comunicação, audiovisual e educação

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Comunicação, audiovisual e educação narrativas de pesquisa Adriana Hoffmann Rosane Tesch Vanessa Gnisci Organizadoras

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Page 1: Comunicação, audiovisual e educação

Comunicação, audiovisual e educação

narrativas de pesquisa

Adriana Hoffmann Rosane Tesch

Vanessa GnisciOrganizadoras

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Adriana Hoffmann Fernandes Pós-doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), doutora e mestre em Educação e Mídia, respectivamente pelo PROPED da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pela PUC-Rio. Professora da Escola de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Membro da Rede Internacional de Educação, Artes e Humanidades (Redarth) que integra Brasil, Portugal e Uruguai e da Rede de Formação Docente (Formad) em diálogo com toda a América Latina. Líder do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação (CACE) da Unirio/CNPq.

Rosane TeschDoutoranda em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); mestre em Educação e Licenciada em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); especializada em Arte e Cultura (UCAM). Atuou como professora convidada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Educação (ISEAC/FAAC). Professora e gestora na SME/RJ e integrante do Grupo de Pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação (CACE/UNIRIO) com pesquisa em cultura visual, redes cotidianas digitais e práticas docentes.

Vanessa Gnisci Doutoranda em Educação na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e integrante do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação (CACE/UNIRIO) com pesquisa voltada à literatura e booktubers nas redes digitais. Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e especialista em Literatura Infantojuvenil pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora adjunta do Colégio Pedro II e leciona as disciplinas Linguística Aplicada e Alfabetização e Letramento na pós-graduação em Psicopedagogia na Universidade em Nova Iguaçu (UNIG).

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Comunicação, audiovisual e educação:

narrativas de pesquisa

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universidade federal da bahia

reitor João Carlos Salles Pires da Silva

vice-reitor Paulo César Miguez de Oliveira

assessor do reitor Paulo Costa Lima

editora da universidade federal da bahia

diretora Flávia Goulart Mota Garcia Rosa

conselho editorial

Alberto Brum Novaes

Angelo Szaniecki Perret Serpa

Caiuby Alves da Costa

Charbel Niño El Hani

Cleise Furtado Mendes

Evelina de Carvalho Sá Hoisel

Maria do Carmo Soares de Freitas

Maria Vidal de Negreiros Camargo

grupo de estudos e pesquisa comunicação, audiovisual, cultura e educação

Page 5: Comunicação, audiovisual e educação

Comunicação, audiovisual e educação:

narrativas de pesquisa

Adriana HoffmannRosane Tesch

Vanessa GnisciOrganizadoras

Salvador

EDUFBA

2020

Page 6: Comunicação, audiovisual e educação

2020, Autores.

Direitos para esta edição cedidos à Edufba.

Feito o depósito legal.

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,

em vigor no Brasil desde 2009.

projeto gráfico

Gabriela Nascimento

normalização

Bianca Rodrigues de Oliveira

revisão

Cristovão Mascarenhas

ilustração capa

Semente de ecrã 1, Ludmila Duarte

Sistema de Bibliotecas – SIBI/UFBA

Comunicação, audiovisual e educação : narrativas de pesquisa / Adriana

Hoffmann, Rosane Tesch, Vanessa Gnisci, organizadoras. – Salvador :

EDUFBA, 2020.

233 p.

Contém biografia

ISBN: 978-65-5630-046-7

1. Recursos audiovisuais. 2. Cinema. 3. Cinema na educação. 4. Comunicação e

cultura. 5. Ensino audiovisual. I. Hoffmann, Adriana. II. Tesch, Rosane. III. Gnisci,

Vanessa.

CDD – 371.33

Elaborada por Jamilli Quaresma CRB-5: BA-001608/O

Editora filiada à:

EDUFBA

Rua Barão de Jeremoabo, s/n Campus de Ondina

Salvador - Bahia CEP 40170-115 Tel.: (71) 3283-6164

www.edufba.ufba.br

[email protected]

Page 7: Comunicação, audiovisual e educação

Sumário

prefácio … 7apresentação … 13

Projeto “o cinema e a narrativa de crianças e jovens em diferentes contextos educativos” (2010-2013)

1cinema no ensino fundamental: a pesquisa com o projeto megacine pelas narrativas das crianças … 21Adriana HoffmannÉrica Rivas GattoRenata Costa Ferreira

2narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora da escola … 37

Kelly Maia Cordeiro

3“cinema é um acontecimento”: investigando a prática cineclubista do cine cch na universidade … 55Thamyres DaletheseAdriana Hoffmann

Projeto “o cinema e as narrativas na era da convergência: modos de consumo, formação e produção de audiovisuais de crianças, jovens e professores” (2013-2018)

4jovens youtubers: novas aprendizagens … 75

Lucineia Batista

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5pedagogias da animação: experiências de criação de filmes na escola … 89

Joana Sobral Milliet

6uma pesquisa com filmes para jovens cegos: cultura do ouvir no contar filmes e/ou audiodescrever … 109Margareth OlegárioAdriana Hoffmann

7juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo … 125

Érika Lourenço de Menezes

8“se inscreve no meu canal”: relações entre crianças e youtube … 145

Thamyres Dalethese

9

professores de artes: a experiência audiovisual como formação e prática … 161

Jamila Guimarães

10cibercultura e redes sociais: refletindo sobre as práticas das juventudes … 179Lucy Anna DinizAdriana Hoffmann

11a arte de criar tapetes de histórias: ensaiando um convite narrativo entre o artesanal e o tecnológico … 195

Daniela Fossaluza

12agamben e a profanação da educação: as relações do cinema com a sala de aula e a formação de professores … 211

Pedro Freitas

sobre os autores … 229

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Prefácio

UMA DÉCADA DE PESQUISAS QUE TRATAM DE TEMAS URGENTES SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE CINEMA E EDUCAÇÃO

O diretor de cinema português, Edgar Pêra, realizou, em 2016, o filme intitulado

O espectador espantado. Trata-se de um documentário de longa-metragem, pou-

co convencional em seu formato. Nele, o diretor indaga o que define o cinema,

ou a experiência com o cinema, século XXI adentro, quando os suportes e apa-

ratos por meio dos quais os filmes são produzidos e veiculados sofrem transfor-

mações cada vez mais velozes. A narrativa se concentra numa sala de cinema

onde são projetados fragmentos dos próprios filmes de Edgar Pêra. Os relatos

dos espectadores constituem os fios condutores. Dentre os espectadores, estão

atrizes, diretores, críticos de cinema, além de cinéfilos e amantes do cinema em

geral. Interessa a Edgar Pêra compreender o que acontece na relação entre o es-

pectador e as imagens em movimento, sonorizadas, projetadas na grande tela.

“Espanto” é a palavra por ele escolhida para adjetivar esse encontro.

Alinhada às inquietações desse cineasta, antes de prosseguir no texto, peço

permissão à leitora, ao leitor, para perguntar: quais suas lembranças mais anti-

gas com o cinema? Quais foram as circunstâncias? Teria sido numa sala de cine-

ma? Caso não tenha sido numa sala de cinema, em que lugar? Lembram-se da

história, ou de fragmentos, talvez alguma imagem ou impressão? Que sentimen-

tos acompanham essas lembranças?

Sem quaisquer pretensões de produzir algum documentário ou outro gêne-

ro fílmico, há algum tempo venho colecionando relatos de pessoas em diversas

faixas etárias, sobre suas primeiras experiências com o cinema. Uma senhora,

numa turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA), contou-me certa vez, en-

tre muitos risos e brilhos nos olhos, uma aventura inesquecível. Determinada a

Page 10: Comunicação, audiovisual e educação

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assistir ao filme Nos tempos da Brilhantina, estrelado por Olivia Newton-John e

John Travolta no final dos anos 1970, ela teria fugido da aula, no turno vesper-

tino, pulando o muro dos fundos da escola que fazia fronteira com o terreno da

sala de cinema. Sua fuga envolveu planejamento prévio, e contou com a cumpli-

cidade das colegas de turma. Envolveu, ainda, uma clandestina troca de roupas

– o uniforme escolar poderia denunciá-la –, e a companhia de um candidato a

namorado, que a teria encorajado para o feito. Segundo ela, o namoro não deu

certo, do mesmo modo que, pouco tempo depois, precisou abandonar a vida es-

colar. Esta só foi retomada algumas décadas depois, entre adultos trabalhadores,

quase todos já na meia idade. Mas aquela experiência permaneceu, indelével,

entre suas lembranças mais vívidas.

Nesse relato, encontram-se alguns elementos bem frequentes no tocante às

memórias pessoais com o mundo encantado das imagens animadas e sonoriza-

das. A escola e o cinema muitas vezes se colocam em relação, não necessaria-

mente de modo amigável, linear ou de complementaridade, mas quase sempre

mediada pelos sentimentos de aventura, pelo desejo e, nesse caso, pelo romance.

Geralmente, as lembranças mais antigas que as pessoas trazem, no tocante à ex-

periência de assistir a um filme projetado no telão, numa sala escura, são carrega-

das de magia, de afeto, de sustos. De espanto.

Afora as sessões de cinema compartilhadas coletivamente, as narrativas fíl-

micas, atualmente, estendem-se para outros territórios e rituais, multiplicando-se

em telas de diversas dimensões, que habitam nossos quotidianos, desde os apara-

tos móveis a nos acompanhar, por onde possamos ir, aos aparelhos dispostos em

ambientes domésticos, de trabalho, instituições escolares, dentre quantos outros.

Tais experiências e as narrativas nelas testemunhadas integram memórias,

constituindo identidades. Não foi ao acaso que o cineasta e escritor chileno

Alberto Fuguet escreveu o romance Os filmes da minha vida,1 lançado, no Brasil,

em 2005. Nele, em vez de se debruçar sobre a linguagem cinematográfica pro-

priamente dita, ou de analisar os filmes que compõem a lista, o autor constrói

um livro sobre as memórias pessoais entrelaçadas ao cinema. Não estão ali os fil-

mes preferidos do autor, ou do personagem que assume, em alguma medida, seu

alter ego. Os filmes reportados a cada capítulo do livro são aqueles que, a partir

de um e outro aspecto formal ou narrativo, ou de outras referências circunstan-

1 FUGUET, A. Os filmes da minha vida. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

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Prefácio | 9

ciais, ficaram enganchados em alguma esquina ou cruzamento dos vários fios

que tecem as histórias de vida. Podem ser fragmentos da narrativa, a roupa que

um ator ou uma atriz usava, uma luz ou paisagem, ainda a imagem do cartaz, ou

o ambiente de projeção: retalhos da experiência compondo os bordados imper-

manentes da memória.

