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1 CAMPESINATO, AGRICULTURA FAMILIAR E AGRONEGÓCIO: DISPUTAS E CONFLITOS Sheila Braz Cristino Silva Geografia, Trabalho e Movimentos Sociais – GETeM. Universidade Federal de Goiás – UFG/CAC [email protected] Marcelo Rodrigues Mendonça Geografia, Trabalho e Movimentos Sociais – GETeM. Universidade Federal de Goiás – UFG/CAC [email protected] Resumo As transformações recentes suscitam uma profunda reflexão a respeito das metamorfoses que ocorrem no mundo do trabalho. A Geografia busca compreender como as mudanças no trabalho parecem intimamente relacionadas aos interesses do capital que se expande através da modernização do território, essas ações tomam formas espaciais que se materializam no agronegócio ao se apropriar das terras no sudeste Goiano e assim, empreende esforços para descaracterizar o campesinato - que luta pelo direito de existir. Além desse enfrentamento mesmo quando alguns o querem, além de serem metamorfoseados em agricultores familiares. A proposta deste trabalho é apresentar uma discussão sobre a reestruturação produtiva do capital decorrentes da relação capital x trabalho. Também será apresentado o campesinato como categoria analítica e as diferenças entre este e os agricultores familiares. Busca-se também compreensão da categoria agronegócio num contexto de disputa e conflitos. Palavras-Chave: reestruturação produtiva do capital. Agronegócio. Campesinato. Agricultura familiar. Introdução As transformações espaciais recentes suscitam uma profunda reflexão a respeito das metamorfoses que ocorrem no mundo do trabalho, especialmente nas décadas finais do século XX, resultantes de alterações do processo de (re)produção do capital. Entendido o trabalho como produção da própria existência humana e como possibilidade de transformação da realidade natural e social. Em um tempo em que as perguntas não perguntam e as respostas não respondem, é urgente buscar compreender como as mudanças no trabalho aparecem intimamente ligadas aos interesses do capital que se expande através da modernização do território, se materializa no agronegócio ao se apropriar de espaços antes camponeses, como as terras do sudeste Goiano. Essas ações expressam construções políticas e ideológicas com o intuito de descaracterizar o campesinato - que luta pelo direito de existir mesmo quando alguns autores o querem definir como sinônimo de agricultura familiar, não compreendendo o movimento no campo e nas

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CAMPESINATO, AGRICULTURA FAMILIAR E AGRONEGÓCIO: DISPUTAS E CONFLITOS

Sheila Braz Cristino Silva Geografia, Trabalho e Movimentos Sociais – GETeM.

Universidade Federal de Goiás – UFG/CAC [email protected]

Marcelo Rodrigues Mendonça

Geografia, Trabalho e Movimentos Sociais – GETeM. Universidade Federal de Goiás – UFG/CAC

[email protected]

Resumo

As transformações recentes suscitam uma profunda reflexão a respeito das metamorfoses que ocorrem no mundo do trabalho. A Geografia busca compreender como as mudanças no trabalho parecem intimamente relacionadas aos interesses do capital que se expande através da modernização do território, essas ações tomam formas espaciais que se materializam no agronegócio ao se apropriar das terras no sudeste Goiano e assim, empreende esforços para descaracterizar o campesinato - que luta pelo direito de existir. Além desse enfrentamento mesmo quando alguns o querem, além de serem metamorfoseados em agricultores familiares. A proposta deste trabalho é apresentar uma discussão sobre a reestruturação produtiva do capital decorrentes da relação capital x trabalho. Também será apresentado o campesinato como categoria analítica e as diferenças entre este e os agricultores familiares. Busca-se também compreensão da categoria agronegócio num contexto de disputa e conflitos.

Palavras-Chave: reestruturação produtiva do capital. Agronegócio. Campesinato. Agricultura familiar.

Introdução

As transformações espaciais recentes suscitam uma profunda reflexão a respeito das

metamorfoses que ocorrem no mundo do trabalho, especialmente nas décadas finais do século

XX, resultantes de alterações do processo de (re)produção do capital. Entendido o trabalho

como produção da própria existência humana e como possibilidade de transformação da

realidade natural e social. Em um tempo em que as perguntas não perguntam e as respostas

não respondem, é urgente buscar compreender como as mudanças no trabalho aparecem

intimamente ligadas aos interesses do capital que se expande através da modernização do

território, se materializa no agronegócio ao se apropriar de espaços antes camponeses, como

as terras do sudeste Goiano.

