conceito teatral

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 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 169-175, março/maio 2001 169 teatro Um certo conceito de SÉRGIO DE CARVALHO SÉRGIO DE CARVALHO é professor de Literatura Dramática do Departamento de Artes Cênicas da Unicamp, diretor e dramaturgo da Companhia do Latão, e editor da revista Vintém . História Mundial do Teatro , de Margot Berthold, São Paulo, Perspectiva, 2000. Ilustração de 1672 para livro de Francis  Kirkman

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Texto escrito por Serginho Mallandro, explicando como ter um certo conceito de teatro.

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  • REVISTA USP, So Paulo, n.49, p. 169-175, maro/maio 2001 169

    teatro

    Um certo conceito deSRGIO DE CARVALHO

    SRGIO DE CARVALHO professor de LiteraturaDramtica doDepartamento de ArtesCnicas da Unicamp,diretor e dramaturgo daCompanhia do Lato, eeditor da revista Vintm.

    Histria Mundial doTeatro, de MargotBerthold, So Paulo,Perspectiva, 2000.

    Ilustrao de

    1672 para livro

    de Francis

    Kirkman

  • REVISTA USP, So Paulo, n.49, p. 169-175, maro/maio 2001170

    Histria Mundial do Teatro,

    de Margot Berthold, dos

    poucos livros desse tipo lan-

    ados no Brasil. Na dcada

    passada tivemos, salvo enga-

    no, apenas uma publicao

    semelhante, Teorias do Tea-

    tro, de Marvin Carlson, que,

    como o nome diz, d um panorama das teo-

    rias cnicas e dramatrgicas desde Arist-

    teles, mas sem o propsito de descrever as

    prticas do palco. Quem procurar nas pra-

    teleiras dos sebos paulistas outras historio-

    grafias gerais s encontrar, com muito es-

    foro, algumas das tentativas brasileiras,

    escritas para atender a necessidades imedi-

    atas de sala de aula (penso nos trabalhos de

    Hermilo Borba Filho e Nlson de Arajo),

    com um propsito quase herico de estabe-

    lecer snteses pedaggicas para uma ferti-

    lizao intelectual, e que, tendncia co-

    mum ao conjunto do nosso teatro, se mos-

    traram como aes sem continuidade.

    Quanto aos grandes compndios estrangei-

    ros, como a Histria do Teatro Dramtico,

    do italiano Silvio DAmico, ou a Histria

    do Teatro Europeu, do russo Ignatov, refe-

    rncias clssicas do sculo XX, escritas em

    mais de um tomo, ao certo ainda causam

    nos nossos editores algum temor pnico de

    encalhe, nica explicao para lacunas to

    notveis.

    Uma segunda virtude da Histria Mun-

    dial do Teatro, de Margot Berthold, virtu-

    de j interna, est na abrangncia de seu

    plano. um livro em que o termo mundi-

    al do ttulo no decorre de uma megalo-

    mania europia, mas do propsito de dis-

    por, em p de igualdade, sem hierarquia,

    vrias formas representacionais do Ociden-

    te e de civilizaes antigas, como as dos

    egpcios, chineses, indianos, persas, sem

    que as produes populares sejam consi-

    deradas menos importantes do que as eru-

    ditas, sem que as teatralidades orientais

    sejam lidas como preparatrias do mila-

    gre teatral grego.

    Ainda que a autora tenha como refern-

    cia um certo conceito discutvel de teatro,

    que se liga, sim, forma dialogada,

    imbricao com a vida pblica da cidade e

    ao aparecimento do ponto de vista do indi-

    vduo, estas referncias, determinantes na

    experincia grega, so pouco utilizadas

    como critrios explcitos de valor. Surgem

    de passagem, como comentrios paralelos,

    e mais interferem no conjunto de uma sele-

    o que, ao fim das contas, escolheu mos-

    trar as representaes das grandes civiliza-

    es, e no as das culturas localizadas.

