioria da câmara. No dia 16 daquele mês, o regente

Feijó, contra a sua vontade e todos os seus esforços, via-se na

contingência de assinar a demissão do ministério. Entretanto o

regente fora vencido apenas pela repugnância dos ministros em

voltarem perante a câmara. Ele achava que o gabinete, desde

que tinha a sua confiança pessoal, podia muito bem manter-se,

sem embargo da atitude hostil dos deputados, e, ao designar o

governo que se seguiu, ele o fez por si, sem querer contar com

o modo pelo qual o parlamento o recebesse.

Era uma personalidade bem curiosa a desse padre

regente do império... Amante da ordem, ele chegava a

confundi-la com a sua permanência no poder, dando

facilmente em conspirador quanto o apeavam. Sacerdote, ele

prezava tanto as suas funções que, para obter a dignidade

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episcopal, não vacilava em comprometer essa pretensão as

relações do Brasil com a Santa Sé, ao mesmo tempo que se

insurgia contra a regra da igreja, para o fim pessoal de poder

casar-se. O seu caráter, misto de violência brutal e felina

sinuosidade, manifesta-se todo na maneira pela qual organiza e

joga contra o parlamento aquele gabinete de 16 de maio. O

homem que ele escolhe para a empreitada, Manoel Alves

Branco, pretende, aplainar as dificuldades que o esperam por

meio de um prévio entendimento com a maioria. Mas Feijó se

opõe, concordando entretanto, em que o novo ministro declare

só aceitar o governo naquelas condições, forçado por motivos

de gratidão particular a sua pessoa. Essa declaração, aliada à

circunstância d ser Alves Branco um espírito sabidamente

liberal, podia ser tomada como esperança de uma atitude

governamental menos intransigente. O padre Feijó logo no dia

seguinte, destruiu, porém, essas ilusões. “Desejoso de dar uma

lição aos deputados, ele faz publicar no “Correio Oficial” a

notícia da nomeação dos novos ministros, acompanhada de um

artigo no qual se dizia que a perseverar a Câmara nas suas

veleidades de influir no governo, o regente a dissolveria, pois

o poder executivo era independente do legislativo e não podia

sujeitar-se a maiorias de câmaras, que eram várias e

caprichosas...”(5).

Essa estéril e especiosa discussão de atribuições

constitucionais, chegou a assumir aspectos de um cômico

irresistível. Nas sessões de 1 e 2 de julho, o almirante Tristão

Pio dos Santos, Ministro da Marinha do novo gabinete,

convidado por Bernardo de Vasconcelos a explicar à câmara a

necessidade de certos recursos militares que reclamava no seu

projeto de orçamento, entende de responder apenas o seguinte:

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“Penso que o poder executivo é poder separado, delegado pela

nação, e não tem, pois, obrigação de apresentar ao corpo

legislativo senão o resultado das suas medidas.” Era sem

dúvida levar muito longe o princípio da independência dos

poderes, Bernardo de Vasconcelos responde com irônica

vivacidade, terminando pro declarar que não lhe pareciam

muito sérias nem aquela situação nem a própria pessoa do

ministro. Então Pio dos Santos, exaltado, lança estas palavras

realmente pitorescas: “O que se pretende é que o ministro,

entrando por aquela porta diga – Louvado seja Nosso Senhor

Jesus Cristo1! Sua benção meus senhores.(6) É isto o que se

pretende. Peço forças, e dizem-me que o governo não merece

confiança. E por que? Porque não venho aqui tomar a benção e

dizer – meus senhores não querem mais nada?” Compreende-

se a imensa gargalhada que acolheu este pequeno modelo de

eloqüência parlamentar...

Com debates desta natureza, nem os orçamentos

conseguiam ser votados, e assim se mantiveram, com pequenas

e rápidas variantes, as relações do governo com o parlamento,

até que, no dia 22 de junho de 1840, os deputados se amotinam

na câmara e conduzidos por Antônio Carlos, partem

incorporados para o edifício do senado. O povo das ruas, ao

vê-los acompanhados dos assistentes das galerias, que também

seguem aclamando-os, incorpora-se ao tropel, à medida que

vai passando. O senado é invadido e, no recinto das sessões,

confundidos senadores e deputados naquela vaga de exaltação,

a maioridade de Pedro II é revolucionariamente proclamada,

para que o jovem imperador assuma desde logo as suas

funções de chefe supremo do Estado.

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A Regência, até aquele último momento, tenazmente

insistira pelo predomínio do poder pessoal nas decisões do

governo. Mas o nosso país, durante os nove anos da sua

permanência, não teve um só dia de tranqüilidade. As finanças

públicas foram apenas uma desoladora continuação da

incurável penúria orçamentária do primeiro reinado, e a guerra

civil foi o regulador de fato de todas as nossas relações

internas. O Rio de Janeiro, com a imprensa perseguida e as

prisões cheias, viveu sob o terror de motins sucessivos, e, nas

províncias, “as revoltas destacavam-se em datas vinculadas em

série: no Ceará (1831-1832), em Pernambuco (1832-1835), no

Pará (1835-1837), na Bahia (1837-1838), no Maranhão (1838-

1841) e abrangendo-as, somando-as, a longa agitação no Rio

Grande (1835-1845)”(7).

A indomável reação do povo brasileiro contra as

pretensões do poder pessoa, durante a Regência, foi tão

grande, que chegou a extravasar cinco anos para além daquele

atormentado período!...

NOTAS

(1) Crowned republic. Vide A Short History of the World. cap. LXV, pág.

246, Ed. Tauchnitz, Leipzig, 1923. Aliás, a expressão república coroada ,

já fora empregada muito antes de Wells, especialmente em relação ao

Brasil, por Victor Hugo (démocracie couronnée) e William Gladstone

(crowned democracy), em artigos na imprensa de Paris e de Londres,

quando da segunda visita de Pedro II à Europa. O presidente Rojas Paul,

da Venezuela, ao ter notícia da queda da monarquia brasileira, teve, por

sua vez, estas significativas palavras, citadas por Oliveira Lima, no

frontspício do seu livro “O Império Brasileiro”. Se há acabado la unica

republica que existia en America – el Império del Brasil...

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(2) Fala do trono lida por Pedro I perante a constituinte, em 3 de maio de

1823.

(3) Anais da Câmara dos Deputados – 1823.

(4) PEREIRA DA SILVA, - História do Brasil de 1831 a 1840 . Pág. 226.

Garnier Edit. Rio de Janeiro.

(5) PEREIRA DA SILVA, op. cit., págs. 219 a 230.

(6) Fórmula usual de saudação dos escravos aos senhores.

(7) EUCLIDES DA CUNHA – À margem da História , pág. 320 – Porto,

Editora Chardron, 1913.

CAPITULO II

A MAIORIDADE E A POLÍTICA

DE CONCILIAÇÃO

Nós somos de opinião que a maioridade de Pedro II,

proclamada revolucionariamente em 1840, foi um dos fatos

mais importantes e decisivos de toda a nossa história política.

A circunstância de havermos investido nas funções de chefe

supremo do Estado a um adolescente de quinze anos, que pela

sua própria idade não podia intervir sensivelmente nos

negócios públicos, fez com que a sede habitual do governo se

deslocasse do paço e dos conselhos privados para as duas

casas do parlamento. Cessou automaticamente a luta entre o

poder pessoal do imperante e os representantes do povo, que

tendo ocupado todo o reinado de Pedro I e provocado a

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revolução de 1831, transmitira-se depois à Regência, sob a

forma daquela exaustiva e perturbadora discussão acadêmica

sobre divisão e independência dos poderes do Estado. Essa é a

verdadeira significação histórica da revolução parlamentar da

Maioridade. Infelizmente, o velho método de grupar os fatos

segundo as épocas, fazendo-os girar em torno de uma

individualidade preponderante, para deles extrair apenas o

elogio ou a condenação pessoal dessa individualidade, veio

prejudicar, nos nossos estudos históricos, o conceito que

devíamos formar daquele acontecimento, privando-nos dos

claros ensinamentos que ele nos pode oferecer. Basta ler um

dos maiores historiadores daquela época, o conselheiro Pereira

da Silva. Para ele, a conseqüência principal da Maioridade foi

“arrancar o país ao regime fraco das regências eleitas e a

exclusiva preponderância parlamentar, restituindo-o à ação

imediata do príncipe...”(8). Ora, foi precisamente o contrário o

que se produziu.

O próprio Pedro II desmentiu mais tarde a grade

influência pessoal a ele emprestada pelos historiadores no

início do seu reinado, afirmando com louvável exatidão que,

naquele tempo, as suas maiores preocupações não passavam

além dos estudos de Humanidades. Entretanto, a sua ação

pessoal direta, sobre o conjunto total dos negócios públicos,

tornou-se o ponto de resistência obrigatório de todos os

comentadores, tanto dos que empreenderam o seu elogio, como

daqueles que lançaram a cavilosa atoarda da sua prepotência,

mesmo disfarçada, para o fim de apresentá-lo com o caráter

antipático de um déspota. Impelidos por motivos diversos, mas

convergentes no processo, todos eles se empenharam em

ocultar o mérito principal do nosso grande imperador, que foi

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sem dúvida o de ter sido entre nós o maior cidadão de sua

época. Nesse estreito modo de apreciar a personalidade de

Pedro II, os cronistas estão, aliás, de perfeito acordo com o

sentimento popular, que nele sempre enxergou a causa

evidente e necessária da grande tranqüilidade pública e da alta

moral daquele tempo, Mas é preciso considerar os indivíduos,

não como fontes de acontecimentos, mas sim como funções

mais ou menos importantes do meio social em que vivem.

Pedro II não foi o criador do espírito do seu tempo; foi uma

conseqüência dele. Separado da família aos seis anos de idade

e entregue aos cuidados dos revolucionários de 7 de abril, a

sua mentalidade formou-se naturalmente ao influxo das idéias

daqueles homens.

Há uma circunstância histórica, da qual hoje quase não

nos lembramos mais, que, entretanto, não escapou à

observação bem educada e arguta do inglês John Armitage, na

sua excelente “História do Brasil”. É a de que a revolução

brasileira de 1831, foi, espiritualmente, uma repercussão

imediata da revolução francesa de 1830, que depusera a Carlos

X, o segundo rei da monarquia instaurada em França após a

ruína de Napoleão Bonaparte. Vinda depois da imensa agitação

revolucionária que sacudira o mundo desde a queda da

Bastilha em 1789, até a batalha de Waterloo em 1815, a

presença dos Bourbons no trono de França, sobretudo com o

sentido que lhe dera a grande concentração reacionária do

Congresso de Viena, transformara-se evidentemente numa

espécie de testemunho universal e permanente da imprescri -

tibilidade do direito divino dos reis. A exaustoração de Carlos

X, seguindo-se ao repúdio total dos princípios do Congresso

de Viena por parte da Inglaterra e a célebre declaração do

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presidente Monroe em 1823, surgira portanto como uma

demonstração definitiva e irrevogável de que a humanidade

não estava disposta a abandonar as grandes idéias do século

XVIII, que haviam produzido a revolução de 1789.

Foi naquele acontecimento de incalculável significação

moral, que os liberais brasileiros encontraram as últimas

energias para vencer as pretensões autoritárias do imperador

Pedro I. Os nossos compatriotas daquele tempo, apesar da

reação praticada pela Regência, sabiam muito bem em que

pensavam, quando se referiam aos princípios da sua revolução

de 1831.

Esses princípios eram, sem o menos sofisma, as grandes

idéias morais nascidas no século XVII com Bacon e Descartes,

que, através de Locke, Spinoza, Shaftesbury, Clarke, Leibniz,

Montesquieu, Adam Smith, David Hume e Jeremias Bentham,

vieram condensar-se, nas vésperas de 1789, no “Quadro

Histórico dos Progressos do Espírito Humano”, de Condorcet e

em todo o prestigioso conjunto da Enciclopédia. Eram bem a

liberdade política, expressada na participação permanente e

eficaz de todos os homens livres no poder público; isto é, a

substituição da obediência, nas relações políticas , pela

subordinação raciocinada e consentida.

José Bonifácio, o primeiro tutor que os revolucionários

de 7 de abril consentiram aos filhos de Pedro I, era um erudito

e um sábio, fortemente inclinado à “Enciclopédia”. Num

trabalho do Visconde de Cairú, publicado no Rio de Janeiro

em 1833, sob o título de “Manual de Política Ortodoxa”,

encontram-se transcritos dois exercícios de composição dos

pequenos príncipes imperiais, que mostram bem o sentido da

educação que lhes foi dada. O primeiro, assinado Pedro II, diz

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o seguinte: “À proporção que o homem figura mais na

Sociedade maior obrigação tem de trabalhar na utilidade de

seus associados. É com esta condição que os homens sofrem

que um dos seus iguais transponha as balizas da igualdade

marcada pela natureza”. No segundo, é a princesa Fona

Francisca que desta maneira escreve: “Ninguém pode ser feliz

em um governo despótico. O despotismo é contrário aos fins

das Sociedades civis e oposto à vontade de Deus, que criou o

homem livre para ser feliz”. Aí estão, como se vê, as idéias do

“Contrato Social” de Jean Jacques Rousseau, combinadas com

o nobre utilitarismo de Jeremias Bentham. Não é provável que

aqueles conceitos fossem originais de Pedro II, então de sete

ou oito anos apenas, nem de Dona Francisca, que era pouco

mais velha. Mas esses dois ditados revelam claramente o

mé5todo de preparação cerebral a que os jovens príncipes

eram submetidos pelos seus preceptores. Foi nessa atmosfera,

nesse ambiente moral intensamente sensibilizado, que se

formou o caráter do nosso segundo imperador, e pôde-se dizer

com segurança que o “neto de marco Aurélio”, na expressão

romântica de Victor Hugo, foi sobretudo um produto mental da

filosofia do século XVIII.

A verdade é que jamais Pedro II tentou colocar a sua

vontade pessoal acima da opinião geral do seu país. No início

do seu reinado, não o permitiria a sua tenra idade. Depois, a

elevada cultura do seu espírito o foi tornando incompatível

com todas as idéias e processos de violência. Ele aprendera

que as instituições políticas, como fatores históricos, têm uma

missão peculiar e um período determinado, além dos quais não

subsistem, senão como acidentes mais ou menos

perturbadores. Ele sabia que o poder moderador, concebido na

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reação autoritária do Congresso de Viena, não passava de um

compromisso precário e insubsistente do velho direito divino

com sentimento moderno, não podendo portanto compreender

o governo e as suas funções, no mesmo sentido que lhes deram

Pedro I e o padre Diogo Antonio Feijó.

Entretanto, a visão falsa de Pereira da Silva, que

naquele velho conselheiro da coroa bem podia ter sido apenas

uma forma de reverencia palaciana, transmitiu-se depois aos

cronistas que o sucederam, tornando-se o ponto de partida de

todos os comentários feitos ao passado regime. Euclides da

Cunha leva esse modo de ver ao extremo de atribuir a escolha

de Antonio Carlos para organizar o gabinete de 1840, à

simples “gratidão” do imperador aos batedores da sua

maioridade inconstitucional...(9). O notável etnógrafo dos

jagunços de Canudos, cedendo aos preconceitos da propaganda

republicana na qual se viu envolto na sua juventude,

evidentemente careceu ali de perspicácia. Antonio Carlos não

seria elevado ao poder só pelos impulsos afetivos de um

adolescente. O que naturalmente o indicou para aquele posto,

foi o prestígio que lhe veio do fato de ter sido ele, entre todos

os parlamentares da câmara e do senado, o agente principal e

decisivo da Maioridade. Perante o entusiasmo popular daquele

momento, que provinha da realização de uma aspiração geral ,

nenhum outro político poderia disputar-lhe aquela primazia.

Ele subiu ao poder porque assim o indicavam a opinião pública

e a maioria do parlamento, das quais o governo

necessariamente passava a depender.

A tendência a personalizar todos os fatos no imperador,

acentua-se tanto no “à margem da História”, que chega a

descobrir naquele menino de quinze anos uma sinuosidade,

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digna de um velho príncipe que longamente houvesse

manuseado e aceito ao pé da letra a “Educação” de Maquiavel.

Efetivamente, ali se encontra que o jovem Pedro II só escolheu

um ministério liberal em 24 de julho de 1840, para dar uma

momentânea e enganosa satisfação aos que mais se esforçaram

pela sua coroação imediata. A sua verdadeira política, aquela

que ele no íntimo tinha assentado, sem nada dizer aos seus

ministros, só se revela a 23 de março, quando, despedindo

aquele gabinete de menos de um ano, ele escolhe para

substituí-lo um outro de feição conservadora e francamente

autoritária. “A reação monárquica desmascarou -se logo; foi

exagerando-se até golpear o Ato Adicional”, diz Euclides da

Cunha.

A realidade porém, foi muito outra. Antonio Carlos,

apesar da sua orientação teoricamente liberal, sempre com

tanto brilho sustentada, no governo manifestou-se de uma

parcialidade intratável e absoluta. O novo ministério, como

arrastado pelo próprio espírito de combatividade dos

acontecimentos que o produziram, apenas concedida a anistia

pelos crimes políticos do período regencial, que aproveitava

sobretudo aos seus correligionários, logo entrou a perseguir os

adversários por toda parte onde pudesse atingi-los. Iniciou-se

uma derrubada geral nos postos da administração pública.

Quatorze presidentes de província foram imediatamente

demitidos, passando-se aos juízes de direito, os chefes de

polícia e os diretores de serviço de nomeação direta dos

ministros da coroa. Em seguida, através dos novos presidentes

enviados para as províncias, a derrubada prosseguiu inexorável

sobre os empregados menores e subalternos de todos os ramos

da organização administrativa, até atingir os próprios juízes de

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paz eleitos pelo povo, que foram suspensos para não poderem

presidir as mesas das próximas eleições legislativas. Graças a

esse violento trabalho preparatório, as eleições para a

renovação da câmara dos deputados, realizadas a 13 de

outubro de 1840, resultaram numa completa vitória para o

governo.

Mas a reação contra essas processos de brutal

exclusivismo, avolumando-se nas queixas dos diretamente

prejudicados, rapidamente ganhou a unanimidade dos jornais,

indo profundamente alarmar as altas esferas políticas da corte.

Não era aquele governo que a nação esperava para encerrar a

campanha sangrenta e pertinaz sustentada até ali contra o

poder pessoal. A oposição levantou-se de todos os arraiais da

política, num desapontado e geral movimento de estranheza, e

quando o imperador lançou a sua assinatura sob o decreto de

23 de março de 1841, pelo qual foi demitido o gabinete,

apenas obedeceu aos conselhos dos maiores homens do

império, que sem distinções de partidos, lhe vieram

recomendar aquela medida como indispensável e urgentíssima.

Escreveu Euclides da Cunha que a partir daquele

momento “desmascarou-se a reação monárquica”. Depende

naturalmente do que o autor do “À Margem da História”

entendia como reação monárquica. Se o país, com o advento

do jovem imperador considerava encerrada a luta contra o

poder pessoal e sinceramente esperava a extinção dos últimos

movimentos armados que a Regência deixara, não era sem

dúvida para que aquele poder se transportasse do chefe

supremo do Estado para a pessoa secundária do presidente do

conselho. Antonio Carlos, com as suas eleições de fatura

administrativa e policial, pretendeu apenas estabelecer em seu

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proveito um sistema de governo tão violento e unipessoal

como o de Pedro I ou o do regente Feijó. Foi esse o motivo

real da sua queda e não o desejo de Pedro II de reforçar aos

dezesseis anos de idade um poder imperial que de fato ainda

não exercia – nem jamais exerceu, no sentido que lhe

emprestaram os oradores e cronistas republicanos. É verdade

que o gabinete Paranaguá adotou, logo de entrada, toda uma

série de medidas que bem podiam ser tidas por draconianas.

Mas essas medidas foram livremente discutidas no parlamento,

reunido quarenta e um dias após a queda do ministério Antonio

Carlos, para a última sessão daquela legislatura, e aceitas com

evidente aplauso da opinião geral. O restabelecimento do

Conselho de Estado, tido como uma das provas mais

convincentes da ação reacionária do novo gabinete, foi um fato

que se produziu espontaneamente, quando os homens de

maiores responsabilidades morais daquela época acorreram ao

paço a solicitar a demissão do ministério da Maioridade. Esse

restabelecimento operou-se tacitamente antes de estar

empossado o gabinete conservador, e a melhor demonstração

do espírito que o determinou é a própria composição do

Conselho restaurado. Ao lado de conservadores como Honório

Hermeto, Bernardo de Vasconcelos e Araújo Lima, entram os

liberais Alves Branco, Lopes Gama e José Joaquim de Lima e

Silva, todos acompanhados de homens precisamente estimados

pela sua completa ausência de sentimento partidário, como

Silva Torres e Dom frei Pedro de Santa Mariana.

A câmara, eleita pelo escandaloso processo de

compressão de 1840, foi, como era inevitável, dissolvida,

ainda em sessão preparatória, a 2 de maio de 1842, tendo o

decreto da sua dissolução convocado uma outra para o mês de

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novembro daquele último ano. Os fatos que determinaram a

crise ministerial de 1841, com a conseqüente dissolução do

parlamento, não deixam de ter sido bem penosos. Mas é

necessário reconhecer que, a partir daquele momento, o

governo definitivamente passou a depender da representação

parlamentar, Foi na câmara cujo mandato expirava no fim de

1841 que o gabinete Paranaguá, instalado em março desse ano,

encontrou o apoio indispensável à sua enérgica e decidida ação

governamental. Não é possível portanto dar com propriedade à

política do Marquês de Paranaguá o qualificativo de “reação

monárquica”. Essa política, evidentemente baseada no

consentimento geral, teve como seu principal objeto a

pacificação interna. É precisamente na ação militar necessária

à extinção do vasto tumulto revolucionário herdado da

Regência, que melhor se revelam as tendências do gabinete de

23 de março de 1841. As operações de guerra, limitando-se a

colocar o adversário na impossibilidade de causar dano,

transformam-se, sob a generosa e sábia direção do general

Barão de Caxias, numa cordial solicitação de entendimento. As

forças que em 1842 partiram a dominar a revolta nas

províncias de São Paulo e Minas Gerais tomaram o nome de

Exército Pacificador, e, ao entrarem vitoriosas na cidade de

Mariana, o general manda retirar das ruas o empavesamento

festivo com que o esperavam e transformar o “Te Deum!” em

ação de graças pelo seu triunfo, em uma missa de “réquiem”,

por todos os irmãos brasileiros caídos sob qualquer das duas

bandeiras que se defrontaram na peleja.

Naturalmente, sempre será possível falar da áspera

energia do gabinete Paranaguá. Mas não resta a menor dúvida

de que, a partir dele, ficou definitivamente assentado o

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processo de funcionamento das nossas instituições políticas.

Foram os votos do parlamento que passaram a regular a

escolha e a duração dos ministérios, e, se até as grandes e

memoráveis eleições de 1860, a nossa política manteve sempre

uma linha geral acentuadamente conservadora – mesma através

de gabinetes liberais – foi porque a grande maioria da nação

assim o entendeu por necessário. A opinião pública fora

dominada pela sábia preocupação de evitar qualquer aventura

capaz de comprometer a ordem pacífica e natural da nossa

evolução. Em face de toda uma América Latina convulsa e

arruinada, deliberadamente foram respeitadas as ultimas

fronteiras da monarquia para a república, porque se

reconhecera no império a melhor e mais segura garantia da paz

interna e da unidade do país.

Procurar as causas de um fato histórico de tão profundas

conseqüências como a política do Marquês de Paranaguá, no

simples capricho de uma criança, é apenas uma tendência. A

verdade é que, vencidas as pretensões ditatoriais da coroa com

o movimento parlamentarista da Maioridade e corrigidos os

excessos partidários do ministério Antonio Carlos, a vida

nacional passou a caracterizar-se por uma espécie de

concentração de todas as suas energias, no sentido de resistir

ao perigo do desmembramento do Império. Esse perigo do

esfacelamento da grande nacionalidade apresentava-se de duas

maneiras. De um lado, como extensão ulterior da resistência

ao poder pessoal, perdurava ainda a revolta das províncias

contra o centro. A atividade revolucionária, tendo perdido o

seu ponto objetivo de reação, transbordava tumultuariamente

para a negação imediata da monarquia, sem base para a

organização eficaz de um novo estado de coisas. De outro

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lado, Buenos Aires continuava a cultivar com entusiasmo a

velha hostilidade castelhana contra a formação de uma grande

pátria de origem portuguesa no continente. Vivendo entre si na

mais fratricida e exasperada desordem, só numa coisa se

acordavam facilmente os antigos colonos espanhóis do rio da

Prata: na preocupação de destruir o Império do Brasil...

No Rio Grande do Sul aquelas duas formas do nosso

grande perigo nacional se conjugavam. Não é possível

desconhecer que a causa geral da guerra dos Farrapos tenha

sido o descontentamento dos liberais rio-grandenses, em face

dos processos autoritários do primeiro reinado, herdados pela

Regência. Filiando-se imediatamente às revoluções do Ceará e

de Pernambuco, que na sua sucessão cobriram o período de

1831 a 1835 ela coincidia com a violenta reação armada

surgida no Pará naquele último ao e que, emendando-se no seu

termo com a revolta baiana de 1837 a 1838, dali se mantivera

até 1841, na guerra dos Balaios, do Maranhão. Era parte de um

movimento generalizado de Norte a Sul, que tinha a sua

explicação lógica nas decepções da nossa política interna. Mas

logo a partir de 1836, devido à intervenção de elementos

estrangeiros vindos do Rio da Prata, a revolução rio-grandense

tomou um aspecto diverso, tendendo à separação.

Não seria possível estudar os nossos negócios internos

durante os dois primeiros decênios do segundo reinado, sem

fazer uma referência às relações que nesse período

mantivemos com a Confederação Argentina. Desde que, a 13

de dezembro de 1828, fora fuzilado em condições tão

dramáticas o presidente Manoel Dorrego, de Buenos Aires,

que reconhecera a independência do Uruguai, firmando

conosco o tratado de 27 de agosto daquele ano, era lícito supor

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que as províncias argentinas não nos deixariam tranqüilos por

muito tempo. Dorrego, tendo-se desavindo com os seus amigos

“federales”, sem obter em câmbio a confiança dos “unitários”,

foi vítima sem dúvida das condições políticas internas do seu

país. Mas o fato de haver ele promovido um tratado de paz e

amizade com o Brasil, não deixou de muito concorrer para o

seu martírio. O presidente Bernardino Rivadavia, a quem ele

sucedera no poder em 1827, após o rápido governo Vicente

López, caíra precisamente por haver enviado o ministro

Manoel Garcia a tentar a paz no Rio de Janeiro. Os inimigos

de Dorrego certamente não se privaram de ligar aquelas duas

circunstâncias para, além de tudo, apresentá-lo como um

traidor à causa nacional.

Ora, se um desfalecimento no ódio ao Brasil podia ser

de tão graves conseqüências, é evidente que a demonstração de

uma irredutível e vigilante hostilidade contra nós fosse

também um título excelente à estima pública.

Assim o entendeu imediatamente o ditador Juan Manuel

Rosas. Apenas ele ascende ao governo da província de Buenos

Aires, em 1832, logo surge em Porto Alegre o propagandista

Manuel Ruedas, que, aproximando-se naturalmente dos

círculos da oposição, tem recursos para apossar-se do

“Recompilador Liberal”, mantido até ali pelos farrapos como

seu órgão. Em 1833, tendo deposto o governador Ramom

Belcarce que o substituíra, e estendido o seu poder a todas as

províncias, Rosas nos manda o seu amigo Tito Zambicari,

conde italiano e pregador da república, seguido em 1834 pelo

gênio agitado e intrigante de Dona Anna Monteroso, mulher

do general Lavalleja que, em 1827, comandara contra o

Marquês de Barbacena, na batalha de Ituzaingó. Em janeiro de

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1835, afinal, Gregorio Lamas vem, pelos mesmos canais, a

porto Alegre...

Sobre todo o Brasil continuava a tresloucada política da

repressão “a outrance”, instituída pelo padre Feijó, em nome

do princípio extremo e absoluto da autoridade, caracterizada

no Rio de Janeiro pela incompatibilidade cada vez maior do

poder executivo com o parlamento. A revolta só se deixava

sufocar num ponto para rebentar mais adiante, e nessa

deplorável situação geral, a ação daqueles elementos

estrangeiros no Rio Grande, revelava-se de uma terrível

eficácia. No mês de maio, o governo provincial alarmado,

inicia uma decidida e violenta perseguição aos farrapos. Para

fins de destituição e encarceramento, são mandados processar

os juízes de paz eleitos pelo povo de Porto Alegre. Todos os

oficiais e funcionários conhecidos pelas suas idéias liberais

são arbitrariamente demitidos ou afastados. Na “campanha”,

aquela insólita atitude da presidência da província

imediatamente repercute em toda a sorte de violências pessoais

de que sabe ser tão fértil a política partidária do interior, e,

sob a impressão desses fatos, a assembléia abre-se a 20 de

abril num verdadeiro tumulto.

Era nesse ambiente que vinham ecoar as notícias da

revolução surgida no Para em janeiro daquele ano, na qual já

dois presidentes da província haviam perdido a vida. Ali,

como no Rio Grande do Sul, os partidários da reação

chamavam-se “caramurus”, e os motivos do descontentamento

geral eram idênticos. A sugestão revolucionária uniu portanto

os dois extremos do país e utilizando os recursos militares que

se lhes ofereciam bem mais fáceis pela fronteira, os liberais

rio-grandenses também partiram para a guerra.

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Nada nos prova que a revolução gaúcha de 1835

envolvesse, no seu início, a idéia de instaurar no Rio Grande

do Sul, qualquer sistema político diferente ou destacado do

Império. Os seus promotores, a princípio, só falavam no

restabelecimento dos processos legais da monarquia, que a

reação autoritária esquecera para abolir as liberdades públicas,

O farto de homens como Manoel Luiz Osorio, depois o grande

general Marquês de Herval, haverem repudiado aquele

movimento após a proclamação de Piratini, mostra vem que a

república foi uma surpresa e, em grande parte, uma decepção.

O recurso extremo da separação, só foi aceito pelos farrapos

em outubro de 1836, depois da grande derrota por eles sofrida

na Ilha do Fanfa.

Não é difícil reconstituir a psicologia dos farrapos no

dia seguinte àquela batalha. Estavam destroçados. Os seus

mais hábeis chefes militares tinham caído prisioneiros e o

melhor das suas armas e munições estava perdido. Como

reorganizar, sem novos recursos, um exército do qual, a bem

dizer, só restavam feridos, recolhidos por caridade à casa dos

moradores, e extraviados pelas coxilhas? Não era provável que

o governo de Buenos Aires se mostrasse disposto a manter-

lhes ainda as suas simpatias, depois de assim desmoralizados;

tanto mais que a revolução pretendera, até aí, conservar -se fiel

à unidade do Brasil, quando só a separação realmente o

interessava. O tom de voz dos agentes argentinos deve mesmo

ter mudado muito naquele transe, passando das insinuações

amistosas a uma formal propositura de condições.,

Proclamassem a república, separassem-se do Brasil, e não lhes

seriam regateados os meios de resistência. Do contrário, a

simples regeneração dos costumes políticos do Império não

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podia interessar seriamente a Don Juan Manuel. Tornou-se

necessário decidirem-se pela submissão imediata ou pela

república.

Tal foi o caminho pelo qual chegaram os farrapos a

Piratini. Desarmados entre ânimo de intransigente repressão do

padre Feijó e as solicitações de Buenos Aires, eles inclinaram-

se para estas, fugindo à tirania regencial pela separação. A

república era, afinal de contas, uma vela idéia que, naquele

momento de profunda perturbação, lhes parecia de certa forma

justificar o sacrifício da grande nacionalidade. Infelizmente

para os liberais do Rio Grande, a república que Rosas lhes

mandava era apenas a de João Facundo Quiroga, de Bustos ou

de Reinafé, cujos remanescentes ele mesmo então liquidava

em sua terra, na chacina lôbrega e permanente da Masorca.

Tratava-se somente de uma sangrenta alavanca, atirada por

cima da fronteira, para deslocar entre si os componentes da

grande nação luso-americana.

A obra de grande estadista do Marquês de Paranaguá

consistiu toda em neutralizar e destruir aqueles germes de

dissolução. Iniciada com o gabinete de 23 de março de 1841,

essa prudente e severa política foi rigorosamente mantida,

através dos diferentes governos conservadores ou liberais que

se seguiram, até 1862. A integridade nacional, a conservação

do patrimônio material do território e do patrimônio ainda

mais caro da língua, dos costumes e das tradições da raça, eis

o cuidado maior ao qual foram condicionadas todas as demais

preocupações daquele tempo. Essa foi para o povo brasileiro a

idéia predominante, até ver o seu país definitivamente

consolidado num sistema geral de fronteiras, que nunca mais

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pôde ser alterado ou mesmo corrigido, num sentido qualquer

de restrição.

Mas uma tal política, que necessariamente exigia uma

forte tensão moral e uma energia inquebrantável, em momento

algum do seu transcurso, jamais chegou a objetivar-se na

imposição de uma vontade individual preponderante. Ela foi

sempre o resultado do sentimento geral, expressado nos votos

do parlamento. Foi o nosso grande parlamento do Segundo

Reinado, inspirando-se nobremente nos próprios deveres do

seu mandato, quem soube encontrar, na consciência pública,

toda a força de que então se serviram os nossos homens de

governo.

A questão da independência dos poderes do Estado, que

se mantivera tão especiosa e irritante com Pedro I e a

Regência, desapareceu completamente das relações da câmara

com o executivo. Ninguém mais pôs em dúvida que fossem os

corpos legislativos, como representação imediata do povo, a

fonte legítima e constante de toda autoridade pública. O

próprio ato de dissolução da câmara irregularmente eleita em

1840, tomou o caráter de uma solene consagração desse

princípio essencial. No relatório enviado à coroa no dia

primeiro de maio de 1842 para o fim daquela resolução, o

ministério, coletivamente, assim se expressava: “A salvação

do Estado, tal qual se acha constituído pela constituição e seu

ato adicional, exige portanto que a atual câmara dos deputados

seja substituída por outra, a quem a liberdade do voto dê o

caráter de representante da opinião nacional e a força moral

indispensável para firmar entre nós o sistema monárquico-

constitucional-representativo”. O governo, ao mesmo tempo

que desfazia um ajuntamento sem mandato regular, devolvia à

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câmara a sua função de principal reguladora da vida do

Estado, reconhecendo e proclamando que era sobre ela e por

ela que se deviam firmar as instituições do Império. No dia 20

de janeiro de 1843 o gabinete Paranaguá é substituído por um

outro onde aparece a figura eminente de Honório Hermeto

Carneiro Leão. O novo ministério é apresentado à câmara no

dia 23, pelo titular da pasta da Marinha, Joaquim José

Rodrigues Torres, com as palavras seguintes: “Sinto a

necessidade que tem o governo de expor com toda a lealdade

os seus princípios, afim de que a Câmara possa dar-lhe ou

retirar-lhe o seu apoio. O ministério e o país têm necessidade

disto; o país tem necessidade de um ministério fortemente

organizado, fortemente apoiado pelo corpo legislativo, e não

deseja que a Câmara se mostre dúbia por considerações

quaisquer. Ela deve manifestar com muita energia o seu

pensamento, para que assim possamos ter o governo que,

sustentado pelas câmaras, possa promover a felicidade da

Nação.”

O regente Feijó dizia em 1837 que o poder executivo

devia ser independente do legislativo e não sujeitar -se a

maioria de câmaras, que eram várias e caprichosas... Pois bem:

a partir de 1841, passando aquele poder a depender do

parlamento, a política geral e a administração pública, através

dos ministérios que se sucedem ao sabor “vário e caprichoso”

daquelas maiorias, assumem um espírito de seqüência e eficaz

continuidade que jamais haviam conhecido. Em 1844, a

situação conservadora cede o lugar a um gabinete onde

novamente se divisa o grande perfil liberal de Manoel Alves

Branco. Mas a concentração nacional do Marquês de

Paranaguá ainda mais se acentua, pela anistia dos antigos

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revolucionários das províncias do Norte e do Centro, já de

todo pacificadas. Generaliza-se então a designação sugestiva

de “política de conciliação”, adotada por Honório Hermeto ao

iniciar a vida do ministério anterior. O general Barão de

Caxias, que Paranaguá mandara a reduzir os farrapos no Rio

Grande, apesar de conservador pelas suas idéias, é mantido no

seu posto pelo governo liberal. Os clarins do seu exército, a

ecoarem pelas cochilhas, haviam despertado o sentimento

nacional no extremo Sul. E o governo Alves Branco pôde

assim encerrar a guerra dos Farrapos, sem vencedores nem

vencidos, num grande movimento de confraternidade

brasileira.

NOTAS

(8) PEREIRA DA SILVA – Op. cit., pág. 345.

(9) À Margem da História , pág. 320.

CAPÍTULO III

A LEI DOS CÍRCULOS

Havíamos conseguido a paz interna. Entretanto, a

política que vinha realizando aquele esplêndido trabalho de

consolidação do país, não pôde ser dada ainda por terminada.

A nova câmara, reunida nos primeiros meses de 1845,

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imediatamente afirma a decisão de prossegui-la. Na sessão de

26 de maio, tendo-se verificado uma alteração no gabinete,

pela substituição de dois ministros, o deputado Silva Ferraz,

liberal dos mais avançados e intransigentes, pergunta qual era

afinal o programa novo que trazia aquele Governo assim

modificado. Reportando-se à situação anterior do ministério,

responde-lhe o Ministro da Marinha Holanda Cavalcanti:

- A política atualmente seguida, suponho que não

discrepa da política que então se seguia.

- Da inércia? ..., insiste o deputado.

- A inércia, na significação vulgar, obtempera o

ministro, não é nada. Porém, quando um matemático fala em

inércia, é alguma coisa...

Uma torrente de apoiados acolhe essa imagem

mecânica. Era bem aquilo. A força ova, que alterasse o

movimento de simples concentração iniciado em 1841, não

viera ainda da opinião pública. Em 2 de maio de 1846, esse

gabinete é substituído por um outro, no qual figura ainda

Holanda Cavalcanti, na pasta da Fazenda, mas onde não se vê

mais o nome de Manoel Alves Branco. A apresentação à

câmara é feita pelo Ministro da Justiça, José Joaquim

Fernandes Torres: - “Eu estou persuadido de que a política do

gabinete de 2 de fevereiro (1844) teve em vista a concórdia

entre todos os brasileiros, restabelecer a tranqüilidade pública

em todo o país, e para conseguir este fim teve sempre em vista

os princípios de justiça, a constituição do Estado e a pontual

execução da legislação do país. Estando persuadido de que

este é o programa do gabinete transacto, e do atual, digo que

não tem sofrido alteração ou modificação a política do

gabinete.”

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Pode-se dizer que o único fato realmente novo na

política interna do Brasil, entre o fim da guerra dos farrapos e

as grandes eleições legislativas de 1860, é a criação do cargo

de presidente do conselho de ministros. Até então, a

preeminência de uma individualidade maior no seio do

gabinete, operava-se de si mesmo, por uma espécie de

reconhecimento tácito. Assim fora com Antonio Carlos, com

Paranaguá, com Honório Hermeto, o Marquês de Olinda, ou

Alves Branco. Mas, ao voltar este último ao poder, em 1847,

aparece o decreto de 20 de julho, que cria a figura legal do

presidente do conselho. As nossas instituições, pela

experiência adquirida, assumiam a sua estrutura. Entretanto, a

política geral mantinha-se imutável e constante. Dominava-a

sempre a preocupação da unidade do Império, com exclusão de

toda iniciativa que nos pudesse desviar desse extremo

objetivo. Em 1848, ainda surge uma perturbação da ordem

interna, na revolta praieira de Pernambuco. É porém, uma

agitação sem raízes profundas, nascida principalmente de erros

da política provincial. Os chefes mais notáveis do partido local

que a promove, nem bem a compreendem. Liquida-se em

algumas correrias cangaceiras pelo sertão, depois de, no

Recife, haver trazido a morte do grande tribuno Nunes

machado, num infeliz tiroteio de rua.

A prova final de resistência da nossa unidade nacional,

aquela que nos demonstraria podermos enfim abandonar sem

perigo a severa política de 1841, essa prova tinha que os ser

oferecida nas fronteiras do Sul. Ela veio das relações da

política interna do Uruguai com os estancieiros nossos

patrícios, que ali se conservaram após o tratado de 1828.

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O insucesso da república de Piratini, não bastara ao

tirano Rosas como demonstração de irrevogável unidade do

Brasil. Don Juan Manuel havia-se lançado num plano de vasta

construção política, no qual a separação do Rio Grande era

apenas um detalhe subsidiário. O que ele visava em definitivo,

era a reabsorção do Uruguai, do Paraguai e talvez da Bolívia,

nas antigas fronteiras do vice-reinado de Buenos Aires, criado

pela monarquia espanhola em 1777, para combater a nossa

instalação nos planaltos interiores do continente. A hostilidade

contra nós decorria necessariamente do próprio sentido da sua

política internacional. Repelindo o tratado de 1828 e ao

mesmo tempo ameaçando-nos no Rio Grande do Sul, no

Paraná e em mato Grosso, ele automaticamente reabria todas

as seculares questões continentais que aquele tratado

pretendera resolver. Estaríamos quase em face do remoto

espírito colonial do meridiano de Tordesilhas, pois Rosas teria

repudiado mesmo o princípio do “uti possidetis”,

posteriormente reconhecido pelas cortes de Lisboa e de Madri,

como fundamento de domínio sobre as terras do Novo Mundo.

É claro que, possuído de tão vertiginosas pretensões,

não podia o ditador de Buenos Aires desanimar logo ao

primeiro fracasso. A preparação da revolta dos farrapos

coincidira com uma ativa e veemente propaganda dos seus

projetos, nos meios governamentais de Montevidéu e de

Assunção. Os paraguaios o desatenderam, solicitando mesmo

contra ele a nossa ajuda. Outro tanto porém, não se deu com o

governo uruguaio do general Oribe, que se pôs ao seu serviço.

Não vale a pena recordar aqui as terríveis vicissitudes a

que, durante nove anos, o Uruguai se viu sujeito, em

conseqüência da aliança de Rosas e Oribe. Imagine-se somente

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a situação em que fiaram os brasileiros ali residentes, com o

território da república, exclusão feita apenas da capital,

inteiramente ocupado pelos soldados argentinos... Os nossos

compatriotas foram logo despojados das suas estâncias, muitos

deles perdendo a vida no selvagem tumulto da confiscação. O

governo imperial, tratando-se de fatos que se passavam além

da fronteira estabelecida em 1828, sentiu-se obrigado a uma

atitude de extrema circunspecção. Mas os rio-grandenses não

puderam assistir impassíveis ao sacrifício de seus irmãos.

Organizaram-se expedições que fossem ao país vizinho

libertar os brasileiros, trazendo-os com os seus bens móveis e

os seus rebanhos ao território da província. Deram-se correrias

e escaramuças na margem direita do rio Uruguai, e o ministro

argentino no Rio de Janeiro, Thomaz Guido, comparece à

nossa Secretaria do Exterior, para exigir como representante

do general Oribe, a cessação daquelas incursões na fronteira

uruguaia.

Ora, a nossa chancelaria não podia admitir em Thomaz

Guido qualidade para falar em nome de Oribe, a quem, aliás,

ela nem sequer reconhecia como presidente legal da república

uruguaia. O governo estabelecido em Montevidéu, de onde

Oribe fora expulso pelos patriotas uruguaios, era, na espécie, o

unido a quem poderíamos atender. E, com esta resposta,

Thomaz Guido reclama os seus passaportes, retirando-se a

Buenos Aires.

A par de toda a enorme audácia das suas concepções,

não se pode negar ao tirano Rosas uma grande habilidade

política. O seu sonho de unificação geral dos países da bacia

do Prata sob um governo único, era certamente tão complicado

e perigoso que qualquer outro o teria abandonado logo ao

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primeiro exame. Não era apenas a situação continental das

províncias argentinas, em face do Brasil, do Uruguai e do

Paraguai, que embaraçava a realização daquele projeto. Eram

também as próprias condições internas da confederação,

partilhada entre um poderoso grupo de caudilhos, cada qual

mais ferozmente imbuído de pretensões à soberania. Antes de

vencer a desconfiança sempre alerta dos brasileiros, ele

necessariamente tinha que sufocar pela força as ambições dos

seus concorrentes internos.

Entretanto, Rosas não desanimou. Durante dezessete

anos consecutivos, de 1833 a 1850, ele habilmente manobrou

entre aquelas duas mortais dificuldades Em 1845, esteve

prestes a ser colhido nas próprias armadilhas da sua astúcia.

Mas logo desvencilhou-se, com a rude solércia de um gaúcho

num rodeio.

O caudilhismo regional, que rosas fazia insuflar aos

farrapos do Rio Grande, sob o disfarce de propaganda

republicana, era evidentemente uma arma de dois gumes. Ele

cultivava nas fronteiras uma planta cuja extirpação no solo

argentino se tornara, para o seu governo, uma condição de vida

ou de morte. Com o tempo, os inconvenientes dessa diametral

dualidade de processos não podiam deixar de transbordar os

interesses daquele que a praticara. Evidentemente, em 1842, o

caudilho uruguaio Fructuoso Rivera e o seu confrade argentino

Paz Lopez, reuniam-se com o chefe farrapo Bento Gonçalves,

em Paissandu, e os três, juntos em conferência, estabeleciam

um plano geral de ação que constituía para Don Juan Manuel

uma severa e inquietante surpresa. Simultaneamente, em

oposição ao plano de restabelecimento do vice-reinado de

Buenos Aires e contra os interesses da unidade do Brasil, eles

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decidiam bater-se pela formação de um novo Estado que

abrangesse o Rio Grande do Sul, o Uruguai e as províncias

argentinas de Corrientes e Entre-Rios. Era, para Rosas, a volta

do feitiço contra o feiticeiro...

O tirano inclinou-se então para o Brasil, autorizando o

seu representante no Rio de Janeiro a entender-se com o

governo imperial sobre a nova situação da margem esquerda

do Rio da Prata. Em janeiro de 1843, o ministro argentino, que

já era Thomáz Guido, manda à nossa chancelaria a nota que

serviu de base ao tratado de 24 de março no qual ficou

combinada uma ação conjunta dos dois governos contra os

rebeldes dos dois lados da fronteira.

Esse tratado de 1843, consentido pelo gabinete

conservador de Honório Hermeto, mereceu da oposição liberal

os comentários mais acerbos e veementes. Na sessão da

câmara dos deputados de 21 de agosto de 1845, o deputado

Gabriel Rodrigues dos Santos ainda dizia: “Antes de tudo, sr.

presidente, cumpre ponderar que não pode escapar da acusação

de ter sujeito o país à maior das ignomínias, aquele governo

que julgou conveniente aliar o monarca brasileiro ao ditador

de Buenos Aires, para o fim de pacificar o Brasil...”

Certamente, uma aliança, para aquele fim, entre a

monarquia parlamentar e o grosseiro despotismo platino, não

era nenhum modelo de elegância. Mas é preciso reconhecer

que não ficáramos sendo nós os de pior partido naquele ajuste.

Tal como fora redigido pelos seus negociadores brasileiros, o

tratado de 1843 resumia-se afinal numa espécie de “termo de

bem viver”, a ser assinado pelo sinuoso caudilho do Rio da

Prata. Por ele, Rosas ratificava o tratado de paz de 1828,

aceitando pessoalmente a obrigação de respeitar e garantir a

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independência do Uruguai, ao mesmo tempo que o nosso

governo, como direito de fiscalizar a atividade dos farrapos no

território argentino, ficava com os meios de sufocar a guerra

civil nas suas bases estratégicas, pois era ali que os

revolucionários encontravam todos os seus recursos militares.

Mas Rosas não poderia cumprir aquelas disposições,

sem renunciar por uma vez a sua velha política continental.

Era preciso abandonar os rosistas do Uruguai à sua sorte,

oferecendo também aos republicanos rio-grandenses a

revoltante impressão de uma felonia. Com o espírito anti -

brasileiro que o ditador não cessara de alimentar em todo o

Rio da Prata, não teriam sido menos comprometedoras para a

sua pessoa as reações morais daquele acordo, no interior da

Confederação Argentina. Ia-se talvez reacender nas ruas de

Buenos Aires a mesma impetuosa indignação que determinara

a queda de Rivadavia em 1827, e, dados os ódios que Rosas

fizera nascer com os seus processos de governo, era bem

possível que depressa o encontrasse, naquele caminho, o

antigo pelotão de fuzilamento do general Dorrego...

Don Juan Manuel não era homem a insistir num passo

perigoso, ainda mesmo que a esse passo conduzissem todas as

considerações de probidade internacional. Mais feliz que

Rivadavia, ele pôde, sem inconveniente, repudiar o tratado de

1843, dando o negociado por Thomaz Guido como excedente

das suas instruções. Aquele tratado talvez tenha servido ao

ditador para intimidar os políticos de Corrientes e Entre-Rios.

Para os fins da sua grande política continental, Rosas

jamais pôde conjugar, de uma forma oportuna e decisiva, as

condições por ele criadas no Uruguai, com a perturbação

revolucionária do Rio Grande. Não só a isso se opuseram os

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contra-golpes da política imperial e as circunstâncias internas

da Argentina, como também as relações do ditador com as

principais potências da Europa, que se mantiveram sempre

incertas e oscilantes. Manobrando, irritado e teimoso, entre

todos aqueles embaraços, ele teve de assistir impassível, em

1845, à pacificação da nossa grande província do extremo Sul.

Mas, em 1850, ou porque julgasse mais sólida a sua

situação política interna, ou levado pelo temos de que se fosse

o tempo encarregado de queimar assim todos os seus trunfos,

fosse por cálculo refletido ou por simples exasperação, a

verdade é que Don Juan Manuel resolveu desferir contra nós o

seu golpe definitivo. A agitação dos nossos compatriotas da

fronteira serviu de oportunidade ao rompimento formal. A

chegada do ministro Thomaz Guido a Buenos Aires, de volta

do Rio de Janeiro, assinalou-se por uma inacreditável explosão

de entusiasmo guerreiro. Parecia que os portenhos, em face do

Império do Brasil, haviam chegado a um momento semelhante

àquele que conheceram os revolucionários franceses em 1792,

quando os imperadores e os reis da Europa coligados se

aproximavam da planície de Valmy...

Tudo aquilo, porém, concebido e montado pelos

familiares da Mazorca, era apenas um estrondoso apelo atirado

às províncias argentinas para que todas elas viessem cerrar

fileiras em torno do ditador, naquele decisivo e extremo

arranco do seu grande sonho continental. Rosas perdera toda

medida, proclamando franca e ostentosamente os seus

desígnios. Tratava-se simplesmente, como castigo a nós

outros, de fazer entrar também o Rio Grande do Sul na

projetada recomposição do vice-reinado, e de impor pelas

armas a república em todas as demais províncias do Brasil...

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Dada a escassa população argentina daquela época e os

reduzidos meios econômicos de um país que viera da guerra

dos caudilhos para a tirania absoluta, não é possível que Rosas

pensasse em dominar o Brasil só com os recursos militares da

confederação. Ele julgou sem dúvida que os melhores

auxiliares estivessem dentro das fronteiras do Império.

O reconhecimento habitual da força, como base

universal de toda construção moral e política, tem o grave

inconveniente de nos privar de senso psicológico. Aquele

grande devoto da força, na atitude assumida para conosco em

1850, pretendeu entretanto fazer psicologia. Para ele, a nossa

paz interior fora um produto de contenção militar, que

necessariamente entraria em crise, desde que as forças

imperiais se distraíssem do policiamento interno para atender

ao primeiro ataque nas fronteiras. O tirano não se apercebera

de que a paz no Rio Grande fora-se tornando mais próxima à

medida que a revolução mais se distanciava do sentimento

nacional brasileiro. A idéia da república com a separação já

fora um início de debandada nas fileiras revolucionárias. O

resultado da conferência de Paissandu, com a projetada

absorção da província num novo estado castelhano, foi o sinal

da volta geral ao seio do império. Os separatistas

compreenderam que não havia lugar no continente para uma

pequena nação de origem portuguesa. Era preciso ser

brasileiro ou ser país anexado, abrindo mão imediatamente da

língua, das tradições, dos costumes; de tudo quanto constitui a

honra, o encanto e o próprio ser dos povos nacionalmente

caracterizados. Ao mesmo tempo que essas graves

considerações se elevavam no espírito dos farrapos, o Rio

grande do Sul, como as outras províncias do Império, era

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levado à comparação do ambiente político criado entre nós

pela monarquia parlamentar, com a espantosa selvageria da

vida hispano-americana. Todos se convenceram de que os

sistemas políticos não estão nos apelativos verbais, mas sim na

maior ou menos soma de liberdade que possam assegurar.

Rosas acreditou que, ao ruidoso apelo das

manifestações de Buenos Aires, uma indomável e geral

montonera se alastrasse para o Norte, embaraçando e

absorvendo todo o poder militar do império, ante a invasão

republicana que ele se propunha a conduzir. Mas o Rio Grande

do Sul que, numa falsa compreensão das nossas condições

internas, foi precisamente o ponto no qual primeiro e com

maior veemência se manifestou a reação nacional dos

brasileiros contra aquelas pretensões. A chegada de Thomaz

Guido a Buenos Aires, com as demonstrações a que deu lugar,

verificou-se a 16 de outubro de 1850. Vinte e dois dias depois,

a 7 de novembro seguinte, a assembléia provincial de Porto

Alegre reunia-se e unanimemente votava uma mensagem ao

Imperador, na qual, para a defesa da pátria e da dignidade do

Império, eram ofertadas sem restrições nem limites, as vidas e

a fortuna de todos os filhos do Rio Grande. Os antigos

regimentos de voluntários, que se haviam defrontado nos

ásperos dias da guerra civil, rapidamente se recompuseram. O

general Caxias, mandado voltar à província para tomar o

comando das nossas forças que se organizavam, encontra

enfileirados sob a bandeira imperial as antigas glórias do

exército farrapo. Lá estavam Bento Gonçalves, Bento Manoel

e David Canabarro, todos ao lado do general Barão de Jacuí,

que fora o mais intratável e ferrenho dos seus antigos

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contendores. Era a política de 1841, convertida em poder

militar uniforme, face à fronteira.

Rosas não se enganara somente quanto à fidelidade das

províncias do Brasil à unidade do império. Ele igualmente

iludiu-se sobre a mútua solidariedade dos povos do Prata,

perante os perturbadores desígnios da sua política continental.

De início, nós podíamos contar apenas com um aliado, que era

o governo do Uruguai, sitiado em Montevidéu pelos soldados

argentinos às ordens de Oribe. Mas, apenas Caxias começa a

dispor as suas tropas para a passagem da fronteira, logo se nos

vêm juntar as forças dos caudilhos Urquiza e Virasoro,

respectivamente governadores de Entre-Rios e Corrientes. As

hostilidades perdem então o caráter de guerra internacional,

para tomar o feitio especial de uma grande operação de

polícia, contra o maior perturbador da paz no continente. Em

setembro de 1851, Oribe rendia-se incondicionalmente. Um

mês depois, era levantado o cerco de Montevidéu e a nossa

esquadra, vencendo a resistência do general Mansilla no Passo

de Tonelero, vai proteger a passagem dos aliados para a

margem direita do Paraná. A 24 de dezembro incorporam-se

ainda aos nossos soldados da província de Santa Fé, e a 3 de

fevereiro de 1852 fere-se a batalha final de Monte Caseros.

Rosas, pretendendo separar o Rio Grande do Sul do

Império do Brasil, colocara-se na situação do imprudente que

metesse a mão entre duas pedras. Esta foi a causa imediata e

principal da sua ruína.(10)

O fato de se haver completamente modificado a situação

política argentina, com um exército brasileiro acampado em

Palermo e a nossa esquadra estendida de Montevidéu a Rosário

de Santa Fé, foi de um efeito deveras excelente para a nossa

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posição internacional. Nasceu no Rio da Prata uma nova

opinião a nosso respeito. Não só estava morta a temerária

veleidade de intervir nos nossos negócios internos, como

deixáramos de ser os inimigos inevitáveis e necessários, para

merecermos a cordial consideração de um grande vizinho, que

nada mais pedia além do mútuo respeito e do fiel cumprimento

das obrigações assumidas. Nós havíamos dado uma prova

simultânea da solidez da nossa grande construção nacional e

do leal desinteresse da nossa política exterior. Certo, na massa

geral da população platina, não foi possível apagar

subitamente seculares e profundas animosidades, cujas raízes

vinham das primeiras instalações de espanhóis e portugueses

no continente. Mas o fim da brutal tirania de Rosas,

promovido por nós, determinou o predomínio das classes mais

cultas da sociedade argentina no governo de Buenos Aires,

criando ali uma atmosfera melhor e mais inteligente.

O nosso país, pacificado internamente pela

interpretação parlamentarista das suas instituições, e

considerando-se afinal consolidado na sua situação

internacional, pôde então voltar ao ritmo normal da sua

evolução política. Durante aqueles doze anos, conservadores e

liberais haviam-se confundido com o mesmo esforço de boa

vontade. Ressalvado o princípio essencial do mútuo

consentimento, pela constante subordinação do poder

executivo aos votos do parlamento, todos os demais pontos de

doutrina foram voluntariamente afastados, para dominar

sobretudo a preocupação da unidade nacional. Desde, porém,

que o perigo do desmembramento havia de todo desaparecido,

desapareceram também os motivos daquela trégua entre os

partidos. Entretanto, as alterações que dali por diante se

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observam na nossa vida pública não são provocadas por

simples decisão pessoal daqueles que poderiam ser

considerados como chefes de grupo ou diretores da opinião.

Nem mesmo o governo tenta imprimir uma orientação nova à

atividade propriamente política do país. Contenta-se apenas

em aproveitar a folga que lhe vem da paz interna e da

tranqüilidade nas fronteiras, para um grande esforço de

construção, no terreno do progresso material. Além da

realização de todos os pontos do seu programa, a política

inaugurada em 1841 havia criado uma obrigação suplementar.

Nenhuma negociação ou entendimento teve sem dúvida lugar

para tal fim. Foi apenas a aceitação generosa e espontânea de

um dever de honra, que o próprio ambiente moral fizera nascer

e aos espíritos mais esclarecidos se apresentava como

evidente. Nenhum governo devia explorar as novas condições

gerais para romper apressadamente, em proveito dos seus

amigos, o equilíbrio partidário mantido até então na política

interna.

Foi esse o estado de espírito que sugeriu ao gabinete de

6 de setembro de 1835 a reforma eleitoral da “Lei dos

Círculos”.

Para não impor ao país uma nova orientação política,

que fosse apenas o ponto de vista particular dos detentores

ocasionais do poder, resolveu-se modificar o processo

eleitoral, no sentido de uma consulta cada vez mais ampla a

profunda ao sentimento do povo. Até então a escolha de

deputados à assembléia geral, segundo o sistema indireto da

eleição de dois graus, estabelecido na lei de 19 de agosto de

1846, fizera-se por províncias. O deputado representava a

província e não, dentro dela, uma determinada circunscrição

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eleitoral. Procurou-se ligar mais intimamente a função

legislativa ao pensamento inicial do eleitorado. Pela lei de 19

de setembro de 1855, a eleição deixou de ser feita por

províncias, para obedecer ao sistema dos círculos de um

deputado. As eleições para a legislatura de 1857 a 1860 já se

realizaram por esse processo. Entretanto, a composição da

nova câmara não parece ter correspondido às esperanças dos

mais devotados promotores da reforma. Nenhuma alteração

sensível foi observada nas opiniões do parlamento. Era a

política de conciliação que novamente voltava numa câmara

quase sempre unânime. As queixas contra a lei de 1855 não se

fizeram esperar. A reforma fora um ludíbrio. Deslocada a

eleição do critério amplo e mais elevado da província para o

estreito ambiente dos círculos, a escolha dos deputados

passava a obedecer tão-somente à conveniência dos chefes

locais, sempre interessados nas boas relações com o governo,

pela posse dos pequenos cargos de administração nas suas

comarcas. De 1857 a 1859, tudo parecia conduzir ao repúdio

definitivo da lei dos círculos, pela volta ao sistema anterior.

Mas em 19 de agosto de 1859, com a retirada do gabinete

Abaeté de 10 de dezembro de 1858, vem ao poder um

ministério que traz como seu chefe, na pessoa do então

senador Silva Ferraz, o mais ardente e extremado liberal

daquele tempo.

Para compreender exatamente o que dali por diante se

passou, é necessário prestar ainda atenção a certas

circunstâncias anteriores. O autor principal da lei dos círculos,

como chefe do gabinete de 6 de setembro de 1853, fora

Honório Hermeto, o grande ministro conservador a quem

coubera, em 1843, a sucessão governamental do Marquês de

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Paranaguá. Continuador imediato do programa de 1841,

ninguém melhor do que ele avaliava toda a extensão do

sacrifício estoicamente aceito pelos liberais na política de

conciliação. No momento em que aquela política, graças ao

esforço comum, havia produzido todos os seus frutos, era para

ele indispensável, mais que a qualquer outro, que a volta dos

partidos às suas antigas posições se operasse num ambiente de

eqüidade e de mútuo respeito. Na sessão de 25 de julho de

1855, a câmara sentiu-se tomada de surpresa ante a vigorosa

determinação com que ele, lançando a questão de confiança, a

obrigou sem demora a definir-se entre aquele dever de

lealdade e a demissão imediata do gabinete. Honório Hermeto

porém faleceu a 3 de setembro de 1856, antes da aplicação

prática da sua reforma, e como nessa primeira prova ela

automaticamente não produzisse os resultados desejados, os

nobres sentimentos que a ditaram, logo foram sendo

esquecidos. Muito se argumentava com a deletéria influência

dos pequenos interesses locais no funcionamento do novo

processo eleitoral. Mas em verdade, o que os elementos de

reação mais censuravam na lei de 1855, era a sua muito

acentuada orientação liberal. As individualidades médias do

parlamento esperavam apenas que aquela lei chegasse às

vésperas das novas eleições gerais bastante desmoralizada,

para que a sua revogação pura e simples se impusesse como

uma necessidade evidente.

