conceitos em filosofia

37
Jorge Nunes Barbosa CONCEITOS EM FILOSOFIA FILOSOFIA iBooks Author

Upload: jorge-barbosa

Post on 23-Jun-2015

2.357 views

Category:

Education


2 download

DESCRIPTION

Texto de apoio

TRANSCRIPT

Page 1: Conceitos em Filosofia

Jorge Nunes Barbosa

CONCEITOS EM FILOSOFIA

F I L O S O F I A

iBooks Author

Page 2: Conceitos em Filosofia

• CAPÍTULO 1 •

Que todas as condições de vida sejam por direito acessíveis a todos (princípio de igualdade); que as desigualdades só sejam aceitáveis, se resultarem em proveito dos mais desfavorecidos (princípio de diferença). Assim, a justiça admite a desigualdade (é necessário recompensar o mérito), mas recusa o sacrifício dos mais desfavorecidos (que acabaria por fracturar a sociedade).

POLÍTICA

iBooks Author

Page 3: Conceitos em Filosofia

O Estado, noção propriamente política, designa a mais alta autoridade para gerir a vida em conjunto. Distingue-se da sociedade, à qual impõe uma arbitragem quando surgem conflitos entre interesses privados. Detentor da força (policial e militar), o Estado pode definir-se como o detentor do monopólio da violência legítima (Max Weber). Esta força exerce-se num território, que pode agrupar várias nações (parece ser o caso de Espanha; foi o caso dos império modernos). Só se fala de Estado a partir do século XV. A filosofia antiga só reconhece a Cidade (polis, em grego, donde deriva a palavra política). Com a passagem da Cidade ao Estado, o Estado torna-se artificial: é o produto de uma vontade que se submete,

por contrato (constituição), a uma autoridade que lhe garante segurança e liberdade. Mas este ideal é, muitas vezes, traído pelos governos.

Dois Exemplos:

1. As Espigas de Heródoto

Heródoto conta que Periandro, tirano de Coríntia, tinha enviado um mensageiro ao tirano de Mileto para aprender como garantir a sua segurança e o seu sucesso. O tirano de Mileto não disse nada, mas, ao passar num campo de trigo, cortou subitamente as espigas que estavam mais altas do que ele. O tirano só pode garantir a sua segurança, eliminando os homens mais valentes e os mais dotados da Cidade. Um Estado tirânico é, portanto, necessariamente mediocrático. Só o medo provocado no povo permite que esse regime se mantenha.

2

• Secção 1 •

Política e Estado

iBooks Author

Page 4: Conceitos em Filosofia

2. A Ilha de Utopia

Thomas More imaginou uma cidade ideal, para denunciar a injustiça que reinava na Inglaterra do seu tempo. Em Utopia, toda a gente trabalharia, embora ninguém se aproveitasse dos outros como faziam os nobres e os soldados ingleses; não haveria diferenças de vestuário, portanto, também não sinais exteriores de riqueza; mudar-se-ia regularmente de casa e nada seria possuído por muito tempo; as refeições seria tomadas em comum e todos se instruiriam; tudo seria partilhado e convivial. Em resumo, More propunha que fossem abolidas as causas das injustiças, através de regras bem estabelecidas.

Três Autores:

1. Maquiavel

Para o autor de O Príncipe, o importante em política não é encontrar o melhor regime possível (questão moral), mas estabelecer quais são os meios necessários para obter e conservar o poder (questão técnica). O fim justifica os meios, e o Príncipe não deve hesitar em tomar medidas que a moral condena, como a força ou a

mentira. Ora leão, ora raposa, o Príncipe só pode justificar a sua acção pelo interesse superior do Estado.

2. Hobbes

Hobbes é o primeiro pensador político a propor uma concepção contratualista do Estado. No estado natural, o homem é o lobo do homem: tem medo do seu semelhante e considera-se legitimado a matar para não ser morto. Esta situação de guerra generalizada conduziria ao desaparecimento do género humano, se os homens não realizassem um contrato, através do qual transferem a sua força a um único de entre eles (o Leviatan) que, em contrapartida, garante a segurança a todos. Segundo Hobbes, esta é a primeira missão do Estado.

3. Arendt

A politóloga Hannah Arendt mostra que o totalitarismo constitui uma forma inédita de regime político. Difere da simples tirania, na medida em que exige a politização das massas, através da aceitação de uma ideologia limitadora de toda a liberdade de pensamento. Assim, o Estado totalitário realiza uma fusão entre o povo e o seu chefe. O seu núcleo central é o lugar, onde a diferença entre os homens é completamente erradicada no seu

3

iBooks Author

Page 5: Conceitos em Filosofia

próprio interior: o campo de concentração. Para evitar um sistema desta natureza, devemos inspirar-nos nos fundamentos gregos do político, na praça pública como lugar onde se exprime a diferença de opinião.

4

iBooks Author

Page 6: Conceitos em Filosofia

O termo Sociedade designa um conjunto de indivíduos ligados entre si por uma cultura e uma história. É, portanto, de algum modo, abusivo falar de sociedades animais que se perpetuam por hereditariedade e não por herança. É, todavia, pertinente falar de sociedade industrial. A noção de sociedade coloca, antes de mais, um problema antropológico: será o homem naturalmente sociável como pensa, por exemplo, Aristóteles? Para compreender como e por que razão os homens se organizaram em sociedade, desde Hobbes, é habitual opor um estado de natureza (fictício) a um estado de sociedade (que descreve genericamente a realidade actual). A noção de sociedade coloca também um problema sociológico: em que medida as nossa

condutas individuais são socialmente determinadas? A sociedade permite a realização pessoal do indivíduo? Enfim, esta noção desemboca num problema político: como é que o Estado, distinto da sociedade (em particular segundo Hegel), pode resolver as contradições internas do corpo social?

