concílio ecumênico vaticano ii - um debate a ser feito - mons. brunero gherardini

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Concílio Ecumênico Vaticano II UM DEBATE A SER FEITO Mons. Brunero Gherardini 1ª edição Brasília – DF 2011

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Page 1: Concílio Ecumênico Vaticano II - Um debate a ser feito - Mons. Brunero Gherardini

Concílio Ecumênico Vaticano II

UM DEBATE A SER FEITO

Mons. Brunero Gherardini

1ª ediçãoBrasília – DF

2011

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© 2011 Editora Pinuswww.editorapinus.com.br

Todos os direitos reservados.

Título Original:Concilio Ecumenico Vaticano II: um discorso da fare.

Tradução:Fernanda Silva Rando

Capa e diagramação:rosalis.com.br

Gherardini, Brunero. Concílio Ecumênico Vaticano II: um debatea ser feito / Mons. Brunero Gherardini; tradutora : Fernanda Silva Rando. ― 1. ed. ― Brasília :Ed. Pinus, 2011. 234. p. Tradução de: Concilio Ecumenico Vaticano II:un discorso da fare. ISBN 978-85-63176-07-3 1. Igreja Católica – Concílios. I. Rando, Fernanda Silva. III. Título. CDU 272/273-732.4VATII CDU 272/273-732.4”1962/1965”

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Lembro-vos, irmãos, o Evangelho que vos preguei, o qual recebestes, e no qual perseverais,

pelo qual sois também salvos, se o conservais como eu vo-lo preguei.

(1Cor 15, 1,1)

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ÍNDICE

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

O Concílio Ecumênico Vaticano II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29Uma rajada de ar fresco; O aggiornamento; O espírito do aggiornamento.

Valor e limites do Vaticano II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43O que o Vaticano II disse de si; Os apelos à Sagrada Escritura, aos Concílios, à Tradição; O Vaticano II, um Concílio pastoral.

Para uma hermenêutica do Vaticano II . . . . . . . . . . . . . 61Os critérios imanentistas; A hermenêutica teológica; A hermenêutica da continuidade.

Avaliação global . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81A tirania do relativo; No sentido do parcial e do experimental;E o ecumenismo?

A tradição no Vaticano II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99A tradição; A Tradição no Vaticano II; A Tradição, autoridade dogmático-normativa do Vaticano II?

Vaticano II e Liturgia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121Os princípios da reforma; Verdadeiramente inexplicável?; A reforma litúgica.

O grande problema da liberdade religiosa . . . . . . . . . . 145A declaração conciliar “Dignatis humanæ”; E antes?; E agora?

Ecumenismo ou sincretismo? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169A UR e seu conteúdo; O ecumenismo no contexto do Vaticano II; Continuidade ou ruptura?

A Igreja da Constituição dogmática LG . . . . . . . . . . . . . 197O documento; A importância da LG no conjuntodo Vaticano II; “Latet anguis in herba”.

Epílogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219

Súplica ao Santo Padre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

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Rev.mo e caro Professor,

Em um ato de grande cortesia, o senhor quis que eu lesse o conteúdo de sua elaborada meditação teológica sobre o Concílio Ecumênico Vaticano II antes mesmo de ser publicada pela editora “Casa Mariana Editrice”, com o título “Un Discorso da Fare” (“Um debate a ser feito”).

Eu a li com a mesma atenção com que recebi até o momento mui-tas de suas publicações, seus vários livros e artigos. O fio condutor de todos os seus escritos é sempre aquele que, liga por um enlace lógico e diria mesmo férreo, a Verdade revelada e a verdade meditada pelo in-telecto humano iluminado pela fé, amparado pela Teologia dos Padres da Igreja, que foi sistematizada pela grande Teologia escolástica, transmi-tida ao longo dos séculos; sustentado pelo Ensinamento do Magistério da Igreja, que nunca pode estar em contradição consigo próprio, que só pode ter um desenvolvimento homogêneo para nunca dizer “nova” (dou-trinas novas), mas no máximo “nove” (de uma maneira nova) (segundo a terminologia do “Commonitorium” de São Vicente de Lérins).

Dou-me conta de que com essas expressões me refiro a uma con-cepção filosófica e, por conseguinte, também teológica (na medida em que se dá atenção à Verdade revelada) que reconhece ao intelecto humano seu verdadeiro valor e sua verdadeira natureza, de forma a considerá-lo capaz de entender e aderir a uma verdade que é imutável, como imutável é o ser de todas as coisas, porque é do Ser Absoluto, daquele que É, que provem, por criação, a sua natureza. Porém, o in-telecto não cria a verdade, já que não cria o ser: o intelecto conhece a verdade a partir do momento que conhece a essência (o quid est) das coisas.

Fora desse ponto de vista e dessa Filosofia, qualquer discussão so-bre a imutabilidade da verdade e sobre a continuidade da adesão do intelecto à mesma idêntica verdade não poderia mais ser sustentada. A única opção seria aceitar uma mutabilidade contínua do que o inte-lecto elabora, exprime e cria.

Até mesmo um debate sobre o desenvolvimento homogêneo do dogma, ou do ensinamento da Igreja através dos séculos, no fluir do tempo e da história, não poderia mais ser realizado com a possibilida-de de ser compreendido, proposto e aceito. Seria necessário submeter

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a um “continuum fieri” no plano de uma “verdade” não mais conheci-da e reconhecida pelo intelecto, mas sim por ele elaborada com base no que parece e não no que é.

É claro que esse discurso não é dirigido ao senhor; mas tendo lido sua meditação teológica da qual se emerge a necessidade de uma verdadeira “hermenêutica da continuidade” no que diz respeito ao ensinamento do Vaticano II, não pude ficar sem expressar e compar-tilhar o meu pensamento.

Sua publicação mostra, com grande clareza de pensamento, que lhe é habitual, em virtude de sua perspicácia intelectual e também de sua lon-ga experiência como Docente, que na Igreja não pode existir senão a continuidade. O mero pensamento de que pudesse existir uma “revolu-ção, mudança radical, mutação substancial” quanto ao plano da verdade e da vida sobrenatural da Igreja já se distancia do são raciocínio teológico, visto que, como eu observei anteriormente, distancia-se também do são raciocínio filosófico. Não abala somente a fé, mas também a razão.

