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13 CONFIGURANDO OS ANOS 70: A IMAGINAÇÃO NO PODER E A ARTE NAS RUAS Nicolau Sevcenko Como historiador da cultura, tenho por princípio e método a tendência a procurar compreender os nômenos artísticos e intelectuais numa extensão temporal que nos permita acompanhá-los da gênese até a sua plena configuração. No caso do extraordinário florescimento cultural dos anos 60 e 70, o que se obsea é o retomo ao debate público, e mais exatamente ao espaço público J de uma série de experiências estéticas que tinham tido sua primeira manifestação em escala revolucionária na passagem do século XIX para o , mas que ram atrÓzmenre abortadas sob o contexto reacionário instaurado pela irrupção da Primeira Guerra Mundial. Comecemos, portanto, essa história do retomo da liberdade criativa reprimida pelo seu início. O impulso pela criação de uma :_ te livre surgiu com a primeira geração romântica na França, no contexto das agitações que se seguiram turbulências evolução France Seu cimeiro manifesto foi provavelmente o: fácio" ao Cro e go, no uai o jovem dramaturgo propõe _nada menos que uma estética enunciada a golpes de maneio. "Digamo-lo, pois, ousadamente. Chegou o tempo disso, e seria estranho que nessa época a liberdade, como a luz, penetrasse por toda parte, exceto no que há de mais naturalmente livre, nas coisas do pensamento. Destruamos teorias, as poéticas e os sistemas. Derrubemos esse velho gesso que mascara a chada da arte! N há regras nem modelos... " As.a ções �erais do século XIX, que irromperam no público em 1820, 1830, 1848 e 1870, tendo seu epicentro em r. e se dindindo rapidamente por toda a Europa, de L��a Sicília à Es.ia, ndiram num clamor uníssono um amplo feixe de anseios omistas, traduzidos pelas doutrinas do liberalismo, naciona, . da democracia e do socialismo, gerando uma atmosfera de expectativas que - i mais bem caracterizada pela expressão "a primavera dos povos". Foram os tempos heróicos das lutas populares, transcorrendo em paralelo à própria rmação e consolidação do proletariado i ndustrial, num processo de gestação. conduzido, segundo um de seus maiores porta-vozes, à custa de muito "sangue, suor e lágrimas".

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CONFIGURANDO OS ANOS 70:

A IMAGINAÇÃO NO PODER E A ARTE NAS RUAS

Nicolau Sevcenko

Como historiador da cultura, tenho por princípio e método a tendência a procurar compreender os fenômenos artísticos e intelectuais numa extensão temporal que nos permita acompanhá-los da gênese até a sua plena configuração. No caso do extraordinário florescimento cultural dos anos 60 e 70, o que se observa é o retomo ao debate público, e mais exatamente ao espaço públicoJ de uma série de experiências estéticas que tinham tido sua primeira manifestação em escala revolucionária na passagem do século XIX para o XX, mas que foram atrÓzmenre abortadas sob o contexto reacionário instaurado pela irrupção da Primeira Guerra Mundial. Comecemos, portanto, essa história do retomo da liberdade criativa reprimida pelo seu início.

O impulso pela criação de uma �:_te livre surgiu com a primeira geração romântica na França, no contexto das agitações que se seguiram às turbulências �Revolução France Seu cimeiro manifesto foi provavelmente o:�fácio" ao Cro e go, no uai o jovem dramaturgo propõe _nada menos que uma estética enunciada a golpes de maneio.

"Digamo-lo, pois, ousadamente. Chegou o tempo disso, e seria estranho que nessa época a liberdade, como a luz, penetrasse por toda parte, exceto no que há de mais naturalmente livre, nas coisas do pensamento. Destruamos as teorias, as poéticas e os sistemas. Derrubemos esse velho gesso que mascara a fachada da arte! Não há regras nem modelos ... "

As. a�ções �erais do século XIX, que irromperam no espaço público em 1820, 1830, 1848 e 1870, tendo seu epicentro em racis. e se difundindo rapidamente por toda a Europa, de L���a Sicília à

Es.Çílll.d.i.aávia, fundiram num clamor uníssono um amplo feixe de anseios autonomistas, traduzidos pelas doutrinas do liberalismo, nacionalis.m.o, . --da democracia e do socialismo, gerando uma atmosfera de expectativas que ...--foi mais bem caracterizada pela expressão "a primavera dos povos". Foram os tempos heróicos das lutas populares, transcorrendo em paralelo à própria formação e consolidação do proletariado industrial, num processo de gestação. conduzido, segundo um de seus maiores porta-vozes, à custa de muito "sangue, suor e lágrimas".