Felizmente os homens mais diretamente ligados às

grandes responsabilidades da política de conciliação, tanto no

Conselho de Estado como nas duas câmaras, não tiveram

dificuldades em compreender tudo quanto havia de deselegante

e mesmo de perigoso naquela deplorável tendência. O

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ministério de 19 de agosto nasceu claramente da preocupação

de contar e sustar tamanho deslize. A princípio ele parece

surgir quase sem programa determinado. O discurso com o

qual Silva Ferraz o apresenta é todo feito de prestigiosas

generalidades, destinadas muito mais a obter as boas graças

dos grupos parlamentares para a nova composição, que a

revelar o seu exato pensamento. “Saídos do seio da

representação nacional, diz Silva Ferraz, conhecemos

perfeitamente a nossa responsabilidade e as condições do

sistema representativo. Envidaremos, pois, todos os nossos

esforços, a fim de podermos manter a necessária harmonia

entre o poder executivo e as câmaras legislativas. Nesse

intuito, lançaremos mão de todos os meios legítimos para obter

a confiança que é essencial a um gabinete parlamentar que sai

do seio da representação nacional”. A esta reverência elegante

e bem colocada, o presidente do conselho acrescenta apenas

uma série de boas intenções, no gênero de “manter as

instituições juradas,(11) observar e fazer observar com

lealdade a legislação do país, promovendo ao mesmo passo o

seu melhoramento e perfeição como a experiência o

aconselhar...” Era muito pouco como programa objetivo de

administração. Mas para aquela câmara, produto de uma

corrente de idéias já passada e que não sabia bem o que ainda

fazia ali, era sem dúvida o suficiente. Silva Ferraz obteve a

maioria necessária à vida do seu governo. O seu verdadeiro

programa, aquele que ele realmente trazia, só se revela porém,

quando ele lança o seu projeto de reforma da lei de 1855,

propondo o alargamento dos círculos de um para três

deputados. De certa forma aquele projeto parecia atender às

críticas levantadas contra a lei de Honório Hermeto. O

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alargamento dos círculos eleitorais traduzia-se afinal numa

certa restrição ao poder dos chefes locais, em benefício de um

critério mais selecionado e mais alto. A verdade, entretanto, é

que Silva Ferraz procurava apenas salvar o princípio liberal da

eleição direta, que, mantido em seus primeiros rudimentos, o

máximo possível, naquele instante, deveria triunfar

completamente muito mais tarde, na grande lei Saraiva de

1881. Quando a reforma, aprovada na câmara dos deputados,

entra na ordem do dia do senado, ele põe uma calma e segura

franqueza em defendê-la. Um senador lhe pergunta para que

alterar a lei dos círculos, se lhe parece tão sábia. Ele responde:

“Precisamente para que ela não morra!...” Na primeira casa do

parlamento, a discussão, conduzida pelo ministro liberal, já

assumira diante dos conservadores um caráter de extremo

apelo às solenes obrigações de um fideicomisso. Os

conservadores eram implicitamente chamados à compreensão

de que o respeito aos princípios do sistema eleitoral de 1855,

era para eles um dever de fidelidade à memória de Honório

Hermeto. Na câmara alta essa feição do debate ainda mais se

acentua. A maioria conservadora recorrera ao expediente

parlamentar da obstrução. Resistia-se pela simples inércia.

Mas, a um momento dado, o Visconde de Abaeté, com toda a

sua autoridade de presidente da assembléia, levanta-se ao lado

do chefe do governo. Dados os antecedentes do projeto, ele

severamente observa aos seus pares que aquela atitude era

indigna de senadores do Império. A discussão é encerrada

então rapidamente. Alguns dias depois, a 18 de agosto de

1860, levava Silva Ferraz a segunda lei dos círculos à sanção

do Imperador.

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A ação do gabinete de 10 de agosto de 1859 evitou à

evolução política do nosso país, senão um grande desastre,

pelo menos uma deplorável e perturbadora suspensão. A

câmara de 1855, ao verificar, em 1857, que a primeira eleição

procedida segundo a reforma eleitoral de Honório Hermeto

redundara numa quase integral renovação do seu mandato,

apossou-se da convicção, sem dúvida excessiva e apressada, de

que a corrente de opinião por ela representada era ainda e seria

por muito tempo, a legítima e insofismável expressão do

sentimento brasileiro. Nela estava ali a política de conciliação,

a reafirmar-se tão oportuna e necessária como nos dias da

pacificação das províncias ou das lutas do Rio da Prata(12). Os

deputados porém, não haviam feito entrar nos seus cálculos um

elemento de grande significação prática. Era a lentidão com a

qual, são sabor dos meios de comunicação daquela época, uma

nova corrente de idéias se estabelecia sobre uma vasta

extensão territorial como a nossa. O país não havia tido ainda

o tempo de reagir convenientemente sob as novas condições

criadas pelo encerramento definitivo das questões do Prata.

Nos fins de 1855, a nação não se tinha ainda afeito à certeza

da sua perfeita segurança. Mas, a partir daquele instante,

começa a desenhar-se uma consciência diversa. Nas escolas,

na imprensa, nos clubes políticos, nos auditórios da justiça,

surgira uma geração nova a ansiar pelo reatamento imediato da

nossa ascensão democrática. Entretanto aquele parlamento de

fim de época, incapaz de abandonar a estreita prudência de

1841, queria ainda impor ao Brasil uma política, em falta de

melhor, exclusivamente voltada para os interesses materiais. A

lei eleitoral de 1860, salvando a obra generosa de Honório

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Hermeto, veio evitar a insistência nesse estreito e insensato

ponto de vista.

A câmara eleita pelo sistema dos círculos de três

deputados, para a legislatura de 1861 a 1864, foi realmente

uma síntese luminosa e perfeita da alma brasileira daquele

instante. De todas as correntes doutrinárias ali se apresentaram

os homens mais brilhantes e expressivos. Joaquim Nabuco, ao

examinar no seu grande livro, “Um Estadista do Império”, as

conseqüências daquela eleição, exclama: “com ela recomeça a

encher a maré democrática”...” A princípio, conservadores e

liberais, segundo os caracteres doutrinários com que os

partidos passaram da Regência para o segundo reinado,

pareciam equilibrar-se no novo parlamento. O gabinete Silva

Ferraz demitira-se em fevereiro de 1861, sem esperar a

situação parlamentar preparada pela reforma. Na escolha do

governo que o substituiu, evidentemente influiu o prognóstico

de que a nova câmara, naquelas condições de equilíbrio

partidário, ainda continuaria a dispensar o seu apoio aos

programas neutros e de pura administração. Seria ainda, como

em 1857, um prolongamento da velha câmara cujo mandato

expirava, e desta forma todas as probabilidades , por uma

simples questão de lógica ou mesmo simpatia, deviam estar do

lado de um governo conservador. Foi assim que surgiu o

gabinete de 2 de março, presidido pelo Marquês de Caxias.

Os conservadores certamente acreditaram galvanizar

naquele momento a sua situação política, com o prestígio

nacional do novo presidente do conselho, e tudo indica que o

Marquês de Caxias aceitou satisfeito essa incumbência. As

palavras com que ele apresenta o gabinete ao senado, são

sobremodo elucidativas a tal respeito: “Os princípios do

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gabinete, diz ele, estão bem indicados pelos precedentes das

pessoas que dele fazem parte. Os meus colegas e seu somos

conhecidos; por isso penso que me posso dispensar de dizer

qual o sentido em que dirigimos os negócios da governança”.

Nada de reformas. Apenas a observância fiel da constituição e

uma rigorosa economia no emprego dos recursos do Estado.

Era bem a velha política de conciliação garantida contra

acidentes parlamentares, nos seus últimos arrancos, pelo

grande nome do pacificador das províncias, tornado ainda mais

ilustre com a rápida liquidação militar dos negócios do Prata.

Caxias, a par da sua grande capacidade militar, não

dispunha desse fino trato das situações, que é o primeiro sinal

de um apurado senso político. Sem essa desvantajosa

circunstância, é provável que ele não houvesse esperado no

governo a inauguração da nova legislatura. Apenas a câmara

recém-eleita se reúne para as suas primeiras sessões

preparatórias, logo se revelam claramente as novas tendências

que a dominam. A esquerda dos conservadores, inclinando-se

fortemente para a direita dos liberais, fez surgir o

conglomerado intermediário da “Liga Progressista”. O

equilíbrio esperado estava roto em favor dos liberais. Não

havia como manobrar com o novo grupo como contrapeso,

entre as duas agremiações principais. O pensamento dos

progressistas, partindo do princípio que as liberdades

individuais são a base do sistema representativo, propunha-se

imediatamente a revogar a lei do processo criminal de 1841,

restringindo as faculdades da polícia em favor da autoridade

judiciária. Era para os liberais um programa mínimo, ao passo

que para os conservadores se apresentava como uma inovação

perigosa e inaceitável. Sob o ponto de vista prático da

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formação de uma maioria no parlamento, era evidente que a

manifestação progressista se resolvia afinal num reforço do

partido liberal, pela súbita adição de uma dissidência

conservadora.

Apesar de toda a confiança depositada pelos

conservadores no prestígio pessoal do Marquês de Caxias, o

gabinete não pôde resistir ao seu primeiro contato com aquela

câmara. No dia 21 de maio de 1862, a comissão do voto de

graças submetida à aprovação do plenário a redação da

resposta à fala do trono, lida no dia 3, na abertura dos

trabalhos parlamentares. O presidente declara aberta a

discussão sobre o texto da comissão. Era o governo que

primeiro competia pronunciar-se, aceitando, pedindo a

modificação ou totalmente recusando a resposta redigida. Mas,

antes que o ministério revelasse seu pensamento, levanta-se o

deputado Francisco Octaviano e requer o encerramento

imediato da discussão. “A oposição prescinde de discutir com

os ministros...” explicou ele. E o requerimento foi aprovado. A

câmara voltava simplesmente as costas ao governo, e daí a

algumas horas, sem encontrar reparação àquele desastre,

Caxias entregada ao imperador a demissão coletiva do

ministério.

Perante a câmara saída da grande reforma eleitoral da

segunda Lei dos Círculos, a política de conciliação esvaíra -se

como uma sombra do passado. Não há a mínima dúvida de que

aquela política representara um formidável esforço de

contenção sobre as preferências doutrinárias dos partidos,

reduzindo todos eles aos limites de uma disciplina geral, que

se tornara indispensável à própria existência da pátria . Mas

não se poderia imaginar uma ilusão mais completa, um mais

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grosseiro erro de psicologia do que atribuir aquele generoso

fenômeno social à imposição de qualquer vontade isolada

sobre o sentimento coletivo. Pretender que aquela espontânea

e impressionante concentração do país sobre si mesmo se

tenha operado por uma decisão pessoal do imperador ou de

qualquer dos seus ministros, nem mesmo chega a ser um erro:

- é apenas uma puerilidade. Foi a própria nação, desde que lhe

foi dado manifestar-se de uma forma adequada na repre-

sentação coletiva das câmaras, quem soube descobrir e aplicar

a política mais natural e acertada. A circunstância da

orientação geral de 1841 só se haver modificado em virtude de

uma profunda renovação dos corpos legislativos, é a melhor e

mais segura prova de que o governo, de fato, esteve sempre no

parlamento e jamais na vontade pessoal do chefe do Estado.

NOTAS

(10) Ele mesmo o confessou na noite em Montes Caseros, dizendo ao

ministro da Inglaterra, em cuja legação se encontrava homisiado: - A este

pueblo yo lo he montado, le he apretado la cincha, le he clavado las

espuelas, há corcoveado; no es él que me há volteado... son los macacos .

(Vide Lucio V. Mansilla, Rosas, pág. 133).

(11) Esta expressão – instituições jurados – na boca dos liberais que

nutriram sempre o íntimo desejo de reformar a constituição de Pedro I,

nunca deixava de ter um sabor todo especial...

(12) O gabinete de 6 de setembro de 1853, que fez a primeira lei dos

círculos, foi substituído pelo gabinete de 4 de maio de 1857. O Marquês

de Olinda, ao apresentar este gabinete Pa nova câmara, como presidente,

teve de dizer que o seu programa era “a expressão franca e leal dessa

política, que, proclamada do alto do trono e levada à execução, tem

conseguido fazer tender os espíritos para a concórdia e moderação...”

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CAPÍTULO IV

A SITUAÇÃO GERAL NO INÍCIO

DA GUERRA DO PARAGUAI

O progresso político que realizáramos de 1840 a 1862

fora de ordem puramente funcional, Os órgãos essenciais do

Estado conservaram-se inalterados, modificando-se apenas as

relações que mutuamente os ligavam na prática política e

administrativa. Mas a constituição do império continuou a ser

a mesma. Apesar do complemento que lhe fora dado em 1834

com o Ato Adicional, posteriormente alterado nas

modificações fora do texto de 1842, aquela constituição

conservou-se, na sua origem, a mesma carta de direitos

outorgada pela vontade soberana do primeiro imperador.

Pouco importava que nas suas disposições aparentes ela

refletisse o universal movimento de idéias provocado pela

revolução francesa de 1789. De maneira alguma teria sido

possível a Pedro I esquecer, ao encomendá-la, o formidável

fenômeno social cujas seqüências arremessaram em 1807 as

baionetas do general Junot sobre a sua pátria de origem,

forçando-o a fugir com os seus pais para o Brasil: No decreto

de dissolução da constituinte, ele bem dissera que por si

mesmo promoveria uma nova constituição, “duplamente mais

liberal” que a outra destruída no nascedouro. Mas o

liberalismo que Pedro I assim nos prometia duplicado, era o do

Congresso de Viena... Admitia-se que os diferentes órgãos do

poder público fossem de origem popular, mas com a inevitável

condição de, numa esfera mais alta, todos eles se submeterem

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à autoridade maior da coroa. Sua Majestade, pe,a sabedoria

imanente da sua própria natureza real, pairava necessariamente

acima de todos os juízes. Essa era para o nosso primeiro

imperador a idéia central em torno à qual deviam girar todos

os dispositivos da constituição do império. A adaptabilidade

daquela “cata” aos costumes políticos do segundo reinado,

fora um simples resultado de interpretação. Desde porém, que

nela se mantinha o poder moderador, com regulador final das

relações do parlamento com o ministério, era evidente que não

estava afastada a hipótese de uma eventual superposição da

coroa à vontade dos corpos legislativos.

A reforma da constituição de 1824, retirando-lhe o

caráter de outorga real para transformá-la numa voluntária

declaração de direitos, voltou, portanto, a ser o objeto

principal das nossas cogitações políticas. Sob o ponto de vista

da legislação comum, era urgente revogar a lei do processo

criminal de 1841 e livrar os cidadãos do permanente atropelo

em que para eles se transformava a obrigatoriedade do serviço

na guarda nacional, regulada pelo simples arbítrio dos

presidentes de província. Mas a grande questão, aquela para a

qual conduziam todos os raciocínios e que estava virtualmente

ao fim de todas as discussões, era a da revisão constitucional.

A reabertura dos trabalhos parlamentares em 1862,

automaticamente repôs o problema político do Brasil nos

mesmos termos em que o colocara a dissolução da constituinte

de 1823, com a sua conseqüência da “carta” de 1824.

Entretanto, aquele problema tão evidente não logrou

naquele momento ser aceito com exatidão por todos os

elementos adiantados do nosso mundo político. Aqueles que

entraram a flutuar entre o partido liberal e o partido

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conservador com o nome de progressistas entenderam de

limitar-se apenas ao ponto subsidiário da legislação ordinária,

deixando de lado a questão essencial da revisão., O programa

progressista limitava-se afinal a uma nova regulamentação dos

dispositivos constitucionais atinentes à liberdade individual,

sem em nada alterar a própria constituição do império. Era

apenas uma base de aproximação para moderados.

É fácil compreender que com aquele programa a liga

progressista não passasse de uma organização intermediária e

pouco numerosa, que jamais poderia formar um governo e,

sobretudo, mantê-lo por algum tempo, sem o apoio de um dos

dois grandes corpos partidários que de um lado e de outro a

extremavam. O gabinete de 24 de maio, presidido pelo senador

Zacarias de Gois, organizou-se na suposição de que a maioria

parlamentar do dia 21, que determinara a queda do ministério

Caxias, já fosse uma maioria definitiva, indicando a fusão de

progressistas e liberais num só partido. Bastou porém, que o

novo governo revelasse as suas idéias perante a câmara, para

aquela ilusão de todo desaparecer. Os liberais mantinham-se

rigorosamente fiéis aos seus princípios. A confusão com

homens de outras idéias no momento da crise ministerial fora

um ato espontâneo de tática parlamentar, sem nenhuma

conseqüência de ordem doutrinária; No dia 28, quatro dias

apenas do seu nascimento, o gabinete literalmente se

desmanchava. Os liberais deixaram-no morrer ante uma seca e

peremptória moção conservadora, aprovada com verificação

nominal de votação.

Veio então um gabinete presidido pelo Marquês de

Olinda. Naquele momento de transição, o velho regente trazia

o seu grande prestígio pessoal como um elemento de

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ponderação e de equilíbrio. Uma rápida frase do discurso com

que se apresenta perante a câmara resume todo o seu

programa: “Esta solução pede estudo!...” Ele não vinha opor -

se às reformas. Pedia somente que se tomasse o tempo de

estudá-las. Mas, sem conseguir dominar a agitação

parlamentar, apesar de todo o seu valimento, ele teve de apelar

para novas eleições gerais. A câmara de 1862 foi dissolvida

em maio de 1863, fixando-se a reunião extraordinária de uma

outra para janeiro de 1864.

Não se pode propriamente dizer que o governo tenha

sido derrotado nas eleições que formaram a câmara de 1863. O

marquês de Olinda, pela situação moral que os seus grandes

serviços ao país lhe assinalavam no mundo político, não podia

ser naquele momento um agente de competições partidárias.

Assumindo o poder depois de duas quedas de gabinete, entre

as quais medeara apenas o tempo de uma semana, o seu

empenho foi imediatamente o de evitar que tão rápida

prosseguisse aquela dança de ministérios. De fato ele o

conseguiu durante sete meses. Vendo porém, esgotado o seu

prestígio pessoal, preferiu o apelo direto à opinião pública, a

entregar o poder a um governo previamente condenado a ruir

no seu primeiro contato com o parlamento. Era necessário uma

câmara na qual a corrente predominante se acentuasse bastante

para garantir um governo estável.

Com a reunião da nova câmara em janeiro de 1864

estava virtualmente terminada a missão do gabinete Olinda. O

governo ia resultar da proporção mantida por liberais,

progressistas e conservadores no novo parlamento. A princípio

manifestou-se o receio de que se reproduzisse a instável e

perturbadora situação anterior. As três correntes efetivamente

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pareciam guardar entre si, sob o ponto de vista numérico, as

mesmas relações observadas na câmara dissolvida. No

intervalo operara-se entretanto uma sensível evolução dos

conservadores para a esquerda. Os progressistas haviam

consolidado as suas ideais, exclusivamente voltadas à garantia

das liberdades individuais, num grande programa escrito, que

se iniciava pelo repúdio da revisão constitucional, da eleição

direta e da descentralização política. Com ressalva de

modificação da lei do processo criminal de 1841 e de outras

medidas, liberais como aquela, mas de caráter puramente

administrativo, eram, em essência, as próprias idéias

conservadoras que eles proclamavam. Os conservadores assim

o compreenderam, tanto mais que naquele momento já não

pareciam indispensáveis nem mesmo necessárias as antigas

disposições policiais do Marquês de Paranaguá. Os dois

partidos não se fundiram. Mas para ver quanto mentalmente os

aproximou aquele concordante e simultâneo apego à

constituição de 1824, basta saber que naquele instante os

conservadores adotaram a designação de “partido

constitucional”, enquanto os progressistas consentiram em ser

chamados de “liberais-conservadores...” Esse ambiente foi

propício ao aparecimento de um novo gabinete Zacarias de

Góis, Formado no dia 15 de janeiro, no dia 18 o ministério

comparecia perante a câmara. Zacarias, solenemente, o

apresentava nas seguintes palavras:

- “Sr. presidente, há quase dois anos que, encarregado

pela coroa da honrosa tarefa de organizar o gabinete de 24 de

maio, coube-me expender aqui um programa que então

mereceu, e que os acontecimentos ulteriores persuadem que

continua a merecer o assentimento do país. Chamado, pois,

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agora, em conseqüência do desenlace desses acontecimentos, a

organizar o gabinete que no dia 15 do corrente sucedeu ao de

30 de maio, venho com os meus colegas declarar à câmara,

como nos cumpre, que as normas por que se tem de reger o

novo ministério na gerência dos negócios públicos estão em

geral designadas no programa aludido... Do mesmo modo que

em 1862, hoje entra no plano do governo al terar-se a lei de 3

de dezembro de 1841, no sentido de dar mais garantias à

liberdade individual, e separar a polícia judiciária da

administrativa; rever-se a legislação sobre a guarda nacional,

no intuito particularmente de aliviar o mais possível o ônus do

serviço ordinário... Tal é, senhores, o programa do gabinete.

Entre o programa do gabinete de 24 de maio de 1862 e o de 15

do corrente há uma diferença, que eu devo assinalar. Em 1862

o ministério aludiu ao concurso de duas opiniões com que

contava para levar por diante o seu pensamento político. As

duas opiniões políticas, porém, que este salão viu naquela

quadra após debates públicos e solenes, aliaram-se, sem

quebra de princípios, nem da dignidade de ninguém, formam

hoje uma só opinião, um só partido, cujo alvo é promover

sinceramente, sem nada alterar na Constituição do Império, a

prosperidade do país...”(13)

Referindo-se a duas opiniões que naquele instante se

reuniam “num só partido”, o presidente do conselho anunciava

certamente a fusão final dos liberais na liga progressista. A

aliança eventual e passageira da sessão da câmara de 21 de

maio de 1862, ali tornava-se definitiva, para garantir ao

gabinete uma maioria duradoura e eficaz. Mas Zacarias

enganava-se. Com o seu programa de inalterabilidade da

constituição, muito mais próximo estava ele dos

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conservadores, dos “constitucionais”, a quem não solicitava,

que daqueles cuja aliança almejava até aquele ponto de iludir -

se. Entre “liberais-conservadores” e “constitucionais” não

houve nenhum ensaio de entendimento direto. A identidade de

idéias encarregou-se porém, de estabelecer entre eles uma

invisível ligação, que, para o governo, se transformava, mesmo

a contragosto, numa inevitável garantia de estabilidade. Não

era propriamente na câmara, onde eram reduzidos os

elementos nitidamente conservadores, que naquele fenômeno

se operava. Era do senado e do conselho de Estado que ele

vinha reagir sobre a conduta ainda incerta e flutuante dos

deputados. A decisão individual valia muito pouco em tudo

aquilo. Havia uma espécie de ambiente moral em evolução,

que insensivelmente ia preparando os acontecimentos. A fusão

liberal-progressista, apesar de combinada entre os chefes dos

dois grupos, na prática revelava-se impossível. Ao mesmo

tempo o governo, em manter-se, ia sentindo a influência

desdenhosa e distante, mas irrecusavelmente providencial dos

conservadores. Debalde o conselheiro Nabuco procurava da

tribuna do senado ativar aquela fusão, defendendo, com o

programa progressista, a preferência das liberdades individuais

sobre as liberdades políticas. À sua clara e incisiva dialética

ele juntava a citação de Laboulaye: “As liberdades políticas

são as garantias das liberdades individuais. Todas são

necessárias, mas o caráter do novo partido liberal, é ter enfim

compreendido que as liberdades políticas não são nada por si

mesmas; são formas vazias e enganadoras, se não há por trás

delas esses direitos individuais, que são o fundo e a substância

da liberdade”. O conceito era justo e certamente de uma

grande beleza. Mas dele mesmo os liberais brasileiros eram

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forçados a deduzir que, para querer uma coisa no tempo, isto

é, para querê-la como um fato prolongado e constante, é

indispensável querer simultaneamente as suas garantias

necessárias. Nabuco, em 1862, ao ver os partidos emergirem,

mesclados e indecisos, da política de conciliação, dissera-lhes

com absoluta propriedade: “Legitimai-vos pelas idéias; só as

idéias podem gerar o antagonismo, só o antagonismo mantém

os partidos...” Foi esse o conselho seu que foi ouvido . A

esquerda liberal, restabelecendo a sua filiação com os

revolucionários do primeiro reinado e da Regência,

imediatamente caracterizou-se no grupo dos “liberais

históricos”, em torno à clara e nítida bandeira da revisão

constitucional.

É conveniente prestar uma grande atenção a esse evoluir

de “nuances” partidárias. É a própria vida das idéias que aí

observamos. O desconhecimento desse dado psicológico

fundamental, ou a incapacidade de com ele jogar na análise

social do segundo reinado, tem conduzido os escritores atuais

a conclusões de uma clamorosa superficialidade. Sem restituir

esse elemento moral constante à sua função exata, nós

seríamos fatalmente levados a considerar apenas o aspecto

material dos acontecimentos, tudo explicando por simples

interesses pessoais ou paixões imediatas. Muitos dos cronistas

posteriores a 1889 assim têm procedido. Mas eles não têm

feito mais que estabelecer uma lamentável confusão, pela

tendenciosa projeção da moral da sua época sobre homem e

coisas de um outro tempo...

Quando hoje cotejamos a feição doutrinária do gabinete

de 15 de janeiro com os esforços por ele empregados no

sentido de uma aliança com os liberais extremados,

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imediatamente recebemos a sensação de uma profunda

incoerência. Zacarias de Góis, a pensar, em suma, com os

conservadores, pre5endia apesar disso basear no partido

adverso a sua política parlamentar. Esse contrasenso não era

entretanto tão irredutível quando nos possa à primeira vista

apresentar-se. O que separava Zacarias da intrépida e vigorosa

falange dos liberais históricos, eram simples diferenças de

processo. No terreno dos princípios, jamais ninguém foi no

Brasil mais liberal, mais segura e conscientemente liberal do

que ele. Conquanto entrasse na vida parlamentar em 1850 ao

lado dos conservadores – o que não admira, dado o ambiente

especial da política de conciliação – a sua estréia na câmara

dos deputados foi uma prova de convicções tão poderosa e

frisante, que, na sua esplêndida clareza, chegou a alterar

definitivamente a posição teórica da coroa no nosso conceito

do Estado. Nos papéis oficiais e nos discursos do parlamento,

até então fora atribuída ao imperador a designação de

“soberano”. Mas, dando a comissão do voto de graças esse

apelativo ao Chefe de Estado na resposta à fala do trono de

1850, Zacarias de Góis impugnou imediatamente a

qualificação, dizendo que, no Brasil, de acordo com a letra da

constituição, soberana era a nação e não o imperador que dela

era apenas o delegado. Desse momento em diante, nunca mais

entre nós alguém falou de “soberano”, referindo-se ao

imperante.(14) Para quem saiba dar às palavras o seu exato

valor, no direito público, esse fato não pode deixar de assumir

uma grande significação. Não seria possível negar de boa fé os

sentimentos liberais de Zacarias de Góis. O que se dava, é que

o professor de Direito Natural da antiga faculdade de Olinda,

era uma forte organização de jurista e homem de Estado, em

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quem a preocupação lógica constantemente sujeitava todas as

idéias e pensamentos a um programa uniforme, rigorosamente

objetivo. O anacronismo que consistiria em pensar na cúpula

de um monumento, antes de lhe cuidar dos alicerces, parecia -

lhe sem dúvida uma heresia, não sendo portanto de estranhar

que a sua repugnância em aderir desde logo ao programa dos

liberais históricos se apoiasse em algum sólido e respeitável

motivo de ordem. Qual seria entretanto esse motivo? Que

obstáculo para Zacarias se interpunha entre as idéias

progressistas e a plataforma dos liberais históricos? Foi essa a

revelação que ele não pôde ou não quis fazer. Neste ponto, por

ora, seja-nos lícito supor apenas que talvez ele a houvesse

feito no decorrer de 1864, ou, o mais tardar, na fala do trono

de 1865, se as graves complicações que de novo surgiram nas

fronteiras do Sul, não lhe viessem perturbar e tolher toda ação

eficaz na política interna.

A situação do Rio da Prata, depois da queda de Rosas,

não se manteve infelizmente na calma que seria de desejar

para a nossa perfeita tranqüilidade internacional. Na República

Argentina instalara-se, é certo, um governo culto e nobremente

inspirado. A ascensão do presidente Bartolomeu Mitre, como

conseqüência da sua vitória sobre Urquiza na batalha de

Pavon, havia realmente iniciado a era do grande progresso

argentino. No Uruguai, porém, as coisas se passavam de

maneira diversa. Ali, a guerra dos caudilhos se mantivera, O

poder, arrebatado de mão em mão, continuava a ser o prêmio

de sangrentos torneios de cavalaria. O governo imperial,

constantemente incomodado nas suas fronteiras, via ainda,

com um sobressalto bem compreensível, que os uruguaios não

sabiam pensar nos seus negócios internos, sem colocá-los em

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função dos seus sentimentos para com os Estados vizinhos. Ser

“colorado”, em Montevidéu, era ser amigo dos governos do

Rio de Janeiro e de Buenos Aires, desejando a manutenção da

República Oriental nos limites do tratado de 1828, como ser

“blanco” era inclinar-se para a irrequieta e rude gauchada de

Corrientes e Entre-Rios, estendendo a mão, através dela, ao

ditador Solano Lopez, do Paraguai.

Para admitir, como depois se tem pretendido, que o

governo do Brasil pudesse conservar-se indiferente àquela

tumultuosa e confusa situação, é necessário certamente

considerar a nossa política exterior daquele tempo pelo prisma

da mais cândida e delirante ideologia. Da viabilidade da nação

uruguaia dependia a paz na América do Sul, e para nos prender

à sorte daquele país vinham-se juntar aos interesses mais

imediatos da nossa defesa externa, as obrigações que

solenemente assumíramos em três sucessivos tratados

internacionais. O governo imperial não só era forçado a uma

incansável vigilância diplomática na bacia do Prata, como não

podia afastar de si a hipótese de uma nova intervenção militar,

segundo os fatos ali se apresentassem. Naquele ano de 1864,

estando os “blancos” no poder com o presidente Aguirre, a

luta deles com os “colorados” chefiados pelo general Venâncio

Flores, assumira um caráter de extrema gravidade

internacional. Os uruguaios encontravam-se positivamente

naquela especial situação dos povos que, segundo Maquiavel e

Montesquieu, estando a ferver internamente, não estão longe

de escaldar os seus vizinhos. A guerra civil ameaçava

estender-se às fronteiras do Brasil e da Argentina, atraindo

para sua área de ignição a considerável massa militar do

exército paraguaio. Do nosso lado, aquela ameaça já se

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concretizara mesmo em várias incursões feitas pela gente de

Aguirre no município de Jaguarão, com sérios prejuízos, não

só para a propriedade privada, como para a segurança pessoal

dos habitantes. O governo imperial viu-se no dever de intervir,

tanto por aquelas razões de ordem moral, como principalmente

para obter a devida reparação daqueles agravos. O gabinete

Zacarias de Góis, começando por fazer cobrir a fronteira de

Jaguarão por uma força ao mando do general Barão de São

Gabriel, mandou em missão especial a Montevidéu o

conselheiro José Antônio Saraiva. A missão não era fácil.

Tratava-se de obter satisfações no presente e garantias para o

futuro, de um governo que, primeiro, não tinha para conosco a

mínima boa vontade, e, segundo, não sabia até quando

valeriam as suas decisões, dado que a revolução já ocupava a

maior parte do território da República. O nosso enviado

especial ia ser arrastado a discutir a própria situação política

interna do presidente Aguirre. O governo argentino mandou

então o seu secretário do exterior, Rufino de Elizalde, juntar -

se ao conselheiro Saraiva em Montevidéu, acompanhado pelos

bons ofícios do ministro Thornton, representante da Inglaterra

em Buenos Aires. Dessa tríplice intervenção, resultou, com

certa facilidade, um protocolo no qual Aguirre e Florez se

acordavam em pôr termo à guerra civil, reorganizando-se o

governo uruguaio para nele entrarem simultaneamente

“blancos” e “colorados”. Mas, por trás do presidente Aguirre,

elevava-se, lá de Assunção, a figura torva e misteriosa do

ditador Solano Lopez. Os “blancos”, avisados de que o

exército paraguaio se aprestava a marchar em seu favor,

brutalmente repudiaram o protocolo já firmado. Só restou ao

conselheiro Saraiva retirar-se a Buenos Aires, precipitando

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todas as nossas reclamações num severo e vigoroso

“ultimatum”.

Estes fatos são de conhecimento corrente, para qualquer

pessoa medianamente versada em História sul-americana. Em

torno deles, porém, tem-se levantado depois de 1889 uma tão

intrincada e tendenciosa rede de interpretações, que não nos

seria possível examinar a influência que tiveram na nossa vida

daquele tempo, sem deles tentar previamente uma

recapitulação simples e clara.

O desfecho que teve a missão Saraiva não podia deixar

de traduzir-se, para o gabinete de 15 de janeiro, num insucesso

evidente. As condições da política interna agravaram-se de tal

maneira, que, no dia 31 de agosto, o ministério era substituído

por um outro sob a presidência do conselheiro Furtado. O novo

gabinete apresentava-se ao parlamento com uma plataforma

rigorosamente progressista. Era a mesma limitação das

reformas desejadas ao estrito campo da legislação ordinária,

com menção especial da lei de 1841 e dos pesados

regulamentos da guarda nacional. Mas, se a segurança

doutrinária de Zacarias de Góis o permitia manter-se

independente do partido conservador, apesar de, na política

prática, dele aproximar-se pela moderação do seu programa

imediato, o mesmo não se deu com o novo presidente do

conselho. Furtado, aceitando o “minimum” das idéias

progressistas, sem a íntima polícia de uma firme reserva

mental para o futuro, facilmente confundiu-se com os

constitucionais, criando uma situação falsa que a ninguém

podia convir. Não digamos que ele estivesse na obrigação de

sistematicamente afastar do seu governo o concurso dos

conservadores, sobretudo nas funções públicas especializadas.

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É porém, curial que esse concurso jamais poderia operar

eficazmente, se não fosse em condições de ressalvar todas as

susceptibilidades, evitando qualquer mal-entendido.

O desenvolvimento da missão do Prata, confiada pelo

governo anterior ao conselheiro Saraiva, era o que primeiro

solicitava os cuidados do gabinete. Saraiva, com a demissão de

Zacarias, considerava-se desautorizado. Era indispensável

substitui-lo. O governo dirigiu imediatamente as suas vistas

para um conservador, o conselheiro Silva Paranhos, depois o

grande Visconde do Rio Branco. A escolha era excelente. Não

resta porém, a menor dúvida de que o conselheiro Furtado não

soube estabelecer entre si e o novo enviado extraordinário, o

ambiente de mútua e inalterável confiança que a ambos

conviria numa empresa tão difícil e delicada. Paranhos, ao

chegar ao Rio da Prata, encontrou-se diante de uma situação

de fato que em muitos pontos aberrava de todas as regras do

direito das gentes. Em frente a Montevidéu estacionava uma

esquadra brasileira ao mando do almirante Marquês de

Tamandaré. Apenas o governo de Aguirre recusou-se a aceitar

os termos do “ultimatum” apresentado pelo conselheiro

Saraiva, a nossa esquadra entrou logo a mover-se de concerto

com as forças do general Florez, ao mesmo tempo que o Barão

de São Gabriel levantava o seu acampamento de Jaguarão,

invadindo também por sua vez o território da república. Toda

esta atividade militar plenamente justificava-se, dado o ponto

a que haviam chegado as nossas relações com o governo de

Montevidéu, agravadas ainda naquele instante pela intervenção

formal do ditador paraguaio, a nos ameaçar, intratável e

sobranceiro, de um imediato rompimento de hostilidades. Não

havia realmente tempo a perder. Era urgente liquidar o nosso

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diferendo com o Uruguai, antes que pudesse estabelecer-se a

conjugação militar de Aguirre com Solano Lopez. Mas as

indispensáveis formalidades jurídicas não haviam sido

observadas. Tamandaré chegara a decretar o bloqueio do porto

de Montevidéu, por um simples aviso às delegações

estrangeiras ali acreditadas, sem mesmo esperar que a guerra

estivesse oficialmente declarada. A vigorosa atividade dos

nossos chefes militares, determinando a queda de Paissandu e

a junção do exército partido de Jaguarão com as tropas do

general Flores, era, sob o ponto de vista estratégico,

providencial e necessária. Os “blancos”, sitiados em

Montevidéu, viram-se privados das suas comunicações

habituais, e portanto isolados do Paraguai. Mas a situação

geral tornara-se absurda e tanto mais incômoda quanto o

governo de Buenos Aires se dissolidarizara do governo

imperial, declarando a sua completa neutralidade naquela fase

nova do conflito. Os primeiros esforços de Paranhos

consistiriam em repor as coisas nos seus devidos lugares.

Depois, afastando os brasileiros dos postos avançados, para,

diretamente, deixar apenas uruguaios em face de uruguaios,

ele agiu com tamanha habilidade que, de parte interessada,

tornou-se árbitro na contenda. Montevidéu capitulou sem ser

investida, e os “blancos” entregaram o governo ao general

Florez que, nosso aliado, previamente reconhecera toda a

justiça das reclamações brasileiras. Considere-se que tudo isto

se passava quando Solano Lopez já invadira a nossa província

de Mato Grosso e tomava as últimas disposições para ameaçar-

nos na fronteira do Rio Grande do Sul, e compreende-se todo o

grande serviço prestado pelo conselheiro Silva Paranhos ao

seu país.

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É claro entretanto que o novo enviado extraordinário

não podia alterara tão completamente a política uruguaia dos

nossos chefes militares, sem mais ou menos entrar com eles

em conflito. A substituição do fuzil e do canhão pelas notas

diplomáticas, pareceu ao Almirante Tamandaré uma estranha

maneira de compreender a dignidade do império, perante um

inimigo que havia violado criminosamente a nossa fronteira e

zombado de nós, repudiando um acordo no qual fôramos parte.

Silva Paranhos viu-se nas maiores dificuldades para evitar que

Montevidéu fosse bombardeada, num dia em que a bordo do

navio capitânea chegou a notícia de que a nossa bandeira fora

naquela cidade arrastada pela lama das ruas, num tropel

vociferador contra o Brasil. Os “blancos”, cansados pelo

bloqueio e já assustados com as conseqüências internacionais

da guerra civil, começavam a fraquear. Tamandaré não se

apercebia de que os amigos pessoais de Aguirre, praticando

aquele desatino, que aliás nunca foi bem apurado, procuravam

tão-somente prejudicar a ação do nosso representante

diplomático, levando-nos à prática de um ato violento e

irrefletido, que brutalmente ofendesse, sem distinção de

partidos, a todos os uruguaios, simultaneamente levantando

contra nós a indignação dos povos neutros. “Só um soldado

pode bem compreender o que seja uma ofensa à bandeira...”,

teria dito o velho e bravo marinheiro. Essa frase, trazida ao

Rio de Janeiro, exaltou profundamente o ânimo popular contra

os responsáveis diretos pela nossa política no Prata.

Sabe-se quanto, em todo o mundo, as massas populares

são sensíveis a frases como aquela, mesmo que não sejam

autênticas... Levando-se porém, em conta a circunstância de

ser o Almirante Tamandaré filiado ao partido liberal, logo se

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vê quanto as preferências partidárias podiam naquele caso ter

reagido sobre os sentimentos do povo. O governo não soube,

como era seu dever indeclinável, cobrir a responsabilidade do

seu representante do Rio da Prata. Ante a irritação das ruas, os

membros do gabinete tardiamente se lembraram de que, no

fundo, eram liberais e não conservadores. O conselheiro Silva

Paranhos, depois de ter seus esforços coroados pela

capitulação incruenta de Montevidéu e a integral reparação de

todos os agravos recebidos, viu-se, sem explicações, destituído

do seu cargo e tão ostensivamente repudiado pelo governo, que

na sua volta à capital do império, a população julgou-se no

dever de apedrejá-lo!...

A mesma inconseqüente facilidade com a qual o

gabinete de 31 de agosto escolheu a Silva Paranhos para

substituto de Saraiva na missão do Prata, levou-o a ver no

general Marquês de Caxias o seu homem, assim que lhe

chegaram informações oficiais dos primeiros atos de guerra

praticados contra nós pelo governo do Paraguai. O Marquês de

Caxias, tanto pelas suas ligações com a velha política do

Marquês de Paranaguá, como por haver sofrido, na presidência

do gabinete conservador de 2 de maio de 1861, o sensacional

repúdio da câmara de 1862, tornara-se, por um natural

movimento de desagravo, o alvo de atenções especiais por

parte dos seus correligionários. As relações de estranhos com

o antigo pacificador das províncias, tornara-se politicamente

um ponto muito sensível, na epiderme dos constitucionais.

Essas delicadas circunstancias não impediram entretanto o

gabinete do conselheiro Furtado de mandar procurá-lo sem

mais cautelas. Na sua ausência de cor política exata e definida,

o governo não podia compreender toda a significação dos seus

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gestos, nem prever as reações de ordem partidária que

provocariam.

Os liberais históricos e os conservadores, perfeitamente

seguros dos respectivos pontos de vista, não estavam, porém,

na mesma situação mental do gabinete progressista. Caxias,

muito bem disposto no primeiro instante a aceitar o comando

do exército em operações, logo depois faz saber ao governo

que a confiança militar oferecida, só podia ser aceita,

desdobrada em confiança política. Era sobre a guarda nacional

que se deviam organizar as forças para a campanha, e a guarda

nacional dependia dos presidentes de província. Logo, a

presidência da província do Rio Grande do Sul, teatro

principal das operações, era indispensável ao comandante-

chefe... O marechal Henrique de Beaurepaire Rohan, ministro

da guerra, que fora o emissário do gabinete junto ao marquês

achou natural e aceitou como justo aquele ponto de vista. Mas,

quando a exigência, que afinal se reduzia a substituir um

presidente da confiança dos liberais por um político

adversário, chegou ao conhecimento dos líderes do

parlamento, a repulsa foi tão imediata e peremptória que o

ministro da guerra, desautorizado, entregou o seu pedido de

demissão.

Depois de preencher com o general Visconde de

Camamu a vaga deixada pelo marechal Rohan no gabinete, o

conselheiro Furtado ainda abalou-se a uma última tentativa

junto ao Marquês de Caxias. A resposta onde o aguardava era

porém, a menos conciliatória. Caxias, além do mais, recusava-

se a servir sob as ordens do Visconde de Camamu,

notoriamente seu inimigo do conselho fez então ver que se

tratava de uma ordem do governo a um oficial general do

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exército. A ordem não podia ser recusada sem evidente

indisciplina. O marquês obtemperou-lhe imperturbável, que

estava às ordens do governo, como soldado, mas, sendo

também senador do império, o governo não podia dele dispor

livremente, sem permissão da alta câmara à qual estava

incorporado...(15)

O conselheiro Furtado talvez tenha aceito essa doutrina

da neutralização da obediência militar pelas imunidades

parlamentares. Mas o gabinete estava desacreditado. Em maio

de 1865, apenas reaberto o parlamento, ele viu-se forçado à

demissão coletiva.

Para o partido progressista, os ensaios de colaboração

direta com o partido conservador, tentados pelo gabinete

Furtado, foram apenas um desastre. A insuficiência do

programa progressista, como base de uma situação

governamental perdurável e mesmo digna, tornou-se evidente,

ficando os moderados, de um e outro lado, na rigorosa

necessidade de se definirem. A grande maioria liberal da

câmara dos deputados, trazida na legislatura 1864-66, mais

que até ali se mantivera nos limites de uma tolerância quase

inexplicável, afirmou-se então poderosamente. Em face da

influência retardatária e cautelosa da velha maioria

conservadora do senado e do conselho de Estado, os homens

novos, que as eleições pelo sistema dos círculos de 1860

mandara à vida pública, haviam afinal tomado conhecimento

do seu valor exato. O programa dos liberais históricos tivera

afinal o seu momento.

Entretanto, a situação internacional, com o ataque dos

paraguaios a Mato Grosso e o seu avanço sobre a margem

esquerda do rio Paraná, tornara-se bastante grave para não

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deixar tempo a outros cuidados. Não era possível, naquelas

condições, pensar num gabinete tendo a reforma constitucional

com seu programa imediato. Mas os liberais estavam

firmemente decididos a não se deixaram desorientar pelas

dificuldades externas. O mais que eles podiam admitir, era a

preferência das medidas militares, na ordem administrativa,

sem contudo prejudicar ou interromper a nova ordem política

geral. A ameaça exterior, despertando o entusiasmo patriótico,

vinha apenas multiplicar a exaltação liberal na política interna.

Foi nesse ambiente especial que surgiu um novo

ministério presidido pelo marquês de Olinda. A volta do velho

estadista do primeiro reinado e da Regência mostrava bem que

se tratava de um governo de circunstância, formado sob a

premente preocupação da defesa externa. Mas o antigo

regente, caráter sisudo e imperturbável, fortemente dosado de

senso prático, não foi procurar apoio nem inspirações nos

conservadores, tentando acordos impossíveis naquele

momento. Perante a sólida maioria liberal da câmara

temporária, ele resolve com ela colaborar sem reservas nem

compromissos, escolhendo francamente no seio dela ou nos

elementos que lhe eram mais caros, os componentes do seu

governo. Foi o brilhante gabinete liberal de 12 de maio de

1865, o ministério das águias, como a admiração popular o

apelidou, no qual apareceu o grande ministro Silva Ferraz, da

Lei dos círculos de 1860, acompanhado de Nabuco de Araújo,

de José Antônio Saraiva e de Silveira Lobo.

naquele meio tempo, a nossa situação internacional

tinha-se modificado sensivelmente. O gabinete Furtado, depois

de haver substituído no Rio da Prata o liberal Saraiva pelo

conservador Silva Paranhos, para demitir este pela forma já

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descrita, havia voltado aos liberais, enviando para ali o

deputado Francisco Otaviano. A República Argentina

continuara na sua neutralidade, prolongando-a do nosso

conflito militar com o governo de Aguirre à guerra com o

Paraguai. Apesar da sua grande sagacidade política, o

presidente Mitre parecia acreditar seriamente que Solano

Lopez, partindo em armas de Assunção, apenas pretendia

demonstrar o seu devotamento à soberania das repúblicas sul -

americanas, contra o nosso imperialismo. Lopez, entretanto,

bem pouco tinha a faze com a independência do Uruguai. O

que ele sonhava e a cujo fim de antemão consagrara todo o

sangue dos seus patrícios, era com a extensão dos seus

domínios até o mar, pela margem esquerda do Paraná até o

estuário do Prata, em detrimento imediato dos seus dois

vizinhos castelhanos. A luta com o Brasil, apesar de prometer

grandes compensações territoriais em mato Grosso, era afinal

um esforço de resultados indiretos, pois ele bem sabia que,

sem previamente nos vencer, jamais dilataria as fronteiras do

seu país. O seu grande objetivo eram as costas uruguaias do

oceano, através das províncias argentinas de Corrienes e

Entre-Rios. A traiçoeira brutalidade com a qual o ditador

paraguaio mandou aprisionar duas canhoneiras argentinas no

rio Paraná, no dia 13 de abril, fazendo ocupar no dia seguinte

a cidade de Corrientes, veio abrir os olhos ao presidente. Em

meio à grande exaltação nacional provocada em Buenos Aires

por aqueles atos de pirataria, Francisco Otaviano não

encontrou mais dificuldades em prender a Confederação

Argentina à sorte do Brasil na guerra contra Solano Lopez. As

duas nações, como o Uruguai sob o novo governo Venancio

Florez, firmaram então o tratado da “Tríplice-Aliança”. As

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nossas condições estratégicas para com o Paraguai estavam

assim completamente alteradas. O nosso primeiro plano de

campanha, esboçado pelo Marquês de Caxias ao marechal

Rohan, quando do convite para o comando em chefe, previa a

formação de três exércitos, dos quais, um, marcharia de São

Paulo em socorro da província de Mato Grosso, outro, partindo

do Rio Grande do Sul e ganhando o vale do Iguassu, passaria

para o território paraguaio mais ou menos na confluência

daquele rio com o Paraná,(16) enquanto o último, finalmente,

se conservaria de observação, mesmo na província do Rio

Grande do Sul. É claro que esse plano primitivo, levando em

conta a neutralidade argentina, ao mesmo tempo que respondia

ao ataque paraguaio, procurava, com aquele exército de

observação, por-nos ao abrigo de qualquer surpresa nas

fronteiras do rio Uruguai. Nós não tínhamos certamente a

duvidar da neutralidade de Buenos Aires. Mas, na luta de um

terceiro com os guaranis de Assunção, não havia fiar nos

gaúchos de Corrientes e Entre-Rios. Era uma situação deveras

confusa e duvidosa, que a imperícia de Lopez, não sabendo

respeitar, pelo menos “si et in quantum”, aquela neutralidade,

veio esclarecer rapidamente, oferecendo-nos toda segurança na

grande via de comunicações do Prata e deixando-nos a

liberdade dos nossos movimentos nas duas províncias

argentinas.

Nestas ovas condições, o gabinete de 12 de maio tomou

em mãos os negócios do império, com a especial determinação

de promover rapidamente a guerra, para chegar o mais

depressa possível ao seu termo. Naquele instante da nossa vida

política e partidária, a agressão paraguaia transformava-se

para os liberais numa diversão extremamente incômoda, em

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cujo encerramento imediato eles punham o máximo interesse.

Vinte e nove dias após a instalação do novo ministério, o

almirante Barroso destrói completamente a esquadra paraguaia

em Riachuelo. Os aliados estavam com o domínio absoluto das

comunicações fluviais até as ribanceiras do país inimigo. Em

terra, os paraguaios começam também a conhecer os seus

primeiros revezes. Já em Mato Grosso, a subida do rio

Paraguai até a foz do São Lourenço tinha-lhes custado

inúmeras vidas. A invasão, dirigida por Barrios e Resquin, ali

confessara-se impotente, a solicitar reforços de Assunção. Na

margem esquerda do Prata, em jataí, Pedro Duarte e aniquilado

pelas forças argentino-uruguaias de Paunero e Venancio

Florez, sem conseguir juntar-se a Estigarribia, que, flanqueado

de perto pelos brasileiros, vem deixar-se sitiar em Uruguaiana.

O gabinete liberal, no Rio de Janeiro, parecia realizar o

milagre da multiplicação dos recursos militares. Adquiriam-se

vasos de guerra no exterior e fundavam-se estaleiros para a

construção de outros aqui mesmo. Fabricávamos armas,

munições e equipamento de toda sorte, como se houvéssemos

descoberto dentro de nossas fronteiras uma capacidade

industrial até então insuspeitada, fornecendo ainda aos nossos

aliados os meios pecuniários de também de armarem. Pela

costa, desde a embocadura do Amazonas, os mais rápidos

navios a vapor se sucediam carregados de tropas, em direção

ao Prata. A guerra não podia durar muito...

Tudo aquilo porém, os liberais o faziam sem de maneira

alguma recorrer à experiência dos líderes conservadores.

Quando, no mês de julho, com o cerco da coluna Estigarribia

em Uruguaiana, o imperador resolveu transportar-se ao teatro

das operações, o Marquês de Caxias também seguiu no

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numeroso estado-maior de Sua Majestade. O ministro Silva

Ferraz que, tendo no gabinete guardado a Pasta da Guerra, era

quem, junto a Pedro II, tudo dispunha e ordenava, jamais

consentiu em solicitar do velho general o mínimo alvitre sobre

as cosias da campanha. Caxias conhecia a região das operações

em todos os seus detalhes. A cidade sitiada fora fundada por

ele.

Afinal, a 18 de setembro, Estigarribia entrega-se com

armas e bagagens, e logo depois começa o avanço dos aliados

sobre o rio Paraná, em cuja margem direta se detivera, lento e

indeciso, o grosso da invasão paraguaia.

O que mais admira nos primeiros episódios da guerra de

1864, é a absoluta incapacidade de manobra do grande exército

de Lopez. Aquela imponente máquina militar, montada

longamente, desde Carlos Antonio Lopez, ao calor de tão

vastas ambições, apenas se mostrava pelas fronteiras inimigas,

para logo desaparecer fugidia e cautelosa por trás dos juncos

da Lagoa Pires. As mas profundas incursões tentadas pelo

estado-maior paraguaio não passaram de operações

subsidiárias, à procura de resultados mais políticos que

propriamente militares. A marcha de Estigarribia e Pedro

Darte não visava diretamente o Brasil nem procurava um

encontro sério com as forças aliadas. Tentava apenas uma

espécie de demonstração sobre Montevidéu, onde Lopez

supunha que a aproximação dos seus soldados, exaltando o

sentimento partidário dos “blancos”, determinasse a queda

imediata dos “colorados”. A invasão de Corrientes obedeceu a

propósitos mais ou menos idênticos. A expedição do general

Robles destinava-se somente a cobrir a formação de um

exército corrientino, que operasse contra o governo de Buenos

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Aires, sob o comando de Virasoro. Tudo leva a crer que

também sobre a província de Entre-Rios existissem projetos do

mesmogênero. O general Urquiza dispunha ali de forças então

consideradas as melhores da Confederação Argentina. Ele

solicitara mesmo a honra de com elas formar a vanguarda dos

aliados. Mas os fatos subseqüentes vieram demonstrar que

alguma grave surpresa esperava certamente a Tríplice-Aliança,

se de fato, entre os seus exércitos e os paraguaios, se houvesse

metido o permeio de tal vanguarda. Prejudicada a fase inicial

dos planos de Lopez sobre a margem esquerda do Prata, pela

fulminante ação naval de Riachuelo, combinada com a

vigorosa atividade desenvolvida pela guarda nacional portenha

às ordens do general Paunero, as belas tropas entre-rianas

desertaram quase por encanto, sumindo-se pelos matagais da

província, como um bando de gazelas assustadas. Urquiza teria

pensado apenas na sua revanche de Pavon... Eram desta

espécie as combinações estratégicas do potentado de

Assunção. Por todo o Rio da Prata ele esperava ter quem por

ele se batesse, de maneira a restar ao seu caro e poderoso

exército, como simples ação de retaguarda, uma irresistível e

final tomada de posse.

Diante de tais e tão cômodas esperanças do ditador,

compreende-se a princípio e de certa forma a exígua intrepidez

dos seus movimentos, nos primeiros dias da guerra. Quando,

porém, as etapas preliminares do seu programa entram todaa a

fracassar umas após outras, já não se pode mais entendê-lo.

Lopez, em agosto de 1865, já dispunha de 60 mil homens em

armas, dos quais 30 mil, trazendo sessenta bocas de fogo,

seguiram o general Robles a Corrientes, enquanto 10 mil

outros acampavam na Tranquera de Loreto, em frente à

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Candelaria,. Com tais elementos, não só imediatamente

disponíveis mas, na sua maior parte, já trazidos aos pontos de

partida para um avanço decisivo, como explicar que não se

tenha ele movido ao sacrifício de Pedro Duarte, em Jataí, nem

tentado socorrer a Estigarribia, cercado durante quarenta e

quatro dias dentro de Uruguaiana. Não é provável que só tarde

demais houvessem aqueles revezes chegado ao seu

conhecimento. Na milongada guarani, que, de parceria com

mercantis e aventureiros de toda espécie logo se acercou dos

acampamentos aliados, ele tinha um dedicado e incontável

corpo de observadores, que, em falta de melhor, não se teria

certamente privado de informá-lo. Como compreender tanta

passividade, quando o inimigo, reunindo tropas improvisadas e

quase sem preparo, energicamente tomada a iniciativa?

É que o déspota de Assunção nunca foi, como ele

mesmo se supôs e ainda pretendem os seus panegiristas atuais,

um grande chefe militar, ao serviço de nenhum ideal político

apreciável. Ele foi apenas o joguete mais ou menos consciente

de um trágico anacronismo, que tendo chegado a ser deveras

impressionante pelo número de vidas que sacrificou, não podia

entretanto passar de um episódio acidental e passageiro na

história dos povos americanos.

O Paraguai, que o ditador Carlos Antônio Lopez, ao

falecer em 1862, deixara a seu filho Francisco Solano, era

pouco mais ou talvez menos que uma vasta “Redução Jesuíta”,

onde alguns políticos espertos, mas certamente grosseiros e

sem elevação, se haviam substituído aos padres da Companhia.

A pesada disciplina de feição monástica, na qual os dignos

religiosos haviam dominado a massa autóctone, tendo perdido

na vida nacional o seu sentido teocrático, transformara-se, em

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proveito dos ditadores de Assunção, no mais completo e

absoluto fanatismo pessoal. Com a prática mais ou menos fiel

das formas aparentes ou simplesmente visuais do ritual

católico, a colonização jesuíta só conseguira legar à República

do Paraguai o uso das armas de fogo e um certo adiantamento

na cultura do solo. No mais, aquele país se conservara uma

nação de “índios”, não só indiferente, para seu uso, a tudo

quanto viesse do mundo exterior, como mesmo reprovando

com profundo ódio todo o interesse das nações do litoral pelas

idéias morais e políticas da civilização européia. Foi ness

ancestral e instintiva oposição da alma selvícola, consolidada

na intolerância religiosa, ao espírito adventício da Europa

moderna, que os Lopez encontraram as bases morais e

psicológicas do seu poder militar. As simpatias que despertou

nos meios indígenas de Corrientes e Entre-Rios a política

internacional de Francisco Solano, confusamente fundada

naquelas origens e delas descendente, mostram bem a natureza

real da guerra de 1864, com toda a ingênua inconseqüência dos

seus aspectos político-estratégicos, misturada à sua torva

ferocidade. Os gaúchos entre si se aconselhavam a tomar

partido pelos paraguaios, por aqueles que fa lavam “a sua”

língua, “o guarani”, traindo a comunhão política argentina, à

qual se achavam legalmente incorporados, mas cujo sentido

não podiam ainda compreender.

É fácil de ver tudo quanto havia de paradoxal e absurdo

num programa de transformações internacionais, que, partindo

daqueles fundamentos, pretendia regular dali por diante a

existência dos povos mais cultos do continente. Lopez,

supondo-se o árbitro das relações do Brasil com as repúblicas

do Prata, era apenas o agente fatal de uma instintiva e confusa

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revolta de índios. A sua grande significação internacional

reduzia-se, em última análise, a uma miragem do horizonte de

pântanos e florestas da sua terra, que não poderia jamais

projetar-se muito para além da entrada soturna e verde das

Três Bocas.

Ora, não teria sido possível escapar aos estadistas do

Rio de Janeiro e de Buenos Aires o verdadeiro caráter das

pretensões paraguaias, nem a absoluta inviabilidade de um tão

vasto plano político e militar, concebido no ambiente mental

daquele país. A vitória final, apesar do sangrento e pesado

esforço que exigiria, logo se lhes apresentou como rápida e

indubitável. De fato, em outubro de 1865, já os planos de

Lopez estavam inteiramente fracassados. Sem o grande

incêndio revolucionário que devia cobrir a sua marcha triunfal

sobre o oceano, ele nada mais viu de interessante na margem

esquerda do Paraná. O seu exército repassou o rio, deixando-se

abordar apenas em rápidos combates de retaguarda, como

assustado simplesmente de se haver tão longe aventurado...

O governo liberal do Rio de Janeiro tinha todos os

motivos para sentir-se satisfeito com o trabalho realizado até

ali. Desarmados no início da guerra, nós chegávamos às

barrancas do Paraná com um exército de 31 batalhões de

infantaria, 11 regimentos de cavalaria e 42 bocas de fogo,

enquanto um outro em formação se estendia de Uruguaiana a

São Borja. Esses exércitos eram comandados pelos generais

Osório e Porto Alegre, ambos liberais pela sua filiação

partidária, como liberal era também o Marquês de Tamandaré,

comandante em chefe da nossa esquadra de operações. O

gabinete de 12 de maio, no seu esplêndido esforço de

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organização militar, pudera dispensar completamente o

concurso político dos conservadores.

Guardadas as proporções dos respectivos recursos

econômicos e demográficos, não foram menos brilhantes os

resultados da mobilização argentina. O general Mitre, a quem

o tratado de aliança, pela sua especial situação de chefe de

Estado, reservara, em primeiro lugar, o comando geral dos

aliados,(17) trouxera ao nosso lado as duas colunas dos

generais Paunero e Gely y Obes, mandando ainda para a frente

a cavalaria de Hornos e Caceres, que formaram a vanguarda do

exército, com o contingente uruguaio do general Venâncio

Flores.

Não é difícil imaginar as grandes esperanças que a

situação militar fazia nascer nos meios liberais do Brasil. A

terminação imediata da guerra ia ser a obra do partido. Eram

os liberais que haviam armado o país e promovido a tríplice

aliança, preparando e dispondo aquelas excelentes condições

estratégicas. Se o Marquês de Olinda, no discurso de

apresentação do gabinete fizera passar a defesa militar

imediata à frente das reformas políticas, aqueles que tinham

essas reformas como seu programa, iam poder, dentro em

breve, promover-lhes a realização final, cercados do imenso

prestígio da vitória. A guerra do Paraguai, ao invés de

retardar, viria assim dar segurança e maior velocidade à nossa

ascensão democrática.

Infelizmente, a partir do momento em que o território

argentino ficou livre dos invasores paraguaios, começaram a

surgir para os aliados as primeiras dificuldades. da sua

chegada às barracas do Paraná, seis meses levaram as nossas

tropas para se decidirem a transpor o rio e penetrar no

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território inimigo. É verdade que a passagem da margem

esquerda para a margem direito do grande rio fronteiro, fora

uma esplêndida manobra, que deve ter compensado

brilhantemente o prejuízo moral daquela demora. Em quarenta

e oito horas o ditador viu-se privado de todas as posições

diante de Corrientes, e seis dias depois era forçado a

abandonar o campo entrincheirado de Tuiuti, incendiando, na

precipitação da fuga, os seus depósitos de víveres. mas os

aliados, uma vez instalados na margem direita, novamente

quedaram-se inativos, deixando aos paraguaios a liberdade de

organizarem o seu contra-ataque de grande estilo no dia 24 de

maio, no qual, envolvendo as nossas linhas pelo flanco

esquerdo, pretenderam precipitá-las, à direita, nos pantanais

do Estero Bellaço.

Uma tão grande lentidão da nossa parte, em face do

interesse político que o gabinete do Rio de Janeiro ligava a

uma terminação rápida da guerra, tinha necessariamente de

produzir uma certa desinteligência entre os generais brasileiros

e o presidente Mitre. Eram os nossos de opinião que se devia,

sem demora, prosseguir na marcha para a frente. Até ali, não

haviam os paraguaios conseguido resistir-nos eficazmente,

uma só vez, em campo aberto. Era portanto de toda

conveniência arremessá-los batidos sobre Humaitá, antes que

eles tivessem o tempo de neutralizar a sua evidente

inferioridade tática por meio de grandes trabalhos de

fortificação. Efetivamente, o formidável sistema de trincheiras

que os aliados encontraram depois em sua frente, levantado em

grande parte após a nossa chegada a Tuiuti, parece, até certo

ponto, ter dado razão àquele raciocínio. entretanto, para

sermos justos, deveremos sempre convir em que o general

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Mitre era forçado a ver as coisas por um prisma um pouco

diverso do adotado pelos nossos oficiais. Ele sem dúvida

estava certo de que, taticamente, o avanço imediato jamais

poderia resultar num desastre irreparável. Na hipótese de um

insucesso, bastaria uma retirada em boa ordem sobre o rio,

para deter a possível reação paraguaia no limite de ação das

baterias da esquadra. Mas ele precisava pensar antes de tudo

na repercussão que uma retirada em face do inimigo pudesse

produzir no interior da República Argentina. O presidente,

como já vimos, não podia confiar em grande parte da

população que lhe ficara à retaguarda. Logo da passagem do

Paraná, o seu primeiro cuidado consistira em transportar para

o Itapiru todos os víveres e munições acumulados naquele

instante em Corrientes, colocando-os sob a guarda imediata do

exército. Sem aquela medida, que ao primeiro exame poderia

parecer um detalhe protelatório, os aliados, numa noite de

revolta na outra margem, bem podiam ter visto o horizonte

iluminar-se ao clarão dos seus depósitos incendiados. O

abandono do território argentino pelos invasores paraguaios

foi logo seguido de uma ativa propaganda pela paz em

separado. Uma vez que Corrientes e Entre-Rios estavam livres

da invasão, dizia-se que, para a Argentina, haviam

completamente cessado os motivos da guerra, não passando

todo esforço militar subseqüente de um imprudente concurso

para o final predomínio do Brasil imperial sobre os seus

vizinhos republicanos.

