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9 CONFLITOS DE VALORES E DE PONTOS DE VISTA NO DISCURSO Alain Rabatel ICAR, UMR 5191 – Universidade de Lyon RESUMO: O artigo analisa a noção de valor a partir de Saussure e de Rastier, articulando, particularmente, valor lexical e textual. Ele exami- na como a cenografia enunciativa de um conflito de valores e de pontos de vista, por meio de fundamentos enunciativos internos e de estratégias de predicação, mostra que Conforme X, P mas conforme Y Q não tem no contexto o mesmo valor que P mas Q, confirmando a legitimidade da articulação entre diferentes níveis de valor, lexicais, textuais, genéricos. ABSTRACT: is article analyses the notion of value with reference to Saussure and Rastier, connecting, in particular, lexical value and textual value. Taking into account internal enunciative sources and predication strategies, it examines the way the enunciative scenario of a conflict of values and points of view shows that According to X, P but according to Y Q has not in context the same value as P but Q. It thus confirms the valid- ity of the connection between different levels of value: lexical, textual and generic. A questão dos valores não se coloca com tanta urgência quanto quando esses são naturalizados, como lembra Jean-Marie Klinkenberg: (1) […] Não houve descoberta da América pelos Espanhóis e por alguns outros: nem os Maias e os Astecas esperaram o companhei- ro de Malinche para descobrir seu continente. Porém, os livros de história nunca falam da descoberta dos Teules do ocidente cristão pelos sujeitos de Motecuzoma em torno do ano Ce-Acatl... Mas o discurso jornalístico não se preocupa com essas questões de pontos de vista: o esquecimento (“sempre injusto”, determinaria o Dictionnaire des idées reçues) e o não reconhecimento nunca

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CONFLITOS DE VALORES E DE PONTOS DE VISTA NO DISCURSO

Alain RabatelICAR, UMR 5191 – Universidade de Lyon

RESUMO: O artigo analisa a noção de valor a partir de Saussure e de Rastier, articulando, particularmente, valor lexical e textual. Ele exami-na como a cenografia enunciativa de um conflito de valores e de pontos de vista, por meio de fundamentos enunciativos internos e de estratégias de predicação, mostra que Conforme X, P mas conforme Y Q não tem no contexto o mesmo valor que P mas Q, confirmando a legitimidade da articulação entre diferentes níveis de valor, lexicais, textuais, genéricos.

ABSTRACT: This article analyses the notion of value with reference to Saussure and Rastier, connecting, in particular, lexical value and textual value. Taking into account internal enunciative sources and predication strategies, it examines the way the enunciative scenario of a conflict of values and points of view shows that According to X, P but according to Y Q has not in context the same value as P but Q. It thus confirms the valid-ity of the connection between different levels of value: lexical, textual and generic.

A questão dos valores não se coloca com tanta urgência quanto quando esses são naturalizados, como lembra Jean-Marie Klinkenberg:

(1) […] Não houve descoberta da América pelos Espanhóis e por alguns outros: nem os Maias e os Astecas esperaram o companhei-ro de Malinche para descobrir seu continente. Porém, os livros de história nunca falam da descoberta dos Teules do ocidente cristão pelos sujeitos de Motecuzoma em torno do ano Ce-Acatl... Mas o discurso jornalístico não se preocupa com essas questões de pontos de vista: o esquecimento (“sempre injusto”, determinaria o Dictionnaire des idées reçues) e o não reconhecimento nunca

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foram relacionados a essas pessoas ou grupos. Isso é de absolu-ta certeza. Consequentemente, a descoberta e a redescoberta, o conhecimento e o reconhecimento não serão mais que o feito de pessoas. Por uma genial sinédoque, o crítico torna-se a voz de uma única e indivisível consciência literária. O sujeito gramatical favorecido aqui é o on1NT (“seria errado ignorar-se ainda…”, “des-cobrir-se-á…”2*), muito raramente o nós (também denunciando a contingência (“nós descobrimos…3**”). Mas a construção mais cômoda é ainda aquela que deixa indeciso seu referente (“Quem conheceria até aqui x?”, “É preciso redescobrir a todo custo…”4***) (Klinkenberg 2010a [1984]: 57-8; ver também 2009 : 47).

O efeito de evidência que acompanha esta naturalização repousa fre-quentemente sobre fenômenos de anulação ou de apagamento enuncia-tivos (Rabatel, 2004). Este tipo de situação, às vezes, é muito complexo, como veremos, na medida em que os pontos de vista (PDV) manifes-tados em um conteúdo proposicional, por meio de escolhas de referen-ciação e de predicação (Rabatel 2005a, 2009) podem ser naturalizados e nos quais, além disso, em situações dialógicas o primeiro locutor/enunciador (L1/E15) pode produzir PDV sem exprimir sua posição a respeito: em outras palavras, temos um duplo apagamento, certos PDV secundários recebem a forma de percepções aparentemente objetivas, enquanto que L1/E1 exprime sua neutralidade. Este último apagamento é particularmente problemático quando os PDV são recusados sem que seja assegurada a compreensão da posição de L1/E1 a respeito de fontes (sources) em conflito, supondo que ele tenha uma, ou que seja pertinen-te esperar-se que ele tenha uma. Em todos os casos, somos convidados a refletir sobre os enunciadores subjacentes à referenciação dos PDV, sobre suas intenções, as razões em virtude das quais eles convidam a dividir suas visões das coisas, a rejeitar ou validar essas(s) ou outra(s). E, do mesmo modo, as interrogações cruciais nos conflitos de valores.

Examinarei este conjunto de questões a partir de um exemplo emble-mático de um conflito de valores parcialmente naturalizados e, sobre-tudo, de uma posição de distanciamento com as duas partes presentes. Ora, esta posição de neutralidade, que parece a priori corresponder a uma regra deontológica de neutralidade, não é necessariamente a pa-lavra final da história, quando se limita a opor provas sem investigação para encontrar a verdade e penetrar o labirinto das responsabilidades. Neste caso, encontra-se face a um outro conflito de valores, que não opõe os enunciadores internos, mas o enunciador primário confron-tado às exigências contrárias, por exemplo, a exigência de verdade e o cuidado de neutralidade. O leitor compreenderá que os conflitos de

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valor interrogam o conteúdo das predicações, e, por conseguinte, as es-colhas de denominação, de categorização, de qualificação, mas também as relações entre predicações, fenômenos que são complexos nas situa-ções dialógicas. Porém, antes de examinar estas estratégias discursivas e retóricas de textualização dos valores, parece oportuno interrogar-se sobre a questão dos valores na língua, particularmente sobre as reflexões fundadoras de Saussure.