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Um dos subprodutos sociais e culturais desse processo, cujo conhecimento foi significativamente incrementado nas últimas décadas por trabalhos como os dos professores Robert Darton, John Weiss, Stephen Kern, Karl Schorske, Jerrold Siegel e Eric Hobsbawn, foi o surgimento de um submundci de escritores, jornalistas, �s, caricaturistas, agitadores e panfletários, vivendo precariamente da pena e das__yicissitudes da cena política e cultur�l. - Esse contingente de artistas, intelectuais e ativistas políticos foi crescendo no decorrer do século, na mesma medida em que se exacerbavam os enfrentamentos políticos com as autoridades conservadoras e se multiplicavam os interesses pela liberaliza ão das atividades econômicas, pela p�o política e pela circulação de idéias. or outro lado, quanto mais esse núcleo de resistência ra 1 se çonsolidava em Paris, mais os banidos e perseguidos de todas as partes do continente viam a capital da França· como seu destino natural de exílio, indo juntar-se ali aos seus irmãos de coração e alma. O que por sua vez tornava esse grupo artístico-intelectual mais politizado e mais cosmopolita.

O que caracterizava acima de tudo esse grupo e lhe dava uma fisionomia de homogeneidade, recobrindo o amplo espectro de diferentes origens e ideologias, era seu ostensivo comportamento antiburg� Vestiam-se de preto da cabeça aos pés, sapatos de bico fino com fivela metálica, chapelão mole caindo sobre o rosto, lenço vermelho no pescoço ou amarrado no alto do braço esquerdo.­próximo ao coração. Fumavam tabaco, bebiam pesado e· raramente se alimentavam. Acordavam quando todos já haviam se recolhido para jantar e dormir. Faziam arruaças,' bebiam e festejavam pela noite afora, e só se recolhiam quando as pessoas já estavam despertando para o novo dia de trabalho. Seu estilo de vida era o ��Roda d� moral, do as� e da sobriedade típicos do bom senso burguês.

Eles por isso constituíam uma espécie de comunidade à parte dentro da sociedade parisiense. Uma espécie de microssociedade que as autoridades e os cidadãos decentes abominavam e a polícia perseguia sistematicamente. Para retribuir o ódio e o sarcasmo que eles dedicavam aos bons burgueses, estes lhes pagavam na mesma moeda, chamando-os. por um apodo rico em conotações de despre eia!, racial e cultural. Eles eram coletivament enegridos pelo no e boe a", numa referência explícita à comunidade cigan . Um estigma 'destinado a etratar sua suposta falta de discip ma para o tra o e a seriedade intelectual, seu descaso com a saúde, a higi�ne e a decência, seu gosto pela intoxicação, pelas festas, �elas músicas e danças ritmadas e sensuais, seu· estilo rebelde e irreverente, seu desrespeito à autoridade e à ordem instituída _mas, acima de tudo, sua renúncia aos princípios cristãos e aos mais altos ideais da

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civilização, incorporados e representados sobremaneira pela tradição cultural cristã, racionalista e iluminista francesa.

Nenhuma surpresa pois que esses renegados fossem os primeiros, nas situações de crise e tensão social, a pegar em armas e a convocar a população de Paris a levantar barricadas, resistindo ao Exército e à polícia, até o colapso da autoridade instituída. Foi isso que eles fizeram, e com sucesso, em J 820. 1830, 1848 e 1870 a 1871.