    Fica valendo, de qualquer modo, o dito

    de Ariano Suassuna, segundo o qual, o

    Teatro no comea na Grcia, o teatro grego

    que comea na Grcia, neste livro que tem

    um gosto mais universal do que a mdia.

    Como decorrncia do respeito pelas

    formas tradicionais, surge mais uma virtu-

    de do trabalho. Refiro-me sua ateno

    aos materiais concretos da cena, aos pro-

    blemas de ordem sensvel do palco, coisas

    que os artistas (e no os crticos) costumam

    manipular no seu ofcio. De cada pgina

    fica antes a visualizao dos espetculos

    do que a dos textos. Fica a imagem das

    formas arquitetnicas dos espaos e das

    construes cenogrficas.

    Vez ou outra, despontam os limites desta

    escolha. Estimulado pelos relatos histri-

    cos, o leitor sente falta de uma reflexo que

    consiga integrar o modo de produo, a cir-

    cunstncia e o projeto artstico. O que no

    veda, porm, a quem se dispuser a tanto, a

    possibilidade de expandir as breves suges-

    tes em busca de uma interpretao crtica

    mais aprofundada.

    A

    Xilogravura

    para a edio

    de uma comdia

    de Terncio

    (1561)

  • REVISTA USP, So Paulo, n.49, p. 169-175, maro/maio 2001 171

    Cabe lembrar que uma obra publicada

    originalmente em 1968. Sua construo

    algo fenomenolgica parece se nortear por

    uma tentativa de sntese cultural, em que o

    pensamento procura abrir espao descri-

    o dos modos teatrais particulares. Essa

    fascinao pelos gneros segue a tradio

    do idealismo humanista alemo, mas cor-

    responde tambm ao preceito de deixar as

    obras falarem com base em seus pressu-

    postos mais gerais, sem inteno de inter-

    pretao crtica. Se compararmos tal pers-

    pectiva, ainda totalizante (em que pesem

    suas mediaes panormicas), com as es-

    pecializaes e fragmentaes dos estudos

    teatrais a partir dos anos 70, que passaram

    a se debruar sobre as matemticas

    semiolgicas, as linguagens abstradas da

    histria ou sobre particularizaes tnicas,

    regionais e arcaicas, a ponto de abrirem

    mo, de vez, do problema do valor (que

    assim passou a ficar ocultamente dado, sem

    mais necessidade de ser construdo pelo

    argumento, num vale-tudo potico muitas

    vezes paralisante), no tenho dvidas em

    afirmar que o idealismo sensvel da au-

    tora alem, com sua saudade de Goethe e

    Schiller, tinha maior utilidade.

    Recolhido logo da segunda pgina do

    livro, o seguinte pargrafo nos serve de

    ponto de partida para discutir melhor o

    enquadramento conceitual com base no qual

    ela trabalha. Ao falar das caractersticas dos

    teatros primitivos, escreve: O desenvol-

    vimento e a harmonizao do drama e do

    teatro demandam foras criativas que fo-

    mentem o seu crescimento; tambm ne-

    cessria uma auto-afirmao urbana por

    parte do indivduo, junto a uma superestru-

    tura metafsica. Sempre que essas condi-

    es foram preenchidas seguiu-se um

    florescimento do teatro.

    O FLORESCIMENTO DO TEATRO

    Dessa assero, surgem vrias questes

    polmicas. A primeira se refere aos con-

    ceitos de teatro e drama, apresentados

    como distintos, o que de fato so ainda

    que a tradio anglo-americana os identifi-

    que , mas cujo suposto padro ideal seria

    o de uma harmonizao. No demrito

    para ningum acreditar que o teatro dra-

    mtico um estgio superior da arte da

    representao, ainda que isso no seja ver-

    dade. Hegel partilhou dessa auto-referente

    convico que s pode ser compreendida

    na perspectiva da viso de mundo burgue-

    sa, e na afinidade de seu prprio sistema

    filosfico com os dialogismos teleolgicos

    do drama. Como forma literria particular,

    no entanto, o drama datado, com hist-

    ria precisa, correlato ao fortalecimento dos

    valores libertrios do indivduo moderno e

    ascenso da burguesia como classe.