Perante um tal estado de espírito, era natural que o

general em chefe sentisse a necessidade de uma grande

circunspecção nos seus movimentos. Qualquer insucesso

poderia transformar-se num argumento em favor dos seus

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opositores internos, só lhe sendo portanto lícito atacar tendo

firmemente em suas mãos todos os elementos da vitória.

Nestas condições, o ataque unilateral, levado de Sula Norte,

tal como o desejavam os brasileiros, parecia-lhe uma

imprudência. Era melhor esperar que o exército do Barão de

Porto Alegre, já então na fronteira de Itapuã, estivesse em

condições de, simultaneamente com aquele ataque, invadir

também o Paraguai na direção de Leste a Oeste, para colocar o

inimigo entre duas ameaças, obrigando-o a dividir as suas

forças. Essa doutrina, entretanto, não logrou ser adotada. O

Barão de Porto Alegre foi mandado descer o rio Paraná.

Optou-se em conselho de guerra pelo avanço unilateral, não já

sobre as posições imediatamente fronteiras e Tuiuti, mas

acompanhando a margem esquerda do rio Paraguai.

Foi no desenvolvimento deste último plano que

encontramos o sangrento revés de Curupaiti. A miragem

paraguaia, restringindo-se ao seu ambiente próprio, parecia

singularmente adensar-se...

Pouco nos importa hoje a velha querela de saber quais

teriam sido os resultados do ataque de Curupaiti, se o general

Mitre o houvesse autorizado mais cedo, ou se o general

Polidoro, que ficara no acampamento de Tuiuti, o fizesse em

tempo secundado com uma demonstração eficaz sobre as

linhas de Rojas. Isso, tecnicamente, talvez ainda possa ocupar

às escolas de estado-maior, se o desenvolvimento ulterior da

campanha, com a áspera resistência paraguaia nas três

posições sucessivas de Humaitá, Lomas Valentinas e

Peribebui, não bastar à indagação. A nós, o que nos interessa

assinalar aqui, é que logo se verificaram todas as

eventualidades temidas pelo presidente Mitre. Os aliados,

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apesar de haverem perdido 3.500 homens junto às trincheiras

de Curupaiti, dali se retiraram sem nada sofrer na volta às

posições de partida. Mas a revolução rebentou na República

Argentina, envolvendo rapidamente Jujui, San Juan, Mendoza,

Córdoba e San Luís. O caudilhismo regional ressuscitara como

nos belos tempos de Juan Facundo Quiroga, aos gritos de Viva

Urquiza!, Paz com o Paraguai!, enquanto os “blancos” em

Montevidéu retomavam a sua antiga e perigosa atividade...

Para salvar a civilização no rio da Prata, guardando a

retaguarda à Tríplice-Aliança, Mitre teve de voltar do teatro da

guerra a Buenos Aires, expedindo antes em sua frente o

general Paunero com a flor e a maior parte das tropas

argentinas. Flores também viu-se forçado, pelas condições

internas do seu país, a partir de Tuiuti com a sua cavalaria,

indo, menos feliz que o seu colega portenho, encontrar a morte

em Montevidéu, numa inglória e lamentável emboscada de

rua!...

NOTAS

(13) Os normandos são nossos.

(14) O próprio Zacarias recordou esse fato na sessão do Senado de 30 de

agosto de 1870, respondendo a Paulino de Sousa.

(15) Estas informações sobre os preliminares da organização do exercido

do Paraguai, são dadas pelo próprio Caxias, num discurso feito na sessão

do senado, de 15 de julho de 1870.

(16) É interessante observar que este exército deveria tomar o mesmo

caminho empregado elo capitão Luís Carlos Prestes, quando partiu de

Santo Ângelo, em 1925, para juntar-se às forças revolucionárias do

general Isidoro Lopes, na Foz do Iguaçu. Prestes invadiu precisamente

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por ali o território paraguaio, infletindo, logo em seguida, a Leste, no seu

espantoso raid pelo interior do Brasil.

(17) O parlamento do Rio de Janeiro não se mostrara disposto a permitir

ao imperador do Brasil a passagem da fronteira. Sua Majestade, depois de

receber a rendição de Estigarribia, voltara de Uruguaiana.

CAPÍTULO V

AS REAÇÕES DA BATALHA DE CURUPAITI

NA POLÍTICA INTERNA

O revés de Curupaiti veio aumentar consideravelmente as

responsabilidades do Brasil no prosseguimento da guerra. Até então,

o concurso militar dos dois principais aliados, a Argentina e o nosso

país, completara-se na proporção de, mais ou menos, 1 para 4. Essa

era a mútua situação das duas potências, contando-se a nosso favor a

força naval, que praticamente éramos os únicos a possuir. A

República Argentina deu, porém, em Curupaiti, o máximo do seu

esforço. Dali por diante, obrigada a empregar a quase totalidade das

suas tropas no combate à rebelião interna, ela teve que reduzir os

seus efetivos no Paraguai a uma simples representação. Assim

dizendo, ao pretendemos de maneira alguma reduzir a significação

dos argentinos na Tríplice Aliança. O concurso do governo de

Buenos Aires, se diminuiu no terreno imediatamente tático, cada vez

se revelou mais precioso sob o ponto de vista estratégico e político.

Sem ele, nós teríamos perdido a liberdade das nossas comunicações

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pelo rio da Prata, e talvez não tivéssemos podido resistir eficazmente

à formidável pressão que se levantou na maioria das capitais

americanas em prol de uma paz imediata e de evidente vantagem

para o ditador do Paraguai. Foi mesmo a partir daquele momento que

melhor conhecemos e apreciamos a irrepreensível lealdade, a alta

nobreza moral desse grande homem de bem que foi o presidente

Mitre.

Era claro, entretanto, que tínhamos de aceitar o peso militar

da guerra quase por completo. Tornou-se necessário adaptar as

nossas forças à nova situação, não só engrossando-as

convenientemente, como nelas introduzindo diversas modificações,

entre as quais era a do comando a mais urgente e delicada.

Até a batalha de Curupaiti, não houve, propriamente, nas

forças brasileiras do Paraguai, um comando geral que lhes

centralizasse os serviços e as submetesse a uma orientação

uniforme.(18) A coordenação das disposições estritamente militares,

fazia-se através do comando em chefe aliado, entregue, como

sabemos, ao general Mitre. Os nossos dois corpos de exército só iam

articular-se, em última análise, na Junta de Guerra, presidida pelo

chefe argentino, gozando de uma independência ainda maior a nossa

esquadra, que dependia exclusivamente do almirante Tamandaré. Em

princípio, tudo devia ser decidido de comum acordo, sob a alta

orientação do general em chefe. Mas os inconvenientes daquele

sistema, que já se tinham revelado anteriormente, tornaram-se

absolutamente incompatíveis com a segurança do exército, a partir

do momento em que vieram recair sobre nós, moral e materialmente,

todas as responsabilidades da guerra. Foi necessário organizar um

comando em chefe brasileiro, que reunisse sob a sua autoridade,

todos os nossos elementos terrestres e navais, para eventualmente

englobar, como depois se deu, a totalidade das forças aliadas.

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Tal foi a situação em face da qual se encontrou o gabinete do

Marquês de Olinda, à medida que foram sendo conhecidas as

conseqüências da batalha de Curupaiti. Entre os seus correligionários

do exército, o governo liberal dispunha de alguns generais de grande

bravura e de valor tático indiscutível. Porto Alegre fora mesmo o

chefe das forças brasileiras que da fronteira do Rio Grande,

obedecendo à orientação geral do Marquês de Caxias, seguiram até

Monte Caseros, na campanha contra o tirano Rosas. Osório, já bem

conhecido por feitos anteriores, havia dado toda a medida da sua

brilhante e impetuosa coragem, sendo o primeiro a desembarcar com

as suas divisões no Passo da Pátria e fazendo-se logo depois a alma

heróica da resistência do grande contra-ataque paraguaio de 24 de

maio. Em nenhum deles era porém, reconhecida a larga visão

estratégica e o forte senso administrativo, indispensáveis a quem tem

de manter grandes massas militares em boa ordem, e movê-las com

segurança e eficácia num vasto teatro de operações. Para isso, nós só

tínhamos, no consenso geral, um único homem. E esse homem era o

Marquês de Caxias...

Essa circunstância revela imediatamente as terríveis

dificuldades em que se viu o gabinete de 12 de maio. O Marquês de

Olinda, pessoalmente, não era político a deixar-se embaraçar em

incompatibilidades partidárias. Ele sabia, nas ocasiões oportunas,

colocar os interesses gerais acima dos partidos. Por duas vezes

presidente do conselho no período de 1841 a 1860, ele tinha a escola

da “política de conciliação”, não lhe podendo parecer inaceitável

nem antipática a idéia de chamar Caxias à atividade do exército em

1866. Os seus colegas do gabinete não estavam porém, na mesma

situação. Silva Ferraz era o mesmo ministro da Guerra que com tão

calculada indiferença tratara o general no cerco de Uruguaiana.

Nabuco de Araújo, Saraiva e Silveira Lobo, imediatamente ligados a

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Silveira da Mota, Teófilo Otoni e Francisco Otaviano, eram no

ministério a direta representação do liberalismo histórico. Como

conciliar tudo aquilo? O gabinete sentiu-se na impossibilidade de dar

ao problema do comando em chefe a única solução tida como

recomendável. A demissão coletiva tornou-se portanto necessária.

Não foi a reorganização das forças em campanha o motivo declarado

da demissão. No Senado, pela palavra do presidente do conselho, e

na Câmara, pelo órgão do ministro da Fazenda, a retirada do gabinete

foi explicada pela profunda desinteligência surgida entre este

ministro e o da Agricultura, sobre a reforma do Banco do Brasil.

Efetivamente, a questão financeira, dado o progressivo aviltamento

do meio circulante, tornara-se naquele momento de uma grande

acuidade. Mas essa questão era conexa com a da defesa externa,

sendo evidente, apesar do que havia de real naquelas declarações,

que as finanças, pelo menos imediatamente, passavam em segundo

plano.

Não é possível recusar que o Marquês de Caxias, pela sua

dupla qualidade de grande cabo de guerra e prestigioso chefe

conservador, tornara-se no momento a chave da situação ministerial.

Não confundamos entretanto as coisas. Não se tratava, naquelas

dificuldades, de um desses casos de interferência do exército na

política, a que se dá comumente o nome de militarismo. Caxias era

considerado individualmente, na sua capacidade técnica pessoal, e

não como representante de uma certa classe. Afastado do serviço

ativo do exército pela função senatorial, a significação coletiva do

marquês na política, era a de membro do partido conservador, e

jamais a de parte integrante do exército. O exército, a classe militar,

nada tinha a ver em tudo aquilo. Era uma questão política, entre

políticos, girando em torno de um determinado indivíduo, e não em

torno da coletividade militar, ou do exército. Bem fixado este ponto,

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que é essencial, como veremos mais adiante, convenhamos em que

qualquer passo no sentido de convidar o Marquês de Caxias para o

comando em chefe, necessariamente assumira o aspecto de uma

transação com o seu partido. Para nomeá-lo, sem abrir luta com a

maioria liberal da câmara e sem violência para os seus

correligionários, seria necessário um governo de concentração

nacional. Dada porém, a irredutibilidade de ânimo dos dois partidos

opostos, as combinações naquele sentido iam fracassando logo no

esboço.

Foi nestas especiais circunstâncias que Zacarias de Góis

voltou ao poder, formando o gabinete de 3 de agosto de 1866. A sua

posição em face dos conservadores, como progressista egresso

daquele partido em 1862, não era em nada melhor nem mais

simpática que a dos liberais no gênero Teófilo Otoni ou Silveira

Lobo. Se era possível argumentar, para fins conciliatórios, com a

moderação das suas idéias, em compensação persistia sempre na

mente dos conservadores a irritante lembrança da sua deserção,

enquanto, do lado dos liberais, um novo ministério progressista só

servia para imediatamente recordar os qüiproquós partidários do

gabinete Furtado. Talvez ninguém se encontrasse, na alta política da

corte, em condições menos favoráveis para assumir o governo e

enfrentar com eficácia o árduo problema perante o qual cedera o

gabinete Olinda.

Entretanto, o novo gabinete Zacarias precisou apenas de três

meses para surpreender todas aquelas incompatibilidades partidárias,

conquistando o Marquês de Caxias e expedindo-o rapidamente ao

Paraguai.

Cabem aqui, por necessárias, algumas considerações sobre o

exato papel do poder moderador na escolha dos ministérios, tal como

ficou sendo compreendido no segundo reinado, a partir da

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espontânea recomposição do Conselho de Estado em 1841. A

constituição de 1824, no art. 142, combinado com o parágrafo 6º do

art. 101, estabelecia a nomeação e demissão dos ministros com a

única função do poder moderador que podia ser livremente exercida

pela coroa, sem audiência do Conselho de Estado. A revolução de

1831, vinda em conseqüência da nossa vigorosa e tenaz resistência

ao poder pessoal, não só deixou de eliminar do nosso direito público

aquele princípio, como lhe deu ainda maior força e maior extensão.

Efetivamente, a abolição pura e simples do Conselho de Estado,

consignada no Ato Adicional, não fez mais de que estender a todas as

demais atribuições do poder moderador o caráter pessoal e arbitrário

que ele já revelava naquele ponto.(19) Graças à cega e teimosa

reação autoritária, inaugurada logo nos primeiros dias da Regência

sob a inspiração principal do padre Feijó, o movimento liberal de 7

de abril fracassou lamentavelmente numa espécie de fusão do poder

moderador com o poder executivo, que só vinha tornar mais seguro e

incontrastável o exercício do poder pessoal, fosse que este poder

estivesse com o Chefe de Estado ou simplesmente com o primeiro-

ministro, como se deu no gabinete Antônio Carlos. Com a reunião de

um grupo de homens notáveis no paço imperial, no dia 23 de março

de 1841, para o fim de obter do imperador a demissão de Antônio

Carlos como medida de salvação pública, o Conselho de Estado

inopinada e instantaneamente se recompôs, agindo exatamente sobre

aquele ponto que, com formal exclusão, lhe era vedado na letra

constitucional, antes da reforma. A lei de 23 de novembro, que

tornou legal e definitivo aquele restabelecimento ocasional do

Conselho de Estado, não podia mais ressuscitar a restrição do art.

142. O Conselho de Estado não somente reentrou na posse de todas

as suas antigas atribuições, como especialmente adquiriu mais a de

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pronunciar-se sobre a escolha e a demissão dos ministérios, que antes

não tinha.

O caráter de evidente e providencial utilidade, com o qual

aquele complemento funcional do poder moderador ressurgiu em

1841, já é bastante para fazer ver a profunda e decisiva influência

que depois lhe coube em todo o segundo reinado. Quando um novo

chefe de gabinete, apresentando-se ao parlamento, afirmava, como

era de costume, que em tal dia e em tais circunstâncias, fora chamado

por Sua Majestade para formar o ministério ali presente, estava sem

dúvida a dizer uma verdade. Era realmente o imperador, que, fazendo

vir a São Cristóvão o político em evidência, pessoalmente o

convidava a organizar o novo governo. Mas a escolha daquele nome

para aquela missão, não fora inspiração única e pessoal de Pedro II.

Era obra do Conselho de Estado. Eram os conselheiros da coroa,

alguns, orientadores prestigiosos de grupos parlamentares, e todos

homens de grande prestígio social, que apontavam o estadista, a seu

ver, reunindo na ocasião as mais favoráveis condições para o

governo. O Conselho de Estado, como o senado ou a câmara

temporária, compunha-se indistintamente de representantes de todas

as opiniões. Entretanto, os seus membros, fossem reunidos em

conferência sob a presidência do imperador, fossem consultados cada

um de per si por Sua Majestade, nunca deixavam de dar aos seus

alvitres um profundo caráter de retidão, inspirando-se muito mais nos

interesses gerais que na conveniência imediata dos seus partidos. É

claro que, de tal forma, o fato de inclinar-se do lado de um

determinado político, para a formação de um novo ministério,

automaticamente significava para o conselho opinante um certo

compromisso de apoio no parlamento. Ele tacitamente oferecia ao

gabinete um projeto todo o seu valimento nos meios parlamentares a

que estivesse ligado, fosse que esse valimento se expressasse em

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completa solidariedade política, quando se tratasse de um

correligionário, fosse que tomasse apenas a feição de uma discreta e

tolerante expectativa. Repitamos que a existência de um gabinete

dependia sempre e constantemente da confiança da câmara

temporária. Era no ambiente extremamente sensível e vibrátil

daquela casa do parlamento que tudo afinal se decidia, perante ela

unindo rápida e fragorosamente muitas vezes as combinações mais

cautelosas e bem estudadas, como se deu com Caxias e o próprio

Zacarias, nas duas crises ministeriais de 21 e 28 de maio de 1862.

Mas seria impossível ignorar a grande influência do Conselho de

Estado, desde que as iniciativas de organização ministerial partiam

de deliberações em consulta com os seus membros. Negá-lo, seria

negar a existência do próprio poder moderador.

Zacarias de Góis talvez tenha sido quem maior surpresa

recebeu com a escolha do seu nome para o governo em 1866.

Ninguém melhor do que ele podia conhecer e medir as complexas e

dificílimas condições políticas daquele momento, nem a menor

dúvida podia existir no seu espírito sobre os sentimentos reinantes

entre liberais históricos e conservadores. Convidado pelo imperador,

ele viu logo das suas primeiras démarches junto aos grupos

parlamentares da câmara, que lhe seria impossível manter-se no

poder, mesmo por alguns dias, sem aceitar a política da esquerda

liberal praticada no gabinete Olinda. Era a mesma situação insolúvel,

diante da qual não resistira a lúcida e calma tenacidade do velho

regente, que lhe era oferecida. Ele voltou a São Cristóvão para

declinar da honra de formar o gabinete. O imperador, porém, insistiu,

impelindo-o certamente a consultar as figuras principais do Conselho

de Estado, sem atender muito ao partido a que qualquer delas

pudesse pertencer. No meio circunspecto e muito mais tolerante dos

conselheiros da coroa, era bem outra a visão das coisas. Sentindo-se

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encorajado indistintamente por homens de tão grandes

responsabilidades e de sentimentos tão diversos como Euzébio de

Queiroz, São Vicente, Abaeté, Olinda ou Nabuco de Araújo, Zacarias

pôde modificar as suas primeiras impressões.

É indispensável admitir que um compromisso tácito ou

formal se tenha estabelecido entre o novo presidente do conselho e a

alta política da corte, expressada no Conselho de Estado e nos

elementos mais ponderosos do senado, para o fim de dominar e

vencer toda e qualquer resistência à nomeação de Caxias para o

Paraguai. É isso o que parece claramente revelar-se no discurso de

apresentação do gabinete, proferido perante o senado, na sessão de 4

de agosto. O ministro Silva Ferraz, que ocupava a Pasta da Guerra no

gabinete Olinda, passara no mesmo posto para a nova organização

ministerial. Zacarias, explicando essa ligação do seu governo com o

ministério demissionário e relatando as relutâncias que teve de

vencer, da parte de Silva Ferraz, para obtê-la, conclui com esta frase:

- o senado avalia bem quais são as razões que me impeliram a dar

aquele passo... A presença do operoso autor da Lei dos círculos de

1860 no gabinete, era evidentemente uma garantia de fidelidade à

política da esquerda liberal. Mas o presidente do conselho, ao dizer

aquelas palavras não se esquecia – e certamente o recordava aos

senadores – que a câmara dos deputados, cuja maioria exaltadamente

liberal o impelira de dar aquele passo, terminava naquele ano o seu

mandato. Estava-se a 4 de agosto. No dia 16 de setembro

encerravam-se os trabalhos parlamentares. No dia 9 de outubro, o

chefe do governo tranqüilamente mandava o seu ministro da Justiça,

o visconde de Paranaguá, oferecera Caxias o comando em chefe do

nosso exército no Paraguai. Ao reunir Zacarias o gabinete para dar-

lhe ciência do que fizera, com o anúncio da aceitação da oferta e da

iminente nomeação do general, o ministro da Guerra disse apenas:

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“Faça-se a nomeação, mas eu me retiro...”(20) No dia seguinte, vinte

e quatro dias somente do encerramento das câmaras, estava firmado

o decreto de nomeação do general em chefe.

Zacarias de Góis empregara em tudo aquilo uma fulminante e

desenvolta habilidade. Os liberais da esquerda foram vítimas, sem

dúvida, de uma áspera surpresa. mas o presidente do conselho, não

somente havia dado ao exército o chefe que o livraria dos embaraços

de Curupaiti, como havia ao mesmo tempo amarrado solidamente os

conservadores à sorte do seu governo, com eles dividindo as

responsabilidades morais na conduta da guerra. O seu golpe talvez

mereça a increpação de astúcia. Mas, para julgá-lo com propriedade,

é indispensável considerar a nossa situação em face do inimigo

exterior, agravada ainda mais pelas grandes responsabilidades que

nos advinham perante os nossos próprios aliados. É necessário

avaliar bem as dificuldades que se opunham ao gabinete e o alto fim

nacional que ele visava. Naquelas sibilinas explicações fornecidas ao

senado, no dia 4 de agosto, sobre a conservação de Silva Ferraz na

pasta da Guerra, repetidas – com tendência certamente diversa – à

câmara dos deputados, no dia 6, Zacarias tocou sem dúvida, entre a

reserva e a franqueza, a linha que deve marcar o limite extremo do

sucesso e do fracasso, em transes parlamentares daquela natureza. As

discussões da apresentação do gabinete giraram na câmara em torno

à questão financeira. Mas, as simples expressões da moção com a

qual o deputado Franco de Almeida pretendeu responder ao discurso

do primeiro-ministro, mostram bem o acirrado ânimo partidário que

as dominou: - “Sendo para sentir que a organização do gabinete não

„correspondeu às exigências da situação‟, requeiro que se passe à

ordem do dia. Procedia a votação nominal, numa profunda exaltação,

foi apenas pela fugaz maioria de três votos que o ministério escapou

à queda imediata...”

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Muito menor trabalho teve Zacarias de Góis em reduzir os

escrúpulos pessoais do marquês de Caxias. Deste lado, as condições

tinham mudado. Não se tratava mais de uma organização de forças

no território nacional, para cujo êxito a autoridade civil pudesse a

qualquer título ser reclamada. O comando transporta-se ao país

inimigo. Além disso – e sobretudo – o revés de Curupaiti colocara o

marquês, intimamente, numa situação deveras delicada. A opinião

pública reclamava naquele momento o seu concurso militar, e se esse

fato era sumamente agradável ao seu amor próprio de soldado, só

desvantagens lhe poderia trazer a divulgação de que esse concurso

ele o recusara no ano anterior, por motivos de ordem puramente

partidária. Zacarias de Góis era bom psicólogo, sabendo empregar a

palavra justa, no momento exato: “Se vossa excelência manifesta o

pensamento de não poder servir com o gabinete atual, os ministros

estão prontos a retirar-se”. Era um nobre e tocante desprendimento

que literalmente fazia transbordar a emoção do velho general. Veio a

sua linda frase: “A minha espada não tem partidos!...”

Os escritores brasileiros que se têm ocupado da guerra do

Paraguai, nas suas relações com a nossa política interna, são em geral

de uma extrema severidade, tanto para com a resistência dos liberais

à nomeação de Caxias para o comando do exército, como no

concernente à força pela qual Zacarias dominou e venceu essa

mesma resistência. No primeiro caso, afirma-se ainda hoje que os

liberais colocaram as mesquinhas conveniências do seu partido

acima do interesse primordial da defesa externa. No segundo,

pretende-se que Zacarias de Góis traiu, pela ambição do poder, os

seus correligionários do partido liberal. Desde, porém, que não se

escolha previamente um dos dois pontos de vista que esses alvitres

opostos representam, para considerar os fatos de um modo mais

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imparcial e elevado, logo se verá que nenhum deles é justo nem

acertado.

Os liberais jamais se opuseram à ida do Marquês de Caxias

para o Paraguai. O que eles não aceitavam era uma volta à “política

de conciliação” naquele momento, sob o pretexto das necessidades

militares. O nosso país em 1864 já se sentia bastante coeso e forte

dentro das suas fronteiras, para resistir vitoriosamente à pressão

diplomática ou militar de qualquer dos seus vizinhos do continente,

sem alterar sensivelmente nas condições da sua vida interior. A

campanha contra Lozano Lopez jamais nos produziu as apreensões

que tivemos com a Argentina de Rosas ou de Rivadaria, e, apesar dos

consideráveis recursos de ataque longamente acumulados pelo

ditador, nunca nos passou pela mente que o futuro da nossa pátria

pudesse seriamente depender da gente de Assunção. A agressão

paraguaia, dadas as suas ligações com a política interna do Uruguai e

as simpatias que encontrou na população guarani de Corrientes e

Entre-Rios, causou muito maiores sobressaltos aos nossos aliados

que a nós outros, que a recebemos calmos e de todo confiantes na

nossa sólida estrutura nacional. O Brasil, de qualquer forma venceria

a guerra. Não se pode portanto compreender que o partido liberal

desertasse do poder ao primeiro alarme, falhando por simples

pusilanimidade à sua missão política, e traindo a solene confiança

com que o país se pronunciara pelas suas idéias, em duas grandes

eleições sucessivas. É preciso não exagerar a significação de certas

opiniões da época, no gênero das que se encontram na “Vida do

Duque de Caxias”, de Monsenhor Pinto de Campos,(21) e no “O

Governo e o povo do Brasil na guerra do Paraguai”, de Menenio

Agripa.(22) Essas opiniões, mais recentemente, têm servido de ponto

de apoio a numerosas crônicas e conferências e mesmo a trabalhos de

maior importância, como a “História da Guerra do Paraguai”, do

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general Bernardino Bormann. Mas elas, ontem como hoje, outra

coisa não representam senão a eterna vaidade do espírito autoritário.

Se culpa havia na ausência de Caxias do Paraguai, ela decerto não

seria imputável aos liberais, que logo foram oferecer ao general

aquele posto, e sim aos conservadores, que pretenderam transformar

a sua nomeação em máquina ara arrombar as portas do poder,

expulsando de surpresa os que ali se achavam pela vontade expressa

da nação.

Quanto a supor que Zacarias de Góis de entendimento com o

Conselho de Estado, tenha sido realmente falso aos seus

correligionários liberais, no gabinete de 3 de agosto, a injustiça não é

menor. O provimento do comando em chefe do exército pelo

Marquês de Caxias, era uma medida com o mesmo empenho

desejada por liberais e conservadores, cada um e per si e todos eles

em conjunto lamentando sinceramente que a ela se opusessem os

mútiplos prejuízos do nosso meio partidário. Apesar da intensidade

com a qual esses prejuízos atuaram na queda do gabinete Furtado e

influíram depois nas disposições militares do gabinete Olinda, para

este o sentimento geral, sem dele isentar-se nem mesmo o ministro

Silva Ferraz. Concordando imediatamente com a nomeação proposta

pelo presidente do Conselho e retirando-se logo em seguida, Silva

Ferraz não fez mais do que tomas a si pessoalmente as

responsabilidades das suas antigas relações com o general Caxias,

para deixar uma mais completa liberdade de ação, não somente aos

seus correligionários do novo gabinete, como a todo o partido liberal.

Ele francamente sacrificou-se. Não se deve insistir muito na

circunstância de Zacarias de Góis haver em tudo aquilo procedido

muito mais por surpresa que mediante uma larga consulta preliminar.

O que se deve ver é que, assim fazendo, ele correspondia de fato ao

sentimento coletivo, realizando eficazmente uma medida que o país

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inteiro reclamava. Não há a mínima prova de que Zacarias tenha, em

momento algum das suas negociações com os membros do Conselho

de Estado e com o novo chefe do exército, posto jamais em jogo o

termo ou a permanência da situação liberal. Mesmo quando oferecia

ao general a retirada do gabinete em troca dos seus serviços militares

ao país, o ministro de forma alguma pretendia dizer que o partido

liberal se deixaria substituir no poder pelos conservadores. Ele

mesmo explicou o seu exato pensamento ao próprio Marquês de

Caxias, no senado, em julho de 1870, afirmando-lhe que ao lhe fazer

aquela oferta – “não queria de certo dizer que lhe entregaria o poder.

Eu posso dispor de mim, e retirar-me quando me parecer, assim

como os meus colegas, mas não sei quem me sucederá”. Se a

nomeação do Marquês de Caxias para o Paraguai, pela forma porque

foi feita, houvesse realmente significado uma orientação

governamental contrária às idéias liberais, o gabinete de 3 de agosto

não teria sobrevivido ao seu primeiro contato com a câmara nova em

maio de 1867. Perante a forte maioria liberal que se reproduziu na

seguinte legislatura, nada teria podido, naquelas condições, evitar a

queda do ministério. Mas Zacarias de Góis não teve força apenas

para manter-se no poder, resolvendo, sempre com igual segurança e

propriedade, o problema total da nossa defesa externa. Ele a teve

ainda para organizar o partido liberal sobre bases inéditas,

concretizando o melhor e mais solidamente o seu programa e

descobrindo afinal a orientação clara e objetiva que até então nos

faltara na nossa nova política geral.

Na reabertura dos trabalhos legislativos, sobretudo no início

de uma nova legislatura, era na discussão da resposta à fala do trono

que se conhecia a exata posição do gabinete em face do parlamento.

A fala do trono, começando por uma recapitulação geral dos

negócios anteriores e da situação do país perante as potências

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estrangeiras, terminava sempre pro uma espécie de rápido programa

governamental. O imperador chamava a atenção dos representantes

do país para uns tantos assuntos que lhe pareciam urgentes e de

maior interesse naquele instante. Era, de uma forma concisa, a ordem

dos trabalhos para aquele ano, tal como a compreendiam os membros

do gabinete. Da impressão causada por aquelas proposições dependia

a sorte do ministério. Se a câmara não as entendia por adequadas, a

discussão imediatamente assumia o caráter de uma severa e

veemente tomada de contas, ao fim da qual encontrava-se o voto

formal de desconfiança. A fala do trono de 1867 era curta e de uma

grande simplicidade. Da guerra, dizia-se apenas que ela continuava.

O Peru e outros vizinhos menores tinham querido intervir para a

abertura de negociações de paz. Os Estados Unidos, por sua vez,

também graciosamente se ofereceram. Tudo tinha sido recusado.

Porém, nada de detalhes. Nenhuma referência à reorganização dos

exércitos, nem às nossas novas responsabilidades na Tríplice-

Aliança. O governo francamente evitava aqueles pontos. Havia a

menção de um acontecimento de grande significação moral e

econômica. O Império abrira o rio Amazonas ao comércio marítimo

internacional. Mas, ao fim, na recomendação de algumas reformas

administrativas de já velho conhecimento, vinha qualquer coisa de

inédito e formidável. O governo, em ato público e solene, falava pela

primeira vez no fim da escravidão...

Nós não temos elementos para precisar hoje, com exatidão,

desde quando viera o abolicionismo de Zacarias de Góis. É esta uma

indagação extremamente interessante, que talvez possa ainda ser feita

numa consulta mais ampla e detalhada da imprensa da época, ou no

exame da correspondência pessoal do grande ministro, se por acaso

dela restar, entre os seus descendentes atuais, alguma coisa. Tudo

leva entretanto a crer, dado o rigoroso e perfeito equilíbrio do seu

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espírito, em confronto com a orientação geral do gabinete de 3 de

agosto, que o problema do cativeiro, ainda insolúvel, foi, de fato, o

largo e profundo valo que o impediu de chegar imediatamente ao

programa dos liberais históricos. Mas o que não se pode pôr em

dúvida, o que é seguro e evidente, é que na fala do trono de 1867 ele

atingir afinal a sua grande política, aquele que ele não conseguira

fixar na incerta e tumultuosa existência de quatro dias do seu

gabinete de 1862, que talvez calara por prudência no governo de

1864, e da qual nada pudera ainda dizer, ao apagar das luzes da

legislatura anterior, perante aquela câmara que o recebia inquieta,

com a exígua e desconfiada maioria de três votos. O grande

presidente do ministério de 3 de agosto, foi efetivamente o primeiro

estadista brasileiro que teve a coragem de, no governo, atribuir ao

trabalho livre, em oposição ao trabalho escravo, toda a profunda e

universal significação que ele tinha e devia ter no problema geral da

nossa ascensão moral e econômica. Não poderia certamente parecer

legítimo àquele cérebro todo feito de exatidão e clareza, que o nosso

país avançasse definitivamente para os processos mais adiantados da

grande democracia moderna, guardando na sua organização social

uma instituição diretamente copiada da Antigüidade clássica, e que o

deputado João Maurício Wanderley, no seu malogrado projeto de lei

de 1854, ainda pretendia apenas aproximar da fórmula feudal,

prendendo o escravo à província como o servo à gleba da Idade

Média.(23) Era por ali que deviam começar todas as nossas reformas

políticas. Bastava considerar aquelas reformas em todo o seu valor

social e econômico, para logo compreender quanto todas elas

dependiam da extinção do elemento servil e só por ela podiam ser

eficazmente iniciadas. A preocupação de elevar a liberdade política

às suas extremas e mais belas expressões modernas, conservando ao

lado a negação absoluta e ancestral da liberdade do homem, era de

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fato um contrasenso, que por si mesmo se condenava. Não era

praticamente possível, de outro lado, reformar a milícia existente,

introduzindo no sistema da nossa defesa externa um processo

eqüitativo de recrutamento, quando os moços em idade militar ainda

se dividiam em livres e escravos. O mesmo fatal empecilho se

levantava no terreno econômico e financeiro. Não há questão neste

terreno que não se prenda, mais ou menos imediatamente, a uma

alternativa de consumo e produção,. As reformas que aí se façam

jamais serão válidas e pertinentes se não alterarem os termos daquela

relação, modificando-a sensivelmente. A situação financeira, com

representação numérica do estado econômico, só podia portanto

melhorar pelo desenvolvimento da nossa produção agrícola. Era

indispensável que a produção aumentasse continuamente, segundo as

nossas progressivas necessidades de grande nação em crescimento.

Seria preciso multiplicar a mão-de-obra dentro das nossas fronteiras,

o que não se podia obter pelo simples crescimento vegetativo da

população escrava, dadas as tristes condições da vida nas senzalas.

Impunha-se imperiosamente o apelo à imigração estrangeira. Mas o

trabalho escravo, por motivos morais e econômicos bem fáceis de

compreender, repele irresistivelmente o concurso do trabalho livre. A

abolição tinha que ser, portanto e a todos os títulos, a base inicial e

necessária de todas as reformas.

Nenhum dos grandes espíritos do nosso antigo regime deixou

de, mais ou menos ativamente, preocupar-se com o problema da

abolição. Ainda não atingíramos mesmo a nossa independência

política, e já Moniz Barreto oferecia a Dom João VI uma memória

sobre a extinção do tráfico africano e a completa eliminação do

trabalho escravo no Brasil. José Bonifácio, em 1823, tinha pronta

uma representação à primeira constituinte do império, na qual,

inspirado no intenso e claro humanismo da filosofia do século XVIII,

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que formava o fundo constante das suas idéias, ele propunha a

suspensão do tráfico e o fim do cativeiro. A constituinte foi

violentamente dissolvida por Pedro I, e o trabalho de José Bonifácio

só pôde vir à publicidade em Paris, em 1852. Até 1867, passando

pela lei Euzébio de Queiroz de 1850 sobre o tráfico interoceânico,

que foi mais um produto da ação exterior da Inglaterra que outra

coisa não nos faltaram manifestações em prol da liberdade dos

negros. O Marquês de São Vicente, ministro da justiça do gabinete

Olinda, chegou mesmo a submeter à apreciação do imperador alguns

projetos de abolição lenta e gradual por ele estudados. Isto porém

passou-se, sem maiores conseqüências, no discreto silêncio de um

salão de São Cristóvão. Pode-se dizer que todas essas manifestações,

apesar de muito louváveis e profundamente sinceras, não passaram

afinal de tentativas isoladas e pessoais. Muito mais significativa foi

sem dúvida a resposta mandada dar pelo imperador a uma sociedade

francesa de emancipação, que lhe escrevera em prol da libertação dos

escravos. Sua Majestade mandou dizer que o governo brasileiro,

assim que o permitissem as circunstâncias criadas pela guerra,

consideraria a abolição como um objeto de importância primordial.

Pedro II foi realmente um dos maiores defensores da liberdade –

certamente o primeiro e o mais ardente de todos eles – segundo o

afirmou Joaquim Nabuco. Mas é preciso não esquecer a obrigação de

reserva e constante imparcialidade a que o Chefe de Estado se

sujeitava perante os interesses em luta. A resposta à carta da

sociedade francesa é de 22 de agosto de 1866. Ora, desde o dia 3

daquele mês, estava no poder o gabinete Zacarias. Aquela resposta,

que tanto consultava os nobres sentimentos pessoais de Sua

Majestade, foi, sem a mínima dúvida, resolvida em conselho de

ministros. Assim foi, nem doutra forma a teria consentido o próprio

imperador.

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O primeiro que, com as responsabilidades do homem de

governo, encarou francamente o problema da abolição, aceitando-o

como base de programa governamental e de ação política geral, foi,

de fato, o grande ministro Zacarias de Góis. Foi ele quem soube

oferecer às aspirações liberais aquele ponto de apoio objetivo e

determinado, fazendo logo surgir a plêiade decidida e corajosa dos

radicais, que, mesmo sem o declarar e talvez sem o pensarem,

entraram a formar a vanguarda franco-atiradora da sua política.

O presidente do gabinete de 3 de agosto não podia entretanto

iludir-se sobre as dificuldades que se opunham aos seus projetos.

Fora das cidades do litoral e de certas zonas pastoris do Sul e do

Nordeste, a vida do Brasil estava nota nas grandes plantações de

cana-de-açúcar, de café e de algodão, servidas pelo braço escravo.

Ali estavam os ricos e poderosos interesses que no parlamento se

manifestavam pela palavra superior e decuriona dos líderes

conservadores... Mas o ministro também se apercebia de que naquele

instante se ia formando toda uma série de condições favoráveis às

suas idéias. É sabido que em toda parte e a todo o tempo as grandes

massas militares foram sempre recrutadas no meio numeroso e

paciente dos trabalhadores do solo. O trabalhador do solo, no Brasil,

era quase totalmente o escravo. Não admira portanto que os negros

figurassem em grande proporção nas fileiras do nosso exército do

Paraguai. Esta circunstância, ligando, muitas vezes com especial

destaque, os homens de cor aos episódios mais emocionantes da

guerra, vinha aumentar fortemente a sensação de injustiça que já se

prendia à idéia do cativeiro, nos grandes centros urbanos do litoral.

Junte-se a esse poderoso elemento afetivo o exemplo dos Estados

Unidos, a quem a libertação completa da escravatura, com tanto

esforço obtida numa áspera guerra de quatro anos, cobria de imensa

glória naquela época, e compreende-se que o ambiente moral não

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deixasse de ser propício. Do ponto de vista imediatamente político ou

partidário, se a situação do gabinete não era perfeitamente clara,

também não era má. Os conservadores, com a ida do Marquês de

Caxias para o Paraguai, tinham ficado sujeitos a uma grande

circunspecção nas suas atitudes para com o governo. Do lado dos

liberais moderados ou progressistas, muitos havia certamente cujos

interesses pessoais as idéias do ministro profundamente ameaçavam.

Estes, porém, eram no mínimo obrigados a pautar as suas

manifestações na discreta conduta dos conservadores, enquanto os

mais adiantados, os liberais históricos e os radicais sobretudo,

recebiam as novas bases de programa com a intensa e maravilhosa

alegria de quem, ao fim de muita luta e sofrimento, vê afinal o

caminho direito abrir-se em sua frente.

Zacarias de Góis cercou de todas as cautelas a revelação da

sua grande política. A fala do trono de 1867 apenas sugere: “O

elemento servil no Império não pode deixar de merecer

oportunamente a vossa consideração, promovendo-se de modo que,

respeitada a propriedade atual e sem abalo profundo em nossa

primeira indústria – a agricultura – sejam atendidos os altos

interesses que se ligam à emancipação”. Foi porém o bastante. Tato

do lado dos que imediatamente formaram na corrente abolicionista,

como daquele que se opuseram, ninguém mais teve dúvidas. Todos

compreenderam que naquelas tão discretas expressões estava apenas

o anúncio do próximo fim da escravidão. Apesar de todas as

conveniências a que se sentiam presos, os conservadores da extrema

direita ainda tentaram reagir.

A comissão de redação da resposta à fala do trono dizia, de

volta, ao imperador: “A câmara dos deputados associa-se à idéia de

oportuna e prudentemente considerar a questão servil no Império,

como requerem a nossa civilização e verdadeiros interesses...” O

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deputado Gavião Peixoto pretendeu emendar essa fórmula de adesão,

de maneira a transformá-la numa censura. O governo opôs-se. O

projeto de resposta à fala do trono redigido pela comissão foi

aprovado. Estava aceita pela câmara a orientação política geral de

Zacarias de Góis.

NOTAS (18) Pelo art. III do tratado da Tríplice Aliança ficara estabelecido que o

general Osório seria o comandante geral das forças brasileiras,

obedecendo ao comando em chefe aliado, entregue ao general Mitre.

Osório, entretanto, jamais exerceu de fato o comando geral dos dois

corpos do exército que formavam o total das nossas forças, no início da

campanha. Na passagem do Paraná, como nas lutas que se seguiram até a

batalha de 24 de maio, só figurou, da nossa parte, o 1º corpo, do seu

comando direito. O 2º corpo, sob as ordens do general Porto Alegre, ainda

estava em formação, na fronteira de São Borja. Quando o 2º corpo desceu

para o Passo da Pátria, já Osório, com parte de doente, tinha -se retirado

ao Brasil, donde só voltou no ano seguinte, à testa do 3º corpo, para

colocar-se sob o comando geral do Marquês de Caxias. O general Porto

Alegre, ao chegar ao Passo da Pátria, seguiu atacar Curuzu, onde ficou,

separado do 1º corpo, então às ordens do general Polidoro, por uma

grande distância e tendo de permeio a autoridade do general Mitre. De

uma maneira sólida e eficaz, as nossas forças só tiveram realmente um

comando geral com a chegada do Marquês de Caxias.

(19) Convém ler o nosso grande publicista J. A. Pimenta Bueno (Marquês

de São Vicente), no seu Direito Público Brasileiro , Cap. V, Do Conselho

de Estado; seção 1ª, pág. 285. – Tipografia Imp. e Const. de J. Villeneuve

& Cia., Rio de Janeiro, 1857.

(20) O gabinete deu provas de compreender bem o sacrifício imposto a

Silva Ferraz com aquela política. O ex-ministro da guerra, ao voltar do

governo para a sua cadeira no senado, viu-se logo incluído n Conselho de

Estado e promovido à dignidade de Barão de Uruguaiana. Mas o incidente

o abalou tão profundamente que a sua saúde, já alterada, não pode resistir.

Apesar de ainda relativamente moço, ele faleceu alguns meses depois.

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(21) Vida do grande cidadão brasileiro Luís Alves de Lima e Silva, barão,

conde, marques, duque de Caxias, desde o seu nascimento em 1803 até

1878, pelo padre Joaquim Pinto de Campos, prelado doméstico da Sua

Santidade, deputado à Assembléia Geral pela Província de Perna mbuco,

etc. – Lisboa, Imprensa Nacional, 1878.

(22) É um eloqüente e apaixonado panfleto, publicado em 1868, no qual

todos os contratempos da guerra não afinal atribuídos ao fato dos liberais

não terem sabido abandonar o poder...

(23) O deputado J. M; Wanderley, depois senador e Barão de Cotegipe,

que tanto se opôs à abolição em 1888, apresentou à câmara em 1854 um

projeto de lei que proibia o comércio de escravos de província a

província. Esse projeto, de certa forma, criava no Brasil o vínculo do

trabalhador rural ao solo, vínculo este que foi, como é sabido, o

característico essencial da servagem medieval.

CAPÍTULO VI

A CRISE MINISTERIAL DE 1868

Antes da reabertura do parlamento, já o governo

designara, no dia 11 de abril, uma comissão presidida pelo

próprio chefe do gabinete e composta de Saraiva e Torres

Homem, para estudar os meios práticos e o encaminhamento

legal da abolição. Era portanto claro que, para o ministério, a

oportunidade de trazer de novo aquele assunto perante a

câmara, estava apenas no encerramento das hostilidades no

Paraguai. Bastaria talvez uma vitória decisiva sobre o inimigo

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para que aquela oportunidade se considerasse realizada,

entrando imediatamente a abolição no seu período de execução

prática. Infelizmente, a situação conseqüente à batalha de

Curupaiti, terrivelmente agravada pelo aparecimento do

cholera-morbus nos acampamentos, não permitiu ao Marquês

de Caxias inaugurar o seu comando no Paraguai com qualquer

ação imediata de grande efeito. Foi necessário, antes de mais

nada, cuidar da saúde do exército e esperar os grandes reforços

em homens e em material que as novas condições exigiam.

Mas, no mês de julho, tendo o exército reorganizado e

acrescido de mais um grupo de divisões trazido do Rio Grande

do Sul pelo general Osório, o nosso comandante-chefe sentiu-

se em condições de tomar a ofensiva.

Cabem aqui alguns dados sobre as condições

estratégicas que o Marquês de Caxias foi encontrar no teatro

das operações. Para facilidade de compreensão, admitamos

que, a vol d’oiseau, os rios Paraná e Paraguai, vindo juntar-se

na sua confluência nas Três Bocas, formem, entre os portos de

Itapiru, na margem direita do primeiro, e Taii, na margem

esquerda do segundo, um grande arco, de uns quarenta

quilômetros de corda. Era ao longo desse arco que se elevavam

as fortalezas paraguaias. Como desembarque no Passo da

Pátria e a ocupação do Itapiru, seguida da tomada de Curuzu,

ao lado do Curupaiti, nós havíamos iniciado a conquista

daquele arco, avançando pelo seu ramo Sul. Detidos pela

corajosa e tenaz resistência apraguaia em Curupaiti, nós

ficáramos entretanto senhores do Paraná, em toda a sua

extensão, e do Paraguai, até as proximidades dessa última

posição. Lopez, das suas fortalezas restantes, sabiamente

conjugadas num largo sistema de obras exteriores, dentro do

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qual se abrigava todo o seu exército, ficou a dominar todo o

interior para o Norte, tendo livres os seus transportes rio -

acima até Mato Grosso, e podendo comunicar-se ainda com as

fronteiras do Peru e da Bolívia. Tal foi a mútua situação

estratégica dos beligerantes, desde a batalha de Curupaiti, até

aquele mês de julho de 1867, quando o general Caxias

resolveu reencetar a marcha para a frente.

O nosso comandante-em-chefe, abandonando

definitivamente o ataque frontal de Curupait i, fracassado em

setembro do ano anterior, decidiu-se a operar imediatamente

em toda a extensão da corda Itapiru-Taii, ameaçando a fundo e

de uma vez todos os pontos da defesa paraguaia. No dia 21,

com uma forte coluna cuja vantagem é entregue ao general

Osório, ele contorna as linhas de Rojas, fronteiras ao

acampamento de Tuiuti, e avança deliberadamente para o

Norte, varando uma região de pântanos e florestas, tida até

então como intransitável para um exército. A 31 é atingida e

tomada Tuiú-Cué, São Solano cai no dia seguinte, e, através de

uma áspera série de escaramuças e combates, nos quais os

destacamentos inimigos tentam em vão sustar a sua marcha,

ele ocupa Taii, a 2 de agosto, privando o comando paraguaio

das suas últimas comunicações pelo rio.

Seguiu-se a consolidação da nova linha e a preparação

da parte naval daquela manobra. A missão reservada à

esquadra naquele plano geral de envolvimento do inimigo,

exigiu porém um longo e penoso trabalho preliminar. Tendo a

passagem de alguns navios a montante de Curupaiti

ocasionado a perda do couraçado Rio de Janeiro, além de

avarias graves em alguns outros, ficou patente a necessidade

de uma base para a esquadra, acima daquela fortaleza, servida

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por uma linha de comunicações terrestres que escapasse ao

raio de ação dos fortes inimigos. Construiu-se então, na

margem direita, entre Curupaiti e Humaitá, o Porto Elisiário,

ligado à base primitiva das Três Bocas por uma via férrea. Só

quando estes trabalhos ficaram prontos foi possível prosseguir

na ação naval. Mas, nos primeiros dias de fevereiro de 1868, a

esquadra punha-se toda em movimento, atacando

vigorosamente as posições paraguaias ao longo da margem

esquerda, para forçar, no dia 19, a passagem de Humaitá e

estabelecer em Taii a sua ligação terminal com as forças de

terra. Lopez tentou então reagir contra aquela vexatória

situação, mandando repetidos e furiosos ataques às nossas

posições. Todos porém foram inúteis. Com as suas linhas

enfraquecidas pela exagerada distensão a que teve de submeter

os seus efetivos naquela enorme frente de combate, o comando

paraguaio ficou à mercê da primeira concentração de forças

que o Marquês de Caxias, inteiramente senhor da manobra,

entendesse ordenar, no ponto que melhor lhe conviesse.

Essa eventualidade não tardou muito em chegar. No dia

21 de março, o general Argolo desarticula as defesas

paraguaias, tomando de assalto as trincheiras de Sauce, e

Lopez é forçado a abandonar em tumulto o seu quartel -general

do Passo Pocu, onde instantes depois surge o general Mena

Barreto, com a nossa terceira divisão de cavalaria. Foi uma

incursão rápida e fulminante. À direita e à esquerda da coluna

assaltante, o inimigo, com os seus flancos abertos, bei batendo

em retirada sobre Humaitá. As posições do Ângulo e de Passo

Espinilo são evacuadas, enquanto a famosa guarnição de

Curupaiti, que tão vigorosamente nos detivera em setembro de

1866, foge célere pela margem do rio, sem dar um tiro...

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A queda de Sauce, com a conseqüente invasão do vasto

campo fortificado, do qual aquela bateria era um dos

principais elementos, teve para a defesa paraguaia o efeito de

um desmoronamento. Lopez encontrou-se com todo o seu

exército amontoado na área interior de Humaitá, só lhe

restando, como futuro próximo, render-se, sair de qualquer

forma para tentar ainda a guerra de movimento, ou morrer

dentro da sua última fortaleza. Mas, em qualquer destas

hipóteses, o comando aliado podia bem considerar o fim da

guerra como muito próximo.

No espírito do ministro Zacarias de Góis, o

contentamento de todas estas notícias, foi-se rapidamente

transformando numa firme, numa intrépida, numa generosa e

esplêndida decisão: - a de promover sem mais delongas a

abolição total do cativeiro. Dificilmente se poderá avaliar hoje

o efeito que teve sobre a opinião pública das grandes cidades

brasileiras a idéia abolicionista, lançada na fala do trono de

1867. Houve como que um levantamento geral da alma urbana

contra a imensa tristeza da vida humana nas fazendas e nos

engenhos. Foi como se vibrasse de um extremo ao outro do

litoral um profundo e ininterrupto grito de piedade. O Brasil

francamente tocara o limiar de um novo e grande período da

sua evolução histórica.

É possível que Zacarias, ao lançar tão cautelosamente o

princípio da abolição, não pensasse ir muito além de uma

libertação parcial, que melhor dispusesse as coisas para o

futuro. Não só não havia iludis-se com a inevitável resistência

dos interesses escravistas, como, do lado das operações de

guerra, nada se dera ainda, em maio de 1867, em condições de

assegurar imediatamente ao gabinete uma grande liberdade de

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ação na política interna. Dada porém a formidável repercussão

obtida pela fala do trono, o governo foi naturalmente cedendo

àquela impetuosa e inesperada reação das suas próprias idéias.

O seu projeto inicial de abolição foi rapidamente evoluindo

para um ponto que não lhe era dado ainda fixar com exatidão,

mas que só podia concretizar-se racionalmente na extinção

completa do cativeiro. A oportunidade para a ação decisiva

naquele sentido, cada vez mais identificou-se, na mesma

ardente esperança, com a vitória final das nossas armas no

Paraguai. Mas esta, as comunicações do comando-em-chefe

em princípios de 1868, já prometiam para, de um instante a

outro, no assalto e conseqüente tomada de Humaitá. O governo

não via mais nenhum motivo para ocular o seu pensamento e a

sua intrépida decisão. A nova fala do trono, lida na reabertura

dos trabalhos parlamentares em 9 de maio daquele último ano,

já não se disfarça em frases vagas e tateantes; ela diz

claramente: “O elemento servil tem sido objeto de assíduo

estudo, e oportunamente submeterá o governo à vossa

sabedoria e conveniente proposta.” Os deputados responderam:

- “A câmara aguarda cheia de confiança a oportunidade em que

tem se der apresentado ao seu exame a conveniente proposta

sobre o elemento servil, objeto de assíduo estudo do governo.”

As emendas apresentadas a esta redação, e que o gabinete

mesmo recusou por excessivas ou desnecessárias, foram todas

na intenção de torná-la ainda mais incisiva e pressurosa. A

escravidão aproximava-se evidentemente do seu termo.

Apesar de continuamente solicitado no eterno sentido

da perfeição, o mundo moral, como o mundo sensível,

equilibra-se todo num vasto e inapreensível sistema de

reações. O momento do triunfo do Marquês de Caxias no

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Paraguai, não fora previsto como a oportunidade ideal para

uma vitoriosa mutação da nossa política interna, apenas pelo

chefe do gabinete. A extrema direita dos conservadores

também assim o compreendera do seu ponto de vista especial.

A discreção que ela mais ou menos mantivera até ali perante

os atos do ministério, de maneira alguma significara uma

passiva aceitação das idéias liberais. Tratava-se apenas de não

criar embaraços ao Marquês de Caxias, provocando um

prematuro enfraquecimento do governo que obtivera elevá-lo

ao comando-em-chefe e se associara a sua ação militar. Mas,

se os conservadores assim condescendiam com as necessidades

da defesa externa, não lhes era possível entretanto admitir que

as vitórias do seu grande correligionário nos campos de

batalha, viessem a ser transformadas pelo governo liberal em

fontes de prestígio, para subverter a ordem social e econômica

estabelecida no interior. O trabalho anti-abolicionista começou

logo, com uma resposta imediata e quase automática à fala do

trono de 1867. Abafado na câmara com a recusa da emenda

Gavião Peixoto e afastado por circunspecta contenção dos

meios senatoriais, esse trabalho alastrou-se pelo interior das

províncias, numa exaltada e vigorosa arregimentação de todos

os interesses diretamente ligados à cultura do solo e à

exploração da mão-de-obra escrava. É fácil imaginar os meios

de que dispunham os barões fazendeiros e senhores de

engenho para reavivar nos grandes centros comerciais o

sentimento conservador entorpecido pela campanha

abolicionista. Eles se dirigiam aos seus clientes, aos seus

banqueiros, aos seus comissários e correspondentes, aos seus

advogados e jornalistas, falando portanto aos interesses mais

íntima e solidariamente ligados à prosperidade das suas

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lavouras. Os elementos mais consideráveis do mundo

econômico, os detentores principais da riqueza, tanto no

interior como no litoral, ativamente se congregaram. A idéia

de arrebatar ao gabinete liberal os louros do Paraguai,

combinou-se assim na reação do interesse ferido com a terrível

obsessão da inveja partidária.

Nos seus aspectos gerais, a campanha conservadora

contra a abolição tomou a forma regular de um movimento de

idéias. Sem recusar o que havia de humano na libertação dos

cativos, argumentava-se entretanto com a fundamental

significação do direito de propriedade, apontando-se ao mesmo

tempo os desastrosos efeitos que a medida produziria em toda

a vida econômica e na própria organização social do império.

Só aqueles que nada tinham a perder, diziam os escravagistas,

podiam lançar-se de ânimo ligeiro e por simples idealismo

numa tão insensata e perigosa aventura...

Por tal caminho, tinha-se a impressão de que o partido

conservador, exercendo uma legítima atividade, apenas se

preparava a reconquistar a câmara nas próximas eleições

gerais. Dada porém a precipitação com que os fatos se foram

dispondo em bem dos projetos do gabinete, os conservadores

mais exaltados e, digamos mesmo, de menor escrúpulo, logo

se decidiram a empregas processos mais rápidos e expeditos,

ainda que muito menos elegantes. O primeiro esforço para a

abertura de uma crise capaz de provocar a queda do gabinete

de 3 de agosto, assumiu realmente um caráter de espantosa

inferioridade. Como a triunfal “marcha de flanco”, executada

pelo general Caxias, de 21 de julho a 2 de agosto de 1867,

desse a justa impressão de haver o nosso exército firmado

definitivamente a sua supremacia sobre o inimigo, em certos

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meios políticos da corte estabeleceu-se a crença de que a nova

situação militar já eximia os conservadores de toda a reserva

por eles mantida até ali na política interna. Era claro, para

aqueles meios, que os motivos de tanta condescendência

haviam cessado, assim como evidente lhes parecia que, por

simples e automática reversão, a vida do gabinete passara a

depender da permanência de Caxias no Paraguai. Começou

então uma insidiosa urdidura no sentido de incompatibilizar o

presidente do Conselho com o general em chefe. Em cartas

particulares foi-se mandando dizer ao Marquês de Caxias que

o gabinete liberal, dominado pelas suas estreitas preocupações

partidárias, já não sabia corresponder à esplêndida

generosidade da sua colaboração militar. Zacarias de Góis

jamais deixava passar sem resposta qualquer censura ao

comando do exército, desde que partisse ela de pessoa

autorizada e merecedora de réplica. A sua palavra incisiva e

vigorosa, levantava-se no parlamento à primeira manifestação

de dúvida ou desalento, confundindo os impacientes,

reanimando os tímidos, fazendo cair vencidas as ultimas

animosidades. Entretanto, tudo quanto de mal informado ou

injusto pudesse divulgar a imprensa do Brasil ou mesmo do

estrangeiro, logo era expedido ao Paraguai, como prova

irretorquível da desleal indiferença do governo para com o

chefe das forças em operações. Esse lamentável trabalho,

dados os antecedentes da nossa vida política e partidária, não

podia deixar de produzir os seus efeitos. Tocado pela dolorosa

suspeita de que o gabinete já não lhe dispensava a perfeita e

inteira confiança do princípio, o Marquês de Caxias, no dia 4

de fevereiro de 1868, enviava do acampamento de Tuiu-Cuê o

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seu pedido de demissão, sob o pretexto de um mau estado de

saúde.

Colhido pela desconcertante surpresa daquela resolução,

Zacarias de Góis só pensou em manter-se coerente com a

atitude que tivera ao convidar o marquês para o comando do

exército. A retirada do gabinete fora então oferecida a Caxias

como condição, se ele quisesse, da sua partida para o Paraguai.

Como ele pretendia exonerar-se naquele momento, o governo,

para dissuadi-lo e conservá-lo no seu posto, renovava e fazia

efetivo o antigo oferecimento. Mas o Conselho de Estado,

reunido para conhecer o incidente, peremptoriamente opôs-se a

que o governo assim se retirasse, só para atender às

susceptibilidades do general às suas ordens. O gabinete foi

instantemente solicitado a manter-se no poder. Dezessete dias

após ter partido de Tuiu-Cué o pedido de demissão do

Marquês de Caxias, isto é, a 21 de fevereiro, o gabinete

expedia a sua resposta, na qual se lia: “... o governo imperial

deliberou não aceitar o pedido de V.Exa., confiando do seu

zelo e dedicação pelo serviço público, que continuará no seu

posto de honra”. Felizmente o general em chefe, que procurara

apenas uma reafirmação formal e indubitável de confiança,

submeteu-se sem replicar à solução, para trinta dias depois

cobrir-se de glória no esplêndido golpe estratégico de 21 de

março.

É preciso compreender, entretanto, que se o Conselho

de Estado, que já andava seriamente alarmado com a política

abolicionista de Zacarias de Góis, se opôs com tão rápida e

enérgica decisão à queda do gabinete naquele instante, foi

apenas por uma questão de forma. Não lhe pareceram dignos

os processos empregados na preparação da crise, nem podia

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ele ter por legítimos, nem mesmo toleráveis, os motivos

invocados para a demissão do ministério, tais como no

momento se apresentaram. Dadas, porém, as tendências

partidárias da maioria dos seus membros e a sua própria

natureza institucional ele não podia ser de forma alguma

indiferente à profunda agitação provocada pelas disposições

redentoras do gabinete. Os conselheiros da coroa sentiram-se

desde o primeiro instante no dever, senão de sustar, pelo

menos de encaminhar a corrente abolicionista por vias mais

contornantes e demoradas. O indispensável para eles era

apenas que a ocasião regular se apresentasse.

Tudo indicava que o projeto de lei de abolição não

encontrasse dificuldades no seu encaminhamento regimental

na câmara temporária, desde que o governo resolvesse a sobre

ele apresentar a “conveniente proposta” prometida. Só do

senado era possível esperar um trabalho mais detido e menos

entusiasta, que, retardando a vaga abolicionista e dando-lhe

sem dúvida outra forma, afastasse as ameaças à ordem pública

por ela trazidas e já visíveis no horizonte. Acontecia porém,

que, mesmo na câmara alta, a situação de Zacarias não estava

longe de poder ser tida por excelente. As últimas eleições

senatoriais haviam sido quase todas favoráveis ao Partido

Liberal, muito pouco faltando a que as forças dos dois partidos

ali se equilibrassem.(24) Junte-se a essas condições numéricas

o poder de sugestão de uma bancada onde figuravam as

inteligências mais prestigiosas daquele tempo, e ver-se-á

quanto seria possível a Zacarias de Góis, mesmo entre os

senadores, dominar a votação no momento decisivo.

Uma circunstância entretanto sobreviera que vinha pôs

entre as mãos dos conselheiros de Estado os meios de agir

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sobre o ambiente parlamentar, criando o incidente inicial de

uma nova situação. O Partido Liberal, com a morte de Dom

Manoel de Assis Mascarenhas, senador pela Província do Rio

Grande do Norte, havia perdido na segunda câmara um dos

seus elementos mais fiéis e devotados. D. Manoel fora mesmo

a prestimosa individualidade em torno a qual giraram

anteriormente quase todos os esforços no sentido de fundir

progressistas e liberais num só partido. Fora em sua residência

que se realizaram todas as reuniões e conferências para aquele

fim; ali fora redigido, por Nabuco, Dias Vieira e Zacarias de

Góis, o programa progressista lido por Silveira da Mota, no

senado, em 1864.(25) A conservação da cadeira vaga pelo seu

desaparecimento era uma necessidade, uma condição prática e

moral de prestígio e de sucesso, para a política liberal e para o

governo.(26) Pois foi aquele o ponto que se ofereceu ao

espírito conservador do Conselho de Estado, para pôr em

cheque o gabinete de 3 de agosto e conter a vaga montante do

abolicionismo.

