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COM SALAZAR, APRENDER A DANÇAR CONFORME A MÚSICA TEXTO Maria João Martins SALAZAR DESCONFIAVA DA MODERNIDADE NORTE-AMERICANA MAS A "VELHA ALIANÇA" COM OS BRITÂNICOS TRANSMITIA-LHE SEGURANÇA. COM A VITÓRIA DOS ALIADOS NA II GUERRA MUNDIAL, A CONTINUIDADE DA DITADURA PARECIA AMEAÇADA MAS A POSIÇÃO GEOESTRATÉGICA DO PAIS E A CONJUNTURA POLÍTICA INTERNACIONAL PERMITIRAM-LHE NÃO APENAS A SOBREVIVÊNCIA COMO O ACESSO A ALGUMAS VANTAGENS. A Bde maio de 1945, o povo de Lisboa Z\ acorreu espontaneamente às ruas 1 V.para celebrar o fim da Guerra na Europa. Quase seis anos de angustia, de escassez de bens essenciais e até mesmo de medo de uma invasão estrangeira cediam lugar à esperança. Para alguns, apenas em dias mais sossegados e abundantes, para outros também numa mudança de regime, acreditando estes que as democracias vitoriosas não tolerariam a continuidade das ditaduras ibéricas. Por isso, nessa tarde primaveril, apesar dos três dias de luto nacional pela morte de Hitler que Salazar impusera ao país, o júbilo levou milhares de pessoas à Baixa de Lisboa, empunhando as bandeiras de Estados Unidos, Grã- -Bretanha e França. Entre estas, viam-se alguns mastros vazios e até algumas bandeiras do Benfica. Não era uma confusão nem tão pouco uma piada: apenas a forma encontrada para evocar a outra potência vencedora, quando o regime português proibia qualquer exibição pública da bandeira da União Soviética, com a foice e o martelo sobre fundo vermelho. No entanto, entre os eufóricos manifestantes dessa tarde, como entre a generalidade da população mundial, ninguém arriscaria um prognóstico sobre o modo como o mundo (e o país) evoluiria após a guerra mais devastadora da história.

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Page 1: CONFORME A MÚSICAfiles.quickcom.pt/Files/Imprensa/2020/08-15/0/5_2988628...1 V.para celebrar o fim da Guerra na Europa. Quase seis anos de angustia, de escassez de bens essenciais

COMSALAZAR,

APRENDERA DANÇAR

CONFORMEA MÚSICA

TEXTO Maria João Martins

SALAZAR DESCONFIAVA DAMODERNIDADE NORTE-AMERICANA

MAS A "VELHA ALIANÇA" COM OSBRITÂNICOS TRANSMITIA-LHESEGURANÇA. COM A VITÓRIA

DOS ALIADOS NA II GUERRAMUNDIAL, A CONTINUIDADE

DA DITADURA PARECIA AMEAÇADAMAS A POSIÇÃO GEOESTRATÉGICA

DO PAIS E A CONJUNTURA POLÍTICAINTERNACIONAL PERMITIRAM-LHE

NÃO APENAS A SOBREVIVÊNCIACOMO O ACESSO A

ALGUMAS VANTAGENS.

A Bde maio de 1945, o povo de LisboaZ\ acorreu espontaneamente às ruas

1 V.para celebrar o fim da Guerra naEuropa. Quase seis anos de angustia, deescassez de bens essenciais e até mesmo demedo de uma invasão estrangeira cediamlugar à esperança. Para alguns, apenas emdias mais sossegados e abundantes, paraoutros também numa mudança de regime,acreditando estes que as democraciasvitoriosas não tolerariam a continuidadedas ditaduras ibéricas. Por isso, nessa tardeprimaveril, apesar dos três dias de lutonacional pela morte de Hitler que Salazarimpusera ao país, o júbilo levou milhares depessoas à Baixa de Lisboa, empunhando asbandeiras de Estados Unidos, Grã--Bretanha e França. Entre estas, viam-sealguns mastros vazios e até algumasbandeiras do Benfica. Não era umaconfusão nem tão pouco uma piada:apenas a forma encontrada para evocar aoutra potência vencedora, quando oregime português proibia qualquerexibição pública da bandeira da UniãoSoviética, com a foice e o martelo sobrefundo vermelho. No entanto, entre oseufóricos manifestantes dessa tarde, comoentre a generalidade da populaçãomundial, ninguém arriscaria umprognóstico sobre o modo como o mundo(e o país) evoluiria após a guerra maisdevastadora da história.