    No o drama burgus que Margot

    Berthold tem em mente no citado pargra-

    fo, mas parece que os valores desta forma

    histrica impregnam sua proposio de um

    conceito geral, o que tambm j acontecia

    com as teorias novecentistas que, retoman-

    do Plato e Aristteles, estabeleceram as

    distines com o pico e o lrico.

    O drama geral, que ela apresenta como

    inegvel conquista civilizatria, correspon-

    de a uma forma teatral e literria em que

    existe um dualismo da voz narrativa, ins-

    taurado, no caso grego, pelo respondedor

    do coro, diviso que fez com que a palavra

    no proviesse de um narrador, mas fosse

    gerada pelos diversos agentes da ao re-

    presentada. Acredito que seja com esta idia

    que ela trabalha.

    J o conceito de teatro a que ela se refe-

    re parece sugerir toda e qualquer organiza-

    o espetacular com inteno esttica evi-

    dente. Uma dana ritual indgena ou um

    canto invocatrio, por exemplo, seriam

    formas que carregam em si as sementes

    do teatro, mas que no podem ser lidas

    com os mesmos parmetros. As eventuais

    qualidades estticas no esto em primeiro

    plano por no haver um pblico que as per-

    ceba como tais. Dir a autora: O compo-

    nente decisivo do teatro: seu indispensvel

    parceiro criativo, o pblico, quem defi-

    ne a relao com a obra. Alm disso, a co-

    munho ritual no coisa a que se chegue

    pelo debate consciente, pelas oposies

    dialgicas que constituiro o drama. As

  • REVISTA USP, So Paulo, n.49, p. 169-175, maro/maio 2001172

    prticas da religiosidade, mesmo que che-

    guem a demonstrar (em termos adjetivos),

    alguma dramaticidade ou teatralidade,

    se encontram to distantes do teatro ou

    do drama (em termos substantivos) quan-

    to mais prximas de uma fora epifnica

    que porventura tenham.

    Essas antinomias so importantes para

    a leitura do livro. Reaparecem em vrias

    passagens, como no captulo do teatro

    medieval bizantino, em que um dos tpicos

    se intitula teatro sem drama.

    Ali fica ntida uma modificao na

    liturgia da Igreja Oriental, que, em deter-

    minado momento, assumiu um carter dra-

    mtico, com suas recitaes alternadas,

    hinos cantados por um solista e coros

    respondentes, sermes dos dias festivos e

    dilogos intercalados. O dualismo se ins-

    taura na cerimnia, como etapa da supera-

    o simblica em Deus. O ritual assume

    qualidade dramtica. So, entretanto, mo-

    dos de organizar o ofcio religioso que no

    modificam, no todo, a atitude do partici-

    pante, a ponto de termos diante dos olhos

    um espetculo de teatro. Mais adiante, quan-

    do as representaes ganham autonomia

    ficcional, como histrias mostradas nas

    adjacncias da celebrao, a sim surgem

    as formas teatrais. Pelo carter especfico

    da cultura bizantina naquele momento de

    declnio do Imprio Romano e da ascenso

    do cristianismo, uma certa rarefao da

    cidadania parece ter favorecido a prolife-

    rao de diversas teatralidades de cunho

    religioso. Mesmo ligadas ao mbito de um

    culto que se dramatizava, no chegaram a

    derivar em teatros dramticos, coisa que a

    autora parece lamentar.

    As relaes entre teatro e religio per-

    fazem um dos temas mais importantes de

    qualquer histria do teatro. O interesse em

    distinguir em teoria experincias que tm

    fronteiras prticas comuns est em enten-

    der os mecanismos culturais prprios com

    que cada poca e lugar, para alm de come-

    morar os deuses, passaram a refletir sobre

    o sentido das aes humanas.