Dois Exemplos:

1. A Árvore e a Floresta

Que razões haverá para que, numa floresta, as árvores cresçam em altura e direitas, e, quando isoladas, desenvolvam os seus ramos de forma desordenada e tenham dificuldade em crescer em altura, sendo necessária a intervenção humana (poda) para corrigir esta tendência? Na floresta, as árvores procuram a luz, lutam para não morrer abafadas sob a sombra das outras árvores. Kant utiliza esta metáfora para mostrar que nenhum progresso é possível fora da sociedade. É a insociável sociabilidade dos homens, a sua tendência

5

• Secção 2 •

Política e Sociedade

iBooks Author

Page 7: Conceitos em Filosofia

para viver em sociedade, mas sempre com relutância, que, de acordo com um plano invisível da natureza, conduz a espécie a progredir.

2. A Arte de se Assoar

O sociólogo Norbert Elias mostra que uma sociedade se torna civilizada, à medida que os seus membros recalcam tudo o que sentem em si como próprio da sua natureza animal. Não assoamos o ranho com os dedos, nem com toalhas como na Idade Média, mas com lenços, de acordo com um código estabelecido (é impróprio olhar para o lenço depois de nos assoarmos, por exemplo).

Três Autores:

1. Rousseau

No seu Discurso sobre a origem das desigualdades, Rousseau distingue o homem no estado de natureza, que vive só, do homem no estado civil, que vive em sociedade. Esta mudança de estado deve-se a um funesto acaso: o agrupamento dos homens devido às asperezas do clima e o aumento da população geram o

gosto pela propriedade da terra, que está na origem de todas as infelicidades do homem. Do ponto de vista de Rousseau, as primeiras sociedades constituem a idade de ouro da humanidade: o homem natural adquiriu sociabilidade, mas não perdeu a sua autonomia. O desenvolvimento do amor-próprio destruirá esta idade de ouro.

2. Durkheim

Fundador da sociologia científica, Durkheim afirma que devemos considerar os factos sociais como coisas. A sociedade cria os indivíduos que, se não tivessem uma consciência colectiva, seriam incapazes de viver juntos. Esta prevalência da sociedade sobre os seus membros observa-se até no estudo do suicídio. Acto pessoal por e x c e l ê n c i a , o s u i c í d i o p o d e s e r e x p l i c a d o sociologicamente: quando a consciência colectiva enfraquece (por exemplo, quando não pertencemos a nenhuma associação religiosa, desportiva…), a taxa de suicídio aumenta.

3. Lévi-Strauss

O antropólogo Lévi-Strauss lembra que todas as sociedades estabelecem laços entre os seus membros, através da troca. São trocado bens, serviços,

6

iBooks Author

Page 8: Conceitos em Filosofia

mensagens… e mulheres (diz ele). Tratando-se de mulheres, a regra observada em todas as sociedades é a proibição do incesto: a estrutura elementar de parentesco requer que a esposa não seja irmã do marido. Esta lei de exogamia (as pessoas casadas devem ter origem em famílias diferentes) é universal, mas não natural: é livremente instituída. Todas as sociedades humanas são, portanto, culturais.

7

iBooks Author

Page 9: Conceitos em Filosofia

Todos nós podemos revoltar-nos diante de uma situação de injustiça: a justiça também é um sentimento. Esta unanimidade perde-se, todavia, quando passamos da moral (ou da justiça, ou da virtude como diziam os antigos) para o direito, pois, neste caso, as regras variam em função dos países onde ele é aplicado: há portanto uma distância entre o que é legítimo (que tem a ver com o direito natural) e o que é legal (que depende do direito positivo, do direito escrito, do “estabelecido” numa Constituição). Em termos ideais, esta distância deveria ser nula num Estado de Direito, que tivesse uma Constituição, baseada nos direitos do homem imprescritíveis (que não podem ser dados) e inalienáveis (que não podem

ser retirados). A justiça social consiste em dar a cada um o que é seu (de acordo com o mérito ou as necessidades); a justiça penal consiste em colocar um fim à vingança, através da intervenção de um terceiro (o juiz).

Dois Exemplos:

1. O Anel de Giges

No livro de Platão A República, Glauco conta a história do pastor Giges que, tendo encontrado um anel mágico capaz de o tornar invisível, usa-o para seduzir a rainha da Lídia, matar o rei e tomar o seu lugar. Glauco acredita que qualquer um agiria como Giges, se tivesse esse anel. A justiça seria, neste caso, simplesmente o resultado do olhar dos outros: respeitamo-la por medo de ser condenados, mas se nos fosse garantida a impunidade, não hesitaríamos em ser injustos. Sócrates contesta esta redução da justiça à hipocrisia social e vê

8

• Secção 3 •

Política, Justiça e Direito

iBooks Author

Page 10: Conceitos em Filosofia

nela uma virtude fundamental, da qual depende o equilíbrio da alma e da sociedade.

2. Os Direitos do Fantasma

O inglês Edmund Burke decidiu escrever, a partir de 1789, as suas Reflexões sobre a revolução de França para impedir que as ideias revolucionárias contaminassem a Inglaterra. Nessas reflexões, critica os direitos do homem, verdadeiros do ponto de vista metafísico (mas) falsos do ponto de vista moral e político, porque ignoram a complexidade humana. Destinando-se ao homem em geral e não ao homem nacional, esses direitos só podem ser atribuídos a um fantasma: o homem dos direitos do homem não existe.

Três Autores:

1. Aristóteles

Aristóteles propõe que se dintinga a justiça distributiva das honrarias e das riquezas (que deve ser proporcional ao mérito) da justiça comutativa (que preside às trocas económicas e se baseia num princípio de estrita igualdade). A justiça não é, portanto, só uma virtude

moral, ela é também o que regula o direito. Consciente de que a lei, em resultado da sua generalidade, pode ser fonte de injustiça, ele propõe a ideia de equidade como correcção da lei: a justiça requer, por isso, a experiência de um juiz.