1. Valores na língua e no discurso1.1. O valor em Saussure

Antes de se manifestarem no discurso, os valores existem na língua, entre as significações unidas a tal unidade. Mas a noção de valor arrasta concepções antagônicas, o que não é problemático segundo Neveu: “Pa-lavra que serve frequentemente, e de maneira indefinida, para dar conta de um sentido ou de um efeito de sentido ligado a uma ou outra categoria linguística (falamos assim do valor de tempo, do valor de preposições), ou para dar conta do emprego de uma unidade lexical ou de uma ex-pressão no enunciado” (Neveu, 2004: 299), este emprego é julgado “não teorizado”. Certamente, este julgamento faz referência à concepção saus-suriana de valor, definida negativamente, de maneira diferenciada, pela sua oposição com as outras unidades do sistema: pois o valor não é a sig-nificação, fenômeno que é aqui evocado por meio da atribuição de um sentido positivo para tal referente conceitual ou atual. Contudo, a ideia de que toda reflexão que liga valor e significação exaltaria uma aproximação pré-teórica em relação à concepção estrutural de valor merece ser discu-tida: pois a concepção saussuriana não esgota a questão do sentido, por mais que ela seja o pedestal sobre o qual deva construir-se.

A tese saussuriana é ilustrada por exemplos famosos, especialmen-te aqueles do jogo de xadrez, das moedas, ou das diferenças de valor (mas não de significação) entre ovelha (sheep) e carneiro (mouton), em razão da oposição – inexistente em francês – entre sheep e mutton em inglês. Como esses exemplos são bem conhecidos, prefiro citar trechos dos Écrits de linguistique générale, nos quais Saussure trata do valor em relação à sua reflexão sobre a sinonímia:

(2) Nenhum signo é, portanto, limitado no total de ideias positivas que ele é, ao mesmo tempo, chamado a concentrar em si mesmo; ele só é limitado negativamente, pela presença simultânea de outros signos; e é, portanto, inútil procurar qual é o total de significações de uma palavra. (Saussure 2002: 78)(3) (Proposição x) Considerada de qualquer ponto de vista que pretenda dar conta de sua essência, a língua consiste não em um

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sistema de valores absolutos ou positivos, mas em um sistema de valores relativos e negativos, que não tem existência a não ser como efeito de sua oposição. (Saussure 2002: 80)

A dimensão diferencial, no fundamento do valor saussuriano, ba-seia-se em diferenças de ordem paradigmática. Estas não impedem as diferenças de significação no contexto, na ordem sintagmática, que são apreciadas em referência ao caráter contraditório das colocações e das diferenças dos termos, na ordem paradigmática. Este jogo permite as evoluções do sistema linguístico, com inovações que compreendem ver-dadeiramente sentidos no interdiscurso que se abstrai do contexto, ou seja, entrando em um sistema de diferenças abstratas na ordem paradig-mática. Pois os valores não são “absolutos ou positivos”, mas presos “em um sistema de valores relativos e negativos, não tendo existência que para efeito de sua oposição”.

(4) Se retomamos a palavra lua, podemos dizer, a lua aparece, a lua cresce, decresce, a lua se renova, semearemos na lua nova, pas-sarão muitas luas antes que tal coisa aconteça... e insensivelmente vemos 1º que tudo o que pomos em lua é absolutamente negati-vo, vindo apenas da ausência de um outro termo, pois, 2º, uma multidão de idiomas exprimirão, por meio de termos totalmente diferente dos nossos, os mesmos fatos em que fazemos intervir a palavra lua, exprimindo, por exemplo, em uma primeira acepção, a lua em suas fases mensais, em uma segunda, a lua como astro diferente do sol, em uma terceira, a lua em oposição às estrelas, em uma quarta, a lua como tocha da noite, em uma quinta, o luar em oposição à própria lua, etc. E cada uma dessas acepções só tem valor pela oposição negativa que ela ocupa em relação às outras : não é em nenhum momento uma ideia positiva, legítima ou falsa, de que é a lua quem dita a distribuição das noções pelos dez ou doze termos que existem, mas é apenas a própria presen-ça desses termos que obriga a ligar cada ideia ao primeiro ou ao segundo, ou a todos os dois em oposição ao terceiro e assim por diante, sem qualquer dado que a escolha negativa a ser feita en-tre os termos, sem nenhuma concentração diversa sobre o objeto uno. Assim, só há nessa palavra o que não estava antes fora dela; e essa palavra pode conter ou encerrar, em sua origem, tudo o que não está fora dela. (Saussure 2002: 74-75)

Saussure rompe com a evidência de um nível autônomo da significa-ção, no plano conceitual, que seria independente do plano linguístico.