Fala-se necessariamente de continuidade “in substantialibus”, não “in accidentalibus”, de continuidade de tudo que “in sua materia” a Igreja sempre acreditou, professou, ensinou e viveu em sua verdadei-ra realidade no decorrer dos séculos, desde seu início que é divino e não humano, e que pode ser acolhido somente por um intelecto iluminado pela fé, sustentado por uma vontade movida pela Graça divina.

Seu debate, caro Professor, permite fazer uma profunda análise sobre o Vaticano II e sobre seu ensinamento, formulado em seus Do-cumentos, de tal maneira a levar a uma compreensão que mesmo em lugares onde a linguagem poderia conduzir a um pensamento sobre uma descontinuidade com o conteúdo teológico que se encontra em “toda a bagagem doutrinal da Igreja”, só pode existir um dizer “nove”, e não “nova”. E, portanto, não se pode submeter a “bagagem doutrinal da Igreja” a esta linguagem, mas ela deve ser interpretada de uma maneira que não se possa dizer “nova” a respeito da Tradição da Igreja.

Contudo, dada a natureza do Concílio e a diversidade de natureza de seus Documentos, penso que se possa sustentar o fato de que se de uma hermenêutica teológica Católica emergisse que algumas passa-gens, ou algumas declarações ou asserções do Concílio, não dizem apenas “nove”, mas também “nova”, a respeito da Tradição perene da Igreja, não se estaria diante de um desenvolvimento homogêneo

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do Magistério: neste caso haveria um ensinamento que não é irre-formável e, certamente, não infalível.

Conforta-me muito ter lido recentemente o discurso do Santo Pa-dre à Plenária da Congregação para o Clero1. Ao falar sobre a forma-ção dos Sacerdotes, ele afirma: “A missão tem suas raízes, de maneira especial, em uma boa formação, desenvolvida em comunhão com a ininterrupta Tradição eclesial, sem rupturas nem tentações de des-continuidade. Nesse sentido, é importante incentivar os Sacerdotes, principalmente as jovens gerações, a receberem corretamente os tex-tos do Concílio Ecumênico Vaticano II, interpretados à luz de toda a bagagem doutrinal da Igreja”.

Diante de tal pensamento do Santo Padre, é cômodo pensar que ele considerará positivamente a Súplica que, na conclusão de sua me-ditação teológica sobre o Vaticano II, o seu ânimo de devoto filho da Igreja quis formular ao Sucessor de Pedro, ao pedir do nível mais alto do Magistério “um grande e possivelmente definitivo esclarecimento sobre o último Concílio em todos os seus aspectos e conteúdos”, que trate da sua verdadeira natureza, que indique o que significa que ele tenha desejado se propor como um Concílio pastoral. Qual é, então, seu valor dogmático? Todos os seus documentos têm o mesmo valor, ou não? Todas as expressões apresentadas neles têm a mesma força ou não? Seu ensinamento é inteiramente irreformável?

É verdade que algumas das respostas a essas questões podem já ser deduzidas por meio de seu trabalho e deveriam poder ser esclarecidas com base nos constantes critérios de juízo teológico que sempre fo-ram seguidos pela Igreja; porém, ninguém pode negar que em muitas produções “teológicas” pós-conciliares a confusão a esse respeito seja frequente e grande, como enorme é a incerteza doutrinal e pastoral.

Por isso, permita-me, caro Professor e que me permita principal-mente o Santo Padre, unir-me “toto corde” a essa Súplica, enquanto formulo o auspício de que sua publicação suscite muita atenção e re-flexão dentro da Igreja, onde quer que se queira fazer uma verdadeira teologia, e que seja acolhida com o respeito devido a um trabalho

1 Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2009/march/documents/hf_ben-xvi_spe_20090316_plenaria-clero_po.html. Acesso em 17/10/11.

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conduzido com tal rigor e certamente com grande amor pela Igreja, por sua Tradição perene, por seu Magistério, para o fiel conhecimento e transmissão do qual o senhor trabalhou durante a sua longa ativida-de como Docente da Sagrada Teologia.

Albenga, 19 de março de 2009.Solenidade de São José, Patrono da Igreja Universal

Mario Oliveri, Bispo.

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O Concílio Ecumênico Vaticano II

Premissa ao volume do Prof . Mons . Brunero Gherardini

Desejo antes de tudo exprimir minha apreciação com relação à articulação temática que caracteriza esse estudo de Mons. Brunero Gherardini sobre os textos do Concílio Vaticano II. Essa iniciativa ga-nha um grande valor especialmente no contexto hodierno, marcado por um debate sobre o significado dos ensinamentos conciliares, prin-cipalmente à luz da chave hermenêutica proposta e valorizada pelo Papa Bento XVI, a da continuidade de tais ensinamentos dentro da Tradição eclesial. Basta rememorar aqui uma passagem do célebre discurso do Papa na Cúria Romana no dia 22 de dezembro de 2005: “Por que a recepção do Concílio, em grandes partes da Igreja, até ago-ra teve lugar de modo tão difícil? Pois bem, tudo depende da justa interpretação do Concílio ou - como diríamos hoje - da sua correta hermenêutica, da justa chave de leitura e de aplicação. Os problemas de recepção derivaram do fato de que duas hermenêuticas contrárias se embateram e disputaram entre si. Uma causou confusão, a outra, silenciosamente, mas de modo cada vez mais visível, produziu frutos. Por um lado, existe uma interpretação que gostaria de definir “herme-nêutica da descontinuidade e da ruptura”; não raro, ela pode valer-se da simpatia dos mass media e também de uma parte da teologia mo-derna. Por outro lado, há a “hermenêutica da reforma”, da renovação na continuidade do único sujeito-Igreja, que o Senhor nos concedeu; é um sujeito que cresce no tempo e se desenvolve, permanecendo, po-rém, sempre o mesmo, único sujeito do Povo de Deus a caminho”.