A eleição para o preenchimento da vaga de D. Manoel

de Assis Mascarenhas no senado tomou imediatamente a

feição de um prejulgamento das idéias do gabinete sobre o

elemento servil. Liberais e conservadores tomaram logo

posições extremas, tendo sido necessárias medidas militares de

caráter extraordinário, para manter a ordem pública na

província. O eleitorado foi sensivelmente favorável aos

liberais. Os votos mais numerosos recaíram sobre o candidato

Amaro Bezerra Cavalcanti, que o gabinete preferia. Mas, ao

chegar à corte a lista tríplice, sobre a qual se produzira a

votação geral, o Conselho de Estado pronunciou-se pela

escolha de Sales Torres Homem, dela o nome que menor

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número de sufrágios conseguira. Zacarias de Góis tinha as

mais sólidas razões para impugnar a preferência do Conselho

de Estado. A inclusão de Torres Homem na lista de candidatos

não obedecera à certas prescrições legais indispensáveis, como

depois o reconheceu o próprio senado, invalidando a eleição

no reconhecimento de poderes. Mas, além disso, Sales Torres

Homem, pondo a sua esplêndida inteligência ao serviço das

idéias conservadoras, após ter surgido no mundo político com

a verdadeira explosão liberal do seu “Libelo do Povo”(27),

tornava-se profundamente antipático aos homens adiantados.

Podia-se dizer que o Partido Liberal lhe reservava os mesmos

sentimentos que o Partido Conservador nutria pelo chefe do

gabinete, pois, inversamente, ambos haviam evoluído de um

partido para o outro, causando nos dois campos e cada um de

per si igual irritação. É preciso notar ainda que, escolhendo a

Sales Torres Homem, que com José Antônio Saraiva fizera

parte da primeira comissão de estudos do problema da

escravidão, o Conselho de Estado de certa forma parecia

indicar ao gabinete até onde lhe seria permitido levar as suas

disposições libertadoras.. O projeto daquela comissão, como

depois foi revelado, limitava-se de fato à redenção dos

nascituros, quando um horizonte muito mais amplo já via o

governo abrir-se em sua frente.

Zacarias de Góis correu ao paço, a fazer ver ao

imperador a impossibilidade legal e a irritante e perturbadora

significação política daquela escola. Era indispensável

repudiá-la. Pedro II, entretanto, não concordou. Zacarias

insistiu, e, insistindo, automaticamente pôs em questão todo o

processo funcional e das próprias bases do poder moderador. O

que ele pedia, era apenas que Sua Majestade, relegando os

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pareceres do Conselho de Estado à sua função meramente

consultiva, negasse-lhes força decisória, para mandar lavrar a

carta senatorial pelo Rio Grande do Norte em favor, não de

Torres Homem, mas sim do candidato mais votado.

Ao modo de ver do primeiro ministro opunham-se no

entanto alguns poderosos embargos. A escolha do poder

moderador nas listas senatoriais sufragadas pelos eleitores, de

maneira alguma estava sujeita ao critério da maior votação. A

preferência do nome de Torres Homem era tão lícita como a de

qualquer dos outros dois, não se opondo a ela nem mesmo a

argüição de inelegibilidade legal do candidato, pois essa era,

segundo o art. 21 da constituição de 1824, matéria da

exclusiva competência do senado, ao conhecer da validade do

pleito. O caráter facultativo das consultas ao Conselho de

Estado, no qual parecia apoiar-se o chefe do gabinete para

negar força obrigatória à escolha do novo senador, era um

ponto de doutrina que os nossos publicistas do segundo

reinado aceitavam apenas em princípio, como uma espécie de

reverência mental à coroa, mas sempre destituído de toda e

qualquer significação no terreno praticamente legal. Não há na

lei de 28 de setembro de 1841, que restabeleceu o Conselho de

Estado, nem no seu regulamento, expedido em 5 de fevereiro

de 1842, nenhuma disposição que autorizasse o imperador a

desprezar os pareceres do Conselho, para resolver a seu

arbítrio os assuntos consultados. O regulamento dizia no seu

art. 13: “As conferências do Conselho de Estado terão lugar

nos paços imperiais, e quando o imperador houver por bem

convocá-lo”. Logo adiante, no art. 16, ele insistia ainda em

submeter as manifestações do conselho à iniciativa do

imperador ordenar”. Está muito bem. Pode-se supor que, se o

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Conselho de Estado só se reunia e os conselheiros só falavam

quando assim o entendia o imperador, bastava a este deixar de

convocar o Conselho ou, mesmo convocando-o, conservar

mudos os conselheiros, para ficar com o direito de por si só

resolver qualquer assunto. Mas, veja-se a lei, razão e causa

daquele regulamento. No parágrafo 1º do seu art. 7, ela

estabelece que o imperador deve ouvir o Conselho de Estado

“em todas as ocasiões em que se propuser a exercer qualquer

das atribuições do poder moderador”. Ora, os nove parágrafos

em que o art. 101 da constituição do império capitulada as

atribuições do poder moderador, a escolha de senadores era,

pela própria disposição ordinal daqueles parágrafos, a primeira

de todas elas. Como poderia então Pedro II resolver sobre a

eleição senatorial do Rio Grande do Norte, sem audiência do

Conselho de Estado, e como poderia ele ainda, depois de ouvi -

lo, desprezar a sua escolha, para expedir o título de senador a

Amaro Bezerra e não a Sales Torres Homem. A lei não

declarava explicitamente que os pareceres do Conselho de

Estado necessariamente obrigassem o imperador. Mas ela,

indicando, de uma forma bem determinada e categórica, os

casos em que a obtenção daqueles pareceres tornava-se

indispensável, também não dizia que o imperador pudesse

desprezá-los na sua decisão final. O próprio espírito no qual o

Conselho de Estado espontaneamente se recompôs em 1841,

estaria a demonstrar a força e a natureza real daqueles

pareceres, se a Pedro II não bastasse a praxe constante e

invariável dos vinte e sete anos do seu reinado. O imperador

não podia deixar de compreender que aquilo que lhe vinha

propor o chefe do gabinete, era apenas um golpe de Estado...

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Ninguém poderá supor que Zacarias de Góis, hábil

político e notável professor de Direito, ignorasse o exato

sentido da medida que reclamava. Por sua vez membro do

Conselho de Estado ele vivia no completo segredo das relações

daquele organismo com a coroa, não podendo portanto iludir -

se sobre o grave precedente que pretendia estabelecer. O que

se dava realmente, é que, naquele momento, ele compreendera

a impossibilidade prática de separar a questão do elemento

servil do problema constitucional contido no programa dos

liberais históricos. Não era fácil trabalhar eficazmente num

campo sem tocar fortemente as raias do outro. A ocasião

porém, não se apresentava propícia a uma reabertura ostensiva

do debate constitucional. Ele portanto quis daquela forma

contornar a dificuldade, por uma nova interpretação do poder

moderador. Voltar-se-ia ao espírito do Ato Adicional,

anulando o papel político do Conselho de Estado, sem

restabelecer os conflitos de poderes da época da Regência,

pois dada a evolução operada em 1840 até ali, já ninguém

punha em dúvida a completa supremacia do parlamento sobre

as outras partes do nosso sistema político e constitucional. Em

condições diversas, muito mais lógicas e favoráveis, era a

ressurreição da política de Antônio Carlos... Zacarias,

sustentando a sua tese, qualificava os conselheiros de Estado

que se lhe opunham, de “verdadeiros autores do governo

pessoal, porque há”, dizia ele, “governo pessoal, sempre que

afasta-se dos atos da realeza uma justa interferência dos

ministros e sua conseqüente responsabilidade”.(28) Pedro II

não podia porém, concorrer pessoalmente para aquela espécie

de revolução tácita. Seria abandonar a norma geral de conduta

que aceitara perante os grandes estadistas dos primeiros anos

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do seu reinado, e que a prática até ali se encarregara de

mostrar como a mais digna e acertada. Ele deixaria de ser o

regulador moral das funções do Estado, para tomar partido

entre dois interesses sociais em luta. Fosse um desses

interesses o mais nobre e respeitável, o mais santo, aquele cujo

triunfo se voltassem todos os seus votos, lícito nem prudente

lhe seria entretanto impô-lo daquela forma,sobretudo com o

país ainda a braços com uma guerra externa, e, exatamente por

via daqueles interesses, a dois passos da guerra civil.

Pedro II, que, com carinhosa solicitude, acompanhava

os esforços do seu ministro em prol da redenção dos cativos,

deve tê-lo instantemente solicitado a não sacrificar a marcha

da abolição ao seu ponto de vista na eleição senatorial do Rio

Grande do Norte.(29) Mas Zacarias de Góis se apercebia muito

bem de que, fosse qual fosse a sua atitude no caso Torres

Homem, ela já em nada alteraria o fato essencial daquela

formal resistência do Conselho de Estado à sua política. A

marcha da abolição estava, naquele fato, de si mesma

comprometida. A democracia brasileira, com tudo quanto a ela

se prendesse, seria sempre assim precária e vacilante,

enquanto o poder moderador, com o seu indefectível

complemento funcional do Conselho de Estado, pudesse

semear de escolhos imprevistos o caminho do gabinete. Eram

os liberais históricos, na sua velha intransigência, os que

afinal tinham razão, e, sentindo-se humilhado e moralmente

diminuído, ele preferiu que, perante o país e perante o futuro,

cada um guardasse naquela crise as suas responsabilidades. E

no dia 14 de agosto, o imperador convocava o Conselho de

Estado para consultá-lo sobre a demissão coletiva do

ministério.

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É bem possível que os conselheiros da coroa não

esperassem uma solução tão radical do seu conflito com o

gabinete, pois, do ponto de vista da administração geral, nada

naquele momento aconselharia uma mudança de situação. Eles

apenas se opunham a que o governo fosse longe demais nos

seus projetos de abolição. Desde porém, que Zacarias de Góis

assim o entendia, já não podiam eles descobrir grandes

inconvenientes na sua retirada. A formidável cabala fazendeira

e reacionária desencadeada nos meios capitalistas e comerciais

das grandes cidades, já havia produzido os seus efeitos. Ali

mesmo, no Conselho, estava o sr. Visconde de Itaboraí, que,

senador pela Província do Rio de Janeiro e intimamente ligado

aos agricultores fluminenses, muito poderia informar a ta l

respeito. Era só entregar-lhe o governo... O novo gabinete

formou-se assim sob a presidência do mais eminente e mais

legítimo representante da reação conservadora e anti -

abolicionista.

É preciso não nos esquecermos de que o eleitorado

daquele tempo, recrutado segundo o critério de um mínimo e

renda líquida, não podia deixar de ser extremamente sensível a

uma propaganda que, propondo-se a defender o direito de

propriedade, falava sobretudo às classes abastadas e aos que

delas imediatamente dependiam. Basta saber que o alistamento

eleitoral, em escala de valor econômico descendente, parava

nos guarda-livros e primeiros caixeiros das casas comerciais,

para ter-se uma idéia dos múltiplos e vários meios de sugestão

de uma tal propaganda, sobre a massa geral daquele eleitorado.

Não são portanto de admirar as conseqüências que teve a

veemente e impetuosa moção de desconfiança, com a qual a

câmara liberal recebeu o gabinete Itaboraí, logo à sua

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apresentação no dia 17.(30) Aceito o desafio para um novo

apelo à opinião do eleitorado, que aquela moção neces-

sariamente significava, e procedida à nova eleição geral, o

governo conservador encontrava-se na reabertura do parla-

mento, a 11 de maio de 1869, em face de uma câmara

triunfalmente correligionária. Os agricultores haviam conven-

cido nas urnas. Estava pedida a evidente e grande

oportunidade para a eliminação rápida e total do cativeiro, na

qual para nós se combinaram as reações sociais da guerra do

Paraguai com a libertação dos escravos nos Estados Unidos.

NOTAS

(24) Referindo-se a essa circunstância, dizia a Opinião Liberal, em 1868:

Agora que pouco faltava a um partido contrário (ao conservadorismo)

passar o Rubicon da 2ª Câmara...

(25) Vide Américo Brasiliense, Os programas dos Partidos e o Segundo

Império, Partido Progressista, pág. 14. Edic. Jorge Seckler, São Paulo,

1878.

(26) É preciso notar que a vaga deixada por D. Manoel não era a única

existente na câmara alta. Havia várias outras. O Partido Liberal naquele

momento esteve realmente a dois passos de completar a sua excelente

situação parlamentar com uma indiscutível maioria no senado.

(27) Panfleto terrivelmente antidinástico, publicado em 1848, sob o

pseudônimo de Timandro.

(28) Vide a sua brochura Questões Políticas, pág. 4 – Tipografia da

“Reforma”, Rio de Janeiro, 1872.

(29) Realmente o imperador só muito a contragosto concordou com a

retirada do gabinete. Zacarias teve de repetir três dias seguidos o seu

pedido de demissão, para que ele se resolvesse a comunicá -lo ao Conselho

de Estado.

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(30) O moção apresentada pelo deputado paulista José Bonifácio (o moço)

era do teor seguinte: “A câmara viu com profundo pesar e geral surpresa o

estranho aparecimento do atual gabinete, gerado fora do seu seio e

simbolizando uma nova política, sem que uma questão parlamentar tivesse

provocado a queda do seu antecessor. Amiga sincera do sistema

representativo e da monarquia constitucional, a câmara lamenta este fato

singular, não tem e não pode ter confiança no governo.”

CAPÍTULO VII

A LEI DO VENTRE LIVRE

Apesar de traduzir-se numa suspensão, ou antes numa

demora do progresso humano no Brasil, a queda do gabinete

Zacarias de Góis não deixou de ser um fato de política normal,

perfeitamente lógico no conjunto das circunstâncias que o

produziram. Com o tempo, veio, porém, a formar-se sobre esse

acontecimento uma tão complicada e confusa teia de prejuízos

mentais, que até hoje ele ainda a muitos se apresenta com a

feição de um profundo e angustioso problema histórico.

Elevaram-se duas escolas. Segundo a primeira, surgida

imediatamente com a natural reação liberal contra o gabinete

Itaboraí, o ministério de 3 de agosto teria sido vítima de um

surto violento e inesperado da vontade pessoal de Pedro II, que

tendo sido a reguladora de fato de toda a nossa existência

política no segundo reinado, a si mesma se satisfazia naquele

instante, insistindo, teimosa, na escolha de Torres Homem

para o senado. A outra, morta naquela época no nascedouro,

mas ressuscitada depois do pronunciamento militar de 15 de

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novembro, pretende que Zacarias de Góis foi apenas

sacrificado aos brios do general Caxias, que, pedindo a sua

demissão do comando do exército, tacitamente impôs a

retirada do gabinete como condição obrigatória de sua

permanência naquele posto. De acordo com esta última versão,

a crise ministerial de 1868 teria sido o primeiro arranco do

irresistível e fatal militarismo, que explodiu afinal na

proclamação da república, em 1889.

São duas opiniões que decorrem, não do acontecimento

a que, propriamente, se referem, mas de disposições mentais e

conceitos surgidos posteriormente.

Os que aceitam a queda de Zacarias como uma

exclusiva e brutal manifestação do poder pessoal do

imperador, procuram apoiar essa hipótese nos ataques, a partir

daquele momento, lançados à coroa pelos liberais, a quem a

crise ministerial fizera entrar em extremada e violenta

oposição. Efetivamente, o poder pessoal, o inevitável

predomínio individual do chefe do Estado, voltou a fazer

objeto de todas as críticas e comentários, quase com a mesma

intensidade da época de Pedro I e da Regência. Falava-se

todos os dias de despotismo, de opressão, de maquiavelismo

corruptor, com uma clara e bela veemência, que, para ser

intrépida e corajosa, só faltava corresponder exatamente à

realidade dos fatos... Mas, para não cairmos hoje em

lamentáveis confusões, é indispensável compreendermos o

verdadeiro espírito daquelas purgatórias e o exato fim por elas

visado. Ninguém fazia a Pedro II a injustiça de supô-lo

realmente um tirano, ainda mesmo que amável e disfarçado,

como alguns mais insistentes o pretenderam. O que se

procurava ferir era o poder moderador, isto é, o elemento

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central de coordenação dos diferentes órgãos do Estado,

elemento esse que tinha no príncipe a sua alta e solene

representação visual. A proposição de Zacarias de Góis sobre

os conselheiros da coroa, qualificando-os de “autores do poder

pessoal” e mostrando como esse poder existia nascente nas

mãos deles, deve ser hoje para nós de um grande valor

instrutivo. Os homens daquele tempo davam às coisas uma

significação que os políticos atuais já não conhecem. Senhores

de uma cultura profunda e sempre renovada, que as exigências

do seu meio político e social tornavam indispensável, quando

eles falavam de uma instituição ou de um fenômeno político

qualquer, logo e naturalmente os identificavam pelos seus

tipos clássicos. Bem sabemos quanto eles se inspiravam na

vida constitucional dos ingleses e como procuravam, pelo

estudo, fixar a espécie, o caráter histórico e jurídico dos

problemas de que se ocupavam. O que eles temiam, era que no

Brasil, por meio de uma tonificante evolução do Conselho de

Estado, viesse a instalar-se qualquer coisa no gênero daquele

governo dos “amigos do rei”, característico da época de Jorge

III da Inglaterra, que consistia num grupo de áulicos,

emboscado nos bastidores do trono, a manejar, contra a

opinião pública e o parlamento, o irresistível espantalho da

prerrogativa real.(31) Era esse o sistema que eles não queriam

e a cujo aparecimento se opuseram vigorosamente. Nele

consistia aquele misterioso e célebre “reposteiro”, ao qual

tanto e com tão irônica insistência se referiam nos seus

discursos parlamentares. Era enfim a velha e perigosa ficção

da “prerrogativa”, que se tornara necessário repelir e pôr fora

do alcance daqueles “autores do governo pessoal”, ainda

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mesmo descobrindo nesse esforço a pessoa legalmente

inviolável do imperador.

Mas, não nos esqueçamos de que o nosso Conselho de

Estado não era uma organização parasitária e extra-legal como

o foi o círculo palaciano de Lord Bute, na velha corte de St.

James, nem percamos de vista que Pedro II jamais revelou a

educação e os impulsos de Jorge III, o único rei da casa de

Hanover que ainda pretendeu restaurar na Inglaterra os

métodos anti-parlamentares, pelos quais perdeu a vida Carlos I

e foi expulso Jayme II, no tempo dos Stuarts. Tratava-se de

uma campanha essencialmente teórica, visando mais uma

probabilidade ou uma tendência d que um fato real existente. É

portanto indispensável saber ler certos trabalhos, no gênero da

“História Política Contemporânea”(32), do conselheiro Tito

Franco, e não aceitar incauto proposições como a célebre

“sorites”(33) do conselheiro Nabuco. O que se nota em Tito

Franco, com a sua criação do “Imperialismo”, é sobretudo o

desapontamento dos progressistas do conselheiro Furtado, pro

não terem conseguido, no gabinete de 31 de agosto de 1864,

conciliar as resistências dos liberais históricos com as

susceptibilidades do partido Conservador. Para compreender

tudo aquilo e interpretar a fragmentária citação e discursos

parlamentares, que constitui a maior parte do livro, é

necessário, por um conveniente esforço mental, nos

transportarmos às idéias e às lutas partidárias daquele tempo,

guardando muito mais das intenções que das palavras. A

sorites do conselheiro Nabuco, com pretensões a oferecer uma

síntese pitoresca da nossa vida constitucional, constava mais

ou menos do seguinte: - O imperador nomeia o ministério, o

ministério faz a eleição, a eleição forma a câmara, a câmara

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apóia o ministério, que obedece ao imperador. É uma frase de

espírito, sem dúvida excelente como recurso de oratória

parlamentar, mas destituída certamente de toda significação

prática efetiva. Nabuco de Araújo, senador, ex-ministro e

conselheiro de Estado, devia estar, no fundo, tão certo da

exatidão desse jogo de palavras, como o seu contemporâneo

José Antônio Saraiva, que, tendo ocupado os mesmos postos

na monarquia, afirmava depois da república, jamais haver

encontrado, em toda a sua carreira, o poder pessoal de Pedro

II. O poder pessoal não foi para a oposição liberal, como o não

fora anteriormente para os conservadores, uma convicção: - foi

apenas uma decisão. Deliberou-se tomar aquela fórmula

abstrata como base teórica de reação política e partidária, e os

que se propõem ainda hoje a demonstrar a predominante e

capital influência daquele poder no segundo reinado, como o

sr. Oliveira Viana no seu “O ocaso do Império”(34), o fazem

simplesmente para lisonjear o nosso sistema político atual,

repelindo as tradições liberais do Brasil e o próprio mérito da

democracia.

A tese de que a crise ministerial de 1868 tenha vindo

em conseqüência da tácita imposição militar contida no pedido

de demissão do Marquês de Caxias, imediatamente pressupõe a

hipótese de que, se o gabinete Zacarias ainda se conservou no

poder, de fevereiro a julho daquele ano, foi apenas à espera de

uma saída mais plausível e menos desairosa, do que aquela de

um mandato de expulsão intimado ao governo pelo comando

do exército. O primeiro ministro, para salvar as aparências,

teria assim combinado com o imperador e o Conselho de

Estado, guardar a posição ainda por algum tempo, apesar de

exautorado e virtualmente demitido. É preciso convir que, para

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o rijo caráter de Zacarias de Góis, teria sido o mais espantoso

e terrível dos sacrifícios...

Não se pode entretanto recusar que essa tenha sido no

momento a impressão de certos elementos liberais. Nos

pesados ataques de que foi alvo o Marquês de Caxias no

senado, após a queda do gabinete, principalmente por parte de

Silveira Lobo, Teófilo Ottoni e Francisco Otaviano, esse modo

de sentir parece realmente não deixar dúvidas. Mas o próprio

Caxias encarregou-se depois de demonstrar tudo aquilo como

falso e sem o menos fundamento, repelindo com energia a

injúria que naquela versão se continha contra a sua honra de

soldado, constantemente fiel aos seus deveres de disciplina.

Efetivamente, na sessão da câmara alta de 15 de julho de 1870,

ele, já de volta do Paraguai, elevado à extrema dignidade de

duque e reintegrado nas suas funções parlamentares, teve

ocasião de provocar sobre aquele ponto uma explicação tão

ampla e completa, que se viram todos os que o atacaram por

tal suspeita, na rigorosa obrigação de publicamente se

desculparem. Não podemos fugir à tentação de transcrever

aqui o trecho do seu discurso, no qual ele explicou os motivos

de consciência que o levaram ao pedido de demissão em

fevereiro de 1868, e o modo pelo qual o incidente foi por si

considerado como findo. Disse o antigo general em chefe:

“Julguei que o ministério, tendo-me confiado o

comando de nossas forças no Paraguai, exigindo de mim com

instância o aceitar essa comissão, sentia vexar-me em

exonerar-me dela, mas que, entretanto, desejara ver-se livre de

mim por motivos que de todo ignorava, mas que nem por isso

deixariam de existir para ele. Nesta persuasão (note-se que já

estava doente), dirigi uma carta particular ao sr. ministro da

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guerra, em que fazia minhas queixas por essas pequenas coisas

que me fizeram desconfiar e pedia a exoneração do comando.

Dizia ou comigo: se o ministro não está contente, me demite;

mas se estou enganado, se ele está satisfeito com os meus

serviços, recusa a demissão e então continuares a cumprir meu

dever enquanto minhas forças o permitirem ........... ..................

............................................................................. ..................

“O ministro recusou a demissão pedida; recebi

explicações que me satisfizeram completamente e continuei a

cumprir meu dever com a mesma dedicação e lealdade”.

Depois de contar assim toda a história do seu pedido de

demissão do comando do exército, o Duque de Caxias afirmou:

“O ministério de 3 de agosto deixou o poder a 16 de julho, por

motivos que eu inteiramente ignorava”. O seu discurso foi tão

claro, tão emocionante na sua generosa e profunda sinceridade,

que, quanto ele o terminou, o senado estava quase todo de pé.

Francisco Otaviano foi o primeiro a dar o sinal dos

estrepitosos aplausos que cobriram as suas derradeiras

palavras, e Silveira Lobo, num belo gesto de lealdade que bem

dizia do seu caráter franco e impetuoso, a ele se dirigiu,

começando por esta simples expressão: - Perdôe-me! ...

Zacarias de Góis não podia deixar de ser por diversas

vezes interpelado no correr da oração do ex-comandante do

exército. Caxias, fazendo notar que, antes da crise ministerial,

nunca ministro algum (textuais) lhe fizera os elogios que

recebera do nobre ex-presidente do gabinete de 3 de agosto,

estranhou que, depois de julho de 1868, ele também se tivesse

posto ao lado dos que, sem motivo, tanto o atacaram. Zacarias,

tendo imediatamente procurado responder em apartes, na

sessão do seguinte dia 18, dedicou todo um grande discurso ao

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esclarecimento das dúvidas reveladas pelo duque a tal respeito.

Se, depois de abandonar o poder, ele por vezes criticara

acerbamente a orientação do nosso comando em chefe no

Paraguai, não o fizera por atribuir-lhe responsabilidades na

queda do seu governo, Fora isto apenas devido ao modo pelo

qual, a partir da batalha de Lomas Valentinas, o comandante-

em-chefe e o próprio governo entraram a considerar a guerra

como terminada.

Efetivamente, depois dos sucessivos triunfos de Itororó,

Avaí, Piquiciri, Lomas Valentinas e Angostura, nos dias 6, 11,

21, 27 e 30 de dezembro de 1868, nos quais foi virtualmente

anulada a sorrateira manobra empregada por Solano Lopez

escapando de Humaitá pela ponta do Chaco com a maior parte

das suas forças, o general Caxias, já instalado na capital de

Assunção, fez publicar a ordem do dia 14 de janeiro de 1869,

na qual a nossa vitória era dada por definitiva e a guerra por

encerrada. No dia 3 de fevereiro seguinte o gabinete Itaboraí

por sua vez fazia aparecer no “Diário Oficial” uma

comunicação em que se lia: “O sr. Marquês de Caxias,

considerando finda a guerra e achando-se adoentado, havia

pedido a sua demissão e aguardava a decisão do governo

imperial, quando, no dia 17, estando a ouvir missa na matriz

de Assunção, foi acometido de um ataque de cabeça, que podia

ter sérias conseqüências, mas que, felizmente, cedeu aos

imediatos socorros da medicina”. Era eviden te que o governo

conservador estava a dispor as coisas para uma próxima

abertura de negociações de paz. Entretanto, o ditador

paraguaio, terrivelmente destroçado nos laranjais de Lomas

Valentinas, ainda conseguira fugir, para ir tentar uma última

reorganização de forças em cerro Leon. Ora, o tratado da

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Tríplice Aliança, negociado em Buenos Aires pelo liberal

Francisco Otaviano, ainda no governo Furtado, estabelecia que

o Brasil, o Uruguai e a Argentina só se ocupariam da paz,

conjuntamente, quando o governo de Lopez não existisse mais.

Lopez ainda se mantinha em armas no território do Paraguai.

Zacarias de Góis e o Partido Liberal não podiam portanto se

conformar com aquele modo de considerar o fim da guerra. Ele

parecia prematuro e incorreto, e os liberais tinham tanto mais

motivos de se alarmarem, quanto os conservadores nunca

esconderam a sua antipatia à política da guerra por eles

praticada. O próprio Visconde de Itaboraí, no início das

hostilidades, dera entrevistas de imprensa francamente

favoráveis a uma paz imediata, e o tratado de aliança merecera

dele e dos seus correligionários as mais ásperas censuras,

como as que ainda hoje se podem ler na “Vida do Duque de

Caxias”, de monsenhor Pinto de Campos, onde a cláusula de

um comando único, confiado em primeiro lugar ao presidente

Mitre, foi considerada como uma manobra inferior, destinada

apenas a afastar Caxias da direção das forças brasileiras.,

Explicava-se perfeitamente a atitude dos senadores liberais,

em face da ordem do dia de 14 de janeiro, e tanta razão tinham

eles de se oporem àquele ponto de vista, que o ministério

conservador acabou abandonando o seu apressado pacifismo,

para observar fielmente o tratado de aliança e prosseguir na

guerra até o seu termo previsto e necessário.

De Zacarias de Góis – sem dúvida o principal

interessado – não se poderá dizer que tenha pretendido atirar a

Caxias as culpas da crise na qual o seu gabinete sossobrou.

Não lhe teria sido possível com tanta segurança explicar, só

pelos motivos que acabamos de ver, as referências

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desvantajosas que fez ao general no correr de 1869, se

realmente guardasse contra ele aquela mágoa. Mas há ainda

um documento que só por si bastaria para completamente

inutilizar a hipótese do militarismo de 1868. É uma carta

escrita por Zacarias de Góis ao comandante das forças em

operações, em 4 de março daquele ano,(35) quando já estava

de todo encerrado o incidente do pedido de demissão do

general, na qual se encontram estas sugestivas expressões:

“E, pois que aludo à lealdade que folgo de reconhecer

em V. Exa., permita-me que aproveite o ensejo para dizer-lhe

que a mesma lealdade tem constantemente observado e

continuará a observar o governo para com V. Exa. Sei que

inexatas apreciações de uma parte da imprensa da Corte e

cartas particulares de pessoas que não conheciam a fundo as

coisas, abalaram em V. Exa. a persuasão de que continuasse

inalterável a confiança que determinou, em outubro de 1866, a

nomeação de V. Exa. para comandar as forças brasileiras em

operações contra o governo do Paraguai”.

“E felizmente um engano .......... ....................................

............................................................................................. ..

“Essa inteira confiança V. Exa teve-a ao partir, teve-a

enquanto circunstância extraordinária, imprevistas, retardaram

os golpes decisivos contra o inimigo, como tem-na hoje, que

tudo conspira a fazer acreditar que se aproxima o termo da

guerra sob a direção de V. Exa.”

“Falo assim porque tenho consciência de que, estudados

os fatos e reconhecidas as intenções para com V. Exa. é igual à

lealdade de V. Exa. para com o governo, não tendo jamais

variado a confiança que nos fez escolher a V. Exa. para tão

importante comissão”.

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Quem poderá suporque Zacarias de Góis houvesse

escrito tais coisas ao general Caxias, depois de haver, num

deprimente conchavo, aceitado sacrificar-lhe a existência e a

honra do seu governo? Nabuco, tratando do grande presidente

do gabinete de 3 de agosto, dele nos deixou, como um raro e

feliz modelo de representação literária, este alto e poderoso

perfil: “Não havia nele traço de sentimentalismo; nenhuma

afeição, nenhuma fraqueza, nenhuma condescendência íntima

projetava a sua sombra sobre os fatos, as palavras, o

pensamento mesmo do político. A sua posição lembrava um

navio de guerra, com os portalós fechados, o convés limpo, os

fogos acesos, a equipagem a postos, solidário, inabordável,

pronto para a ação”. Quem admitirá que este homem, o caráter

que aí se fotografa, tenha jamais descido àquela subalterna e

maculante transação?

A crise ministerial de 1868 não teve realmente nenhuma

relação efetiva com o incidente do pedido de demissão do

marquês de Caxias, incidente este aberto e de todo encerrado

cinco meses antes da data em que ela se produziu. Se dúvidas

a tal respeito existiram naquele tempo, elas foram inteira e

completamente destruídas nas sessões do senado de 15, 17 e

18 de julho de 1870, delas nada mais restando senão o

generoso caráter de exame geral de consciência daquelas

explicações a que deram ensejo. Não nos perturbemos com o

fato de cronistas como o sr. Batista Pereira(36) ainda hoje

pretenderam ressuscitar aquelas dúvidas. Eles procedem por

extensão retrospectiva da impressão que lhes causa o

predomínio dos militares nos primeiros anos da república,

tornando-se apenas vítimas de uma espécie de miragem dessa

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especial visão política hispano-americana, que ficou sendo

também a nossa, a partir de 1889...

Tem-se tentado fazer um certo cabedal de prova com a

circunstância de haver dito Zacarias, num dos seus artigos da

“Reforma”, em 1869, que estava escrito que a espada vitoriosa

nos campos do Paraguai traria no interior o triunfo do seu

partido. Porém, quem diz “estava escrito”, refere-se ao

destino, à fatalidade, a seja lá o que for, mas certamente não

procura estabelecer uma responsabilidade pessoal determinada

Zacarias de Góis, sem a mínima dúvida, recordava a luta que

se abriu em torno do poder, logo que este foi sendo cercado

pelas condições evidentemente vantajosas e por certo

invejáveis, de uma situação militar vitoriosa. Daí porém, a

dizer, que “foi a espada de Caxias que apontou a Zacarias a

escada pela qual se desce do poder”, como o faz o sr. Batista

Pereira, vai apenas a distância que medeia entre uma simples

figura de retórica e um fato real existente. É possível que o

Marquês de Caxias, ao endereçar ao ministro da Guerra em

fevereiro de 1868 a carta d seu pedido de demissão, o fizesse

por ter ficado deveras convencido de já por demais haver

sacrificado aos liberais o seu partido e a sua própria dignidade

de grande chefe conservador. Mas, se ele mesmo solenemente

negou àquele seu gesto todo e qualquer caráter de reação

política e partidária, se os seus contemporâneos mais

interessados no incidente, num tocante movimento geral de

sinceridade que constituiu um dos instantes mais belos do

nosso velho parlamento do império, aceitaram as suas

explicações e sem reserva as aplaudiram, porque insistir ainda

hoje numa suposição antipática e deprimente, em favor da qual

nenhum elemento novo de prova se apresentou?(37)

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Com toda segurança pode-se afirmar ser tão falso haver

sido Zacarias de Góis sacrificado aos brios militares do

Marquês de Caxias, quando é inexato ter ele caído por uma

imposição pessoal do imperador Pedro II. A verdadeira causa

da crise ministerial de 1868 foi a reação conservadora contra a

idéia da abolição, disfarçada na escolha de Sales Tooores

Homem ara o senado. O deputado Teixeira Junior, ao

pretender reabrir a questão abolicionista perante a câmara, em

julho de 1870, deixou esclarecido esse fato com perfeita e

absoluta evidência, na forma pela qual justificou aquela sua

iniciativa. Já não se tratava de considerações “de meritis”

sobre o problema do cativeiro, mas sim dos meios de remediar

à profunda e perigosa agitação lançada no espírito público,

com os projetos do governo anterior. Dizia o representante da

província do Rio de Janeiro: “A inserção da questão do

elemento servil na fala do trono trouxe para o Brasil grande

calamidade, porque a idéia da emancipação foi por diante,

sendo que ministros e representantes da nação, pobres e

abastados, todas as classes, em suma, apossaram-se dela”.

Apontando o grande mal que a reação conservadora, no

desfecho da crise ministerial, já não conseguira prevenir, o

deputado fluminense deixava bem patentes as razões pelas

quais fora Zacarias de Góis afastado do poder. Dias depois,

sendo as suas palavras, ainda com ares de censura, repetidas

num discurso do senado, Francisco Otaviano retorquiu com

veemência: - Mas é o elogio do gabinete”... Então o ex-

presidente do Conselho, na sua imperturbável e constante

serenidade obtemperou: “O ministério de 3 de agosto, quando

aventou a idéia da emancipação do elemento servil na fala do

trono, estudava a matéria; continuou a estudá-la, e, quando

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saiu, tinha o projeto pronto para ser apresentado às câmaras,

logo que cessasse a guerra”.

Foi para evitar aquela marcha tão rápida da abolição

que o Conselho de Estado resolveu combater a situação dos

liberais na câmara alta, arrebatando-lhe a cadeira de D.

Manoel de Assis Mascarenhas, como início de uma política

nitidamente conservadora, no preenchimento das outras vagas

ali existentes. Daí a retirada do gabinete, a dissolução da

câmara dos deputados e a vitória dos conservadores nas

conseqüentes eleições gerais, com resultado natural da furiosa

propaganda desenvolvida pelos agricultores, nos meios

capitalistas e comerciais urbanos, desde maio de 1867:

Mas, se a grande lavoura, ao favor do alistamento

eleitoral de critério econômico, conseguiu por um momento

levantar o conjunto dos interesses materiais contra a abolição

imediata, não lhe foi possível entretanto modificar a nova

consciência moral da nação, como também ressalta daquele

trecho do deputado Teixeira Junior. A câmara conservadora,

como produto eleitoral, representava apenas o terror de uma

ruína geral do snegócios. Os meios agrários haviam procedido

sobretudo por intimidação, vaticinando a suspensão imediata

da produção agrícola, como conseqüência do abandono dos

engenhos e das fazendas pelos escravos, a acarretar o

desmoronamento do câmbio monetário, a falência geral do

comércio e a desvalorização completa da propriedade. O

exemplo da emancipação nos Estados Unidos era habilmente

retomado, não nos seus aspectos finais, mas nos seus efeitos

intermediários de guerra civil e desmembramento nacional.

Prometia-se uma violenta revolta da propriedade rural contra

aquele esbulho dos seus direitos. Seria a desordem, o incêndio

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e o massacre no interior, a prenunciar a ruína total e a fome

nas grandes cidades. Seria o fim do império... Foi portanto no

pânico dessas emoções provocadas que se fizeram as novas

eleições gerais. A chapa conservadora fora sufragada ao

simples apertar dos cordões da bolsa. Dentro, porém, de alguns

meses, a grande opinião coletiva e popular tinha, com mais

calma, reagido. Tornou-se indispensável e necessário satis-

fazê-la de qualquer forma.

A corrente democrática, naquele atropelo, não deixou de

ressentir-se de algumas defecções. Diversos políticos, os ais

ronceiros da “nuance” progressista destacada do velho partido

conservador, dela se afastaram, no empenho de acautelar os

seus interesses de senhores rurais e proprietários de escravos.

Estes porém, não fizeram falta. A sua ausência foi muito mais

uma depuração do que um desfalque. O belo movimento de

solidariedade de princípios, provocado em torno do gabinete

demissionário no último dia da câmara de 1868, pela palavra

elegante e sugestiva do deputado José Bonifácio, não resultou

numa manifestação puramente platônica, e como tal não se

perdeu. O ano de 1869, graças à propaganda liberal, marcou

realmente o início de um dos períodos mais ativos e brilhantes

de toda a nossa história política.

Os primeiros esforços tentados pelos progressistas

isentos da eiva escravista e os liberais históricos no sentido de

uma reação prática partidária contra a violenta compressão

conservadora da crise de 1868, determinaram a publicação do

manifesto de 4 de maio de 1869, sob o qual pela primeira vez,

se confundiram intimamente os nomes principais daqueles dois

grandes ramos do Partido Liberal. Ao lado de Zacarias de Góis

e Nabuco de Araujo, a estrema-esquerda liberal, representada

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por Francisco Otaviano e Teófilo Ottoni, fazia-se dosar pela

cautelosa moderação do Conselheiro Furtado e do Visconde de

Paranaguá. Faltavam porém, Silveira da Mota e Silveira

Lobo...

O manifesto liberal de 1869 era um documento longo,

sabiamente argumentado. Era uma ampla e correta dissertação

doutrinária de feitio acadêmico, muito de molde a satisfazer o

círculo ilustre do Clube da Reforma,(38) mas destituído da

veemência e do desprezo de conseqüências, que seriam

necessários a uma verdadeira proclamação de combate. Como

programa de ação política, era de uma evidente exigüidade.

Estava perfeitamente de acordo comas grandes

responsabilidades políticas e sociais dos homens que o

firmavam, mas não conseguiu despertar a forte e numerosa

concentração partidária, que seria indispensável opor aos

conservadores vitoriosos. O documento político que devia

fazer vibrar com profunda e larga intensidade a alma popular

naquele momento, era outro. Foi o manifesto radical, lançado

nos primeiros dias do mês de novembro, com o novo jornal de

propaganda democrática, “O Correio Nacional”.

Os fundadores do “Correio Nacional” e autores desse

manifesto, foram Francisco Rangel Pestana e Henrique Limpo

de Abreu, dois jovens jornalistas liberais, que, desde 1865,

tinham-se feito na imprensa do Rio de Janeiro os mais

avançados propagandistas dos princípios democráticos. Rangel

Pestana, advogado de formatura recente, era discípulo e

companheiro de escritório do grande chefe liberal Joaquim

Saldanha Marinho, que se constituíra em defensor incansável e

extremado da liberdade dos africanos aqui introduzidos, de

contrabando, após a proibição do tráfico interoceânico de

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1850. Limpo de Abreu formara a sua mentalidade política ao

lado do seu pai, o visconde de Abaeté, que, ministro já em

1835, viera desde a época da Regência a prestar à nossa

evolução social o concurso da sua calma e constante atividade

de parlamentar e homem de Estado. Em 1865, aqueles dois

jovens democratas haviam fundado, com José Luis Monteiro

de Sousa, “A Opinião Liberal”, um outro jornal que reuniu em

sua redação os espíritos mais audazes daquela geração, como

Teófiloe Christiano Ottoni, José Maria do Amaral, Liberato

Barroso, Sousa Pitanga, Godoy e Vasconcelos e Felício dos

Santos. A “Opinião Liberal”, apesar de ter entrado em

oposição aos cautelosos métodos do progressismo, admitidos

por Zacarias de Góis até 1866, no fundo, nunca deixou de mais

ou menos inspirar-se nas idéias precisas e exatas do grande

chefe do gabinete de 3 de agosto. Quando, porém, a fala do

trono de 1868 lançou definitivamente a questão do elemento

servil, como base de programa governamental, os seus

redatores logo secundaram com entusiasmo a orientação do

gabinete, publicando o primeiro manifesto radical, onde as

idéias práticas da abolição já apreciam coordenadas nos

princípios gerais da antiga plataforma liberal. Em torno à

“Opinião Liberal” fundou-se então o esforçado núcleo de

propaganda política que tomou o nome de Clube Radical. Dada

porém, a verdadeira depuração das correntes liberais operada

pela idéia abolicionista, Rangel Pestana e Limpo de Abreu

partiram do seu antigo centro de atividade, onde se haviam

introduzido elementos evidentemente suspeitos como Martinho

Campos, para irem fincar a sua tenda muito mais adiante, nas

últimas vanguardas do liberalismo.

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O manifesto radical de 1869 teve a extrema felicidade

de condensar numa síntese clara e absolutamente completa

tudo quanto de aspirações liberais pudesse conter a

consciência brasileira daquela época. A sua parte propriamente

programa, continha-se toda em dezesseis artigos. Desses

artigos, os doze primeiros, dispostos em quatro negações as

quais se opunham oito afirmações nítidas e exatas, eram tudo,

eram a solução de todos os nossos problemas sociais e

econômicos, ou, pelo menos, a chave de todos eles. No

entanto, em nenhum deles poderiam ser contadas mais de seis

palavras! Tomemos o trecho final da introdução, onde se

resumia toda a explanação histórica e doutrinária contida nos

períodos anteriores para dá-lo aqui como preâmbulo

explicativo àqueles doze artigos:

- “Emancipemos: - o indivíduo, garantindo-lhe a

liberdade de culto, de associação, de voto, de ensino e de

indústria; - o município, reconhecendo-lhe o direito de eleger a

sua polícia, de prover as suas necessidades peculiares, de fazer

aplicação de suas rendas e de criá-las nos limites de sua

autonomia; - a província, libertando-a da ação esterilizadora e

tardia do centro, respeitando-lhe a vida própria, garantindo-lhe

o pleno uso e gozo de todas as franquezas com a eleição de

seus presidentes, de sorte que elas administrem-se por si sem

outras restrições além das estritamente reclamadas pela união

e interesse geral. Trabalhando por esse “desideratum” pro-

pugnemos pelas seguintes reformas:

ABOLINDO: O poder moderador; A guarda nacional;

O Conselho de Estado; O elemento servil.

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ESTATUINDO: Ensino livre; Polícia eletiva; Liberdade

de associação e de culto; Sufrágio direto e generalizado;

Separação da judicatura da polícia; Senado temporário e

eletivo; Derrogação de toda jurisdição administrativa;

Eletividade dos presidentes de província”.

Se temos bem em mente a recapitulação da nossa

história política feita até aqui, imediatamente nos apercebemos

de que este rápido programa continha em súmula fiel e perfeita

todas as reivindicações pelas quais se bateram os liberais

brasileiros desde a primeira constituinte de 1823, que armaram

o braço aos republicanos de Pernambuco em 1824, em nome

das quais agiram os revolucionários de 1831, e que tendo

vigorosamente clamado nas lutas do período da Regência, até a

guerra dos Farrapos, ali se apresentavam completadas em

todos os seus aspectos morais e econômicos pela indispensável

e necessária extinção do cativeiro. Pense-se no que de exato

significava a supressão do poder moderador com o seu

Conselho de Estado, a transformação do senado de câmara, de

senhores com direitos vitalícios, numa assembléia temporária,

livre e diretamente eleita pelo povo, considere-se no sentido

democrático e federativo que daria à organização geral do

império o reforço efetivo e prático da vida municipal e o

direito das províncias elegerem os seus governos – e

compreenda-se que a constituição de Pedro I ali não seria

apenas reformada: seria uma nova constituição, inteiramente

depurada do seu velho caráter de outorga real,para apresentar -

se claramente como a expressão voluntária e consciente de um

povo, de fato e de direito, soberano. Seria a república...

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O antigo núcleo da “Opinião Liberal”, escoimando-se

dos elementos atemorizados pela idéia da abolição imediata e

acrescido de um grande número de jovens inteligências que

então surgiram, veio muito mais numeroso reconstruir-se em

torno do programa do “Correio nacional”. Apareceram

Lafayete Pereira, Silveira Martins, Aristides Lobo, Salvador

de Mendonça, Flávio Farnese. Em São Paulo iniciou a sua

publicação “O Radical Paulistano”, com Luís Gama,

Bernardino Pamplona. Américo Brasiliense, Américo de

Campos, Glicério e Jorge de Miranda, enquanto da velha

Faculdade de Direito saía o concurso dos estudantes, trazendo

à propaganda liberal e abolicionista a pena preciosa e florida

de Rui Barbosa e o irresistível encanto da lira de Castro Alves.

Mas não foi apenas nos meios intelectuais e escolares

que se exerceu a larga e dominadora influência do programa

radical. Ela alastrou-se por todas as classes da população

urbana, não lhes sendo insensíveis nem mesmo os graves e

circunspectos signatários do manifesto de 4 de maio. É fácil de

compreender que, senadores e quase todos membros do

Conselho de Estado, não podiam estes propor a subversão de

uma das corporações de que faziam parte e a anulação

completa da outra, com a mesma facilidade com que o fizeram

Rangel Pestana e Limpo de Abreu. Basta, porém, considerar

nos incidentes da queda do gabinete de 3 de agosto, no que

eles se entenderam com a eleição senatorial de Torres Homem

e a correspondente ação do Conselho de Estado, para logo ver-

se que os líderes liberais e progressistas, afirma também

tinham de considerar aqueles dois pontos do programa radical

como legítimos e necessários. Teófilo Ottoni chegou mesmo a

ser tido como chefe ostensivo dos radicais. Nabuco não lhes

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dissimulava as suas simpatias e foram notadas as íntimas

relações que na época se estabeleceram entre Zacarias de Góis

e Rangel Pestana. A manifestação radical tinha afinal

conseguido que a propaganda democrática deixasse de

parcelar-se em dois programas distintos e de obtenção

sucessiva – o primeiro adstrito apenas a medidas de caráter

administrativo e à emancipação dos escravos, e o segundo

contido nas liberdades políticas dos antigos históricos – para

fundir-se num esforço único, tendendo à realização uniforme e

simultânea de todas aquelas aspirações, tomadas como partes

integrantes e inseparáveis de um só corpo de doutrina. A

democracia brasileira adotara a visão geral solidária, que

surpreendera a Zacarias de Góis nas angústias da crise

ministerial. Ela enfim concebera o seu plano ou a sua forma

ideal definitiva.

O manifesto de 4 de maio não obteve, como já vimos,

reunir sob uma mesma e única disciplina partidária, a

totalidade dos elementos contrários ao partido conservador. Do

ponto de vista administrativo, para fins de estatística e cabala

eleitoral, não foi possível estabelecer a concentração de todos

os liberais dentro de um só quadro diretor. Mas essa reunião

dos espíritos adiantados, que aquele documento não chegou a

provocar no terreno estritamente partidário, o programa radical

a conseguiu com muito mais segurança e eficiência no amplo e

claro domínio das idéias. A política liberal, sustentada de um

extremo ao outro do país, em numerosos jornais, em panfletos,

em conferências, em múltiplas organizações locais de grande

atividade, tornou-se, sem necessidade de boletins diretores ou

de ordens de serviço, tão poderosa e imperativa, que os

conservadores só se mantiveram no poder dali por diante com

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a tácita condição de obedecê-la. A organização constitucional

do país, servida pelo sistema eleitoral que já examinamos,

facilitou ao partido conservador a posse do poder. Ele teve

porém de aceitar contínua e progressivamente as idéias dos

seus adversários, nos últimos limites que, ao seu apego às

coisas estabelecidas, ainda permitiu a estrita manutenção da

ordem pública.

O Conselho de Estado, pelos diferentes elementos

partidários da sua composição, formava uma entidade coletiva

por demais bem equilibrada, para não compreender a perigosa

inutilidade de uma resistência intransigente e absoluta ao

princípio da abolição, em face da poderosa corrente em favor

desse princípio despertada pelo governo Zacarias de Góis. Os

conselheiros da coroa quiseram demorar, é certo, mas não

podia entrar nas suas deliberações a pretensão de

indefinidamente sustar o movimento emancipador. Ao próprio

gabinete Itaboraí foi sugerida a conveniência de uma

manifestação qualquer que não deixasse entender a questão

como fechada.(39) Esse conselho de prudência não pôde ser

atendido no auge da reação antiabolicionista que fora

precisamente a origem daquele governo. Desde porém que o

deputado Teixeira Junior, por um gesto de inteligente e

corajosa renúncia, veio denunciar do parlamento a verdadeira

temeridade da resistência, os chefes conservadores foram bem

forçados a se renderem ao ponto de vista do Conselho de

Estado. O Visconde de Itaboraí eclipsou-se, para dar lugar a

um novo ministério evidentemente conservador-abolicionista,

pois trazia, sob a presidência bem característica do Marquês de

São Vicente, a colaboração moderada e esclarecida de João

Alfredo e Sales Torres Homem. Esse governo não pôde ainda

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nada obter. Mas, em março de 1871, o conselheiro Silva

Paranhos, de volta do Paraguai, cercado do grande prestígio de

haver promovido a liquidação diplomática da guerra e elevado

à dignidade de Visconde do Rio Branco, chega por sua vez ao

poder.(40) A câmara estava fechada. Quando porém reabriu-se

o parlamento, no dia 3 de maio seguinte, revelou-se na fala do

trono o programa do ministério. O novo gabinete conservador

propunha-se a trazer as liberdades individuais reclamadas

desde 1862 pelos progressistas, e a retomar o problema do

elemento servil, no ponto em que o entregara à comissão de

estudos nomeada pelo gabinete liberal de Zacarias de Góis.

Os deputados compreenderam logo que o governo, com

clara determinação, os vinha colocar entre os interesses da

grande lavoura e os impulsos da opinião geral do país. Repelir

aquele programa ministerial, significava imediatamente aceitar

a grande prova de novas eleições gerais... Ora, o eleitorado,

profundamente trabalhado pelo elemento moral da propaganda

democrática e abolicionista, já não acreditava muito nas

profecias comas quais, dois anos antes, o intimidavam. Seria

talvez a queda do partido conservador e a entrega de tudo à

decisão precipitada e imprevisível de um novo governo de

liberais. As responsabilidades eram muito grandes e o futuro

por demais incerto...

A resposta à fala do trono, em termos que a pudesse

aceitar o ministério, só saiu, acerba e emperrada, no dia

primeiro do mês seguinte. Dali por diante, as sessões se

precipitaram num verdadeiro tumulto de consciências. Os

deputados, sob a direção sagaz e atropelante de João Mendes

de Almeida, pareciam votar assediados pela nação. Mas. ao

chegar o mês de setembro, o Visconde do Rio Branco, depois

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de obter a reforma do processo criminal de 1841. Arrebatava

daquela câmara, eleita pela reação escravocrata, a Lei do

Ventre Livre!

Tem-se pretendido sustentar que Zacarias de Góis opôs-

se, no Senado, à passagem da grande lei do Visconde do Rio

Branco. Não é verdade. Quando o projeto chegou aprovado

pela camada dos deputados, Zacarias de Góis logo declarou

que o votaria. Não podia entretanto eximir-se de criticá-lo,

para fazer ver que ele apenas representava, como aliás lhe

pareciam todas as outras reformas do gabinete, uma solução

falha e simplesmente protelatória. Realmente, isentando da

condição servil os filhos de mulher escrava nascidos dali por

diante, mas deixando-se até os vinte e um anos sob a tutoria

dos senhores, com a obrigação de prestarem serviços, a lei

necessariamente admitia a permanência da escravidão no

Brasil, ainda por duas gerações. Como o grande chefe liberal

no seu discurso se referisse ao parecer da comissão de estudos

que nomeara, o Visconde do Rio Branco lhe perguntou: “V.

Exa. aceita o parecer da comissão?” A pergunta não teve

resposta. Era precisamente aquele parecer que ali estava sendo

convertido em lei. Mas a muito tempo que Zacarias de Góis

fora levado a tê-lo por insuficiente. A medida justa a ser

adotada, deveria ir muito além do que conseguira prever

aquele trabalho. A nação, disse Zacarias, reclamava ansiosa

“reformas profundas e radicais”, e o partido conservador vinha

trazer apenas sombras de reformas...(41)

Quando o senador Sales Torres Homem proferiu o seu

grande discurso de encaminhamento final da votação, a câmara

alta, sem que o orador talvez o suspeitasse, recebeu dos seus

lábios a visão exata da grande oportunidade que se perdera.

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Arrebatado na sonora torrente da sua própria eloqüência,

Torres Homem pôs em tão claro e poderoso relevo a absoluta

incompatibilidade de qualquer forma ou modalidade da

escravidão com o sentimento nacional brasileiro daquele

instante, que no recinto vibrou com profundo e maravilhado

espanto esta exclamação: “Mas isto é a abolição imediata!...”

Zacarias de Góis deve ter pensado consigo mesmo: bem

poderia ter sido, certamente o teria sido, se a reação dos

senhores de escravos, determinando a crise ministerial de

1868, não houvesse trazido os conservadores ao poder. Assim

pensou ele desde que conheceu o projeto de lei concebido pelo

gabinete conservador – e nós não sabemos qual será a alma

adamantina e inquebrantável que sinceramente o possa

censurar por haver, nos seus discursos, revelado, com um

pouco de amargura, este pensar.

A lenda da oposição formal de Zacarias de Góis à lei do

ventre livre, faz parte desse tecido de inexatidões, através do

qual nos procuram fazer ver os homens e as coisas do segundo

reinado. De fato, seria impossível a um método de exposição

histórica que se destina a justificar por confusão de defeitos do

nosso regime político atual, deixar ver em toda a sua grandeza

um dos mais belos e impressionantes perfis daquele tempo. É

necessário diminuir as suas proporções, porque assim se terá

quebrado a harmonia do quadro geral da sua época, para tudo

reduzir à visão falsa e sem grandes perspectivas, que se torna

indispensável a uma perfeita conformação mental com o

presidencialismo. Quem não pode exalçar o objeto dos seus

cuidados, trata naturalmente de anular por nivelamento os

pontos de referência, para que se lhe não observe a exigüidade.

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Estas são as tendências que, mesmo insensivelmente,

levam os nossos cronistas republicanos a negar a Zacarias de

Góis uma grande consciência política, apesar dele ter sido o

estadista de visão objetiva e profunda, sob cujo programa

governamental vieram condensar-se, em 1867, todas as nossas

velhas aspirações liberais, para formar, através do programa

radical de 1869, a poderosa corrente de opinião que, mesmo

nos governos conservadores, devia conduzir a política geral do

Brasil, até os últimos dias da monarquia. “Vê-se que faltava a

Zacarias a mentalidade de um estadista”, diz por exemplo o sr.

Oliveira Viana.(42) E esse conceito fácil e displicente, parece

tão natural, tanto agrada e se ajusta à mentalidade corrente,

que o sr. João Pandiá Calógeras, antigo parlamentar e ex-

ministro o adota em conferência pública, repetindo com

particular veemência: “Personagem de segunda plana... cabo

eleitoral... nunca seria e nunca foi homem de Estado”.(43)

Uma tal rudeza de expressões, na boca de alguém com

as responsabilidades políticas e intelectuais do sr. Pandiá

Calógeras, em se tratando de um dos vultos mais nobres e

respeitáveis da nossa história, é deveras surpreendente. Mas

não nos espantemos em demasia – porque há circunstâncias de

ordem moral, que de todo inutilizam os nossos políticos atuais,

para qualquer juízo exato sobre os grandes homens da

monarquia.

NOTAS

(31) Vide a História Constitucional da Inglaterra, de T. Erskine May, vol.

I, cap. I. Jorge III foi mesmo considerado como o modelo da reação

autoritária nos últimos anos do século XVIII e nos primeiros do século

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XIX. Assim ele aparece nos “Ensaios sobre o governo popular”, de

Summer Maine, nos “Estudos de Direito Constitucional”, de Boutmy, e

nas “Fontes da Constituição dos Estados Unidos”, de Stevens.

(32) O Conselheiro Francisco José Furtado – Biografia e estudo de

História Política Contemporânea , pelo Conselheiro Tito Franco de

Almeida – E. de H. Laemmert, editores, Rio de Janeiro, 1867.

(33) Sorites, genitivo sorita . Segundo Constâncio, “Argumento que

contém muitas proposições acumuladas umas sobre as outras”.

(34) Vide a edição da Comp. Melhoramentos de São Paulo.

(35) Correspondência trocada entre a presidência do Conselho e o

comando brasileiro no Paraguai, sobre um oferecimento de fundos feito

diretamente ali pelo banqueiro Mauá, em dezembro de 1867, para

pagamento dos soldos do exército e da esquadra, Mauá que estava em más

relações com o gabinete liberal, pretendia dar assim uma lição a Zacarias

de Góis, suprindo com a sua capacidade financeira os defeitos que dizia

existirem na nossa pagadoria militar em Buenos Aires. Caxias recusou,

afirmando que o governo jamais deixara faltar coisa alguma às tropas de

seu comando, e fazendo sentir a Mauá quanto o seu oferec imento, pelo

canal que emprestara, tinha de desusado e incorreto.

(36) Vide A queda de Zacarias, do sr. Batista Pereira, do Jornal do

Commercio do Rio de Janeiro, de 30 de outubro de 1927.

(37) Os últimos defensores atuais da tese do militarismo de 1868, mesmo

sem o dizerem, muito se inspiraram nas Reminiscências, do Visconde de

Taunay, publicadas depois da república e reeditadas ultimamente pela

Companhia Melhoramentos de São Paulo. É preciso notar, porém, que o

fino romancista da Inocência e brilhante cronista militar da Retirada da

Laguna, não se revela nas Reminiscências um historiador, com as

qualidades de análise sempre indispensáveis ao exercício eficaz desta

função. No seu livro, o que se nota, sobretudo, é a perene mágoa que lhe

causou o golpe de 15 de Novembro, pelo caráter de injustiça que nele

descobriu o seu grande afeto pelo velho imperador. Ali falaram mais os

sentimentos afetivos do que a pesquisa histórica. Aliás, Taunay,

gentilhomem da corte e antigo membro do estado-maior do Marechal

Conde d‟Eu, não esconde as suas preferências pelo poder pessoal, como

verdadeira e indefectível expressão do Estado, exagerando, naturalmente,

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por essa velha tendência do seu espírito, a ação direta de Pedro II sobre os

negócios do seu tempo. Os fatos, confusos e mal relacionados, são ali

apresentados muito mais como o autor desejaria que eles fossem do que

realmente como se deram.

(38) O Clube da Reforma foi o centro no qual se congregaram os vultos

maiores do Partido Liberal, após a crise ministerial de 1868 . Dali partiu o

jornal A Reforma no qual escreveram Zacarias, Nabuco, Paranaguá e

quase todos eles.

(39) Zacarias de Góis, nas Questões Políticas, cap. I, chega mesmo a

dizer que o ministério de Itaboraí, como o que se lhe seguiu do Marquês

de São Vicente, tinha o encargo de resolver de alguma forma o problema

do elemento servil.

(40) O fato de Paranhos, que tão mal tratado foi pelos progressistas à

volta da sua primeira missão no Prata, ter sido encarregado de representar

novamente o governo imperial no final da longa questão que começou no

Uruguai, com a revolta de Florez e terminou no Paraguai, com a morte de

Solano Lopez, também é lembrado como uma prova do poder pessoal de

Pedro II. Dizem os que sustentam a tese desse poder no segundo reinado,

que o imperador quis daquela forma reparar a injustiça praticada pelo

gabinete Furtado em 1865. É preciso não esquecer, porém, que Pedro II

jamais dispôs das comissões oficiais para distribui -las como vantagens ou

favores individuais a quem quer que fosse, como hoje se dá com os

presidentes da República. Rio Branco voltou ao Prata devido à excelência

do seu trabalho na primeira missão, depois publicamente reconhecida,

combinada com a circunstância de encontrar -se o seu partido no poder ao

fim da guerra. Foi um caso de interesse político geral, e não um incidente

de conveniência individual ou de amabilidade pessoal do chefe de Estado.

(41) Vide Questões Políticas, já cit., cap. I.

(42) O Ocaso do Império , pág. 18.

(43) Conferência proferida perante o Instituto Histórico e Geográfico de

São Paulo, a 6 de setembro de 1928, publicada em dois ou três números

seguidos do Estado de São Paulo daquela época, e reproduzida em parte

na revista A Defesa Nacional, do Rio de Janeiro, nº 178, do mês de

outubro.

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CAPÍTULO VIII

A ABOLIÇÃO

No estudo que aqui vamos conduzindo, o que

principalmente nos interessa é o sentido geral dos

acontecimentos, tomados no seu conjunto, segundo as épocas,

e não as considerações de detalhe, que mais particularmente se

liguem a um certo fato ou a uma pessoa determinada. Se nos

demoramos um pouco mais na crise ministerial de 1868,

ensaiando ao mesmo tempo uma restauração do perfil histórico

de Zacarias de Góis, foi por uma necessidade de exatidão, à

qual imediatamente veio prender-se um natural e espontâneo

sentimento de justiça. Era um esforço indispensável, a não

termos de aceitar como um enigma abstruso e desgracioso,

também por nossa vez, um dos trechos mais interessantes da

nossa história política. Mas, trazendo à sua justa evidência a

ação inicial de Zacarias de Góis no movimento emancipador,

não foi nossa intenção separas os homens públicos do segundo

reinado em abolicionistas e escravocratas, como se os

atribuíssemos, respectivamente e sem remédio, aos dois

princípios opostos e absolutos do bem e do mal. Praticamente

seria ocioso, sem oferecer o mínimo interesse de ordem moral.

O que nos importa conhecer no seu conjunto, é a forma pela

qual a sociedade brasileira se comportou em face do problema

do cativeiro, e as conseqüências que daí vieram a nossa

evolução política geral.

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Não deixa de impressionar a quem por alto examina a

história dos povos americanos, a circunstância do brasileiro ter

sido o último a banir do seu território a imensa tristeza da

escravidão. Entretanto, se aqueles que por tal atraso ainda nos

condenam, observarem que o Brasil não herdou, do velho

regime colonial do trabalho, nem o feroz preconceito de raças

dos Estados Unidos, nem o sistema de castas que ainda hoje

aflige em grande parte a vida hispano-americana, talvez não

encontrem grandes dificuldades em rever a tal respeito as suas

idéias. O nosso processo foi certamente o que melhor se

adaptava às nossas condições sociais, se não lhe bastar o

evidente caráter de ter sido o mais racional e o mais humano.