    No cristianismo ocidental da Idade

    Mdia, por exemplo, as representaes da

    Paixo de Cristo, ocorridas nas festivida-

    des da Pscoa, tinham, em cada localidade,

    as feies da comunidade. Mas seguiram

    uma dinmica invariavelmente comum s

    situaes de fortalecimento urbano: de in-

    cio mostradas dentro da nave da Igreja,

    foram para o ptio prximo porta princi-

    pal, depois se espraiando pelas ruas e pra-

    as pblicas. Um movimento que parece

    provir de uma necessidade de propaganda

    religiosa aliada aos interesses da pequena

    burguesia das corporaes de ofcio em as-

    censo, que patrocinavam os festejos tam-

    bm para se ver neles representada. Talvez

    a interferncia tenha sido responsvel pela

    gradual modificao dramtica de certas

    cenas dos Passos de Cristo, cujo exemplo

    mais curioso do livro o do crescimento de

    personagens secundrias ligadas vida ur-

    bana, tipos como aquela mulher do ferreiro

    que, diante da hesitao do marido em ven-

    der aos legionrios romanos pregos para o

    martrio da crucificao, ela mesma toma da

    tenaz e do martelo para forjar as peas. O

    teatro, ao longo de sua histria, tem sido um

    espao privilegiado pelo qual as classes

    dominantes ou ascendentes reconhecem e

    fortalecem sua imagem pblica.

    na mesma linha de raciocnio que vale

    chamar a ateno ao destaque dado por

    Margot Berthold noo de superestrutu-

    ra metafsica, que, se contraposta auto-

    afirmao urbana por parte do indivduo,

    favoreceria o florescimento do teatro dra-

    mtico.

    A interferncia da superestrutura me-

    tafsica nas formas de representao uma

    hiptese que tem validade relativa s at o

    Renascimento. A partir da era burguesa tem

    relevncia terica se discutida do ponto de

    vista do gosto potico. o que ela faz, sem

    que isso fique muito claro. No como

    proposio cientfica que a autora se per-

    mite encerrar seu estudo com a seguinte

    idia, exposta nas ltimas pginas do livro:

    O teatro, quando alcana a perfeio,

    igualmente a mais antiga e a mais contem-

    pornea representao da vulnerabilidade

    do homem diante de foras inescrutveis.

    Como doutrina potica tem l sua bele-

    za. As angstias do homem em relao

    morte, ou qualquer nome que se d a este

  • REVISTA USP, So Paulo, n.49, p. 169-175, maro/maio 2001 173

    campo de preocupaes, constituem um

    tema de alcance universal na histria do

    teatro. E no seria difcil achar quem tradu-

    zisse a expresso foras inescrutveis por

    mundo administrado ou qualquer

    correlato politizante. Isso no nos impede

    de lembrar que se trata de uma viso espe-

    cfica de arte, que no contm em si todas

    as possibilidades dela, nem necessariamen-

    te as mais importantes.

    Acredito que o fator mais importante

    para o florescimento do teatro, por seu

    poder de desestabilizao, est naquilo que

    a prpria autora denomina foras criati-

    vas. Mais uma vez, ela no define a ex-

    presso. Ao certo se refere a uma inter-re-

    lao de interesses entre artistas e pblico

    em determinada poca. So demandas

    advindas das vontades coletivas que po-

    dem explicar, caso a caso, as enormes in-

    terferncias mundanas nesse dilogo com

    as foras inescrutveis. muitas vezes a

    necessidade de compreender a totalidade

    das experincias do pblico que pede o atrito

    entre a viso trgica da vida e a viso cmi-

    ca. O fenmeno teatral , no mnimo, to

    complexo como sugere a seguinte passa-

    gem: Em todos os lugares e pocas, o tea-

    tro incorporou tanto a bufonaria grotesca

    quanto a severidade ritual. Podemos en-

    contrar elementos farsescos nas formas

    mais primitivas.