A história da Igreja é profundamente marcada por vinte e um Concílios. Por essa razão o Vaticano II deve ser visto como parte dessa história e não como algo totalmente novo. E temos total consciência de que cada um desses Concílios procurou interpretar, guiado pelo Espírito Santo, a doutrina e o ensinamento moral e disciplinar da Igre-ja em vários contextos, levando assim ao âmago da Tradição eclesial um rico patrimônio teológico-espiritual. Cremos que por meio deles o Senhor, arquiteto da história, continua a inspirar a vida humana em um processo de diálogo entre a sua palavra revelada e os contextos político-sociais, mutáveis ao longo do tempo, provocando uma série

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de novos desafios e respostas que tornam dinâmica e rica a própria revelação divina. Por isso, todos os Concílios se tornam um momento de pausa e de reflexão com base na rica herança doutrinal da Igreja e na abertura de novas vias de expressão das verdades reveladas. Esse processo interpretativo é uma impagável riqueza, especialmente em relação às leituras limitadas ou parciais, como por exemplo, a consi-deração da revelação divina em uma perspectiva que leva em conta só a Escritura. Aliás, alguns teólogos protestantes apreciaram essa visão católica da revelação de Deus como uma posição que não limita a li-berdade de ação do Senhor e que reverencia o processo de contínua encarnação divina na vida humana.

Por esse motivo o Concílio Vaticano II se torna um ponto de che-gada e também de partida, sem necessariamente considerá-lo como uma ruptura com a tradição precedente. Avaliar a história dos Concí-lios e sua contribuição ao processo de revelação contínua do Senhor à Igreja se trata de um inegável enriquecimento para nós. Por isso todas as reflexões aprofundadas sobre os documentos do Vaticano II são de suma utilidade e importância.

Apesar de todas as críticas, não há dúvidas de que o Vaticano II tenha sido uma verdadeira graça para toda a Igreja. Da mesma ma-neira que é natural que após cada Concílio – atual ou antigo – haja abalos mais ou menos fortes, assim como não permaneçam inaltera-dos todos os seus resultados, é normal também que tais abalos estejam destinados a, posteriormente, acalmarem-se por meio de um olhar mais pacífico e sereno em relação ao que aconteceu. Agora estamos vivenciando essa fase de ajuste em relação à recepção do Vaticano II. E somos, por isso, verdadeiramente gratos ao Papa Bento XVI pela contribuição que ele oferece com a finalidade de ler com um olhar objetivo os grandes ensinamentos desse último Concílio.

Quero congratular o Autor dessa obra. Desejo que seja uma con-tribuição que favoreça a serena apreciação desse evento tão significa-tivo para nós, à luz de tudo que constitui a herança da Igreja nos dois milênios de sua história.

Albert Malcolm Ranjith.Arcebispo Secretário da Congregação para o Culto Divino e a

Disciplina dos Sacramentos.

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Concílio Ecumênico Vaticano II

UM DEBATE A SER FEITO

Prefácio

Sim, um debate a ser feito, pois ainda não o foi. Ou não com-pletamente.Falou-se muito e mesmo demais sobre o último Concílio. Mas

não, ou pelo menos não sempre nem principalmente, de forma cor-reta. Até hoje deu-se vida somente a uma grandiosa e ininterrupta celebração de tal acontecimento. Desde aquela realizada nos “postos avançados” e nas “retaguardas” do ministério apostólico, àquela, sole-ne, pomposa e revestida de caráter oficial, das cátedras universitárias ou, em determinadas ocasiões, das comemorações, dos encontros, das mesas-redondas e das publicações prestigiosas. Não podia faltar a voz dos repetidores: a “magna comitante caterva” de quem ressoa sempre, acompanha sempre, conforma-se sempre.

De fato, a Santa Sé e o Episcopado católico nunca se cansaram de reportar-se aos documentos conciliares tanto em circunstâncias de particular relevância, quanto na cotidianidade do serviço pastoral, com uma insistência tal que legitima a impressão, aliás a suspeita, de uma intenção exclusivista. “Pôr o Concílio em prática” foi e é a palavra de ordem. Em certos momentos pareceu efetivamente que tudo tives-se tido início com o Vaticano II e que os mais de vinte séculos anterio-res da história eclesiástica tivessem sido extintos. Sendo, no entanto, impossível desprezar os monumentos inelimináveis de uma história mais que bimilenária, reservava-se a eles o direito apenas de uma menção passageira, como se isso fosse suficiente para admitir a cons-tante e perene atualidade da Igreja. Quase nunca eles foram intencio-nalmente destacados; quase nunca as discussões e as análises sobre o assunto evidenciaram a base que o Magistério Eclesiástico preceden-te deu ao Vaticano II. Encontro uma louvável exceção no ensaio do Ex.mo e Rev.mo Mons. Agostino Marchetto (Chiesa e Papato nella storia

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e nel diritto. 25 anni di studi critici, Libreria Editrice Vaticana 2002; e principalmente Il Concilio Ecumenico Vaticano II. Contrappunto per la sua storia, Libreria Editrice Vaticana 2005): “rara”, aliás, “rarissima avis”, especialmente porque não se compara a nenhuma das poucas obras que, com características e enfoques diferentes, haviam-no precedido. Refiro--me particularmente ao Getsemani (Roma 1980) do Em.mo Card. Giuse-ppe Siri, ao conhecido Jota unum (Nápoles 1985) de Romano Amerio e também às obras de um teólogo e filólogo de reconhecido valor, Johannes Dörmann, que fazem mais alusão a João Paulo II que propriamente ao último Concílio Ecumênico.

Na realidade, sobre o Magistério anterior, com uma espantosa superficialidade, foi estendido um véu – e por vezes um manto fune-rário – que impede o observador de evidenciar o passado e identificar nele a Tradição que é constitutiva da Igreja e que é a linha mestra do Cristianismo. Existia – devia existir – somente o Concílio Ecu-mênico Vaticano II. E apenas uma maneira prática (mesmo se não formalmente determinada) de analisá-lo, o que retirava do panora-ma qualquer outro ponto de referência. Essa não foi – gostaria de dizer obviamente, mas me limito aos discursos e talvez também aos propósitos – a conclusão do Encontro Internacional para A Atualização do Concílio Ecumênico Vaticano II, realizado no Vaticano no início de 2000, o qual considerou “decididamente equivocada a concepção de que o Concílio quisesse romper os vínculos com o passado ao invés de dedicar-se à Fé de sempre”. Mas também nesse caso, não se foi além de uma declamação puramente teórica.