Como todos sabemos, graças sobretudo aos trabalhos de Walter Benjamin, a grande reforma de Paris, desencadeada por Luís Napoleão e encabeçada pelo barão de Haussmann, tinha como um de seus principais objetivos a reformulação da estrutura urbana de padrão medieval que caracterizava a área central da capital e que tanto facilitava a ação dos revolucionários. Em meio ao labirinto de ruas estreitas e sinuosas, a população tinha todas as facilidades para resistir às duas mais poderosas armas das autoridades: a artilharia e a cavalaria. Basrava arrancar as pedras do calçamento, levantar barricadas nos pontos de estrangulamento das ruelas, e com a população atacando as forças da polícia .e do Exército por cima das barricadas, do alto das casas assobradadas e dos telhados, resistir a quantas investidas fossem feitas. Haussmann foi categórico em suas intenções ao dizer que queria " ra av�ar . retas, p_orque balas de canhão não sabem dobrar esquinas"., Q sucesso total d · reforma urbana se rov to da Comun de Paris, em 1871. A latência revohJCinnária da cidade havia sido ne11tralizad e assim iria permanecer até maio de 1968.

A derrota da Comuna causou uma crise profunda nas expectativas de transformação democrática da sociedade européia. Seu efeito no seio da boemia 1 foi o de disseminar atitudes �stas de c�ti�i�mo, hedonismo e eva;� por um lado, mas, pelo outro, provocou a rad1caltzação e a d1fusao em grande escala das idéias anarquistas. Nesse novo contexto, típico do fim do século

-�na direção da criação de uma arte livre, transitando do romantismo para a atte moderna.

Os personagens fundamentais nessa m taçãQ_artística seriam o núcleo de artistas que se reuniram ao redor de /\.lfred Jarry e Pablo Pi�� . fazendo seu ponto de encontro na casa-estúdio do pintor espanhol, um barraco de madeira sem ·a m aquecimento, no subúrbio operário de Montmartre, batizada de ateau-Lavo· , pela sua parecença com as barcas-casebres das lavadeiras do rio Sena. Desse núcleo faziam parte, entre vários outros, além dos próprios ' Jarry e Picasso, Erik Satie, Guillaume Apollinaire, Max Jacob, Brague, Douanier Rousseau, André Salmon e Paul Eluard. O grupo constituía uma célula

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anarquista, a qual era constantemente vigiada e eventualmente invadida, com a prisão e o fichamento de seus integrantes.

Que eles merecessem ser presos e fichados não há a menor dúvida, ao menos pela implosão que causariam na tradição da arte ocidental, tal como definida desde o Renascimento. Para ter uma idéia de que tipo de gente era essa, basta dizer que Picasso e Apollinaire estiveram diretamente env.olvidos no caso cio roubo da Mona Lisa do useu o Louvre, além do furto ck dezena�.as.. peças de menor prestígio -�rtístico, as qua� quando perseguidos, tentar3_m jogar no rio Sena. Eles representavam uma atitude que hoje em dia seria

-�ismo cultural. Mas claro que, para eles, na condição de imigrantes pob�s, desempregados, p�os políticos e personae non gratae da sociedade francesa, aquele era o único modo de participar d�ogo_cultu.r.;tl, fazendo do confronto artístico um sucedâneo do conflito social.

Como levavam em geral uma vida miserável, sem emprego ou ocupação fixa e com muito tempo de sobra, dedicavam-se a todo tipo de � disponível pela cidade. Essa disponibilidade criaria as oport�nidades para o seu mais rico contato com a modernidade tecnoló�a, a qual se tornaria a fonte da revolução artística que acabariam promovendo. Eles freqüentavam os ctinemas, tidos então como um entretenimento grosseiro, feito para operários, Imigrantes e toda espécie de gente ignorante, analfabeta e rude. Entre os filmes, a preferência absoluta era pelas comédias dos irmãos Mélies. Freqüentavam também os ��e diversões elétricas, o mercados de pulgas e fe' de objetos trazidos das � o Trocadero, as grandes exposições internacionais, em especial os avilhões �. A conseqüência de sua aplicação essas experiências às próprias pesquisas estéticas foi dramática.