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Esta concepção permite pensar o sistema linguístico, no qual ela é fun-damental. Além disso, ela literalmente coloca em questão a distinção entre sentido próprio e sentido figurado e interroga a noção de sinoní-mia:

(5) (Corolário) – Não há diferença entre o sentido próprio e o sentido figurado das palavras – porque o sentido das palavras é uma coisa essencialmente negativa. (Saussure 2002: 80)

(6) Persuade-se que um novo sentido (dito figurado) é interposto: essa convicção parte puramente da suposição tradicional de que a palavra possui uma significação absoluta que se aplica a um ob-jeto determinado; é essa presunção que nós debatemos. (Saussure 2002: 75-76)

1.2. Do valor no sistema ao valor-significação (valor-ponto de vista) atualizado no discurso

As diferenças de valor é uma das condições que permite aos locuto-res movimentarem-se sobre os efeitos de sentido que querem produzir, independentemente do referente, que pode ser denominado de diver-sas maneiras, em função das intenções comunicativas (poder-se-ia di-zer, de maneira mais “moderna”, dos cálculos enunciativos do locutor à condição de não reduzir esses últimos à uma intencionalidade plena e inteira...). Este valor-significação (ou valor-ponto de vista) não é in-compatível, para mim, com uma aproximação diferencial dos valores em oposição a outras unidades do sistema. No fragmento seguinte, fica evidente que se o enunciador pode, do seu modo, nomear uma “cons-trução” de diversas maneiras, que isso não depende dos referentes: pois a mesma construção pode ser nomeada segundo as intenções do mo-mento, a situação ou o destinatário, um “casebre” (masure) ou um “cas-telo” (château)… Ora, essas escolhas enunciativas repousam, acima de tudo, sobre a existência de significações diferenciais que são unidas pelo contraste ao conjunto desses termos, e que permitem aos enunciadores desempenhá-los no discurso:

(7) Enfim, nem há necessidade de dizer que a diferença dos ter-mos que faz o sistema de uma língua não corresponde em parte alguma, mesmo na língua mais perfeita, às relações verdadeiras entre as coisas; e que, por consequência, não há nenhuma razão para esperar que os termos se apliquem completamente, ou mes-mo incompletamente aos objetos definidos, materiais ou não.

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Dir-se-á que eles devem corresponder, por outro lado, às primei-ras impressões que o espírito recebe; isso é verdade, mas essas primeiras impressões são as que estabelecem as relações mais inesperadas entre as coisas totalmente separadas, como elas tendem continuamente e, sobretudo, a dividir as coisas absolu-tamente unas; assim, em momento algum, a impressão que faz um objeto material tem o poder de criar uma única categoria lin-guística; – só há, então, termos negativos em cada um dos quais o novo objeto está incompletamente contido, ao mesmo tempo em que é desmembrado em vários termos.

Mas isso seria não compreender onde está o poder da língua e só lamentar sua inexatidão. Não se impedirá jamais que uma única e mesma coisa seja chamada, conforme o caso, de uma casa, uma construção, um prédio, um edifício, (um monumento), um imóvel, uma habitação, uma residência, e o contrário seria o nosso signo [ ]. Assim, a existência de fatos materiais é, do mesmo modo que a existência dos fatos de uma outra ordem, indiferente à língua. O tempo todo ela se avança e se põe a serviço da formidável má-quina de suas ideias negativas, verdadeiramente livres de todo fato concreto, e por isso mesmo, imediatamente prontas para ar-mazenar uma ideia qualquer que venha juntar-se às precedentes. (Saussure 2002 : 76)

De certa maneira, estamos diante de duas ordens de valor, o valor interno, na língua, e o externo, próprio dos gêneros e dos discursos (Rastier, 2003: 42). Pode-se então considerar uma ponte entre a con-cepção saussuriana de valor e as aproximações enunciativas de valores na língua e no discurso – e, assim, ser menos rigorosa que a de Neveu, se os valores são pensados diferentemente6 – a partir da noção de PDV, presente em Saussure, como uma “profissão de fé” (profession de foi), segundo Benveniste, que indica seu acordo com Saussure no tomo 1 de seus Problèmes de linguistique générale :

(8) Em outros lugares [nas outras ciências] existem coisas, obje-tos dados, que são livres de se considerar em relação a diferentes pontos de vista. Aqui [na ciência da linguagem] existe primei-ro os pontos de vista, legítimos ou falsos, mas apenas pontos de vista, ao serviço dos quais cria-se secundariamente as coisas [...] Eis aqui nossa profissão de fé em matéria linguística: nos outros domínios, pode-se falar das coisas sob esse ou aquele ponto de vista,certo de encontrar um terreno firme no próprio objeto. Em

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linguística, nós negamos, a princípio, que haja objetos dados, que haja coisas que continuem existindo quando se passa de uma or-dem de ideias para uma outra e que se pode, portanto, permitir considerar as “coisas” em várias ordens, como se elas fossem da-das por elas mesmas. (Saussure, 1910, Cahiers Ferdinand de Saus-sure 12 [1954]: 57-58, citado em Benveniste 1966: 39-407)

Em um volume memorável, Badir cita uma passagem dos Écrits de linguistique générale :

(9) Os como, os no ponto de vista de fazem muito refletir em lin-guística. Além disso, há um limite para as diversas maneiras de encarar as coisas, que é dado pelas próprias coisas. Em linguís-tica pode-se perguntar se o ponto de vista onde considera-se a coisa não é toda a coisa, e por consequência, definitivamente, se nós partimos sobre um único ponto de vista de qualquer coisa de concreto ou se nunca teve outra coisa dos nossos pontos de vista indefinidamente multiplicáveis. (Saussure 2002: 67, citado em Badir 2003 : 111)

Badir revoga a hipótese de Prieto, segundo a qual os pontos de vista seriam aqueles dos sujeitos falantes (isso o que nos predispomos a crer) e atribui a origem desse ponto de vista aos gramáticos e aos linguistas Não se compreende como essa hipótese excluiria a primeira, pois a ideia de uma “contradição com uma outra afirmação do CLG, a saber, de que a língua é posicionada fora da vontade dos locutores” (Badir 2003: 111) mereceria ser precisada na medida de uma reavaliação das relações entre língua e discurso. Saussure não pensa que a realidade existiria in-dependente da linguagem; o que ele quer sublinhar é que a realidade não pode ser apreendida pela linguagem (e pelos linguistas) de maneira “objetiva”, por palavras neutras e sem história. Como o valor diferencial, os PDV introduzidos pelas lexias e pela sintaxe são constitutivos da lin-guagem, inscritos na evolução diacrônica do sentido das palavras, como nas diferenças que as palavras próximas adquirem na sincronia. Essas variações negativas são o pedestal sobre o qual os locutores podem usar de diversas estratégias de donação da referência em função de seu ponto de vista sobre o objeto ou PDV que eles atribuem a outros. Há, então, uma continuidade nas problemáticas do valor e do PDV: a “liberdade” dos enunciadores é oprimida pelo sistema da língua, enquanto que as normas discursivas regendo os gêneros e as situações são menos opres-soras.