A intelligentia católica deu e está dando um certificado de credibi-lidade à ininterrupta celebração em relação à cotidianidade pastoral. As Universidades e os centros acadêmicos dirigidos por Autoridades eclesiásticas ou inspirados nos seus preceitos, a imprensa católica em toda a sua extensão operativa, as publicações oficiais, as iniciativas dos tipos mais variados, que podem ser tanto interdependentes e interli-gadas, quanto sem ligação entre si, todo, enfim, o complexo mundo católico, todas as suas legítimas estruturas têm favorecido uma cele-bração sem pausa e sem fim do Vaticano II. Surgiu uma vulgata inter-pretativa que, privada muitas vezes de uma elaboração crítica, deu e impôs o tom à interpretação vigente.

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Que não nos engane, pelo impressionante aparato no qual a obra se apóia, a Storia del Concilio Vaticano II (5 voll. a.c. de Giuseppe Al-berigo, Il Mulino-Bologna 1995-2001): uma construção monumental, sim, e não isenta da devida atenção às fontes, que ela, porém, interpre-ta com base em uma única ideia: o Concílio-evento, com a intenção de superar o conflito entre a Igreja pré-conciliar e a modernidade. Como se dissesse que toda a diversificada cultura moderna tem agora seu lugar na Igreja católica, cuja modernização teve início com o Vaticano II. Com ele, aliás, iniciou-se uma nova Igreja.

A máquina celebrativa, à qual me referia, deixou a sua marca principalmente em algumas festividades: no décimo aniversário do Concílio, no seu vigésimo quinto, nos aniversários de cada um dos documentos conciliares e em várias outras circunstâncias, ainda que sem ligação particular com o “evento” ocorrido de 1962 a 1965. Na realidade, qualquer ocasião servia para dizer e repetir em todas as to-nalidades e em todas as línguas o fato de que se tratou de um Concílio incomparável aos outros, único por sua originalidade, pelas suas dimen-sões e pela eficácia da sua reforma eclesiástica, pelos temas abordados, pelo grande número (2.540) de Padres conciliares, pela marca deixada pela sua passagem, pela influência mundial e epocal da sua mensagem.

São quase cinquenta anos que, com frequência cada vez maior, tudo isso vem sendo repetido em todos os níveis. O hábito com que se diz e escuta isso explica a falta de páthos2 que já circunda a lembran-ça do acontecimento. O falar sobre esse assunto tornou-se um rito, no sentido pejorativo com que várias pessoas, atualmente, usam esse termo. E quem fala sobre ele dá frequentemente a nítida impressão de estar recitando um texto decorado.

O rito, exatamente no sentido aludido acima, acaba sempre em uma fumosa e grandiosa incensação: pode-se dizer com “três ductos duplos”3. Dominante não é o desejo de entender para se fazer enten-der de acordo com uma abordagem crítico-analítica dos textos, mas o que domina é o já monótono refrão de fidelidade ao Concílio, do

2 Páthos: palavra grega que significa paixão, sentimento. (N.d.e.).3 A incensação com “três ductos duplos” é a incensação litúrgica

devida ao Santíssimo Sacramento e ao sacerdote, que representa Nosso Senhor Jesus Cristo de maneira íntima. (N.d.e.).

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apelo a seu ensinamento e para aplicá-lo e colocar em prática as suas reformas. Muitas vezes não há nem mesmo a preocupação de especifi-cá-lo como Vaticano II: é o Concílio por antonomásia. E a incensação encontra aqui a sua justificativa.

Compreendo o leitor que esteja com dificuldade em encontrar um nexo entre o Vaticano II e a incensação. O ato de incensar faz parte do cerimonial litúrgico e não parece ser atribuível, pelo menos di-retamente, ao âmbito conciliar, apesar de na ocasião ter sido usado bastante incenso durante as liturgias que precediam ou que acompa-nhavam os trabalhos. Não se incensava, porém, o Concílio; mas sim o altar, o lecionário e Aquele em nome do qual o Concílio se celebrava. Portanto, quando falo em incensação em relação ao Vaticano II, dou à palavra um sentido metafórico. Transfiro por analogia e aplico ao Va-ticano II um sentido que se relaciona propriamente com o ato litúrgico e que diz respeito somente a ele. Faço, em suma, uma transferência de sentido, de uma maneira extensiva e analógica: do rito ao qual aquele sentido pertence, ao Vaticano II que não é um rito. E, como no rito, pessoas (celebrante, assistentes, povo de Deus) e coisas (altar, cálice, oferendas) são incensadas pela dignidade que revestem e pela função que exercem, dessa mesma forma, incensa-se o Vaticano II pela im-portância que lhe é atribuída e pela eficiência das suas decisões.

Não quero nem pensar em uma incensação bajuladora, mesmo não podendo excluir completamente essa intenção de alguns incensa-dores/bajuladores. Incensadores que talvez não o façam com prazer, mas com muito interesse. A carreira vale muito bem uma incensação!

Isso me leva a refletir sobre outro argumento. Todos os dias, em contextos não eclesiais, é possível presenciar o uso impróprio, não so-mente analógico, mas também depreciativo, de termos pertences ao vocabulário sagrado. Além da referência ao rito, há também referên-cia recorrente à palavra muito próxima liturgia (ou também ladainha) . É uma linguagem justificada pela repetição, às vezes de forma gratuita, outras vezes com um tom escarnecedor. A repetição é, efetivamente, ago-ra uma récita: e repetitiva é a reiterada menção ao Vaticano II, o fato de celebrar os seus méritos acriticamente, de conferir-lhe uma importância além dos limites do devido, de declarar sua excelência incomparável a todos os outros Concílios, de transformá-lo em um prontuário de receitas para a solução de problemas de todas as ordens e de todos os tipos.

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Parece que, depois de quase meio século de tal linguagem, de in-censações de “três ductos duplos”, de celebrações intempestivas, não solicitadas e contraproducentes, tenha finalmente chegado o momen-to de virar a página. Tenho a impressão, aliás, de que “acabadas as festas no templo” e concluída a fase exaltante, há atualmente a necessi-dade de uma reflexão histórico-crítica sobre os textos conciliares que investigue as ligações – caso existam efetivamente – com a continui-dade da Tradição católica. Julgo tudo isso como um dos deveres mais urgentes do Magistério eclesiástico, dos bispos e dos centros culturais católicos para o bem da Igreja; une-se a esse dever o direito do povo de Deus de que lhe seja explicitado com clareza e objetividade o que foi de fato o Vaticano II no plano histórico, ético e dogmático. Tal direito decorre da Fé e do autêntico testemunho cristão.