2. Grotius

Este jurista holandês, contemporâneo de Descartes, no livro Do direito da guerra e da paz como o direito natural pode fixar de forma imutável e racional os critérios de uma guerra justa, como condição de uma paz duradoura. É preciso, por exemplo, que uma guerra seja oficialmente declarada em nome de motivos legítimos; que acabe com a celebração de um tratado de paz que oficialize o retorno ao direito entre os beligerantes; que, durante a guerra sejam respeitadas certas regras, como a de não matar os prisioneiros. Em resumo, segundo ele, enquadrando juridicamente a violência colectiva, esta será reduzida.

3. Rawls

Autor de Teoria da Justiça, o americano John Rawls propõe um modelo de justiça, adaptado ao pluralismo das democracias modernas. Para que uma sociedade seja justa, é preciso que aqueles que decidem sobre o

9

iBooks Author

Page 11: Conceitos em Filosofia

seu funcionamento desconheçam o lugar que ocuparão nessa sociedade. Nestas condições de véu de ignorância, para além do pressuposto de que essa sociedade deve preservar a l iberdade, todos concordarão de imediato com dois princípios: que todas as condições de vida sejam por direito acessíveis a todos (princípio de igualdade); que as desigualdades só sejam aceitáveis, se resultarem em proveito dos mais desfavorecidos (princípio de diferença). Assim, a justiça admite a desigualdade (é necessário recompensar o mérito), mas recusa o sacrifício dos mais desfavorecidos (que acabaria por fracturar a sociedade).

10

iBooks Author

Page 12: Conceitos em Filosofia

• CAPÍTULO 2 •

A felicidade é própria do homem (pois só é acessível a um ser racional) e é a finalidade última da sua acção (pois basta-se a si mesma).Aristóteles

A MORAL

iBooks Author

Page 13: Conceitos em Filosofia

A moral é, numa primeira abordagem, uma noção metafísica: o homem é livre, ou é determinado por condições que ele não controla? Se ele é a causa primeira das suas escolhas, diz-se que possui livre arbítrio. Só que um poder desta natureza não é susceptível de ser demonstrado (ou não o foi até agora). Numa segunda abordagem, a liberdade é uma noção moral. Para Kant, uma vez que a liberdade não pode ser demonstrada, deve ser postulada para que a moral seja possível. Com efeito, só um ser livre pode escolher entre o Bem e o Mal: para dever é preciso primeiro poder. Reciprocamente, segundo Kant, só um ser moral pode ser livre: a liberdade é, então, sinónimo de autonomia. Pelo contrário, aquele que quer gozar a vida sem limitações morais é um libertino. Em terceiro lugar, a liberdade é uma noção política. Aqui, a oposição é entre o cidadão livre e o escravo. Quando o

Estado impõe poucas limitações ao indivíduo, fala-se de Estado liberal. Se o indivíduo considera que as leis são demasiado limitativas e matam a sua liberdade, e se vai ao ponto de contestar o Estado em todas as suas formas, estaremos perante um libertário ou um anarquista.

Dois Exemplos:

1. O Burro de Buridan

O que é que se passará, se colocarmos um burro esfomeado e cheio de sede num ponto equidistante de um curso de água e de um saco de aveia? O filósofo medieval Buridan acha que o burro não será capaz de se mexer e acabará por morrer de fome. Porquê? Porque os motivos da sua acção possível se anulam mutuamente (Buridan parte do princípio de que o burro é mesmo burro). O mesmo não aconteceria com o homem que, mesmo na ausência de motivo decisivo, pode tomar decisões, graças a uma força que não

12

• Secção 1 •

A Moral e a Liberdade

iBooks Author

Page 14: Conceitos em Filosofia

precisa de outra causa para além de si mesma: o livre arbítrio. Só o homem possui livre arbítrio: ele é à imagem de Deus e, por isso, escapa às limitações do reino animal.

2. O Carvão Ardente de Balzac

No romance Les Chouans (1829), Balzac descreve a seguinte cena: para provar o seu amor a Marie de Verneuil, o marquês de Montauran não hesita em segurar num carvão ardente ao longo de toda a sua declaração. Este acto ilustra a teoria de Maine de Biran sobre o sentimento do esforço voluntário como prova de liberdade. Só quando resistimos ao nosso corpo que nos ordena um movimento reflexo (aqui para evitar uma queimadura), é que nós temos a experiência completa da nossa liberdade.

Três Autores:

1. Espinosa

Espinosa contesta a ideia de que o homem possua um poder, graças ao qual escaparia às leis da natureza: o homem não é um império dentro de um império. Mas se o homem não tem livre arbítrio, em que é que reside a sua liberdade? Para Espinosa, a liberdade reside no

conhecimento da necessidade, isto é, no acesso às ideias adequadas a respeito do mundo. É livre aquele que age de acordo com a sua natureza. A liberdade é a nossa força para agir, elevada ao máximo e regulada pela razão.

2. Montesquieu

Pensador liberal, Montesquieu é o defensor da separação dos poderes, pois onde o poder executivo, legislativo e judicial estão concentrados na mesma mão reina um terrível despotismo. No entanto, o autor de O espírito das leis não acredita num regime de total liberdade, pois a própria liberdade pareceu insuportável a povos que não estavam acostumados a beneficiar dela. É por isso que o ar puro é, por vezes, prejudicial àqueles que viveram num país pantanoso. Julgando que não existe nada de mais insolente do que o povo, Montesquieu defendeu para a França, não uma República, mas uma Monarquia parlamentar.

3. Sartre

Para o existencialismo, o homem está condenado a ser livre. Ele não pode não fazer escolhas: a recusa de escolher é escolher não escolher.Único ser para quem a existência precede a essência, o homem só é aquilo que

13

iBooks Author

Page 15: Conceitos em Filosofia

se faz ser: é o produto das suas escolhas. Tendo sido influenciado pelo marxismo, Sartre não nega que o homem esteja sujeito a fortes determinações históricas, que nasça em situação. Mas acredita que cada homem pode sempre libertar-se da situação que não tenha escolhido.