Essas ações expressam construções políticas e ideológicas com o intuito de descaracterizar o

campesinato - que luta pelo direito de existir mesmo quando alguns autores o querem definir

como sinônimo de agricultura familiar, não compreendendo o movimento no campo e nas

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relações dos sujeitos do campo, numa coexistência de tempos, onde o “moderno” avança

sobre o “arcaico” que resiste.

As complexidades que envolvem o conceito de campesinato têm promovido um efervescente

debate. Essas discussões se dão principalmente em duas vertentes: uma, que caminha na

direção da tese defendida por Ricardo Abramovay (1992) que aponta para o enfraquecimento

e desaparecimento do campesinato. Esse autor e seus discípulos consideram que pela sua

incapacidade de competir no mercado com os capitalistas (agronegócio) os camponeses se

proletarizam, e/ou se transformam em agricultores familiares, para que possam continuar

existindo. E outra, autores como onde se apresentam conceitos que legitimam a classe

camponesa e demonstram na teoria o que a empiria já comprovou: a (Re)Existênciai

campesinato ou sua reinvenção.

A proposta deste artigo é apresentar uma discussão sobre a reestruturação produtiva do capital

e as mudanças na relação capital x trabalho. Busca-se também a compreensão do agronegócio

num contexto de disputa e conflitos. Isso se faz mediante as contribuições teóricas de

Abramovay (19982), Lamarche (1993), Shanin (2005), Wanderley (1996), Martins (1995),

Oliveira (1998, 2001, 2003), Mendonça (2004), Thomaz Júnior (2002).

Essas reflexões propostas buscam a senda da preocupação em construir um conhecimento

prudente para uma vida decente, como nos coloca Santos (2002). A Geografia há que se

movimentar na direção da emancipação e da mudança que se efetive no teórico e se reflita na

construção do real, reconhecendo as complexidades que envolvem a produção conhecimento,

entretanto, posicionando-se solidária às lutas de resistência que precisam transcender a

academia.

Reestruturação produtiva e agronegócio no Centro-Oeste

A exploração das áreas de Cerrado tem seus primórdios com a entrada dos bandeirantes nos

séculos XVII e XVIII, em busca de riquezas minerais e indígenas para serem aprisionados e,

assim, os brancos adentraram os sertões interioranos do Planalto Central brasileiro.

A partir de 1930 com a política de integração do governo Vargas que objetivava a ocupação

da região central do país, considerada vazia, através de um projeto regional, vinculado ao

planejamento estratégico nacional, instituiu o que denominou-se Marcha para o Oeste.

A proposta era a criação de uma base de apoio nos estados periféricos, como Goiás, Mato

Grosso com a finalidade de abastecimento do polo industrial (Sudeste brasileiro) através da

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produção de alimentos e matérias-primas, que corroborou para a apropriação capitalista, sob o

nome de “Marcha para o Oeste”. Muito mais que o preenchimento dos vazios demográficos e

econômicos, essas transformações foram feitas objetivando ampliar as possibilidades de

reprodução das condições objetivas de acumulação capitalista, via interiorização e

industrialização, pela lógica do mercado de consumo e do capital transnacional.

Nas últimas décadas do século XX eventos históricos importantes trouxeram mudanças muito

significativas no mundo do trabalho. A reorganização das forças produtivas e econômicas,

quando o modelo fordista de produção não atendia mais as novas necessidades do capital,

promoveu um processo de reestruturação, uma nova fase de universalização do capital. É

necessário pensar as relações capital/trabalho, que emergem dessa crise “estrutural, profunda,

do próprio sistema do capital (...) exigindo (...), algumas mudanças fundamentais na maneira

pela qual o metabolismo social é controlado.” (MÉZAROS, 2002, p. 796), ou seja, a inserção

do modelo de acumulação “flexível”, que transmuta o trabalho em sua forma de ser,

precarizando-o, submetendo-o, desregulamentando-o, demonstra a perversidade do processo

de reprodução do capital.

Como resposta à sua própria crise, iniciou-se um processo de reorganização do capital e de seu sistema ideológico e político de dominação, cujos contornos mais evidentes foram o advento do neoliberalismo, com a privatização do Estado, a regulamentação dos direitos do trabalho e a desmontagem do setor produtivo estatal, da qual a era Thatcher-Reagan foi expressão mais forte; a isso se seguiu também um intenso processo de reestruturação da produção e do trabalho, com vistas a dotar o capital do instrumental necessário para tentar repor os patamares de expansão anteriores (ANTUNES, 2002, p. 31).