Percebe-se também, nas entrelinhas ou em denúncias explícitas, mesmo em algumas respeitáveis intervenções, que nem tudo, quanto a isso, seja límpido e transparente como a água. Ninguém pode ter es-quecido a angústia e quase assombro com que Paulo VI, de venerada memória, revelou em 1972, apenas dez anos após o início do Vaticano II, a presença contaminadora da “fumaça de satanás” dentro da Igreja. Respeitável foi também a citação do então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e atual Pontífice f.r., que denunciou em um famoso livro-entrevista – Rapporto sulla Fede, ed. paoline, Cinisello Balsamo/Milano 1985 (19983) – a prejudicial presença de um espírito anti: presença do “inimicus homo” e da discórdia por ele semeada a mancheia nos sulcos da Igreja conciliar e pós-conciliar para dificul-tar o discernimento segundo a Fé e dissolvê-lo no possibilismo, no relativismo, no imanentismo do pensamento moderno. Pouco antes de ocupar a cadeira de Pedro, foi ainda o cardeal Ratzinger, no me-morável e dramático texto da “Via Crucis” da Sexta-Feira Santa de 2005, que falou sobre “a sujeira... na Igreja, mesmo entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a” Deus, sobre “so-berba... autossuficiência... e falta de Fé”, e concluiu com uma prece de arrepiar: “Senhor, muitas vezes a vossa Igreja parece um barco prestes a afundar, um barco cheio de água por todas as partes” (J. RATZINGER, Via Crucis, Tip. Vatic. 2005, p. 63, 65). O seu antecessor não disse me-nos quando, apesar de todo seu otimismo tipicamente “conciliar”, havia

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sido obrigado a constatar que o catolicismo europeu está em um esta-do de “apostasia silenciosa”.

Diante do espírito anti não se ergueu o antemuro da verdade re-velada: o quadro das certezas indiscutíveis foi abandonado, e o leque do discutível foi aberto. A quem o propunha como a quintessência da mensagem cristã não se respondeu com a devida firmeza: as pou-cas vezes em que se tentou tomar essa iniciativa (penso nos casos de Schillebeeckx, Küng, Segundo, Boff e de alguns outros), não faltou a intimidação de alguns eminentíssimos protetores, e as palavras, tar-diamente pronunciadas, pareciam ter medo de si mesmas. O mal se arraigou muito mais velozmente e profundamente do que se podia prever, e a razão parecia estar em estado de catalepsia, não por causa de uma perversa vontade enfeitiçada por encontrar satisfações lucife-rinas no minar o tesouro das verdades reveladas, mas pela levianda-de com que não se cuidou do terreno minado. Fecharam-se os olhos diante do discutível, arregalando-os, no entanto, perante o pluralismo, o múltiplo, o diferente, o contraditório come se se tratasse de enri-quecimentos providenciais. Essa operação, em ato já há vários anos, foi completamente acolhida na aula conciliar. E de lá extravasou nos anos seguintes.

Não quero dizer com isso que os documentos do Vaticano II te-nham sido intencionalmente realizados como um cavalo de Tróia para destruir a fortaleza da Fé e da sã teologia. Referi-me acima à levian-dade; poderia acrescentar o otimismo irreflexivo e infundado, a in-versão de perspectiva (não mais do alto para baixo, mas o contrário), a confiança sem limites no homem, o ofuscamento do sagrado, o ire-nismo falso e perigoso, o bom-mocismo, a dessacralização da criatura e a contemporânea adoração de alguns aspectos dela – a liberdade acima de qualquer outro. O Cavalo de Tróia não foi necessariamente o conjunto dos documentos conciliares, mas a ideia que alguns gru-pos de pressão conseguiram infiltrar na aula conciliar, determinando o progressivo amadurecer da linha que culminou depois na cultura pós-conciliar. Portanto, a “culpa” dos Padres conciliares, pelo menos na sua grande maioria, não foi aquela formal, com “plena advertência e pleno consentimento deliberado”, mas sim material, pela “não aten-ção”, pela leviandade, por um otimismo superficial e exagerado, pela boa fé subjetiva. Talvez, pelo menos em alguns casos – sempre, porém,

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a serem confirmados – tenha havido até mesmo negligência e falta de controle.

Uma afirmação desse tipo, se por um lado isenta os Padres da res-ponsabilidade direta e prevista dos subsequentes desvios, por outro não pode colocá-los todos em um idêntico plano de boa fé e boa intenção. O espírito antirromano de alguns grupos se disfarçou de anticurialismo, e isso se estendeu à maior parte dos Padres conciliares, ainda que de formas variadas e com medidas diferentes. Todos, porém, contribu-íram para silenciar a Cúria romana, para diminuir o prestígio dela, para denunciar seus defeitos, os bloqueios e os atrasos dela em relação às expectativas dos novos tempos; todos, por esse motivo, são corres-ponsáveis – no sentido antes explicado – pela “revolução copernica-na” operada pelo Vaticano II e pelas suas imediatas aplicações.

Isso não significa que a Cúria, enquanto tal, detivesse – ou dete-nha – o depósito da verdade e a totalidade dos poderes; ela é, no en-tanto, a “longa manus”4 do Papa, e assim todas as atitudes anticuriais são de alguma maneira também antipapais. Houve uma confirmação disso desde o início dos trabalhos conciliares não só com a nítida recusa dos esquemas preparados pela comissão antepreparatória, na qual os homens da Cúria detinham posições de preeminência, mas também com sucessivas disposições anticuriais e com uma “política” que, sem atingir diretamente as prerrogativas papais, diminuía o peso delas sobre o episcopado e sobre a própria Igreja. Chamaram-na então de “política da alcachofra”: cai uma folha hoje, cai uma folha amanhã. Não que da alcachofra permanecesse somente o talo, mas porque se tornava disponível o espaço em que cada componente eclesial – todo o complexo dos “ordenados”, o leigo, a mulher, o povo de Deus – sain-do da segregação, estava mais presente na vida e no próprio governo da Igreja. Talvez pesasse sobre a Cúria a responsabilidade de alguma intemperança; mas não com o seu punitivo silêncio seriam resolvidos os problemas dos quais ninguém tem o conhecimento que possui um membro da Cúria , especialmente os de alto nível.