14

iBooks Author

Page 16: Conceitos em Filosofia

O que é que devo fazer? Esta questão é típica da moral e do direito. O dever refere-se à obrigação, ao Bem (moral) ou à Lei (direito), supõe uma regra e tem como destinatário a liberdade do indivíduo - não fosse assim, e o dever confundir-se-ia com a necessidade, a que não podemos escapar. A moral tem a ver com as condições internas à pessoa; ela deixa ao direito o estudo das obrigações exteriores. A ética (ou moral) que defende que há obrigações incondicionais é chamada de deontológica. Opõe-se à ética consequencialista que julga que uma acção é moral só se os seus efeitos sobre os outros forem bons. Chama-se ética minimal, a moral que considera que só há deveres para com os outros, e

não para consigo próprio. O suicídio, neste caso, não seria moralmente condenável.

Dois Exemplos

1. Os Dez Mandamentos

O filósofo e teólogo Martin Buber interpreta o episódio, em que Deus dá a Moisés o decálogo como uma etapa necessária no caminho que conduz o povo judeu da libertação do Egipto até à Terra prometida. Os dez mandamentos são outras tantas regras que permitem aos Hebreus estruturar a sua liberdade e adquirir a sua identidade. Assim, o quinto mandamento que obriga a descansar ao sétimo dia e a honrar os pais dá à comunidade a coesão necessária no tempo, enquanto que a proibição de roubar os bens de outros organiza a comunidade no espaço. Respeitar o dever seria então ser-se plenamente humano.

15

• Secção 2 •

A Moral e o Dever

iBooks Author

Page 17: Conceitos em Filosofia

2. A Escolha do Gémeo

Há situações, em que seja impossível saber o que se deve fazer? O filósofo inglês Bernard Williams imagina o caso trágico de um médico que, na altura do parto de uma mulher que espera dois gémeos, só conseguiria salvar uma das crianças. Nenhum critério racional lhe permite motivar a sua escolha, pois a vida de um vale tanto como a vida do outro: as duas obrigações são equivalentes - o dilema moral é insolúvel.

Três Autores

1. Cícero

Para este estóico, o primeiro dever de todos os homens é o de conservar-se a si mesmo. A sabedoria consiste, em primeiro lugar, em respeitar em nós a nossa natureza. Mas, como o homem vive em sociedade, deve adaptar esta preocupação consigo mesmo à relação com os outros. Por esta razão, Cícero escreveu um Tratado dos deveres, no qual descreve as condutas convenientes para bem viver em sociedade, mantendo-se virtuoso. Esta moral média, que consiste por exemplo em não manter uma promessa obtida por medo ou surpresa,

tem em conta as circunstâncias no enunciado do deveres.

2. Kant

Representante por excelência da ética deontológica, Kant considera que só conseguimos deduzir os deveres a partir da razão prática. Há imperativos que são categóricos, porque não dependem das circunstâncias, mas daquilo que a razão nos ordena. Esta encontra na forma da lei (a universalidade) o conteúdo daquilo que prescreve: deve-se agir, elevando ao universal a máxima da nossa acção. Assim, por exemplo, tenho o dever de manter as minhas promessas, porque também não quero ser traído, isto é, entendo que essa máxima se aplica universalmente. Para Kant, uma vez que todos os homens dispõem de razão, todos sabem qual é o seu dever.

3. Mill

Este filósofo inglês, representante da corrente utilitarista, reduz os nossos deveres ao mínimo. O único critério da acção correcta é o de não prejudicar os outros. Mas, nestas condições, como devemos reagir quando vemos alguém a afogar-se? John Stuart Mill responde que não podemos condenar aquele que não

16

iBooks Author

Page 18: Conceitos em Filosofia

faz nada. E se aquele que tenta salvar o banhista em perigo de se afogar, o faz por interesse (por exemplo, pelo dinheiro que poderá ganhar, ou na esperança de ver o seu nome no jornal), a sua acção será moralmente boa: a moral não se avalia a partir das intenções, mas a partir das consequências das nossas acções.

17

iBooks Author

Page 19: Conceitos em Filosofia

A felicidade é um estado de satisfação duradoura e completa. Não se reduz, portanto, ao prazer que é sempre breve e parcial. Mas se todos conhecem momentos de prazer, nem todos alcançam a felicidade. Ainda por cima ser feliz depende da boa sorte, e não somente do mérito daquele que busca a felicidade. É por isso que a felicidade é mais um ideal do que uma realidade. Chama-se eudemonismo à doutrina que considera que a busca da felicidade é a finalidade das acções humanas e hedonismo à que visa simplesmente a busca do prazer. A felicidade tem a ver ao mesmo tempo com a psicologia e com a moral. Com efeito, podemos ficar satisfeitos com ilusões e, por isso, a imaginação pode ser considerada a faculdade que nos permite alcançar a felicidade. Mas o retorno à

realidade, muitas vezes vivido como um cruel desencantamento, põe em causa a própria busca da felicidade: não será essa busca irresponsável, egoísta, imoral?

Dois Exemplos

1. O Mito do Andrógeno

Num banquete bem regado, onde Sócrates discute com os seus amigos a melhor definição do amor, Arstófanes (célebre autor de comédias) conta o mito do andrógeno: no princípio, o homem tinha quatro pernas e quatro braços, mas, por causa do seu orgulho, foi dividido em dois pelos deuses. Embora não tenha ficado maneta, nem perneta, a saudade da sua metade perdida leva-o a procurá-la desesperadamente. Quando a encontra, não a abandona mais: o amor permite atingir o ponto mais alto da felicidade que é o sentimento de uma unidade reencontrada.