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Para o historiador António Costa Pinto, aideia de que a sobrevivência do regimeportuguês se ficou a dever à habilidadediplomática e aos compromissos deSalazar, quer durante a Guerra quer noperíodo que se lhe seguiu, não passa de ummito. "O que prevaleceu, neste caso, foramos interesses geoestratégicos dos paísesvencedores, que estavam muitointeressados na posição dos Açores para adefesa do Atlântico Norte. Num contextoglobal desta dimensão, não podemosexagerar a capacidade de decisãoestratégica de um pequeno país, como onosso." Com outra geografia, sublinha, asituação teria sido muito diferente."Durante a Guerra, muitos pequenosEstados da Europa Central teriam preferidomanter a mesma neutralidade quePortugal e essa escolha pura esimplesmente não lhes foi dada. Do mesmomodo, a conferência de líderes em lalta(realizada entre 4 e 11 fevereiro na Crimeia,reuniu o presidente dos Estados Unidos,Franklin Roosevelt, Estaline e Churchill)estabeleceu as zonas de influência de oestee leste. Só assim se explica que aChecoslováquia (onde o comunismo nãoera até aí relevante) ficasse na esferasoviética enquanto a Grécia, onde, pelocontrário, o Partido Comunista era muitoforte, passasse para a influência britânicaapós a expulsão dos invasores italo--alemães." Do mesmo modo, considera que"sem a Guerra Fria e a divisão do mundoem dois blocos antagónicos" é bem possívelque o "salazarismo não tivesse sobrevividoao final da Guerra".

MEMBROFUNDADORDA NATOEm 1946, o regime conhecera um sério revés

internacional ao ver vetado pela URSS,membro do Conselho de Segurança, o seupedido de adesão à ONU. Na argumentaçãodo veto, o embaixador soviético naquelaorganização internacional considerou que,apesar da posição neutral durante a Guerra,Portugal mantivera sempre amizade ecolaboração com os regimes fascistasderrotados, nomeadamente com Alemanhae Itália (Portugal só viria atornar-se membroda ONU em 1955). Pouco depois, o convitepara a integração na NATO enquanto Estadofundador, tornar-se-ia, pois, da maiorrelevância. Para tal refere António CostaPinto, "foi fundamental a intermediaçãobritânica, corno aliâsjà acontecera nosúltimos anos da Guerra. Por um lado, Salazarconfiava nos britânicos, no papel de velhos

aliados, mas teve sempre uma desconfiançaestrutural em relação aos americanos e, decerto modo, à sua modernidade (que se

agudizaria já nos anos 1960 com aadministração Kennedy). Por outro, estestambém não tinham grande paciência paraas hesitações dele, como se tomara evidenteno processo de negociação com os Aliadossobre a utilização militar dos Açores, aindadurante a Guerra. Também nessa ocasiãocoube aos britânicos deitar água na fervura eimpedir atitudes mais drásticas".

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A 4 de abril de 1949, menos de quatro anosapós o final da Guerra, era formalmenteassinado em Washington o Tratado doAtlântico Norte, que formou a NATO,

integrando Portugal, Estados Unidos,Canadá, Reino Unido, Bélgica, Holanda,Dinamarca, França, Islândia, Itália,Luxemburgo e Noruega. A ideiafundamental que lhe estava subjacente erao reforço da segurança militar dos paísesdo bloco ocidental, fundamental para a suarecuperação económica, face ao bloco deinfluência soviética que, em 1955, ripostariacom o Parto de Varsóvia. Para o historiadorAntónio José Telo, a integração na NATOmudaria totalmente a política militar donosso país: "Muda, de forma gradual einsensível, toda a grande estratégianacional. Antes da NATO, a política dedefesa estava essencialmente virada para acolaboração com a Espanha franquista, demodo a assegurar a linha dos Pirenéuscontra um eventual ataque russo e,sobretudo, o apoio mútuo das ditadurasibéricas. Na política de defesa vigente em1949 a arma fundamental era o exército,pensado como uma força gigantesca de 15

divisões em caso de mobilização.A aeronáutica era encarada sobretudocomo uma força de apoio tático, a que sejuntava a missão de defender o espaçoaéreo do continente. A marinha era oparente pobre. Com a entrada na NATO,esse paradigma mudará."