    A leitura da Histria Mundial do Tea-

    tro tambm parece sugerir, nas entrelinhas,

    que o teatro, considerado apenas como es-

    petculo sensvel, quando desvinculado de

    seus debates verbais, teria maior aptido a

    ser instrumentalizado por foras conserva-

    doras. Nos termos da autora, o teatro sem

    drama tenderia a ser menos problema-

    tizador, menos rebelde, mais conformista

    do que o dramtico, e acredito que essa

    hiptese polmica no deve ser descartada

    de imediato. De fato, os grandes imprios

    foram mais espetaculares do que

    dialogantes, como se v na Roma coloni-

    zadora, que precisava levar, aos quatro

    cantos do mundo, uma mistura de distrao

    popular e imagem venervel de governo

    central. No era tarefa que solicitasse di-

    vergncias retricas, como bem sabiam

    aqueles que se utilizaram do circo como

    aliado forte, no apenas para motivar e dis-

    trair os exrcitos no meio dos povos con-

    quistados, mas tambm para transmitir a

    impresso de insuperveis avanos moder-

    nizantes aos dominados. As demonstraes

    tecnolgicas dos aparatos mecnicos, das

    cenografias mirabolantes eram sobretudo

    uma afirmao do poderio romano. Se pen-

    Desenho de

    cenrio para

    uma pea de

    Julius Minding

    (1873)

  • REVISTA USP, So Paulo, n.49, p. 169-175, maro/maio 2001174

    sarmos no que vem ocorrendo com a difu-

    so tecnolgica da cultura artstica norte-

    americana, encontraremos analogias

    reveladoras.

    O que no se pode, a partir da, confiar

    na opo contrria de que o impulso dra-

    mtico com suas crises verbais se

    associa, em geral, a um esprito de rebe-

    lio, como est sugerido no seguinte trecho

    acerca das prticas egpcias: Para um

    florescimento das artes dramticas, teria

    sido necessrio o desenvolvimento de um

    indivduo livremente responsvel que ti-

    vesse participao na vida da comunidade,

    tal como encorajado na democrtica Ate-

    nas. Faltava ao egpcio o impulso para a

    rebelio, no conhecia o conflito entre a

    vontade do homem e a vontade dos deuses,

    de onde brota a semente do drama.

    Apesar de uma admirao tipicamente

    moderna pela teatralidade do Oriente, o que

    vibra no fundo de tal opinio , de novo, a

    valorizao da idia de que o teatro dra-

    mtico tem alguma supremacia por ex-

    pressar o ponto de vista do indivduo. Para

    usar o da autora: O drama se desenvolve

    a partir do conflito simbolizado na idia

    dos deuses transposta para a psicologia

    humana.

    O que precisa ficar claro que o dra-

    ma no uma mgica modificao do

    ritual, mas sim uma nova possibilidade his-

    trica de teatro entre tantas outras. Quan-

    do o coro grego se divide, o drama no

    nasce do rito, mas sim uma nova forma de

    teatro se diferencia de outra anterior, que

    j vinha sendo praticada como manifesta-

    o esttica, parte de uma festividade, essa

    sim, religiosa. neste sentido que a valo-

    rizao das teatralidades do indivduo,

    ainda mais se consideradas por seus as-

    pectos psicolgicos, deve ser entendida

    como doutrina. Quase sempre as afirma-

    es gerais sobre o teatro ocultam sua real

    face de norma potica.

    No se pode atribuir virtude ontolgica

    a nenhuma forma ou projeto artstico

    desvinculado de seu contexto histrico.