18

• Secção 3 •

A Moral e a Felicidade

iBooks Author

Page 20: Conceitos em Filosofia

2. A Experiência do Homem Drogado Durante toda a sua vida

O filósofo alemão Robert Spaemann imagina nas suas Noções fundamentais de moral a seguinte experiência: coloca-se um homem numa mesa e, depois de ele ter adormecido, injecta-se no seu cérebro uma substância química de libertação prolongada e regular, que lhe garanta um sentimento de êxtase permanente durante toda a sua vida. Ao fim de vários decénios, quando o seu corpo estivesse demasiado velho. Quem quer fazer a experiência? Ninguém, certamente. A recusa revela: todos nós sabemos que a felicidade não se confunde com um estado permanente de prazer.

Três Autores

1. Aristóteles

A felicidade é própria do homem (pois só é acessível a um ser racional) e é a finalidade última da sua acção (pois basta-se a si mesma). No entanto, a felicidade não depende só da razão. Com efeito, segundo Aristóteles, não conseguiremos ser verdadeiramente felizes, se formos feios, pobres ou ignorantes. Por outro lado, a felicidade só pode ser alcançada no fim da vida pois

uma andorinha não faz a primavera (Ética a Nicómaco de Aristóteles). Uma criança não pode pretender ser feliz, entre outras coisas, poque o seu entendimento não está completamente desenvolvido. Aristóteles defende uma concepção muito elitista da felicidade: ela está reservada ao sábio que teve sucesso na vida.

2. Epicuro

Epicuro afirma que é possível alcançar a felicidade. Para isso, é necessário satisfazer exclusivamente os desejos naturais e necessários, e viver no instante presente. Mas atenção: embora o epicurismo seja uma modalidade de hedonismo, não se confunde com uma busca desenfreada do prazer. O sábio é aquele que procura evitar as perturbações da sua alma (ataraxia) e a dor no seu corpo (aponia). A felicidade é, então, aquilo que se sente quando se alcança um estado de equilíbrio.

3. Bentham

Jeremy Bentham, pensador utilitarista, defende na sua Introdução aos princípios de moral e de legislação (1789) que a tarefa do legislador é a de garantir a maior felicidade ao maior número. Com efeito, a felicidade individual, embora seja a única finalidade verdadeira

19

iBooks Author

Page 21: Conceitos em Filosofia

das acções, só pode ser efémera se não é obtida numa sociedade que garanta a segurança dos bens. Deve-se, então, privilegiar a felicidade pública, harmonizando os interesses particulares. O que interessa é o total de felicidade alcançado deste modo. Para Bentham, a felicidade é quantificável e é menos um assunto moral do que económico.

20

iBooks Author

Page 22: Conceitos em Filosofia

• CAPÍTULO 3 •

Desde o momento em que vejo a face de alguém, ela pede-me que a respeite, e, desse modo, revela-me a possibilidade de lhe recusar esse pedido.

O SUJEITO

iBooks Author

Page 23: Conceitos em Filosofia

A consciência designa originariamente um saber partilhado (cum=com; scire=saber): é um saber que acompanha aquele que pensa. Deste modo, distingue-se a consciência espontânea ou imediata, virada para o mundo exterior, da consciência reflectida em que o eu se volta para si mesmo. Com os filósofos modernos da consciência (ou do sujeito), que surgem a partir do século XVII com Descartes, o saber será recentrado no homem, nas suas faculdades de pensar, na sua busca de identidade. A consciência tem também um sentido moral: é aquilo que permite ao sujeito distinguir o bem do mal. A origem desta consciência pode ser o coração (Rousseau) ou a razão (Kant). A consciência colectiva designa a consciência do grupo que ultrapassa ou supera a soma das consciências individuais.

Dois Exemplos

1. O Príncipe e o Sapateiro

O filósofo inglês John Locke colocou o seguinte enigma: se transplantarmos a memória de um príncipe para o corpo de um sapateiro, será que este se tornaria no príncipe que se lembrava de ter sido, ou tornar-se num sapateiro observado por outro? Esta é uma das primeiras formulações do problema da identidade. Para Locke, a consciência faz a identidade pessoal. Por outras palavras, a identidade estende-se até aos limites da memória de cada uma, mas não para além dela. A identidade real não depende, para este empirista inglês, de uma substância, mas somente do testemunho da minha consciência, isto é, da experiência não verificável que tenho de mim mesmo.

2. As Badaladas do Relógio

Quando o relógio dá horas, como é que não nos enganamos a respeito da hora anunciada? Bergson toma este exemplo para contestar o dogma da

22

• Secção 1 •

O Sujeito e a Consciência

iBooks Author

Page 24: Conceitos em Filosofia

instantaneidade da consciência: se esta só estivesse atenta a cada uma das badaladas do relógio, se ela não despertasse de maneira descontínua, não poderia ter em conta o número de badaladas ouvidas e seria, por isso, incapaz de dizer que horas são. É preciso que retenhamos, a cada nova badalada, aquelas que a precederam. É por esta razão que Bergson afirma no seu Ensaio sobre os dados imediatos da consciência que a consciência é memória.

Três Autores

3. Montaigne

Nos seus Ensaios, Montaigne explica que o seu livro versa sobre ele próprio, sobre a sua “substantifique” medula, e que o seu projecto é experimentar em si mesmo a condição humana. Eu provo-me, eu amo-me a mim mesmo, diz Montaigne. Para ele, a consciência de si passa pelo prazer de um trabalho introspectivo feliz. Mais do que se lamentar das suas próprias imperfeições, o sujeito que medita sobre si mesmo deve aprender a rir-se delas. É preciso que saibamos que somos uma fraude, não hesita em escreve Montaigne,

para quem a auto-depreciação é a melhor maneira de nos conhecermos a nós próprios.

4. Descartes

Embora Descartes não utiliza a palavra consciência, é seguramente a ela que se refere quando fundamenta a sua filosofia do sujeito. Procurando nas suas Meditações metafísicas uma primeira verdade, encontra-a na certeza de o meu pensamento é tudo quanto basta para provar a minha existência. O célebre cogito (penso, logo existo) designa a intuição, através da qual eu sei que eu sou: a consciência de si, que nem sequer passa, segundo Descartes, pela mediação do corpo, não é uma ilusão, mas uma verdade clara e distinta. Esta verdade evidencia a dimensão metafísica do homem que é, antes de tudo o mais, uma coisa que pensa.