A lógica pós-conciliar levou à reforma da Cúria, reforma inspi-rada pelo ideal de exautoração. Recordo-me de que o “Leit-Motiv”

4 A Cúria Romana é a longa manus do Papa enquanto ela é o seu principal instrumento de governo. (N.d.e.).

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do momento era o desejo de que ela se tornasse um ponto de encon-tro – mas isto se dizia em francês: um “carrefour” – de experiências eclesiais, a ser considerado à luz do Vaticano II. De 1965 em diante o Vaticano II ficou, assim, com a parte do leão: entrou, determinante, em todos os problemas, ousaria dizer em todos os setores, indepen-dentemente do valor de seus documentos, citados, queridos e impos-tos unicamente porque eram a expressão do Vaticano II. Um exemplo desse comportamento – não o único, pois de modo próprio cada Di-castério se dirigiu pelo mesmo caminho – pode ser evidenciado na atividade do ex-Santo Ofício, rebatizado pela reforma com o nome de Congregação para a Doutrina da Fé, que há pouco tempo reuniu suas contribuições pós-conciliares em um belo volume: Documenta inde a Concilio Vaticano Secundo expleto edita (1966-2005, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 2006). O título é por si próprio sintomático e o conteúdo é a comprovação disso: não existe contribuição que não se baseie no Vaticano II. E a consequência é uma colossal tautologia.

Ainda com relação a isso, em 10 de julho de 2007 a acima referida Congregação publicou um documento que suscitou as mais contras-tantes reações: de entusiasmo e de decepção. A Congregação respon-dia com ele a algumas perguntas relacionadas às principais dúvidas que hoje atormentam a consciência católica e aos problemas que des-de o imediato pós-concílio, serpearam livremente pela Igreja. O docu-mento, assinado pelo Prefeito da Congregação e contra-assinado pelo seu Secretário, apresenta um evidente erro de método: responde com o Vaticano II – e só com ele – aos insurgentes quesitos referentes ao Vaticano II. Apóia-se em LG 8/b no que toca à questão do “subsistit in” e encontra a sua solução com as mesmas palavras do Concílio; e só considerando essas palavras declara que “a Igreja de Cristo é presen-te e operante nas Igrejas e nas Comunidades eclesiais não ainda em plena comunhão com a Igreja católica, graças aos (múltiplos) elemen-tos de santificação e de verdade presentes nelas”. Vem de certa forma confirmada a impressão de que a Igreja Católica e a Igreja de Cristo não são uma única e idêntica realidade; entre uma e outra, de fato, existiriam outras Igrejas e outras Comunidades eclesiais que, embo-ra não estejam em plena comunhão com Roma, são afirmadas como fontes puras de graça, de verdade e de salvação por uma capacidade intrínseca delas, devida aos múltiplos elementos, acima recordados,

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de santificação e de verdade. Isso foi confirmado posteriormente com uma citação de UR 3/d: “As Igrejas e Comunidades separadas, embora creiamos que tenham defeitos, de forma alguma estão despojadas de sentido e de significação no mistério da salvação. Pois o Espírito de Cristo não recusa servir-se delas como de meios de salvação”. Também nas respostas seguintes, para comprovar que as cristandades orientais e ocidentais separadas de Roma merecem o título de Igrejas e de Igre-jas irmãs, a base demonstrativa é tirada, implicitamente, quando não explicitamente, de LG e UR. E me calo sobre o fato de o documento reconhecer o pluralismo das Igrejas, apesar de ter sido promulgado para esclarecer a questão da unicidade salvífica da Igreja Católica. Re-sumindo, e aqui está o defeito de fundo, o problema foi resolvido com o problema. Um absurdo.

Deixo bem claro. O que eu disse e o que tenho intenção de dizer não derivam nem de uma preconcebida aversão, nem de desestima quanto ao Vaticano II. Não serei eu a falar em “brigandage du Vati-can II” (latrocínio do Vaticano II), nem me perguntarei se ele possa ou deva ser posto em discussão – ou até mesmo banido – por causa de suas irregularidades ou de sua acrítica adaptação ao pensamento moderno, como foi sustentado por alguém (AA.VV., Penser Vatican II –Quarante ans après, ed. Courrier de Rome, Roma 2004). Ninguém dever ser tão cego ao ponto de não ver, nem tão prevenido para negar o caráter extraordinário do último Concílio Ecumênico, as suas di-mensões nunca antes atingidas, a sua vontade de responder não a um, mas a todos os problemas mais cruciais que o mundo contemporâneo põe à Igreja. Até a sua espetacularidade deixou marcas.

E tem mais. Um cristão, principalmente se padre e ainda mais se teólogo, não pode considerar um Concílio ecumênico segundo os mesmo parâmetros de todos os outros acontecimentos históricos. Um Concílio, na realidade, destaca-se das sobreposições e dos entrecru-zamentos dos acontecimentos sócio-políticos e transcende todos em razão da sua origem remota e do seu alento sobrenatural: o Espírito Santo o promove e o guia. Isso não exclui o fato de a ação do Espírito Santo poder encontrar resistência, formal ou material, na liberdade dos homens que dão vida ao momento conciliar. Dessa possibilidade surge o grande risco que se projeta no pano de fundo do Concílio – e de cada Concílio enquanto tal – isto é, a possibilidade mesma de seu

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insucesso; alguém foi além e questionou se um Concílio ecumênico pode cometer erros relativos à Fé e à Moral. Os pareceres são diver-gentes, mas se deveria univocamente concordar ao menos com a possí-vel prevalência da perversa liberdade humana sobre a ação do Espírito Santo. Minha opinião é que isso possa de fato acontecer, mas no exato momento em que acontece, o Concílio ecumênico deixa de ser tal.

Todavia, ainda que o erro em matéria de Fé e Moral deva ser formalmente excluso completamente das possibilidades de um Con-cílio autêntico, ninguém por princípio pode excluir uma formulação menos feliz e mesmo não totalmente de acordo com aquelas da vene-rável Tradição eclesiástica. Isso se verifica quando se experimentam novos caminhos, em virtude da sedução da sereia das novidades e do progresso.