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1.3. Valor, sentido, significação: diferença, referência e inferênciaPara não demorar, seguirei aqui um guia seguro, Rastier. A reflexão so-

bre o valor cruza aquelas sobre a significação e o sentido. A linguagem é frequentemente pensada como um conjunto de signos e de regras de sinta-xe remetidas às leis do pensamento racional, em ligação com os processos cognitivos, que estão no fundamento da problemática da denotação. Certa-mente, a reflexão linguística autonomizou-se, progressivamente, da lógica no século XVIII, mas quais seriam seus distanciamentos com a lógica, as semânticas referenciais são vericondicionais, analisam as condições que sa-tisfizer para que um enunciado seja verdadeiro, por uma ligação entre o significante e o conceito e/ou o referente. Ora, essa maneira de pensar não tem resposta para tudo. Rastier lembra o caso das antanáclases em que uma mesma palavra é repetida com acepções diferentes que modificam secun-dariamente o valor na língua, isso que lhe permite a distinção entre semas inerentes e aferentes. Do mesmo modo, ele destaca que o valor de uma pa-lavra, no nível local, pode depender do contexto global; até mesmo a ideia de tédio insensível (ennui sourd) em todos os momentos em que o leitor está com Emma Bovary, nesse caso a palavra não é utilizada mais do que quatro vezes em toda a obra. (apud Bouquet 2003: 302). É porque Rastier articula o valor no plano lexical e no plano textual, lá onde Saussure limitou a problemática no plano lexical. Há bem um outro paradigma que pensa a linguagem a partir de textos e de discursos: nesse caso, as tradições retórica e hermenêutica pensam o sentido como uma propriedade dos textos, como um percurso entre os planos do texto (conteúdo e expressão) e no interior de cada plano (ver também Rastier 2003: 24, 31-33). Em razão dos limites próprios de cada paradigma, Rastier propõe articular a referência (privile-giada pelas teorias lógicas), a inferência (teorias pragmáticas) e a diferença (teoria estruturalista):

(10) A síntese em que colocamos o princípio (cf. 1991 cap. III), consiste em determinar a inferência e a referência pela diferença, depois coloca essas problemáticas da significação sob a recção da problemática do sentido, admitindo a determinação, em última instância, do global (o texto) sobre o local (os signos). Trata-se nesse caso de expor, no quadro de uma semântica diferenciada, a inferência e a referência. A inferência é tratada no nível macrosse-mântico pela teoria dos semas aferentes (aqueles cuja atualização resulta de uma opressão contextual – em contraste com os semas inerentes, que são herdados por falta do tipo pela ocorrência). Os percursos interpretativos que otimizam essas opressões podem compreender todos os tipos de inferências (colocando em tela conhecimentos de todas as ordens aos níveis da frase e do texto).

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Quanto à referência, a semântica diferencial tem tratado primei-ro de descrever as opressões semânticas sobre as representações. (Rastier 1999)

Para Rastier, o problema da representação deve apagar-se diante aquele da impressão referencial. Ora, o que são as impressões referen-ciais, senão a construção linguística de um referente, de um objeto de discurso considerado segundo um PDV, sob certas facetas, em função de certos objetivos ou dimensão argumentativos (Amossy 2006), ativa-das pelas instruções do texto e conforme cálculos inferenciais pragmá-ticos? É este conjunto complexo, quanto aos valores, que será analisado agora.

2. Conflitos de valores e encobrimento (estompage) de posições enunciativas2.1. Quando [conforme X, P mas conforme Y, Q] aplica-se para neu-tralizar os PDV antagônicos

Para ilustrar as complexidades da questão do valor em associação, de um lado com os dois níveis do valor na língua e nos textos8, de outro com o (não-)posicionamento enunciativo em relação aos valores atuali-zados em um ou outro PDV, partirei de um exemplo cuja concisão ilus-tra as dificuldades do posicionamento em que há conflito e no qual L1/E1 expõe as posições antagônicas de dois campos opostos. Como esse exemplo produziu o objeto de uma publicação complementar, resumo aqui os grandes eixos da análise e remeto o leitor a Rabatel 2011b para uma análise mais completa.

(11) Segundo a polícia, ele teria, debatendo-se no carro, ferido um funcionário pertencente a uma brigada anticriminalidade que teve uma licença de trabalho de cinco dias. Mas, segundo testemunhas, ao contrário, os policiais que o teriam brutalmente interpelado (Haillet 2007: 113).9*

P.-P. Haillet escreve que “o emprego do mas (mais) tem por efeito a representação do locutor como disposto a admitir o ponto de vista “são [...] os policiais que o interpelaram brutalmente”10** (ibid.), e isso, contudo, na presença de condicionais de alteridade enunciativa, em ra-zão do mas. Ora, em (11), o passado condicional (conditionnel passé) não indica apenas uma alteridade enunciativa, ele marca um distancia-mento epistêmico. A presença de condicionais de distanciamento an-tes e depois do mas incitam a rever seu valor de base indicando que o PDV contido em Q supera aquele de P. Subestimando a existência do

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co(n)texto, especialmente duas intermediações enunciativas (conforme [selon]) e o valor de distanciação dos condicionais, Haillet permite pensar que [conforme X, P mas conforme Y, Q] é equivalente de [P mas Q]. Ora, se Y considera que seu PDV supera aquele de X, não é certo que L1/E1 pensa o mesmo. A conclusão que se impõe é que L1/E1 não assume (prend en charge) Q, ele se contenta em considerar (prendre en compte) dois PDV que se neutralizam (ver Rabatel 2009 pela diferença entre assumir e considerar).