Alfred Jarry desenvolveu uma linguagem dramatúrgica cujo principal objetivo, como ele mesmo revelou em seu artigo sobre o Pére Ubu, era

_:����_:'l:-���". Ele atacava todas e cada Ü-m;das convenções do teatro do século XIX: a lei das três unidades, a separação de estilos, o espaço cênico unitário e perspect1v1sta, os estatutos da personagem, do ator, do autor, da arquitetura teatral, a separação entre palco e público, a idéia mesma de representação, assumindo como modelo o teatro de marionetes e demandando a participação direta do público na condução da ação dramática. Não sobrou pedra sobre pedra. Por isso, a única encenação que ele fez do Pére Ubu foi rapidamente inte�a, dando origem a um �um e à sua exclusão da � � - �, __ ........,,....,..,_.,...,.._.,,.,,,., • ..,,.-....-r--......, �.�.--.. cena teatral, o que muito contribuiu para· a sua mort_e_p- re_c_ o_c_e-. -�- ----

Ao inventar o cubismo em 1907, Picasso implodiu o espaço pictórico herdado do Renascimento. Suas imagens são baseadas num princípio dinâmico,

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pelo qual o objeto reproduzido é fragmentado em múltiplas perspectivas e situações descontínuas, sendo percebido simultaneamente de frente, pelos lados, por cima, por baixo, de dentro para fora, em relação ao espaço circunjacente, em relação ao observador, às convenções pictóri�as e aos vetores de um cotidiano fluido e acelerado. É a imaginação em estado de disponibilidade, maleabilidade e trânsito permanente, ao contrário das normas de fixidez da representação em perspectiva geométrica e linear. Da revolução cubista ele partirá para outra transformação drástica da representação plástica, com a introdução da colagem, rompendo com a separação entre espaço pictórico e espaço contingente, arte e realidade, artista e público. O readymade de Duchamp é a ratificação do ato pioneiro de apropriação do cotidiano pela arte, tal como deliberado por Picasso.

��· �-;---;-;-:-��_!_..--.;_:_:_�:.:.::..J"-=-=-:.:.:..:.;;:�:;;....:==-==,�-=-=-=�� A ollinaire, em colaboração com seu cole a franco-suí o e também �arquista Blaise Cendrars, ançou em 1913 a poesia cubista. Seu intuito foi ·aplicar à sintaxe verbal o mesmo potencial de deslocamento espaço-temporal introduzido pela câmara cinematográfica, dotando a imaginação lírica de um fluxo energético éapaz de articular simultaneamente o passado mitológico, o presente eletromecânico e o futuro em integração planetária. Nas palavras de Cendrars, seu objetivo não era mais a· poesia, mas a dança livre das palavras em

�pa�irnagens 5o�n�t�i� n�g�en;;..:..te� s�.������-Em breve esses ª!"tistas estariam �__9hras c;olet� em colaboração

com a tru e de dan s de Diagliev e os Balés Russos. Uma colaboração que entre ·a agração nmavera, de 19 13, e Para e, e 19 16, iria assinalar o ponto mrus alto da rêVoluçao desencadeada p;;TfM livre" e também o seu canto do cisde. Entre uma e outra, porém, interviria a cena da Grande Guerra, alterando drasticamente e de forma irreversível a atmosfera cultural francesa e européia�eio caminho da representação de Parade o público atacou os artistas 1 e o elenco, aos griros. de "boches imundos"", "quintas-colunas" e -«;pátridis", revelando o teor reacionário dos novos tempos. Sob a emergência 1ª guerra, não seriam mais tolera�ues à tradição cultural francesa, �siderados ações c���?_ear�-51§:.Ta·ra-moral -e-1Urmiih�1 .. _

�ãcT�-;;aT Os boêmios passaram a ser estigmatipdos ��o "boches"_ �como "judeus", numa evocação patética do perverso caso Dreyfuss. Alguns foram presos, outros alistados à força, outros fugiram. �i o fim da boemia, tal como existira ao longo do século XIX. Após a guerra, a palavra de comando em