Nos projetos de pesquisa que tenho desenvolvido no campo do cinema,

reiteradamente chama a atenção como os filmes evocam as circunstâncias nas

quais são vistos. Essa constatação motivou-me, por exemplo, a, no início dos

anos 2000, desenvolver um projeto com a programação de filmes cujas histórias

versavam sobre temas da ficção cientifica. A audiência era formada por estudan-

tes do ensino médio, e também por docentes que atuavam nesse segmento da

educação básica.

Os filmes escolhidos tinham sido, anteriormente, por mim analisados du-

rante o doutoramento. No processo de análise, acabei por dar-me conta de que o

estudo, a despeito de sua amplitude e complexidade, carecia de percepções que

extrapolassem a minha própria. Que eventualmente até a ela pudessem se con-

trapor. Ou seja, ainda que eu conseguisse promover discussões adensadas a partir

dos filmes, elas estavam ancoradas tão somente em minhas percepções pessoais.

Eu sentia falta de interlocutores para diversificar os pontos de vista, propiciando

essa dimensão mais coletiva e dialogal do encontro com o cinema. Por isso, com-

partilhar aqueles filmes com estudantes e docentes da educação básica propicia-

va uma experiência de mão dupla: o projeto assegurava àquele grupo que pudesse

ampliar seus repertórios fílmicos, debatendo livremente sobre as narrativas mos-

tradas, ao mesmo tempo que oportunizava, a mim, a ampliação na percepção dos

filmes, sempre tão múltiplos, organizados em tantas camadas.

Quando uma pessoa se dispõe a assistir a um filme aberta à possibilidade

da experiência, sem um roteiro prévio a ser observado, amplia-se a riqueza das

aprendizagens propiciadas. Isso pode ainda ser potencializado, quando se asse-

gura a partilha da experiência, na interlocução entre os pares. Um tal exercício

resulta em produção de conhecimento, em descortinamento de paisagens, no

redimensionamento do sensível.

Sim, a experiência com o cinema, instaurada há pouco mais de um sécu-

lo, tem tomado parte ativa na formação e renovação de nossos imaginários, de

nossas visões de mundo, e da percepção de nosso estar no mundo. A lingua-

gem fílmica, em contínua transformação técnica, formal e narrativa, desde os

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10 | Comunicação, audiovisual e educação

primórdios, tem deflagrado aprendizagens múltiplas, que demandam inves-

tigações com diferentes recortes. Particularmente, é necessário, no âmbito da

educação, que se busquem estudos mais abertos à complexidade dessas relações

entre a experiência com o cinema e as aprendizagens deflagradas, nos processos

de escolarização, em diálogo com as demandas dos circuitos oficiais do cine-

ma e do audiovisual. Reside exatamente nesse aspecto a importância e a urgên-

cia do trabalho desenvolvido pelo grupo de estudos e pesquisa Comunicação,

Audiovisual, Cultura e Educação (CACE), com investigações sistemáticas sobre

essas relações entre as narrativas fílmicas, a cultura do cinema e as questões da

educação, contando com a liderança sempre sensível e competente da professo-

ra Adriana Hoffmann.

Criado em 2010, o CACE vincula-se ao Programa de Pós-Graduação e à Escola

de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Ao

longo de uma década, já construiu uma bagagem importante que inclui pesquisas,

publicações, participação em eventos, dentre tantas outras frentes de atuação.

A professora Adriana Hoffmann teve reconhecida sua liderança e importância

como pesquisadora na área, ao ser contemplada, pelo programa Jovem Cientista

do Nosso Estado, da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do

Estado do Rio de Janeiro (Faperj), para o período de 2018 a 2020. Não por acaso,

ela tem reunido, no CACE, pesquisadores em diversos níveis de formação, num

painel amplo de interesses e discussões que têm, em comum, interesses relativos

à educação, ao cinema e à cultura contemporânea.

Este livro coroa, assim, o percurso de uma década de trabalho. O conjunto de

textos apresentados, com a cuidadosa organização assinada pelas pesquisadoras

Adriana Hoffmann, Rosane Tesch e Vanessa Gnisci, abre-se para a atualidade

das questões já apontadas. Ressalta-se, como eixo orientador aos trabalhos, a

prioridade dada à educação, desde o ensino fundamental ao superior. Partilhada

por todos, também, é a base formada pela pesquisa de campo, de natureza parti-

cipativa. Assim, o trabalho de pesquisa se associa à docência, em processos que

aliam a vivência à reflexão e produção de conhecimento.

As temáticas abordadas abrem um gradiente necessário, tendo em vista o

cenário contemporâneo das questões da educação, do cinema e do audiovisual,

da cultura digital, sem perder de vista ainda as questões relativas à inclusão e à

acessibilidade. Ressaltam-se, inicialmente, os estudos sobre os modos como as

pessoas vivenciam a experiência de assistir a filmes, como se apropriam dessas

Page 13: Comunicação, audiovisual e educação

Prefácio | 11

narrativas, trazendo-as para as narrativas de si mesmas. Em caráter complemen-

tar a esse, estão as discussões sobre as possibilidades de produção de narrativas

audiovisuais por parte de jovens, estudantes, em contextos de aula e em plata-

formas digitais. A propósito, a temática da cultura digital também ganha prota-

gonismo entre os assuntos abordados, em suas reverberações aos modos como

os aparatos tecnológicos têm modificado tanto a recepção de filmes quanto a

produção de vídeos e seu compartilhamento em rede. Mais que isso, como as

plataformas digitais têm configurado novas dinâmicas de construção de apren-

dizagens compartilhadas.

Tem destaque especial o trabalho em que se discutem as potencialidades

do cinema junto a pessoas cegas ou com baixa visão. Os desafios trazidos por

tal abordagem colocam em pauta reflexões importantíssimas sobre o ato de ver,

bem como o papel das narrações na construção de referenciais sobre o estar e o

ser no mundo, cada qual com suas singularidades.

O livro que temos em mãos propõe possibilidades do cinema no campo da

educação que vão além, muito além do uso de filmes para ilustrar conteúdos cur-

riculares, ou como mera distração, preenchimento de tempo ocioso. Ao mesmo

tempo, sinaliza que trabalhos nessa direção não devem se subjugar aos interes-

ses do mercado cinematográfico, enquanto indústria do entretenimento. Essa

posição não se orienta por uma noção ingênua que possa supor possível deslocar

essa experiência para fora do mercado cinematográfico e suas demandas políti-

cas e econômicas. Contudo, reivindica a atenção para o fato de que o encontro

com o filme é impregnado de experiências culturais, pessoais, de memórias, re-

pertórios e referências que vão além dos interesses de mercado, ou dos possíveis

modismos.

Fica evidenciada, também, a necessidade de se aprofundarem investigações

relativas ao potencial pedagógico do cinema, sem ter como única condição sua

domesticação às delimitações da organização curricular da instituição escolar.

É comum apontar-se, como uma dificuldade importante para a inserção das

narrativas fílmicas no quotidiano escolar, a incompatibilidade entre os tem-

pos de aula e a duração dos filmes. As soluções para impasses como esse, qua-

se sempre, buscam limitar os conteúdos dos filmes aos conteúdos curriculares.

Um caminho possível está na organização de espaços, dentro e fora das escolas,

ou extrapolando os horários regulares de aulas, nos quais se possam ver filmes,

compartilhar relatos, falar sobre a experiência, produzir as próprias narrativas,

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12 | Comunicação, audiovisual e educação

construindo repertórios mais abertos, diversificados e complexos. É exatamen-

te nessa direção que o CACE tem encaminhado suas investigações, desaguando

nesta coletânea indispensável para pesquisadores e professores já no exercício

da profissão ou em formação.

Que os espaços de interlocução possam se multiplicar, desdobrando-se em

novas experiências e projetos nos vários níveis da educação. E que a todos seja

assegurado o direito ao espanto no encontro com filmes, projetados em salas de

cinema, em salas de aula, em copas de árvores, nas laterais dos edifícios, em su-

perfícies desde onde possam impregnar nossa imaginação com suas narrativas.

Alice Fátima Martins

Universidade Federal de Goiás (UFG)

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Page 15: Comunicação, audiovisual e educação

| 13

Apresentação

A proposta do presente livro é apresentar as pesquisas concluídas em dois

projetos institucionais realizados dentro do grupo de pesquisa Comunicação,

Audiovisual, Cultura e Educação (CACE), grupo registrado no Conselho Nacional

de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) sob orientação da profes-

sora Adriana Hoffmann. Tais pesquisas giram em torno do audiovisual dentro

dos espaços educacionais – escolas e universidade –, assim como em sua relação

com a cibercultura, articulando diferentes sujeitos, tanto crianças como jovens

e professores. Desse modo, ele será organizado em dois grandes eixos em que

cada um deles terá o nome do projeto maior de pesquisa institucional dentro

do qual as pesquisas foram finalizadas. Os dois projetos de pesquisa institucio-

nais que nomeiam cada grupo de pesquisas aqui apresentadas foram financia-

dos pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio

de Janeiro (Faperj), assim como também a publicação desse livro. Nesse texto

inicial, temos como objetivo apresentar o conjunto da produção e a construção

de trajetória e reflexão que viemos construindo nas pesquisas realizadas pelo

grupo. Mesmo tendo os dois projetos institucionais o viés apenas das áreas da

educação e comunicação, inicialmente, no decorrer do percurso das produções,

a questão da arte é trazida para o grupo, e começa a entrelaçar-se com a educa-

ção e a comunicação. Portanto, o título final do livro tem a cara das produções

desse grupo que está integrando cada vez mais essas áreas.

O livro marca em 2020 os dez anos de aniversário do grupo de pesquisa e foi

organizado procurando colocar juntas todas as pesquisas de dois projetos insti-

tucionais já finalizados, proporcionando ao leitor a reconstrução dessa trajetória

de pesquisa construída no coletivo. Cada pesquisa trazida por cada pesquisador

do grupo e suas parcerias integra as discussões do grupo como um todo e foi

construída nesse diálogo do fazer da pesquisa individual no conjunto das trocas

com o grupo e a orientação. Entendemos que o individual dialoga com o coletivo

Page 16: Comunicação, audiovisual e educação

14 | Comunicação, audiovisual e educação

e o coletivo com o individual e, portanto, o conjunto de pesquisas de cada projeto

aponta para o caminho que esse grupo como coletivo vem construindo. O livro é

mais uma forma de visibilizarmos, para nós e para os que querem nos conhecer

e dialogar conosco, esse percurso de ser e fazer-se pesquisador. Atualmente, es-

tamos no terceiro projeto institucional financiado por órgãos de fomentos como

a Faperj, mas o projeto atual ainda não tem pesquisas finalizadas para serem

incluídas neste livro.