Poderíamos pensar que Q é efetivamente assumido por L1/E1 em virtude das instruções fornecidas pelo conector e também em razão do mecanismo da focalização (“são, ao contrário, os policiais que...”)11***. Essa hipótese é, entretanto, contradita pelo fato de os elementos da se-gunda predicação, que deveriam confirmar o PDV das testemunhas, compreenderem um passado condicional que ataca no interior seu PDV, destruindo enunciativamente e argumentativamente as circunstâncias agravantes. Do mesmo modo, a hipótese é invalidada pelo emprego e mudança de lugar dos passados condicionais. O crédito para o locutor/enunciador primário de uma das teses presentes seria mais claro se os enunciados fossem ao mesmo tempo (passado condicional [condition-nel passé], pretérito perfeito [passé composé] ou presente [presént]) para cada um dos dois PDV, sendo entendido que nesse caso a vantagem iria para aquele que é expresso sem condicional, como em (12) no qual a fonte policial é considerada, ao contrário de (13):

(12) Segundo a polícia, ele, debatendo-se no carro, feriu um funcio-nário pertencente a uma brigada anticriminalidade que teve uma li-cença de trabalho de cinco dias. Mas, segundo testemunhas, seriam, ao contrário, os policiais que o teriam brutalmente interpelado12****.

(13) Segundo a polícia, ele teria, debatendo-se no carro, ferido um funcionário pertencente a uma brigada anticriminalidade que teria tido uma licença de trabalho de cinco dias. Mas, segun-do testemunhas, são, ao contrário, os policiais que o interpela-ram brutalmente13*****.

Nos dois casos a mudança de admissão é independente do mas. Isso indica que o mas apresenta aqui (ou seja, no texto) um papel secundá-rio, hipótese confirmada pelas permutações no plano da designação e da quantificação:

(12a) Segundo os/uns policiais, ele, debatendo-se no carro, feriu um funcionário pertencente a uma brigada anticriminalidade

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que teve uma licença de trabalho de cinco dias. Mas, segundo testemunhas, seria, ao contrário, a polícia que o teria brutalmente interpelado.14******

(12a’) Segundo a polícia, ele, debatendo-se no carro, feriu um funcionário pertencente a uma brigada anticriminalidade que teve uma licença de trabalho de cinco dias. Mas, segundo teste-munhas, seriam, ao contrário, os/uns policiais que o teriam bru-talmente interpelado.15*******

Em (12a) e (12a’), que a polícia seria considerada sob seu aspecto institucional com a designação genérica visando a instituição, em que a fonte seria restringida a todos os policiais atores do acontecimento (os) ou a alguns dentre eles (uns), não coloca em assunto a hierarquização dos PDV, indicada pelo distanciamento epistêmico do condicional dis-tanciado em um único PDV. Seria o mesmo se efetuasse essas permuta-ções em relação à (13).

Mas (11) não hierarquiza enunciativamente P e Q como (12) e (13), pois cada um dos dois PDV é distanciado. Considerando que mas é reforçado por ao contrário (au contraire), a oposição exprime uma mise en scène jornalística dramatizada (com a focalização e ao contrário) de dois PDV contraditórios. Em outras palavras, encontra-se lá diante um mas discursivo de oposição retórica que apresenta no discurso dois PDV adversos inconciliáveis e incomensuráveis a fim de mostrar que sua in-comensurabilidade fica impossível de concluir em favor de Q (como o funcionamento do mas poderia fazer pensar), nem em favor de P, em razão das marcas de distanciamento introduzidas por L1/E1 nos dois PDV. A focalização não confirma que L1/E1 assume Q, em razão da presença do condicional passado em Q. Por conseguinte, a focalização pode ser considerada menos como uma admissão de L1/E1 do PDV das testemunhas do que um prejulgamento da dramatização da informação, destacando o caráter sempre oposto das testemunhas nos conflitos, sem implicar qualquer admissão do valor argumentativo por e para o jorna-lista16.

Então, se nos encontramos confrontados a uma estrutura [conforme X, P mas conforme Y, Q], não é certo dizer que L1/E1 necessariamente luta por Q, no qual ele assume o PDV fazendo-o seu. Isso não é ver-dadeiro se L1/E1 explicita seu acordo (“Eu acho que Q é efetivamente verdadeiro”); mas ele também pode recambiar explicitamente sem en-costar P e Q. (“Difícil de concluir positivamente em favor de P ou de Q”); ele pode também concluir antes em favor de P (“Apesar de tudo, o argumento de Q responde mal à P”) ou escolher deslocar o problema,

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integrá-lo produzindo uma outra fonte (conforme Z, R). Essa hipóte-se, elaborada sobre o único fragmento, que Haillet citou sem referência para ilustrar um ponto de gramática, é confirmado pelo texto comple-to17 reproduzido em (14) sob uma forma que se aproxima do original, uma manchete sobre uma coluna; sublinho a passagem citada por Hail-let e enumero as frases:

(14) Um sans-papier18NT no tribunal após uma interpelação brutal

[P1] El Hadj Momar Diop, enviado da coordenação nacional de indocumentação, interpelado quarta-feira a noite após a ocupa-ção do Stade de France de Saint-Denis, foi deferido ontem à noi-te para o tribunal de grande instância de Bobigny (Seine-Saint--Denis). [P2] Ele deve ser apresentado hoje em comparecimento imediato por “golpes e lesões sobre agente da força pública” e “in-fração à legislação sobre os estrangeiros”. [P3] Segundo a polícia, ele teria, debatendo-se no carro, ferido um funcionário perten-cente a uma brigada anticriminalidade que teve uma licença de trabalho de cinco dias. [P4] Mas, segundo testemunhas, são, ao contrário, os policiais que o teriam brutalmente interpelado. [P5] A coordenação dos sans-papiers fala mesmo de “espancamento”. [P6] Um fotógrafo que trabalha para a agência Associated Press, que tirou fotos da cena, também foi detido quarta-feira à noite e libertado algumas horas mais tarde. [P7] Ele considerou ontem prestar uma queixa contra a polícia, que havia jogado no chão seu material fotográfico (Libération, Avril 1997, n° 4972, p. 20).19*