Deve, então, considerar-se devidamente a natureza de cada um dos Concílios ecumênicos juntamente com suas finalidades imedia-tas. Se a todos os Concílios se deve respeito religioso e adesão genero-sa, não se segue que cada um tenha uma mesma eficácia vinculante. A de um Concílio rigorosamente dogmático nem é discutida: depende da sua infalibilidade e imutabilidade e vincula, portanto, toda a Igreja em cada componente seu. É da mesma forma evidente a ausência de tal eficácia em um Concílio não rigorosamente dogmático. Aqueles estritamente disciplinares, reformistas, ou ligados às circunstâncias da época – pode pensar-se nas Cruzadas – podem também referir-se a indiscutíveis dogmas de fé, mas não por isso elevam-se à dignidade de Concílios dogmáticos. Quando, então, um Concílio inclue-se a si mesmo, o seu conteúdo e a razão de seus documentos na categoria da pastoralidade, autoqualificando-se como pastoral, exclui dessa manei-ra toda intenção definitória. Ele, por isso, não pode pleitear a quali-ficação de dogmático, e ninguém pode lhe conferir esse título. Nem mesmo se, no seu interior, ressoe algum apelo aos dogmas do passado e desenvolva um discurso teológico. Teológico não é necessariamente sinônimo de dogmático.

É essa a “ratio” que guiou, do início ao fim, o Vaticano II. Quem, ao mencioná-lo, equipara-o ao Concílio de Trento e até mesmo ao Vaticano I, dando-lhe uma força normativa e vinculante que ele por si próprio não possui, comete um ilícito e, em última análise, não respeita o Concílio. Se, além disso, a exaltação do Concílio tiver por objeto

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uma reinterpretação redutiva de verdades pertencentes ao patrimônio dogmático católico, e essas verdades passam por um crivo de exigên-cias extrínsecas à “analogia da Fé” (Rom 12, 6), sendo despojadas de seu evidente contraste com ela (analogia da fé) e abrandadas segundo expectativas e simpatias estranhas a ela (à analogia da fé) – como é o caso, p. ex., do “diálogo” – então a própria categoria da pastoralidade é adulterada e a definição de “dogmático” se torna um absurdo.

Alguém dirá que nunca ninguém definiu como dogmático o Va-ticano II, e de certa maneira, isso é verdade. É, porém, igualmente verdade e incontestável que o Magistério, a teologia e os operadores pastorais fizeram do Vaticano II um absoluto. Um erro de fundo, em cima do qual se construiu o edifício pós-conciliar e contra o qual é preciso finalmente reagir. Não é o caso de esquecer o último Concílio e muito menos de liquidá-lo daquela forma um pouco irônica, apesar de não infundada, que relatou há um tempo G. SCALESE, Senza peli sulla lingua, em “Querculanus” e “Archivio blog” 2009 (36); trata-se apenas de respeitar a natureza, o que foi dito, as finalidades e a pasto-ralidade que ele próprio reivindica.

Ao dizer que sonho e desejo isso, sei que não posso presumir de mim mesmo. Uma obra de revisão e de reavaliação como aquela que há anos está me solicitando poderia ser realizada somente por um boa quantidade de especialistas. Conheço os meus limites e tenho plena consciência de que, mesmo se me dedicasse exclusivamente ao âmbito eclesiológico no qual creio poder mover-me um pouco mais à vonta-de, ainda assim daria um passo maior que a minha perna. Portanto, se já é difícil o agir em terreno no qual se tem o domínio, torna-se impossível, para um autor apenas, aventurar-se em terrenos alheios. Os dezesseis documentos do Vaticano II requerem não dezesseis, mas dezenas e dezenas de autores altamente especializados, para confron-tar com a devida competência as temáticas abordadas por cada do-cumento. Essa observação é suficiente para entender não só o quanto veleidosa e superficial foi até agora a atenção dada ao Vaticano II, mas também o quanto é de necessária urgência uma consideração diferente do evento, o quanto imprescindível e inevitável é a elaboração de uma séria análise crítica dos seus documentos e o quanto disso tirariam van-tagem a ciência sagrada, sua tradição pastoral e a própria Igreja.

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Visto que somente um mentecapto poderia propor-se a enfrentar todo esse trabalho sozinho, está absolutamente fora de todas as mi-nhas intenções enfocar cada um dos documentos conciliares e toda a sua temática. Muito mais modestamente, o texto que segue se limitará a discutir alguns dos problemas mais espinhosos abertos pelo Vatica-no II e pela vulgata que dele foi imposta pelo pós-concílio. Apesar de, nesse momento, tratar sozinho dos problemas acima mencionados, está igualmente fora das minhas intenções a pretensão de um julga-mento irrefutável e de soluções categóricas. Sei, aliás, que até mesmo um seleto grupo de trabalho deveria abster-se disso. A única palavra que pode realmente colocar tudo em suas devidas dimensões e tra-zer o Vaticano II ao quadro de uma autêntica hermenêutica teológica é aquela do Papa, especialmente se ela é expressa em um dos seus documentos mais solenes. Humildemente, mas intensamente, peço e imploro um tal documento, principalmente porque o Papa, nos pri-mórdios do pontificado (22 de dezembro de 2005), manifestou uma viva sensibilidade ao problema do Vaticano II e fixou o critério da sua correta interpretação na hermenêutica da continuidade. O fato de o discurso que elucidava tal critério ter sido reapresentado depois por meio do “Osservatore Romano” (25 de janeiro de 2009, p.5) é um claro sintoma de que o problema existe e de que o primeiro a considerá-lo foi o Sumo Pontífice.

Para completar essa sucinta descrição introdutória julgo oportu-no pelo menos mencionar algumas tentativas realizadas no que toca àquela revisão e discussão crítica que me ajudaram a quebrar o si-lêncio e principalmente a romper com a incensação de “três ductos duplos”. Alguém, antes de mim, caminhou no mesmo sentido, mas talvez – digo com todo o devido respeito – não com o pé direito . Um pouco acima recordei o volume composto por vários autores Penser Vatican II quarante ans après. Não é o único. Há de fato diversos ou-tros, todos acordados em um mesmo diapasão, como: Église et Contre-Église au Concile Vatican II, Ed. Courrier de Rome, Roma 1996; La tentation de l’Oecuménisme, Ed. Courrier de Rome, Roma 1998 ; Les crises dans l’Église. Les causes, effets e remèdes, Ed. Courrier de Rome, Roma 2007. Trabalhos, como disse, de vários autores. Alguns auto-res que publicaram nesses livros as suas contribuições revelam uma forte personalidade teológica, uma formação digna de todo respeito,

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além de capacidades críticas incomuns. Pesa, todavia, sobre o conjun-to dessas publicações um problema sério: o espírito polêmico que as inspira e que, justamente por isso, ao menos em parte, as desqualifica. Dito em outros termos, a crítica não deve ser nunca preconcebida, nunca pré-determinada, e as conclusões devem nascer não no início, mas ao fim da pesquisa e da reflexão. Se as publicações mencionadas não apresentassem esses defeitos de método e de conteúdo, uma parte considerável do trabalho que o autor deseja poder-se-ia considerar concluída.