Esse modelo de acumulação flexível com inspiração no toyotismoii se relaciona às mudanças

muito importantes no universo do trabalho. Sob essa lógica, ocorrem transformações

sócioespaciais e econômicas em nosso país, que chegam ao setor agrícola por meio da

modernização do campo e integração da agricultura ao setor industrial. Segundo Harvey

(1992) a acumulação flexível se constitui em:

[...] flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto em setores como em regiões geográficas (HARVEY, 1992, p. 140).

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A materialização desse processo no campo se dá através do agronegócio. Para Fernandes

(2005, p.01), o agronegócio é o novo nome de um velho fenômeno, o “modelo de

desenvolvimento econômico da agropecuária capitalista”. Para o autor, é uma palavra nova,

da década de 1990 e é também uma construção ideológica para tentar modernizar a imagem

que se tem do latifúndio, na tentativa de camuflar o caráter concentrador, predador e

excludente desse tipo de exploração.

O agronegócio é marcado pela intensificação da produtividade e da incorporação de

tecnologia aplicada à produção, objetivando atender as demandas geradas pela reestruturação

do capital, trazendo um novo arranjo produtivo e social no campo e na cidade. Esse novo

arranjo afeta os trabalhadores através da flexibilização das relações de trabalho, ou seja,

maximização dos lucros, recriando mecanismos de acumulação que se manifesta em uma

metamorfoseiii das relações de trabalho que ocorrem não apenas no setor industrial, mas

também repercute e se manifesta no trabalho agrícola. Segundo Antunes (1995):

Foram tão intensas as modificações, que se pode mesmo afirmar que a classe que-vive-do-trabalho sofreu a mais aguda crise deste século, que atingiu não só a sua materialidade, mas teve profundas repercussões na sua subjetividade e, no íntimo inter-relacionamento destes níveis, afetou a sua forma de ser. (ANTUNES, 1995, p. 15, grifo do autor).

Ao ver a pujança das grandes lavouras que se instalaram no campo, pode-se num olhar

apressado, pensar na riqueza e desenvolvimento que foi alcançado, entretanto esse

“desenvolvimento e riqueza” são também ilusórios, pois são contradições quando postos ao

lado da pobreza, exclusão, desterritorialização e problemas ambientais que esse tipo de

exploração traz.

Com a implantação das grandes lavouras comerciais, ocorreram transformações importantes

no espaço urbano e rural. Desse modo, no espaço rural, pequenas e médias lavouras de

alimentos, pastagens e vegetação nativa vão cedendo lugar às grandes lavouras de

commodities. Além das alterações na fitofisionomia do Cerrado e nas formas de uso do solo,

há o aumento da concentração fundiária. Também essas transformações atingem as relações

de/no trabalho e ainda o balanço populacional entre o rural e o urbano.

A tecnificação das lavouras, indiscutivelmente, trouxe um salto na produção e na

produtividade. Mas, por outro lado, liberou mão-de-obra do campo, já que a mecanização da

lavoura demanda um menor número de trabalhadores, reduzindo os postos de trabalho,

vantagens e salários. Desterritorializou um grande número de camponeses e trabalhadores da

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terraiv, provocando a migração destes para as cidades, que invariavelmente não possuem

condições efetivas de prover equipamentos urbanos com que possa receber e assistir esse

contingente que vem engrossar as fileiras do exército industrial de reserva.

O agronegócio se territorializa no Cerrado do Sudeste Goiano e desterritorializa os Povos Cerradeiros

A entrada dos trilhos ferroviários em território goiano no início do século XX e o

rodoviarismo do governo Juscelino Kubitschek , bem como a construção de Brasília na

década de 1950, promoveram um “dinamismo vinculado à incorporação dessa área aos

interesses do capital” (MENDONÇA 2004, p.27).

A partir dos anos 1960 e 1970 do século XX intensifica-se a compreensão do Cerrado como

lócus de uma ocupação acelerada, com a política de modernização tecnificada do campo, em

conformidade com os interesses do capital.