A Frase 1 (P1) resume o conflito: atores, lugar, circunstâncias, fatos e consequências. P2 qualifica os delitos que motivaram o comparecimen-to imediato, entre aspas, após a instituição policial. P3 e P4 (exemplo 11) explicam, no plano argumentativo, uma série de três fontes con-vergentes opostas à polícia. P5 expõe o PDV da fonte 2, a coordenação nacional dos sans-papiers, quem revaloriza sobre a fonte 1 mas, visto o lugar de mesmo, à proximidade do verbo de fala, a gradação concerne ao enunciador secundário, sem também implicar fortemente L1/E1 – será diferente se mesmo explicar P5. P6 expõe o ponto de vista da fonte 3, uma testemunha “neutra”, fotógrafo. P7 focaliza sobre o fotógrafo, cujo L1/E1 relata a intenção de prestar queixa. Poderíamos considerar que a integração da terceira fonte no discurso primário confirma que L1/E1 divide o PDV das fontes opostas à polícia. Infelizmente, encontra-se in fine dois traços de distanciamento análogos ao passado condicional no segundo conforme de (11): o semantismo do verbo “considerar” (envisa-

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ger) reflete uma deliberação que não é estabilizada. Do mais, a escolha do mais que perfeito (plus que parfait) “havia jogado” (avait jeté) indica que o evento é contado do PDV do fotógrafo, que corresponde a um distanciamento narrativo; se o jornalista tivesse utilizado um pretérito perfeito (passé composé), sem dúvida a realidade do fato teria sido mais atestada do PDV de L1/E1.

Esse três últimos PDV que seguem o mas não são assumidos por L1/E1, e isso é confirmado pela postura enunciativa adotada. Não há co-enunciação20, no sentido de co-construção de um PDV comum e di-vidido, pois L1/E1 não assume os PDV, ele apenas os considera. Não há mais sobre-enunciação, no sentido em que L1/E1 falaria sobre os PDV em confronto, fingindo estar de acordo com eles (no qual assume os PDV, mas reorientando o argumento ou modificando sua intensidade): pois não há nada no discurso primário, ou na maneira em que L1/E1 re-laciona o PDV das fontes, que indica explicitamente que ele está de acor-do com elas, pelo contrário, visto as marcas de distanciamento. Mesmo a presença de sinais retóricos suscetíveis de alimentar uma co-enunciação (escolha de três testemunhas contra um; lugar final reservado às três tes-temunhas, gradação na intensidade das testemunhas com um profissio-nal não tomando parte) não é decisivo, em função das marcas finais de distanciamento. Em suma, a hipótese que L1/E1 sustenta-se sobre essas testemunhas para afirmar a tese de uma responsabilidade da polícia não é considerada senão implicitamente, sustentada sobre subentendidos21, menos contraditórios que os pressupostos, relevando escolhas ideoló-gicas de cada leitor. É porque L1/E1 está em sub-enunciação, ou seja, o PDV é recolocado sem ser totalmente assumido, conforme a não admis-são dos PDV antagônicos, a fim de fazer compreender quanto ele é difícil nesse gênero de conflitos de atestar a verdade. Essa sub-enunciação é compatível com a hipótese de que o jornalista divide implicitamente o PDV das testemunhas, sem implicar-se explicitamente.

A hipótese da neutralidade explícita de (11), confirmada pelo tex-to inteiro, considera pelo tipo de texto e pelo gênero de discurso, pa-râmetros que devem ser integrados à análise. Uma manchete limita-se aos fatos: quando há conflito, ela se limita às opiniões opostas; para ir além, para procurar as responsabilidades, remete a um outro gênero jornalístico e a um outro formato. Não resta menos do que a escrita jornalística dos conflitos coloca, às vezes, de sérios problemas de valor, de responsabilidade e de ética, sobretudo quando o evento é coberto mais largamente. No quadro desse artigo, irei insistir sobre as questões de valor, e, para as questões de responsabilidades e de ética, que evocarei em conclusão, permita-me voltar a dois trabalhos complementares.

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2.2. Da construção empática dos PDV à naturalização dos valores e dos argumentos

A construção de valores e de argumentos comunica a fala às fontes enunciativas, ou considera os fatos de seu PDV. Nota-se isso particular-mente a partir da repartição entre a predicação primária e a predicação secundária, em (11): para a polícia, a proposição principal (“Segundo a polícia, ele teria [...] ferido um funcionário”)22* corresponde à predicação primária. Os particípios subordinados (“debatendo-se no carro”, “perten-cente a uma brigada anticriminalidade”)23** e a relativa explicativa (“que teve uma licença de trabalho de cinco dias”)24*** exprimem nas predica-ções secundárias as circunstâncias. Eles constroem no fundo, e, sobretu-do, servem para caucionar argumentativamente o PDV exprimido pela polícia, a descreditar-lhe de toda responsabilidade. Essa análise não é pos-sível se fizer da polícia um autêntico sujeito modal, que confirma a exis-tência de conforme. Do mais, o conjunto da referenciação denuncia a cena do PDV do sujeito modal. De fato, a denominação bem como a quantifi-cação não são sem incidência sobre o valor: a polícia, com o determinante definido, indica que refere-se à uma instituição, com seus funcionários, que fala por meio de seus membros, segundo um forte contraste com o indefinido testemunhas, que não incrimina a polícia, mas “uns” policiais (os policiais). Em suma, segundo a instituição policial, é a pessoa relatada que é responsável pela violência como indica o verbo “debater-se”; essa violência é confirmada pela licença de trabalho de cinco dias; a menção de adesão do policial à BAC25 faz sobressair a violência do interpelado, na medida em que esses policiais são em princípio experimentados. O subentendido é que a BAC, de acordo com suas missões, deve constante-mente surpreender um público difícil, nos “bairros”, o que é uma circuns-tância atenuante para os policiais, e uma circunstância agravante para a parte adversa... O fenômeno da dupla predicação no qual as predicações secundárias apoiam a predicação primária funciona igualmente para o segundo PDV: o realçamento, com a clivada, insiste na responsabilidade dos policiais, e as circunstâncias correspondem aos advérbios de maneira e de intensidade, “muito brutalmente”26****, funcionando como uma predi-cação secundária, confirmando o PDV das testemunhas que insistem so-bre uma brutalidade que desempenha o papel de circunstância agravante.