Aos norte-americanos movia-os, na relaçãocom Portugal, "a necessidade de obterfacilidades, de forma permanente, nosAçores, em tempo de paz." E o governoportuguês, o que procurava? Para AntónioCosta Pinto, mais do que a procura doreconhecimento internacional do regime,"era já a obsessão de Salazar com amanutenção das colónias, embora estas,localizando-se no hemisfério sul,estivessem fora da alçada da aliança. Numaconjuntura política favorável às

descolonizações, integrar a NATOsignificava, para Portugal, ter acesso a umgrande escudo, até pelo acesso a armasmais modernas e eficazes, comoefetivamente veio a acontecer". Tambémpara António José Telo, essas vantagensrevelar-se-iam a médio e a longo prazo:Trouxe para o país as principais técnicas,métodos e formas organizativas das

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sociedades pós-industriais, num processoessencialmente financiado por elas, quecomeça pelas Forças Armadas para se

alargar em seguida a todas as esferas dasociedade. Por outro lado, permitiu amodernização das Forcas Armadasnacionais e da estrutura da defesa, quepassou a ser semelhante à das democraciasocidentais, embora com fortes traços deoriginalidade.'

O ACESSO AOPLANO MARSHALLDurante muitos anos, a autora deste textoviveu num bairro lisboeta onde uma placacomemorativa assinalava a construção domesmo com o apoio financeiro do Plano

Marshall. Inicialmente destinado a alojar osfuncionários da Câmara Municipal deLisboa, em sistema de habitaçãoeconómica, é um dos vestígios ainda hojeexistentes no nosso país do apoio dosEstados Unidos à reconstrução europeiaapós a devastação imposta pela Guerra.Mesmo sem ter sofrido o nível dedestruição conhecido pelos beligerantes(provocada tantas vezes porbombardeamentos massivos de cidadesinteiras), Portugal acabou por beneficiar deuma verba considerável ("embora modestaa nível europeu", como salienta AntónioCosta Pinto), essencialmente paramelhorar as suas infraestruturas mastambém para responder às quebras dabalança comercial. Como escreve a

historiadora Maria Fernanda Rollo na obraPortugal e o Plano Marshall: Da rejeição àsolicitação da ajudafinancãra norte--americana (1947-1952), a primeiraproposta para que o nosso país sejacontemplado pelo fundo vem de França eInglaterra, mas o governo portuguêsdeclina "Esta posição mudaráradicalmente nos meses seguintes",escreve, "quando no princípio de 1948 se

assistiu, pela primeira vez em muito tempo,a uma deterioração acentuada da situaçãofinanceira e cambial portuguesa"A esperança da autorregeneração daeconomia portuguesa desvanece-se. Nosfinais de junho desse ano, João Pinto daCosta Leite, ministro das Finanças entre1940 e 1950 (a título de curiosidade, tiomaterno de Francisco Sá Carneiro), redigeum memorando em que formula umaproposta do governo português para obtera cooperação financeira dos norte--americanos.Depois de longas negociações, a Portugalforam, por fim, concedidos 3L5 milhões dedólares a título de auxílio direto e 27,5milhões indiretos. Estas verbas só seriamdisponibilizadas em fevereiro de 1950, quasedois anos depois dos primeiros auxílios aosoutros países da Europa Ocidental. Tal comoacontecera com a constituição da NATO,para a qual não foi considerada a Espanhade Franco jamais beneficiou deste tipo deajuda Não estava convidada para a mesa dosvencedores de 1945.