[...] a crise estrutural do capital que abateu fortemente todo o planeta no início dos anos 70 desafiou o capital a implementar um amplo processo de reestruturação, reordenando e redefinindo seu metabolismo societário, com vistas à recuperação de seu ciclo reprodutivo e que afetou sobremaneira o trabalho ou o conjunto das relações sociais que se interpenetram no mundo do trabalho propriamente dito, fragmentando ainda mais os trabalhadores. (THOMAZ JUNIOR, 2002, p. 27).

O falso discurso de que as terras do Cerrado eram “fracas e improdutivas”, muda a partir do

momento em que há uma implementação de incrementos técnicos científicos (correção de

solo, sementes selecionadas, pivôs etc.) que as transformaram em “alvos” do agronegócio,

apoiado pelos subsídios e as facilidades ofertadas pelos governos estadual e federal, por

intermédio de linhas de créditos específicas, incentivos fiscais, infraestrutura, dentre outros. A

região Centro-Oeste foi o alvo central dos programas de ocupação econômica do Cerrado

como o POLOCENTRO (Programa de Desenvolvimento do Cerrado) e o PRODECER

(Programa Cooperativo Nipo-Brasileiro para o Desenvolvimento do Cerrado). A abertura da

fronteira agrícola acontece efetivamente nos anos 1970, com a introdução do cultivo do arroz

e logo depois da soja - utilizada como propulsora da fronteira agrícola. A partir da introdução

da agricultura agroexportadora, inicia-se um processo de alteração no uso e na ocupação dos

solos no Centro-Oeste.

O agronegócio das commodities no território brasileiro e goiano desencadeou as mais diversas

transformações espaciais, como a incorporação de pequenas propriedades camponesas,

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desmatamento, consolidação de empresas rurais, agroindústrias, a criação novas paisagens e

novas formas de produção, em que o arranjo espacial tradicional, paulatinamente cedeu

espaço ao moderno. Esse processo redefiniu formas e funçõesv·, redesenhou os arranjos

espaciais e entrelaçou a produção agrícola e a produção industrial, segundo a lógica

capitalista.

[...] espaço como um conjunto de relações realizadas através de funções e de formas que se apresentam como testemunho de uma história escrita por processos do passado e do presente. Isto é, o espaço se define como um conjunto de formas representativas de relações sociais que estão acontecendo diante de nossos olhos e que se manifestam através de processos e funções. O espaço é, então, um verdadeiro campo de forças cuja aceleração é desigual. (SANTOS, 1978, p.122)

Na década de 1980 tem-se uma aceleração do processo de territorialização do capital no

Cerrado via agronegócio nas áreas de chapadas em Goiás, as quais sendo propícias à

mecanização foram capturadas pela lógica da produção do capital. A modernização da

agricultura promoveu a desterritorialização de milhares de camponeses e em seu lugar

promoveu a territorialização das empresas rurais.

O campesinato existe, (Re)Existe

A agricultura camponesa é reconhecida como atividade responsável pelo abastecimento

interno da população brasileira. De acordo com o Censo Agropecuário de 2006 pela primeira

vez foi relatada a realidade brasileira no que concerne a agricultura familiarvi, brasileira, que

nós chamamos de agricultura camponesa, que responde por cerca de 38% (ou R$ 54,4

bilhões) do valor total produzido pela agropecuária do país. A produção vegetal gerou 72% do

valor da produção da agricultura familiar, especialmente com as lavouras temporárias (42%

do valor da produção) e permanentes (19%). Em segundo lugar vinha a atividade animal

(25%), especialmente com animais de grande porte (14%). As informações do Censo

possibilitam, ainda, aquilatar a importância da agricultura familiar na absorção de mão-de-

obra. Segundo essa fonte, há cerca de 12,3 milhões de pessoas trabalhando na agricultura

familiar, o que corresponde a 74,4% do pessoal ocupado no total dos estabelecimentos

agropecuários.

Apesar de ocupar apenas 24,3% da área total dos estabelecimentos agropecuários a agricultura

camponesa é responsável por 38% do valor bruto da produção em uma área de apenas 17, 7

milhões de ha ela é a principal fornecedora de alimentos básicos. Cultivando uma área de 36,4

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milhões de há, ela produz grande parte da proteína animal consumida pelos brasileiros. Como

se pode constatar nos gráficos:

Fonte: Ministério do Desenvolvimento Agrário: IBGE, Censo Agropecuário 2006.

Fonte: Ministério do Desenvolvimento Agrário: IBGE, Censo Agropecuário 2006.