O primeiro projeto institucional, intitulado “O cinema e a narrativa de crian-

ças e jovens em diferentes contextos educativos”, foi realizado entre os anos de

2010 e 2013, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), com

apoio da Faperj. O projeto teve como objetivo perceber como crianças do ensi-

no fundamental e jovens do ensino médio e superior constroem seus modos de

relação com o cinema e que narrativas produzem a partir dessas experiências

vividas em espaços de formação – escola e universidade – que proporcionam

momentos de convívio com o assistir, pensar e produzir com a linguagem audio-

visual. Considerando o referencial teórico dos estudos culturais latino-america-

nos, o projeto de natureza qualitativa teve como estratégias metodológicas para

o trabalho de campo a observação de momentos de exibição de filmes e debates

nas instituições e a realização de entrevistas coletivas com as crianças e os jovens

com posterior análise de suas produções narrativas.

No contexto desse projeto, foram realizadas três pesquisas que trabalharam

na perspectiva do cinema como espaço de formação nas diferentes instituições.

Nesse período, a pesquisa proposta realizou-se em parceria com o prof. Pedro

Benjamin Garcia, da Universidade Católica de Petrópolis (UCP), sendo um dos

campos de pesquisa uma escola de ensino médio técnico em audiovisual na ci-

dade de Petrópolis. Os demais campos de pesquisa foram uma escola de ensino

fundamental, em que uma das pesquisadoras era docente, e a própria Unirio,

através do projeto de extensão do cineclube Cine do Centro de Ciências Humanas

(CCH), de 2010 a 2016, nas dependências da mesma universidade. Sendo assim,

tivemos as mestrandas Erica Rivas pesquisando com as crianças do ensino fun-

damental numa escola pública do município do Rio de Janeiro e Kelly Cordeiro

pesquisando com os jovens do ensino médio dentro da parceria feita com a UCP

numa escola pública do estado do Rio de Janeiro, na cidade de Petrópolis, e, no

ensino superior, diferentes turmas e cursos que frequentaram nosso cineclube

Page 17: Comunicação, audiovisual e educação

Apresentação | 15

e a escrita de monografias de graduandas bolsistas de iniciação científica das

quais o estudo de uma delas, Thamyres Dalethese, está presente nesse livro.

O capítulo de Erica Rivas, escrito em parceria com Adriana Hoffmann e

Renata Ferreira, bolsista de Iniciação Científica (IC) da graduação, traz os resul-

tados de uma pesquisa com crianças do ensino fundamental, cujas experiências

vividas, coletivamente, na escola, com a criação do cineclube Megacine, fizeram

emergir narrativas das crianças sobre si e suas relações com a cultura do cinema

e a construção de sentidos a partir de cada filme exibido. O texto também mos-

tra o envolvimento dessas crianças na pesquisa, que passam a atuar, inclusive,

como mediadoras de sessões de cinema para outras crianças, estimulando os

debates, em um desdobramento do Megacine.

Kelly Cordeiro apresenta a pesquisa realizada no ensino médio de um colégio

estadual, em Petrópolis, com curso médio integrado de formação profissional em

Áudio e Vídeo, durante os anos 2011 e 2012, em momentos de exibição e debate

de filmes em parceria da escola com a Unirio e a UCP. A pesquisa apresenta como

os jovens construíam suas relações com o cinema dentro da escola e que relações

eram vividas por eles com o cinema fora da escola. Através das falas dos jovens

entrevistados, a autora comenta alguns dos achados da pesquisa que evidenciam

o modo como os jovens viviam essa experiência com o cinema na escola e ela co-

meçava a fazer parte dos modos de consumo e leitura deles.

Thamyres Dalethese e Adriana Hoffmann trazem a prática do cineclube uni-

versitário realizada junto ao projeto de extensão “Cine CCH: aprendizagens com

o cinema” que existiu na na Unirio de 2010 a 2016 associado e coordenado pelo

grupo CACE. Aqui, o cinema é pensado como espaço de ações pedagógicas e co-

letivas que formam os participantes, social e culturalmente. No capítulo, as nar-

rativas desses participantes, em sua maioria estudantes do curso de Pedagogia

da Unirio, revelam como trajetórias de vida permeadas pelo cinema são recons-

truídas, reconhecendo-se a relevância do papel do outro na formação de cada

um de nós.

O segundo projeto institucional, intitulado “O cinema e as narrativas na era

da convergência: modos de consumo, formação e produção de audiovisuais de

crianças, jovens e professores”, foi realizado de 2013 a 2018 e também contou

com financiamento da Faperj. Essa nova proposta de pesquisa teve como obje-

tivo ampliar as demandas surgidas na pesquisa anterior. Dessa maneira, nessa

nova proposta integraram-se professores como sujeitos da pesquisa e também

Page 18: Comunicação, audiovisual e educação

16 | Comunicação, audiovisual e educação

se considerou a presença da internet nos consumos de cinema nos espaços de

consumo para além unicamente do espaço escolar, elementos que apareceram,

também, nas pesquisas do projeto anterior. Esse projeto institucional teve como

objetivo olhar de forma mais ampliada para as relações formativas vividas com

o cinema fora dos espaços institucionais visando à percepção dos processos de

autoria no consumo e à produção de narrativas audiovisuais de crianças, jovens

e professores e em sua atuação como cidadãos na sociedade. Nesse projeto, as

estratégias metodológicas já começaram a se diversificar, o que será percebido

nos capítulos referentes às pesquisas desse período.

No capítulo “Jovens youtubers: novas aprendizagens”, de Lucineia Batista,

a autora reflete sobre os processos de autoria e as novas aprendizagens contem-

porâneas de sete jovens, gamers e youtubers, estudantes do ensino fundamental

ao superior, com um interesse em comum: o mundo dos jogos. A partir de entre-

vistas e análise das produções compartilhadas no YouTube sobre cultura gamer,

Batista aborda as relações virtuais, oportunidades educacionais e atuais desafios

de jovens imersos em uma cultura de consumo e mediação tecnológica.

Animação é o tema do capítulo escrito por Joana Milliet. Parte de sua pes-

quisa de mestrado, o texto mostra como foi a participação de quatro professoras

da rede municipal de educação do Rio de Janeiro no projeto Anima Escola, em

2012 e 2013. Centrada na última etapa do projeto, quando as professoras são con-

vidadas a propor um filme de animação com alunos nas escolas, a pesquisadora

convida a pensar sobre uma possível “pedagogia da animação”, durante o pro-

cesso de criação, defendendo que gestos poderiam ser considerados pedagógi-

cos nesse processo.

O capítulo “Uma pesquisa com filmes para jovens cegos: cultura do ouvir no

contar filmes e/ou audiodescrever”, de Margareth Olegário e Adriana Hoffmann,

apresenta alguns dos achados da pesquisa de Olegário, realizada no Instituto

Benjamin Constant (IBC), onde ela atua como professora de crianças e jovens

cegos. A pesquisa teve como objetivo perceber o acesso desse público aos filmes

para entender como cegos e pessoas com baixa visão se relacionavam com os

filmes, buscando uma relação entre a experiência da pesquisadora e dos alunos,

ambos cegos. Através da pesquisa, Margareth vai vivenciando, junto com eles,

as tensões e aproximações entre a experiência deles de ouvirem/conhecerem os

filmes pelo contar filmes ou pelo audiodescrever.

Page 19: Comunicação, audiovisual e educação

Apresentação | 17

Os desenhos animados, a juventude e o tempo se entrelaçam no capítulo de

Érika Lourenço, que compartilha, a partir de uma pesquisa de mestrado, dados

produzidos entre os anos de 2015 e 2017 com jovens do ensino médio de uma

escola pública federal, no Rio de Janeiro. As narrativas dessa juventude nos aju-

dam a refletir sobre as relações construídas em um tempo de canais exclusivos

para desenhos e o aumento na produção dessas mídias para TV e cinema nos

últimos anos. Em meio às próprias experiências com os desenhos animados,

os jovens revelam seus olhares sobre o tempo e narram o que seriam, para eles,

“tempo livre”, “falta de tempo”, “cursos da vida”, em dimensões diversas.

Thamyres Dalethese, no capítulo “‘Se inscreve no meu canal’: relações entre

crianças e YouTube”, busca investigar as produções audiovisuais produzidas e

consumidas por sete crianças, de 7 a 12 anos, na plataforma de vídeos YouTube

e os sentidos culturais que se constroem a partir dessas interações no am-

biente virtual. Através dos relatos das crianças em encontros on-line e off-line,

Dalethese apresenta aspectos dos contextos de consumo, produção audiovisual

e expressão das infâncias contemporâneas.

No capítulo “Professores de artes: a experiência audiovisual como forma-

ção e prática”, Jamila Guimarães propõe investigar as relações de experiência

e formação com o audiovisual de quatro docentes que atuam no ensino público

com a disciplina de Artes. É a partir dos relatos autobiográficos desses professo-

res que Guimarães reflete sobre suas trajetórias e aborda temas como formação

de professores, relações de consumo de Arte, usos e produções audiovisuais em

sala de aula.

Lucy Anna Diniz e Adriana Hoffmann, no capítulo “Cibercultura e redes so-

ciais: refletindo sobre as práticas das juventudes”, problematizam as relações e

acesso de jovens entre 11 e 15 anos na internet, apresentando dados produzidos

em entrevistas e questionários de pesquisa desenvolvida numa universidade

pública. Diniz e Hoffmann abordam questões relacionadas à cibercultura, aos

processos de comunicação em rede e às mediações nas experiências juvenis com

a tecnologia na atualidade.

No capítulo seguinte, a autora Fossaluza, artista contadora de histórias e

professora, questiona acerca da possibilidade de alinhavar um fazer artesanal a

um fazer tecnológico com as crianças. Através do artigo “A arte de criar tapetes

de histórias: ensaiando um convite narrativo entre o artesanal e o tecnológico”,

ela narra como realiza sua pesquisa numa instituição filantrópica que atende

Page 20: Comunicação, audiovisual e educação

18 | Comunicação, audiovisual e educação

crianças em situação de risco social das comunidades do Pavão, Pavãozinho e

Cantagalo, localizadas na zona sul da cidade do Rio de Janeiro e, através da me-

todologia da pesquisa-atelier, percebe o despontar do eu-narrativo das crianças,

percebendo indícios de relações entre o artesanal e o tecnológico nesse processo

de contar das crianças.

Pedro Esteves, em seu capítulo “Agamben e a profanação da educação: as

relações do cinema com a sala de aula e a formação de professores”, traz uma

vertente de pesquisa relacionada a um olhar da arte que começa agregar valor às

pesquisas do grupo. Em sua pesquisa, concluída em 2018, que teve como objeti-

vo investigar a possibilidade ou não de profanar o processo educacional em uma

sala de aula de formação de professores através dos saberes cinematográficos,

ele concebeu as relações entre arte e cinema, a partir de leituras do filósofo ita-

liano Giorgio Agamben (1942-) e realizou seu trabalho de campo numa turma de

formação de professores em uma universidade pública. Através de propostas de

ver, refletir e produzir com os jovens da pesquisa, o autor apresenta os indícios

de profanação da educação através do cinema.