Não existe separação entre fatos objetivos e um comentário sub-jetivo. O dictum é primeiramente saturado de escolhas subjetivas. A construção do fato (violência de interpelação) já é uma interpretação e se apoia sobre considerações que caucionam a primeira percepção. As percepções, que são referenciadas, argumentam por elas mesmas, e além delas mesmas, se queremos inseri-las na trama que elas constro-em, que é igualmente uma trama eventual e uma cadeia de argumentos.

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Por trás dos enunciados constatados, escondem-se asserções intencio-nadas argumentativamente, o que é difícil de contestar... Essas escolhas subjetivas ressaltam centros de perspectiva interna (polícia; testemu-nhas) e, em todos os casos, sobre esses centros modais internos, plana o enunciador primário, ele mesmo dotado de subjetividade. Este manifes-ta sua subjetividade pela caução epistêmica que ele aceita ou recusa dos centros modais internos, ele manifesta também sua subjetividade pela maneira em que ele distancia argumentos: assim, o condicional de Q, “que o teriam brutalmente interpelado”27*****, não é apenas um distancia-mento epistêmico, é talvez o traço de um estereótipo (no qual um julga-mento de valor) relativo ao caráter-sempre-brutal-de-interpelação-da--polícia-segundo-as-testemunhas: o distanciamento porta menos nesse caso sobre uma violência intrínseca do que sobre o fato que, segundo esse gênero de testemunha, é todo julgado muito “brutal”, visando mais uma maneira de ver o fato, mesmo se os dois são dificilmente dissoci-áveis. Os argumentos e os valores são complexos porque a lógica dos centros de perspectiva internos é perturbada pela visão econômica e crítica do locutor/enunciador primário.

Em (11), o conflito sobre os fatos pesa também sobre os valores (res-peito das instituições, dos cidadãos, verdade, mentira), relativamente aos atores do acontecimento, mas ele concerne também o jornalista confrontado aos valores de objetividade, de responsabilidade, de ver-dade, que não são necessariamente conciliáveis. De fato, certos valores podem estar em contradição (neutralidade vs verdade), particularmen-te quando a busca da verdade estabelece responsabilidades unilaterais, então, a resenha que é feita tem uma estrita e enganosa neutralidade. Quando valores (e.g. verdade, ordem) encontram-se atropelados por outros valores (uma instituição, por exemplo, ou indivíduos que con-testam certas normas), emerge, então, a questão de sua hierarquização (Perelman e Olbrechts-Tyteca 1970 : 105). Como lembra Plantin, se os valores da terceira pessoa e do oponente são incompatíveis, torna-se es-sencial para decidir fazer apelo a um terceiro:

(15) Em um debate contraditório os discursos do Proponente e aquele do Oponente podem apoiar-se sobre os valores radical-mente incompatíveis (por exemplo, quando os interesses ma-teriais estão no primeiro plano); o papel de terceiros (juízes ou votantes) torna-se, então, mais essencial para decidir do que re-solver. (Plantin 2002 : 599)

Esse apelo aos terceiros tocam também as práticas jornalísticas, as-sim que o requerimento foi revelado aos experts, às testemunhas aber-

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tas, aos investigadores, para ultrapassar a neutralização do PDV de sin-dicatos e da direção da France Télécom, no caso de suicídios repetidos que abateram os assalariados em 2009 e 2010 (Rabatel 2010b, 2011a).

A análise linguística coloca em questão a oposição fato vs comen-tário e interroga, do fato da subjetividade fundamental da língua, a relação entre verdade, opinião, subjetividade, afetividade. Até mesmo entre neutralidade e engajamento. Pode-se ser totalmente engajado em sua prática – por exemplo, em uma prática de jornalismo de investi-gação – sem, entretanto, trabalhar com tapa-olhos, nem satisfazer-se permanecer sobre seu Aventino. Pode-se ver convicções ideológicas ou científicas sem estar aprisionado. Klinkenberg mostra que a contradição pode ser acometida exibindo honestamente o fato de que “ver” significa fundamentalmente “fazer ver” e que ele é importante ser exercitado para a objetivação da subjetividade, contra todas as mistificações da natura-lização, na ordem da linguagem como naquela da pintura (Klinkenberg 2010b: 5-14, 34-36).

Os exemplos (11) e (14), por meio da análise dos valores de mas e das questões de admissão, ilustram o fato de que o valor, no sentido argu-mentativo do termo, é função de medida dos fenômenos considerados. Mas, sobretudo, eles são a medalha de mérito para mostrar que se o valor depende do sistema (como o mas), no plano lexical, ele é tributá-rio também do nível textual global e do contexto situacional. Poder-se--ia também acrescentar que o valor (sempre no sentido argumentativo) tem por certo um valor descontextualizado, no plano da significação, mas que seu sentido toma forma verdadeiramente em contexto28. E que, nesse quadro, o contexto é ordinariamente polifônico (mistura de vozes) e dialógico (entrelaçamento de PDV que não passam todos por vozes).

É certo que a questão do posicionamento do locutor/enunciador primário em relação aos conflitos de valor coloca a questão da responsabilidade enunciativa e da ética. Mas esses empregos não se colocam sempre nos mesmos termos: do ponto de vista de um autor de uma manchete, a neutralidade é mais aceitável, segundo as normas do gênero, que se tratava de uma informação mais investigada. A questão vai ainda mais longe que a simples admissão (mesmo relacionando-a aos gêneros particulares) e concerne a responsabilidade. Quando em-preguei a expressão “responsabilidade enunciativa” (Rabatel e Chauvin Vileno 2006, Rabatel e Koren 2008), queria significar que a problemá-tica da responsabilidade extravasaria a simples admissão, interrogaria as práticas jornalísticas de naturalização de PDV, criticaria certas esco-lhas e não-escolhas, resultando uma ausência de visibilidade para certos PDV, reforçando as ideologias dominantes. Se a questão dos valores e da verdade é fundamental para as particularidades em conflito, ela é

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ainda muito mais, e com todos os outros empregos, quando se excede a lógica dos fatos diversos para considerar conflitos científicos, sociais ou políticos que colocam as maiores tomadas de força de nossas sociedades (ver Rabatel 2006, 2008, 2010b, c, 2011a, b) e convidam a reatualizar as razões que nos faz viver juntos.