    Nem ao teatro, nem ao drama, seja l

    o que signifiquem esses termos que se tor-

    naram objeto de interesse especulativo a

    partir do Renascimento, e que estiveram

    em questo sempre que um grupo esteve

    preocupado em definir historicamente sua

    viso de cultura, ao mesmo tempo em que

    se reconhecia como grupo em busca de

    hegemonia. Exemplo disso a trajetria

    dos projetos modernos de formao dos

    Cena de

    Opere Varie de

    A. Manzoni

    (1845)

  • REVISTA USP, So Paulo, n.49, p. 169-175, maro/maio 2001 175

    teatros nacionais europeus, que, entre os

    sculos XVII e XIX, caminharam de um

    racionalismo ilustrado para um pobre na-

    cionalismo burgus. O resultado prtico,

    no conjunto da cultura, foi uma gradativa

    naturalizao de ideais particulares, que

    aparecem como valores gerais da humani-

    dade. Mesmo aqueles que almejaram de fato

    um projeto mais universalista, como Goethe

    ou Schlegel, acabaram por esbarrar na in-

    capacidade concreta de construir meios para

    que a Ilustrao pudesse ser levada ao con-

    junto da sociedade.

    As complexas relaes entre ideologia

    dominante e formas artsticas no se expli-

    cam facilmente por meio de relaes cau-

    sais. A indeterminabilidade, porm, no

    invalida o exame das mtuas influncias e

    intenes manifestas. Este ponto merece

    especial ateno no caso brasileiro. A difi-

    culdade histrica da burguesia nacional em

    se reconhecer como classe deita razes numa

    sociabilidade marcada, ao menos at o s-

    culo XIX, por precrios sistemas represen-

    tativos e pela vigncia de relaes de de-

    pendncia, compadrio, caudilhismo, que

    resultaram numa histrica hipertrofia do po-

    der privado dos grupos familiares e numa

    fraqueza do poder pblico. Esses fatores

    desintegradores das representaes polti-

    cas indefiniram tambm as representaes

    simblicas. Temos no Brasil contraditrias

    formas teatrais, entretecidas de idealismos

    burgueses (que nos chegavam na velocida-

    de dos avanos do capitalismo internacio-

    nal) mas que no se tornaram por aqui

    matrias da ao das peas. Nos momentos

    em que tentamos os nossos projetos nacio-

    nalistas, tanto no Romantismo, como no

    Modernismo, pocas em que aflorou a per-

    gunta sobre qual seria nossa teatralidade

    prpria, mesmo aqueles que acreditaram

    ser preciso representar a vida dos tipos na-

    cionais no chegaram a criar narrativas em

    que a histria decorresse de aes respon-

    sveis de indivduos livres. A liberdade

    parece ter sempre sido uma experincia re-

    trica no teatro nacional. E o drama bur-

    gus foi uma meta com freqncia deseja-

    da e nunca alcanada. Nossas mediaes

    formais mais paradigmticas costumam ser

    feitas de fora da obra, em esquemas gen-

    ricos que tentam harmonizar diferenas que

    no surgem como enfrentamento. Quando

    entendermos melhor o processo de

    autoconstituio da nossa burguesia como

    classe, talvez possamos compreender as

    contradies de tentativas teatrais de mo-

    dernizao que, todavia, parecem nunca

    superar uma difusa vontade de transformar

    a comunidade em comunho, ambio

    tpica da mentalidade clnica.

    Encerro este comentrio pensando que

    nunca se fez teatro sem que estivesse em

    questo a funo da atividade. Uma das

    virtudes prticas desta arte tem sido sua

    capacidade de escancarar, pela imediatitu-

    de do fenmeno, as contradies que a cons-

    tituem. A cena no esconde nada porque

    seus meios de dizer e mostrar o mundo esto,

    por mais que se tente ocult-los, expostos.

    S um pacto ideolgico permite o logro. O

    teatro um lugar de estranheza, e por isso

    a histria do teatro pode ser lida como a

    histria de seu funcionamento interessado.

    Por mais de um motivo, este livro nos faz

    pensar nisso, no teatro como coisa

    estranhvel.

    gua-forte dos

    Irmos

    Henschel para

    uma pea de

    Lessing (1811)