As três últimas pesquisas já vão apontando o vínculo que o grupo inicia com

a arte, começando a mesclar pesquisas que trazem a arte para esse diálogo com

a comunicação, agora articulada às discussões da cultura visual, num projeto

em andamento que atualmente realizamos com outras novas pesquisas. Por esse

motivo convidamos para ilustrar o livro, tanto na capa quanto nas entrada de

cada projeto institucional, a artista Ludmila Duarte, agora também integrante

do grupo que trouxe nos seus desenhos toda a sensibilidade dos debates que as

pesquisas trazem à baila. Esperamos que o leitor ao conhecer as pesquisas con-

cluídas possa promover diálogos com/sobre e a partir delas para construção de

novos caminhos de pesquisa ainda não pensados e que esse livro possa ser fonte

de inspiração para pesquisadores que se interessam pelos estudos da área.

A todos e todas, boas leituras com diálogos profícuos!

Adriana Hoffmann, Rosane Tesch e Vanessa Gnisci

Organizadoras

Page 21: Comunicação, audiovisual e educação

O cinema e a narrativa de crianças

e jovens em diferentes contextos educativos

(2010-2013)

Semente de ecrã 2

Fonte: Ludmila Duarte (2020).

Page 22: Comunicação, audiovisual e educação
Page 23: Comunicação, audiovisual e educação

| 21

1Cinema no ensino fundamental:a pesquisa com o projeto megacine pelas narrativas das crianças

Adriana Hoffmann Érica Rivas G attoRenata C osta Ferreira

INTRODUÇÃO

As reflexões trazidas neste texto foram realizadas no contexto do projeto de pes-

quisa institucional explicitada em artigo (FERNANDES, 2010) que teve como

interesse investigar as questões pertinentes à relação de crianças e jovens com

o cinema na formação vivida dentro das diferentes instituições escolares par-

ticipantes da pesquisa. A pesquisa abarcou os campos do ensino fundamental,

médio e superior tendo em cada um deles uma instituição participante que fazia

parte da investigação proposta.

Essa publicação apresenta um dos campos da pesquisa: o do ensino funda-

mental. O estudo de mestrado em questão trabalhou na perspectiva da pesquisa

intervenção e seu campo constituiu-se pela criação de um cineclube com cerca

de 40 crianças na faixa etária de 10 a 12 anos do 5º ano do ensino fundamental

de uma escola da rede municipal de ensino no bairro Oswaldo Cruz, zona norte

do Rio de Janeiro, durante o ano de 2011. A investigação buscou o entendimento

do modo como essas crianças estabelecem sua relação com o cinema e que ti-

pos de narrativas produzem pela sua participação no cineclube criado na escola:

Page 24: Comunicação, audiovisual e educação

22 | Comunicação, audiovisual e educação

o Megacine. Escolhemos o espaço escolar como campo de pesquisa, privilegian-

do um olhar para o modo como as crianças desse campo estão se apropriando do

cinema com o intuito de desmistificar a ideia corrente do cinema na escola como

mera ferramenta para ilustrar ou aprofundar conteúdos. Ao observar as relações

das crianças e suas narrativas diante dos filmes exibidos na escola pelos debates

realizados livremente, ampliam-se as possibilidades de ver e pensar sobre filmes

com o objetivo de formação estética, entendendo-se a criança, sujeito da pesqui-

sa, como produtora de cultura em sua relação com as imagens cinematográficas.

Ao falar de narrativa na pesquisa entendemos que ela nos constitui, pois,

como reflete Benjamin (1994), nos formamos pelas narrativas a que temos aces-

so, rememoradas pela coletividade. Por elas, criamos e damos sentido ao que vi-

vemos no mundo. Essa nossa constituição narradora também ocorre, em nosso

entender, na relação que as crianças estabelecem com o cinema. Nossa relação

com o outro e com o mundo passa pela narrativa. É um modo de percebermos

o mundo e sermos afetados por ele, pois nossa formação depende das histórias

que contamos aos outros e das que contamos para nós mesmos, das construções

narrativas nas quais cada um se constitui, simultaneamente, autor e narrador da

sua própria existência.

Diante disso, questionamos: como as crianças se relacionam com as narra-

tivas do cinema no cotidiano? Como narram-se na relação com o cinema? Que

narrativas conhecem e escolhem para compartilhar com os colegas? Que relação

estão construindo com o cinema dentro do cineclube criado? É com essas e ou-

tras provocações que tentaremos refletir e dialogar neste texto.

Nessa perspectiva, a constituição do campo investigado ocorreu fundamen-

tada na ótica da pesquisa-intervenção (CASTRO, 2008) como transformação da

realidade dos sujeitos numa construção conjunta dos pesquisados com o pes-

quisador. Segundo Sato (2008, p. 172), “[...] o processo de desenvolvimento da

‘pesquisa-intervenção’ é o resultado de um processo de negociação entre os en-

volvidos e que depende das circunstâncias presentes”. Outro ponto que merece

destaque e trouxe a singularidade do estudo, foi a relação entre a pesquisadora,

autora da dissertação resultante desta pesquisa e as crianças, já que atuava tam-

bém como professora regente desse grupo.

Consideramos que as crianças, ao atuarem na pesquisa e narrarem as suas

diferentes leituras sobre os filmes, são sujeitos produtores de sentidos e cul-

turas, ressignificam e reelaboram aquilo que veem segundo sua participação

Page 25: Comunicação, audiovisual e educação

Cinema no ensino fundamental | 23

na sociedade construindo com os outros – filme, demais crianças e adultos –

conhecimentos, sentidos e cultura. O estudo de Fantin (2011) dialoga com a nos-

sa pesquisa ao considerar que a criança relaciona-se com o cinema nessa dimen-

são de autoria.

Nesse sentido, apresentaremos como se constituiu o cineclube Megacine

com a exibição regular de filmes com debate para a turma investigada que é

depois ampliada para outras turmas da escola e repercute até mesmo no sur-

gimento de um clube do cinema – ambos por iniciativa das próprias crianças.

Interessante ver, diante dessas atitudes das crianças investigadas, como pensam

sobre o cinema e a experiência vivida com ele nas sessões de filme na escola.

Sobre as questões éticas inerentes ao ato de pesquisar, referentes ao uso

dos nomes e imagens das crianças na pesquisa, buscou-se a coerência com os

referenciais teórico-metodológicos adotados neste estudo. As autoras Fantin e

Girardello (2009) afirmam que pode haver uma relativização dos princípios em

relação ao anonimato, pois há situações em que os sujeitos envolvidos aceitam

divulgar sua identidade e, nesses casos, quando não há riscos envolvidos, o ano-

nimato pode ser quebrado.

Dessa forma, além das autorizações enviadas aos responsáveis como parte

da pesquisa e suas especificidades, as crianças foram consultadas sobre como

gostariam de ser mencionadas no estudo. Todas as crianças optaram por ter

seu primeiro nome como forma de identificação ao longo da pesquisa e fizeram

questão de colocar seus nomes em produções como vídeos, desenhos e carta-

zes, comprovando a marca de coautoras da pesquisa pela atuação que tiveram

ao longo do processo. E é dessa forma que as traremos aqui.

CONSTRUINDO O CAMPO: O MEGACINE EM AÇÃO

No dia 20 de maio, uma sexta-feira, 32 crianças estavam presentes, a pesquisado-

ra, a estagiária e muita, muita pipoca... Era a primeira sessão do cineclube. No iní-

cio, as crianças leram o cartaz do filme ‘Valentin’ e observaram as informações con-

tidas e levantaram hipóteses sobre o personagem, estabeleceram comparações com

um personagem da novela ‘Ti, ti, ti’ da rede Globo, que se chamava ‘Vitor Valentin’

e era espanhol. O filme é argentino e os alunos ficaram um pouco apreensivos com

Page 26: Comunicação, audiovisual e educação

24 | Comunicação, audiovisual e educação

o fato do filme ser com o áudio em espanhol, pois não possuem hábito de assistir a

filmes legendados.

No início da sessão, estavam mais preocupados com a pipoca, porém foram se con-

centrando com a narrativa de Valentin que foi envolvendo a todos.

Com o desenrolar do filme, ao meu ver por ser em uma língua, cultura e época dife-

rentes, as crianças foram ficando envolvidas e curiosas com a história do menino.

Durante o filme, riam e se entreolhavam, com cumplicidade nos olhares.

No momento que Valentin apareceu vestido de astronauta, cantando a sua música,

quando o tio apresenta um cassete como ‘última tecnologia’, na fala de sua ‘supos-

ta namorada’, que criou burburinhos por ter o mesmo nome de uma aluna da tur-

ma e em vários outros momentos, os alunos se divertiam com Valentin.

Quando Valentin e Letícia trocam afetos e o menino urina na árvore, as crianças

riem muito e uma aluna, ao ver o carinho de Valentin com Letícia diz: ‘–Que fofo!’.

(Diário de campo Sessão Valentin)

O trecho do diário de campo da exibição do filme Valentin aponta como as

crianças reagiram durante o filme e o modo como interagiam com este e com

seus pares durante a exibição. Risos, olhares, burburinhos marcavam os mo-

mentos de exibição dos filmes em todas as sessões.

A experiência das crianças vivida coletivamente em torno do cinema deu ori-

gem a esse cineclube na escola, trazendo vários momentos como o anteriormente

relatado. Assim como Rose Clair1 o define, cineclube é entendido como “o espaço

que congrega pessoas com a possibilidade de debater/discutir sobre os filmes”.

Na apresentação do Megacine, torna-se necessário delimitar a diferen-

ça, sempre destacada pelos estudiosos da comunicação, entre filme e cinema.

Marília Franco (2010) destaca que para pensar as relações entre cinema e edu-

cação é preciso estar claro que filme e cinema têm dimensões diferentes, mas

indissociáveis na constituição da cultura audiovisual que marcou os hábitos cul-

turais do século XX.

1 Em palestra realizada pela autora na disciplina Tópicos especiais em cinema e educação, ministrada pela professora Adriana Hoffmann, no dia 15 de setembro de 2011.

Page 27: Comunicação, audiovisual e educação

Cinema no ensino fundamental | 25

O filme é um objeto estético/cultural de consumo individualizado.

Sua fruição se dá dentro de uma bolha perceptiva, construída pela

tecnologia da projeção das imagens em movimento em sala escura.

O espectador fica ‘sozinho’ para desfrutar das emoções proporcio-

nadas pela história, contada através de uma linguagem que hiper-

trofia as percepções visual e sonora (esta última a partir de 1930).

(FRANCO, 2010, p. 11)

Outro autor, Teixeira Coelho, comenta que, quando se fala de cinema, está se

falando de um modo cultural, mas não necessariamente de filmes. Nessa pers-

pectiva, considera-se neste estudo, o filme como um produto cultural, enquanto

o cinema é entendido como fenômeno social. (DUARTE, 2002) Nesse sentido,

ver filmes numa sala de projeção, com possibilidade de debater de forma coleti-

va após a exibição, constitui um modo de constituição cultural diferenciado do

ver filmes sozinho em casa.