Seria preciso saber, antes de mais nada, se ao Brasil teria sido

possível imitar as nações do continente, que fizeram da

abolição uma subseqüência mais ou menos imediata da

independência política.

Com a calma e a isenção de ânimo que só o tempo sabe

trazer aos juízos humanos, seria necessário estabelecer isto

com exatidão, para vermos depois se realmente poderíamos

haver conseguido uma emancipação anterior, ou mesmo

contemporânea, da dos Estados Unidos.

Em relação ao grave e doloroso problema da escravidão,

os povos do Novo Mundo, ao se separarem das metrópoles

respectivas, viram-se, pela própria força das suas condições

sociais e econômicas, colocadas em dois grupos distintos e

bem caracterizados. De um lado estavamos países como a

Colômbia, a Venezuela, o Peru ou as províncias argentinas,

que, sem trabalho agrícola solidamente organizado e ainda

incipientes nos seus aspectos econômicos, não encontraram

dificuldade em libertar o número de escravos relativamente

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reduzido que possuíam. Não havia grandes e profundos

interesses materiais, a se oporem a essa obra de dignificação

nacional, de maneira que a abolição do cativeiro pôde, nesses

países, decorrer da própria noção da liberdade civil, obtida

com a independência do território. De outro lado, porém,

estavam as nações que, sobre a base de uma numerosa mão-de-

obra escrava, já haviam na independência atingido um

considerável desenvolvimento agrícola e comercial, como era

o caso do Brasil e dos Estados Unidos.

É fácil de compreender que os mesmos motivos de

ordem econômica que facilitaram a abolição nos países do

primeiro grupo, dela fizessem, nos do segundo, uma questão

espinhosa e extremamente irritante. Aí a extinção imediata do

cativeiro ameaçava de frente os interesses locais mais

poderosos e bem organizados.

Nos Estados Unidos, entretanto, encontraram-se certas

condições de natureza geográfica e, principalmente, geológica,

que não só foram desde o início colocando aquela questão em

termos mais vantajosos, como depois lhe trouxeram uma

rápida e violenta solução definitiva, como vamos ver.

Enquanto os estados do Sul, magnificamente dispostos

para as culturas tropicais e com toda a sua riqueza nas grandes

plantações servidas pelo trabalho dos negros, tornavam-se o

centro mais forte e irredutível do escravismo, nos estados do

Norte, de clima diverso e mais propício às culturas européias,

a influência de colonos livres foi assentando a economia geral

sobre interesses mais humanos e elevados. As considerações

morais – apesar de não excluírem a hostilidade étnica – aí

prevaleceram. O resultado destas predisposições do Norte foi

que, em 1817, já existiam oito Estados onde, ou a escravidão

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havia sido de todo extinta, ou os mais sérios embaraços e

restrições lhe haviam sido criados. Assim deviam manter-se as

coisas até 1861. Mas, nesse meio tempo, o aparecimento de

grandes jazidas de ferro e carvão de pedra no território da

União, justo quando no mundo se revelava a grande metalurgia

moderna, determinou a formação de um poderoso concurso de

interesses industriais, que, por sua própria natureza, tinham de

entrar em luta com o velho regime de trabalho das plantações.

Ninguém que se tenha, mesmo ligeiramente, ocupado

com assuntos de História e Sociologia, ignora a profunda e

poderosa influência que ao acidentes geológicos, de grandes

conseqüências industriais, sempre tiveram na evolução das

sociedades humanas. Descoberta a utilização em grande escala

de um determinado minério, está mudado o cenário do mudo

em favor dos povos que o possuem. As minas de cobre da

Espanha, unidas às minas de estanho das Ilhas Britânicas e dos

montes da Bohemia, fizeram da Europa, dez séculos antes da

nossa primeira era histórica, um vasto império do bronze, sob

essas luguras, cujos perfis já nem nos recorda a arqueologia,

mas cuja língua ainda hoje falamos, na nomenclatura dos rios,

das florestas e das montanhas, entre as costas portuguesas do

Atlântico e o Vale do Danúbio. O caldeamento do ferro deu

depois aos celtas, com a primitiva posse das minas de Styria,

da Carniola e da Coríntia, o domínio completo de toda a

metade ocidental do mundo antigo. “Regiões pobres até então,

e de importância secundária, populações conservadas obscuras,

tomaram subitamente a preponderância, pelo simples fato de

possuírem o ferro.”(44)

Reconhecida essa constante influência da composição

geológica do solo sobre os aspectos sociais dos povos, não os

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admiremos de que simples condições mineralógicas tenham

podido, nos Estados Unidos, decidir mais cedo da sorte do

cativeiro. No momento em que a combinação da hulha com o

minério de ferro nos altos fornos, logo seguida da máquina a

vapor, vinha tão poderosamente transformar a economia do

mundo, os norte-americanos não podiam fugir à necessidade

de adaptar o seu regime geral do trabalho ás maravilhosas

condições técnico-industriais que as suas minas lhe ofereciam.

A mão-de-obra escrava, limitada à sua evolução puramente

vegetativa pela abolição do tráfico transoceânico, podia bastar

aos plantadores do Sul. Mas não poderia ser jamais suficiente

aos industriais do Norte. Estes anteviam a imensa prosperidade

que brotaria daquele solo maravilhosamente dotado, ao contato

de uma poderosa corrente de trabalhadores europeus.

Não há porém como assegurar uma numerosa imigração

livre par um país em cujos limites ainda existe a escravidão,

ou mesmo coisa que com ela se pareça. Os hábitos e as

atitudes do senhor dos escravos tornam o próprio ambiente

ultrajante. Foi necessário portanto limpar a América ime-

diatamente do cativeiro, formando-se assim o irresistível

concurso de interesses industriais, no qual a política

abolicionista do presidente Abrahão Lincoln pôde encontrar

apoio moral e recursos militares, para vencer o egoísmo

rotineiro e desumano dos “Cotton Staes”.

Foram essas condições naturais e econômicas, a

reagirem poderosamente sobre o meio social americano, que

determinaram a guerra de secessão e abolição precipitada e

total dos escravos nos Estados Unidos.

No Brasil, entretanto, nada disto se verificou. De um

extremo ao outro do nosso território, com exceção apenas das

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regiões pastoris que não careciam de mão-de-obra,

predominou o regime econômico da Virgínia ou da Geórgia,

inteiramente baseado na exploração do braço escravo. Nenhum

interesse material considerável pôde ser oposto às

conveniências dos barões fazendeiros e senhores de engenho,

que eram os reguladores de fato da nossa economia geral. Se o

governo do Rio de Janeiro tem pretendido imitar a política

decidida e enérgica do presidente Lincoln, os dias do império

estariam talvez contados, com todas as desastrosas

conseqüências para a unidade nacional, que então atribuíamos

a essa eventualidade. Não dizemos que o escravismo houvesse

aqui triunfado em definitivo e de uma maneira completa. O

sentimento popular, profundamente liberal e abolicionista,

como já vimos, o não teria afinal permitido. Mas, sem a forte

base de reação que o presidente americano encontrou na

grande metalurgia da sua terra, o nosso governo central não

teria tido elementos para manter-se, e muito menos para

restabelecer a unidade nacional, quebrada pela guerra civil. A

nossa secessão, muito mais numerosa pela dispersão dos

núcleos populosos, teria talvez sido irremediável.

A questão do elemento servil teve, portanto, de entrar

para o programa geral de preparação política, que foi a missão

histórica do segundo reinado. Sem podermos acabar

imediatamente com a escravidão, tratamos de acabar com os

escravocratas. A ação do gabinete Zacarias de Góis não

chegou, é certo, ao seu fim procurado; mas tornou-se o início

de um movimento geral de opinião, tão claro, livre e

consciente nas suas manifestações, como igual não se conhece

na história de nenhum dos outros povos americanos. Foi uma

verdadeira campanha de humanidade. Na imprensa, no

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parlamento, na praça pública, nos clubes políticos, nas igrejas,

nas escolas, no seio das famílias, por toda parte, abriu-se uma

propaganda devotada e tenaz, na qual se pedia aos senhores de

escravos, em nome dos altos interesses morais da nação, que

se resignassem apenas ao abandono imediato dos seus direitos

legais sobre os cativos. naturalmente, a esta corrente,

estabeleceu-se logo, como era inevitável, a oposição

correspondente. Mas, se esta oposição, pelas suas origens,

representava o interesse prático e material dos proprietários

rurais, nos meios políticos e parlamentares ela jamais foi

aceita no mesmo terreno. Aí, tratou-se apenas de uma questão

de ordem pública e segurança do império. Foi uma

preocupação moral, como o não pode deixar de ser o

patriotismo, que regulou portanto todas as atitudes dos nossos

parlamentares e homens de governo.

O fato da câmara eleita pela reação de 1868, ter sido a

mesma a votar a lei do ventre livre, em 1871, mostra bem o

terreno no qual os nossos políticos souberam, desde o

princípio, colocar o problema do elemento servil. Resistir ou

ceder à corrente emancipadora, ficou sendo para eles um caso

de simples oportunidade, pois, no fundo, todos eles estavam

certos da absoluta necessidade moral da abolição. Entretanto, a

adoção da grande reforma Rio Branco veio dar a muitos, tanto

conservadores como liberais moderados, a i lusão de que a

política estava quites com o abolicionismo. Desde que o

contingente de escravos existente não podia mais ser

reformado pelos nascimentos, o tempo se encarregaria do

resto...

Efetivamente, entre 1872 e os últimos dias de 1877, a

nossa política geral parece dominada pela preocupação de

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evitar qualquer reabertura de discussão em torno às idéias

liberais. O advento de um governo presidido pelo Duque de

Caxias, em 1875, poderia ser mesmo tomado como o sinal

evidente de uma deliberação em tal sentido, pois teve como

destino marcar um largo tempo de parada ou de repouso no

nosso avanço para a democracia.

Não se deve porém dar uma exagerada importância

àquelas auras de reação. Os círculos do Conselho de Estado

sentiam muito bem a poderosa evolução que continuava a

processar-se nas camadas profundas da nacionalidade. O

próprio Caxias, declarando no discurso de apresentação do

gabinete, no dia 25 de junho, que vinha para ser “moderado e

justo, observando religiosamente as leis e resolvendo as

questões internas com ânimo desprevenido”, logo voltou as

suas vistas para as leis eleitorais, de que já se ocupava o

governo anterior, procurando assegurar na representação das

minorias, um contato mais fiel e constante do governo com as

diferentes faces da opinião. O que se dava realmente, era que o

nosso país não se tinha ainda adaptado perfeitamente às novas

condições gerais, surgidas ao fim da campanha do Paraguai.

Para que o governo imperial pudesse guardar a conveniente

autoridade nas negociações internacionais daquele momento,

era-lhe indispensável uma grande liberdade na política interna.

Desde, porém, que os negócios decorrentes da guerra foram

convenientemente regulados, sobretudo pela substituição do

tratado de paz argentino-paraguaio por outras disposições mais

de acordo com as nossas vistas, a missão do gabinete Caxias

estava virtualmente terminada. Tendo ainda encerrado a luta

religiosa da questão dos bispos, pela concessão da anistia aos

prelados nela implicados, e reorganizado sobre novas bases a

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força militar do império, o governo conservador retirava-se

nos primeiros dias de janeiro de 1878, para dar lugar ao

gabinete liberal do visconde de Sinimbu.

Se o leitor tem observado com atenção, terá visto que o

nosso regime eleitoral da monarquia adaptou-se tão bem às

condições gerais do país que chegou a fornecer sempre um

exato denominador comum das nossas várias correntes de

opinião. O processo indireto da eleição de dois graus, apoiado

inicialmente no alistamento selecionado, constituía um tríplice

sistema de comportas, através do qual o sentimento nacional

atingia o parlamento e o governo, no seu mais justo e perfeito

equilíbrio. Em absoluto, não se poderia dizer que aquele fosse

o ideal, pois não admitindo o embate universal e simultâneo de

todas as opiniões, no plano imediato e precipitado da eleição

direta, naturalmente atenuava esse caráter de grande comício

popular, que devem ter sempre os pleitos eleitorais. Mas não

se pode negar que ele tenha sido extremamente hábil, pois, se,

de certa forma, funcionava como aparelho de contenção,

também as modificações que lhe foram sendo introduzidas,

poderiam ser marcadas pelas diferentes etapas do nosso

progresso social. Fornecendo parlamentos que

irredutivelmente se opuseram aos governos ditatoriais do

primeiro reinado e da Regência, ele, no segundo reinado,

conseguiu rigorosamente condicionar, tanto a revolução liberal

como a reação conservadora, à estrita e constante manutenção

da ordem material.

É claro que uma instituição, por mais evolutiva que

seja, pode sempre chegar a um momento em que não

corresponda mais às necessidades do espírito público. A partir

da crise ministerial de 1868 e das eleições que lhe seguiram,

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tornou-se evidente que o processo eleitoral já não tinha

condições para estabelecer o justo equilíbrio entre os meios

dirigentes e os impulsos da opinião geral. A câmara de 1871,

ao votar a lei do ventre livre, era francamente forçada a perder

o contato com o eleitorado que a nomeou, para atender

diretamente à grande voz popular que se levantava muito além

do estreito quadro do alistamento. Foi certamente uma grande

felicidade que se encontrasse o gênio político do Visconde do

Rio Branco, para conduzi-la àquele resultado. Mas não seria

possível acreditar na repetição indefinida de tais soluções. O

fato do parlamento, encerrado em outubro de 1877, só poder

reabrir-se em dezembro de 1878, após uma preventiva

dissolução da câmara dos deputados no mês de abril, mostra

vem as dificuldades que se vinham acumulando e as perigosas

circunstâncias a que o país poderia ser levado, se não se

atendesse rapidamente àquela situação.

Foram estas considerações que determinaram o

programa do gabinete Sinimbu. Era indispensável quebrar a

espécie de separação estanque em que o sistema eleitoral se

constituíra entre a nação e o seu governo. Em torno deste

programa fizeram-se as eleições de 1878, e ao abrir-se o

parlamento, no dia 15 de dezembro, a fala do trono acentuava

com exatidão: “Reconhecida a necessidade de substituir o

sistema vigente pela eleição direta, cumpre que, mediante

reforma constitucional, a decreteis, a fim de que o concurso de

cidadãos devidamente habilitados a exercer tão importante

direito, contribua eficazmente para a realidade do sistema

representativo”. Cinco dias depois, o Visconde de Sinimbu,

falando aos deputados, mais diretamente, vinha dizer-lhes:

“Creio não haver neste país quem desconheça que, nas

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circunstâncias atuais, com as provas repetidas que temos tido,

as nossas instituições não podem marchar com segurança para

um futuro tranqüilizador, se não conseguirmos efetuar a

reforma eleitoral pelo sistema de eleição direta.”

Aquela câmara havia tacitamente recebido um mandato

especial para aquele fim. Apesar da sua composição restrita e

selecionada, o eleitorado, fundamente trabalhado desde 1869

pelapropaganda radical, não pudera fugir ao sentimento geral

do país. A pressão da grande opinião popular fora tão forte,

que a separação estanque a que nos referimos tornara-se

permeável. Mas quando a reforma eleitoral, votada pela

câmara chegou ao senado, no início de 1880, aí ainda a

esperava a reação conservadora.

O Visconde de Sinimbu não se julgou com forças para

vencer a resistência dos senadores. No próprio interesse da

reforma, a retirada do gabinete lhe pareceu indispensável, nada

podendo melhor dizer dos seus sentimentos naquele instante,

do que a carta que então dirigiu ao conselheiro José Antonio

Saraiva, chamando-o a substitui-lo no governo. Esta carta, que

Saraiva recebeu na Bahia, onde se achava, no dia 4 de março,

dizia assim:

“Sua Majestade, no pensamento de evitar, quanto se

possa, repetidas eleições, honrando a V. Exa. com a mais plena

confiança, encarrega-me de me dirigir a V. Exa. para consultá-

lo se pode V. Exa., nas atuais circunstâncias, prestar um

grande serviço ao país, assumindo a direção dos negócios

públicos, com o intuito de obter do senado o projeto de

reforma, com as bases com que foi adotado pela camada dos

srs. deputados, poupando-se a dissolução desta.

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“V. Exa. sem dúvida terá lido o último discurso que

sobre a reforma proferi no senado; aí fiz novas concessões,

Tais foram: a maioridade civil para gozo dos direitos políticos

e capacidade dos católicos.

“O novo projeto poderá conter essas concessões e assim

se tornará talvez mais aceitável, opiniões estas que creio serem

também as de V. Exa”.

Note-se que a oposição do senado, à primeira vista, não

se dirigia especialmente contra o sistema de eleição direta. O

que aparentemente repugnava aos senadores era a feição de

reforma constitucional que o projeto da primeira câmara trazia,

envolvendo questões de liberdade religiosa e de consciência.

Era esse o ponto no qual eles resistiam, tendo arrancado a

Sinimbu aquela concessão da “capacidade dos católicos”, que

significava apenas só poderem ser votados os cidadãos adeptos

da religião oficial. Mas no fundo, todos sentiam muito bem

que era uma transformação completa do país o que estava em

jogo naquele momento, compreendendo todas as antigas

aspirações do liberalismo histórico e as idéias do período

governamental de Zacarias de Góis, tudo junto, como depois

se consolidara no programa dos radicais. Bastara abrir uma

brecha, e a corrente se precipitaria. Quando Saraiva percebeu o

governo nas mãos de Sinimbu, os mais alarmados não se

privaram de lhe abrir bem os olhos sobre aquele temeroso

aspecto do conjunto. Era a revolução!... Mas o novo presidente

do conselho muito vem o sabia. Era precisamente por sabê-lo

que ele ali vinha procurar um terreno de conciliação – pois

muito mais sensato era avançar para ela legalmente, do que se

deixar por ela surpreender.

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Mesmo de um rápido exame da atividade política

brasileira, desenvolvida de janeiro de 1878 a junho de 1881,

logo se percebe que a grande preocupação dos gabinetes

Sinimbu e Saraiva consistiu toda em evitar que a vaga

democrática, resultante com temos visto da nossa própria

evolução histórica, pudesse chegar ao seu instante final de

deflagração sem encontrar no nosso aparelho político e

constitucional os meios de pacificamente canalizar-se para o

terreno das soluções legais. Quando Sinimbu iniciou em 1878

o seu esforço nesse sentido, o anseio pelas reformas decisivas

aumentava cada vez mais na consciência coletiva, sem

entretanto poder, pelos motivos já examinados, ecoar com

força no seio do parlamento. Dado porém o caráter da reação

democrática da seguinte eleição legislativa, em 1879 a

situação já era outra. Apenas aberta a discussão sobre a

reforma eleitoral, logo na câmara se manifesta, com Saldanha

Marinho, Joaquim Nabuco, José Mariano, Rui Barbosa,

Jerônimo Sodré, João Brígido, uma extrema esquerda

democrática, tão ativa e inpetuosa como aquela de 1861 a

1867, em que figuravam Teófilo Ottoni, Francisco Otaviano e

Silveira Lobo, mas certamente muito mais segura nos seus

propósitos, pela coordenante intervenção anterior do

radicalismo. Primeiro, é a sonora e grande voz de Joaquim

Nabuco, a exigir, em nome da própria lógica dos princípios,

que a reforma não se restrinja apenas ao processo eleitoral,

mas seja a reforma constitucional completa, capaz de cobrir

todas as velhas aspirações do liberalismo histórico. Logo em

seguida vem o representante baiano Jerônimo Sodré a recordar

que, sem compreender a abolição total do elemento servil,

nenhum programa de governo liberal podia ser legítimo nem

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sincero. O gabinete Saraiva consegue afinal, em janeiro de

1881, fazer promulgar a lei do novo processo eleitoral, que

conciliando as vistas do senado com os da câmara, evitava a

reforma constitucional. Mas a situação parlamentar tinha-se-

lhe tornado extremamente difícil. Joaquim Nabuco, com os

veementes aplausos de toda a esquerda liberal, respondera à

iniciativa de Jerônimo Sodré. A campanha pela abolição total

imediata, que de 1871 até ali andara apenas na grande alma do

povo, viera colocar-se enfim dentro do parlamento,

imediatamente em face do governo. Saraiva, embaraçado na

execução da lei eleitoral, obtém o adiamento da assembléia

geral para 15 de agosto. Mas o simples adiamento era, como

solução, muito precário. A necessidade de evitar que aquela

câmara voltasse a reunir-se foi-se tornando patente,. No dia 30

de julho, o adiamento era revogado, para dar lugar ao decreto

final de dissolução.

É claro que o conselheiro José Antônio Saraiva, em

princípio, não podia ser contrário à abolição. Mas ele via

claramente que o momento de obtê-la, sem profundos abalos

para a nação, não chegara ainda. A maioria da câmara não

escondia a sua impaciência ante os intrépidos e eloqüentes

apelos de Joaquim Nabuco. No senado não era certamente

mais propícia a atmosfera. Era preciso esperar. Era

indispensável dar à reforma eleitoral o tempo de produzir os

seus efeitos, trazendo grande opinião popular, em maioria, ao

seio do parlamento. O único resultado da iniciativa Sodré-

Nabuco, que ao governo liberal se afigurava, era o de acordar,

sem resultado prático provável, a desordenada e perigosa

exaltação das ruas.

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O decreto de dissolução de 30 de junho, convocava a

nova câmara, em sessão extraordinária, para o dia 31 de

dezembro. A lei Saraiva, a exemplo do que se dera com a

reforma eleitoral de Honório Hermeto, na sua primeira

aplicação não operou imediatamente no sentido que lhe

quiseram dar os seus promotores. Graças ao intenso esforço

desenvolvido por aqueles que, no problema da abolição,

pretendiam deter-se indefinidamente na lei do ventre livre, a

eleição de 1881 deu em resultado uma câmara cujo espírito de

moderação excedia a todas as previsões. Nela, quase não se via

mais nem um só daqueles que na legislatura anterior formavam

na extrema esquerda, O conselheiro Saraiva, fosse pela

surpresa daquele resultado, fosse porque considerasse, como o

disse, encerrada a sua missão, não tardou então em demitir -se.

No dia 21 de janeiro subia ao poder o gabinete Martinho

Campos.

Martinho Campos era um destes gênios de ecletismo,

em cuja dialética os princípios só aparecem para

imediatamente se equilibrarem numa displicente e elegante

comodidade pessoal. Sem deixar jamais perceber com muita

clareza qual era realmente o seu partido, ele entretanto sabia

muito bem se definir, quando se tratava de um destes

interesses predominantes, sobre os quais era evidente a opinião

do maior eleitorado. Aceitando em grande número os pontos

de vista do partido liberal, em relação ao problema do

elemento servil, não punha dúvidas em proclamar-se “um

escravocrata da gema...” Não se poderia dizer que fosse um

simples oportunista, pois mais ou menos sempre esteve em

oposição. Era sobretudo um observador para gozo próprio, a

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quem uma boa dose de ceticismo conferia uma grande

liberdade de crítica e comentário.

Tudo parecia indicar que não fosse possível encontrar

homem mais bem talhado a governar com aquela câmara. O

seu discurso de apresentação do gabinete, cuidadosamente

escoimado de pontos de vista extremos, é uma maravilha de

tato. Dir-se-ia não existir no Brasil daquele instante coisa

alguma de monta a dividir as opiniões, Tudo ia pelo melhor,

no melhor dos mundos possível, teria obtemperado o dr.

Pangloss, se ali estivesse, Os costumes políticos eram quase

perfeitos. A ética geral fizera os mais assinalados progressos e

nada poderia perturbar seriamente o desenvolvimento de um

grande surto de boa vontade entre os homens. Só a imprensa,

com uma inexplicável virulência, desmandava-se ainda em

demonstrações de impaciência. Mas mesmo a esta, ele ali

estava para, revestido de toda tolerância, aceitar-lhe “as

injúrias, os insultos, as críticas as mais amargas, como um

auxílio à administração”. O governo cuidaria da situação

financeira, que muito mal andava com tanto papel -moeda. Era

necessário equilibrar o orçamento do império, promovendo ao

mesmo tempo a redução lenta e cautelosa do meio circulante.

No mais, o novo gabinete não tinha programa, pois tudo lhe

parecia estar direito e na ordem desejável.

Nesse verdadeiro cântico de otimismo, a incurável

ironia do presidente do conselho, porém, transparecia. Ela

chegava mesmo a raiar, em certos pontos, por uma

involuntária e sorridente crueldade. Naquela câmara liberal

havia um grande número de conservadores. Isto era

indispensável à própria dignidade do parlamento e, depois, não

importava, porque: “Hoje é que se pode dizer como o finado

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Visconde de Albuquerque (Holanda Cavalcanti) – são duas

coisas muito parecidas, um liberal e um conservador – e podia

mesmo acrescentar-se, um republicano; porque têm todos os

mesmos ares de família...”

Sim; no tempo de Holanda Cavalcanti era a suprema

preocupação da unidade nacional que amalgamava liberais e

conservadores, dentro da política de conciliação. Na maioria

que o devia apoiar no parlamento, Martinho Campos também

não enxergava distinções partidárias. Via apenas uma coalizão

em favor do “status quo”, na questão do elemento servil...

Homem de espírito sutil, ele o não afirmava com franqueza,

mas todos assim o entendiam.

Entretanto, o novo chefe de gabinete, evocando no seu

belo discurso os métodos políticos da Inglaterra, para mais

uma vez oferecê-los como modelo aos parlamentares

brasileiros, talvez não se lembrasse de uma coisa, É que na

Inglaterra, como em todas as nações livres e de organização

parlamentar, periodicamente os partidos se fragmentam e

confundem, na luta em torno a certos grandes problemas,

avançando em formidável corpo a corpo até as soluções

definitivas, para depois se reorganizarem nitidamente muito

mais adiante, numa nova situação geral e inspiradas num novo

sistema de idéias.(45) Aquela uniformidade de vistas, que se

comprazia em assinalar o orador, só existia ali dentro, graças à

cabala eleitoral no último pleito. Lá fora a confusão partidária

também se estabelecia mas não era para a defesa do “status

quo”. Era precisamente na grande luta por uma transformação

radical e profunda. Dos dois lados, o meio naturalmente

circunscrito das organizações partidárias, de fragmentava. Os

espíritos mais esclarecidos e corajosos delas se afastavam,

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para momentaneamente se encontrarem todos no irresistível

tumulto da grande opinião popular, em porfia da solução

definitiva do cativeiro, isto é, em demanda de uma nova

situação social, do novo e próximo período da nossa evolução

histórica, que imediatamente se anunciava e não poderia mais

tardar.

Daqui por diante, não vale mais à pena nos determos

nos incidentes que particularmente determinaram as

posteriores mudanças de gabinete. A extinção total do

elemento servil, era, mesmo sem que dela se falasse, a grande

questão que condicionava todas as manifestações da nossa

existência política. Os círculos parlamentares resultantes da

eleição de 1881, apesar da sua tácita deliberação de ignorar a

campanha abolicionista, não podiam fugir à pressão exterior

da opinião geral. Pesava sobre eles uma atmosfera de indizível

inquietação, senão de vago e inafastável remorso. O cauteloso

ministério Martinho Campos não chegou a durar seis meses.

No dia 3 de julho vinha ao poder um novo gabinete, trazendo

na presidência o Visconde de Paranaguá, um dos antigos

ministros do governo Zacarias de Góis, que no seu discurso de

apresentação imediatamente abordava o problema da abolição

para dizer: “O ministério favorecerá, sem quebra do respeito à

propriedade, a evolução que se opera no trabalho escravo para

o trabalho livre, evolução que se pode conseguir naturalmente,

pela melhor execução da sábia lei de 28 de setembro”. O

ministro preconizava para tal fim a elevação do fundo de

emancipação, o imposto sobre transmissão na venda de

escravos e a proibição desse comércio entre as províncias. Era

um programa de extrema moderação, que, partindo de um

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liberal da escola de Zacarias, só servia para indicar as

dificuldades da situação.

No dia 14 de maio de 1883, um requerimento do

deputado José Mariano, sobre as coisas da administração nas

províncias, determinava a retirada do ministério Paranaguá.

Foi então chamado ao governo o senador Lafayete Rodrigues

Pereira. Lafayete Pereira era um radical, que chegara a firmar

o manifesto republicano de 1870, tendo depois reconsiderado

aquela sua decisão, sem dúvida movido pela ulterior

inconseqüência das atitudes qu foi tomando o partido fundado

naquele documento. A sua chamada ao poder, aproximando a

administração dos princípios do radicalismo naquele momento,

procurava naturalmente oferecer uma satisfação |às correntes

populares. Mas o novo presidente do conselho não se fez

ilusões sobre as inúmeras dificuldades que o esperavam. Em

face da câmara que na visível inquietação com que aguardava

o seu programa, mostrava bem os sentimentos antagônicos que

nela se defrontavam, ele foi logo declarando: “Senhores, um

programa não é uma invenção, uma criação arbitrária do

espírito humano; um programa é um complexo de idéias que

corresponde à realidade da situação do país em um momento

dado.” Acalmando os impacientes, o ministro procurava

desarmar os prevenidos. Ele falava na imperiosa necessidade

de prestar atenção às coisas imediatas da administração

financeira, sem o que não existe crédito público nem ordem

nos negócios do Estado. O seu discurso é quase uma lição de

direito administrativo. É em nome do interesse da boa

administração que se reporta às idéias do radicalismo,

advogando o alargamento da autonomia das províncias e

apontando como necessárias diversas outras reformas na

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legislação existente. Mas, se em tudo aquilo a sua dialética de

grande jurista e professor de Direito podia ir-se desenvolvendo

com cera segurança, ao abordar o problema fatal do elemento

servil, ela suspende-se logo numa angustiosa interrogação: o

não será possível adotar alguma medida no sentido de auxiliar,

de facilitar a ação da lei de 28 de setembro?...

Ali estava, evidentemente, um governo de simples

contemporização. O gabinete que se lhe seguiu, em 6 de junho

de 1884, presidido pe3lo conselheiro Souza Dantas, procurou

com notável energia responder pela afirmativo àquela

interrogação. Colocado em face da câmara, Souza Dantas foi

logo declarando: “Chegamos a uma quadra em que o governo

carece intervir com a maior seriedade na solução progressiva

deste problema, trazendo-o francamente para o seio do

parlamento, a quem compete dirigir-se a solução. Neste

assunto nem retroceder, nem parar, nem precipitar.” O

ministro pedia que fossem postas em prática as medidas

preconizadas pelo gabinete Paranaguá, ampliadas pela

libertação imediata de todos os escravos maiores de sessenta

anos.

No dia 15 de julho o governo apresentava à câmara o

seu projeto complementar da lei de 28 de setembro. O

resultado imediato foram duas moções de desconfiança, das

quais a mais áspera e peremptória lograva ser votada por uma

maioria de sete votos, sobre cento e onze votantes. Mas Souza

Dantas viera decidido a lutar. A câmara foi dissolvida,

convocando-se uma outra em sessão extraordinária, para o dia

4 de março de 1885.

Não há dúvida de que a reforma eleitoral de 1881, como

esforço no sentido de melhor adaptar as manifestações das

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urnas aos sentimentos da grande massa popular, foi muito

lenta em seus efeitos. A sua principal virtude consistiu no

avanço da eleição de dois graus para o voto direto. Mantendo-

se porém, no alistamento segundo o critério econômico, ela

não conseguiu libertar convenientemente o eleitorado da

pressão predominante e inevitável dos interesses agrários. A

câmara de 1885 era mais ou menos uma reprodução da

anterior. Convocada na sessão extraordinária de 4 de março

para o fim especial de conhecer do projeto Souza Dantas sobre

a abolição, ela, logo no dia 13 de abril, se bipartia em duas

votações iguais em face da moção seguinte: “A Câmara dos

Deputados, não aceitando o sistema de resolver sem

indenização o problema do elemento servil, nega seu apoio a

política do gabinete.” Cinqüenta deputados votavam a favor,

cinqüenta votaram contra.

O presidente do conselho, sabendo muito bem que a

opinião pública gera, entre aquela negativa e a afirmação

correspondente, não se distribuía na mesma proporção, não

quis aceitar o empate como motivo bastante para a retirada do

gabinete. Ele ainda esperava obter o número de votos

indispensável à passagem do seu projeto. Desde, porém que

ele recolocara o debate abolicionista no terreno concreto da

ação governamental imediata, a atenção popular no Rio de

Janeiro voltara-se toda a câmara dos deputados. As galerias

enchiam-se de espectadores cujas manifestações a presidência

da assembléia mal podia conter. Ao fim das sessões, a

multidão aguardava os deputados à saída da câmara, festejando

ruidosamente os que apoiavam o gabinete e com igual

veemência significando aos outros a sua reprovação. A tensão

de ânimos tornava-se ameaçadora. A 3 de maio, a exaltação

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popular contra os deputados da oposição ameaça degenerar em

vias de fato. No dia seguinte a câmara reúne-se numa

atmosfera quase de pânico, e, por cinqüenta e dois votos

contra cinqüenta, adota esta moção: “A camada dos

Deputados, convencida de que o ministério não pode garantir a

ordem e segurança pública, que é indispensável à resolução do

elemento servil, nega-lhe a sua confiança.” À noite, Souza

Dantas, já demissionário, respondia, numa imensa

manifestação popular, em frente à sua casa: “Caio nos braços

do povo!..”

Voltou então ao poder o especial preparador de

ambientes que era o conselheiro José Antônio Saraiva.

Modificando o projeto Sousa Dantas em diversos pontos e

ampliando de sessenta para sessenta e cinco anos a idade para

a emancipação compulsória, o novo chefe do governo sempre

conseguiu o número de votos necessário a fazê-lo aprovar na

câmara dos deputados. Mas, convencido de não poder obter no

senado idêntico resultado, ele retirava-se logo depois, subindo

no dia 20 de agosto um novo gabinete sob a presidência do

Barão de Cotegipe. Era um governo conservador...

O novo presidente do conselho apresentou-se à câmara

quase exclusivamente para significar-lhe que com ela não

havia situação governamental possível: “No fim de uma sessão

tão trabalhosa como tem sido a atual, pouco por certo podia

fazer um governo, mesmo liberal que fosse, e muito menos o

partido conservador. Há porém, duas medidas que acredito se

poderão conseguir da atual câmara dos srs. deputados, ou

antes, uma já está conseguida. Essas duas medidas são o

projeto de emancipação gradual dos escravos e a obtenção de

meios para constituir o governo em condições regulares de

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poder governar.” Mas tendo-se-lhe perguntado, em aparte, se

aceitava o projeto de emancipação tal como já fora ali

aprovado, ele logo se reservou, para responder apenas: “No

senado eu direi...” Era uma franca provocação. Seguiu -se um

intenso e acalorado debate, que teve o seu epílogo na seguinte

moção, aprovada por sessenta e três votos contra quarenta e

nove: “A Câmara dos Deputados, ouvindo as explicações do

sr. presidente do Conselho, nega ao ministério de 2 de agosto a

sua confiança, e passa à ordem do dia.”

O Barão de Cotegipe não procurava outra coisa.

Convencido de que o Partido Liberal não tinha condições para

legalmente precipitar o fim do cativeiro, ele aceitara o poder

no firme propósito de criar uma forte situação conservadora,

que resistindo à exaltação das ruas, energicamente se opusesse

a qualquer solução revolucionária, em desacordo com o

processo lento e gradual instituído na lei Rio Branco. Aquela

moção dava-lhe o pretexto para dissolver a câmara e procurar

em novas eleições um parlamento que eficazmente o

secundasse em tal propósito. Na aparência, e de acordo com os

velhos aspectos da nossa vida partidária, o presidente do

Conselho não deixou de levar a melhor no início deste seu

programa. Tendo, com a aprovação do senado, convertido o

projeto Dantas-Saraiva na lei de 28 de setembro de 1885, na

reabertura da assembléia geral em 3 de maio do ano seguinte,

ele encontrava-se em face de uma câmara aupiciosamente

correligionária, a qual comunicava as suas últimas vistas sobre

o elemento servil, neste confiante e tranqüilo trecho da fala do

trono: “A lei de 28 de setembro de 1885 vai sendo fiel e

lealmente executada. Com ela prende-se a questão da

introdução de imigrantes, aos quais dever-se-ão proporcionar

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meios de empregarem-se como pequenos proprietários do solo,

ou como trabalhadores agrícolas. Para este fim, é

indispensável a revisão do decreto de 15 de março de 1879

sobre locação de serviços e da lei de terras de 18 de setembro

de 1850.” A abolição era portanto um caso tão

irrevogavelmente liquidado no tempo, que, à medida que

fossem operando os dispositivos daquela lei final e definitiva,

ela já se transformava na simples e gradual substituído da

mão-de-obra escrava pelo novo regime do braço imigratório...

Mas, apesar de toda a sua habitual sagacidade, o

estadista conservador enganava-se profundamente. Pouco

importava que ele pudesse ver correligionários, homens do

partido conservador, na maioria dos deputados. Naquele

momento, a opinião pública do Brasil, em qualquer das suas

esferas, não se dividia mais em liberais e conservadores,

segundo os antigos limites doutrinários do dois partidos. O que

se tratava de saber, era apenas se era-se pela abolição

imediata, ou se ainda se pretendia a manutenção do cativeiro

sobre aquela última geração de escravos. Era esta a linha real

de separação, porque tudo mais fora afastado como assunto de

cogitação ulterior. A agitação abolicionista, vencendo todas as

resistências do interesse privado, havia avançado dos meios

propriamente populares para os círculos eleitorais, vindo

afinal manifestar-se irresistível na maioria do parlamento. Na

terceira eleição procedida segundo a lei Saraiva quebraram-se

as últimas barreiras. A câmara na qual o Barão de Cotegipe

contava apoiar-se para ter a questão abolicionista como

encerrada na lei do ventre livre, foi a mesma que aprovou, por

oitenta e três votos contra nove, a grande lei de 13 de maio de

1888, concebida neste texto rápido e peremptório:

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“Art. 1º - É declarada extinta, desde a data desta lei, a

escravidão no Brasil.”

“Art. 2º - Revogam-se as disposições em contrário.”

Se este capítulo tem sido bem raciocinado, certamente

teremos visto que a extinção do cativeiro foi no Brasil um

produto da vontade coletiva. Foi um destes movimentos

populares, nacionais, tão profundos e generalizados, que a

ação individual neles inteiramente desaparece como decisão,

para não ser mais que obediência. Posteriormente à lei de 13

de maio, têm-se feito várias tentativas para saber a quem

reverte a maior glória daquele fato. Uni cuique suum.(46) O

padre Rafael Galanti, estabelecendo esta indagação no Tomo

V, pág. 30, da sua correta e conscienciosa História do

Brasil,(47) cita Joaquim Nabuco, para quem a coroa de louros

da abolição deve ser atribuída a uma plêiade de homens

eminentes, cuja figura central é o imperador Pedro II.

Naturalmente, seria quase impossível fazer a história dos

grandes acontecimentos humanos, sem ver as individualidades

que os atravessam em maior destaque. É preciso notar

entretanto que o esforço dos políticos e homens de Estado, no

nosso fenômeno abolicionista, aparece constantemente subor-

dinado a uma individualidade maior, que é o país, o povo

brasileiro, a consciência nacional do Brasil. É esta

individualidade oculta, mais onipresente, que a todos eles

impele e precipita. A ação dos meios políticos, propriamente

ditos. consistiu muito mais em compensar o grande movimento

popular, dando-lhe feição mais calma, do que mesmo em

secundá-lo. No período que vai dos últimos meses de 1866 a

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julho de 1868, o governo imperial, sujeito às circunstâncias

que já examinamos, esteve a dois passos de se ver arrastado à

abolição imediata. Mudada, porém, a situação governamental e

reduzidas as aspirações do momento à lei do ventre livre, a

preocupação das classes dirigentes assentou toda em guardar

aquela medida como suficientemente resolutiva. Mas, naquele

instante, a determinação coletiva ganhara um tal volume e uma

tão grande velocidade que não era mais possível esperar o

transcurso médio de duas gerações, para que o cativeiro

atingisse a sua última etapa, segundo as disposições daquela

lei. As alforrias voluntárias, iniciadas em favor dos escravos

da coroa, no decorrer da guerra do Paraguai, fizeram-se de uso

corrente entre os particulares. “A manumissão tornou-se para

nós a forma preferida da caridade pública e privada, a

inscrição essencial de todo acontecimento feliz, o tributo de

saudade aos mortos queridos, a polidez para com o estrangeiro

e o hóspede, em uma palavra, o uso nacional por

excelência.”(48) No dia 25 de março de 1884, o Ceará declara

extinta a escravidão no seu território, sendo, a 10 de julho

seguinte, acompanhado pelo Amazonas. No Rio Grande do

Sul, no dia 18 de setembro daquele ano, para comemorar o

aniversário da rendição de Estigarribia às tropas aliadas em

1865, são alforriados todos os escravos nos municípios de

Uruguaiana, São Borja, Viamão e Conceição do Arroio. No dia

16 de outubro, os cidadãos de Pelotas, reunidos numa grande

festa pública, libertam de uma só vez cinco mil cativos, e

quando, no ano seguinte, o ministro Saraiva faz ampliar de

sessenta para sessenta e cinco anos a idade para a emancipação

compulsória, brada uma voz no recinto da câmara dos

deputados: - Pouco importa o prazo fixado à agonia da

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escravidão, porque ela decerto não acabará junto à cova do

último escravo!...(49)

A grande opinião pública, assumindo as suas expressões

mais nítidas e claras na palavra de tribunos e jornalistas como

Luiz Gama, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Joaquim

Serra, Lopes Trovão, Bezerra de Menezes, João Clap, Silva

Jardim ou Antônio bento, fizera seu esplêndido trabalho. Os

escravocratas desapareciam, e com eles a escravidão. mesmo

nos centros mais poderosos da grande propriedade agrícola, do

Rio Grande do Norte às divisas do Paraná, começaram as

numerosas alforrias voluntárias. Em São Paulo, um gentil

homem fazendeiro e chefe conservador, o conselheiro Antônio

Prado,(50) dando por si o exemplo, convida os seus colegas da

lavoura a saírem ao encontro do sentimento geral do país, pela

imediata concessão da liberdade aos seus escravos. Nem todos

o atenderam. Mas o gesto de Antônio Prado produziu no meio

urbano da capital da província uma tão agradável impressão,

que um grupo de cidadãos reuniu por cotização o dinheiro

necessário à libertação dos últimos escravos existentes na

cidade, e, no dia do seu aniversário, a 25 de fevereiro de 1887,

foi levar-lhe duzentas e tantas cartas de alforria, como o mais

precioso e grato dos presentes de festa. Dessa época em diante,

começa nas fazendas e nos engenhos a evasão em massa dos

escravos, sem que se encontre mais um único soldado que

consinta em opor-se a sua livre passagem pelas estradas. Na

fuga, que às vezes assume aspectos verdadeiramente triunfais,

todo mundo os ajuda, ampara e lhes fornece meios de

prosseguir, Enfim, “a classe agrícola compreendeu que ficava

inútil e sem valia uma propriedade que nem era mais

susceptível de posse,(51) e quando a 13 de maio do ano

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seguinte vem a lei que declara extinta a escravidão no Brasil,

ela não traz mais do que a consagração jurídica de uma

evidente e indiscutível situação de fato.

Agora, se compararmos as duas abolições, a norte-

americana e a brasileira, nos seus fundamentos morais e

psicológicos, havemos de chegar necessariamente à conclusão

de que o Brasil de Pedro II foi muito mais uma democracia, do

que os Estados Unidos de 1865. Não seria possível negar todo

idealismo a um movimento nacional que produziu essa grande

e radiosa flor da sentimentalidade humana, que é A cabana de

pai Thomz, de Mrs. Beecher Stowe, e que determinou o

generoso e formidável sacrifício de centenas de milhares de

vidas. Mas a diferença é evidente e essencial. A extinção do

cativeiro nas antigas colônias inglesas, por mais que a sua

antecedência sobre a do Brasil pareça dar-lhe a primazia

liberal, não deixou de apoiar-se de uma forma decisiva, em

interesses tangíveis e imediatos, e de vir imposta pela força

das armas. Entre nós ela parte de considerações puramente

morais e humanas e atinge o seu termo com a feição altamente

democrática de uma esplêndida e universal vitória de opinião.

NOTAS

(44) Vide Albert Grenier – Les Gaulois, págs. 37, 38 e 42. Ed. Payot,

Paris, 1923.

(45) O sr. Albert Milhand, no número de 1º de junho deste ano, do jornal

L’Ere Nouvelle, de Paris, tratando das últimas edições inglesas, diz que,

na Inglaterra “é-se sempre whig ou tory, mesmo se se muda de etiqueta de

tempo em tempo, de século em século. Há uma centena de anos a

esquerda, se se ousa exprimir-se assim, deixou no vestiário o nome de

whig e chamou-se partido liberal. Era a moda continental, A direita,

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outra denominação abusiva, pôs de lado a apelação desusada de partido

tory e tomou o nome de partido conservador. Por sua vez ela imitava

assim certos países europeus. Hoje os novos whigs são os trabalhistas e os

neo-torys são os eleitores do sr. Baldwin e de seus amigos”. Parece -nos

que o sr. A. Milhand conseguiu dar aí um quadro muito justo dessas

transformações pelas quais vão passando os partidos, através da evolução

social dos povos.

(46) A cada um o que lhe pertence.

(47) Edic. Duprat & Cia., São Paulo, 1910.

(48) Carta de Joaquim Nabuco ao cardeal secretário de Estado do

Vaticano, em 10 de janeiro de 1888, pedindo a intervenção moral do papa

Leão XIII em favor da abolição. Vide O Paíz, do Rio de Janeiro, de 20 de

março do mesmo ano.

(49) Frase divulgada nos jornais da época e citada pelo R. P. Rafael

Galanti. Vide op. cit., Tomo V, pág. 45.

(50) Antônio Prado, como ministro da Agricultura dos gabinetes Cotegipe

e João Alfredo, teve a felicidade de sucessivamente referendar as duas

leis emancipadoras de 28 de setembro de 1885 e de 13 de maio de 1888.

(51) Fala do trono do imperador Pedro II, lida na abertura da Assembléia

Geral, a 3 de maio de 1889.

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CAPÍTULO X(*)

O FIM DO SEGUNDO REINADO

A abdicação e a partida de Pedro I marcam realmente o

instante em que o governo do Brasil perde os seus últimos

contatos com a velha corte de Lisboa. Daí por diante o nosso

país se organiza segundo o seu espírito próprio, orientando-se

exclusivamente nos livres e igualitários sentimentos da sua

primeira formação.

Sob este aspecto, o Brasil é, completamente e sem a

mínima dúvida, um país novo. As fórmulas democráticas e

parlamentares, nas quais as idéias da Revolução se vão

condensando nos meios mais cultos da Europa, aqui não

encontram resistências invencíveis. Enquanto os países de

origem castelhana, despedaçados pela guerra civil, só obtêm

um pouco de sossego pelo restabelecimento da autoridade

absoluta dos antigos vice-reis, em mãos dos seus novos

governantes,e as pequenas repúblicas municipais da América

do Norte, para viverem unidas, precisam submeter-se ao poder

anacrônico e excessivo de um grande monarca eletivo, o Brasil

logo se organiza no sistema constitucional representativo de

(

*) Nota do editor: o capítulo IX consiste numa “visão do Brasil colonial”,

distante do objeto da transcrição, sendo por isso suprimido neste trabalho,

e consequentemente também suas notas (52 a 60) referentes ao capítulo.

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forma parlamentar, o único no qual se manifestam eficazmente

os princípios fundamentais do moderno direito público.

Considerada assim, no conjunto dos seus fatores morais

e psicológicos, a história do nosso país apresenta-se como

profundamente lógica e bem ordenada. Cada fato aí se

manifesta no seu momento exato, quando se tornam patentes

todas as suas condições de ambiência e de equilíbrio.

Obedecendo a essa constante harmonia da nossa vida

social, a idéia abolicionista não se desenvolveu isolada. Ela

estava inclusa na nossa orientação política geral, como uma

grande função, e o seu triunfo definitivo não podia verificar -se

sem que, paralelamente, outras modificações profundas se

operassem. É precisamente nessa íntima penetração do aboli-

cionismo na universalidade das preocupações éticas e sociais,

que deve ser encontrada a diferença essencial entre a abolição

do Brasil e a dos Estados Unidos. Na América do Norte, a

extinção do cativeiro nasceu das considerações que o branco

pôde fazer sobre o negro, em vista do seu interesse exclusivo.

A raça escrava foi o objeto mais ou menos direto do esforço

abolicionista, mas dele, tanto que ação política, de maneira

alguma participou, visto não haver tido jamais ingresso na

massa deliberante. A emancipação não se processou portanto

como um interesse comum ao branco e ao negro, dentro da

nação, mas como uma medida unilateral, tomada de um só

ponto de vista. Apesar de realizada, no momento, com alta e

vigorosa decisão, ela não pôde reagir sobre a vida moral e

política do país. As suas conseqüências foram apenas de ordem

industrial e econômica, por haver quebrado a barreira mental

que se opunha à grande imigração européia. Mas, no domínio

ético e social, ela nada produziu, pois não determinou a

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mínima alteração nas idéias anteriores, nem coincidiu com a

menor modificação das práticas estabelecidas(61). Os Estados

Unidos, na civilização greco-latina, constituem mesmo, a este

respeito, um caso unido. É conhecida a profunda influência

que as manumissões tiveram na vida social da Antigüidade

clássica, sobretudo no grande período que vem dos ultimos

dias da república romana à sistematização final do imperador

Justiniano. Da Idade Média aos tempos modernos, através da

Renascença, a evolução dos métodos políticos, nos países do

Sul da Europa, coincidiu com a gradual e completa fusão do

grande número de escravos negros, bérberes e tártaros, que

aqueles países tiveram, na massa geral das populações. Na fase

final dessa longa evolução, bastaram três séculos aos

europeus, para completamente absorverem na sua composição

étnica e nas suas novas organizações jurídicas, todas as

incontáveis levas exóticas, lançadas ao continente pelas

guerras religiosas ou pela sua fatal e inseparável companheira,

a escravidão. Os Estados Unidos fugiram a essa regra geral

dos povos ocidentais. Passado o formidável conflito da

secessão, o americano, na sua vida moral e política, ignorou

completamente a abolição do cativeiro, deixando-a evoluir,

nas suas conseqüências ulteriores, pela constituição da raça

liberta em corpo estranho, dentro da nacionalidade.

O processo da abolição no Brasil tinha que ser diverso

do das antigas colônias inglesas. No eleitorado que elegia o

parlamento estavam representados todos os elementos raciais

do império. No senado e na câmara aquela perfeita união

étnica se reproduzia. Homens de cor, pelo cruzamento de

brancos com índios, de brancos com negros, de índios com

negros ou pela presença simultânea das três raças num só tipo,

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eram Zacarias de Góis, o Visconde do Rio Branco, Sales

Torres Homem (Visconde de Inhomirim), o senador Francisco

Otaviano, o Barão de Cotegipe. Os três ramos da mossa

constituição demográfica intimamente se associavam em todas

as esferas da atividade social, sentindo as mesmas aspirações,

confundindo-se nos mesmos esforços e tendendo

conjuntamente para os mesmos objetos de ordem nacional e

coletiva. A abolição não poderia portanto processar-se como

um violento conflito de interesses, no mundo étnico dos

senhores, para só indiretamente refletir-se no meio racional da

outra classe, tal como se deu nos Estados Unidos. Não era uma

liquidação transitória e subsidiária, apesar de indispensável,

nem podia, uma vez realizada, isolar-se ou ser simplesmente

esquecida na vida moral e política da nação. Aqui, a mudança

da condição de escravos para a de homens livres, no círculo

dos trabalhadores do solo, foi um dos principais aspectos de

um fenômeno muito maior e infinitamente mais amplo, que

naquele momento chegava à sua produção completa. Por

motivos de natureza quase mecânica, teria sido impossível ao

Brasil, no caminho das transformações daquela época. ficar

apenas na lei de 13 de maio de 1888. Ao que assistíamos

naquele instante, era ao complemento e ao termo da nossa

formação democrática ou republicana, tal como a

esboçáramos, no projeto de constituição de 1823, em nome da

qual fizéramos a revolução de 1831 e a Maioridade, e que,

retardada pela reação autoritária da Regência e severamente

subordinada às exigências da nossa segurança externa, na

política de conciliação, viera após a lei dos círculos, fixar as

suas linhas definitivas no manifesto radical de 1869, para

depois precipitar-se na lei do ventre livre à abolição completa

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do cativeiro – e daí enfim ao programa do gabinete de 7 de

junho de 1889.

Esse programa, lido pelo Visconde de Ouro Preto,

presidente do Conselho, na sessão da câmara dos deputados,

de 11 daquele mês, é extremamente interessante e sugestivo

sob o ponto de vista histórico. Extintas as últimas resistências

do passado, perante o abolicionismo vitorioso, seria talvez de

supor que uma trégua se abrisse no nosso avanço para a

democracia integral, como reação natural do grande esforço

despendido até ali. Entretanto, apenas liqüidada a época

abolicionista, pelo desaparecimento do gabinete que a

encerrara a 13 de maio do ano anterior, o novo ministério

inaugura-se a proclamar pelo órgão do seu chefe, que “a

situação do país define-se por uma frase: - necessidade urgente

e imprescindível de reformas liberais...”

Essas reformas, o ministro não as anuncia emocionado e

a medo. Não o assusta o escândalo da novidade nem ele teme

reações, porque sabe que todas elas estão na consciência

pública, a mais de vinte anos, perfeitamente compreendidas e

fixadas em fórmulas nítidas e exatas. No meio da atmosfera de

tumulto que se estabelece no recinto da câmara, a sua voz de

velho parlamentar e homem de Estado, alteia-se segura e clara:

“Esta tempestade não me assusta; ao contrário, alegro-me com

ela. Eu prefiro esta agitação, sinal de vida e movimento...” E,

quando as reformas vão sendo enunciadas – “alargamento

maior do direito de voto, plena autonomia dos municípios e

províncias, efetividade do direito de reunião, liberdade de

culto e seus consectarios, temporariedade do senado, anulação

das funções políticas do Conselho de Estado – tudo numa

ordem perfeita e quase cronológica, como a disposição

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metódica dos materiais de uma construção imediata, ouve-se a

voz do deputado Pedro Luís: “É o começo da república”...” O

presidente do conselho protesta: “Não; é a inutilização da

república. Sob a monarquia constitucional representativa,

podemos obter, com maior facilidade e segurança, a mais

ampla liberdade...”

É preciso meditar com atenção estas palavras do

Visconde de Ouro Preto, evocando, com o auxílio da rápida

recapitulação de antecedentes que temos feito, o especial e

ultra-sensibilizado ambiente em que elas vibravam. A

inutilização da república, pela mais ampla liberdade!... O

ministro não diz – a destruição ou a morte da república. Ele

deseja somente que as reformas a realizar sejam tão completas,

tão amplas, tanto avancem para a república, que, perante elas,

a proclamação formal do novo regime se torne inútil,

desnecessária, salvando-se assim as formas aparentes da

monarquia, ao mesmo tempo que se reforça e amplia, até as

suas últimas conseqüências práticas, tudo quanto o nosso

velho aparelho institucional e os nossos hábitos políticos já

possuíam de real e verdadeiramente republicano.

A plataforma do gabinete Ouro Preto não tontinha um

dos artigos principais do programa radical de 1869. Era a

extinção do poder moderador. Mas dado o estado geral dos

ânimos no momento, nada poderia impedir que, mais ou menos

imediatamente, aquela medida se impusesse. O poder

moderador era como a árvore mais alta, sobre a qual o raio

desce, apenas desencadeada a tormenta. Se o seu fim não

viesse, por natural e imperiosa extensão, com a simples

abertura dos debates sobre o programa do ministério Ouro

Preto, ele não sobreviveria sem dúvida aos três anos da

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legislatura seguinte. A nova câmara e o senado temporário que

resultassem do alargamento do direito de voto recomendado

pelo gabinete, talvez não o tolerassem além da sua primeira

sessão. Como limite extremo à permanência daquela função no

nosso aparelho político, poder-se-ia portanto admitir, quando

muito, o ano de 1895.(62)

E, a partir daí, a nossa família não teria muito mais o

que fazer, no seu patriarcal e modesto paço de São Cristóvão...

Seria extremamente interessante podermos hoje saber

quais eram as íntimas disposições e o fundo real do

pensamento do velho Afonso Celso, no momento em que ele,

destruindo os últimos fundamentos essenciais da monarquia,

pela adoção final das doutrinas radicais de 1869, ainda se

esforçava em defender e salvar os sinais visíveis do império.

Dirão que esse era o seu dever de coerência e lealdade. Sem

dúvida... Mas, em política, nem sempre o cumprimento de um

dever de coerência nos isenta da íntima e trágica certeza da

sua inutilidade.

A realeza é um aparato multimilenário que, nas nações

verdadeiramente evoluídas do mundo moderno, só se mantém

ainda, nas suas formas puramente visuais, pelo prestígio

mental da tradição. Ora, num país descoberto pela Renascença,

com todas as suas tradições políticas iniciais fundadas no

século XVIII e na revolução francesa, esse milagre de

persistência era necessariamente impossível. Como poderia o

trono, depois de perder toda a sua significação prática, manter -

se ainda, como uma inútil e suntuosa relíquia, num império

que jamais concebeu o amor do rei e suntuosa relíquia, num

mistério que jamais concebeu o amor do rei como artigo de fé

religiosa e onde a nobreza da corte não podia pensar, nem

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sorrir, na antiguidade da sua formação? Os estadistas daquele

momento, a começar pelo próprio imperador, não nutriam

ilusões a tal respeito. Neste ponto, a crônica do tempo nos

oferece indicações as mais várias e preciosas. O dito do Barão

de Cotegipe, o imperador é o império e o império é o

imperador, significando que o trono não subsistiria ao seu

último ocupante, tornara-se corrente. A presença de Pedro II

era o derradeiro obstáculo à proclamação do novo estado de

coisas. Não que o velho imperador pudesse materialmente

opor-se a uma decisão coletiva em tal sentido, mas porque a

grata e afetuosa consideração da maioria se concertava em dele

afastar tão rude comoção. A monarquia, em todo caso, já não

se apresentava como tolerável, senão com Pedro II...

Entre os documentos que mais facilmente podemos hoje

consultar sobre aquele estado de ânimo, parece-nos um dos

mais interessantes, A República na América Latina,(63) de A.

Coelho Rodrigues. Apesar de não concordarmos com o ponto

de vista em que o autor se coloca, no seu cap. I, para descobrir

as causas da proclamação da república no Brasil, não lhe

poderíamos negar a qualidade de excelente e autorizada

testemunha de vista. Ele pode ter errado nas conclusões a que

pretendeu chegar, mas não nos fatos a que se refere. Membro

da câmara dos deputados na monarquia, e senador nos

primeiros anos da república, ele esteve intimamente ligado à

vida política das duas épocas, no seu período de interseção,

dando ao depoimento que oferece naquele trabalho um

impressionante caráter de veracidade.

Conta Coelho Rodrigues: “Em dezembro de 1888, Silva

Jardim, fazendo-se encontradiço com o velho barão (o Barão

de Cotegipe, cujo ministério cedera o lugar ao gabinete

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abolicionista do conselheiro João Alfredo) no hotel das

Paineiras, procurou sondá-lo sobre o advento da república e

ouviu dele esta profecia: - não se apresse a correr para ela, que

ela está correndo para nós. O meu ministério caiu por uma

conspiração do Palácio; o meu sucessor há de cair na lama das

ruas, e o sucessor do meu sucessor cairá na ponta das

baionetas e, talvez, com ele, a monarquia. Os nossos

ministérios duram pouco e, portanto, V. não terá muito que

esperar”. E Coelho Rodrigues acrescenta: “Ouvimos esta

referência ao próprio Silva Jardim, em dezembro de 1889, um

ano depois do fato, e um mês depois da proclamação da

república”. A República na América do Sul contém várias

informações desta natureza, com indicação de lugar, de

pessoas e de datas. mas onde o testemunho do seu autor nos

parece mais sugestivo, é onde conta(64) uma conferência que

se teria realizado entre o imperador e o conselheiro José

Antônio Saraiva, em março de 1889. Tendo Pedro II

encorajado Saraiva a assumir o poder, em substituição ao

gabinete João Alfredo, cuja demissão próxima era esperada, o

velho estadista “declarara ao imperador parecer-lhe próximo e

inevitável o advento da república, e necessário preparar o país

para ela, fazendo a federação das províncias e abdicando em

seguida a coro nas mãos do parlamento”. O imperador

pergunta a Saraiva se, em tais condições, não lhe parecia mais

possível o terceiro reinado. Sua Majestade referia-se à

coroação da princesa Dona Isabel, Condessa d‟Eu, após a sua

morte. Coelho Rodrigues coloca então na boca dos dois

interlocutores este rápido e impressionante diálogo, começado

por Saraiva:

- O reino de Sua Alteza não é deste mundo...(65)

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- Pois bem, sr. Saraiva; organize o ministério e governe

como entender, que eu não lhe oporei embaraços”.

Sobre as disposições de espírito com as quais Pedro II

encarava uma eventual transformação política e constitucional

do seu país, existe um documento escrito de seu próprio

punho. É uma nota por ele lançada no livro, Império e

República Ditatorial, de Alberto de Carvalho, no seu exílio de

Versalhes, com data de 1º de junho de 1891. Aí se encontra a

maravilhosa explicação de toda a sua grande vida de rei e de

incomparável cidadão. Diz o monarca destronado: “Desejaria,

repito, que a civilização do Brasil já admitisse o sistema

republicano, que, para mim, é o mais perfeito, como podem sê-

lo as coisas humanas. Creiam que eu só desejava contribuir

para um estado social em que a república pudesse ser

“plantada”, para assim dizer, por mim, e dar sazonados

frutos. Como seria ela produção natural, não poderiam

preocupar-me os direitos de minha filha e netos”.(66)

Na história de nenhuma das monarquias do mundo

moderno poderia ser encontrado um documento semelhante.

Pedro II, educado pelos seus compatriotas que haviam

revolucionariamente encerrado o primeiro reinado,

inteiramente escapou às influências da tradição monárquica,

trazida da Europa com o seu avô, Dom João VI, e transmitida

ao seu pai, com a coroa do novo império. Essa tradição, que

em outras circunstâncias teria formado o fundo e a base

sentimental do seu caráter, depois de uma precária instalação

de trinta e sete anos, daqui partira em 1831, com Pedro I e as

damas da corte, todos recambiados de volta e de uma vez ao

velho mundo. Quem ficou no paço de São Cristóvão foi apenas

um pequeno brasileiro, sobre cuja inteligência, ainda não

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formada, entrou logo a trabalhar uma educação de forte

espírito local, toda inspirada nos costumes e nas idéias do

nosso povo.