�políticos e artísticos era o "retorno à ordem". Um dos efeitos do des�aratamento da bo.emia parisiense foi a sua difusão

em escala internacional. N�o foi surpresa portanto que o legado da arte livre reaparecesse na Suíça neutra, no projeto dadá de Zurique. Depois da guerra, o

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dadá procuraria aclimatar-se no solo parisiense e iria acabar se metamorfoseando no grupo surrealista. A intolerância instalada com o imperativo do "retorno à

ordem" cobraria um preço alto, porém. Parte do grupo surrealista se politizaria '-....:--no sentido de aderir a partidos institucionais de esquerd-;:-Qutros, hgados ao !vfuse� iriam buscar em culturas ditas "primitivas" a inspiração �a liberdade que assumiam como impossível no contexto europeu. Uma situação de impasse que iria perdurar até o fim da Segunda Guerrà Mundial.

A cena do pós-guerra foi tomada por uma série de novos grupos ârtísticos, de âmbito internacional, mas todos focados na polêmica parisiense e for�ulando seus manifestos em francês, tentando retomar o legado da arte livre, conforme a análise percuciente de Stewart Home (Assalto à _Ç�l�_, d�;m re · �os os trechos de manifestos citados a seguir. Um dos primeiros foi o , CoBr , uma dissidência do surrealismo, envolvendo artistas de mais de dez países. A tônica de sua crítica recaía sobre as condições da Europa sob o Plano Marshall e a propaganda do consumismo americano. Em seu�eles declaravam: ,

"A cultura de hoje, sendo individualista, subsátuiu a criação pela 'produção artísáca', e produziu assim sinais de trágica impotência ... Criar é sempre descobrir o que não se sabe ... É o nosso desejo que faz a revolução".

unft,-.� Letristas e em particular sua dissidência de esquerda, a ·�'.l.!JAl..lllLIAL---L.<l��"''-�;uia na mesma linha, clamando pela politização do

orma de libertar a imaginação, rompendo a letargia do

"Uma doença mental varreu o planeta: a banalização. Todos estãq__hi�otizados po�c:_

e bens de consumo - sistemas de limpeza, elevadores, banheiros, máquinas de lavar. -- - - --- _ _

Esse sistema de coisas, surgindo de urna luta contra a pobreza, deixou de atingir o seu objetivo máximo - a liberação do homem de preocupações materiais - e se tornou uma imagem obsessiva pendurada sobre o presente ... Torna-se essencial urna completa transformação espiritual, trazendo à ona de · uecidos e lev'!n_çlo � cabo uma extensiva ro a nda em

-favor de tais desi::'os"_

Ficam claros na posição da Internacional Letrista tanro seu compromisso com o legado libertário do..._surrealismo. 'l.Ínculado à força redemora do �'? realizado, como sua cdtica ao modo como esse legado foi corrompido num novo contexto em que o ���ia_erócica_du._ consumo, reformulada com��_exotismo. A falência

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política do projero surrealista requeria portanto a sua superação, tanto pelo caminho da crítica quanto da transformação estética.

"O programa surrealista, estabelecendo a soberania do desejo e da surpresa e propondo um novo uso da vida, é muito mais rico em possibilidades construtivas do que geralmente se pensa ... Mas a degeneração em espiritualismo de seus elementos originais ... nos obriga a procurar a negação do desenvolvimento da teoria surrealista na própria origem dessa teoria ... O erro está ... na idéia de riqueza infinita da imaginação inconsciente ... sua crença de que o inconsciente é a descoberta final da força vital, e o faro de haver revisado a história das idéias de acordo com isso e parado por aí. . . A descoberta do rodo do inconsciente foi uma surpresa, uma inovação, não uma lei para futuras surpresas e inovações."