Um filme é algo delimitado; o cinema, mais especificamente a cul-

tura do cinema, remete a domínio bem mais amplo. Um filme é uma

película impressionada, montada, sonorizada, com um sentido rela-

tivamente fixo e definido. A cultura do cinema é um universo sempre

em expansão que abrange desde as mundanidades de uma première

até as mais sofisticadas teorias sobre o que é projetado na tela [...]

(COELHO, 1999, p. 110)

Nessa lógica, fica claro que mesmo atuando na escola podemos trazer para

esse espaço a possibilidade de criação de uma cultura do cinema. Nossa inves-

tigação não pretende apenas perceber a relação das crianças com filmes como

espectadores de forma isolada, mas, ao instituir e investigar um cineclube no

espaço da escola, objetiva perceber a possibilidade de captar o modo de relação

das crianças com a cultura do cinema numa dimensão mais ampla assim como a

apontada por Coelho (1999).

A constituição do cineclube Megacine criou uma forma de relação com os

filmes como evento, inserindo-os numa provável construção de prática cultu-

ral que, para esse grupo de crianças moradoras da zona norte, pode não ser tão

próxima de seu cotidiano. Como o objetivo da investigação é pensar as relações

de crianças com o cinema, a proposição desse espaço favoreceu momentos de

Page 28: Comunicação, audiovisual e educação

26 | Comunicação, audiovisual e educação

diálogo com as crianças que aconteceram tanto nos debates coletivos após os fil-

mes como nas entrevistas, aspectos que fazem parte da estratégia metodológica

da pesquisa.

As crianças receberam bem o projeto, no entanto, houve alguns estranha-

mentos iniciais principalmente em uma das sessões iniciais como a que ocorreu

com o filme Valentin, um filme Argentino, que foi exibido com áudio em espa-

nhol e legendas.

Nas sessões, foram feitas poucas interferências nos debates, atentando prin-

cipalmente para a percepção das narrativas que as crianças construíam livre-

mente a partir dos filmes fazendo uma ou outra provocação para pensarem a

respeito do que viam. Algumas crianças trouxeram suas impressões logo nos

primeiros debates realizados: “Eu achei que o filme foi diferente do que a gente

costuma assistir, às vezes a gente assiste filme de ação, comédia...” (Hannah) “É

como se a gente visitasse filmes feitos por outros países, para a gente ver como

são diferentes do que a gente já estava acostumado... de Hollywood ”. (Esther) “É

conhecer filmes de outras linguagens, ‘tipo’ aprender... só isso...” (Brenda)

Hannah, criança da pesquisa, iniciou o debate do filme Valentin, tratando

da experiência estética de ver a um filme diferente do que costumava assistir,

como aponta sua fala. Ao possibilitar novas experiências e construções de senti-

dos pelas crianças com os filmes e “[...] crer que o cinema olha para certos temas

de hoje, e, ao fazer isso, nos convida e nos ensina também a olhá-los de outro

modo” (FISCHER; MARCELLO, 2011, p. 507), garante-se o direito de interação

com as culturas, ampliando e atualizando os repertórios, “[...] além de trazer aos

espaços formadores referências culturais de vários lugares, países e tempos his-

tóricos, através de gêneros, linguagens e estéticas as mais diversas possíveis”.

(FANTIN, 2007, p. 4)

Dos filmes exibidos em 2011 no Megacine, tivemos cinco sessões de filmes

longas: quatro fizeram parte do campo de análise da pesquisa, dos quais dois

foram trazidos pelas pesquisadoras – Valentin, filme argentino de Alejandro

Agresti, e Filhos do Paraíso, filme iraniano de Majid Majidi – e dois escolhidos pe-

las crianças – O pequeno Nicolau, filme francês de Laurent Tirard, e As Aventuras

de Sharkboy e Lavagirl, filme americano de Robert Rodriguez. O filme francês

foi escolhido após parte da turma tê-lo assistido no Festival Internacional de

Cinema Infantil (FICI). O filme americano foi escolhido pela maioria ser fã do

mesmo. Em todas as sessões realizadas no cineclube, houve exibição, debate e

Page 29: Comunicação, audiovisual e educação

Cinema no ensino fundamental | 27

as crianças, além de participarem vendo e debatendo, também fotografavam, fil-

mavam e registravam o que pensavam desse processo. Os filmes foram exibidos

no auditório da escola municipal, onde as crianças estudavam. O espaço foi dis-

ponibilizado pela escola e o facilitador desse processo foi o fato da pesquisadora

também ser professora da instituição. Durante o percurso no campo empírico,

desdobramentos foram surgindo a partir do retorno da participação das crianças

na pesquisa. Um deles foi o clube do cinema criado por um grupo de crianças

participante do Megacine e outro foi a exibição de filmes do cineclube – organi-

zada pela turma do Megacine – para outras turmas da escola com a mediação de

algumas crianças da pesquisa.

CLUBE DO CINEMA

O clube do cinema surgiu a partir de um projeto já existente na turma chamado

“clube do livro”, que funcionava como uma pequena biblioteca da turma, onde

eram feitos empréstimos em que as próprias crianças pegavam livros a qualquer

momento do dia. Fizeram, então, a mesma sistemática com um acervo de filmes.

No total, o clube obteve 31 filmes. Alguns dos títulos desse acervo criado pelas

crianças são: Alvin os esquilos 2; O diário da barbie; Hello Kitty; Vila sésamo 1,2,3,

conte outra vez; Avatar; Astroboy; dentre outros títulos que o compuseram. Cabe

ressaltar, que as pesquisadoras não interferiram na constituição do acervo cria-

do pelas crianças. O pequeno acervo criado pelas crianças é composto em sua

maioria por DVDs “piratas”, fato que desencadeou várias discussões e conclu-

sões por parte das próprias crianças. Bergala, em seu projeto na França, também

destaca que ao trabalhar com projetos de cinema na escola sentiu a necessida-

de de selecionar um conjunto de filmes para uso na mesma. As crianças, a seu

modo demonstram perceberem que o trabalho com cinema demanda ver mais,

ampliar o ver e o acesso.

Para explicar o processo de aquisição dos filmes e a dinâmica do clube cria-

do por elas, trazemos algumas falas que justificam como pensaram para montar

o clube do cinema e sua importância no ponto de vista delas:

Ah, [montamos o clube] pedindo empréstimos para as turmas, botamos e fizemos

cartazes pela escola, entregamos nas salas e pedimos filmes... quem tiver filme

velho, velho mesmo, mas que esteja em bom estado pra gente assistir. Esses filmes

Page 30: Comunicação, audiovisual e educação

28 | Comunicação, audiovisual e educação

foram conseguidos assim, através de pessoas caridosas, que têm filme, mas não as-

sistem e trouxeram pra gente poder assistir. (Hannah)

Muita gente não tem dinheiro para ir à locadora, aí escolhe alguns filmes, assiste

em casa, traz no dia... É do jeito da pessoa, o filme que quiser... E também tem gente

que doar para outros assistirem...Tem um filme aqui que a maioria tem preconcei-

to de assistir porque fala que é chatinho... Quase ninguém pega esse filme! É o Vila

Sésamo 1,2,3, conte outra vez, dizem que é pequenininho, chatinho, de criança...

(Andressa)

“O clube do cinema é como uma locadora que a gente poderia ter colocado ou-

tros filmes, mas como a gente pediu emprestado, só entraram filmes mesmo que a

maioria já conhecia ou então não eram de outros países, sem ser de Hollywood”.

(Esther)

Figura 1 – Caixa confeccionada pelas crianças da pesquisa para o clube do cinema

Fonte: arquivo da pesquisa.

Page 31: Comunicação, audiovisual e educação

Cinema no ensino fundamental | 29

A constituição do clube do cinema pelas crianças demonstra que elas per-

cebem a importância de que para se apropriar de uma cultura do cinema é pre-

ciso construir um espaço de acesso aos filmes, tal como esse criado por elas. No

entanto, é interessante perceber que elas próprias dizem que como pediram

emprestado, receberam filmes de “pessoas caridosas”, só entraram filmes “que

a maioria já conhecia” ou como disse Hannah “filme velho mesmo mas que esteja

em bom estado para assistir”. Isso demonstra que, mesmo criando o clube, sa-

bem que conseguir filmes que a “maioria não conhece” ainda se constitui num

desafio de ampliação do acesso. Dessa maneira, os filmes que fazem parte do

acervo do clube do cinema dão pistas para pensar como as crianças se relacio-

nam com os filmes como produtos culturais e se constituem como consumido-

ras destes, ampliando a questão do consumo como espaço que serve para pensar

(CANCLINI, 1997), não o encarando de forma simplista como usos e gastos que

nada dizem.

O consumo cinematográfico das crianças, o gosto que possuem pelos filmes,

estão intimamente relacionados às práticas sociais e culturais por elas vividas.

De acordo com Duarte (2002, p. 89), “mesmo aqueles considerados ruins (e esse

julgamento é sempre subjetivo) podem despertar o interesse e estimular a curio-

sidade em torno de temas e problemas que, muitas vezes, sequer seriam leva-

dos em conta”. Entretanto, como aparece nas falas anteriores, essa dificuldade

do acesso “a filmes que a maioria não conhece” transparece quando questio-

nadas sobre a possibilidade do clube do cinema ter acesso aos filmes exibidos

no Megacine, principalmente aos filmes trazidos pelas pesquisadoras, que as

crianças não teriam acesso em locadoras ou locais próximos às suas residências.