Posta ao lado destas considerações necessárias, aquela

nota, lançada à margem de uma leitura evocativa num instante

de saudade, assume imediatamente para nós um intenso poder

de revelação. Aí, como à súbita claridade de um relâmpago,

projeta-se em síntese toda a grande missão histórica do

segundo reinado. Passados aqueles trinta e sete anos – da

chegada de Dom João VI à partida de Pedro I – acrescidos do

indeciso e tumultuário período da Regência, essa missão

consistiu toda em reatar completamente as livres tradições da

nossa primitiva formação nacional, para conduzi-las, em

segura e metódica evolução, até as fórmulas mais perfeitas e

adiantadas da grande república moderna. Assim

compreendemos o sentido exato e profundo daquelas palavras

do imperador e a sua absoluta sinceridade. A transformação

final da monarquia representativa em república democrática,

dentro do sistema parlamentar, era o termo natural do segundo

reinado. Pedro II, como qualquer dos grandes espíritos do seu

tempo, não escapava a esta convicção, nem tinha a fraqueza

de tentar iludi-la. Os últimos anos da família imperial do Rio

de Janeiro chegam mesmo a ser um melancólico e tocante

exemplo de resignação. Contemplando com enlevo os

progressos do Brasil, desejando ardentemente que eles fossem

sempre maiores, mais amplos e mais completos, todo mundo

nos círculos de São Cristóvão sentia muito bem que o império

se extinguia. Lá fora, na agitação dos meios partidários, já se

discutia francamente a quem caberia a proclamação formal do

novo regime. O Barão de Cotegipe afirmava com veemência: -

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a república deverá ser feita por nós conservadores, porque, se

o for pelos liberais, desunidos e desorientados com estão, não

serão capazes de manter a integridade deste colosso, a qual

vale mais do que a sua forma de governo.(67) Era fato previsto

para muito breve, e logicamente considerado como inevitável.

Ora, não é crível, em face de todos estes elementos de

informação, que o Visconde de Ouro Preto, ao apresentar ao

parlamento o gabinete de 7 de junho de 1889, estivesse

realmente certo de poder protelar indefinidamente a

proclamação da república. Já era mesmo conhecido o seu

pensamento sobre a forma a dar à transferência final da

soberania da coroa para os representantes do povo. Falando no

senado em 1883, ele realmente se referira à possibilidade da

câmara dos deputados votar a mudança do regime. Em meio à

sensação produzida pelas suas palavras, o Barão de Cotegipe

perguntou-lhe se achava então que a câmara tivesse capacidade

para tanto. Ele respondeu com perfeita segurança: “A câmara

atual não; mas uma outra que haja recebido poderes para tal

fim, certamente o poderá fazer”. O mais provável portanto é

que o velho ministro da marinha da campanha do Paraguai,

depois de ouvir a Pedro II e entender-se com o Conselho de

Estado, tenha aceitado o árduo e extremo encargo dos últimos

retoques na grande obra do segundo reinado, dispondo o Brasil

definitivamente para a completa democracia, na sua forma

normal de expressão: a república.

A abolição do elemento servil, pela sua universal

significação social e econômica, era, sem a menor dúvida, o

artigo primeiro e de mais urgente aplicação do programa

radical de 1869. Apesar dessa medida não haver merecido esse

lugar na disposição ordinal daquela relação de princípios, sem

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ela realizada, as demais reformas não encontrariam ambiente,

tornando-se portanto prematuras. Mas, a própria sucessão

cronológica tendo-se encarregado de restituir-lhe essa

colocação necessária, uma vez ela obtida, estava aberta sem

parada ou retrocesso possível a fase final da nossa evolução

democrática. A plataforma do gabinete de 7 de junho, a

conjugar as suas reformas políticas com as disposições

econômicas e financeiras que inauguravam o novo regime do

trabalho livre, era bem o testamento de uma época. A situação

que convertesse em lei aquelas sugestões só podia ser

substituída por uma situação republicana. O programa radical

de 1869, que lograra converter-se ali em programa de governo,

era tanto e tão completamente a república, que o partido

republicano, organizado em 1870, jamais encontrou, em toda a

sua propaganda, coisa alguma de positivo a acrescentar-lhe. O

manifesto inicial dessa agremiação política, apesar de traçado

pela pena percuciente e vivaz de Aristides Lobo e aceito com

entusiasmo pelas mais ativas inteligência do radicalismo, nada

lhe pôde aduzir, limitando-se tão-somente a uma longa e

eloqüente dissertação abstrata. A ação do novo partido, em

face das demais correntes da opinião nacional, ressente-se

constantemente dessa completa ausência de base objetiva e

mesmo de fiel orientação doutrinária. O manifesto do

congresso republicano de São Paulo, reunido a primeiro de

julho de 1873, fala da abolição nestes termos indecisos e

francamente suspeitos: “Sendo certo que o partido republicano

não pode ser indiferente a uma questão altamente social, é

mister entretanto ponderar que ele não tem nem terá a

responsabilidade de tal solução, pois que antes de ser governo

estará ela definida por um dos partidos da monarquia”. Os

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deputados republicanos, quando o partido chega a mandar ao

parlamento os seus representantes não destoam muito dessa

atitude oportunista e de cautelosa e deselegante passividade

moral. Eles vacilam constantemente entre os liberais e os

conservadores, pendendo com mais freqüência para os

segundos.

A propaganda nascida com o manifesto republicano de

1870, como lançamento e difusão de novas idéias, é

absolutamente nula. Ela apenas acompanha a nossa evolução

anterior, sem nada lhe adiantar e a ela subordinada, como um

canal que se destacasse de uma caudalosa torrente, para a ir

seguindo paralelamente, sem jamais ultrapassá-la em nível

nem em velocidade. Num percurso que já nos permitimos

extremar mais ou menos no ano de 1895, esse canal teria de

ser necessariamente reabsorvido na grande caudal primitiva,

quando os princípios radicais de 1869 se encontrassem

integralmente realizados, com todas as suas previstas e

inevitáveis conseqüências de forma de governo.

Mas, essa corrente subsidiária da propaganda

nominalmente republicana, ou especialmente designada com

esse nome, veio cair a ebulição insólita e tumultuária da

questão militar.

E sobreveio o acidente de 15 de novembro...

NOTAS

(61) Não valeria a pena mencionar a transitória e infeliz participação dada

aos negros, logo depois da abolição, na política de alguns Estados do Sul,

participação essa donde nasceram, sob a inspiração inferior dos carpet

baggers, os chamados governos dos saturnaes. Tudo aquilo, vindo após o

assassinato do presidente Lincoln, não passou de uma vingança dos

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políticos do Norte contra os vencidos do Sul. Era evidente que os negros

americanos, recém-extraídos do cativeiro, não poderiam, sem o mínimo

preparo intelectual e moral anterior, ocupar decentemente funções

governativas. Foi preconceito de raça e surgiu a vergonha nacional da Ku-

Klus-Klan.

(62) Por decreto de 15 de junho de 1889 foi a câmara dos deputados

dissolvida, convocando-se uma outra para 20 de novembro do mesmo ano,

em sessão extraordinária. Essa nova câmara terminaria o seu mandato em

1892. A nova legislatura seria a de 1893-1895.

(63) Existem duas edições desse livrinho. A última foi feita em 1906, nos

estabelecimentos gráficos de Benzinger & Cia., de Einsiedeln, na Suíça.

(64) Pág. 8, da edição Benzinger.

(65) Saraiva, ao mesmo tempo que confirmava a sua certeza na

inviabilidade do terceiro reinado, também prestava, empregando o texto

evangélico, uma homenagem ao bom coração da Condessa d‟Eu, que,

ardente defensora da abolição, firmara com imensa alegria, como regente

do Império, a lei de 13 de maio de 1888.

(66) O exemplar do Império Ditatorial, de Alberto de Carvalho, onde está

escrita esta nota, encontra-se hoje no arquivo do Instituto Histórico e

Geográfico do Rio de Janeiro.

(67) Coelho Rodrigues, op.cit., pág. 6.

CONCLUSÃO (Parte Final)

Transportando agora este conceito geral da democracia

moderna ao quadro das atuais condições políticas do Brasil,

resta atender à consideração tão insistentemente formulada de

que o nosso povo ainda não apresenta os requisitos

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indispensáveis à posse de um muito adiantado sistema de

governo.

Este modo de ver é a conseqüência natural do completo

falseamento de idéias e de fatos em que entre nós se

transformaram os estudos políticos e a exposição histórica, a

partir de 1889, e ao qual já longamente nos temos referido em

todo o correr deste trabalho. A história do Brasil, como país

independente, divide-se muito exatamente em três períodos

sucessivos e muito vem caracterizados, dos quais os dois

extremos, mantendo de um para o outro as mais íntimas

relações de semelhança, inteiramente se diferenciam do outro

que lhes fica de permeio. O primeiro destes três períodos,

começando na proclamação da Independência, em 7 de

setembro de 1822, e abrangendo a fase da Regência, termina a

22 de junho de 1840, com o golpe da Maioridade. O segundo

compreende, sem interrupção alguma, todo o grande reinado

do imperador Pedro II, consistindo o terceiro, finalmente, na

república de 15 de novembro, que, partindo da rebelião militar

de 1889, vem até os dias atuais, no governo discricionário do

sr. Getúlio Vargas.

Nos dois períodos extremos, o governo, praticamente e

por princípio, assenta na vontade pessoal do chefe do Estado.

A vida do país é uma desordem permanente, marcada por

sucessivos golpes de força que, sendo a anulação progressiva

da liberdade, no domínio das relações políticas, é também, no

terreno dos interesses econômicos, uma desoladora e constante

marcha para a bancarrota e para a miséria. O Brasil, a viver

inquieto e perturbado no interior, como a grande nação que

realmente é. No período intermediário, transportadas as fontes

iniciais do poder público na pessoa do chefe do Estado à

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autoridade coletiva do parlamento, tudo se transforma. A paz

interna se restabelece com a liberdade, imediatamente

resultando, desse alto conjunto de condições morais, o

equilíbrio financeiro e a prosperidade econômica geral, O país

tem uma política externa baseada em vistas próprias, que

nobre e eficazmente faz valer no conceito internacional,

enquanto o seu alto câmbio monetário vai revelando a honrosa

e justa medida do seu crédito nos mercados do exterior. Pela

liberdade, assegurada nos métodos parlamentares, automa-

ticamente nos aproximamos da fórmula socrática do bom

governo: aquele que assegura a confiança no interior e o

respeito no exterior.

O simples cotejo desses três períodos históricos,

tomados mesmo como termos de relação matemática, já seria o

bastante para nos fazer nitidamente ver onde está a justa e

necessária solução de todo esse terrível e angustioso problema

que é hoje a nossa política geral. Uma vez que não tenhamos

completamente renunciado aos métodos comuns do raciocínio,

impossível será fugir à lógica desta simples dedução. Dizem-

nos porém, como último argumento da passividade e do

desânimo, que hoje não temos mais os grandes e nobres

estadistas que o segundo reinado produziu. A crise é de

caráter, segundo afirmam, nada de melhor sendo possível, no

baixo nível moral a que descemos. Fala-se da desolante

mediocridade dos homens públicos, do analfabetismo geral da

população, e deixa-se cair os braços de puro desalento, sem

excluir uma certa dose de irônico e superior desinteresse...

Ora, se o Brasil, quando contava apenas dez, doze,

quatorze ou dezesseis milhões de habitantes, ligados entre si

através do seu imenso território por meio de transportes e

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comunicações que estavam bem longe de ser satisfatórios;

quando dispunha apenas de cinco escolas superiores, com um

serviço de instrução primária que, existindo nas cidades e nas

vilas, desprezada as povoações e os arraiais do interior; se, em

tais condições, já podia realizar um verdadeiro modelo de

moral política e de seriedade administrativa sob o governo

representativo de forma parlamentar, porque não pode4ria ele

agora, se o restabelecessem naquelas bases tradicionais da sua

evolução, fazer qualquer coisa de aceitável, quando a sua cifra

demográfica iguala a da França, da Itália ou da Inglaterra;

quando os seus serviços ferroviários, a sua navegação

marítima e fluvial, as suas estradas, automóveis e as linhas de

navegação aéreos que o atravessa, ligam os centros populosos

entre si mais afastados de toda a sua extensão territorial, em

tempo máximo de um mês e mínimo de apenas quatro dias;

quando em uma ou duas horas nos comunicamos pelo telégrafo

com os nossos compatriotas de qualquer ponto, desde as

grandes florestas do Amazonas às extremas do Rio Grande do

Sul e de Mato Grosso; quando a radiotelefonia, no mesmo

instante, faz ouvir em Santo Antônio do Rio madeira, em Brejo

de Areia ou em Santa Rita do Araguaia a mesma ária cantada

ou a mesma exortação proferida nos estúdios do Rio de Janeiro

e de São Paulo; quando as faculdades de Direito se contam

pelo número dos Estados, com diversas escolas de Engenharia,

de Medicina e múltiplos outros institutos científicos de criação

pública e particular de todo gênero, sendo especialmente de

notar que a instrução primária já vai, na sua grande difusão

pelo país inteiro, muito além do que ainda, a tal respeito,

deixam supor as nossas queixas habituais? ...

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Não temos estadistas?... Isso não prova que se haja

alterado o velho caráter do nosso povo, em que o grau da

cultura brasileira tenha diminuído. Prova apenas que o regime

de 15 de novembro, pela sua natureza despótica e opressora,

exclui necessariamente as formas superiores da inteligência,

pois transforma a vida pública num baixo concurso de

interesses, para cuja promoção e em cuja defesa a insídia e a

sobrevivência, aliadas a uma proporcional arrogância para com

os fracos, são as qualidades mais preciosas e eficazes. Não

faltam ao Brasil homens cultivados e de grande inteligência. O

que falta é o ambiente político no qual os seus predicados

possam manifestar-se em função da vida coletiva. O próprio

analfabetismo, de que tanto nos falam como irrecusável

motivo de protelação mais ou menos indefinida de um regime

de liberdade, é um argumento que, lançado por muitos sem a

mínima reflexão, da parte dos beneficiários das atuais

condições políticas, constitui uma simples artimanha.

Certamente o Brasil não tem, ainda uma organização de

instrução primária em satisfatória correspondência com a sua

cifra demográfica e a sua extensão territorial. Dizer, porém,

que o seu coeficiente de analfabetos se eleve a 90 ou 80%, é

uma alegação que, para fundar-se de alguma forma, precisa

recorrer a dados estatísticos do primeiro recenseamento feito

pela República, quando ainda influíam muito de perto as

condições sociais da passada escravidão. Não só a instrução

pública e particular se desenvolveu, daí para cá, em proporção

muito acima do crescimento geral da população, isto é,

determinando um número sempre muito maior de alfabetização

para um igual número de habitantes, como a nossa organização

escolar e os nossos métodos de ensino, em alguns Estados,

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chegaram a ultrapassar o que, no gênero, exista mesmo em

alguns países europeus. Não há mais das jovens gerações

brasileiras a espécie de aversão supersticiosa do alfabeto, que

ainda se nota nas classes rurais e mais pobres de certos povos

que conhecemos. Não saber ler e escrever constitui aqui, no

consenso geral do povo, a inferioridade, por assim dizer,

inicial dos indivíduos, sendo, confessadamente, a maior

vergonha para aqueles que em tais condições se reconhecem.

A não ser em habitações isoladas pelos sertões ou em certos

ermos do litoral, não há lugar privado de escolas regulares

onde não se encontre um professor de fazenda, um velho

padre, uma tia velha mais sabida, enfim, qualquer pessoa que,

mais ou menos, não se dedique ao nobre dever de ensinar os

primeiros rudimentos da leitura e da escrita. O analfabetismo,

com a extensão que lhe querem dar certos sociólogos

indígenas, não existe. Os mato-grossenses afirmam que no seu

Estado a porcentagem de analfabetos não vai além de 15. Em

Goiás, ela é calculada em 20. Trata-se de duas das nossas

regiões de território mais extenso e de menos e mais

disseminada população. Que motivos haveria para que as

coisas se passassem de modo diferente nos Estados mais

povoados e de maior adiantamento como São Paulo, Minas

Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia, ou Pernambuco?... Mesmo

dando todos os descontos imagináveis, pode-se seguramente

garantir que a média do analfabetismo no Brasil, representada

sobretudo por indivíduos maiores de 50 anos e imigrantes

estrangeiros, não ultrapassa nunca a cifra de 30, sobre cada

centena de habitantes.

Não há nas condições sociais do Brasil atual coisa

alguma que se oponha realmente à sua volta imediata a um

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regime político de liberdade. O essencial é que, enfim, nos

convençamos de que a liberdade política não é um voto

abstrato ou um simples motivo a meras dissertações teóricas –

mas uma coisa prática, que concretamente se expressa e

praticamente se realiza num sistema de leis claras e objetivas,

cujo mérito inicial esteja exatamente em prevenir e vedar com

vigilante intransigência toda e qualquer intervenção dos

processos governamentais e administrativos que lhe são

contrários. A técnica deste sistema, nós, para encontrá-la, não

temos mais que recorrer à nossa própria formação política

anterior, desprezando as pobres e lamentáveis fantasias nas

quais nos perdemos a partir de 1889. O trabalho que se oferece

a nossa inteligência nem mesmo chega a ser uma criação nova:

- é uma simples reparação. Reparemos o grande erro de 15 de

novembro, que se espelha no pretensioso e vazio documento

de 24 de fevereiro, erro imenso, cujas conseqüências nos

vieram arrastando até ao ponto de duvidarmos da grandeza de

nossa pátria, da sua esplêndida coesão nacional, do seu futuro

e da nossa própria dignidade de homens.

Trazido a um plano mais vasto e em muito maiores

proporções pelo seu crescimento vegetativo ou pela simples

ação do tempo, o Brasil ainda se encontra nas mesmas

condições para a revelação definitiva das suas grandes

faculdades nacionais, em que o deixou a monarquia em 1889.

A não serem os sofrimentos da última geração do império e

das que se lhe seguiram até agora, nada de realmente concreto

e profundo se perdeu. O nosso patrimônio nacional está intacto

e moralmente ainda somos uma das mais vividas e maiores

nações da terra. As grandes dificuldades que ora se nos

apresentam nos devem servir exatamente para nos dar a

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consciência dos desvios em que caímos e a firma e clara

decisão de corrigi-los. Socialmente, não temos problemas

profundos a resolver, e, economicamente, os embaraços atuais

não resistiriam certamente a simples mudanças dos métodos

administrativos que o produziram. A bem dizer, não há aqui

nenhum problema econômico, porque problema econômico não

pode existir racionalmente num país de oito milhões e meio de

quilômetros quadrados de terras férteis e imensamente ricas,

para 41 milhões de habitantes. O que há é apenas um problema

político, isto é, uma política geral profundamente errada,

donde resultou uma política econômica evidentemente

absurda, que nos faz viver contra os nossos interesses naturais

e fora do próprio senso comum. Faça-se desaparecer essa

causa inicial, e veremos como tudo se resolverá pela simples

reposição das coisas na sua ordem justa e natural. Para isto

precisamos realmente de novos hábitos políticos e de novos

métodos administrativos; precisamos de uma nova cons-

tituição, cujo espírito se funde nas qualidades práticas do

nosso povo e na índole da nossa evolução histórica, e não em

maravilhas de concepção abstrata, como se pretende a 24 de

fevereiro. Basta que ela se concretize, no ambiente

republicano, que, feita a Abolição, se destinava a realizar

quase integralmente o grande programa radical de 1869 – que

este era verdadeiramente a república, a nossa república, a

grande e livre República Brasileira, herdeira legítima e

imediata da monarquia liberal, da nobre “democracia coroada”

do imperador Pedro II.

Na crítica que, no nosso Cap. XIII, nos permitimos

fazer da constituição de 24 de fevereiro, já deixamos indicada,

em suas linhas gerais, qual deveria ter sido, racionalmente, a

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nossa evolução constitucional, na passagem da monarquia para

a república. Pela transformação do Brasil, de império

hereditário, em grande país republicano, devia-se tratar apelas

de conjugar a “plena autonomia dos municípios e províncias”

pedida pelo ministro Ouro Preto no seu discurso de 11 de

junho de 1889, com “a abdicação da coroa nas mãos do

parlamento”, tal como o conselheiro Saraiva a aconselhara ao

imperador, na entrevista que tiveram em março daquele ano.

Esta deveria ter sido a nossa entrada inteligente e natural no

regime republicano. A autonomia dos municípios e províncias

(ou Estados, como depois se resolveu chamar...) estaria

regulada com exatidão na constituição geral do país, de modo

a nela encontrar as suas garantias eficazes, com ela

intimamente se harmonizando, pelo emprego obrigatório do

sistema parlamentar, em qualquer das três esferas da nova

organização política. Ao invés disto, a abdicação da coroa,

tacitamente obtida na generosa submissão de Pedro II ao golpe

de 15 de novembro, deu-se nas mãos do presidente da

República que, pela redução do parlamento a uma assembléia

de simples funções orçamentárias, imediatamente revestiu-se

de todos os caracteres essenciais do déspota, na exata

compreensão antiga. O sistema tinha necessariamente que

generalizar-se ao país inteiro, pela submissão, de fato e de

princípio, dos congressos estaduais e das câmaras municipais

aos presidentes de Estado e aos prefeitos de municípios. Este

foi o erro; este é o erro que precisamos, que devemos

urgentemente reparar. E aí está a revolução que todos

desejamos e ainda não fizemos, a única a fazer, a revolução

necessária.

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(Transcrito da edição da Coleção Reconquista do Brasil, vol. 153; Belo

Horizonte, 1989)

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A QUESTÃO MILITAR

Nota introdutória de Antonio Paim

Além dos aspectos antes destacados, José Maria dos

Santos notabiliza-se pela forma original como interpretou a

chamada Questão Militar. Naturalmente, não se requer maior

acuidade para dar-se conta de que, justamente aquele evento

definiu a forma pela qual seria implantada a República: através

de um golpe de Estado que, de pronto, asseguraria a

hegemonia do Exército no novo regime.

Apesar disto, passaria desapercebido o fato de que não

havia, no seio da alta hierarquia militar, qualquer

predisposição naquele sentido. O desfecho verificado deve-se,

basicamente, à capacidade demonstrada por Quintino Bocaiuva

(1836/1912) de obstar, sistematicamente, as diversas tentativas

de minimizar os desencontros entre alguns oficiais do Exército

e as instituições.

Como demonstra o notável historiador, Quintino estava

convencido de que o encaminhamento dado à campanha

republicana não propiciaria a antecipação do que, a que tudo

indica, seria a busca de uma alternativa para o Terceiro

Reinado. Como sua atuação deixa entrever claramente,

perseguiu obstinadamente a solução militar.

O desenvolvimento que José Maria dos Santos

facultaria à sua tese encontra-se na parte introdutória do livre

Bernardino de Campos e o Partido Republicano Paulista

(Rio de Janeiro, José Olímpio, 1960), adiante transcrita.

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Precede-se uma breve caracterização do processo da

Independência e da fase em que se estruturaram as instituições

do governo representativo. A nota dominante desse período é a

evidência de que elite passou a dar preferência à solução

pacífica dos problemas emergentes, encontrando sempre a

maneira adequada de alcançá-la.

Escreve, a esse propósito: “É evidente entretanto que os

estadistas e os homens de pensamento no Brasil, com a

educação política dos oitenta e um anos (quase um século) da

independência, que vêm de 1808 a 1889, não podiam

compreender a ascensão final do seu país à democracia

completa, no regime republicano, senão por evolução legal das

instituições anteriores. Dentro das condições históricas que

temos examinado, o Brasil – caso único, na América – tivera a

ventura de operar o seu desenvolvimento político em paralelo

com os povos mais cultos e adiantados do Velho Mundo,

passando do poder absoluto para a liberdade, por transferência

progressiva da soberania do rei para a nação, segundo o

processo representativo parlamentar. Depois da penosa e longa

experiência do primeiro Império e da Regência, de maneira

alguma chegavam eles a pensar na extinção da Monarquia por

um golpe de força, mais ou menos assemelhado aos

desconcertantes e intermináveis pronunciamentos do mundo

hispano-americano. As mutações políticas daquele gênero,

havendo sempre falhado aqui, não estavam na nossa índole

histórica nem era dos nossos hábitos.” (págs. 19/19, da edição

citada).

Segue-se a transcrição da caracterização que

empreende, da Questão Militar, no livro mencionado.

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TEXTO DE JOSÉ MARIA DOS SANTOS

CAPÍTULO II

PEDRA DE TROPEÇO

A Questão Militar, a nosso ver, não foi senão uma das

muitas conseqüências psicológicas da longa luta política da

Abolição. O permanente estado de exaltação em que viveu o

Brasil desde que se tornou patente a insuficiência da Lei do

Ventre Livre, não podia deixar de ir mais ou menos atingindo e

comprometendo os vários fundamentos da autoridade. Não é

fácil a muito rigorosa observância de regulamentos e estatutos,

num país em contínua agitação, tocando com freqüência às

raias da rebeldia ou da revolta. Dada a grande flexibilidade das

nossas instituições e dos nossos costumes políticos daquele

tempo, sempre capazes de iludir ou contornar os mais agudos

pontos de fricção, a estrita ordem material, na vida pública,

não deixou de ser mantida. Não se poderia entretanto evitar o

constante e crescente desassossego dos espíritos, a manifestar -

se com maior ou menor evidência nas naturezas mais sensíveis

e exaltadas. A disciplina coletiva é sempre função de um certo

estado mental de conjunto, envolvendo as diferentes camadas

sociais, e por aí interessando imediatamente o poder público.

Sem uma certa calma dos espíritos não há correto

entendimento dos vários interesses, pois a predisposição geral

é continuamente reatora. Este é sem dúvida o sinal

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característico desses grandes períodos de evolução, sem os

quais talvez não houvesse progresso na vida das nações. Mas,

por isso mesmo que se trata de romper um certo equilíbrio, em

procura de um outro sobre novas bases, tudo passa a tender

facilmente ao debate ou à discussão. A constante agitação dos

meios políticos e partidários, com as suas fáceis imputações de

violência e as suas mútuas invectivas, diminuindo a confiança

nas soluções justas e adequadas, vai comunicando-se aos

vários ramos da vida coletiva, por toda parte instigando às

atitudes de réplica ou de defesa. É o próprio processus da

oposição, nos seus momentos decisivos...

Este foi o estão de ânimo que se foi transmitindo, não

dizemos às fileiras do Exército, mas pelo menos aos elementos

mais ativos e destacados do seu corpo de oficiais em quase

todas as guarnições, a começar pela da corte.

A primeira manifestação da chamada Questão Militar

vem certamente do gabinete Sinimbu, de 5 de janeiro de 1878.

O mundo político e parlamentar, partindo sempre da questão

fundamental da Abolição, agitava-se fortemente em torno ao

projeto do voto direto, que devia completar, com progresso

eleitoral, a lei do terço ou das minorias, de 20 de outubro de

1874. A Câmara dos Deputados havia sido dissolvida em 1877,

só tendo sido possível reunir-se uma outra, em sessão

extraordinária, a 15 de dezembro de 1878. Nos primeiros dias

de 1879 a Comissão de Marinha e Guerra dessa nova Câmara

propôs um aditivo à lei de fixação de forças, mandando

diminuir o número das praças de pré nas várias unidades do

Exército, extinguindo um posto de alferes em cada companhia,

fundindo os vários corpos científicos em um só e eliminando

em todas as armas o posto de tenente-coronel e as graduações

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de furriel e anspeçada. Na Marinha, o mesmo aditivo

prescrevia a supressão do Conselho naval, a redução dos

quadros de combatentes e comissários, a diminuição dos

vencimentos dos maquinistas e a extinção do Batalhão Naval.

Tudo leva a crer que se tratava de medidas de heróica e

rigorosa economia Já estavam estas disposições aprovadas em

segunda discussão quando se deu, exatamente no dia 11 de

maio e no prédio nº 83, da Rua 7 de Setembro, uma grande

reunião de oficiais de terra e mar que, condenando essas

reformas, como foi dito, por ferirem de morte as corporações

militares, resolveu nomear uma comissão que as viesse

analisar e combater pelos jornais... Foram designados, pelo

Exército, o general Francisco Carlos da Luz, o Major Sena

Madureira, os engenheiros militares Jacques Ourique, Luís

Mendes d Morais e Garcez Palha e, pela Marinha, o Capitão-

de-Mar-e-Guerra Eduardo Wandenkolk, o Comandante

Saldanha da Gama, os Primeiros-Tenentes Pinto Bravo e

Garcez Palha, o oficial de Fazenda Lima Franco e o

maquinista Gabriel Ferreira da Cruz. A discussão abriu-se logo

e com grande sensação pelos Apedidos do Jornal do

Comércio.(14)

Ora, além de um aviso já existente desde 1859, um

outro fora expedido a 14 de setembro de 1878 vedando aos

militares a faculdade de manifestar-se pela imprensa sobre

objeto de serviço, sem prévia autorização do ministro

respectivo. Seguiram-se portanto várias reações de caráter

administrativo, dando em resultado algumas sanções

disciplinares que, regularmente, puseram termo ao incidente.

Mas o aditivo parlamentar foi abandonado, sendo os artigos do

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Jornal do Comércio logo depois reeditados em volume, sob o

título característico e muito sugestivo de Questões Militares...

Este foi realmente o início. Em 1883 o caso reproduziu-

se. Tendo deixado a 23 de maio daquele ano a presidência do

gabinete de 3 de julho de 1882, substituído pelo gabinete

Lafaiete no dia 24, o Senador Visconde de Paranaguá

apresentou à sua Câmara, no mês de junho, um projeto de lei

criando um montepio de contribuição obrigatória para os

militares e alterando as condições da reforma no Exército e na

Marinha. Deu-se imediatamente uma reunião no gênero da de

11 de maio de 1879, com designação de uma nova comissão

que, recebendo desta vez o nome de Diretório de Resistência ,

delegou os seus poderes individualmente ao já então Tenente-

Coronel Sena Madureira. Dada a habitual impetuosidade desse

oficial, que era realmente um brilhante polemista, a discussão

impressa assumiu logo um caráter de grande veemência(15).

Seguiram-se as mesmas reações administrativas, mas, não

tendo ido por diante o projeto Paranaguá, não advieram

maiores conseqüências. Com este renovo, entretanto, ficou

definitivamente lançada perante o público a questão do livre

direito dos militares de discutir, como quaisquer outros

cidadãos, os negócios governamentais de qualquer espécie que

os tocassem de perto(16).

No ano seguinte os ânimos inflamavam-se novamente,

desta vez partindo de um incidente imediatamente ligado à

Abolição. No mês de abril, a Confederação Abolicionista

acolhia em grande festa no Rio de Janeiro o jangadeiro

cearense Francisco do Nascimento que, ajudado pelo Clube do

Cumpim de Pernambuco, muito se distinguira a passar

escravos de vários pontos do Nordeste para a sua província.

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Levado a visitar a Escola de Tiro de Campo Grande,

Nascimento recebe dos alunos uma manifestação estrepitosa,

com tácito assentimento do comandante, que era muito

exatamente o Coronel Sena Madureira. Noticiado o fato pelos

jornais, manda o ajudante-general do Exército ao comandante

que o informe do ocorrido para fins disciplinares. Sena

Madureira responde que nada tem a informar àquela

autoridade, uma vez que a sua escola depende diretamente do

diretor-geral da artilharia, o marechal Conde d‟Eu... O

Ministro da Guerra interessa-se pelo assunto, mandando

demitir e repreender em ordem do dia o comandante. Este em

seguida é transferido da corte para o Rio Grande do Sul.

Sena Madureira, naturalmente, não se esqueceu de

trazer o incidente para os jornais, determinando um grande

interesse entre os seus camaradas que definitivamente o

passaram a ver como o herói dos seus direitos civis,

esquecidos pelos políticos. A atmosfera de agitação em torno a

essas pretensões não fez senão se acentuar. No decorrer de

1885 surge um novo caso. O Coronel Cunha Matos, em serviço

de inspeção, descobre irregularidade nos fornecimentos a uma

companhia isolada com sede no Piauí. Imediatamente dá parte

às autoridades superiores, pedindo o afastamento do respectivo

comandante, o Capitão Pedro José de Lima, e a nomeação de

um conselho de guerra que devidamente apure as

responsabilidades. No fundo, tratava-se de um caso bem

simples, no qual Cunha Matos apenas cumpria muito

regularmente o seu dever. Mas surgiram complicações

incalculáveis. Tendo o Capitão Lima retorquido com uma

queixa contra o coronel, a quem acusava de parcialidade de

inspiração política, o Deputado Coelho de Resende quis tomar-

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lhe as dores no Parlamento, dirigindo ao Ministro da Guerra,

Alfredo Chaves, um pedido de informações. O deputado

concitava o ministro a ser discreto e cauteloso, porque,

segundo disse na tribuna, os militares que se imiscuem na

política, não só conhecem as regras da estratégia como têm

ainda a argúcia da raposa. O Coronel Cunha Matos resolve

então – e aí começa o verdadeiro caso – contestar pela

imprensa as observações do deputado, dizendo entretanto não

pretender levantar os insultos que este lhe dirigira na tribuna

irresponsável... Nesta primeira publicação, Coelho de Resende

era dado como parceiro habitual do Capitão Lima no jogo do

solo, na vida provinciana de Teresina. O deputado volta à

tribuna para atacar desabridamente o coronel, acusando-o de,

quando prisioneiro de Lopes, haver-se posto a serviço do

ditador, dirigindo o fogo das baterias paraguaias contra as

nossas posições(17). As cousas tomaram então um curso

francamente lamentável. Treplicando em novos artigos pela

imprensa. Cunha Matos critica o Ministro da Guerra por não

haver sabido dominar o incidente. O ministro chamado à fala

por esta forma, o manda censurar e prender disciplinarmente.

Em tais condições, era natural que no Parlamento alguém

surgisse também em defesa de Cunha Matos. Com todo o seu

prestígio de incontestável herói do Paraguai e grande chefe

liberal na sua província, levantou-se no Senado o general

Visconde de Pelotas. para ele não havia como recusar o direito

de defesa a um oficial ofendido em sua honra. O Senador

Barros Barreto aparteia: se as leis o permitissem... O velho

soldado exalta-se e retruca: Eu não digo que as nossas leis o

permitam: estou dizendo ao nobre Ministro da Guerra o que

eu entendo que deve fazer um militar quando é ferido em sua

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honra, e que fique sabendo o nobre senador por Pernambuco

que quem está falando assim, assim procederá sem se

importar que haja lei que o vede. Eu ponho a minha honra

acima de tudo! Alfredo Chaves então observa ao orador que o

Coronel Cunha Matos havia sido punido, não pelo que

escrevera em revide aos ataques do deputado, mas por haver

discutido pela imprensa assuntos militares, sem prévia licença,

contra todas as disposições legais.

Apesar de tudo, o incidente parecia terminado. Estava-

se na segunda metade de 1886. Ressurge porém do Sul o

Tenente-Coronel Sena Madureira. Na edição de 16 de agosto

do jornal A Federação, de Porto Alegre, ele faz uma longa

publicação para comentar o caso Cunha Matos, em função de

tudo quanto com ele mesmo se passara. A sua tese era a de que

os avisos ministeriais, sobre os quais se basearam as sanções

tomadas contra Cunha Matos e contra ele próprio, eram

constitucionais, pois feriam de frente a Constituição de 1824

na parte em que assegurava a todos os brasileiros o direito de

livre manifestação do pensamento. Reproduzido o seu artigo

no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, o ministro da

Guerra, em data em ordem do dia do exército. Não se

conformando, Sena Madureira replica com um memorial

pedindo um conselho de guerra, perante o qual espera firmar a

sua doutrina da inconstitucionalidade dos avisos ministeriais,

para o fim de tornar nulas e fazer cancelar todas as sanções

daquela espécie. As questões de ordem disciplinar escapam

entretanto à alçada dos conselhos de guerra O conselho pedido

é recusado, mantendo-se não somente a punição como sendo

ainda o requerente demitido do comando da Escola

Preparatória e Tática do Rio Pardo, no qual se achava. A

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Questão Militar precipita-se então no seu período mais intenso

e agitado. Com assentimento declarado do Marechal Deodoro

da Fonseca, comandante das armas e vice-presidente em

exercício na província do Rio Grande do Sul, os oficiais da

guarnição de Porto Alegre realizam uma reunião de classe para

aderir publicamente à doutrina dos avisos ministeriais

sustentada por Sena Madureira. A atitude do Marechal

Deodoro era tanto mais estranha e inexplicável quanto

anteriormente, no exercício das mesmas funções, havia

mandado submeter a processo um oficial subalterno por haver

recorrido à imprensa na defesa de seus interesses particulares.

Interpelado pelo governo e aceitando a responsabilidade do

que se dera, Deodoro é logo retirado daquelas funções e

chamado ao Rio de Janeiro. Mas a sua chegada à corte não faz

senão aumentar a agitação. Recebido em triunfo pelos oficiais

da guarnição, com integral comparecimento da Escola Militar

da Praia Vermelha, ele, ao lado do Visconde de Pelotas, entra

a desenvolver uma grande atividade no sentido de provocar

uma intervenção direta da coroa contra a política seguida no

caso pelo governo. De posse de numerosas adesões enviadas

de todas as guarnições das províncias, menos a de

Pernambudo, onde comandava o Coronel Mallet, ele convoca

para o dia 2 de janeiro de 1887 uma grande reunião de oficiais

no Teatro Recreio Dramático, para tomar deliberações. Era um

verdadeiro meeting popular, bem no gênero e em um dos locais

mais preferidos dos naquele momento tão em voga a favor da

Abolição... A reunião realizou-se com a sala cheia de oficiais

do Exército e da Marinha, e repleta de espectadores civis todas

as demais dependências do teatro. A mesa diretora dos

trabalhos, disposta no palco, sentaram-se, ladeando o marechal

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os Coronéis Cunha Matos e José Simeão e os Tenentes-

Coronéis Sena Madureira e Benjamim Constant. Ai foi

aprovada a seguinte resolução: - 1º) Os oficiais de terra e mar,

presentes a esta reunião, não julgam terminado com honra

para a classe militar o conflito suscitado entre esta e o

governo, enquanto perdurarem os efeitos dos avisos

inconstitucionais, que foram justamente condenados pela

imperial resolução de 3 de novembro último, tomada sobre

consulta do venerando Conselho Supremo Militar(18). – 2º)

Pensam também que só a cessação de qualquer medida,

tendente a perseguir os oficiais pelo fato de terem aderido à

Questão Militar, poderá acalmar a irritação e o desgosto que

reinam nas fileiras do Exército. – 3º) Recorrem confiantes à

alta justiça do Augusto Chefe da Nação, para pôr termo ao

estado de agitação em que se acha ainda a classe militar, que

só provas de resignação e disciplina até hoje tem dado. – 4º)

resolvem dar plenos poderes ao Exmo, Sr. Marechal-de-

Campo Manuel Deodoro da Fonseca, presidente desta

reunião, para representá-los junto ao governo de S. M. o

Imperador, no intuito de conseguir uma solução completa do

conflito, digna do mesmo governo e dos brios da classe

militar.

Esta resolução, tentando colocar-se entre a coroa e o

governo do Parlamento, procurava forçar naturalmente um

golpe de estado... Pero II, entretanto, sempre fiel aos seus

deveres de rei constitucional, negou-se a dela tomar

conhecimento. Não há dúvida porém de que nos meios

políticos e governamentais foi feito um certo trabalho para, de

alguma forma, a ela dar satisfação. Oficiosamente foi

entendido que o governo mandasse trancar as notas referentes

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a todas as sanções disciplinares oriundas da Questão Militar,

uma vez que os respectivos interessados individualmente o

requeressem. A maioria dos oficiais, no Rio de Janeiro,

pronunciou-se por essa solução, achando-a correta e suficiente.

Mas Sena Madureira e Cunha Matos discordaram. Parecia-lhes

que, se o trancamento das notas era cabível, devia ser

ordenado ex-officio, sem a nova humilhação de um pedido

pessoal. Ao governo cabia portanto penitenciar-se... Trazida

esta objeção para os jornais, com o caráter que não podia

deixar de ter, aquele acordo discreto e tolerante fracassou,

aumentando, por contragolpe, o mal-estar e a irritação. A

declaração do Recreio Dramático, pretendendo dirigir-se ao

imperador por cima do Parlamento e do governo, seguira

evidentemente um caminho errado. O Marechal Deodoro

resolveu mudar de direção. Rui Barbosa foi encarregado de

redigir sobre a questão um longo Manifesto ao Parlamento e à

Nação, que, assinado a 14 de maio pelo marechal, e pelo

general Visconde de Pelotas, logo encontrou publicidade nas

colunas dO País. Os meios parlamentares então emocionaram-

se, decidindo-se a intervir. Por iniciativa do verdadeiro gênio

de conciliação que era o Conselheiro José Antônio Saraiva,

Silveira Martins subia à tribuna do Senado seis dias depois,

para dizer:

“Sr. Presidente: o governo imperial, por resolução de 3

de novembro do ano passado, tomada sobre consulta do

Conselho Supremo Militar de Justiça, firmou este princípio:

“É livre ao militar, como a qualquer cidadão, o

exercício do direito de liberdade de imprensa sem prévia

censura, e contrária à disciplina qualquer discussão entre

militares sobre objetos de serviço.

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“Deste princípio deduz-se:

“Que todas as penas disciplinares anteriormente a esta

resolução impostas a militares por uso indevido da imprensa,

fora do caso específico na consulta, constituem outros abusos,

cujos efeitos devem cessar.

“A ordem social não tem mais nobre e elevado fim do

que a justiça, e não haverá justiça enquanto haja militares que

sofram apenas por terem exercitado direitos que o governo

reconhece aos seus camaradas.

“Para que justiça se faça mando à mesa a indicação

seguinte:

“Requeiro que, à vista da imperial resolução de 3 de

novembro de 1886, tomada sobre consulta do Conselho

Supremo Militar, de 18 de outubro do mesmo ano, o Senado

convide o governo a fazer cessar os efeitos das penas

disciplinares, anteriores à resolução, impostas a militares por

uso indevido da imprensa, fora do caso especificado na

consulta do Conselho Supremo como contrária à disciplina do

Exército.”

A interpretação aí dada à resolução de 3 de novembro

aceitava o destinguo, certamente curioso, levantado por Sena

Madureira e Cunha Matos de que as discussões que haviam

mantido pela imprensa não haviam sido discussões entre

militares, mas entre militares e civis, não podendo, portanto,

serem consideradas como contrárias à disciplina, apesar de

versarem, como realmente versaram, sobre exclusivo objeto de

serviço. Mas, posto a votos, o requerimento de Silveira

Martins foi aprovado por 33 votos sobre 34. Contra, votou

apenas o Senador Silveira da Mota. Cotegipe concordou,

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exigindo apenas que a expressão o Senado aconselha, como

fora escrito anteriormente, fosse substituída pela o Senado

convida, como ficou. Entretanto, tudo encerrado, não pode ele

deixar de confessar que o governo saia da refrega com alguns

arranhões na dignidade...

Mas, assim, tentava-se abafar de uma vez a

inconseqüente e áspera questão.

* * *

Força será reconhecer que, tanto da parte de Pelotas e

Deodoro, como do lado da oficialidade que se considerava sob

a proteção deles, nenhuma idéia política, compreendida

propriamente no sentido partidário, podia haver em tudo

aquilo. Tratava-se de uma questão de puro espírito de classe,

tendente a uma equiparação desusada e arbitrária dos militares

aos civis, no direito de livre manifestação do pensamento. O

anseio inquieto e mais ou menos absurdo de elevação civil que

ali se nota, era apenas produto do ambiente especial daquele

instante em que todo mudo discutia e perorava, tomado de

irresistíveis propensões para tribuno popular(19). Era a

atmosfera geral da Abolição...

Numa velha sociedade, com as suas várias categorias

solidamente definidas por longa tradição, as cousas talvez se

passassem de outra forma, melhor guardando cada um a sua

exata posição. Mas num país americano recém-egresso da

colônia, que precisamente revia no momento as suas bases

econômicas ou os próprios fundamentos da sua vida social,

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não havia muito como consolidar certos deveres na defesa

consciente e determinada de dados interesses. A reclamar

como uma prerrogativa de classe o direito de agir como toda

gente, os militares apenas demonstravam que no Brasil

daquele instante não havia classe alguma, tudo encontrando-se

em fase aguda de solução. não se pode negar entretanto que,

devido ao modo peculiar de evolução que nos coubera em

meio aos grandes acontecimentos do início do século passado,

nós já tínhamos uma certa consciência pública, um certo modo

de ser político e sociológico, muito diferente do reservado aos

outros povos do continente. Nem no Exército nem nos meios

políticos verdadeiramente responsáveis alguém pensava em

soldar a Abolição à República, ao calor de uma revolta de

quartéis. A Questão Militar, até a sua penúltima hora, não teve

realmente este caráter, sobre isto havendo provas e

testemunhas irrecusáveis. Em junho de 1890, o general

Visconde de Pelotas, que a ela tanto se ligara, como temos

visto, escrevia ao Visconde de Ouro Preto: O pronunciamento

da guarnição do Rio, que deu um resultado a proclamação da

República, me surpreendeu mais do que a V. Exa. que dele

teve aviso horas antes. Eu, porém, de nada soube até o

momento em que o telégrafo nos transmitiu essa notícia (o

general estava em Porto Alegre); recebendo nessa mesma

ocasião a nomeação de governador deste Estado, que aceitei

para evitar perturbação da ordem pública e talvez mesmo a

guerra civil no Rio Grande do Sul. Não julgava possível a

República enquanto vivesse o imperador, e daí a minha

surpresa(20). Em 1900 foi dado à publicidade o Volume IV da

Década Republicana. O Fascículo IX, no qual se estuda a

administração do Exército no período republicano, foi

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confiado ao Coronel Cunha Matos, já então elevado ao

generalato. Examinando a mútua situação dos militares nos

dois regimes, aí está como ele recorda a Questão Militar: Sob

o Império, as prerrogativas de que gozavam os oficiais do

Exército, “ex-vi” da Constituição e das leis, jamais foram

violadas por quem mais alto estivesse (pág. 11)... Em 1886, o

Exército do Império, unido, teve bastante força e ombridade

para, levantando a Questão Militar, alcançar notável vitória

parlamentar contra o governo(21). Tratava-se do direito que

tinham os oficiais do Exército de recorrer à imprensa, fora

dos casos não permitidos por disposições expressas (pág. 13).

Insistindo ainda no direito dos militares a manifestarem-se

livremente pela imprensa, o General Cunha Matos mostra bem

as agitações em que tomou parte não iam além de uma formal

afirmação daquele suposto direito, sem outras nem maiores

pretensões políticas. Não deixa também de ser interessante

recordar que o Tenente-Coronel Sena Madureira, para eximir-

se em 1884 às explicações que lhe ordenava o ajudante-general

do Exército sobre o incidente do jangadeiro Nascimento, na

Escola de Tiro de Campo Grande, se procurava cobrir coma

autoridade do marechal Conde d‟Eu, diretor-geral da artilharia,

de certa forma defendendo senão mesmo exaltando essa

autoridade. Ora, o príncipe consorte, por vários motivos que

de tão propalados na época não vale a pena relembrar, era nos

meios republicanos o menos estimado de todos os membros da

família imperial. Uma das mais freqüentes alegações de

inviabilidade da Monarquia, após a morte do Imperador Pedro

II, era exatamente a possível influência que ele viesse a ter no

reinado de sua esposa. Como explicar então que Sena

Madureira, se já era republicano e realmente agia no sentido

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da revolução antimonárquica, se quisesse precisamente

acobertar com o prestígio de tão detestada e característica

entidade? Dirão talvez que ele assim fazia por simples

estratagema. Força será porém reconhecer que tal suposição de

nenhum modo se coadunaria com o caráter do impetuoso

oficial, no qual tudo se poderá encobrir, menos uma irredutível

e quase feroz sinceridade.

Ora, a Questão Militar, nem para os homens do

Exército, nem para aqueles outros que por sua posição nela se

viram envolvidos, nunca teve o caráter de uma conspiração

política, preparada com exata consciência e com método

conduzida. Para uns como para outros, foi sempre um caso de

disciplina, disciplina que os primeiros pretendiam relaxar ou

tornar mais flexível, e os outros queriam manter nos limites

legais estabelecidos. A própria resolução do Senado,

convidando o governo a cancelar as sanções anteriores, serve

para demonstrar a completa ausência de um real senso político

em tudo aquilo. Estando no poder um governo conservador e

partindo a moção de senadores liberais, poder-se-ia talvez

descobrir na iniciativa um golpe partidário contra o Gabinete.

Mesmo no Senado houve quem a quisesse assim considerar.

Lançada a idéia da moção por Silveira Martins, com o apoio de

Saraiva, Outro Preto e Francisco Otaviano, logo Sousa Dantas,

Franco de Sá e Cândido de Oliveira discordaram, sob o

fundamento de não desejarem o poder por aqueles meios. Tudo

porém foi explicado. Não se tratava de um ataque ao gabinete,

mas, bem ao contrário, de facilitar-lhe uma saída daquele

impasse. Ouro Preto, para não deixar qualquer suspeita,

insistiu em que realmente o Partido Liberal não poderia voltar

ao governo por um caminho aberto pelas baionetas, sendo

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secundado por Silveira Martins que ajuntou: O Partido Liberal

não assalta o poder por meio de pronunciamentos militares.

Estas declarações eram profundamente sinceras, pois além dos

motivos morais que as ditavam, havia para as apoiar ainda as

mais sérias razões de caráter partidário. Realmente, entre a

demissão do último gabinete Saraiva e a Abolição, não podiam

os chefes liberais pretender a sucessão do governo Cotegipe. O

esforço que eles faziam no sentido de resolver a Questão

Militar era, portanto, sem o mínimo egoísmo e animado do

mais nobre desinteresse, entrando aliás naquela tendência à

intimidade interpartidária que temos estudado como uma das

manifestações mais características daquele instante. Cotegipe

foi de tudo previamente ouvido e consultado, tendo resumido o

seu assentimento nesta frase: Sim pois não me viriam propor o

que não fariam se, como eu, fossem governo .

Se a Questão Militar não tinha caráter político nem para

os oficiais que a lançaram, nem para os estadistas da

Monarquia que a tiveram de enfrentar, restaria saber como a

viram os políticos republicanos. Desse lado existe um

documento extremamente conclusivo. É um discurso

pronunciado por Bernardino de Campos na Assembléia

Legislativa de São Paulo no dia 6 de fevereiro de 1888, sobre

cousas da propaganda, imediatamente ligadas à política do

tempo. Mas, aqui, sobretudo para o leitor que ainda não teve

em mãos Os Republicanos Paulistas e a Abolição devemos

intercalar um pequeno retrospecto.

O Partido Republicano Paulista, logo ao nascer em

1873, dividiu-se em dois ramos em torno ao problema da

extinção do cativeiro. De um lado, ficaram, em seu maior

número, os membros do antigo Clube Radical, que, havendo

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sempre considerado a Abolição como o ponto principal do

seuprogama, mantiveram-se inquebrantavelmente fieis à

campanha libertadora. De outro, tomaram posição os homens

da lavoura, todos proprietários de escravos em suas terras,

que, tendo aderido às idéias republicanas em represália à lei de

28 de setembro de 1871 que libertou os nascituros do ventre

escravo, não podiam aceitar os princípios contra os quais

exatamente se revoltavam. Entre estes dois grupos maiores,

ficou um terceiro, composto de radicais que resolveram

respeitar as reservas antiabolicionistas dos fazendeiros, em

nome da prosperidade ou da pujança do partido.

Dado que o lado dos senhores agrários, somado ainda

aos radicais condescendentes, era o mais numeroso e mais

rico, foi naturalmente o que logo predominou nos pontos

diretores, levando o partido, nas suas manifestações oficiais, a

totalmente desinteressar-se das cousas da Abolição. O outro

lado, a lutar bravamente pela emancipação dos negros, foi

mantido em segundo plano, não merecendo lugares na

comissão diretora nem cadeiras no Parlamento. Mas, tendo a

campanha abolicionista chegado a tudo dominar e absorver na

vida do país, o partido foi caindo num certo esquecimento,

tendendo a minguar, senão mesmo a dissolver-se. Depois de

haver logrado enviar dois deputados ao Parlamento nacional, o

Partido Republicano Paulista, nos fins de 1887, já não sabia

como guardar dignamente a sua posição na Assembléia da

província. Foi então resolvido, a título de salvação, abdicar

francamente perante o abolicionismo. Por decisão conjunta dos

elementos principais do lado agrário, foi eleito deputado ara a

próxima legislatura provincial e elevado à presidência da

comissão diretora o advogado Bernardino de Campos, no

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momento, a figura mais notável e de maior prestígio do ramo

abolicionista(22).

Muito acatado não só pelos seus antigos companheiros

do Radicalismo como por um grande número de homens novos

recém-chegados à vida pública, não foi difícil ao presidente

recém-eleito imprimir ao partido uma vida nova. Pondo logo

em ação intensiva todos os meios usuais de propaganda da

imprensa diária e da tribuna popular, ele promoveu ainda uma

representação de várias câmaras municipais ao Parlamento do

Império, pedindo a imediata reforma da Constituição de 1824,

nos seus dispositivos sobre a forma do governo. O Barão de

Cotegipe, presidente do Conselho de Ministros, manda ao

presidente da província que faça proceder judicialmente contra

os vereadores tornados responsáveis. Naquele dia 6 de

fevereiro, Bernardino de Campos, já empossado na sua cadeira

de deputado, vem à tribuna da Assembléia defender as câmaras

inculpadas. Da discussão geral então aberta, resultou uma

moção de censura à presidência da província, que, aprovada

por grande maioria com participação dos representantes do

Partido Conservador, que sustentava o gabinete, se converteu

numa demonstração de rompimento da seção paulista daquele

partido com o presidente do Conselho. Ali começou realmente

a crise ministerial que, no dia 7 do mês seguinte, determinava

a demissão do gabinete Cotegipe, abrindo a porto ao governo

João Alfredo, para, dois meses depois, trazer a Abolição. No

seu veemente requisitório contra o Ministério Cotegipe,

Bernardino de Campos não se limitou apenas ao caso

especialmente republicano das câmaras municipais. Abrangeu

toda a vida do gabinete, envolvendo com as suas atitudes

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perante a campanha abolicionista as suas recentes medidas

sobre os últimos incidentes da Questão Militar.

Mas, avocando ao seu partido a defesa das câmaras

municipais, ao mesmo tempo que oficialmente o articulava ao

movimento abolicionista, ele não pôs menor empenho nem

menor veemência em escoimá-lo de qualquer sombra de

interesse ou simpatia pela escandalosa manifestação de

indisciplina partida dos quartéis. Perante os conceitos que

então emitiu sobre a posição na qual se colocou o governo

Cotegipe ao aceitar a moção de cancelamento das sanções

disciplinares, não há realmente como admitir qualquer ligação

de princípio entre a Questão Militar e a propaganda

republicana. Para ele, tão abusiva e reprovável era a atitude

dos militares, quanto deprimente e lamentável a tolerância

contida naquela decisão. Ao concluir o seu discurso, ele

insistiu ainda. Será necessário que eu rememore outra vez as

capitulações aviltantes do poder público, toda vez que o poder

armando se ergue diante dele?... Bernardino de Campos não

somente condenava ser reservas a rebeldia militar, como tinha

por indignos de exercer o poder público aqueles que com ela

condescendiam. Considerando-se que tais idéias partiam do

presidente do PRP, isto é, do elemento naquele instante mais

representativo e autorizado do único partido republicano

realmente existente, temerário não seria admitir que os

verdadeiros republicanos - os vindos ara a República por

evolução consciente e normal do liberalismo – não podiam ver

a hipótese de uma ascensão ao poder ao sabor de um

pronunciamento militar com menor repulsa que Ouro Preto,

Silveira Martins ou qualquer outro dos grandes chefes liberais.

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Dentro das condições históricas e sociais do povo

brasileiro, a Questão Militar foi bem uma das várias

manifestações do ambiente mental da Abolição. Igual na

origem à confusão dos partidos, e dessa confusão participando

a todo instante, ela naturalmente se resolveria, uma vez

cessada a causa geral da agitação. Só quem não calcular

quando a escravidão se entranhava na vida brasileira, terá

como desarrazoado ou excessivo este conceito. Quando, com a

subversão das bases econômicas da sociedade, as várias

relações se alteram e se deslocam, como manter intangível

uma instituição como o Exército, que, destinada a

materialmente garantir aquelas relações, sobretudo repousa na

obediência? Mas o abolicionismo era apenas um grande

momento de transição. Passado ele, tudo se restabeleceria na

ordem normal da nossa evolução, segundo os nossos velhos

hábitos políticos. Os partidos tradicionais automaticamente se

recomporiam em plano diferente, restabelecendo-se com o

novo equilíbrio das idéias a disciplina geral correspondente.

Assim, devia operar-se a passagem da Monarquia ara a

República, se o fenômeno abolicionista se tem encerrado

normalmente, em todas as suas faces e repercussões, sem

qualquer intervenção estranha ou acidental.

A todos era patente que a Monarquia portuguesa,

naturalizada brasileira na pessoa do Imperador Pedro II,

inevitavelmente se extinguiria com a morte do grande neto de

D. João VI. Todos assim pensavam, todos desta fatalidade

histórica estavam certos. Mas a ninguém ocorria que a grande

transição, aliás bem pouco significativa em sua ausência, se

operasse por um golpe militar. Ninguém queria nem mesmo

acreditava que assim fosse. Para admitir uma possível

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transformação política do Brasil sob a forma sumária e

primitiva de uma revolta de quartéis, seria indispensável estar

fora da mentalidade brasileira, sentindo contra a nossa índole e

pensando para além das nossas fronteiras nacionais .

Ora, esta era exatamente a posição, ou, melhor, este era

o exótico e forasteiro ponto de vista de Quintino Bocaiúva...

NOTAS

(14) Havendo as autoridades da Marinha concentrado as suas atenções um

pouco especialmente sobre o Comandante Saldanha da Gama, os seus

companheiros de comissão, apesar de ele não concordar, resolveram

exclui-lo, dando-lhe como substituto o 1º Tenente Pinheiro Guedes.

(15) Aliás, no seu perpétuo conflito com as exigências da disciplina

militar, o Coronel Sena Madureira fôra cer tamente um predestinado. Já

em 1868, quando ainda oficial subalterno servindo na guerra do Paraguai,

ele chegou, num momento de irritação, a pedir demissão do Exército.

Enviado o seu requerimento ao Marquês de Caxias, para informar, aqui

está o que disse o grande general em chefe dos exércitos aliados: “É

oficial de inteligência e tem mostrado valor, mas é muito insubordinado,

pelo que acaba de cumprir uma sentença, imposta pela Junta Militar, em

conseqüência de ter falado a respeito a um general deste Exército,

debaixo de cujas ordens servia. Talvez seja por despeito que agora pede

demissão e parece-me que ela lhe não deve ser concedida, não só porque

não o julgo com direito adquirido, como mesmo porque tal concessão iria

ofender diretamente a disciplina do Exército, além de ser falso que tenha

numerosa família, pois é moço e solteiro.”

(16) No Cap. XI da Política Geral do Brasil, págs. 189 a 201, demos o

projeto Paranaguá como sendo o ponto de partida da Questão Militar.

Orientados porém pelas Efemérides Navais, do Comandante José E.

Garcez Palha (supomos que aquele mesmo 1º Tenente da comissão de

1879), pág. 43, ed. da Tipografia da Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro,

1891, conseguimos agora restabelecer os dados daquele verdadeiro

incidente inicial.

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(17) Essa acusação, trazida do Paraguai como simples suspeita por

desafetos do coronel, nunca teve a menor confirmação nem o menor

fundamento sério Na segunda batalha de Tuiuti, a 3 de novembro de 1867,

os paraguaios conseguiram apoderar-se, logo no início da ação, de toda a

artilharia de três fortins argentinos, aprisionando ainda o nosso 4º

batalhão de artilharia, com a bandeira e o comandante, que era o então

Major Cunha Matos. Com o material de artilharia assim adquirido, eles

apossaram-se de numerosas peças raiadas, atirando com obuses

cilíndricos, o que representava um grande progresso sobre a sua velha

artilharia de campanha, de alma lisa e bala esférica. Foi daí que lhes veio

o fogo de maior alcance e mais justo que nos puderam dirigir nos dias

subseqüentes, e não da circunstância de terem o oficial brasileiro entre os

seus prisioneiros. O fato de o general Visconde de Pelotas, um dos nossos

chefes mais ilustres em toda a campanha do Paraguai, ter ficado do lado

de Cunha Matos naquela discussão, já é bastante para tirar àquelas

suspeitas qualquer caráter de verossimilhança.

(18) Essa resolução fôra realmente formulada, apoiando-se num parecer

do Conselho Supremo Militar de Justiça, de 30 de outubro daquele ano,

provocado pelo próprio governo.

(19) Numa comunicação feita ao governo em 11 de novembro de 1889,

sobre o recente embarque do 22º de Infantaria para o Amazonas, dizia o

general Barão de Rio Apa: ...antepor a popularidade à disciplina (hoje

um mal de que são atacadas todas as classes)... Vide Ouro Preto, Advento

da Ditadura Militar no Brasil , Imprimerie Pichon, Paris, 1891, págs. 37 e

38.

(20) Vide Tobias Monteiro, Pesquisas e Depoimentos para a História , ed.

Alves, Rio de Janeiro, 1913, págs. 146, 146, 148.

(21) O general faz aí a tácita apologia daquilo que, quando coronel,

chamava a tribuna irresponsável. A liberdade, em qualquer das suas

formas, é realmente como a saúde, cujo valor só conhecemos depois que a

perdemos.

(22) O núcleo inicial do Partido Republicano Paulista foi o Clube Radical,

fundado em São Paulo em 1868 e do qual faziam parte Luís Gama,

Américo de Campos, Bernardino de Campos, Campos Sales, Prudente de

Morais, Francisco Glicério, Martinho Prado Júnior, Jorge de Miranda,

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Luís Quirino dos Santos, Jaime Serva, Antônio Lôbo e muito s outros. O

Clube Radical, calcado sobre o de igual nome do Rio de Janeiro e

seguindo a orientação local de José Bonifácio (o moço), era abolicionsita.

Em 1870, com o aparecimento, a 3 de dezembro, do jornal A República,

trazendo o Manifesto Republicano, o clube do Rio mudou o nome para

Clube Republicano, no que foi imitado logo pelo de São Paulo, com

adesão de todos os seus membros às idéias do manifesto. Ao mesmo

tempo declararam-se também pelas mesmas idéias o Dr. Américo

Brasiliense e os jovens fazendeiros João Tibiriçá Piratininga, José

Vasconcelos de Almeida Prado e Carlos Vasconcelos de Almeida Prado,

sem entretanto pedirem a sua inclusão no clube. Ficaram um pouco à

parte. Em 1871, como reação à Lei do Ventre Livre, numerosos

fazendeiros da província entraram também a declarar-se republicanos,

com tanto mais decisão quanto Quintino Bocaiúva, nas colunas d A

República, mostrava-se adversário daquela lei. João Tibiriçá e os irmãos

Almeida Prado começaram então a pleitear a fusão dos fazendeiros com

os antigos radicais num só partido, recorrendo para esse fim a Américo

Brasiliense que em ambos os grupos dispunha de grande estima. Américo

Brasiliense aceitou o encargo, promovendo uma primeira conferência que

teve lugar a 17 de janeiro de 1872. Dadas porém as ressalvas sobre o

problema do cativeiro que os lavradores quiseram fazer incluir nas bases

de programa do futuro partido, a segunda conferência, marcada para dali a

poucos dias, não se realizou, por não haverem comparecido os radicais.