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Fonte: Ministério do Desenvolvimento Agrário: IBGE, Censo Agropecuário 2006.

Ainda assim, continua a ser desterrada. Entretanto, resiste nas franjas das chapadas e nos

fundos de vales, que não podem ainda ser incorporadas pela agricultura moderna, e que se

tornam para eles refúgiosvii. E às vezes, até essas áreas lhe são usurpadas, uma vez que os

lagos das Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e usinas hidrelétricas as alagam e esses

camponeses tem ainda mais precarizadas a suas vidas e passam também à situação de

atingidos pelas barragens.

Falar sobre o campesinato requer um exercício da realidade, haja vista a grande

conflitualidade existente em torno do conceito. O debate acadêmico tem sido encaminhado

em duas vertentes básicas, não obstante a existência de outras: uma que apregoa a extinção do

campesinato ou sua metamorfose agricultores familiares empreendedores, o que

inevitavelmente transmutaria o camponês em agricultor familiar.

Essa compreensão descaracteriza e despolitiza o modo de vida e as ações políticas construídas

pelos camponeses incorporando o autor despersonificado, tornado profissional ao mercado e

ao desenvolvimento do capitalismo, conforme a tese de Abromovay (1992) em sua

racionalidade econômica. E outra, que caminha em direção diferente que se foca na

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(re)criação do campesinato através da luta pela terra e pela reforma agrária, defendendo a

conquista da posse da terra, e a permanência nela.

Fernandes (2008) e Oliveira (2001) colocam a conquista da terra e a interposição de

resistências por meio da contestação da ordem constituída, pela soberania alimentar e outras

bandeiras de luta camponesa estratégias de luta camponesa.

Muito importante também considerar na questão da (Re)Existência, os conflitos que se

estabelecem entre os trabalhadores da terra, camponeses na disputa pelo território com o

agronegócio. O imaginário hegemônico capitalista quer nos fazer crer ser inglória para os

primeiros, em função da supremacia do segundo sobre eles, como forma de enfraquecer a luta

e eliminar as resistências.

O Cerrado anteriormente declarado “vazio”, sob a lógica desenvolvimentista do Estado,

paradoxalmente, “cheio” de vida, de saberes e fazeres desses denominados Povos

Cerradeiros como declara Mendonça (2004)viii, vai sendo usurpado pelas novas formas de

produzir, relegando essas gentes aos fundos de vales, ou a uma situação perversa em que os

camponeses e os trabalhadores da terra são expulsos da terra e se retiram para as áreas

urbanas em um processo de maior precarização da vida e das relações sociais. Trata-se aqui

de uma disputa territorial para além do território material, pois se estende ao território

imaterialix.

Esses Povos Cerradeiros, muitas vezes camponeses, trazem em comum a trajetória de vida na

terra, e o fato de possuírem sentimentos de pertença, e reconhecimento de que sua condição é

de exilados, sem terra, sem teto, sem lugar, marginalizados e excluídos, e julgados culpados

pelo destino que dão às suas vidas. Suas roças, seus quintais, suas hortas, de outrora, hoje são

apenas um mar de soja, de cana e algumas vezes de água.

Tal processo é inerente às formas de produção do território pelo capital aqui representado pelo

agronegócio, que propaga suas benesses, tais como a geração de empregos e divisas, as

supersafras etc. Mas tais promessas não se cumprem, e assim os Povos Cerradeiros são

desterritorializados no sentido que nos diz Ianni:

O processo de desterritorialização tem acentuado e generalizado as condições de solidão. Indivíduos, famílias, grupos, classes e outros segmentos sociais perdem-se no desconcerto do mundo. [...] são continuamente bombardeados por mensagens, recados e interpretações distantes, díspares, alheias. [...] Desenvolvem-se as condições de alienação e, em conseqüência, acentuam-se as de solidão. (IANNI1992, p. 100).

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Woortmaan (1990) nos traz a concepção de que o campesinato por sua ordem moral é

fundamentada no tripé terra, família e trabalho. Entretanto, a campesinidade pode extrapolar

essa objetividade e ser encontrada em pessoas que vivem e trabalham, na cidade, persistindo

assim mesmo quando a posse da terra não é mais uma realidade objetiva.