5. Husserl

Toda a consciência é consciência de alguma coisa, diz Husserl, o pai da fenomenologia. Isso significa que a consciência não é uma substância, mas um fluxo intencional, uma intencionalidade. Reciprocamente, todo o objecto é objecto para uma consciência. Mas isso não quer dizer que o objecto visado ou referido não tem

23

iBooks Author

Page 25: Conceitos em Filosofia

essência, que só existe para mim. A fenomenologia não é incompatível com o reconhecimento da essência das coisas.

24

iBooks Author

Page 26: Conceitos em Filosofia

O inconsciente designa, negativamente, aquilo que se opõe à consciência, aquilo que é desprovido de consciência (como o sono) e, positivamente, o aparelho psíquico tal como é descrito pela Psicanálise, e que estaria na origem da maior parte dos nossos comportamentos. Se aceitarmos esta perspectiva é posta em questão toda a tradição do “eu” transparente para si mesmo, consciente, senhor dos seus actos. O inconsciente coloca dois problemas: o da possibilidade do seu conhecimento (conhecer o inconsciente não será deformá-lo para o tornar consciente?), e o do seu poder (se o inconsciente determina as minhas acções, a liberdade será muito provavelmente uma ficção). Os adversários da psicanálise criticam-na acusando-a de ser uma pseudociência e de ser fatalista. A descoberta

do inconsciente teve, mesmo assim, o mérito de permitir reabilitar o corpo e o desejo no exercício da inteligência, e forneceu uma chave interpretativa para fenómenos culturais como a arte e a religião.

Dois Exemplos

1. A mão da mulher seduzida

Para Sartre, nós não coincidimos connosco próprios e utilizamos essa falta de coincidência para nos enganarmos a nós mesmos. Uma jovem tem um encontro num café: enquanto ela fala, o seu pretendente toma-lhe a mão. Se a jovem deixa ficar a mão, está a consentir em tornar-se um objecto de desejo; se a retirar, corre o risco de deixar de ser desejável. Ela abandona a sua mão, mas não se apercebe de que a abandona, pondo-se a falar de outras coisas. Para Sartre, mais do que o inconsciente, existe em nós uma consciência de má-fé: uma consciência que não quer ver.

25

• Secção 2 •

Sujeito e Inconsciente

iBooks Author

Page 27: Conceitos em Filosofia

2. Branca de Neve

Na sua Psicanálise dos contos de fada, Bettelheim mostra que a leitura dos contos de fada ajuda a criança a superar as suas angústias inconscientes. Leiamos a Branca de Neve a uma menina de 4 anos. Esta, sem o saber, vai ouvir contar como poderá resolver o seu complexo de Édipo: o conto dir-lhe-á que os ciúmes que tem da sua mãe (aqui projectada na Rainha) são perigosos, que o seu pai (incarnado pelo caçador que abandona a Branca de Neve na floresta) não é forçosamente um protector e que o desejo sexual (simbolizado pela maçã envenenada) deve esperar...

Três Autores

1. Leibniz

Para Leibniz, a consciência procede por integração de dados inconscientes, pois as coisas mais notáveis são compostas por partes que o não são. Devemos, portanto, distinguir a actividade psíquica do pensamento consciente: Há em mim pequenas percepções imperceptíveis que garantem a transição entre o não-consciente e o consciente. Mantenho-me, assim, o mesmo, apesar dos momento em que não

penso. Deste modo, Leibniz resolve o problema da permanência da identidade.

2. Schopenhauer

O a u t o r d o M u n d o c o m o v o n t a d e e c o m o representação, acha que o homem desconhece o que o leva a agir: o seu carácter. O carácter é o meio, através do qual a natureza incarna em nós e arruina a nossa liberdade. Com efeito, o carácter é desconhecido e invariável: querer mudá-lo é tão quimérico como conseguir fazer com que um carvalho dê pêssegos. Mas o que é que a natureza quer de nós? A sua própria reprodução. Schopenhauer chama querer viver a este mecanismo cego que se serve dos nossos sentimentos amorosos, e do nosso desejo sexual, para perpetuar a espécie. Só a abstinência nos pode libertar deste processo inconsciente.

3. Freud

Inventor da psicanálise, Freud defende o paradoxo que consiste em afirmar que somos capazes de saber como funciona o inconsciente. O seu método inclui a análise dos sonhos - a via real na exploração do inconsciente. Aí revela-se o que o sujeito recalcou. Freud deduz daqui que o aparelho psíquico comporta três pólos: o Id

26

iBooks Author

Page 28: Conceitos em Filosofia

(origem das pulsões), o Superego (causa do recalcamento) e o Eu (gestor dos confl i tos inconscientes). Mas ele não se considera fatalista: O Eu há-de chegar aí onde o Id tem estado.

27

iBooks Author

Page 29: Conceitos em Filosofia

“O outro” designa uma consciência diferente da minha. Esta noção, na filosofia, tem um sentido mais restrito do que a noção de “outro” na linguagem comum, que pode remeter para uma coisa, para um animal ou até para o próprio Deus. Ligada à filosofia da consciência, que nasce com Descartes no século XVII, a questão do outro intervém no momento em que o sujeito se pergunta como é que pode sair da solidão da consciência de si (solipsismo) e conhecer o mundo pela via da intersubjectividade - da relação com os outros. Esta questão torna-se, por seu turno, uma questão moral, a partir do momento em que nos recusemos a fazer do outro simples duplos de nós mesmos, puros alter egos, ou a instrumentalizá-lo. Trata-se com efeito

de respeitar uma diferença, mantendo a comunicação com ela, por exemplo, através da empatia. A questão do outro interessa também à antropologia que pesquisa sobre a pluralidade de culturas e sublinha a sua irredutível alteridade.