Uma nova reunião foi marcada para 24 de outubro, sem melhores

resultados, o mesmo acontecendo ainda numa outra fixada para 25 de

dezembro. Mas, nas noites de 27 e 28 de fevereiro de 1873 dá-se no Rio

qualquer cousa que profundamente irrita os meios republicanos de São

Paulo. A redação dA República, na Rua do Ouvidor, foi violentamente

apedrejada à visa da polícia, que de nenhum modo de opôs, daí resultando

o fechamento do jornal. Os antigos radicais fizeram então saber aos

fazendeiros que estavam prontos a com eles reunir -se quando quisessem.

Resultou daí a convenção de Itu, de 18 de abril, onde se teve por fundado

o Partido Republicano Paulista, sem contudo tratar -se do programa a

adotar, o que foi reservado para uma nova reunião a realizar -se em São

Paulo, no dia 1 de julho. O novel partido quase aí se despedaça. Luís

Gama não quis aceitar as restrições antiabolicionistas incluídas no

programa, no que foi acompanhado pelos irmãos Campos e muitos outros

dos seus amigos. Graças porém ao hábil e intenso trabalho desenvolvido

por Francisco Glicério ao correr da noite, a reunião pôde recompor -se no

dia seguinte, sendo o programa afinal aceito tal como fôra apresentado. É

evidente entretanto que Luís Gama e seus mais fiéis companheiros na

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campanha abolicionista, se consentiram em manter-se nos quadros da

nova agremiação, evitando a sua imediata dissolução, só o fizeram com as

mais sólidas e tenazes reservas de consciência. De modo algum se

desinteressaram do movimento libertador, a ele dedicando sem cessar o

melhor das suas energias. Falecido Luís Gama em 1882, Bernardino de

Campos ficou sendo o centro daquele grupo que, associando-se ao

trabalho heróico de Antônio Bento para a evasão dos escravos das

fazendas, enriqueceu-se de um grande número de homens novos, como os

advogados Adolfo Gordo e Muniz de Sousa, os engenheiros Bueno de

Andrada e Garcia Redondo, o médico Silva Pinto e os estudantes Carlos

Garcia, Júlio de Mesquita, Paula Novais e Hipólito da Silva. Foi

exatamente nestes que, em 1887, Bernardino de Campos assentou a parte

mais vivaz e impetuosa do seu esforço de regeneração do PRP. Os leitores

que não leram Os Republicanos Paulistas e a Abolição , onde vem a

história detalhada de todos esses fatos, devem reter esses nomes porque

de muitos deles nos ocuparemos a seguir.

CAPÍTULO III

A INTERFERÊNCIA

HISPANO-AMERICANA

Um dos aspectos mais desconcertantes da Questão Militar,

para quem hoje a examina, é a sua grande capacidade de resistência a

todas as tentativas de solução, renascendo a ressurgindo

continuamente de novos e inesperados incidentes. Entretanto, se bem

se consideram as mútuas disposições de ânimo, nota-se que, tanto do

lado dos militares como dos políticos civis, o sentimento

predominante nunca deixou de ser um grande desejo de a encerrar e

concluir, como se a ninguém escapasse o escabroso e a gravidade da

sua prolongação indefinida. Esse sentimento é evidente e geral

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sobretudo no período em que as maiores patentes se resolvem a

intervir, entre fins de 1886 e princípios de 1887. De uma parte como

de outra apela-se para a prudência, insiste-se na necessidade de

preservar a ordem pública, invocam-se os altos interesses da nação,

sem esquecer jamais um gesto reverente na direção do imperador...

Qual seria porém o persistente germe de inquietação, a mola ágil e

bem tendida que de cada vez provocava nos novos choques,

determinando novos sobressaltos? Para o saber com segurança basta

recordar que, entre a partida de Sena Madureira para o Rio Grande e

a chegada de Cunha Matos do Piauí, se coloca o lançamento dO

País, a 1º de outubro de 1884.

Ricamente montado com maior e petrechos de que talvez nem

mesmo o Jornal do Comércio dispusesse naquela época, o novo

diário não aparece como órgão republicano, nem se declara por

qualquer das correntes partidárias existentes no momento. A titulo de

programa, dizem os seus lançadores: “O País” tem a sua origem no

comércio; nele assenta particularmente o apoio das simpatias a que

deve a sua existência; com ele se honra de associar-se na devoção

dos eminentes interesses nacionais que essa nobre classe representa.

A inscrição do nome de Joaquim José dos Reis Júnior no cabeçalho,

como proprietário, corroborava essa declaração de ofício, precisando

um pouco mais quais eram aqueles interesses. Eram sobretudo os do

comércio de importação de secos e molhados... Reis, homem de

íntimas ligações de família e de negócios com o Norte de Portugal,

depois elevado pelo governo de Lisboa a Conde de São Salvador de

Matosinhos, era um dos maiores representantes daquele ramo na

praça do Rio de Janeiro. Possuidor de um grande trapiche no bairro

Saúde, o Trapiche Reis, ele justamente saía de uma longa querela

com o Ministério da Fazenda sobre classificação de certos vinhos na

pauta aduaneira. Esse programa um tanto específico não impedia

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entretanto a folha de ostentar na sua primeira coluna um artigo

magnificamente político, no qual se lia esta sonora e clara apologia:

Enquanto o regime parlamentar for, como até hoje, a mais perfeita

expressão da inteligência humana aplicada à administração das

sociedades civilizadas, os partidos que constituem a alma desse

regime, continuarão a ser necessidades nacionais da ordem mais

elevada... Compreende-se: era Rui Barbosa o chefe da redação. O

brilhante tradutor de O Papa e o Concílio, sendo um escritor

maravilhoso, não era entretanto um verdadeiro jornalista, com todas

as pequenas qualidades que, ao lado do talento, completam os

homens dessa classe.Faltava-lhe o gosto dos detalhes, esse igual

interesse por todas as seções da folha, que vela o bom jornalista a por

tanta arte num grande artigo de fundo, quanto numa crônica qualquer

ou numa simples notícia de polícia. Para isto, lá estava Quintino

Bocaiúva. Rui Barbosa, nos dois números seguintes, deu dois

esplêndidos artigos sobre a Abolição. Raramente, em espaço tão

pequeno, a questão fora estudada com tanta elevação e tanto brilho.

Mas, tanto no jornalismo concorrente como nos vários meios

políticos e parlamentares cresciam as indagações sobre o verdadeiro

programa do jornal. Falava-se em órgão do Trapiche Reis, surgiam

maliciosas expressões como esta, empregada pelo Correio

Paulistano ainda em 1887: arauto de excelência das vinhas do Alto

Douro... Fosse pelos incômodos dessa maledicente curiosidade, fosse

por discrepância de doutrina ou qualquer outro motivo não sabido,

Rui Barbosa, ao quarto dia, deixava a redação. Quintino Bocaiúva,

desde o primeiro número, havia inaugurado uma coluna permanente

sob o título de Resenha Diária, onde com grande sagacidade ia

comentando tudo quanto em política se passava. Fora aí que

aparecera aquele programa, tido por indiscreto e pitoresco, da

solidariedade com os interesses do comércio. Com a saída de Rui

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Barbosa, a Resenha Diária saltou para a primeira coluna, aceitando

bravamente a discussão sobre a alegada insuficiência de programa e

vivamente metendo à bulha os que se compraziam em tais

futilidades...

Nestes dados sobre a fundação e os primeiros dias dO País,

ninguém veja entretanto, da parte de Quintino Bocaiúva, a menor

sombra de interesse pecuniário ou qualquer propósito de lucro. Tais

preocupações nunca existiram para ele. Extremamente sóbrio e de

uma grande austeridade para consigo mesmo, ele tinha as maneiras e

os hábitos de um asceta. O dinheiro, como garantia de bem-estar e

fonte de prazeres, jamais teve sobre ele a mínima influência. Discreto

e comedido, qualquer coisa lhe bastava. O seu único luxo consistia

na correção do traje, sempre igual e sempre o mesmo, fazendo-se

porém notar por um aprumo irrepreensível e um asseio meticuloso.

José do Patrocínio chegou a dizer que aquele homem extraordinário

não precisava de dinheiro para viver. Bem cedo casado e pai de

filhos, a sua vida doméstica, cercada de um grande recato, era de

uma sobriedade que tocava de perto a parcimônia. Muitas vezes

mortificado por exigências de credores, sempre por somas em

extremo moderadas, ele, para livrar-se de tais dificuldades, nunca

consentiu em afastar-se do que julgava ser a sua honra ou o seu dever

profissional. O gozo, a ostentação, a simples comodidade, não

tinham presa sobre ele. Só uma coisa o movia e realmente

interessada. Era a sua idéia política, concretizada sobretudo, senão

exclusivamente, na substituição pura e simples da Monarquia pela

República. O jornalismo nunca lhe fora uma indústria deveras

proveitosa, nem mesmo um passável meio de existência. Privado do

seu primeiro jornal, A República, cuja publicação suspendera a

contragosto em fevereiro de 1873, ele sujeitou-se a trabalhar a

módico salário e por vários anos em empresas nas quais não tinha a

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menor parte. De todas estas, do O Globo aquela em que mais se

demorou. Na última fase dessa folha, em 1881, chegou a ser o seu

principal editor, senão mesmo o seu proprietário. Nesse posto

faltava-lhe porém o tino comercial indispensável. Certos aspectos da

publicidade jornalística, onde em geral se encontram os mais pingues

resultados, não eram para ele os mais dignos de atenção. O Globo

não se manteve... De cada vez caia-lhe assim das mãos o grande

instrumento com o qual sonhava realizar a sua eterna aspiração,

Dados estes antecedentes, como admitir que ele pudesse abandonar,

tal como o fazia Rui Barbosa, já notável advogado, o grande jornal

que se lhe oferecia, com aquela montagem magnífica e os sólidos

meios inerentes ao seu programa imediato ou declarado? Os

interesses do comércio de secos e molhados!... Não há dúvida. Mas,

se esses interesses eram legítimos e na sua significação coletiva

podiam ser tidos por nacionais, por que não assentar sobre eles, pelo

menos de início, a grande obra nacional da pregação republicana: Ele

não teve indecisões...

O grande jornalista, entretanto, nunca conseguiu ver os

negócios do Brasil do ponto de vista realmente brasileiro, isto é,

dentro da nossa evolução política normal, segundo aquela forma

peculiar luso-americana. Ele pensava e escrevia como se a redação

do seu jornal se colocasse, não na Rua do Ouvidor, no Rio de

Janeiro, mas na Calle Flórida ou na Calle Corrientes de Buenos

Aires. Era no rio da Prata, com os seus tribunos lidadores e as suas

agitadas mutações governamentais, que ele se inspirava, de lá vindo

os seus padrões políticos mais sugestivos e recomendados. Ali sim,

havia convicções, havia caráter, havia coragem nas idéias e firmeza

nas atitudes... A sua preferência por aqueles costumes e processos era

toa insistente e acentuada que com freqüência foi posta em dúvida a

sua nacionalidade. Durante a sua permanência em Buenos Aires, no

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correr da guerra do Paraguai, encontrando-se ele ligado às nossas

forças navais, como funcionário da Fazenda, a sua assiduidade nos

meios argentinos chegou a irritar seriamente os brasileiros. Daí lhe

vieram mesmo alguns desagradáveis incidentes. Uma vez, estando

ele na companhia de vários argentinos no camarote de um teatro

onde se dava um baile de carnaval, um dominó, do camarote ao lado,

entrou a perguntar-lhe com motejada insistência se afinal de contas

era ele argentino ou brasileiro... O dominó era o Primeiro Tenente

Antônio Pedro Alves de Barros, do couraçado Silvado, que ali estava

com alguns outros jovens oficiais da nossa esquadra. Não há dúvida

entretanto de que Quintino fosse brasileiro. Por uma certidão de

batismo expedida pela igreja paroquial do Sacramento da Sé, no Rio

de Janeiro, já várias vezes publicada, é hoje sabido que ele era

carioca, tendo nascido a 4 de dezembro de 1836, numa casinha

existente no lugar onde agora se eleva o Gabinete Português de

Leitura, à Rua Luís de Camões. Tendo porém muito cedo perdido o

seu pai, de nome Quintino Ferreira de Sousa, deve ter sofrido uma

influência muito grande de sua mãe, D. Maria Candelária Moreno

d‟Alargon, que era argentina. Até uma certa idade, pode-se mesmo

supor que falasse de preferência o castelhano. Pelo menos, são nesta

língua as primeiras produções literárias que se lhe conhecem(23).

Eram certamente grandes o seu amor e a sua filial admiração pela

Argentina...

Assentadas as suas idéias nestas bases sentimentais, não podia

Quintino Bocaiúva conceber a nossa passagem da Monarquia para a

República, segundo os nossos métodos habituais de evolução legal.

O problema era por ele colocado nos seus dados iniciais do princípio

do século XIX, quando a noção de liberdade se resumia para os

povos hispano-americanos no simples repúdio do poder absoluto,

representado no rei de Espanha, tomando portanto a forma de um

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conflito irreconciliável, solúvel apenas pelas armas. O processo

evolutivo aqui desenvolvido entre a chegada de D. João VI e a

Abolição, era por ele eliminado, para serem tomados os oitenta anos

correspondentes como simples expressão do nosso atraso perante as

várias Repúblicas do continente. Admitir que a nossa Monarquia

parlamentar indicasse um progresso qualquer sobre as confusas e

atormentadas instituições hispano-americanas, parecia-lhe uma

desprezível heresia, senão uma pura falsidade. O nosso

aparelhamento legal, com as suas garantias liberais, era uma simples

simulação, por trás da qual existia apenas o irresistível poder pessoal

do imperador... A história do Brasil, entre o encerramento da era

colonial e o advento da República, tinha de ser revista, ara adaptar-se

por amputação à história geral dos nossos irmãos americanos. Este

era o seu programa!...

É claro que, de semelhante ponto de vista, a nossa

transformação política só podia ser de caráter militar. Não havia

como fazer do presente uma transação entre o passado e o futuro,

pois tratava-se de uma ruptura essencial e absoluta. Retomando a

tradição continental dos Bolívar, dos San Martin, dos O‟Higgins, dos

Miranda, era indispensável fazer surgir também aqui o herói de

brilhante armadura que enfrentasse e abatesse a hidra da Monarquia,

sendo óbvio que, em se tratando de heróis, logo se lançasse os olhos

para a mais próxima caserna... E aí está como O País, no qual a fácil

malícia dos contemporâneos quis ver o órgão do Trapiche Reis, foi-

se constituindo sobretudo em órgão da Questão Militar!

Podemos hoje aceitar com segurança que, se não fosse O

País, jamais a Questão Militar se teria arrastado tão persistente e

teimosa até o golpe de 15 de Novembro. Quintino Bocaiúva, da

redação do seu jornal, foi o guarda vigilante e o incansável animador

daquela chama. Era ele que destacava as posições e punha em relevo

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as circunstâncias, determinando, por via de conseqüência, os novos

incidentes.É preciso notar entretanto que o hábil e tenaz

propagandista não ligava diretamente a agitação militar à sua

revolução republicana. Tratava apenas de incompatibilizar o Exército

com o governo imperial, como se abrisse uma fenda na qual a idéia

da República se introduzisse como uma cunha, para fazer ruir a

Monarquia. Ele nunca teve os militares como suficientemente

preparados para uma conspiração consciente e decidida. Não é que

não encontrasse oficiais republicanos. Entre os signatários de um

severo e curioso Termo de Compromisso e Adesão, firmado nos dias

20 de setembro e 27 de outubro de 1877, para revigoramento da

propaganda republicana no Rio de Janeiro(24), encontram-se alguns

oficiais bem conhecidos como Moreira César, Dantas Barreto e

Vespasiano de Albuquerque, dos quais os dois últimos chegaram ao

generalato no período republicano. O fato de pertencer ao Exército,

não os eximia entretanto de pensar sobre a matéria como em geral

pensavam todos os brasileiros, fossem ou não republicanos. Nenhum

deles naquele documento figurou como soldado, pondo em jogo a

sua espada, mas como homem livre, capaz de aceitar livremente uma

idéia e por ela sinceramente comprometer-se. Em perfeita identidade

de sentimentos com Aristides Lôbo, promotor daquele ato, nenhum

deles cuidava em mudar as instituições do seu país por um golpe

militar de estilo hispano-americano. Obrigados a freqüentes contatos

com o rio da Prata, tanto pelas exigências militares da nossa recente

política exterior no Paraguai como pelas condições das nossas

comunicações com a província de Mato Grosso, eles por demais

conheciam aqueles métodos, não guardando por eles nenhuma

admiração nem a mínima simpatia. Para supor o contrário, será

indispensável ignorar como eles se referiam às que então chamavam

as republiquetas do sul...

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Coerente com suas preferências pelo caudilhismo

republicano, de caráter necessariamente militar, Quintino Bocaiúva

aplicou-se especialmente a exaltar o amor-próprio dos militares,

opondo aos escrúpulos tradicionais da disciplina a noção nova do

cidadão fardado ou soldado-cidadão por ele criada. O ambiente

especial do abolicionismo, que temos examinado, não só lhe

facilitava como mesmo inspirava-lhe esse programa auxiliar de

forma indireta e provisória. O País foi-se tornando em órgão

declarado da classe militar, que nele passou a ter a sua melhor fonte

de informações e o eco mais seguro das suas aspirações e das suas

queixas. Não havia pelas províncias um batalhão, um regimento ou

uma companhia isolada onde não se encontrasse pelo menos um

assinante dO País, que, lendo-o, em atenta roda de camaradas, o

devia ainda passar de mão em mão, até a chegada do próximo

correio. Devido à orientação acentuadamente erudita e filosófica

impressa por Benjamim Constant ao ensino militar, havia no

Exército um grande número de jovens oficiais com fortes e mesmo

brilhantes tendências literárias. Firmassem eles ou não as suas

produções jubilosamente se lhes abriam as colunas dO País. Para dar

uma idéia exata da influência que o grande jornal chegou a adquirir

nos meios militares, basta dizer que, entre os vários motivos de

felicitar um companheiro que de uma guarnição qualquer partia para

o Rio de Janeiro, havia o de ir poder ler O Pais do mesmo dia!...

Este foi, a partir do caso Sena Madureira de 1884, o segredo,

o fermento constante e inesgotável da Questão Militar, em todas as

suas fases e nos seus mínimos e mais remotos incidentes. Entretanto,

muito bem guardou-se Quintino Bocaiúva de revelar aos seus amigos

aonde realmente os conduzia., Uma proposta clara e direta de tomar

armas contra o imperador naquele instante teria sido de uma insigne

imprudência. Primeiro, provocaria no seio do Exército, na grande

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maioria dos oficiais, a natural indignação que jamais deixamos de

sentir por quem nos pretenda embair ou ludibriar, fazendo-nos ir

mais longe do que sinceramente o desejamos. Em seguida, tirando as

autoridades da Monarquia e a própria sociedade brasileira da

constante perplexidade em que viveram ante a inconseqüência e o

absurdo daqueles fatos, logo indicaria o ponto exato sobre o qual se

deveria agir para por ordem em tudo aquilo. Na preparação do

cancelamento das sanções disciplinares, em 1877, o fim visado por

Quintino Bocaiúva no seu entranhado zelo pelos brios do uniforme

não deixou de ser apontado pelo Barão de Cotegipe. Escrevendo ao

Visconde de Ouro Preto sobre os termos da resolução senatorial,

dizia o presidente do Conselho: O Ministério aceita o meio lenbrado

por V.Exa., mas parece-me que devemos acordar previamente nos

termos da moção; e quem melhor a pode redigir do que V. Exa.? É o

que lhe peço. Não aprovo que dela se possa concluir que o Senado

se constitua procurador para requerer em nome de terceiros.

Zelando tanto a dignidade deste quanto zelo a do governo, desejo

que a de ambos fique intata. Leu o que disse “O País”? É natural

que desaponte (o cancelamento visou afrouxar a tensão entre os

militares e o governo) e por isso já de prevenção atava os partidos e

o parlamentarismo. A razão é clara: perde a oportunidade de

embarcar a República em águas revoltas(25). Um fracasso dos

planos subversivos de Quintino Bocaiúva, perante a decisão tomada

pelo Senado, era tanto mais aceitável por Cotegipe quanto mais certo

estava ele de que o Exército realmente não participasse das idéias do

direito dO País nem de nenhum modo concordasse como seus

métodos. O ministro não deixava de ter bons motivos para assim

pensar, pois não há dúvida de que, até aquele momento, os militares

de nenhum modo admitiam qualquer intimidade da sua questão

profissional com a propaganda republicana. Quando, após a reunião

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do Recreio Dramático, se tratou do requerimento individual do

cancelamento das sanções, tanto a maioria dos oficiais tinha aquela

solução por boa e perfeitamente aceitável que, em face das últimas

resistências de Sena Madureira e Cunha Matos, Benjamim Constant

foi solicitado a dissuadi-los de tanta intransigência. Para isto

combinou-se uma entrevista dos três no escritório do advogado

Alfredo Madureira(26). Ao ver que eles não cediam, o prestigioso e

festejado professor da Escola Militar severamente retrucou-lhes: Os

senhores são uns turbulentos que querem fazer a República. E,

dando por finda a entrevista, levantou-se, confirmando com

veemência: Devem requerer o trancamento das notas...

Ora, por aí se vê que a articulação da Questão Militar com a

revolução republicana, sonhada por Quintino Bocaiúva , não só não

era aceita nem mesmo conhecida nos meios militares, como podia

ainda a sua simples suspeita provocar indignação. Desde porém que a

anulação dos atos disciplinares era tida como questão de honra para

os dois interessados, com eles tendo-se considerado todos solidários,

só eles tinham afinal o direito de decidir. Foi assim que se chegou ao

remédio heróico do Manifesto ao Parlamento e à Nação, com a sua

conseqüência da moção senatorial, É claro, é evidente que os

militares obtiveram todas as satisfações, nos limites máximos em que

as quiseram e formularam, nenhum resíduo devendo restar das suas

amarguras. Cotegipe portanto não deixava de estar certo, dando os

planos dO País como frustrados.

* * *

Mas Quintino Bocaiúva não era homem a desnortear-se

facilmente. Emprestando logo à resolução senatorial o caráter de um

desses arranjos interpartidários de moral suspeita e somenos

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importância, muito de gosto no sistema parlamentar, como pensava,

ele tratou de ir pondo em guarda os militares contra todas as

surpresas. O governo da Monarquia, não esquecendo certamente a

humilhação recebida em tudo aquilo, apenas estava a ganhar tempo.

A reação não tardaria muito... Nessa forma nova ou nessa segunda

fase da sua grande manobra, o direito dO País revelava-se um

excelente psicólogo. O orgulho, por sua própria natureza, é

progressivo, crescendo sempre na razão direta das satisfações que lhe

sejam oferecidas. Aquela solução não podia deixar de ser precária e

provisória, tendendo a desdobrar-se com o tempo em novos

incidentes. Na grande exaltação do amor-próprio ou do prestígio do

uniforme em que se sentiram, os militares facilmente entrariam em

novos conflitos com o poder civil, automaticamente tomando

qualquer reação por este ainda tentada como o início previsto e

deliberado do grande ajuste de contas esperado. Foi o que se deu...

O próprio Cotegipe, conjugando oito meses depois a retirada

do gabinete com o caso Leite Lôbo, vinha concorrer para a

acentuação maior de tais disposições. Já o governo João Alfredo, no

mês de novembro, seguiu-se o conflito dos oficiais do 17º de

Infantaria com o chefe de polícia de São Paulo. Se no mês de março

um incidente do mesmo gênero determinada a demissão de todo um

Ministério, a demissão do chefe de polícia imediatamente se

impunha como a solução mais indicada. Assim foi feito. Mas daí por

diante não houve mais contacto algum do governo com a tropa que

não desse em mal-entendido, mantendo o público em constante

sobressalto. Ninguém dirá com exatidão os motivos pelos quais o

gabinete João Alfredo, tendo de nomear o comandante de uma forte

coluna de observação, a enviar às fronteiras de Mato Grosso,

escolheu precisamente o Marechal Deodoro da Fonseca. Era um

velho e enérgico soldado, com longa prática das condições

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estratégicas daquela região(27). Mas a verdade é que a sua partida

determinou uma geral inquietação nos meios militares. espalhou-se

que o governo, desviando o marechal com tão numerosos efetivos

para tão longe, apenas procurava ter as mãos livres para contra o

Exército agir como quisesse. Ao desassossego dos que ficaram,

correspondeu uma grande irritação dos que partiram. Mudou o

governo em junho de 1889, subindo com o gabinete Ouro Preto o

Partido Liberal. Os motivos oficiais do envio da coluna a Mato

Grosso, que tinham sido a eminência de um conflito armado entre a

Bolívia e o Paraguai, pareciam terminados. A volta da coluna e do

seu chefe foi logo aconselhada como uma medida capaz de melhor

dispor o Exército para com a nova situação e os seus ministros. A 13

de setembro o marechal desembarcava no Rio de Janeiro. Para os

militares, entretanto, ele era apenas restituído, no lugar próprio, à sua

função de gênio tutelar da classe, para o fim de conjurar as graves

ameaças que sobre ela se adensavam...

Quem hoje consulta os números dO País, entre 13 de

setembro e 15 de novembro de 1889, examina apenas o

desenvolvimento metódico e seguro de um processo de intimidação.

O Exército, a não deixar dúvidas, tinha que escolher entre a reação

armada e a sua dissolução! Os menores atos do governo eram

habilmente apresentados como os sinais mais evidentes desta

temerosa alternativa... Por motivos disciplinares, o Coronel Mallet é

demitido a bem do serviço público do comando da Escola Militar do

Ceará. O país de 23 de outubro logo põe o caso em cotejo com o

incidente da demissão do chefe de polícia de São Paulo, em

novembro do ano anterior, para mostrar que entre militares e civis o

governo tem sempre dois pesos e duas medidas. O chefe de polícia,

tendo sido – como pelo menos ele asseverava – o único causador dos

distúrbios e das desinteligências que ali se deram, não foi demitido a

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bem do serviço público, mas apenas convidado a pedir a sua

demissão. Isso se fez, continuava, porque se tratava de um

funcionário civil, de um camarada político a quem não se queria

magoar. Com os militares, porém, seja qual seja a graduação e os

seus serviços e a sua honrosa fé de ofício, o governo imperial não

gasta sedas nem faz cerimônias. Basta a resistência de qualquer

funcionário militar ao capricho ou à prepotência de um ministro,

basta que ele não seja servil ou condescendente com as exigências

de qualquer mandão eleitoral, para ser ele demitido a bem do

serviço público ou transferido peremptoriamente para o Amazonas

ou para Mato Grosso. O artigo conclui que, sem a menor dúvida, o

Exército é mal visto atualmente nas altas regiões. Segue-se, num

verdadeiro crescendo de inquietação, toda uma série de outros artigos

de grande veemência. No dia 26, os Planos do Governo; o dia 28, O

Poder é Poder... Na atmosfera de indisfarçável e perigosa agitação

que se vai acentuando, o gabinete resolve afastar muitos oficiais da

guarnição da corte, sendo alguns mandados servir em Mato Grosso.

Vem então As Energias do Poder! Estamos no dia 30 de outubro.

Entretanto, ainda até ali, se o Exército, fugindo às tradições

gerais da nossa vida pública e esquecendo as suas proprias tradições,

já havia adotado a visão extrafronteiras de Quintino Bocaiúva, só em

parte o havia feito. Estava aceita entre os oficiais a eventualidade do

recurso às armas, em defesa própria, uma vez que realmente

andavam convencidos da intenção dos políticos civis de abater senão

mesmo de dissolver o próprio Exército(28). Avançávamos portanto

para um pronunciamento militar. Mas nenhum dos chefes naturais

desse possível movimento se conformava com a hipótese de uma

ação direta contra o imperador(29).

Eles supunham mesmo que o monarca estivesse do seu lado,

não se manifestando francamente por encontrar-se prisioneiro dos

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seus ministros. Falando na sessão do Senado de 6 de junho de 1887,

quando se discutia a moção do cancelamento das sanções, o

Visconde de Pelotas manifestou com grande insistência esse modo de

pensar. Pedro II não havia recebido a Deodoro que lhe pretendera

entregar em mão a resolução votada no Recreio. Cotegipe explicou

que o imperador, doente e retirado à Tijuca, estava, por prescrição

médica, impedido de dar audiência e receber visitas, mesmo de

simples cortesia. Os que iam a saber de sua saúde, contentavam-se

em deixar os seus cartões. A declaração do ministro entretanto não

satisfez, persistindo entre os militares a idéia da segregação do

imperador. Depois, havendo Pedro II, de volta da sua viagem para

tratamento de saúde pela Europa (22 de agosto de 1888), se

demorado pouco tempo em São Cristóvão, subindo para Petrópolis, o

boato da segregação continuou. Para a maioria dos oficiais, a

começar por Deodoro e Benjamim Constant, o comandante nato e o

chefe supremo das forças armadas, o primeiro soldado do Brasil,

assediado pelos casacas e contra todas as suas inclinações, estava na

impossibilidade de vir em socorro dos seus melhores amigos, dos

seus verdadeiros sustentáculos, que eram naturalmente os portadores

dos mesmos uniformes por ele usados. Dentro dessas condições

psicológicas, as reações que as circunstâncias lhes sugeriam tinham

muito mais de extrema defesa da Monarquia ou do monarca, que de

conspiração republicana. Era Quintino Bocaiúva que do seu jornal os

manobrava, insensivelmente precipitando-os a um passo além do

qual só houvesse o pelotão de fuzilamento ou a mudança do regime!

Mas não eram apenas os militares que, mais ou menos

constrangidos, seguiam por um caminho em cujo termo forçosamente

teriam de escolher entre dois males o menor... A posição dos meios

republicanos, tanto na corte como em São Paulo, não era muito

diferente. Em fase de exclamações como o não era esta a República

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dos meus sonhos, do velho Saldanha Marinho, ou o fato foi deles,

deles só, de Aristides Lôbo, não seria possível admitir que os antigos

radicais do Rio de Janeiro se deixassem comprometer realmente

numa conjura militar. Do lado dos paulistas, os elementos de

informação são ainda mais precisos e mais claros. O primeiro homem

do PRP a identificar com segurança a mola real da Questão Militar,

vendo com decisão onde era conduzida a agitação, foi Francisco

Glicério. Em dezembro de 1887, após o seu devotado trabalho pela

eleição de Bernardino de Campos, tido como reconciliação do

partido com o movimento abolicionista, ele quis pessoalmente

informar-se do que havia. Tudo o levava a supor que, se alguma

cousa realmente se tramava, a arte mais adiantada ou mais densa

desse trama se encontrasse para o Sul. Era no Rio Grande que a

Questão Militar tivera afinal as suas manifestações mais veementes e

expressivas, necessariamente determinando não pequenas emoções

em Buenos Aires. A grande capital platina, centro clássico de intriga

em todas as agitações do Sul do continente, não podia deixar de ser

um excelente campo de observação. Os políticos argentinos nunca

deixaram de experimentar o mais vivo interesse por tudo quanto

significasse um progresso qualquer das idéias republicanas no Brasil.

Com ou sem razão, eles sempre tiveram o nosso governo imperial

como responsável por ceras decepções da sua política na bacia do

Prata, não podendo portanto ser indiferente a uma nossa possível

transfrormação interna que o viesse a destruir. No tempo de Rosas,

ao famoso grito de Viva la santa federación; mueran los selvajes

unitarios, seguia-se sempre o complemento: abajo el infame

gobierno del Brasil… Com o correr dos anos, amenizaram-se as

atitudes e poliram-se as expressões. Mas os sentimentos não se

modificaram muito. As nossas agitações militares tinham que ser ali

observadas com a máxima atenção, tanto mais segura e facilmente

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havendo a dirigi-las alguém tão voltado às cousas argentinas como

Quintino Bocaiúva(30).

Era portanto do Sul que o vento soprava mais firme e mais

constante. Glicério dirigiu-se para lá. Informado pelo seu amigo

Bento Quirino dos Santos de que o antigo convencional de Itu e

zeloso presidente da Câmara Municipal de São Vicente, Antônio

Carlos da Silva Teles e Domingos Neto (ambos sócios de Quirino) na

grande firma comissária de Santos, Teles Neto & Cia), projetava uma

próxima excursão a Buenos Aires, ele imediatamente fez saber que

os acompanharia. No dia 22 de dezembro, doze dias após as eleições,

Glicério partia de Campinas para Santos, onde tomava um vapor com

os dois comerciantes em direção ao Prata. Que observações teria ele

feito em Buenos Aires? Com quem teria falado? De nada

encontramos traço no que pudemos ver da sua correspondência.

Apenas, numa carta dirigida ao seu companheiro de escritório,

Antônio Lôbo, ele elogia muito a beleza e os bons serviços de polícia

da capital platina. Pode-se, porém ter como certo que Glicério, pelo

menos daquela vez, não se interessava muito pelas atrações comuns

de uma grande e alegre cidade. Sem seguir com freqüência os seus

companheiros de viagem nas suas visitas e excursões, um mês

depois, de lá partia para Porto Alegre, a encontrar Júlio de Cstilhos.

O severo e brilhante diretor dA Federação, bem homem da fronteira,

fortemente versado nos princípios autoritários de fundo positivista

dos quais Alberto Sales era em São Paulo o principal doutrinador,

estava em cheio dentro do ponto de vista de Quintino Bocaiúva. No

período mais grave ou mais aceso do segundo caso Sena Madureira e

da manifestação coletiva dos oficiais de Porto Alegre, e, entre 23 de

setembro e 30 de outubro do ano anterior, escrevera toda uma série

de artigos a incitar francamente os militares à revolta. No dia 27

daquele mês, sob o título O Império e o Exército, dizia sem rebuços

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nem cautelas: Em qualquer caso, pertença a principal

responsabilidade a quem pertencer, os fatos que ocorrem são um

salutar aviso ao Exército, que deve saber qual é a posição que lhe

está destinada nesta derradeira fase do segundo reinado... Para ele

que, da vizinhança da fronteira, também via os negócios do Brasil

pelo mesmo prisma porteño do seu grande colega dO País, a

República brasileira devia elevar-se sobre um mar de baionetas, com

completa e eficaz anulação dos velhos e falsos processos da

Monarquia. No ponto em que as coisas se encontravam, bastava

lisonjear convenientemente o estado de ânimo dos militares. A

desejada eventualidade não tardaria... Foi o que, de boa fonte, ficou a

saber o chefe campineiro.

* * *

Glicério, sendo um político sagaz e um dos mais ardentes

partidários da República, não tinha entretanto os mesmos escrúpulos

doutrinários de outros membros do seu partido, como Bernardino de

Campos ou Américo Brasiliense. A hipótese de uma grande vitória

política de base militar não lhe deixava de sorrir. Mas, ao chegar do

Rio Grande em fins de fevereiro, vinha conhecer a posição oficial do

PRP na Questão Militar , segundo a fixara Bernardino de Campos no

seu discurso do dia 6. Entre os planos que lhe haviam sido

transmitidos e aquelas idéias, não havia conciliação possível nem

arranjo algum a concertar. Não podemos saber hoje com exatidão

que expedientes deu ele à sua perplexidade. Tratava-se de

conspiração, e evidentemente a discrição era de rigor. O certo é

porém que Quintino Bocaiúva, no correr de março, apesar da

acuidade da situação política com a mudança de gabinete do dia 10,

precipitava-se do Rio de Janeiro para São Paulo. A sua viagem

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cercou-se de grande reserva. Glicério nem veio de Campinas a

recebê-lo. Na capital paulista ele avistou-se apenas com Bernardino

de Campos, Américo Brasiliense e Campos Sales. O que entre eles se

passou, tanto pelos motivos do momento como por conveniências

posteriores bem fáceis de compreender, não foi divulgado ao maior

número. É certo entretanto que, para o diretor dO Páis, a entrevista

esteve longe de ser satisfatória. Bernardino de Campos, presidente do

partido, de maneira alguma concordava com a proclamação da

República ao sabor de um levante militar. Procurar a maior elevação

política do país, simplesmente destruindo no Exército o sentimento

do dever e os últimos escrúpulos da disciplina, parecia-lhe de um

inadmissível contra-senso e de um perigo incalculável. Américo

Brasiliense imediatamente pronunciou-se pelas suas idéias, Campos

Sales, visivelmente perturbado, manteve-se indeciso e reservado.

Terminada a entrevista, Quintino Bocaiúva recolheu-se à casa de um

parente, onde pernoitou, voltando ao Rio logo no dia seguinte.

Campos Sales ficou de consultar ainda alguns outros dois líderes do

PRP. Mas, no dia 3 de maio, Bernardino de Campos dirigia uma

carta à comissão permanente, na pessoa de Glicério, declinando da

presidência dela própria e do partido. Ele tomava a si pessoalmente

todas as responsabilidades do seu discurso de 6 de fevereiro.

Disposto a não ceder naquele ponto, também não queria criar

dificuldades aos seus amigos, deixando-lhes toda a liberdade.

Entretanto, a retirada de Bernardino de Campos da

presidência do PRP, naquele instante, após o brilhante e

oportuníssimo trabalho de harmonização final da propaganda

republicana com a campanha abolicionista por ele realizado, era para

o partido de uma evidente desvantagem. Como reagiriam os radicais

que só por ele e à sua voz haviam voltado à atividade das fileiras?

Entrara-se no mês da Abolição; a grande vitória anunciava-se

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imediata e inevitável. À luz daquele dia, não haveria sobre o PRP a

sombra de um desgosto, a inconvenientemente recordar os seus

velhos prejuízos escravocratas? Foi sob o peso de tais considerações

que se leu em Campinas a carta de Bernardino. Entre a sua recepção

e a confecção da resposta houve três dias de consultas. Afinal, no dia

6, Glicério respondia: Acho, porém, que você não tem razão quando

se considera impossibilitado, pelas circunstâncias todas pessoais, de

conduzir o partido pelo caminho acidentado que ele agora é forçado

a percorrer. Pelo contrário, entendo que por isso mesmo deves ficar

à frente do partido. A agitação deve ser feita por mim,C. Sales,

Prudente, Pestana e outros companheiros. Você é o chefe, cuja

missão é velar, aconselhar, deliberar e cobrir com a autoridade

moral do seu nome e do seu cargo os atos dos agitadores...Prudente

de Morais, prevenido em Piracicaba do que se passava,

imediatamente escreve a Bernardino de Campos, reforçando o pedido

de Campinas: Se você se demite agora, era uma vez o Partido

Republicano... Mas, como velar, deliberar, cobrir com a

responsabilidade do nome e do cargo, e, sobretudo, como

aconselhar, se o primeiro conselho, que era o de não comprometer,

não misturar a propaganda republicana com a insubordinação militar,

não era ouvido? Ele insistia em que a demissão lhe fosse concedida.

Glicério correu porém de Campinas a completamente dissuadi-lo,

chamando ainda a Prudente de Morais que também se abalou de

Piracicaba. Como da vinda de Quintino Bocaiúva, houve nova

conferência, desta vez, entre seis, comparecendo ainda Rangel

Pestana, além de Américo Brasiliense e Campos Sales. Glicério, a

empregar os mesmos argumentos com os quais, na noite de 1º de

julho de 1873, reduzira a resistência dos radicais antes as reservas

antiabolicionistas dos fazendeiros, apelou para a unidade do partido e

para o interesse capital do mais próximo advento da República, que a

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tudo devia sobrepujar e preterir. Os princípios morais ou os

escrúpulos doutrinários não podiam ser mantidos até ao ponto de se

contraporem às necessidades práticas do partido, levantando

embaraços ao objeto no qual todo o seu programa afinal se resumia.

Foi admitido o critério da votação. Com as restrições de Bernardino

de Campos ficava apenas Américo Brasiliense. Era um voto contra

quatro. A demissão foi retirada.

Como de propósito, o primeiro repiquete da Questão Militar,

com caráter de correria e distúrbio sangrento na via pública, vinha

produzir-se exatamente em São Paulo, determinando a demissão do

chefe de polícia, Cardoso de Melo Júnior, e profundamente

emocionando os meios sociais e políticos da província.

É preciso notar porém que o programa novo e

verdadeiramente estranho de chegar à República numa vaga de

baionetas sublevadas não foi comunicado propriamente ao PRP nem

fora dele se estendeu a quaisquer outros núcleos republicanos do

país. Zelosamente guardado e promovido só individualmente por

Quintino Bocaiúva, no Rio de Janeiro, para ser conhecido apenas do

pequeno círculo dA Federação, de Porto Alegre, ele em São Paulo

restringiu-se tão-somente àqueles seis principais dirigentes do

partido. Não houve aliciamento nem procura de adesões. Conservou-

se no estrito caráter de conspiração, mas uma conspiração sui generis

e jamais vista, onde o maior número ou a massa geral dos

conspiradores, que eram os militares, devia avançar para o momento

decisivo sem bem saber o que fazia nem perceber o ponto exato ao

qual se conduzia. Na sessão de 15 de janeiro de 1889 da Assembléia

Legislativa de São Paulo, Campos Sales chegou a defender em

discurso a doutrina especial do cidadão fardado ou do soldado-

cidadão. Não lhe deu porém nenhum caráter de preparação

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republicana, conservando-se no terreno das provocações vagas e

indefinidas, tal como no Rio a levava Quintino Bocaiúva.

Para dizer a verdade, é preciso reconhecer que a grande

emoção nacional da Abolição, determinado como um geral

abaixamento de tensão, reduziu de muito as preocupações com uma

imediata mudança do regime. José do patrocínio, filiado ao Clube

Republicano do Rio de Janeiro desde os dias da sua fundação e

signatário daquele severo Termo de Compromisso e Adesão, de 1877,

chegou mesmo a romper com a corrente republicana, constituindo-se

por um momento em grande defensor do trono, em reconhecimento

pelo que ele mesmo classificou como a Lei Áurea. Na Gazeta da

Tarde ele fulminava sem piedade os republicanos de negreiros e

escravocratas. Foi por sua inspiração e com o seu auxílio que o

Ministro João Alfredo veio a criar a célebre Guarda Negra, para

defesa pessoal da Redentora. Essa guarda especial e certamente

pitoresca, pretendendo opor-se a manifestações republicanas, chegou

mesmo a provocar vários distúrbios, tornando-se incômoda e

françamente comprometedora. Foi ela que, a 30 de dezembro de

1888, determinou um forte charivari na Sociedade Francesca de

Ginástica, à Travessa da Barreira(31), onde Silva Jardim fazia uma

conferência republicana, depois de haver cassado ao tribuno a

faculdade de manifestar-se de um teatro, com a ameaça de deitar

fogo àquele que lhe fosse cedido para tal fim. Aliás, essa pressão

redutora do abolicionismo sobre a propaganda republicana, como já a

reconhecem um artigo da Província de São Paulo de 19 de novembro

de 1887, não esperou 13 de Maio para manifestar-se. Tal como se

deu com o próprio Rangel Pestana nas eleições provinciais de 10 de

dezembro daquele ano, nas quais deixou de ser eleito, ela também

chegou a envolver pessoalmente a Quintino Bocaiúva, ao apresentar-

se candidato a senador pela corte, nas eleições de 19 de abril do ano

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seguinte. Em oposição à candidatura do diretor dO País, a

Confederação Abolicionista lançou a de Ferreira Viana, que levantou

1.346 votos contra apenas 110 por ele conseguidos. O fato foi

jocosamente comentado por Ângelo Agostini, na Revista Ilustrada.

Quintino Bocaiúva, armado de rede, foi mostrado como pescador

numa canoa, dizendo a legenda em referência ao seu pequeno

número de votos, que tinha apenas pescado 110, entre sardinhas

republicanas e baiacus negreiros, perante a brilhante votação do

outro candidato...

A queda do gabinete João Alfredo e do Partido Conservador,

no dia 6 de junho de 1889, com a subida dos liberais no gabinete

Ouro Preto, veio concorrer ainda mais para aquela atmosfera de

desinteresse, senão mesmo de repulsa por uma imediata e mais forte

agitação republicana. A plataforma do novo Ministério, apresentada

à Câmara dos Deputados a 11 daquele mês, era, em suma, a

preparação normal, digamos mesmo. O encaminhamento regular da

nossa ascensão ao regime republicano, segundo o nosso velho

processo – o processo brasileiro ou luso-americano – de revoluções

por livre modificação das leis no Parlamento. Quem hoje lê o

programa do gabinete Ouro Preto, nos anais da Câmara de 1889,

compreende que o Deputado Pedro Luís, a exclamar admirado, é o

começo da República!, tinha bem razão, como do seu lado também a

tinha o presidente do Conselho em responder-lhe: Não, é a

inutilização da República... Entenda-se: a inutilização da República

como conspiração, como levante ou como desordem, porque a

transformação legal para o novo regime, no momento apropriado e já

previsto, claramente ali se encontra. Reflita-se um pouco sobre estes

dispositivos; Alargamento do direito de voto, considerando-se como

prova de renda legal o fato de o cidadão saber ler e escrever

(sufrágio universal); plena autonomia dos municípios e províncias.

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como elegibilidade dos respectivos administradores (federação);

efetividade do direito de reunião; liberdade de culto a seus

consectários (separação da Igreja do Estado); temporariedade do

Senado e, finalmente, reforma do Conselho de Estado, para

constitui-lo meramente administrativo, tirando-lhe todo caráter

político (extinção do poder moderador)... Para ser totalmente a

República faltava apenas a eliminação da coroa. Mas, esta, todos já a

tinham como intransferível da cabeça do Imperador Pedro II.

O fim da Monarquia brasileira, com o desaparecimento do

neto de D. João VI, não é apenas uma hipótese que hoje possamos

estabelecer por simples deduções. Era uma certeza, senão mesmo

uma firme decisão dos homens daquele tempo. Feita a Abolição,

ninguém mais tinha dúvidas a respeito, de tal convicção chegando a

participar e com ela nobremente conformando-se o próprio

imperador(32). Os republicanos de boa e clara orientação doutrinária

estavam dentro destas idéias e firmes nestas esperanças. Da mesma

forma pensavam os militares, não se compreendendo portanto que se

lançassem aos riscos de uma rebelião, rompendo com os seus hábitos

de disciplina, com o respeito que sempre tiveram pelo imperador e

com as próprias tradições de sua pátria e do seu povo, só para

fazerem uma coisa que todos tinham como certa e inevitável. É

mesmo lícito afirmar que raramente se terá visto em qualquer parte

uma tão completa unanimidade de opiniões e sentimentos como era a

nossa daquele instante. Por mais que, por simples oposição ou fácil

empenho de deprimir, se tenha depois criticado a composição

esmagadoramente liberal da Câmara eleita a 31 de agosto de 1889,

não se pode ter a menor dúvida de que os votos que a sufragaram,

expressavam bem a vontade nacional daqueles dias. Por decreto de

15 de junho havia sido dissolvida a Câmara anterior que pusera o

governo em minoria. Foi sobre aquele programa, por ela repudiado,

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que se fizeram as novas eleições. O eleitorado quase unânime o

aplaudira e confirmara.

Aquele era o sentimento geral, aquela era realmente a opinião

do povo brasileiro, tanto quanto possa um povo ter opinião e meios

eficazes de a expressar. Só uma discrepância, só uma falha havia

nessa geral harmonia de pensar e de sentir, nessa verdadeira ordem

política do país. Era a sombria desconfiança dos militares de que o

governo estivesse a tudo dispor para dissolução do Exército e a

completa ruída de todos eles. Mas, ainda aí, há provas evidentes de

que, nos seus projetos de reação contra essa ameaça suposta ou

verdadeira, de nenhum modo eles se propunham a substituir a

opinião nacional, precipitando à força e por sua conta a grande

transformação. Neste ponto há um fato que supera todos os

argumentos. Logo após as eleições e naturalmente fortalecido com o

prestígio que delas lhe resultou, o presidente do Conselho foi

tratando de tomar certas precauções contra a crescente inquietação

dos militares. Os corpos de polícia e de bombeiros foram

consideravelmente reforçados, dando-se os primeiros passos para

uma grande reorganização da Guarda Nacional. Nesse meio tempo

veio a São Paulo o jovem jornalista Medeiros e Albuquerque, muito

ligado aos meios republicanos do Rio de Janeiro. Em visita ao Clube

Republicano, ele disse que, em reciprocidade àquelas medidas do

governo, o levante dos militares estava por poucas semanas ou

poucos dias. Campos Sales quis então certificar-se pessoalmente das

relações que essa possível ação dos militares pudesse ter com o

movimento republicano. Partiu para o Rio, solicitando e obtendo

uma entrevista com o Marechal Deodoro, o Visconde de Pelotas e o

Tenente-Coronel Benjamim Constant. Qual não foi o seu enleio ao

deles ouvir que de maneira alguma se preocupavam com a

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proclamação da República, tratando apenas de resolver de uma forma

exemplar e definitiva os velhos dissídios do Exército com o governo?

Nenhum deles esqueceu-se mesmo de reafirmar a sua

convicção de que a República só seria possível após a morte do

imperador(33). Tão desapontado voltou Campos Sales da sua

excursão informativa, que, atropelado de perguntas pelo seu amigo

Glicério. logo na estação do Norte, acabou por familiar e

estouvadamente concluir. Seu Chico, eu agora quero que a

República se lixe (ou coisa semelhante)!...(34)

Mas, os negócios iam rapidamente precipitar-se muito para

além das reservas dos três chefes militares e dos desânimos do líder

republicano. Na cidade de Ouro Preto, então capital da província de

Minas Gerais, abria-se no dia 9 de outubro uma série de sangrentas

arruaças entre soldados do 9º de Cavalaria e praças de polícia,

surgindo daí um sério conflito de autoridade entre o chefe de polícia

e o comandante daquele corpo. Negando-se a usar a mesma solução

empregada pelo Conselheiro João Alfredo no caso idêntico de São

Paulo em novembro do ano anterior, o ministro manda que para lá

siga a manter a ordem uma numerosa força composta do 23º de

Infantaria e de um esquadrão de cavalaria. Como da expedição a

Mato Grosso, a medida é logo encarada como desfalcamento

premeditado da guarnição da corte, para o fim de enfraquecê-la.

Havia no momento seca no Nordeste, determinando um grande

afluxo de retirantes para o extremo Norte. Fala-se que o governo, no

intuito de prevenir perturbações possíveis, vai destacar mais um

corpo de infantaria para Manaus. A atmosfera no Rio de Janeiro

carrega-se ainda mais. O Visconde de Ouro Preto reage, ordenando

as transferências de oficiais para guarnições distantes a que já nos

referimos. O País entra violenta e francamente a pôr em guarda os

militares contra qualquer cousa que tem por iminente e muito séria...

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NOTAS (23) Vide conferência do Ministro Rodrigo Otávio sobre o primeiro

centenário do nascimento de Quintino Bocaiúva, no Vol. 171 da Rev. do

Inst. Hist. e Geog. Bras. , págs. 422, 443.

(24) Vide Os Republicanos Paulistas e a Abolição , Cap. VII, págs. 163 a

166.

(25) Vide Tobias Monteiro, op. cit., págs. 154, 155.

(26) Essa entrevista, minuciosamente relatada depois por Cunha Matos,

em publicações feitas no Jornal do Comércio e confirmadas por Alfredo

Madureira, merece uma larga referência às págs. 140 e 141 das Pesquisas

e Depoimentos de Tobias Monteiro.

(27) Na época, pretendeu-se que a idéia partiu do Ministro da Guerra, o

Conselheiro Tomás Coelho, e que exatamente visou afastar do Rio de

Janeiro o esteio mais forte da Questão Militar.

(28) Expressões de Deodoro a Ouro Preto, na manhã de 15 de Novembro.

(29) No caso do chefe de polícia de São Paulo com os oficiais do 17º de

Infantaria, a medida da demissão daquela autoridade completou -se com a

retirada do batalhão que foi transferido para outra guarnição. Na noite de

24 de novembro, véspera da partida dos soldados, um grupo de 3 00 ou

400 pessoas entendeu de fazer-lhes uma manifestação de despedida, à

porta do quartel. Tendo-se levantado do meio do grupo alguns vivas à

República, o comandante chegou à janela e disse da manifestação que a

agradecia, ao Exército rejeitando-a absolutamente, se porventura visava

algum outro fim. (Relatório da polícia dirigido ao presidente da província,

Dr. Pedro Vicente de Azevedo, em data de 25).

(30) Uma das provas mais sugestivas do grande interesse com o qual a

nossa política interna era, em todo aquele período, observada na

República Argentina, encontra-se nas extraordinárias demonstrações de

simpatia com as quais a imprensa de Buenos Aires comemorou o quinto

aniversário da fundação dO País, a 1 de outubro de 1889. La Nación, El

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Censor, El Nacional, El Globo, El Sud América, El Rio de La Plata , todos

publicaram grandes artigos realmente encomiásticos. El Censor, saudando

a Quintino e Matosinhos, classificou o O País de principal campeão das

idéias democráticas no Brasil, La Nación dizia: “jornal que honra

sobremodo a América Latina e que em prosperidade e influência

adquiridas no curto espaço de um lustro, tornou-se um verdadeiro

fenômeno na imprensa periódica deste lado do Atlântico”. Mas não foi

tudo. Bartholomey Mitre y Vedia, diretor de La Nación, filho do general,

reuniu em sua redação, no correr do dia, os diretores e vários redatores

dos principais jornais portenhos numa grande recepção em honra de

Quintino Bocaiúva e de O País, na qual, com entusiásticos brindes ao

nosso patrício e ao seu jornal, bebeu-se também à República e ao

progresso cívico da América do Sul...

(31) Hoje, Rua Silva Jardim.

(32) Repitamos que existem neste sentido documentos absolutamente

concludentes. Como indicação, pode-se consultar A Política Geral do

Brasil, no seu Cap. X, O Fim do Segundo Reinado , págs. 180 a 182.

(33) Indicação ainda melhor dos verdadeiros sentimentos do Marechal

Deodoro sobre a República encontra-se numa carta por ele escrita a um

seu sobrinho, aluno da Escola Militar do Rio Grande do Sul, em se tembro

de 1888, na qual há o seguinte trecho: “Não te metas em questões

republicanas, porquanto – República no Brasil e desgraça é a mesma

coisa”... Vide Ernesto Sena, Deodoro, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro,

1910.

(34) O próprio Glicério, recordando depois as vicissitudes, os momentos

de esperança e desalento por que passaram, contava a sorrir esse incidente

às pessoas de sua intimidade.

CAPÍTULO IV

A HÉJIRA DO CAUDILHISMO

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Quintino Bocaiúva tenazmente continua a meter a sua cunha

nas articulações da Monarquia. Todo mundo compreende

naturalmente o que ele procura, Mas ninguém quer ainda acreditar

que os soldados se prestem realmente à sua manobra. Em todo caso,

alguém há de tudo bem informado e prevenido. É Dom Henrique

Moreno, ministro da República Argentina no Rio de Janeiro. No dia

10 de outubro ele inesperadamente parte para Bueno Aires a

entender-se com o seu governo. No dia 30 a corveta La Argentina

lança ferros na baía de Guanabara. Vem ficar às ordens do bem-

avisado e cauteloso diplomata. Aliás, ali já está um outro navio de

guerra sul-americano. É o couraçado chileno Almirante Cochrane.

Este porém vem numa excursão toda ocasional e inteiramente

descuidada. Partindo em primeira viagem dos seus estaleiros de

construção da Europa, aproveita a passagem pelas nossas costas para

uma homenagem ao governo e ao povo do Brasil. Grandes festas

foram-lhe preparadas. Dando-se, porém no dia 18 o falecimento do

Rei D. Luís de Portugal, o luta da corte de São Cristóvão impõe o

adiamento da maior parte do programa. A permanência se prolonga

até o mês seguinte. Naquele instante da nossa vida interna, a

presença daquelas duas bandeiras no porto do Rio de Janeiro, por

motivos tão diversos, não deixa de assumir uma involuntária e

profunda significação na psicologia política do continente...

As notícias do afastamento de mais um batalhão da guarnição

da corte se confirmam. Na manhã de 10 de novembro, o 22º de

Infantaria embarca para o Norte. Tudo correu bem. Mas, dois dias

antes, Aristides Lôbo, fortemente alarmado, incluída nos autógrafos

da sua crônica cotidiana para o Diário Popular de S. Paulo, um

bilhete para Américo de Campos, cautelosamente tudo enviando, em

mão própria, pelo seu sobrinho Francisco José da Silveira Lôbo. O

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levante militar estava por dias ou por horas. Ele, propriamente, não

se considerava dentro da agitação: não fôra para ela convidado nem

tivera com os seus promotores, até então, qualquer aproximação ou

qualquer contato. Mas, bem informado, achava do seu dever prevenir

os seus amigos do Diário. Américo precipita-se para o escritório do

seu irmão. Bernardino lá estava com Campos Sales. A pequena

missiva de Aristides é lida com intraduzível ansiedade. Bernardino,

com a fisionomia fortemente carregada, fica a olhar absorto pela

janela. Mas Campos Sales escreve rapidamene um telegrama e corre

a entregá-lo na próxima agência de São Paulo Railway: Francisco

Glicério – Campinas – Venha já. Glicério, no seu escritório de

advocacia, leu aquele recado telegráfico num ligeiro sobressalto,

ficando a refletir alguns segundos. Mas, como se procedesse por

enérgica eliminação de tudo quanto ao seu espírito se apresentasse

naquele instante, para pensar apenas no mais urgente, tirou de uma

gaveta o seu diário, que pôs em ordem e encerrou naquela data.

Depois, chamando o seu companheiro Antônio Lôbo, o pôs ao

corrente dos meios de que a sua família disporia, se por acaso lhe

viesse a acontecer alguma cousa. Em seguida, foi-se à sua residência,

e munindo-se da sumária bagagem de quem, por um dia ou dois, vai

a uma pequena viagem de negócios, partiu para São Paulo. Aí,

depois de uma rápida conferência com Bernardino de Campos,

Rangel Pestana e Campos Sales, que o esperavam, tomou logo o trem

para o Rio de Janeiro.

É muito difícil guardar recordações minuciosas de momentos

como aquele. Tudo se passa num turbilhão, sem que se possam ligar

logicamente os fatos, discernindo claramente a influência positiva ou

negativa que neles hajam tido os diferentes indivíduos e os vários

incidentes. Ninguém, a não ser os mais fortes e obstinados, os mais

raros ou raríssimos, chega mesmo a guardar constantemente uma

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certa unidade de pensar e de sentir. Tudo se confunde, tudo se

emaranha no contraditório torvelinho das emoções sucessivas, que

nem todas são agradáveis de recordar. Há conveniências opostas e

pontos de vista diferentes, tudo concorrendo para que os

depoimentos da época, mesmo os daqueles a quem supúnhamos mais

unidos e solidários, freqüentemente se acusem de esquecimento,

senão mesmo de infidelidade. A quem queira ver as cousas com certa

clareza, é indispensável portanto não dar um crédito absoluto à

espécie de toilette geral do acontecimento, à qual logo em seguida se

procede, a título de versão oficial para os vindouros... Só há um

método seguro: é o de isolar o que haja de constante e permanente

nos vários elementos contraditórios. Ora, se há uma constante nos

dados formativos da crônica de 15 de Novembro, é, de um lado, a

ignorância na qual estava o governo de que realmente se tratasse de

um movimento republicano, e, de outro, a incerteza dos militares

sobre as verdadeiras conseqüências do levante.

Entre 23 de agosto de 1911 e a mesma data de 1912, Ernesto

Sena, o velho e popular repórter do Jornal do Comércio, do Rio de

Janeiro, publicou em sua folha toda uma longa série de informações

sobre o 15 de Novembro, onde um jovem leitor dos dias atuais já

encontraria, sem a menor dúvida, uma grande e profusa fonte de

surpresas(35). O primeiro motivo de admiração seria que, entre os

vários documentos da época, provindos dos meios militares e ali

citados ou reproduzidos, não há um só onde a palavra República

apareça. Em todos eles fala-se apenas dos brios do Exército

conspurcados por políticos inconscientes ou insensatos, contra os

quais era imperioso e urgente reagir. Em nenhum se encontra a

mínima referência a organizações políticas ou formas de governo.

Não é assim tão-somente nos destinados a imediata divulgação, onde

uma certa reserva ou discrição seria compreensível. O mesmo se dá

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com os mais íntimos ou mais secretos, vindos a público só muito

depois de a conjuração haver triunfado e produzido todos os seus

efeitos. Em seguida, fica-se a saber que a articulação efetiva da

agitação militar com a propaganda republicana só se deu no dia 11

de novembro, isto e, quatro dias antes do levante do Campo de

Santana. Foi realmente naquela tarde, depois de uma conferência

entre alguns oficiais, realizada na casa de Deodoro, que o Tenente

Sebastião Bandeira partiu a procurar Quintino Bocaiúva e Aristides

Lôbo, em falta de melhores referências, pelos cafés da Rua do

Ouvidror(36), enquanto Benjamim Constant seguia a entender-se

com Rui Barbosa, que, não sendo filiado à propaganda, era contudo

da íntima confiança dos chefes militares, que o tinham de reserva

para uma eventual mudança de gabinete, como solução final do

momento. Menos espanto não causa a informação de que, em todo o

desenrolar da grande parada do dia 15, Deodoro decididamente se

opôs a qualquer palavra ou a qualquer gesto que se pudesse traduzir

em ato proclamatório da República. À direita da 2ª Brigada,

estendida em frente ao quartel-general, formara-se, curioso e mais ou

menos inquieto, um certo magote de populares. Aristides Lôbo e

Sampaio Ferraz, que ali vieram, tomaram a palavra para dar conta

àqueles homens da imensa honra que lhes tocava se serem as

primeiras testemunhas do grande fato histórico do advento da

República no Brasil. Logo o marechal mete a trote o seu cavalo para

vir dizer-lhes que o que estavam a fazer não era ainda oportuno ou

ainda não cabia. Entretanto, das baterias do 2º Regimento de

Artilharia um Viva a República! se levanta. É o Tenente Saturnino

Cardoso que assim se manifesta. Deodoro, a agitar energicamente o

braço, vem sobre ele, fazendo-o calar, com a áspera observação de

que aquela atitude não era digna de um oficial em forma. Deixe isto

para os civis, acrescentou. Mas, aos civis, ele vinha de acoimar de

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inoportunos... A preocupação de salvar a Monarquia torna-se tão

evidente no chefe da revolta que, quando tudo parecia terminado, um

dos principais elementos da tropa, o Major Sólon Ribeiro,

comandante do 9º Regimento de Cavalaria, dele se aproxima para

dizer-lhe, segundo menciona Ernesto Sena, que a sua espada não se

embainharia enquanto não fosse proclamada a República! Dessa tão

inesperada e tão característica declaração ainda nos ocuparemos mais

adiante.

O trabalho de Ernesto Sena, todo no gênero do homem

habituado a apenas compor rápidas notas sobre fatos da vida

cotidiana, não chega a ser bem uma narrativa. É apenas um copioso

repositório de dados e documentos, completado um pouco

estouvadamente por alguns traços anedóticos. Mas, na mesma época

da sua edição definitiva, aparece um outro livro que traz em si tidos

os sinais de um verdadeiro trabalho de escritor. São as Pesquisas e

Documentos para a História, de Tobias Monteiro, a que por vezes já

nos temos referido.