Considerando que tanto quanto a posse da terra, a campesinidade se enraíza no pertencer a

terra, no sentido de que a identidade camponesa traz o sentimento de pertença. Não se pode

negar que o fato de não tê-la, usurpa a identidade por meio da lógica econômica,

individualista e mercadológica, das cidades e também se lhes nega o direito de se ver e se

sentir camponês.

Marx (1980) deixa claro que o trabalho é a essência do homem, pois é o meio pelo qual nos

relacionamos com a natureza e a transformamos em bens. Ele percebe as classes como

sujeitas às mudanças da história, e assim mediadoras das contradições estruturais que

amadurecem no interior de cada sociedade. O campesinato então se define como classe, uma

vez que, manifesta como perspectiva política a luta pela reforma agrária. Tanto pelo

posicionamento político, como por seus interesses, sua cultura e pelo seu modo de vida.

Uma importante característica para a definição do campesinato enquanto classe social é o

tripé: terra, trabalho e família.

Quando Lenin (1920) trabalha a idéia da classe em si, ele respalda e legitima a concepção de

que o campesinato é uma classe:

“É o que permite a uma parte da sociedade se apropriar do trabalho da outra. Se uma parte da sociedade se apropria de toda a terra, temos a classe dos latifundiários e a dos camponeses. Se uma parte da sociedade possui as fábricas, as ações e os capitais, enquanto a outra trabalha nestas fábricas, temos a classe dos capitalistas e a dos proletários” (LENIN 1920, p. 392).

A alegada negação do campesinato como classe, fundamentada no fato de o camponês ser

proprietário dos meios de produção e não vender sua força de trabalho para o capital é

fortemente combatida por Antônio Thomas Junior:

Imerso no metabolismo social do capital e, conseqüentemente, no ambiente da organização, das disputas e das alianças político-ideológicas do trabalho, numa clara tomada de consciência de pertencimento de classe, o campesinato é sim parte integrante da classe trabalhadora, todavia emancipada das predeterminações e dos pressupostos engessados a priori. (THOMAZ JUNIOR 2006, p.141 grifos nossos).

Dessa forma, pode se pensar em que medida essa desterritorialização do trabalho afeta a

sociedade, e de forma especial os camponeses e trabalhadores da terra. É preciso que haja

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uma busca por uma ressignificação do trabalho, como forma de fortalecimento do

campesinato enquanto classe social e uma interpretação da realidade de forma madura com

vistas à compreensão das contradições do mundo do capital e do trabalho.

A (Re)Existência tem sido manifesta na luta pela terra e na terra. A primeira se faz através dos

movimentos que reivindicam a reforma agrária como medida de desconcentração das terras

produtivas, acompanhadas de programas que permitam ao camponês viver da terra e na terra.

No segundo caso, a (Re)Existência, tem sido manifesta através da preservação de seu sistema

moral e de produção, também da posse do material genético e do conhecimento a ele inerente.

A reprodução e troca de sementes crioulas é nesse sentido um importante instrumento de luta.

O enfrentamento dos camponeses perante o capital não se faz somente na luta para entrar na

terra, mas também para permanecer nela. Nesta perspectiva, emerge a resistência camponesa

na recusa à precarização gerada pelo processo de expropriação imposto pelo capital. A

(Re)Existência é luta cotidiana do campesinato que se expressa no jeito de ser e fazer para

continuar sendo e fazendo.

A desterritorialização no plano material pode ser entendida a partir do que Marx (1989 b)

entende como um processo de dualidade que se manifestava por meio da liberação de mão-de-

obra dos camponeses, que passam a engrossar as fileiras do “exército industrial de reserva”

nas áreas urbanas; e de outro lado pela subordinação dos camponeses que resistiam no campo

às regras do mercado. Nessa perspectiva percebe-se que esse mesmo processo ocorre em

nosso tempo e a teoria é fundamental na compreensão dos fatos.

A indústria moderna atua na agricultura mais evolucionariamente que em qualquer outro setor, ao destruir o baluarte da velha sociedade, o camponês, substituindo-o pelo trabalhador assalariado. A necessidade de transformação social e a oposição de classes no campo são assim equiparadas às da cidade. Os métodos rotineiros e irracionais da agricultura são substituídos pela aplicação consciente, tecnológica da ciência. (MARX, 1989b, p. 577-578)

Essa realidade se efetiva na área de estudo, onde há conflitos, e (Re)Existência que estamos

investigando na pesquisa desenvolvida com vistas à dissertação de mestrado e aos estudos do

GETeM, Grupo de Pesquisa Geografia, Trabalho e movimentos sociais, que tem discutido

essa temática.