Diante da constatação desse limite e dessa impotência do surrealismo em frente do novo quadro histórico, a JD.rernaciQmLLetrista propunha um novo 1-projeto estético, baseado no cotidiano, na cidade e n�onstrução de percursos e situações capazes de resgatar as fontes afetivas dos nexos comunitár1õs �dospela mvasao âo consumõ; do individualismo, da publicidade e da propaganda ideológica da Guerra Fri�. a vo fundamental dos letristas· era deslocar as atenÇões do espetáculo-mercadoria e refocá-las nos �onteúdos Jrnmanos e desejant�s_da própria sociedade, os quais palpitavam nos �os1 ��. nos enCQD_tros anônimos, n--ªL memórias af�s e nas �(}---\.l()lr�a o outro e o desconhecido. Ou seja, nexos e circunstâncias contingentes que nem tmnam potencial expositivo como arte, nem podiam ser transformados em mercadoria como as obras nas galerias. Era isso que eles chamavam de "construções de situações":

"A construção de situações começa na ruína do espetáculo moderno. É fácil visualizar a que ponto o próprio princípio do espetáculo-não-intervenção- está ligado à alienação do Velho Mundo. Ao contrário, os experimentos revolucionários e mais perri_�entes da culrura vêm tentando quebrar a identificação psicológica do espectador com o herói, para levá-lo à atividade, provocando sua capacidade de revolucionar sua própria vida".

Esse programa, baseado por um lado na crítica do espetáculo e pelo outro ões, daria origem ao que ficou conhecido como

Interilàcio 1 , nascido da fusão d_gs letristas com as membros c::.::.:::::::===-=.::.::�=�-:r"" -- r-- -

l'i7hmf'l'U:Af'er-!Tttl::rt1iãiac1onal por um.a Bauhaus !ma inista, em julho de 1957.

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manifesto. Essa linhagem radical .cem-se tornado mais bem-conhecida graças a r,crabalhos recentes como os de Anselm Jappe, Grei! Marcus, Simon Sadler e

Tom McDonough. Os fundamentos estéticos do Situacionismo se baseavam em três estratégias

criativas básicas: o détournement, a esicogeorrafiq_,,e o urbanismo unittfr� O détournem�":it implicava o reaproveitamento, a recontextuaifiação e a

ressignific� codõ e qualquer resíduo histórico de conotação cultural: textos, imagens, versos, símbolos, obras, projetos, jornais, fotos, prédios, códigos, relíquias, sucata, memórias, publicidade, máquinas, apetrechÕS: filmes, fetiches, lendas ou procl;tmas, fossem do passado ou do presente. A idéia era "anular a importância· da atribuição, da originalidade e da propriedade intelectual, batendo de frente com todas as convenções sociais, legais e culturais vigentes". ;

A sico eo a ta envolvia o resgate da memória afetiva dos recantos mais inexpressivos, relegados, temidos ou detestados de u�a cidade, tentando inverter a lógica de um urbanismo projetado como espaço espetacular e como a �ra, do poder, da riqueza e do privilégio.

.Q, ur:Ílo.JJjsmo unitário demandava que a cidade fosse pensada como um todo integrado, mas desco�tínuo, um estado fluido de coesão atravessado pela diversidade da presença humana, a variedade do desejo e a multiplicidade dos · contatos contingentes. Para isso cada dimensão do espaço urbano deveria ter

Jsua própria qualidade física, sensorial e afetiva, seu substrato de memórias e \ · • · sua potencialidade ara a multip 1caçao as s1tuaçoes. A . d . d � arquitetura evena portanto ser pensa a em unção esses m1crocontextos e o urbanismo deveria prover a articulação totalizante entre as várias dimensões dessa psicotopologia desorientadora.

Outras condições propostas como indispensáveis para o trabalho criativo pelos situacionistas eram a obrigação de que toda ra tivesse uma dimensão co e ela nunca fosse exposta ou apropriada pelos mecamsmos o mercado ou das instituições artísticas ofic1a1s, que seu es rute so po ena -se envolvendo �ngajãffieil�do público, que _cla não refo� mecanismos do laneºame centralizado e env�lvesse um sério esforço de :kscoloni�o tanto das menteSããspüp a1ses colonia iscas quanto dos colonizados. O Situacionismo, em suma, se propunha como uma denúncia da lógka....c.onsumista do espetáculo por meio de uma antiarte que era a� - ---...... tempo um esforço de descentraliza__ção, de �o e de descondicionamento �

r, .------

As bases intelectuais do Situacionismo são igualmente da maior importância.