Tradução: Anderson Braga do Carmo (Mestrando-UEL) e Mariângela P. G. Joanilho (Docente-UEL)

Notas

1NT O pronome on, em francês, é frequentemente utilizado no lugar de nós, no entan-to, pode também ser utilizado como índice de indeterminação de sujeito, funcionando como a partícula “se” em língua portuguesa;2* “on aurait tort d’ignorer encore...”, “on va découvrir”;3** “nous avons decouvert”;4*** “Qui connaissait jusqu’ici x?”, “Il faut redécouvrir à tout prix...”.5 O locutor estando na origem de um enunciado, o enunciador correspondendo aos PDV e a suas admissões (prise em charge). A admissão é efetivada por E1 – em sin-cretismo com L1 –, enquanto ela é pressuposta para os enunciadores secundários (e2), correspondendo a uma quase-admissão (Rabatel 2009).6 Por exemplo, em Culioli, em torno de suas operações enunciativas e domínios nacio-nais (identidade, ruptura, diferenciação): ver Culioli 2003 : 142, Rabatel 2010a : 364 e o próximo nº dos Cahiers de praxématique coordenado por S. Mellet consagrado à noção de fronteira.7 Cf. um fragmento que desenvolve a mesma tese em Bouquet 2003 : 338.8 Texto aqui pouco desenvolvido, mas que tem, entretanto, todas as características tra-dicionais do “texto”, pelas necessidades da demonstração, sem prejudicar a validade dessas últimas: para mais precisões ver Florea, Papahagi, Pop & Curea 2010.9* Selon la police, il aurait, en se débattant dans le car, blessé un fonctionnaire apparte-nant à une brigade anticriminalité qui a eu un arrêt de travail de cinq jours. Mais, selon des témoins, ce sont au contraire les policiers qui l’auraient très brutalement interpellé (Haillet 2007 : 113).10** “ce sont [...] les policiers qui l’ont três brutalement interpellé”.11*** “ce sont au contraire les policiers qui...”12**** (12) Selon la police, il a, en se débattant dans le car, blessé un fonctionnaire appartenant à une brigade anticriminalité qui a eu un arrêt de travail de cinq jours. Mais, selon des témoins, ce seraient au contraire les policiers qui l’auraient très bru-talement interpellé.13***** (13) Selon la police, il aurait, en se débattant dans le car, blessé un fonctionnaire appartenant à une brigade anticriminalité qui aurait eu un arrêt de travail de cinq jours. Mais, selon des témoins, ce sont au contraire les policiers qui l’ont très brutalement interpellé.

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14****** (12a) Selon les/des policiers, il a, en se débattant dans le car, blessé un fonction-naire appartenant à une brigade anticriminalité qui a eu un arrêt de travail de cinq jours. Mais, selon des témoins, ce serait au contraire la police qui l’aurait très brutalement interpellé.15******* (12a’) Selon la police, il a, en se débattant dans le car, blessé un fonctionnaire appartenant à une brigade anticriminalité qui a eu un arrêt de travail de cinq jours. Mais, selon des témoins, ce seraient au contraire les/des policiers qui l’auraient très brutalement interpellé.16 Essa hipótese é confirmada pelas dificuldades de aplicação em (11) do teste da per-mutação das proposições: ver Rabatel 2011b.17 Agradeço à P. P. Haillet por me ter fornecido a referência do fragmento que ele utilizou.18NT Sans-papiers: pessoa que não possui os documentos de identidade requeridos no país (estrangeiro) em que se encontra; irregular. Optamos por manter a palavra em fran-cês, cuja tradução não encontra, no Brasil, um equivalente com a mesma estabilidade da palavra francesa.19* (14) Un sans-papiers au tribunal après une interpellation musclée[P1] El Hadj Momar Diop, délégué de la coordination nationale des sans-papiers, interpellé mercredi soir après l’occupation du Stade de France de Saint-Denis, a été déféré hier soir au tribunal de grande instance de Bobigny (Seine-Saint-Denis). [P2] Il doit être présenté aujourd’hui en comparution immédiate pour « coups et bles-sures sur agent de la force publique » et « infraction à la législation sur les étrangers ». [P3] Selon la police, il aurait, en se débattant dans le car, blessé un fonctionnaire appar-tenant à une brigade anticriminalité qui a eu un arrêt de travail de cinq jours. [P4] Mais, selon des témoins, ce sont au contraire les policiers qui l’auraient très brutalement interpellé. [P5] La coordination des sans-papiers parle même de « passage à tabac ». [P6] Un photographe travaillant pour l’agence Associated Press, qui prenait des clichés de la scène, avait été aussi interpellé mercredi soir et relâché quelques heures plus tard. [P7] Il envisageait hier de porter plainte contre la police, qui avait jeté à terre son maté-riel photographique (Libération, Avril 1997, n° 4972, p. 20). 20 Sobre as noções de co-enunciação, de sobre-enunciação e de sub-enunciação, ver Rabatel 2004a, b, 2005b, 2007 et 2008a.21 A presença de “brutal” [musclée] no título, não indica, para mim, que o jornalista está imediatamente na perspectiva das testemunhas, mesmo que o título tenha uma conotação negativa: esse qualificativo faz parte de “terminologias já lá (“intervenção movimentada”, “erro da polícia”, “desvio”, “disfuncionamento”)” (Meyer 2010: 5).22* “Selon la police, il aurait […] blessé un fonctionnaire”;23** “en se débattant dans le car”, “appartenant à une brigade anticriminalité”;24*** “qui a eu un arrêt de travail de cinq jours”;25 BAC : Brigada Anticriminalidade.26**** “três brutalement”;27***** “qui l’auraient très brutalement interpellé”;28 Ou seja, nesse contexto, o valor de mas não é também estruturante como na língua, do fato de outros fatores co-ocorrentes, e particularmente em razão do condicional, que desempenha um papel preponderante. Essa análise deveria ser modelizada, mas isso é um outro debate...

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Palavras-chave: Análise do discurso, ponto de vista, valorKeywords: Discourse analysis, point of view, value