Todas manifestaram o desejo de levar tais filmes para compartilhar com outros,

como observa-se a seguir: “Ia ser bem legal a gente ter. Porque a gente vê e nossos

pais, às vezes, falam: ah, é mentira! Pra gente mostrar para eles outros filmes de

cultura, que alguns pais não veem, que os irmãos que não conhecem”. (Esther)

Tal fala aponta que entendem a importância da ampliação do acesso ao pos-

sibilitar que a família, pais e irmãos, vejam filmes novos que não conhecem. O

desejo de ter o filme desses no clube do cinema passa por poder compartilhar

também com as pessoas de fora da escola. A ampliação do acesso promovida

pelo Megacine começa na escola e eles demonstram que desejam que saia dela,

que atinja outras pessoas de fora da escola como suas famílias. A discussão so-

bre o consumo e acesso aos filmes para o clube do cinema trouxe à tona a forma

Page 32: Comunicação, audiovisual e educação

30 | Comunicação, audiovisual e educação

como entendem a questão da cópia dos filmes na relação estabelecida com eles,

a partir do clube do cinema: “Eu acho assim, mesmo que a pessoa devolva ele di-

reitinho, se ela tiver com a cópia, ela pode fazer várias outras cópias dessa cópia

e vender... Isso é que é pirataria! Mas se a pessoa fizer uma cópia para ficar para

ela tudo bem, não tem nada de errado, mas se ela copiar e vender, aí já não está

certo...” (Esther) “Filme pirata tem sempre algum erro, sempre tem algum pro-

blema... já para baixar, a minha irmã tem um site que ela se cadastra no site...

viu só? Tem até que se cadastrar no site! Já mostra que lá não é site que tem filme

pirata...” (Fernanda)

Apesar de associarem na maioria das vezes filmes piratas a filmes com pro-

blemas e erros, as crianças (re)construíram um conceito de pirataria no contexto

do projeto, associando-o a possibilidade de acesso a filmes que não teriam de ou-

tra forma e identificando e validando o significado sociocultural desses produ-

tos e bens simbólicos diante do contexto vivido. (CANCLINI, 1997) Interessante

a diferença que fizeram nesse contexto entre “copiar” e “baixar” o filme como se

fossem coisas diferentes. A ideia de “pirata” para elas foi entendida como fazer

algo escondido “sem identificação” e encararam o copiar um filme para consu-

mo próprio como algo possível – e não pirata –, diferente do copiar para vender

que, para elas, “não está certo”.

Sem dúvida, as crianças da pesquisa mostraram ao longo do percurso da in-

vestigação que não se configuram em momento algum como dóceis audiências

assim como aponta Canclini (1997) na relação de consumo que estabelecem com

os filmes, mas atuam como sujeitos que participam da construção da cultura de

seu tempo trazendo questões para se pensar os desafios da ampliação do acesso

à cultura do cinema na contemporaneidade.

SESSÕES DE CINEMA PARA OUTRAS TURMAS COM MEDIAÇÃO DAS CRIANÇAS DA PESQUISA NO DEBATE

Como outro fruto do Megacine, algumas crianças realizaram juntamente com

as pesquisadoras, a exibição do filme Valentin para outra turma da escola com

mediação das próprias crianças da pesquisa. Tendo marcado dia e horário com a

outra turma, as crianças da pesquisa realizaram o convite para os colegas, convi-

dando-os para a sessão que exibiu o filme Valentin.

Page 33: Comunicação, audiovisual e educação

Cinema no ensino fundamental | 31

As crianças que foram chamadas na pesquisa de “mediadoras” foram aque-

las que demonstraram maior envolvimento com a pesquisa, tanto nos debates

com comentários acerca do filme como na preparação das sessões do cineclube,

com cartazes de divulgação e disponibilidade para fotografar, filmar e fazer diá-

rios de campo. Observa-se que os papéis das crianças mediadoras se intercalam,

ora comentam sobre o filme, ora fazem perguntas às outras crianças e ora gra-

vam a voz, a imagem e fotografam o momento, interagindo o tempo todo com

a outra turma que estava presente e que havia sido convidada por elas. Essas

mesmas crianças, também idealizadoras do clube do cinema já apresentado an-

teriormente, deram continuidade ao projeto, criando as sessões do cineclube

para toda a escola, mesmo após a finalização do campo da pesquisa. A seguir,

trazemos algumas falas sobre suas impressões das sessões realizadas por elas:

Eu gostei muito da sexta-feira, porque eles se pareciam com a gente nos primeiros

Megacine. Tínhamos vergonha de falar e muito mais de se expressar, igualzinho a

eles. E foi uma oportunidade para mim, porque eu tinha faltado o filme Valentin,

foi uma segunda chance e espero que eles tenham gostado do projeto assim como

nós. (Andressa)

Figura 2 – Modelo de cartaz confeccionado pelas crianças da pesquisa

Fonte: arquivo da pesquisa.

Page 34: Comunicação, audiovisual e educação

32 | Comunicação, audiovisual e educação

Os alunos que estavam sentados na primeira fileira pareciam muito impressiona-

dos com o filme, pois não tiravam o olho da telinha. Deu para perceber que os alu-

nos estavam se expressando em algumas cenas, até comentavam com os colegas do

lado sobre as cenas mais apavorantes. (Mylena)

Através dessas falas, as crianças mediadoras trouxeram questões importan-

tes em que falam dos colegas comparando-se a eles ao dizerem que “pareciam

com a gente nos primeiros Megacine” e expressam que percebem mudanças ao

viver o cineclube até vendo que nesse novo papel viam os colegas num processo

de crescimento no debate com os filmes.

Ao possibilitar novas experiências e construções de sentidos pelas crianças

com os filmes e “[...] crer que o cinema olha para certos temas de hoje, e, ao fazer

isso, nos convida e nos ensina também a olhá-los de outro modo” (FISCHER;

MARCELLO, 2011), garante-se o direito de interação com as culturas, ampliando

e atualizando os repertórios, “[...] além de trazer aos espaços formadores referên-

cias culturais de vários lugares, países e tempos históricos, através de gêneros,

linguagens e estéticas as mais diversas possíveis”. (FANTIN, 2007, p. 4)

Ao atuarem como mediadoras na pesquisa, as crianças se configuram como

coautoras, confirmando a intervenção vivida com os nossos sujeitos da pesqui-

sa e a opção teórico-metodológica escolhida para o estudo. Ao participarem da

criação do cineclube com as pesquisadoras e o ampliarem em outras atuações

com o cinema, produziram sentido e cultura, construíram suas identidades, dei-

xaram suas marcas sociais pelas diferentes apropriações feitas com o cinema.

Page 35: Comunicação, audiovisual e educação

Cinema no ensino fundamental | 33

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eu no Megacine me via como uma pessoa que ontem falava que filme era chato e

hoje estou participando de debates, falando de filmes. Estou vendo coisas no filme

que eu não via antes. Eu não tinha a visão que tenho agora, não era só porque eu

era menor. Eu tinha um olhar diferente, eu não debatia, eu não tinha sentimento

em relação aquele filme, eu só queria ver filme já mastigado, filme bobo, não bobo,

mas assim Hello Kitty...

(Juliana em entrevista ao falar sobre sua participação no Megacine)

Figura 3 – Sessão do filme Valentin, exibido no dia 20 de maio de 2011 no cineclube Megacine

Fonte: arquivo da pesquisa.

As falas das crianças trazem pistas para compreendermos as relações cons-

truídas com o cinema a partir das experiências culturais tecidas no contexto

do Megacine. Quando Juliana, na epígrafe, afirma “Estou vendo coisas no filme

que eu não via antes [e] eu tinha um olhar diferente” aponta possibilidades para

pensarmos como as crianças narram-se na relação com o cinema, tendo como

Page 36: Comunicação, audiovisual e educação

34 | Comunicação, audiovisual e educação

precursor dessa relação o cineclube. A partir desse espaço, as crianças refletem

e dialogam com os seus pares e pesquisadoras sobre as narrativas dos filmes,

construindo suas próprias leituras e narrativas, ao ressignificar o que viram com

suas apropriações.

Percebemos como o convívio, como o ver e debater filmes ampliam o olhar

das crianças o que possibilita que se tornem mediadores do ver para outros que

ainda não viram. Ao “verem coisas novas”, passaram a propor novas práticas

articuladas ao que já conheciam pensando no clube de cinema e na exibição,

tendo elas como mediadoras dos debates dos filmes. Esses foram, na pesquisa,

dois espaços de produção de cultura criados e mantidos pelas próprias crianças

empenhadas em levar adiante o cineclube na escola.

Com o clube do cinema, as crianças, além de formularem ideias e conceitos

a respeito do acesso aos filmes “que todos conhecem” ou mesmo os chamados

pelas mesmas de “diferentes”, indicam as narrativas escolhidas para comparti-

lhar com os colegas e familiares e a relação que estão construindo com o cinema

nesse contexto.

Ao propor pesquisar a relação das crianças com o cinema na escola, percebe-

mos que o cinema como dispositivo constrói sonhos que atravessam o imaginário

infantil e, através da leitura dos filmes, os debates “valorizam a imaginação da

criança” como afirma Juliana, criança mediadora da pesquisa. Nesse contexto,

precisamos ouvir suas vozes, ver seus olhares e sentir o encontro delas com os

filmes e as leituras que eles proporcionam. (FRESQUET, 2009) Somente assim,

como afirma Fresquet (2009, p. 153), “[...] eles são os reais protagonistas na recep-

ção e produção de uma cultura que lhes é própria”.

Como afirma Xavier (1988, p. 370), “No cinema, posso ver tudo de perto, e

bem visto, ampliado na tela, de modo a surpreender detalhes no fluxo dos acon-

tecimentos, dos gestos. A imagem na tela tem sua duração, ela persiste, pulsa,

reserva surpresas”. Assim como no cinema, a pesquisa reserva surpresas, faz

as nossas reflexões pulsarem e amplia os detalhes que no cotidiano poderiam

passar despercebidos. Detalhes que as próprias crianças revelam. Os processos

sociais significados pelas crianças ao assistir e experienciar os filmes, atribuem

novos sentidos à cultura e nos permitem ampliar o olhar ao perceber – cada vez

mais de perto – a relação das mesmas com o cinema.

Page 37: Comunicação, audiovisual e educação

Cinema no ensino fundamental | 35

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Page 39: Comunicação, audiovisual e educação

| 37

2 Narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora da escola

Kelly Maia C ordeiro

INTRODUÇÃO

A recepção através da distração, que se observa crescentemente em todos os domínios da arte constitui o sintoma de transformações profundas nas estruturas perceptivas, tem no cinema seu cenário privilegiado. (BENJAMIN, 1994, p. 194)

Ao se colocar diante das mudanças sociais ocorridas a partir dos novos paradig-

mas, procedentes das múltiplas possibilidades contemporâneas da reprodução

técnica, Benjamin (1994) considera o cinema como um meio de distração e pos-

sibilidade de construção de conexões mentais que trazem a percepção a novos

sentidos. Através do filme, da contemplação estética da arte, a mente se “solta”

para construir elementos que surgem a partir dessas narrativas, permitindo aos

espectadores um “alívio” das tensões do momento, num processo contínuo de

aprendizagem e fruição.

As relações de consumo do cinema compõem elementos da cultura, que

como aponta García Canclini (2009), são concebidas por um conjunto de práti-

cas sociais, econômicas e políticas. Conforme tal autor, essas relações abarcam

o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo de signifi-

cação na vida social, sendo um processo de significação social. A cultura, nesse

Page 40: Comunicação, audiovisual e educação

38 | Comunicação, audiovisual e educação

contexto, não se fecha sobre um aspecto pré-definido, se abre para ser pensada

de forma híbrida, entrelaçando elementos significativos da esfera local e global.

Compreendendo que o cinema se estabelece também através da cultura,

e faz parte do contexto dos jovens, procuramos na pesquisa do mestrado em

Educação, investigar como são construídas as relações dos jovens com o cinema.