Dois Exemplos

1. A Desumanização de Robinson

Robinson é uma figura mítica que tipifica o homem condenado à solidão. No livro Sexta-Feira ou os limbos do Pacífico, Michel Tournier propõe uma leitura deste personagem. Nele descreve o declínio de Robinson que, primeiro, impõe a si mesmo um código legal como se vivesse em sociedade, depois comporta-se como um animal, mais tarde “vegetaliza-se” fundindo-se com a ilha (faz amor com uma flor), e finalmente petrifica-se: o seu último prazer será o momento em que o sol o banha com os seus raios. O homem, privado do seu semelhante, acaba por deixar de se um homem.

28

• Secção 3 •

O Sujeito e o Outro

iBooks Author

Page 30: Conceitos em Filosofia

2. Os gorgolejos do estômago do vizinho

O que é suposto fazermos quando ouvimos os gorgolejos do estômago do vizinho? Fazemo-lo acreditar que não ouvimos nada. Esta atitude ilustra o que Ervin Goffman chama os ritos de interacção. Em sociedade queremos, certamente, salvar a nossa face, mas sobretudo queremos salvar a face dos outros. A sociologia das interacções explica deste modo que, se fazemos tudo o que está ao nosso alcance para evitar o embaraço dos outros (ao ponto de pedirmos desculpa por eles), isso acontece essencialmente por interesse e não por delicadeza: queremos estabilizar os laços sociais, para não sermos nós próprios marginalizados.

Três Autores

1. Hegel

O outro desempenha um papel decisivo na passagem da consciência imediata à consciência de si. Com efeito, para Hegel, eu serei desconhecido para mim mesmo, se não for reconhecido pela mediação de uma outra consciência. Disto mesmo é testemunha a célebre dialéctica do senhor e do escravo: aquele que, para se fazer reconhecer, encoraja o medo da morte, domina e

escraviza aquele que não consegue fazer prova da sua liberdade. Mas o senhor torna-se dependente do trabalho do escravo que, por seu turno, domina o seu outro e se faz reconhecer por ele. Este jogo de reconhecimento recíproco é uma etapa necessária ao despertar da inteligência.

2. Sartre

Sartre dá o nome de “para-o-outro” àquela estrutura da minha consciência que faz com que seja invadido pelo outro: posso, por exemplo, experimentar um sentimento de vergonha estando sozinho (se olhar pelo buraco de uma fechadura e me sentir visto por alguém, mesmo que esse sentimento seja falso). Esta dimensão para-o-outro, que fere a minha liberdade, é, portanto, sobretudo, negativa: o outro é aquele para quem eu sou um objecto, aquele que me pode coisificar, desde logo porque me fundo com a imagem que ele tem de mim. Então, sim, o inferno são os outros.

3. Levinas

Levinas faz do outro o ponto de partida da sua filosofia moral. Para ele, o “tu” precede o “eu”. É através do outro que eu me torno pessoa. Desde o momento em que vejo a face de alguém, ela pede-me que a respeite, e,

29

iBooks Author

Page 31: Conceitos em Filosofia

desse modo, revela-me a possibilidade de lhe recusar esse pedido. O outro é o único ser que posso querer matar. É portanto através do outro - e em particular através dos mais fracos (as crianças, os idosos...) que eu descubro a minha própria dimensão moral.

30

iBooks Author

Page 32: Conceitos em Filosofia

O desejo é, muitas vezes, concebido como a expressão de algo que nos falta. A palavra tem, aliás, origem na linguagem dos oráculos, onde designava a ausência de uma estrela (siderius) no céu. Distingue-se o desejo de uma necessidade (que se refere a uma satisfação urgente) e do ansiado (cuja realização é muitas vezes utópica). Quando o desejo é tão intenso que se torna exclusivo, fala-se de paixão. Inversamente, a ausência de desejo corresponde a uma falta de força (astenia), de gosto (apatia). São duas as disciplinas que se interessam particularmente pelo desejo: a psicanálise que o aproxima da pulsão, e a moral que se interroga sobre a possibilidade de controlar os desejos. Epicuro distingue os desejos sãos (naturais e necessários) dos desejos que o sábio deve evitar (prazeres do corpo,

busca de riqueza, de glória...). A atitude que visa aniquilar os desejos chama-se ascetismo; é pouco valorizada pela filosofia (excepto no estoicismo) porque gera frustrações que podem conduzir à neurose ou à perversão.

Dois Exemplos

1. As Hesitações de Hamlet

No Hamlet, Shakespeare desenha o retrato de um herói “abúlico”: doentiamente indeciso. O príncipe Hamlet está, com efeito, dividido entre dois desejos: vingar o seu pai, talvez covardemente assassinado pelo seu irmão Claudius, ou não fazer nada. É que quem comanda esta vingança é o espectro do seu pai. Como acreditar num espectro? Mas se ele tem razão, como deixar um covarde usurpador a reinar? Incapaz de escolher, Hamlet é tentado pelo suicídio. Mas aqui também entre ser e não ser, qual é a boa escolha?

31

• Secção 4 •

O Sujeito e o Desejo

iBooks Author

Page 33: Conceitos em Filosofia

Difícil existência esta, confrontada com desejos contrários.

2. Os ciúmes de Ajax

Homero conta na Odisseia, no diálogo nos Infernos, que Ajax se recusa a falar com Ulisses. Não lhe perdoa ter-se apossado das armas de Aquiles e, enganado por Atena, ter conhecido a vergonha ao ponto de ser tentado ao suicídio. Esta relação trágica entre dois heróis gregos ilustra a dimensão mimética do desejo, tal como o analisa René Rirard. Nós não desejamos um objecto por aquilo que ele é, mas porque é desejado por outros. Aquilo que o desejo imita é o desejo do outro. É este mimetismo que gera a rivalidade e a violência.