O trabalho de Tobias Monteiro, sobretudo nos quatro

capítulos enfeixados sob a rubrica geral de Quinze de Novembro, é

realmente um modelo de crônica minuciosa e bem elaborada.

Catorze meses após a queda da Monarquia, o autor consegue ouvir

pessoalmente quase todos os figurantes ainda vivos daquele drama.

Lá estão o Visconde de Ouro Preto, o Barão de Lucena, Francisco

Glicério, Serzedelo Correia, o General Cunha Matos e vários outros,

sem esquecer alguns dos já então desaparecidos, que ele não logra

mais atingir, como Deodoro e Floriano, mas dos quais ainda fixa

alguns aspectos inteiramente novos, em notas inéditas e de grande

efeito sugestivo.

Mas, de todos os instrumentos de informação ali

apresentados, aqueles nos quais o autor menos parece acreditar, a

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mesma impressão transmitindo aos seus leitores, são exatamente os

destinados a emprestar ao advento da República naquele dia o caráter

de um ato seriamente deliberado e conduzido com clara e perfeita

consciência. Só de uma cousa se fica certo: é de que o Visconde de

Ouro Preto, depois de haver afirmado na noite de 14 ao Conselheiro

Sousa Ferreira, diretor do Jornal do Comércio, que o governo

dispunha de todos os meios necessários a defender a ordem e manter

a autoridade, na manhã do dia seguinte se encontrava sitiado no

quartel-general, com todos os seus companheiros de gabinete,

inteiramente à mercê da tropa sublevada.

A simples disposição das forças no local já é de um grande

valor informativo(37). No campo fronteiro ao edifício, trazendo à

frente o Marechal Deodoro, estendiam-se o 1º e o 9º Regimento de

Cavalaria, o 2º da Artilharia (toda a 2ª Brigada) e os alunos da Escola

Superior de Guerra, vindos de São Cristóvão. No pátio interno e ao

lado, em frente à estação da estrada de ferro, sob as ordens imediatas

do Marechal Floriano Peixoto, ajudante-general do Exército, estavam

os contingentes com os quais o governo contava para a resistência. A

relação numérica dos dois grupos em presença era de um para quatro,

pois a tropa trazida por Deodoro apenas excedia de quinhentos

homens, enquanto a mais de dois mil se elevavam os defensores da

autoridade. Mas eram estes que, ao lado do quartel acabaram

fechando o cerco... Só um soldado se alteia a reagir: é o almirante

Barão do Ladário, ministro da Marinha. Intimado de prisão ainda na

rua, o bravo marinheiro duas vezes dispara a sua pistola sobre o

chefe sublevado, sem o conseguir tocar ou atingir, recebendo em

resposta uma descarga de clavinas que o prostra por terra todo

ensangüentado. O Marechal Deodoro penetra então no edifício e,

subindo ao salão onde se encontrava o presidente do Conselho,

notifica-lhe simplesmente... a demissão do gabinete!

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Sobre o que realmente se passou naquele instante, nenhum

testemunho poderá jamais ser anteposto ao do próprio Visconde de

Ouro Preto, que, emocionado e sincero, o exarou no seu livro A

Ditadura Militar no Brasil, saído alguns meses após aqueles fatos.

Assim resume ele o que então lhe disse o chefe da revolta: No meio

do mais profundo silêncio, cientificou-me de que se pusera à frente

do Exército para vingar as gravíssimas injustiças e ofensas por ele

recebidas do governo... Só o Exército, afirmou, sabia sacrificar-se

pela pátria e, no entanto, maltrataram-no os homens políticos que

até então haviam dirigido o país. Apesar de enfermo, não se pudera

escusar a dirigir seus camaradas por não ser homem que recuasse

diante de cousa alguma, temendo só a Deus. Aludiu aos seus

serviços no campo de batalha, rememorando que pela pátria estivera

durante três dias e três noites combatendo no meio de um lodaçal,

sacrifício que eu não podia avaliar. Declarou que o Ministério

estava deposto e que se organizaria outro de acordo com as

indicações que iria levar ao imperador. Disse que todos os ministros

podiam retirar-se para suas casas, exceto eu – homem teimosíssimo,

mas não tanto como ele (assim se exprimiu) – e o Sr. Ministro da

Justiça, que ficaríamos presos até sermos deportados para a Europa.

Quanto ao imperador, concluiu, tem a minha dedicação; sou seu

amigo, devo-lhe favores. Seus direitos serão respeitados e

garantidos.

Essa narração do Visconde de Ouro Preto concorda no fundo

com as palavras de aspectos textuais, atribuídas ao Marechal

Deodoro pela imprensa da época, através dos repórteres ali presentes:

Vossa Excelência e seus colegas estão demitidos, por haverem

perseguido oficiais do Exército e revelarem o firme propósito em que

estavam de abater ou mesmo dissolver o próprio Exército. Nesta fase

de pretensões lapidares, recomposta ainda na forte emoção do

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acontecido, resume-se afinal todo o programa dos militares naquele

dia. Segundo os dados tão fiéis recolhidos depois por Tobias

Monteiro, tudo quanto se passa dali por diante toma o aspecto de um

tumulto precipitado e constrangido, onde apenas o temos das

responsabilidades pelo ato praticado regula as decisões. Nas

narrativas depois apresentadas, não há duas que realmente se

assemelhem. Mesmo entre os principais interessados, militares ou

civis, não há afirmações coerentes nem concordância de

apontamentos. Glicério, por exemplo, depois de dizer a Tobias

Monteiro que Deodoro, à última hora, sempre chegara a consentir na

proclamação da República, conta ter-se visto à tarde do grande dia na

necessidade de juntar gente pelas ruas para ir em cortejo à casa do

marechal a saber do que afinal se proclamara ou fôra proclamado no

Campo de Santana. As dez horas da noite Benjamin Constant ainda

se encontra na obrigação de recordar ao comandante da grande

parada da manhã, que, naquelas alturas, não era mais tempo de

vacilar. O tenente-coronel observa cruamente ao marechal que este

tem bem o direito de arriscar ou pôr em jogo a sua cabeça, mas não

as dos seus amigos e companheiros(38). Entretanto, ele mesmo,

Benjamim, ainda na véspera, não somente ignorava que o movimento

se fizesse naquele dia, como estava mesmo na firma convicção de

não ser ainda o momento de o fazer(39).

* * *

Muito se tem querido esconder ou velar as indecisões do 15

de Novembro. A versão de haver o Marechal Deodoro penetrado no

pátio interno do quartel-general a lançar um Viva Sua Majestade o

Imperador!, que tão bem concorda e se harmoniza com aquelas

declarações por ele feitas ao Visconde de Ouro Preto, é sobretudo

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apontada como digna somente de ser repelida e cancelada(40). Para a

boa apresentação histórica dos fatos, só um viva podia ele haver

levantado naquele instante: um Viva a República! Assim pode não

ter sido, mas é assim que o devemos ter por verificado e

indiscutível... A história seria porém uma bem pobre fantasia, se só

em convenções desta natureza a tivéssemos de assentar. Aliás, a

simulação de bem pouco serviria, pois de completamente arruiná-la

se encarregou o próprio Quintino Bocaiúva...

Partindo naturalmente dos boletins iniciais do 15 de

Novembro (o Exército e Armada em nome da Nação...), o quadro da

proclamação, logo apresentado pelos cronistas oficiais, só podia ser o

de um arranco espontâneo e irresistível das forças militares, a trazer

o Marechal Deodoro como espírito e centro vivo da apoteose, com

inevitável esbatimento ou atenuação de outras figuras. Uma das

primeiras vítimas da penumbra assim formada, ao favor da qual

muitas individualidades de menor significação entraram a empurrar-

se para a aura luminosa, foi o Major Sólon Ribeiro. Entretanto, se à

última hora alguma ligação real se estabeleceu entre a Questão

Militar e a propaganda republicana, dela foi esse oficial certamente o

agente mais eficaz e mais seguro. Foi ele, do ponto de vista militar, o

braço direito, poderíamos mesmo dizer o chefe de estado-maior de

Quintino Bocaiúva na jornada de 15 de Novembro. mas, homem

sisudo e um tanto severo de atitudes, não conseguiu depois as

vantagens e brilhantes posições com as quais outros se premiara,.

Caído no desagrado do Marechal Deodoro da Fonseca ainda no

período do Governo Provisório, ele era mandado recolher a uma

prisão militar pelo Marechal Floriano Peixoto durante a revolta naval

de 1893, para vir a falecer alguns anos depois, mais ou menos

esquecido, como general de brigada reformado. Em 1902, tão

malparada andava a sua memória na glorificação literária dos heróis

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republicanos, que a sua viúva, D. Túlia Sólo Ribeiro, resolveu pedir a

Quintino Bocaiúva que lhe quisesse dizer como pensava do papel do

seu marido na jornada memorável. O velho propagandista, então

presidente do Estado do Rio de Janeiro, não se fez rogado. Em uma

longa missiva(41), firmada em Petrópolis no dia 31 de julho daquele

ano, é assim que ele começa: Tenho lido tantas historias sobre o

movimento revolucionário de 15 de Novembro de 1889 e sobre a

proclamação da República, que, afinal receoso de baralhar as

minhas reminiscências, deliberei reconcentrar-me na minha

memória, esquivando-me a fornecer o meu testemunho, quando o

caso o reclamasse... Depois de tão claramente infirmar de inexatidão

a crônica corrente, com as suas arbitrárias atribuições de méritos e

glórias, Quintino Bocaiúva firmemente declara que o antigo Major

Sólon Ribeiro foi o elemento decisivo no levante do Campo de

Santana: Entre todos quantos tomaram parte na revolução de 15 de

Novembro, nenhum foi mais abnegado do que o General Sólon,

nenhum exerceu mais decisiva influência na proclamação da

República do que ele. O episódio daquela interpelação feita pelo

major ao marechal perante as tropas sublevadas, atrás referido, ele

não somente o confirma, como avoca a si a sua inspiração,

acrescentando com detalhe: O que o então Major Sólon disse, no

exaltamento do seu entusiasmo ao Marechal Deodoro, quando este

voltou a colocar-se à frente das tropas, depois de haver intimado a

demissão do Ministério Imperial, foi que não embainhava a sua

espada antes de proclamada a República. Como eu estava ao seu

lado e me recordo do incidente não duvido descobrir-me a mim

próprio, confessando que fui o instigador desse movimento, por

circunstâncias que alguns conhecem, mas que eu peço licença de

guardar em reserva.

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As circunstâncias que alguns conheciam mas que ele pedia

licença à sra. Sólon Ribeiro para guardar em reserva, a esta altura da

nossa exposição, já deixaram de ser secretas. Eram os evidentes

esforços do marechal para limitar as conseqüências do levante à

simples demissão do Ministério, ressalvando os direitos do

imperador, e, portanto, a Monarquia, em perfeita coerência, aliás,

com as origens, a evolução e a própria natureza da Questão Militar,

que, não tendo sido jamais uma questão política, não era de fato um

movimento republicano. Quintino Bocaiúva tanto não se iludia a este

respeito que nunca procurou o menor entendimento ou o menor

contato direto com os meios militares, onde tinha todos os motivos

para supor não ser bem recebido com os seus projetos de ação ou as

suas idéias. Ele deixou a Questão Militar evoluir isoladamente. Mas,

compreendendo bem que, como permanente e progressiva rebelião

contra a autoridade, ela não podia deixar de, mais hoje, mais amanhã,

vir a chocar-se diretamente com a coroa, tomou a si de

sistematicamente ampliá-la, oferecendo-lhe em seu jornal uma

espécie de superfície irradiante ou de centro de ressonância, donde

ela, argumentada e mais viva refluísse mais diretamente e mais

intensa sobre os quartéis.

Entretanto, ele não podia esperar toda a sua vida que os

militares se resolvessem enfim a tomar armas e sair à rua. Dado o

espírito estreito e inconseqüente da sua agitação, adstrito apenas a

reivindicações profissionais nem muito precisas nem jamais

claramente enunciadas, era muito possível que eles, ante a gravidade

e os perigos daquela hipótese, fossem a recuar indefinidamente as

suas decisões, até virem as cousas a amortecer por si mesmas, ou de

alguma forma se arranjassem. No dia 20 de novembro reabria-se o

Parlamento. Era sabido que o governo já tinha pronto a apresentar às

Câmaras um projeto de completa reorganização das forças militares,

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com aumento geral do soldo e grande aquisição de novos

armamentos. Estava-se no mês de outubro. O momento era a todos os

títulos decisivos. Se o deixassem passar, estaria tudo comprometido

para o futuro. Iremos ao 3º, ao 4º, e ao 5º reinados, observava com

tristeza o incansável propagandista(42).

Foi nesse instante realmente psicológico que, ao azar de uma

relação comum, ele veio a encontrar o Major Sólon Ribeiro. Estatura

esbelta e um pouco acima da média, fronte alta, cabelos curtos

totalmente voltados para trás, olhos pequenos e brilhantes, tocados de

uma forte expressão de vontade inteligente e inflexível, nariz afilado

e um tanto adunco, barba toda, um pouco loura, com o farto bigode a

esconder os lábios energicamente cerrados, era o Major Sólon

Ribeiro um desses homens que logo à primeira vista impressionam

fortemente. De volta de uma comissão ao Sul do país, para a qual

fora escolhido a contragosto, estada adido ao 9º Regimento de

Cavalaria que, por motivos de indisciplina e distúrbios na via

pública, havia sido transferido da cidade de Ouro Preto para o quartel

do 1º da mesma arma, em São Cristóvão. Um pouco parecidos no

perfil e nos modos severos e reservados, Quintino Bocaiúva e aquele

oficial eram dois homens feitos para entenderem-se. A partir daquele

dia, os processos de agitação militar modificaram-se, passando a

solicitar principalmente a cadetes e sargentos, na imediata intimidade

das casernas. Sólon Ribeiro, muito mal disposto pelas suas últimas

relações com a Secretaria da Guerra, pensava que aos grandes chefes

militares faltavam sobretudo energia e decisão. Entre os dois foi logo

resolvido precipitar os acontecimentos, atropelando e empurrando

para a frente os indecisos. Afora os alunos militares, já longamente

inquietados pelas dissertações teóricas do Tenente-Coronel

Benjamim Constant, mas sem a obediência mecânica e o

conseqüente desprezo de conseqüências dos soldados das fileiras, os

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corpos mais bem dispostos para um rápido e eficaz golpe de audácia

eram os da 2ª Brigada, o 2º Regimento de Artilharia e os 1º e 9º de

Cavalaria, todos aquartelados em São Cristóvão. O plano de ação

concretizou-se imediatamente em levantá-los e trazê-los em armas à

praça pública, forçando todos os demais a uma pronta e extrema

decisão. Ante a ingrata e inevitável perspectiva do mútuo massacre

de camaradas, o espírito de classe, já tão exaltado no momento, faria

o resto...

Eles tiveram razão, pois tudo se passou como previram. Na

sua carta à Sra. Sólon Ribeiro, Quintino Bocaiúva conta que na noite

de 14 de novembro Benjamim Constant (este ilustre e legendário

companheiro, tão nobre e desprendido quanto ingênuo e sincero...)

ainda não sabia quando o levante se daria – porque na noite seguinte

ao dia 14 devia conferenciar com alguns amigos do Clube Naval, e

que só depois disso é que poderia fixar o dia do movimento

revolucionário. Eu tinha na minha opinião que estava abortada a

revolução, se ela não explodisse na manhã de 15 de Novembro. A

discussão aí indicada teve lugar num escritório que o diretor dO País

tinha na Rua do Carmo, ali bem perto da redação. Naquela noite

pairava sobre toda a cidade do Rio de Janeiro uma pesada atmosfera

de apreensões. O governo havia dado ordem de prontidão a todos os

corpos da guarnição, nenhum soldado podendo sair à rua após a

revista do recolher. O Major Sólon Ribeiro estava presente ao

colóquio do jornalista com o professor da Escola Militar. naquele

instante, aproveitando a própria ordem de prontidão expedida pelo

governo, ele já havia concertado com os sargentos dos quartéis de

São Cristóvão que à meia-noite os três regimentos, armados e

municiados estivessem em forma. Quando Benjamim Constant, com

expressões tranqüilizadoras de quem está certo de não haver motivos

de precipitação, se retirou da Rua do Carmo, ele também se despediu

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de Quintino Bocaiúva, mas o fez com o ar severo e decidido de

quem, apesar de tudo, já sabe muito bem o que fazer. Daí a pouco, no

Largo de São Francisco de Paula, ele atravessava os grupos de

curiosos que à luz do gás comentavam os acontecimentos daquele

dia, deixando atrás de si como um rastilho a notícia de que o

governo, entre várias medidas de extrema severidade, acabava de

mandar prender o Marechal Deodoro da Fonseca e o Dr. Benjamim

Constant. Ele descobrira o melhor serviço que, no momento, ainda

podiam aqueles dois prestar à conspiração. No largo havia vários

oficiais vestidos à paisana. Em poucos segundos, quase todos os

tílburis do habitual estacionamento em frente à Escola Politécnica,

tinham desaparecido em furiosa disparada...

A passagem do Major Sólon pelo Largo de São Francisco de

Paula deu-se mais ou menos às sete e meia da noite. À uma hora da

madrugada começaram os oficiais a afluir aos quartéis de São

Cristóvão, onde se foram incorporando aos esquadrões e baterias, já

metidos em forma pelos sargentos. Benjamim Constant e Deodoro,

até então, de nada sabiam nem suspeitavam. O primeiro só apareceu

às cinco e meia da manhã, trazido por dois oficiais da Escola

Superior de Guerra, que, alertados como os outros, o foram procurar.

Deodoro, tendo mesmo passado mal a noite com um dos seus

freqüentes acessos de dispnéia, estava ainda na cama quando um seu

sobrinho e mais dois oficiais o vieram avisar de que a coluna de São

Cristóvão já vinha em marcha sobre a cidade. Levantando-se

surpreso e visivelmente agita, ele fardou-se em grande pressa e,

acompanhado pelos três, partiu numa caleça ao encontro da tropa

sublevada, levando num saco, ao lado do cocheiro, os seus arreios de

montar. Depois de uma volta inútil até o quartel do 1º de Cavalaria,

ele veio dar com a coluna já na Rua Senador Eusébio, em frente à

companhia do gás. Daí, sempre de carro, a veio acompanhando até a

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esquina da Rua Visconde de Itaúna, onde desceu. Foram então

trocados os arreios do cavalo do Alferes Eduardo Barbosa, do 1º

Regimento. O marechal, que até ali parecia ofegante e mais ou

menos abatido, como que recobrou todo o seu ânimo. Montou a

cavalo e, muito ereto e firme sobre a sela, mandou a tropa tomar

posições para combate, em frente ao quartel-general.

Foi assim, inopinadamente e mais ou menos compelidos, que

os dois chefes principais do movimento foram trazidos ao Campo de

Santana. Mas não foi apenas a eles dois que se reservaram as

surpresas daquele dia. Com a súbita corrida de oficiais aos quartéis

de São Cristóvão, determinada pela discreta manobra do major Sólon

Ribeiro, a polícia também quis saber do que se passava por ali. As

três horas da madrugada, as tropas com as quais o governo supunha

contar para sua defesa também eram alertadas, partindo a ocupar as

posições que lhes haviam sido previamente indicadas pelo ajudante-

general do Exército. Entre as destinadas ao quartel-general estava

uma brigada de Marinha, que ficou estendido à direita do edifício,

cobrindo a pequena praça fronteira à estação e tendo à retaguarda um

batalhão de polícia, disposto em colunas de companhia. Foi dado o

comando desse grupo ao Brigadeiro Almeida Barreto. Quando a

força vinda de São Cristóvão entrou a estender-se, o Capitão-de-

Fragata Frederico Lorena, vendo aproximar-se o Contra-Almirante

Eduardo Wandenkolk, perguntou-se com certa ansiedade: Chefe, de

que lado está o inimigo?...(43)

Foi aquele o momento exato no qual de tudo decidiu o

espírito de classe. O Marechal Deodoro mandou ordem ao Brigadeiro

Almeida para trocar de campo. Houve um rápido e aflitivo instante

de incerteza. A ordem, duas vezes, teve de ser energicamente

repetida. Mas o brigadeiro moveu-se. Ouviram-se vozes de comando.

Fuzileiros navais e marinheiros, seguidos docilmente pelas

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companhias de polícia, vieram alinhar-se como convinha, à esquerda

da gente de São Cristóvão. O inimigo estava do outro lado, ou,

melhor, estava no cerco. Era apenas o Conselho de Ministros...

* * *

O que se dera afinal fôra que os militares, arrastados na

crescente irritação do seu conflito com os sucessivos gabinetes, não

chegaram a perceber que, a partir do aparecimento dO País, não

eram mais donos dos seus movimentos nem senhores das suas

decisões. Uma idéia viera associar-se à simples paixão de classe que

os dominava, aó resumindo-se toda a psicologia do golpe de 15 de

Novembro. não caberia certamente a Quintino Bocaiúva a pública e

franca revelação deste segredo, no qual se incluíam e comportavam

todas aquelas circunstâncias por ele referidas como secretas. O

elogio aí implícito não deixaria de ser grande demais em boca

própria. Entretanto, seria justo afirmar não ter havido um único

oficial para sentir ou compreender onde o direitor dO País os

conduzia? Certamente não. Entre os signatários daquele áspero e

severo Termo de Compromisso e Adesão, promovido por Aristides

Lôbo em 1877 como reação ao amortecimento da propaganda

republicana conseqüente ao grande interesse pela campanha

abolicionista, há vários oficiais. Lá estão, com mais uns quatro ou

cinco de menor notoriedade, Moreira César, Siqueira de Meneses,

Dantas Barreto e Vespasiano de Albuquerque. Nenhum deles,

entretanto, se faz notar em toda aquela, ao mesmo tempo, tão ativa e

tão discreta conspiração. Como velhos brasileiros, dentro da nossa

tradicional compreensão da vida pública, outro era também o modo

pelo qual esperavam a nossa ascensão à forma republicana. Se

chegaram a ver realmente as cousas, tal como elas se dispunham e

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preparavam, certamente contentaram-se em dar de ombros, já que

nem as autoridades da Monarquia nem os seus companheiros de

uniforme as sabiam ver e interpretar com exatidão.

Benjamim Constant, do seu lado, fosse qual fosse a firmeza

dos seus princípios filosóficos, não escapava aos mesmos e

confessados escrúpulos de consciência que prendiam o Marechal

Deodoro e o Visconde de Pelotas à pessoa do imperador, fazendo da

duração da vida do monarca um obrigatório motivo de protelação da

Monarquia. O próprio Major Sólon, ainda nos fins de 1888, não era

republicano. Solicitado como todos os seus camaradas pela sua

questão de classe, teve muito a queixar-se naquele ano contra o

gabinete João Alfredo, por haver sido enviado a contragosto, como já

dissemos, a servir no Paraná. Na viagem, entre os portos do Rio de

Janeiro e Paranaguá, mostrava-se desgostoso e apreensivo. Mas,

amistosa e paternalmente interpelado sobre os motivos das suas

preocupações por um dos seus companheiros de bordo, o Rev.

Carvalhosa, da Igreja Presbiteriana de São Paulo, apenas queixou-se

dos políticos civis, constituídos a seu ver em barreira prejudicial

entre o Exército e o imperador. Foi só na sua volta à corte e a menos

de dois meses do levante do Campo de Santana que o seu interesse

pela República se manifestou, como conseqüência daquele primeiro

encontro com Quintino Bocaiúva. O ardoroso e tenaz propagandista

facilmente lhe fez compreender que, naquela altura, não havia mais

como reconciliar o Exército com o princípio de autoridade

expressado na Monarquia. O Exército tinha que arrebatar para si

mesmo a representação total daquele princípio, proclamando a

República em nome do povo, ou aceitar as inevitáveis conseqüências

daquele seu incoerente e indefinido estado de sedição. Colocadas as

cousas nesse plano terrivelmente prático. O Major Sólon não teve

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dúvidas em jogar tudo por tudo, constituindo-se em realizador in

extremis das velhas e sagazes previsões de Quintino Bocaiúva(44).

Compreende-se portanto que o ardoroso propagandista tenha

vindo dizer depois que nenhum exerceu mais decisiva influência na

proclamação da República do que ele. O que não oferece dúvida

entretanto é que foi por um verdadeiro plano inclinado, no qual não

podiam mais recuar nem conseguiam mais se deter, que os militares

chegaram ao 15 de Novembro.

Para encarar despreocupadamente e com fácil entusiasmo a

transfiguração final da Questão Militar em revolução republicana,

houve apenas um pequeno grupo de jovens oficiais e alunos

militares, entre os quais é justo destacar o Capitão Mena Barreto, os

Tenentes Sebastião Bandeira e Saturnino Cardoso e o Alferes

Joaquim Inácio que se fizeram, a partir do dia 11 de novembro, os

exaltados e espontâneos ajudantes do Major Sólon. Na noite de 14

para 15, os três últimos, havendo recebido do major a falsa notícia da

prisão de Benjamim Constant e Deodoro, acrescida ainda de um

iminente ataque da polícia e da Guarda Negra aos regimentos de São

Cristóvão, foram de tal boato os propagadores mais ativos e eficazes,

não só correndo os quartéis em grande agitação, como indo mesmo

de porta em porta a levantar os oficiais já recolhidos às suas

residências. Fora daquele grupo certamente reduzido, só houve para

aceitar a República, deliberadamente e sponte sua, um único homem

– o Marechal, Floriano Peixoto. Mas este aí chegou por um caminho

não somente oposto ao de todos os outros da sua classe, como

totalmente estranho aos sentimentos ou à própria alma do Brasil

daquele tempo.

Tipo de soldado clássico, ou, melhor, tipo clássico do homem

de tropa, aferrado por instinto às normas e obrigações da disciplina, o

Marechal Floriano Peixoto jamais consentiu em se comprometer na

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Questão Militar, terminantemente recusando participar dos seus

conciliábulos. Foi exatamente a grande condescendência do

cancelamento ex-officio das sanções disciplinares o que, aos seus

olhos, desacreditou por uma vez o governo da Monarquia. Aqui está

como, em carta dirigida das Alagoas ao Coronel João Soares Neiva

em 10 de julho de 1888, ele julgava aquela extrema concessão do

poder público aos soldados sediciosos: Fato unido que prova

exuberantemente a podridão que vai por este pobre país e portanto a

necessidade da “ditadura militar” para expurgá-la. Como liberal

que sou, não posso querer para meu país o governo da espada; mas

não há quem desconheça e aí estão os exemplos de que é ele o que

sabe purificar o sangue do corpo social, que como o nosso está

corrompido...(45) Dizendo como liberal que sou, Floriano Peixoto

referia-se à circunstância de pertencer ao Partido Liberal, ao qual

servira como presidente da província de Mato Grosso de maio de

1883 a outubro de 1884. Desiludido com o lamentável expediente

dos seus correligionários do Senado, em lamentável associação com

o governo conservador, ele rompia não só com o seu partido, mas

com a própria Monarquia. Entretanto, prevendo a substituição do

governo legal pela incapacidade revelada de manter a disciplina, ele

evidentemente esperava combater o mal levando-o simplesmente ao

paroxismo... Foi exatamente pelo seu notório apego às regras

disciplinares que o Visconde de Ouro Preto, logo após a constituição

do gabinete de 11 de junho, o chamou ao posto de ajudante-general

do Exército, promovendo-o ainda de general-de-divisão a marechal-

de-campo. Mas o chefe liberal não podia saber as estranhas reações

que o desrespeito àquelas regras, no qual ele tanto se comprometera,

havia produzido no espírito do seu taciturno e severo correligionário,

por aí se explicando bem todas as surpresas que veio a ter na manha

de 15 de Novembro...

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A página 118 das suas Pesquisas e Depoimentos põe Tobias

Monteiro a seguinte informação: “Não há muito tempo, em artigo

publicado na imprensa, referiu o General Cunha Matos que,

voltando de assistir ao desfecho do Aquidabã em que Lopes morreu

recusando render-se, dizia Floriano Peixoto, então major da coluna

expedicionária: De um homem daqueles é que nos carecemos no

Brasil”. As preferências do ajudante-general do gabinete de 7 de

junho pela ditadura militar, como terapêutica no tratamento das

demopatologias, eram portanto muito anteriores às suas decepções na

Questão Militar, desde que a receita lhe vinha assim da guerra do

Paraguai. Segundo aquela informação, ele estaria também em

condições de ver os negócios do Brasil pelo prisma especial hispano-

americano, com a agravante de escolher uma das suas faces mais

grosseiras e mais sombrias... Em todo caso, não se poderá dizer que

ele haja tido qualquer influência na Questão Militar, que tão

profundamente repudiava, nem há prova alguma de se ter jamais

posto em contato com Quintino Bocaiúva. A sua ação em tudo aquilo

foi portanto indireta e sempre solitária. Pode mesmo dizer-se que foi

apenas negativa, pois restringiu-se a imobilizar no quartel-general as

tropas com as quais contava o governo para se defender. A chamada

para ali dos corpos de polícia e de bombeiros, para colocá-los sob a

imediata vigilância dos batalhões do Exército e a uma distância que

não permitisse a mínima veleidade de reação, foi dessa manobra

secreta e toda pessoal a parte mais astuta. Dos dados reunidos por

Tobias Monteiro se depreende que, depois de haver assumido o posto

de ajudante-general do Exército, várias vezes foi instado pelo

Marechal Deodoro a tomar posição na pura questão de classe,

comprometendo-se num possível levante destinado apenas a

satisfazê-la. De cada vez a sua recusa foi imediata e peremptória.

Não; não contassem com ele para um simples ato de indisciplina,

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sem a mínima significação política. Se fosse para fazer a República,

então sim!

Por aí se vê a enorme diferença de mentalidade que os

separava. Deodoro, em que pesasse o seu acidental e estranho modo

de compreender as relações do Exército com o poder civil, ainda de

certa forma se mantinha fiel às tradições políticas do seu país. Ele,

não. Admitindo, a título de corretivo, a completa invasão da política

pela tropa, delas já se havia totalmente libertado.

Superficial e bem ligeiro em seus juízos seria entretanto

aquele que, sumariamente ou sem maior exame, a um ou outro

daqueles dois homens condenasse em absoluto. Para tanto seria

indispensável negar-lhes preliminarmente a natureza humana ou a

qualidade de serem homens. Nas indecisões do Marechal Deodoro

nunca deixou de haver uma certa nobreza ou uma certa elevação. Era

entre o respeito ao próprio espírito político da sua terra e o afeto

pelos seus companheiros de sofrimentos e de glórias no Paraguai que

continuamente ele oscilava. Na sua posição, que poderia ele temer

pessoalmente da possível animosidade de políticos civis? Tudo

fariam eles para tê-lo do seu lado. Tudo lhe foi oferecido. O Barão de

Cotegipe, seu correligionário no Partido Conservador, quis fazê-lo

Visconde de mato Grosso, e bastaria uma palavra sua para que um

lugar se lhe abrisse no governo. Tudo ele recusou, tudo deixou de ver

porque apenas o dominavam os seus sentimentos afetivos, nos quais,

confusamente, mas com grande intensidade, chegava a compreender

o próprio imperador. A vida do velho soldado em todo aquele

período foi uma tremenda luta interior, na qual às reações do seu

cérebro continuamente se opunham as suas fraquezas, senão as suas

melhores qualidades de coração. Quem negará que seja em lutas

desta natureza que se gerem e concretizem em geral as grandes ações

humanas? Tudo está na escolha da última decisão, mas, para que esta

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seja a mais feliz e mais correta, é indispensável ainda que o permitam

as circunstâncias, entre as quais se incluem as nossas próprias

disposições psicológicas no momento decisivo... A história dos

povos está naturalmente cheia de casos como aquele. O herói,

sobretudo no último instante ou na hora final, não tem mais o

controle dos seus passos. É apenas um acessório do fato heróico, que

o será principalmente segundo se projete na mente dos vindouros... O

Marechal Floriano Peixoto, do seu lado, também não poderia fugir

aos seus imperativos ontológicos, em face do seu tempo. Soldado – e

sobretudo ou unicamente soldado – o respeito à disciplina militar

parecia-lhe a pedra de toque das instituições políticas e o espelho da

boa ordem em todo o conjunto da vida social. Que valor podiam ter

para ele governos que consentiam em sofismar os regulamentos

militares para fugir aos incômodos ou às ameaças de uma sedição

tumultuária e inconsciente? Como poderia ele servir esses governos e

que espécie de fidelidade poderiam eles reclamar de um soldado e

um patriota como ele se estimava?... A única cousa a tentar era a

regeneração do Brasil, a purificação do sangue do corpo social, por

uma autoridade inflexível e mesmo inexorável, que, como expressão

de força irresistível, só podia ser de caráter militar. A revolução

republicana, fazendo ruir a velha e apodrecida construção da

Monarquia, era o caminho natural e imediato para aquela autoridade

– que só ela restabeleceria a disciplina, na exata compreensão dos

deveres de todos e de cada um! Assim pensava ele...

Tendo em conta as profundas diferenças de caráter que

mutuamente distinguiam aqueles dois homens, entretanto tão

semelhantes pelos recursos de educação e os dotes de cultura,

imediatamente compreende-se as suas respectivas posições naquele

instante, como conseqüências obrigatórias e inevitáveis das várias

circunstâncias. Não resta porém a menor dúvida de que seja em

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momentos como aquele que mais preciosos se tornem para os

indivíduos – para eles como para o meio sobre o qual sejam

chamados a reagir – essas grandes qualidades de claro entendimento

e visão justa que só uma boa dose de cultura geral, aliada a uma certa

experiência da vida pública, sabe em política fornecer. Nem um nem

outro explicava ou compreendia com clareza as cousas do seu tempo.

Nem Deodoro, constituído em grande protetor da Questão Militar,

nem Floriano tendo-a por insensata e monstruosa, chegada a perceber

que tudo aquilo não passava de um reflexo, de um puro reflexo, cuja

origem, sendo a árdua e longa agitação abolicionista, já estava de

todo encerrada em 1888. Perante a Câmara a abrir-se a 20 de

novembro de 1889, a confusão dos partidos e das idéias em geral, na

qual nasceram tanto os ímpetos panfletários dos militares como as

condescendências disciplinares do governo, seria um fato do

passado. A atenção pública estaria voltada para outras preocupações

e outros assuntos, com uma nova definição de posições que

automaticamente restabelecesse na política geral a mútua e bem

determinada oposição de idéias e princípios, sem a qual não há

partidos nem possível equilíbrio nos países de organização

parlamentar. A posição do Exército desse novo ambiente rarefeito e

saneado pela precipitação ou pela grande descarga da Abolição, não

seria naturalmente muito diferente da que tivera na Independência,

no dia 7 de Abril e na Maioridade, como em última análise também a

teve na Abolição. Na passagem final da Monarquia para a República,

os soldados não teriam certamente de substituir a opinião pública do

seu país ou a ela violentamente se suporporem, salvando-se portanto

os nossos costumes políticos e os nossos métodos tradicionais de

evolução.

* * *

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Perante as considerações aqui trazidas até agora que

necessariamente decorrem da nossa norma peculiar de evolução, da

própria natureza ou da própria índole da nossa formação histórica no

continente, é que se compreende bem o imenso trabalho

empreendido e executado pro Quintino Bocaiúva. Circunscrito a

exagerar os incidentes, até levá-los a exceder e dominar

completamente os fatos essenciais, esse trabalho constitui certamente

o mais escandaloso e formidável artifício jamais montado na história

de qualquer povo. O diretor de O País não podia realmente

compreender e muito menos se associar a uma proclamação da

República por ato regular do Parlamento, como expressão de um

voto previamente pedido ao eleitorado ou à nação, tal como o

sonhavam os estadistas do Império, fossem eles conservadores, como

Cotegipe ou Francisco Belisário, ou fossem liberais, como Ouro

Preto ou José Antônio Saraiva. A República, vazada nestes moldes,

seria um lógico e puro desdobramento da Monarquia, a manter e

consolidar o Brasil no seu velho caráter de democracia parlamentar,

em necessária contradição com a democracia autoritária ou

simplesmente caudilhesca dos seus vizinhos castelhanos. Ora, o

programa de Quintino Bocaiúva visava exatamente a contração do

Brasil ao nível comum do continente. Mais de espécie internacional

que de caráter interno, ele procurava sobretudo resolver a latente e

inevitável oposição em que até então vivêramos com aqueles povos,

excetuada apenas a República do Chile, que, como nós, era também

um país de organização parlamentar.

Não há política internacional que não seja uma projeção

exterior de uma dada situação interna. Só a liberdade, a manter a

confiança no interior e o respeito no exterior, garante e assegura a

paz naqueles dois planos da vida pública dos povos. Esse princípio

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imutável, vindo da velha Atenas com Sócrates e a Dialética, tem

mais de dois mil e trezentos anos de irrecusável e constante

experiência. Colocai em vizinhança ou em contato de qualquer sorte

dois povos de níveis políticos diferentes, e, no nível mais baixo, os

motivos de conflito logo se acusarão. É sobretudo no domínio do

direito internacional privado que esses motivos imediatamente se

concretizam, pela fatal incapacidade dos governos antiliberais de

reconhecer em súditos estrangeiros, direitos que só muito

precariamente admitem nos seus nacionais. As nossas lutas no Prata

e no Paraguai, durante o Segundo Reinado, tiveram suas origens

invariáveis no sistemático desprezo à vida e aos bens dos nossos

estancieiros além das fronteiras do Uruguai, assim como a guerra do

Pacífico, de 1879, surgiu dos ataques do ditador Hilarión Daza, da

Bolívia aos direitos dos salitreiros chilenos de Antofagasta. Dada a

final e inevitável superioridade militar dos governos livres sobre os

chamados governos fortes, apesar da maior e aparentemente mais

eficaz preocupação desses com os armamentos e as atitudes

militares, os dois povos parlamentaristas da América haviam

conseguido sair-se excelentemente de todas as suas querelas com os

seus turbulentos vizinhos autoritários, daí nascendo, com uma natural

e clara simpatia entre o Chile e o Brasil, uma não menos lógica e

evidente desconfiança dos outros para com eles.

Para penetrar fundo na psicologia política de Quintino

Bocaiúva, sentimentalmente fundada no seu grande pendor pelos

homens e pelas cousas do rio da Prata, é preciso recorrer a todos

estes dados, interpretando-a no quadro político geral da América

Latina. Ele foi certamente um grande sul-americano, com um

profundo senso de fraternidade continental, dentro do espírito

republicano peculiar a esta parte do Novo Mundo. Mas esse espírito

republicano necessariamente era o mesmo daqueles extremados e

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rudes patriotas, que, de 1810 a 1826, furiosamente lutaram pela

República desde os alcantis do México aos llanos da Venezuela e aos

pampas argentinos, como simples meio de transferirem-se a si

mesmos o primitivo poder absoluto conferido pelos reis de Espanha

aos seus governadores e vice-reis. Era um espírito político simples e

inteiriço, totalmente isento de gradações ou de nuanças, no qual

passava-se imediatamente da noite para o dia sem crepúsculos e sem

auroras, mas onde, em verdade, mudança havia apenas nas origens da

tirania, tornada mais grosseira e mais próxima com os novos

emblemas e os novos ocupantes do poder.

Na mais íntima e perfeita identidade com aquele espírito, o

nosso grande propagandista da República nunca se preocupou com

fórmulas constitucionais ou instrumentos legais da liberdade na

possível construção jurídica do seu novo Estado. As relações muito

sábias e detalhadas de direitos e franquias, talo com tanto as

estimavam os radicais até 1879, sempre o deixaram frio e de todo

indiferente. Tendo-se uma primeira vez candidatado a senador pelo

Município Neutro, em 1880, quiseram os positivistas, por

solidariedade de princípios, trazer-lhe o apoio dos seus votos. Dadas

porém as vagas expressões do Manifesto de 70 e as contínuas

flutuações doutrinárias da propaganda, Miguel Lemos entendeu que

já era tempo de, na matéria, assentar qualquer cousa de mais sério e

mais concreto. Em uma assembléia geral republicana realizada para

fins eleitorais, a 15 de agosto,na Travessa da Barreira, o chefe

positivista veio submeter ao candidato este claro e expressivo

mínimo de programa: 1º) Afirmar o alvo da transformação

republicana; 2º) Condensar as reformas necessárias e oportunas em

um certo número de medidas políticas, como o registro civil de

nascimentos, casamentos e óbitos e a secularização dos cemitérios,

como preparação para a completa separação do poder espiritual do

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temporal; 3º) Indicar medidas complementares da obra iniciada pela

lei Paranhos ou do Ventre Livre. Quintino Bocaiúva protelou,

divagou, contornou e de modo algum se comprometeu. Na Primeira

Circular Anual do Apostolado Positivista no Brasil (1881), Miguel

Lemos dá conta do incidente, sem grande amenidade pelas idéias e

mesmo pela própria pessoa do candidato...

Não menos expressivo foi outro incidente verificado com

Silva Jardim nos primeiros dias de janeiro de 1889. No último 30 de

dezembro, o ardoroso tribuno santista havia-se visto às voltas com a

Guarda Negra e os secretas da polícia numa conferência que proferiu

na Sociedade Francesa de Ginástica. Houve grande tumulto, com

vários tiros de revólver e certo número de feridos e contusos, sem

que entretanto o bravo orador descesse da tribuna. Cercado por um

grupo de estudantes que espontaneamente tomou a sua defesa, ele,

apesar de tudo, levou até ao fim o seu discurso. Disposto a dar larga

divulgação àquele escândalo, Jardim preparou então um inflamado e

longo manifesto, cheio de duras e implacáveis invectivas contra o

trono e contra José do patrocínio, levando-o a Quintino Bocaiúva

para ter publicidade. O diretor dO País não deixou de inserir a

terrível objurgatória nas colunas do seu jornal. Mas, a sorrir calmo e

condescendente, achou de melhor instruir o seu jovem

correligionário sobre o verdadeiro caminho que as cousas iam

tomando. Não gastasse tanto a sua brilhante dialética nem tanto se

arriscasse, pois a República, por meios muito mais simples e

eficazes, bem depressa chegaria... Ao conhecer por esta forma o

plano de Quintino Bocaiúva, baseado apenas no progressivo

incitamento dos soldados à revolta, Silva Jardim tomou-se de uma

irrefreável indignação condenando-o com grande veemência de

expressões. Para um homem intimamente filiado, como ele era, à

escola política de Martim Francisco e José Bonifácio, aqueles

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projetos pareciam simplesmente detestáveis. O rompimento daí

resultante entre os dois foi tão profundo e definitivo que, no seguinte

13 de novembro, lembrando Glicério a conveniência de chamar Silva

Jardim para as conferências daquela noite, Bocaiúva

peremptoriamente recusou. Tinha-o por um ideólogo aéreo e um

tanto incômodo que só poderia perturbar(46). O ardente companheiro

dos abolicionistas fundadores do quilombo do Jabaquara, o intrépido

e sincero pregador da Abolição e da República só veio a saber, a 15

de Novembro, do que se passara no Campo de Santana, ao receber os

bons dias do primeiro conhecido que encontrou ao sair ao meio-dia, à

porta da sua casa.

Dado o fato da proclamação da República, tal como

realmente se deu e aqui o temos apresentado, era inevitável que o

verdadeiro papel de Quintino Bocaiúva em tudo aquilo não deixasse

de vir mais ou menos velado ou contrafeito nas crônicas do tempo,

ou nas tantas histórias, como ele mesmo o diz na sua carta à Sra,

Sólon Ribeiro. Por várias vezes tentaram amigos seus marcar-lhe

melhor a posição no acontecimento memorável. Mas de cada vez

levantaram-se verdadeiras torrentes de protestos, tendentes a manter

inalterada aquela grande visão de apoteose, fixada pelo pintor

Henrique Bernardelli, no seu grande e conhecido quadro de

remomoração oficial. O período presidencial de 1910 a 1914,

preenchido pelo Marechal Hermes da Fonseca, sobrinho de Deodoro,

foi especialmente propício a tais pesquisas e controvérsias. Foi então

que apareceram os trabalhos de Ernesto Sena. Na mesma época, o

Dr. Ferreira Viana Filho, assinando-se Suetônio, procurava, em

artigos publicados nO País, pôr em maior destaque a posição de

Quintino Bocaiúva. Saiu-lhe em oposição o antigo Tenente Sebastião

Bandeira, já então general reformado, a reclamar para o Marechal

Deodoro não somente a ação decisiva como mesmo a principal

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inteligência de todo o acontecido. Relegando a um plano de todo

insignificante a parte atribuível ao Marechal Floriano Peixoto na

preparação e nos resultados do levante, ele também só admitia a

Bocaiúva uma intervenção mais ou menos indireta senão mesmo

platônica ou de pura forma.

Mas, se se trata de saber quais eram as reais disposições do

Marechal Deodoro para com a eventualidade da mudança do regime,

o próprio General Sebastião Bandeira, nas suas contestações a

Suetônio, naturalmente sem querer, muito bem nos esclarece: O

General (Deodoro) preferia realizar a revolução unicamente com o

elemento militar de que dispunha, e que na sua opinião, naquela

época, era tudo. Graças porém à sua natural docilidade (sic),

conseguimos convencê-lo da vantagem da intervenção dos chefes

republicanos prestigiosos, para dar feição mais ampla ao movimento

com o concurso pelo menos aparente do elemento civil, a fim de não

parecer que se tratava simplesmente de uma revolta de quartéis(47).

Esta indicação, combinada com as resistências do general a

quaisquer manifestações proclamativas da República no Campo de

Santana, com o viva ao imperador e com as declarações feitas ao

Visconde de Ouro Preto no ato de sua deposição, tornam-se

imensamente preciosas...

Durante os festejos oficiais pela proclamação da República,

nos primeiros dias de dezembro de 1889, isto é, menos de um mês

após o desenlace de 15 de Novembro, Emiliano Perneta, escritor e

jornalista de segura visão das cousas do seu tempo, discursando

numa sessão cívica o Teatro S. Teodoro, de Curitiba, onde por sinal

falou também o brigadeiro e então jovem poeta paranaense Leôncio

Correia, teve estas características palavras: Se não fosse uma cabeça

como a de Quintino Bocaiúva... Sim, em todo o Brasil não se

encontraria outra em condições de conceber e conduzir até o fim uma

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revolução naqueles moldes. Já se tornou célebre a crônica de

Aristides Lôbo para o Diário Popular sobre o 15 de Novembro.

Escrevendo ainda sob a forte emoção do que acabara de assistir,

assim falou ele da ação ou do papel dos militares naquele dia: - O

fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi

quase nula... O primeiro Ministro do Interior do Governo Provisório,

na sua evidente desconfiança para com as intervenções dos militares

na política e com elas certamente perturbado, não foi exato e

sobretudo não foi justo. Se alguém havia a quem se pudesse atribuir

qualquer exclusividade de autoria em tudo aquilo, esse alguém era

certamente Quintino Bocaiúva. Ele foi não somente o cérebro, a

alma, o indiscutível autor do grande acontecimento, como, num

verdadeiro golpe de teatro, chegou mesmo a constituir-se, no último

instante, em seu símbolo perfeito...

No Cap. III, pág. 65 do nosso livro Os Republicanos

Paulistas e a Abolição, tratando do aparecimento do grande

propagandista no mundo político do Rio de Janeiro, na sua volta da

República Argentina ao fim da guerra do Paraguai, assim traçamos o

seu perfil: “Até nos modos de vestir e nas mais simples atitudes a sua

preocupação com o rio da Prata se revelava. No meio severo e

formalístico da corte daquele tempo, onde o chapéu de pelo luzidio e

a gravata preta de laço eram de rigor, ele apareceu toucado de um

chapéu mole de grandes abas, com um amplo e frouxo laço à

Lavalière a flutuar-lhe no colarinho baixo e rebatido. Muito esguio e

ereto de busto, todo abotoado numa elegante sobrecasaca preta, com

as mãos finas enluvadas em pelica negra e a barba toda, ligeiramente

talhada em ponta, ele expunha um perfil sem dúvida curioso e

original para o nosso velho mundo carioca e cortesão dos barões e

conselheiros. Aquele era, ao que parece, o tipo clássico do homem

público nas nações do Sul, misto oscilatório de demagogo erudito e

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intrépido caudilho, segundo as atividades cívicas se desenvolvessem

nos torneios oratórios da paz ou nos recontros eqüestres da guerra

civil...” Com uma pequena variante no colarinho, que se tornou um

pouco mais alto, e na gravata, substituída por um plastron negro

fixado por um artístico alfinete, a sua toilette conservou-se sempre a

mesma.

Na manhã de 15 de Novembro, foi assim vestido que ele veio

ao Campo de Santana. Mas, desta vez, era bem a segunda alternativa

do seu misto oscilatório que se apresentava: ele vinha a cavalo!...

Quintino Bocaiúva, nas suas idéias, no seu trajar característico, nos

seus processos e nas suas atitudes, em toda a sua pessoa, era um

programa. Naquele instante, a avançar assim, ereto e altaneiro, ao

passo da montaria, na emocionante perspectiva de um mavórtico

desenlace pelas armas, o programa heroicamente se completava...

Partindo talvez do seu centro político da Rua do Carmo, para onde o

desconhecimento oficial das articulações de última hora da agitação

militar com a propaganda republicana não dispusera nem previra a

mínima vigilância, ele veio tranqüila e lentamente a subir a Rua da

Alfândega. Ao aproximar-se do campo, desceu a trote um piquete de

clavineiros que o envolveu. Mas o comandante, reconhecendo-o,

pôs-se à sua disposição, rendendo-lhe a continência da ordenança.

Esse comandante era o cadete Raimundo de Abreu Filho que, na

aliciação dos inferiores dos três regimentos de São Cristóvão, fôra o

principal agente do Major Sólon Ribeiro. O diretor dO País, sem

qualquer sinal de emoção ou de estranheza, perguntou-se onde estava

o Marechal Deodoro da Fonseca. Dando-lhe passagem a

acompanhando-o a passo até a esquina, o cadete mostrou-lhe no

centro do campo o grupo formado pelo marechal e o seu piquete.

Bocaiúva continuou sozinho no seu cavalo, a olhar interessado as

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linhas de soldados com a naturalidade e a segurança de um velho

chefe militar com longo hábito daquelas cousas.

Daí a pouco o drama já descrito estava consumado. O

Marechal Deodoro, saindo do quartel-general seguido pelas tropas

que lá estavam, manda ao clarim do seu piquete tocar ajudantes para

as ordens da nova formatura e do desfile. É nesse instante que o

Major Sólon Ribeiro, instigado por Quintino Bocaiúva, deixa a trote

o centro da linha do 9º Regimento de Cavalaria, em cujo comando

estava, e vem trazer ao marechal aquela informação de não

embainhar a sua espada enquanto não estivesse a República

proclamada... Deodoro, ouvindo-o num ligeiro sobressalto, olha-o

por um instante e responde-lhe lentamente algumas palavras.

Rodando o seu cavalo pela direita, o major volta ao seu posto, mas,

detendo-se junto a Quintino Bocaiúva, dá-lhe com um ligeiro sorriso

de inteligência este aviso certamente inesperado: O marechal deseja

tê-lo no seu estado-maior durante o desfile!... Quintino Bocaiúva não

vacila. Dá de rédeas e vai calmamente postar-se um pouco por trás

do marechal, à esquerda do Tenente-Coronel Benjamim Constant...

Nenhum dos nossos políticos civis daquele tempo ousaria

fazer aquilo. Nenhum resistiria ao intraduzível exotismo de desfilar a

cavalo, à paisana, de sobrecasaca e chapéu mole, à testa de uma

coluna de tropas regulares, pelas ruas de uma grande cidade como o

Rio de Janeiro. Qualquer outro a quem a inédita exibição fosse

oferecida, se teria escusado com verdadeiro espanto e certamente

confuso e embaraçado. Ele, não. Cofiada a barba nazarena,

levemente rebatida a aba direita do chapéu e bem seguras as rédeas

nas duas mãos calçadas de luvas pretas, lá foi como num sonho, ao

clangor estridente e triunfal das bandas militares. Entretanto, ele nada

tinha de ridículo nem canhestro. Era apenas estranho... Resumindo-se

naquela hora todas as suas lutas, todas as suas esperanças, toda a sua

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vida, era dele mesmo, a avançar assim com o olhar perdido no

horizonte, que nascia e irradiava o próprio ambiente daquele dia. Era

o dia santo do Caudilhismo! Com Quintino Bocaiúva lá iam a pairar

sobre aquele mar de baionetas sublevadas, em desconcertante e

espantosa procissão evocativa, as sombras de todos os heróis

clássicos da história hispano-americana, desde Bolívar e Miranda,

desde O‟Higgins e San Martin, desde Rosas e Garcia Moreno, até

Oribe e Melgarejo, senão mesmo ate Solano Lopes...

Não importa... No seu triunfo tão sugestivo e tão completo,

não deixava de passar um friso de tragédia. Porque, segundo Teodoro

Mommsen nas suas severas meditações sobre a passagem do

Rúbicon e a batalha de Farsália, o povo que muda de instituições pela

força das armas, só muito dificilmente ou nunca mais endireita(48).

NOTAS

(35) Em 1913 esses trabalhos foram reunidos em volume, abun dantemente

ilustrado com gravuras, sob o título Deodoro, composto e impresso nas

oficinas da Imprensa Nacional.

(36) O próprio Sebastião Bandeira, em carta dirigida a Ernesto Sena,

assim o conta: - Depois de infrutíferas diligências em procura de

Bocaiúva n’“O País” e no “Hotel Paris”, à rua da Uruguaiana,

encontrando Trovão em frente ao “Diário de Notícias”, pedi -lhe me

informasse onde acharia os aludidos chefes (Bocaiúva e Aristides)...

Trovão, depois de indicar-me os lugares em que eu já havia procurado

Bocaiúva, guiou-me ao “Café Londres”, onde estava Aristides Lôbo... A

carta onde se encontra este trecho vem à pág. 99 do livro Deodoro.

(37) Intercalado no texto do livro de Ernesto Sena, págs. 78 e 79,

encontra-se, assinado por S. Fabrizzi, um mapa do local, com a exata

posição das forças na manhã de 15 de Novembro.

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(38) Vide Max Fleiuss, História Administrativa do Brasil , 2ª ed., pág.

434.

(39) Informação pessoal de Quintino Bocaiúva, em carta dirigida à viúva

do General Sólon Ribeiro a 31 de julho de 1902.

(40) O primeiro a revelar publicamente esse detalhe característico foi o

Capitão José Bevilacqua, em discurso feito no Rio de Janeiro a 10 de

julho de 1890. Tendo-se levantado a respeito uma acesa discussão, veio à

imprensa, em defesa do capitão, o chefe do Apostolado Positivista, R.

Teixeira Mendes, que disse haver também presenciado aquela

manifestação do marechal, no que foi confirmado pelo Capitão Ximeno de

Villeroy, pelo Tenente Pantoja Rodrigues e pelos civis Benjamim

Constant Filho e Agilberto Xavier, todos figurantes ou testemunhas do

drama de 15 de Novembro. Agilberto Xavier, falando em nome do Clube

Benjamim Constant, de cuja diretoria fazia parte, fez pela edição d O País

de 21 de setembro daquele ano uma declaração na qual se lê: “Quanto ao

fato de ter o Marechal Deodoro dado vivas a D. Pedro II, a 15 de

Novembro, é fato ainda bem recente na memória de muitos companheiros

dessa memorável jornada. Dentre muitos nomes que poderíamos

apresentar, se nos quiséssemos dar ao ingrato trabalho de indagar,

podemos indicar de momento os dos Srs. Serejo, Saturnino Cardoso, Ivo

do Prado e Tasso Fragoso (todos oficiais do Exército). Seria inútil dizer

igualmente que diversos, entre os quais o Sr. Capitão Villeroy, ouviram o

Marechal Deodoro proibir aos alunos da Escola Militar darem vivas à

República.”

(41) É a mesma a que nos referimos em nota à pág. 77. Ela vem na íntegra

às págs. 90 e 91 do livro de Ernesto Sena. Por iniciativa do Dr. Nestor

Ascoli, antigo secretário de Quintino Bocaiúva, ela foi publicada no

jornal carioca O Imparcial, de 11 de julho de 1913, tendo sido inserta nos

Anais da Câmara dos Deputados do mesmo dia, a requerimento do

deputado Maurício Lacerda. Na comemoração do primeiro centenário do

nascimento do grande diretor dO País, em 1936, Rodrigo Otávio a leu na

sua conferência sobre as efemérides, no Instituto Histórico e Geográfico

do Rio de Janeiro, conferência esta que, como já notamos, se encontra

reproduzida no Vol. 171, págs. 422 a 433 da Revista do Instituto.

(42) Palavras textuais. Vide E. Sena, Deodoro, pág. 113.

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(43) Esta informação nós a tivemos pessoalmente, em Manaus, no ano de

1909, do Capitão-de-Mar-e-Guerra Nóbrega de Vasconcelos, que, tendo

feito parte da oficialidade daquela brigada, era então comandante da

flotilha do Amazonas.

(44) Aqui retifica-se um pouco o papel do Tenente-Coronel Benjamim

Constant no desenlace de 15 de Novembro, tal como o apresentamos no

Cap. IV. pág. 200, da Política Geral do Brasil. O papel dele, na

preparação da revolta, foi bem o ali indicado. É certo entretanto que

jamais chegou a dominar completamente os sentimentos de fidelidade

para com o imperador que o faziam desejar a República somente para

depois do falecimento do monarca, tal como igualmente se dava com

Deodoro, Pelotas e os demais chefes militares. Foram sem dúvida esses

sentimentos que o levaram a vacilar à última hora, tornando decisiva e

mesmo indispensável a enérgica intervenção do Major Sólon Ribeiro.

(45) Essa carta, confiada a Tobias Monteiro, após a morte de João Neiva,

pelo seu sobrinho, o Tenente-Coronel Neiva de Figueiredo, foi inserta em

nova às págs. 118 e 119 das Pesquisas e Depoimentos .

(46) Comentando os desentendimentos de Silva Jardim e Quintino

Bocaiúva sobre os meios de chegar à República, num artigo publicado no

Jornal do Comércio de 4 de dezembro de 1936, o Sr. A. Tavares de Lira

pronuncia-se francamente pelos métodos do segundo contra as idéias do

primeiro Emprestando a Quintino Bocaiúva uma segurança doutrinária

nos princípios da democracia liberal que o grande jornalista nunca

revelou, ele acha que a República não teria sido proclamada em 1889 sem

a intervenção decisiva do Exército e da Marinha. Uma revolução de

caráter exclusivamente civil (conclui o ilustre escritor e homem público)

seria com facilidade esmagada. Não tenhamos ilusões. A verdade porém

é que, em 1889, ou um pouco mais adiante, essa revolução de caráter

exclusivamente civil teria de chegar. Nas dimensões naturalmente

reduzidas de um artigo de jornal não deixa de ser fácil fechar assim a

discussão. Mas, num trabalho mais longo, servido de mais abundantes

elementos de informação, já é um pouco mais difícil. Basta notar que

naquela convicção geral do próximo advento da República por evolução

normal da opinião pública se compreendiam os próprios meios

positivistas. Teixeira Mendes, a págs. 362 e 363 do seu livro sobre a vida

de Benjamim Constant, segundo o seu modo de ver, diz o seguinte: Para

acelerar semelhante desfecho bastava que a influência social e moral do

Apostolado Positivista crescesse. Ora, todos podem calcular o grau de

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prestígio a que não teríamos atingido se Benjamim Constant em vez de

operar o movimento de 11 de Frederico (15 de Novembro) viesse trazer -

nos o apoio decidido de todos os que entusiasticamente o seguiam. Em

vez de uma admirável revolução militar ter-se-ia operado uma

surpreendente evolução pacífica, pela transformação voluntária da

ditadura imperial em ditadura republicana, sob a pressão de uma forte

opinião pública. No dia seguinte não estaríamos a braços com as

exigências de um exército revoltado, e nem o governo assa ltado com o

receio de subversões na ordem pública... Assim pensavam os homens

essencialmente práticos do Apostolado Positivista, lançando de tudo nas

culpas ao ânimo emperrado do Imperador Pedro II. Naturalmente, em

apoio do ponto de vista do Sr. Tavares de Lira restará sempre o velho

adágio, o que tem de ser tem muito força . Mas aí estaremos em pleno

fatalismo oriental ou muçulmano, não havendo mais a mínima utilidade

em pesquisar, pela crítica histórica, a influência dos homens e das idéias

nos grandes acontecimentos humanos, pois previamente teremos

renunciado a todo princípio de liberdade do espírito ou de livre arbítrio...

(47) Consignado à pág. 101 do livro Deodoro, de Ernesto Sena.

(48) Devia estar nesta mesma ordem de idéias o Professor Reinaldo

Porchat quando, a 26 de dezembro de 1925, renunciou à sua cadeira no

Senado do Estado de São Paulo, após um longo discurso sobre as

condições políticas do Brasil, encerrado por esta frase: Roma também foi

assim, e Roma não teve remédio ...

(Transcrito de Bernardino de Campos e o Partido Republicano Paulista .

Rio de Janeiro. Editora José Olimpio, 1960, págs. 27 -100).

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QUINTINO BOCAIUVA

(1836/1912)

Quintino Bocaiuva seguiu a carreira jornalística, desde

muito jovem, trabalhando em diversos jornais, na Capital do

Império. Acabou radicando-se no periódico O País, do qual

sria um dos fundadores, evento que teve lugar em 1884, vindo

a ser o seu grande inspirador. Nessa altura já se consagrara

como prócer republicano, ideal a que aderira desde a criação

do Partido Republicano, em 1870. Graças à sua atuação no

desfecho do movimento, caracterizado no texto antes transcrito

de José Maria dos Santos, pertenceu ao governo provisório,

ocupando a pasta das Relações Exteriores.

Entre as primeiras tarefas de que se incumbiu, nessa

condição, seria encetar negociações com a Argentina no

tocante a litígio territorial. Entretanto, o Tratado que firmou

com o país vizinho foi considerado danoso aos interesses

nacionais, por conter demasiadas concessões à Argentina,

sendo rejeitado pelo Congresso Nacional. Devido a isto,

demitiu-se do governo.

Eleito senador pelo Estado do Rio de Janeiro,

participaria da Assembléia Constituinte. Com a promulgação

da Carta (24 de fevereiro de 1991), renunciou ao mandato,

voltando à direção de O País.

Em 1889, foi reeleito senador, sendo subseqüentemente

escolhido para governar o Estado do Rio de Janeiro. Maçom,

seria Grão Mestre da Loja Grande Oriente do Brasil, entre

1901 e 1904. Retornou ao Senado em 1909.

Tornou-se aliado do conhecido caudilho gaúcho

Pinheiro Machado (1851/1915), que o colocou na Presidência

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do partido Republicano Conservador, uma das tentativas

frustradas de organizar um partido nacional.

Faleceu em 1912, aos 76 anos de idade.

A Fundação Casa de Rui Barbosa editou, em 1986, livro

intitulado Idéias políticas de Quintino Bocaiuva .