Neste artigo, apresentaremos um recorte da pesquisa trazendo a metodologia

adotada, o campo, os sujeitos e parte dos resultados da pesquisa que mostram

o consumo do cinema através das narrativas dos jovens. Destaco que a pesqui-

sa foi realizada dentro de um projeto institucional da Universidade Federal do

Estado do Rio de Janeiro (Unirio), e tanto o projeto quanto a pesquisa de mestra-

do que deu origem a esse capítulo tiveram outras versões em publicações ante-

riores em revistas.1

O CINEMA NO CONTEXTO EDUCATIVO DA PESQUISA

A pesquisa realizou-se a partir dos pressupostos da pesquisa-intervenção por

compreendermos que no processo e no percurso da pesquisa nos colocamos en-

quanto pesquisadores, atuando com os sujeitos participantes, que se encontra-

vam num movimento de estar, aprender, ouvir e deliberar em colaboração. Bem

como sinaliza Moreira (2008, p. 430), “a pesquisa não é feita ‘sobre’ um grupo,

mas ‘com’ um grupo”.

Desse modo, a intervenção aconteceu desde o momento em que começamos

a circular e a dividir os espaços da instituição. Passando pelo estágio da obser-

vação, exibição de filmes, debates e avançando pela interação na cibercultura.

O material que subsidiou a análise foi coletado por entrevistas, conversas na es-

cola e na rede social. Os critérios que balizaram essas escolhas foram norteados

pelo delineamento da pesquisa e pela flexibilidade que o campo apresentou.

Tendo como prioridade as narrativas dos professores da escola e dos sujeitos da

pesquisa.

O campo de pesquisa foi constituído a partir da parceria entre duas univer-

sidades, a Unirio – onde realizei meu mestrado – e a Universidade Católica de

Petrópolis (UCP) em processo de parceria entre os projetos de pesquisa institu-

cionais de seus professores. (FERNANDES, 2010; GARCIA, 2010) O local de pes-

1 Ver: Fernandes (2010) e Cordeiro e Fernandes (2017).

Page 41: Comunicação, audiovisual e educação

Narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora da escola | 39

quisa foi um colégio em que ambos os professores já faziam projeto em parceria

e ao entrar no mestrado foi aberta a possibilidade para que fizesse meu campo

de pesquisa nesse mesmo local. Trata-se de um colégio estadual no municí-

pio de Petrópolis que oferta o Ensino Médio Integral (EMI) com o Curso Médio

Integrado de Formação Profissional em Áudio e Vídeo. A proposta do curso é

oferecer e desenvolver as práticas audiovisuais a partir dos princípios da ciência,

cultura e trabalho, e a formação de técnico audiovisual oferecida busca contem-

plar os estudos: de roteiro; de direção; produção de pequenos curtas-metragens;

análises de filmes e de textos.

Nosso campo de pesquisa ocorreu nos tempos de aula da disciplina de

Comunicação crítica num total de sete encontros às quartas-feiras, sempre no

período da manhã. Os filmes exibidos2 tinham a característica de serem histórias

adaptadas de obras literárias, com temática diversificada, de países variados.

As narrativas não seguiam um padrão comum nos filmes de alta comercializa-

ção, procurando sempre trazer filmes com narrativas instigantes e artísticas.

Participaram da pesquisa, nos momentos de exibição e debate, 30 alunos.

Após os debates, foram feitas seis entrevistas com: três jovens do 2º ano e outros

três do 3º ano, escolhidos pela intensa participação nos debates. Além disso 12

alunos – os seis da entrevista e outros seis alunos – nos aceitaram para amizade

no Facebook, o qual se constituiu num espaço fora da escola para nossas conver-

sas. Como percepção geral sobre esse grupo, evidenciamos que:

• Falavam muito sobre cinema, conversando sobre os filmes que assisti-

ram, sobre os atores e atrizes, o que gostavam e o que não gostavam;

• Possuíam um repertório construído de histórias para contar sobre situa-

ções vividas em relação ao cinema. De idas ao cinema, realização de ati-

vidades que envolviam filmes e a produção de audiovisual como propos-

ta da escola;

• A faixa etária dos jovens eram entre 17 e 20 anos, se interessavam por di-

ferentes gêneros de filmes. Boa parte deles eram “amigos” no Facebook e

também interagiam em outros espaços fora da escola.

2 Os filmes da pesquisa foram: O carteiro e o poeta, Fahrenheit 451, Adeus Lenin!, Ensaio sobre a ceguei-ra, Balzac e a costureirinha chinesa, Edifício Master.

Page 42: Comunicação, audiovisual e educação

40 | Comunicação, audiovisual e educação

Estar na escola no horário integral – manhã e tarde – apresentava uma rup-

tura aos jovens que estudavam no ensino regular, com carga horária de meio pe-

ríodo. E o deslocamento para alguns deles que moravam na Baixada Fluminense

do Rio de Janeiro, também era um fator de adaptação pela distância com o des-

locamento. Para muitos deles, a entrada no EMI significou uma passagem para

outra fase da vida em que o jovem deixou, de certo modo, uma condição com

menos tarefas e tempos escolares, para se envolverem mais questões formais da

escola. De um lado, a preocupação com a formação profissional e, de outro, com

o ingresso no ensino superior.

O Facebook, como espaço não escolar dos alunos, era um espaço de conti-

nuidade de alguns debates promovidos pela escola. Nele, havia uma intensa tro-

ca de ideias, opiniões diferentes entre os alunos, e isso se concretizava também

fora da escola. O consumo do cinema estava tão presente na vida desses jovens

que o espaço e o tempo dado pela escola pareciam poucos para as construções

vivenciadas por eles. Nesse sentido, o cenário das relações sociais e das formas

de aprender de crianças, jovens e adultos se redesenham no espaço das redes

sociais, envolvendo processo de conectividade, de autoria e de coautoria, que

se estruturam a partir da comunicação e da circulação de informações na rede.

O cinema tem esse poder, enquanto linguagem audiovisual, real e de ficção, atra-

vessa os limites territoriais e do imaginário, trazendo acima de tudo elementos

para pensarmos o consumo na sociedade contemporânea e dos jovens da pes-

quisa. Para García Canclini (2010), a apropriação dos bens culturais nos diz que

o consumo sofre um processo de racionalidade, não se consome apenas por ma-

nipulação, por passividade de receber a informação e acatá-la. O consumo exige

um ato pensado, que se estrutura pelas organizações sociais dos sujeitos, nas

mediações entre ele e o grupo social ao qual pertence. A escola era um desses

espaços de mediação do consumo para esses jovens.

A RELAÇÃO DOS JOVENS COM O CINEMA NA ESCOLA

Ao analisarmos as narrativas dos jovens quanto ao cinema no contexto educa-

cional, identificamos dois pontos que merecem destaque: a proposta expressa

no currículo formal da escola e a afirmação dos jovens quanto ao aprendizado

com o cinema.

Page 43: Comunicação, audiovisual e educação

Narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora da escola | 41

Na matriz de organização curricular organizada pelo EMI, havia duas disci-

plinas – Comunicação crítica e Projetos experimentais em comunicação –, que

marcavam a proposta de formação constituída em atividades teóricas e práticas,

afim de que os alunos pudessem ter contato com produtos de diferentes estilos e

gêneros de filmes, como experiência para o desenvolvimento de seus conteúdos.

A proposta não se baseava em fechar um modelo, com regras e formato único de

cinema, pelo contrário, se abria as múltiplas criações, leituras e olhares.

No entanto,3 a escola precisava definir qual seria a vertente de formação e fez

a opção pelo cinema, devido a suas múltiplas dimensões, entre elas a linguagem,

que é o eixo principal desenvolvido no currículo do EMI, como nos disse uma

das professoras:

A gente queria que eles pudessem ampliar a compreensão desse processo opera-

cional e dominar minimamente a discussão sobre a linguagem, que gramática é

essa, que sentido a gente constrói com essa linguagem, quais as possibilidades es-

téticas que essa linguagem oferece. Tanto do ponto de vista da imagem enquanto

texto (entendido no seu sentido ampliado); então a gente queria aprofundar isso.

O currículo todo, na verdade, foi muito mais pensado nessa compreensão da lingua-

gem do que nas técnicas da apropriação e manuseio de equipamentos. (Professora

Implementadora)

O estudo da linguagem cinematográfica envolve discussões densas, que in-

corporam à estética proposições que potencializam a crítica diante do que é as-

sistido. Como exemplo, lembremos de alguns recursos como a música, o plano,

a luz, a sequência e o ângulo de filmagem que expressam uma intencionalidade

do diretor para com o espectador.

As proposições em trazer ao contexto escolar discussões nesse nível, ex-

pressam a preocupação em valorizar a dimensão cinematográfica da cultura

do cinema, a dimensão social, política e cultural da sociedade contemporânea.

E, também, proporcionam o desenvolvimento dos alunos, nos campos cognitivo

e afetivo. Vivenciar atividades de construção e desconstrução do cinema é um

potencializador para o desenvolvimento de aprendizagens variadas aos sujeitos

participantes. (FRESQUET, 2013)

3 As entrevistas foram cedidas a autora no segundo semestre do ano de 2011. Selecionamos jovens do 2º e 3º anos do ensino médio e uma das professoras implementadoras do projeto no EMI.

Page 44: Comunicação, audiovisual e educação

42 | Comunicação, audiovisual e educação

Faz sentido se, no currículo para aprendizagem, o cinema era destaque e os

jovens da pesquisa, ao serem questionados sobre esse tema, tinham muito re-

pertório de diálogo. Diante disso, era recorrente a afirmativa que o olhar mudou

a partir do convívio com os filmes. Demonstravam que estavam vendo os filmes

com mais conhecimento teórico, de uma forma mais elaborada, mais profunda

teoricamente, do que antes de estarem na escola vivenciando essa prática.

É o que nos disse uma das alunas, nos fornecendo pista para refletirmos

sobre essas percepções dos jovens.

É legal de ver que a gente muda vários fatores na nossa vida. A gente olha as coi-

sas de uma forma bem diferente, tanto o filme quanto a vida. É até ruim a gente

falar que a gente só aprendeu um olhar crítico, não é não, a gente aprendeu

a olhar nossa vida, né? Nossa vida toda já é um filme e pode mudar a qualquer

momento, cada cena. (Estudante 1, grifo da autora)

O olhar que a jovem demanda nessa fala está relacionado à aprendizagem

construída pela prática escolar, pela mediação do professor tanto nas aulas de

Comunicação crítica quanto nos momentos mediados pelos pesquisadores da

universidade. Os jovens apontam que a experiência do EMI “mudou o modo de

ver os filmes”, seus modos de ler, e que aprenderam não só “um olhar crítico”,

mas um olhar para a vida. Aprenderam a olhar a vida deles, contribuindo com

o sentido de formação crítica diante do cotidiano da sociedade. Para Duarte

(2009), utilizar a linguagem cinematográfica na educação possibilita construir

outros sentidos para discursos já vistos e desdobrados, dando ao receptor uma

visão mais completa do mundo, sintonizado com seu tempo e espaço, ensinan-

do, dessa forma, a busca de novos sentidos da realidade de forma autônoma,

ou seja, constitui uma prática social importante que atua na formação geral dos

sujeitos e contribui para distingui-las socialmente.