Três Autores

1. Santo Agostinho

Após ter levado uma vida de prazeres, santo Agostinho converte-se ao cristianismo e leva uma vida austera virada para Deus. Nas Confissões, onde narra a sua c o n v e r s ã o , c o n s a g r a u m c a p í t u l o i n t e i r o à intemperança. Defende que é impossível distinguir o que fazemos por necessidade do que é feito por desejo, e que esta incerteza é deliciosa, porque sob o véu da

higiene, ela esconde os interesses do prazer. Assim, após um esforço intenso, podemos beber água com deleite, bebendo-a em nome da santidade. Devemos desconfiar do desejo, porque o seu objecto é ambivalente.

2. Espinosa

Para Espinosa, o desejo não tem origem na falta de alguma coisa. O desejo é que se relaciona com o seu objecto. O que quer dizer que uma coisa é julgada boa não porque a desejamos, mas é porque a desejamos que ela é considerada boa. Mas então de onde vem o desejo, se não é a expressão de algo que nos falta? Espinosa responde: do próprio ser, pois toda a coisa, na medida em que é em si, esforça-se por preservar-se no seu ser (teoria do conatus que significa esforço). O desejo é, portanto, para Espinosa, a essência do homem.

3. Schopenhauer

Schopenhauer vê no desejo a infelicidade do homem: enquanto não está satisfeito, é vivido em modo de sofrimento, mas, uma vez realizado, perde o interesse e gera outro desejo. Pessimista, Schopenhauer não hesita em afirmar que a vida oscila, como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento para o

32

iBooks Author

Page 34: Conceitos em Filosofia

aborrecimento, entendendo-se que o aborrecimento não é a morte do desejo, mas o momento em que ele recupera forças e se desloca para outro objecto: o aborrecimento é o desejo de desejar de novo, e sentir que nunca estaremos verdadeiramente satisfeitos.

33

iBooks Author

Page 35: Conceitos em Filosofia

A existência é o facto de ser. Distingue-se da essência que designa aquilo que uma coisa é. À excepção de Deus cuja existência é eterna, o próprio da existência é ser finita, limitada no tempo. A existência opõe-se neste sentido à morte. O tempo, por seu turno, designa um período que decorre entre dois acontecimentos. Caracteriza-se pela mudança (é por isso que Platão o define como uma imagem móvel da eternidade) e pela irreversibilidade (não podemos voltar atrás no tempo, a não ser na ficção). No caso do homem, o facto de saber que a sua existência é finita leva-o a meditar no sentido da existência. As filosofias que centram a sua reflexão na existência são chamadas existencialistas. O existencialismo cristão (Pascal, Kierkgaard...) vê no

trágico de uma existência percebida como finita a oportunidade de uma conversão a Deus. O existencialismo ateu (Sartre) considera que a finitude não é um obstáculo à liberdade e que o homem constrói pouco a pouco a sua essência, através das suas escolhas e dos seus actos.

Dois Exemplos

1. O Mito de Sísifo

Por ter ofendido os deuses, Sísifo é condenado a empurrar um enorme rochedo até ao cimo de uma montanha; uma vez lá chegada, a enorme pedra rola sempre pela montanha abaixo. Este castigo torna o trabalho de Sísifo sempre imperfeito, eternamente recomeçado, vão. Mas é justamente esta ausência de sentido que interessa Camus: Sísifo é o herói absurdo por excelência. Pois, no momento em desce a montanha, Sísifo pensa que contemplando o seu tormento, supera o seu destino. A existência é um

34

• Secção 5 •

O Sujeito, a Existência e o Tempo

iBooks Author

Page 36: Conceitos em Filosofia

absurdo, mas sabê-lo é um penhor de felicidade: É preciso imaginar Sísifo feliz.

2. Funès, o Hipermnésico

Funès ou a memória é uma novela do Argentino Jorge Luís Borges que conta a história de um homem que sofria de hipermnésia: Funès, aldeão doente, memoriza tudo. Pode lembrar-se de todas as folhas caídas de uma árvore e do momento em que as viu cair. Mas esta memória integral revela-se inútil. Ao tentar reduzir as suas recordações para 70 000 por dia, Funès não consegue parar de as classificar, passa a sofrer de insónias e morre, esgotado, na sua cama. Para pensar, é preciso abstrair; para viver, é preciso esquecer.

Três Autores

1. Santo Agostinho

No livro XI das suas Confissões, santo Agostinho contesta a opinião, segundo a qual o tempo pode ser dividido em três dimensões: o passado, o presente e o futuro. O passado já não é; O presente flui permanentemente e parece inacessível; O futuro ainda não é. Mas há uma vivência que corresponde a estas três temporalidades: um presente do passado que é a

memória, um presente do presente que é a visão directa, e um presente do futuro que é a expectativa. O tempo, portanto, vive-se sempre no presente e subjectivamente.

2. Kant

Na Crítica da razão pura, Kant mostra que o tempo não é algo em si, mas a forma a priori (que precede a experiência) da nossa percepção. O tempo serve de enquadramento ao aparecimento possível dos fenómenos. Com o espaço, o tempo condiciona a experiência, através da qual acedemos ao mundo exterior. Para Kant, tudo se passa no tempo, mas o tempo, ele, não passa.

3. Bergson

Para Bergson, a nossa abordagem do tempo é, regra geral, errada. Temos tendência a dividi-lo como fazemos com o espaço. Ora, a experiência pura da temporalidade mostra-nos que não há descontinuidade entre o presente, o passado e o futuro. O tempo é uma mudança, mas uma mudança contínua: a duração real vive-se de maneira intensiva e subjectiva. Por outro lado, a intuição pode apreender verdadeiramente o tempo, e apreendê-lo como duração. A duração, subjectiva, não é o tempo, objectivo. Quando alguém se

35

iBooks Author

Page 37: Conceitos em Filosofia

enfastia, cinco minutos duram duas horas. A isto se refere a duração (durée) de Bergson.

36

iBooks Author