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Os fundamentos da sua crítica da condição urbana provinham da obra e dos cursos de Henry Lefebvre, freqüentados por vários membros do grupo em

' Nanterre. C A crlncá social .. econômica e cultural

grup'; a ·-;5ocialismo ou Barbá ie em Lefort e Çornelius Castoriadis. '

..--e-sli7crítica anticoionialista �ra diretamente ligada à pessoa e à obra radical do eórico anticolo · lista Franz Fanon, autor do livro-manifesto Os Maldito

-· . ._...__�__.._... .... _, __ .... ' da Terra,

Sua busca dos liames perdidos com a cultura popular e a tradição oral da Europa medieval era baseada na_�a s..42 l=, tal como elaborados na obra de Huizing_a, em espec1a em seu Homo Ludens.

Vivendo em per�anente turbilhão político no contexto agitado dos anos 50 e 60, os sicuacionista�d�ram mais r.olêm.ÃgLqg�J;u-ªs, mas influenciaram 0 desenvolvimento de p�acicamente todos os grupos de artistas independentes desse período e posteriores, tais como o_J;ln�9 ly!ail Are, a Arte, ,Poy�r.;i., o Ne�,E.J?JL o. EuriJs. Suas obras teóricas de ma10r 1mpact�

genial tratado .1.J.ociedade do �spetác;:_l�.·-de.��t�ebo:_<l, •. � �okre �Pob,rg.fl rk:-Vida AcadêmL�..,,�-·-'"\ill . .. _ . . t� Am os oram publicados no fim de

� e :tfv'êiam um impacto decisivo para desenca�ea� a grande reb�liã� de maio de 1968, a qual por sua . vez concnbu1u para projeta-los i;icernacíõnáÍrriente. Tudo isso fez com que .em seu curto tempo de vida, do

fim dos anos 50 ao fim dos 60, a Internacional Situacionista se tornasse o mais

radical e influente movimento artístico da segunda metad� Seu

�eco até floje segue sendo seminal e pouco compreendido. Quanto às suas repercussões no Brasil do fim dos anos 60 e nos anos 70,

foram as mais candences que se pode imaginar. Sua influência é evidente no

cinema �Q:,1.0 • . em geral, mas sobretudo na obra c;!e Gkttber Rocha e em especial

"ho'';���anifesto A Estética da Fome, em que ele diz: �

"Ao observador europeu, os procedimentos criativos do mundo subdesenvolvido

interessam apenas à medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo; e este

primitivismo se apresenta híbrido, disfarçado sob as ta.r�ias heranças do

.m

.un�o

civilizado, malcompreendidas porque impostas pelo condicionamento colonialista ·

Daí sua proposta de uma estética da fome:

"Nós compreendemos essa fome que o europeu e o brasileiro,_em sua maiori�, �ão

compreendem. Para o europeu, ela é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro,

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é uma vergonha nacional ... Nós sabemos-nós que fizemos esses filmes feios e tristes, esses filmes gritados e desesperados, onde nem sempre é a razão que fala mais alto -que a fome não vai ser curada com os planejamentos de gabinete e que os remendos do technicolor não escondem os seus tumores mais graves. Assim, apenas uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode se superar qualitativamente: e a mais nobre manifestação da fome é a violência''.

Em grande sintonia com o cinema novo, se desenvolveram no Rio de Janeiro os núc�� Opi�e Propo�, atualizando as artes brasileiras em consonância com os grupos aui:'i'mi"fii"o"s europeus. Entre esses artistas se destacaram Rubens ºIdo Meireles, L ia Çlark e Hélio Oiticica. Cildo Meire es, por exemp o, imprimia s ogans antl��cadoria, anticoo"��"'; e antiimperialista nas garrafas de coca-cola que iam para a reciclagem e voltavam para o grande público ou palavras de ordem contra a ditadura nas notas de dinheiro em circulação. Mas o caso mais notável, um dos artistas mais completos e complexos de todo esse período, que vai do fim de _1960 até o fim de 1970, que morreu, infelizmente, exatamente em _ l 9S�foi �eni�l-!.�üsif��: A progressão da sua obra, das suas origens