Talvez não me fosse perdoado o silêncio quanto a M. L. LAMB-M. LEVERING, Vatican II. Renewal within Tradition, University Press, Oxford 2008, p. 462, só porque o volume ainda não chegou às minhas mãos. Com efeito, sua ampla apresentação no “L’Osservatore Roma-no” (10 de janeiro de 2009, p.4) oferece os elementos de base para um julgamento nada superficial. Vinte e dois estudiosos norte-america-nos, orientados por um decano e um professor da faculdade de teo-logia da “Ave Maria University” - Florida, examinam os documentos conciliares para afirmar a “renovação no sulco da Tradição”. Uma res-posta prévia à minha iniciativa? De forma alguma. Aliás, exatamente o contrário dela. Partindo, de fato, do discurso à Cúria romana de 22 de dezembro de 2005, mediante o qual Bento XVI abordou o Vatica-no II não segundo uma hermenêutica de ruptura, mas segundo uma “hermenêutica da reforma, da renovação na continuidade do único sujeito-Igreja que o Senhor nos concedeu”, a obra se baseia no seguin-te princípio: as verdades da Tradição, na qualidade de verdade desse único sujeito-Igreja, não mudam, nem se obscurecem até perder a sua relevância em contato com a cultura moderna; devem, porém, ser di-ferentemente expressas para enfrentar os desafios dessa mesma cul-tura. Isso não significa romper com a Tradição, mas abrir a Tradição mesma à novidade e inscrever esta na plurissecular trajetória da Tra-dição como um desenvolvimento da verdade, não como uma negação. Segundo essa obra, então, todos os documentos do Vaticano II, ainda que não todos univocamente, contribuem com o dito desenvolvimen-to e coloca a Igreja em harmonia com a cultura dos novos tempos. Seria isso realmente verdade? Tenho as minhas dúvidas, e por sinal elas não são infundadas. O Papa havia solicitado, como possível ou como necessária a reformulação magisterial de “coisas contingentes”:

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nem a DH, nem a GS, nem outros documentos conciliares reformu-lam sobre “coisas contingentes”. Os documentos mesmos não podem ser tidos por contingentes.

Se, então, o olhar se fixar sobre “a liberdade religiosa” ou sobre “a colegialidade” como dúplice e igualitário domínio da mesma ple-na e universal jurisdição eclesiástica, ou sobre a Revelação que obri-ga de forma limitada somente às verdades salutares, percebe-se que a inovação, já durante o Concílio, andou bem além da fronteira do contingente. Se essa inovação se identifica com a cultura moderna e contemporânea – aquela que se iniciou com o Iluminismo e encon-tra hoje expressão no “pensamento fraco”, no existencialismo ateu, no “laicismo”, no materialismo, ou no indiferentismo e no relativismo – tudo se torna absurdo e do ponto de vista da Fé não desprovido de responsabilidade moral o simples fato de pensar que tudo isso seja um desenvolvimento natural da antiga Tradição. É, então, muito estranho que esses novos confessores da Tradição nunca se preocupem, depois de ter confirmado a continuidade, em mostrar as relações entre o mo-derno e o antigo e em prová-las criticamente.

Apesar de tudo isso, ou melhor, diante de tudo isso, o meu projeto não perde sua urgência.

Para a comodidade do leitor advirto que as citações bíblicas apre-sentadas no decorrer do livro estão reduzidas ao essencial e indicadas segundo as abreviações costumeiras. Refiro-me a cada um dos docu-mentos do Vaticano II com as maiúsculas correspondentes às duas primeiras letras do seu título, como elencado abaixo, segundo a or-dem cronológica das respectivas discussões e aprovações conciliares:

SC= “Sacrosanctum Concilium”, Constituição sobre a Sagrada Liturgia;

IM= “Inter Mirifica”, Decreto sobre os meios de comunicação social; LG = “Lumen Gentium”, Constituição dogmática sobre a Igreja;OE = “Orientalium Ecclesiarium”, Decreto sobre as Igrejas católi-

cas orientais;UR= “Unitatis Redintegratio”, Decreto sobre o ecumenismo;CD= “Christus Dominus”, Decreto sobre o múnus pastoral dos

Bispos na Igreja;PC= “Perfectæ Caritatis”, Decreto sobre a renovação da vida

religiosa;

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OT= “Optatam Totius”, Decreto sobre a formação sacerdotal;GE= “Gravissimum Educationis”, Decreto sobre a educação cristã;NAe= “Nostra Aetate”, Decreto sobre a relação da Igreja com as

religiões não cristãs;DV= “Dei Verbum”, Constituição dogmática sobre a divina Reve-

lação;AA= “Apostolicam Actualitatem”, Decreto sobre o apostolado dos

leigos;DH= “Dignitatis Humanæ”, Decreto sobre a liberdade religiosa;AdG= “Ad Gentes”, Decreto sobre a atividade missionária da Igreja;PO= “Presbyterorum Ordinis”, Decreto sobre o ministério e a vida

dos presbíteros;GS= “Gaudium et Spes”, Constituição pastoral sobre a Igreja no

mundo contemporâneo;Ademais:NT/NA= Novo e Antigo TestamentoASS/AAS= Acta Sanctæ Sedis/Acta Apostolicæ SedisSOeCV II-CDD= Sacrosanctum Oecumenicum Concilium Vati-

canum II, Constitutiones-Decreta-DeclarationesDS= Enchiridion Symbolorum, ed. 35a, a.c. de H. Denzinger e A.

SchönmetzerEC= Enciclopédia CatólicaDThC= Dictionnaire de Théologie CatholiqueWCC= Conselho Mundial de Igrejas RGG3= Die Religion in Geschichte und Gegenwart, terceira

ediçãoCEI= Conferência Episcopal Italianaf.r.= felizmente reinantede v.m.= de venerada memóriap. ex.= por exemplo