Considerações Finais

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Buscar uma compreensão dos processos e contradições, diante dos diferentes olhares e

interlocuções sobre as relações entre capitalismo, agronegócio, campesinato e territorialidades

na complexidade manifesta na forma com que estão postas é um desafio. Entretanto, é um

desafio que nos instiga, a seguir buscando respostas, para tantas questões, num

posicionamento consciente das possibilidades de transformação da realidade, ainda que estas

se manifestem momentaneamente mais na teoria, ou que ainda estão em processo de gestação,

em fase embrionária. Mas, que vão sendo construídas enquanto tentativas de emancipação

social.

É fato que o capitalismo está em permanente crise e evolução, e que cada vez mais se torna

contraditório a relação capital x trabalho, que se manifesta numa na reorganização espacial

materializada no campo e na cidade.

Mas também não podemos mais pensar num enfrentamento ao capital sem a consciência de

que a revolução se faz por meio da classe trabalhadora, e que nesta devem estar incluídos

também os camponeses, que são também sujeitos da luta radical contra o capital.

Assim, torna-se pertinente retomar o que escrevi no início deste artigo a guisa de

consideração final: (Re)Existir, para continuar a existir, é a cotidiana luta do campesinato que

se expressa no jeito de ser e fazer para continuar sendo e fazendo.

Notas

i No sentido de buscar a reversão do quadro de dominação do capital. Cf MENDONÇA (2004) ii Para um aprofundamento sobre a questão no mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo, cf. ANTUNES, Ricardo. As metamorfoses no Mundo do trabalho. In: Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2005

iii . O Toyotismo foi desenvolvido no Japão já nos anos 50, visava à superação da crise financeira do país no pós-guerra aumentando a produção sem aumentar o número de trabalhadores e ainda superar os problemas específicos da produção dentro da fábrica Toyota . cf. Antunes (2002).

iv Trabalhadores da terra, aqui sob a perspectiva colocada por MENDONÇA2004. p.28) “ [...] quando nos referimos aqueles que exercem labor na terra e, portanto, possuem no trabalho rural as condições essenciais para a sobrevivência. Compreende trabalhadores rurais assalariados, nas suas diversas modalidades, camponeses, agregados, parceiros, arrendatários etc. que estabelecem o sentido pleno da vida na terra e, em situação de desfiliação social, forjam a luta pela terra e pela reforma agrária. . v Ver SANTOS (2008), Espaço e método.

vi A delimitação conceitual dos estabelecimentos agropecuários da agricultura familiar, é fruto da cooperação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) e do ministério de desenvolvimento Agrário (MDA), a partir dos critérios fornecidos pela lei 11.326/2006 com os dados do Censo Agropecuário 2006, compreendendo

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um conjunto plural formado por pequena e média propriedade, assentamentos da reforma agrária e comunidades rurais tradicionais, extrativistas, ribeirinhos e quilombolas entre outras. Em outras palavras: camponeses.

vii Cf. MENDONÇA, (2004, p, 28)

viii Refere-se às classes sociais trabalhadoras/produtoras que historicamente viveram/vivem nas áreas de

Cerrado e constituíram/constituem formas de uso e exploração da terra a partir das diferenciações naturais-sociais, experienciando formas materiais e imateriais de trabalho, que denotam relações sociais de produção e de trabalho muito próprias e em acordo com as condições ambientais, resultando em múltiplas práticas sócio-culturais e ambientais adequadas a utilização do Bioma Cerrado. Mais informações ver Mendonça (2004). ix

Para superar a compreensão do território como uno, singular, discutimos diferentes formas do território, como pluralidade. Temos territórios materiais e imateriais: os materiais são formados no espaço físico e os imateriais no espaço social a partir das relações sociais por meio de pensamentos, conceitos, teorias e ideologias.Territórios materiais e imateriais são indissociáveis, porque um não existe sem o outro e estão vinculados pela intencionalidade. A construção do território material é resultado de uma relação de poder que é sustentada pelo território imaterial como conhecimento, teoria e ou ideologia. [...]”. (FERNANDES, 2008, p. 8).

Referências

ABRAMOVAY, R. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. São Paulo - Rio de Janeiro-Campinas, HUCITEC/ANPOCS/Ed. da UNICAMP, 1992. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 5 ed., São Paulo: Boitempo editorial, 2002

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