·'no neoconcretis�o e daí em direção a uma arte que era cada vez mais o que ele mesmo definia como antiarte, a construção de sirnaç.Q..es abertas à_

intei:.v.enç.ã...Q....QQ,. ' ico e de d<:_acl�U.lf;!r!:;�P,�Ç<_J�!��-9i� não nas areas nobres ou centrais, mas nos morros e e s, ev ca quase que programaticamente a proposta situacionista. Eis como ele mesmo descreve o seu percurso surpreendente e radical, que culmi�ou na criaçã() de uma de suas obras seminais, a instalação denominada Tropicdlia:

"Tropicália é a primeiríssima tentativa, consciente, objetiva, de impor uma imagem obviamente 'brasileira' ao conteúdo atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional. Tudo começou com a formulação do Parangolé, em 1964, com toda a minha experiência com o samba, com a descolíêrta dos morros, da ;_rguitetura or ânica das favel ºocas (e' conseqüentemente outras, como as p� do Amazonas e principalmente as co ru óes espontâneas, an • · as, nci's grandes centros urbanos-a arte as d · · as â os l:i i� ( ... ) Ao entrar no P.enetravelprincipal, após passar por várias experiências táctil-sensoriais, abertas ao participador, que e.ria aí o se1:1 sentido imagético por meio delas, chega-se ao final do �de um receptor de 1V está em permanente func=ionamento: é a imagem que devora então o participadqr, pois é ela mais ativa que o seu criar sensorial( ... ) é a meu ver a obra mais antropofágica da arte brasileira".

Tropicdlia seria, portanto, o alçapão por meio do qual o artista predispõe o públic;o, com uma situação antiartística, a confrontar a lógica e o poder do

Configurando os Anos _70: a imaginação no poder e a arte nas ruas 23

espetáculo. Ela seria nesse sentido quase uma configuração experimental dos conceitos trabalhados por Guy Debord em sua obra teórica A sociedade do espetdculo.

Inspirado nessa obra, como se sabe, Caetano Ve�oso compôs a :a�osa c:'"nção Tropicdlia, que se tornou o manifesto do seu próprio grupo de musicos baianos, assim como uma outra, É proibido proibir, é uma colagem ou melhor um détoumernent dos slogans situacionistas que _cobriram� m!!!.�s �e ª.P!��am_�

�ãfücfõer"no maiõ tfa'iilierJaêfe em Paris, em 1�68 . •. .----Aqi�f;_-;�=�-;;;"sã;-r>a��7';�-��c��xto da Universidade de

São Paulo, sopraram também os ventos situacionistas, plantados que foram pelas mesmas fontes. Assim temos a notável influência das �eses c_!e Henr� Lefebvre na discussão da condição urbana pelo professor Milton Santos, a passagem marcante de Clau e Lefort eixan o ecos e discípu �� no

Departamento de Filosofia e, mais Sórrateiro, Ill:enos espetacular, o proselmsmo suave e bem-humorado do professo�elho, que foi a primeira pessoa de quem eu ouvi falar sobre Guy Debord e o_s sfti:'cionistas, sobre Franz Fanon,

e dava cursos inteiros sobre Huizinga e o .Homo Ludens. Não acredito que ele seja hoje muito conhecido, já que o professor Ruy

Coelho, apesar de ter sido um dos membros mais admirados da Faculdade de

Filosofia, estranhamente não deixou uma obra escrita. Isso se deve em gr��de

parte, no meu enténder atual, ao fato � que suas aulas eram exerc1ci�s

permanentes de criação de situações inusitadas e essa era a sua rande obra. não ostavam e se retiravam acintosamente de _suas classes,_�

. .azen o guestao e . ater a eorta em forte �t�á� de �L..

-�sim �orno também

1 Caetano foi vaiado, Glauber foi malhado e Omcica foi ridicularizado naqueles

tempos difíceis. Mas hoje, quando novamente as trevas ame:çam descer sobre

0 Brasil, acho que é nesse filão que estão as nossas _maior�s e melhores

inspirações,· sem dizer as nossas maiores esperanças. Muito obrigado.