Quando os jovens afirmavam que passavam a “olhar as coisas de forma di-

ferente”, “tanto nos filmes quanto na vida”, nos apontam que há uma dimensão

formadora na experiência vivida por eles. Na compreensão de Bergala (2008), o

cinema tem um vasto horizonte de possibilidades, independe de estar o profes-

sor atrelado a uma disciplina e conteúdo específico, mas sim disposto a pensar

o cinema como arte e não como puro ato impensado. E afirma: “a arte é o que

resiste, o que é imprevisível, o que desorienta num primeiro momento. A arte

Page 45: Comunicação, audiovisual e educação

Narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora da escola | 43

tem que permanecer, mesmo na pedagogia, um encontro que desestabiliza o

conjunto de hábitos culturais”. (BERGALA, 2008, p. 39)

Nesse sentido, a proposta não é aprisionar o filme a um modelo de constru-

ção e interpretação, mas propor uma possibilidade de expressão oral em grupo,

exercitando outras possibilidades ao visto para criar novas hipóteses e ampliar a

leitura, pensando em questões como a apresentação do filme, a música, a luz e os

elementos de composição. O espectador é envolvido e interage no contexto geral

do filme pela fruição estética, abrindo-se para o enriquecimento da sensibilida-

de e novas possibilidades ao dialogar com seus pares, é um encontro com a arte

e como espaço de alteridade – esta entendida, como possibilidade de diálogo,

troca, ampliação do olhar mediante a troca e opiniões dos sujeitos. (BERGALA,

2008)

As narrativas que os jovens trouxeram sobre o vivido no contexto da escola,

do cotidiano com o cinema, nos indicam uma relação que movimenta seus pen-

samentos ao longo do tempo escolar, como o expresso na fala a seguir:

A gente fica o dia inteiro conversando, viu aquela cena? Viu como é maneiro? Viu o

que o diretor quis passar? Não só o dia inteiro, mas o ano todo, a gente fica: lembra

aquele filme? Aquele? Qual? Um vai lembrando, vai lembrando... E vai comentan-

do, que fez tal coisa, e vai todo mundo lembrando. (Estudante 2)

O filme toca, envolve, fica na mente, provoca reflexões, fazendo com que

essa troca em conversas coletivas se alongue na escola para além do momento de

exibição do filme. Medeiros (2009, p. 5) – a partir do que traz Benjamin – explica

que a “experiência de ver um filme não é apenas lazer, mas uma experiência es-

tética, uma maneira de ver o mundo”. Nesse sentido, o ato de ver e debater filmes

se constitui como experiência prazerosa, de troca de saberes e de construção de

subjetividades. O ponto de vista que cada um constrói sobre o filme é fruto do

próprio aprendizado e se expressa, por exemplo, ao se pensar na linguagem que

caracteriza o cinema.

Os jovens pesquisados estavam em tempo integral na escola e nela inicia-

ram as práticas com e para o cinema, sinalizando o desenvolvimento no olhar

de uma maneira diferente, ampliada, tanto para interpretar melhor o desenrolar

das narrativas fílmicas, quanto para o aprendizado geral a partir do cinema.

Page 46: Comunicação, audiovisual e educação

44 | Comunicação, audiovisual e educação

AS NARRATIVAS DOS JOVENS SOBRE O CINEMA NO CONTEXTO FORA DA ESCOLA

O cinema no contexto da prática social está inserido num espaço público que

apresenta aos espectadores a representação de aspectos da vida social, portanto,

a escolha sobre o que e o como assistir se apoiam num ato pensado de consumo.

No ilimitado que se mostra o espaço fora da escola, o cinema aparece carregado

de sentidos, construções e reflexões pessoais, provido de diferentes experiências

e bagagens dos sujeitos da pesquisa.

Dessa forma, procuramos por pistas que nos indicassem os caminhos para

compreender os aspectos centrais dos sentidos construídos pelos sujeitos da

pesquisa, quanto ao contexto externo à escola, aos espaços não tutelados pela

instituição escolar. Dentro desse contexto, elencamos três aspectos de diálogo

e reflexão trazidos para este artigo: os modos de assistir a filmes; os critérios de

escolha desses filmes; e a relação entre o cinema e a cibercultura.

Em “modos de assistir a filmes”, buscamos identificar quais as práticas dos

jovens quanto aos modos de assistir e percebemos que os principais são: “assistir

em grupo e assistir com alguém que tem o mesmo aprendizado” e “ver tudo ao

mesmo tempo”. Esses diferentes modos de assistir apontam que assistir a filmes

não se restringe apenas ao cinema e se interliga por diferentes contextos de suas

vidas.

Assistir em grupo com colegas da turma agrega o sair junto, o assistir a um

filme escolhido coletivamente por eles, ir ao cinema e conversar sobre o visto. No

depoimento, a jovem expressa sua preferência por assistir acompanhada:

Ah, tem! Com certeza tem diferença [ver filmes acompanhada]. Porque eu acho que

sozinho não tem graça, né? Tem que ouvir a opinião dos outros. Eu gosto de ouvir a

opinião dos outros. Eu gosto de saber o que a pessoa tá pensando. Discutir é ótimo!

Mas discutir num sentido bom. Ver o que a pessoa acha, o que a pessoa não acha.

(Estudante 3)

O cinema tem o caráter fundamental do coletivo, ele nasce com a premissa

de se aproximar das massas. Para Benjamin (1994), essa é a característica revolu-

cionária do cinema: a recepção de modo coletivo, diferente da pintura, que tra-

dicionalmente em épocas passadas era destinada a poucos. Pensando então, que

Page 47: Comunicação, audiovisual e educação

Narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora da escola | 45

o cinema é esse espaço de apreciação coletiva da obra, tomemos outra situação,

em que a preferência em assistir a filmes se dá pelo coletivo num debate com

sujeitos “que tem o mesmo aprendizado”, jovens colegas de escola que cursam

o EMI.

Eu já me dei mal por causa disso por que eu já tentei ver filme com alguém que

não entende do que a gente tá falando. E eu sou o tipo de pessoa que quando eu

aprendo alguma coisa eu fico naquilo o tempo inteiro, então eu vejo um filme e fico:

‘Caraca, ângulo aberto, ângulo não sei o quê...’, aí a pessoa pergunta: ‘O que você

tá falando?’, e eu: ‘Não, nada não, um negócio aí’. Eu tentei ver filme com o meu

namorado, mas não deu. Ele desistiu de ver filme comigo porque eu falava mais dos

ângulos que da própria história do filme, e o final do filme eu não gostei, podia ter

terminado de outro jeito. E ele: ‘Ah, eu gostei do filme, eu não reparei em nada não’.

‘É claro que você não reparou em nada, só repara quem tem aquela prática’.

(Estudante 1, grifo da autora)

Ao que parece, o sentido de assistir com “quem tem o mesmo aprendiza-

do”, assim como fala a jovem ao dizer que “só repara quem tem aquela prática”,

demonstra que ela fala do ponto de vista de explorar a técnica, a imaginação e

criatividade, de “brincar” com a composição da narrativa apresentada pelo filme

com alguém que não vai achar “chato” ou enfadonho conversar sobre o ponto de

vista várias vezes. O “ver com o outro de mesmo aprendizado” configura uma co-

munidade interpretativa. Entendemos “comunidade interpretativa” segundo a

definição de Varela (1999), ao afirmar que os sujeitos se agrupam compartilhan-

do regras e estratégias de leitura que fixam uma aceitabilidade interpretativa,

permitindo a fluência na comunicação, o intercâmbio e a coincidência de inter-

pretações. O grupo se faz pelo sentido e pela ideologia comum que estrutura a

recepção e o desejo de estar junto.

Preferir assistir com alguém do mesmo aprendizado significa, do ponto de

vista do consumo, que este se atrela a uma linguagem coletiva, de grupo. Assim

como aponta García Canclini (2010), o consumo é cultural, sua base se justifica

nas relações sociais, mediadas por diferentes interesses, um deles é o do gru-

po. Nesse sentido, o cinema dentro da escola repercute nos modos de assistir

o cinema fora da escola, mostrando o entrelaçamento de ambos os espaços no

cotidiano dos jovens.

Page 48: Comunicação, audiovisual e educação

46 | Comunicação, audiovisual e educação

Sabemos que na contemporaneidade os modos como estamos em contato

com as tecnologias e, principalmente como consumimos os produtos das mí-

dias digitais, modificam as maneiras como estamos inseridos e participando do

mundo. Vejamos o que expressam os jovens sobre essa temática: “Eu procuro os

meios tradicionais gosto de ir ao cinema, alugar, comprar, gosto muito de comprar

porque gosto de assistir mais de uma vez. Minha mãe se revolta comigo porque às

vezes eu passo uma semana vendo o mesmo filme”. (Estudante 4)

Outra jovem relata que assiste #tudoaomesmotempo: “Eu vejo filme, fico no

Facebook e ao mesmo tempo no MSN” (Estudante 3), o que nos mostra que o con-

texto das mídias atuais reorganiza o cenário cultural (CANCLINI, 2010), havendo

um processo natural de diminuição de determinada prática social, para emer-

gir outras. São tensões em relação ao território geográfico e social em torno da

desterritorialização e reterritorialização, a exemplo do próprio cinema, que num

processo de adaptação se encontra voltado para diferentes mídias. Isso quer di-

zer que os meios clássicos de manifestações culturais dividem espaço com ou-

tros meios, como a cibercultura.

Enquanto na primeira situação, o jovem assiste ao filme de uma forma mais

lenta, “degustando”, apreciando as cenas, em outra, não se incomoda em assistir

ao filme e estar conectado a outras mídias. Essas são formas distintas e atuais de

consumo. A afirmação “Gosto muito de comprar porque gosto de assistir mais de

uma vez” demonstra um consumo pensado de escolha de gosto e de aquisição

material. Ele compra não só para ter o produto, mas também pela possibilidade

de assistir mais de uma vez. O modo de consumir desses jovens se faz de modo

interativo, demonstrando o contexto social desses sujeitos frente às mudanças

na comunicação e nos artefatos da tecnologia.

Seguindo para os “Critérios de escolha de filmes”, percebemos que o fator

emocional se mostrou presente. As jovens buscam por emoções coerentes com

seus estados de anseio e escolhem os filmes de acordo com o que estão sentindo.

“Quando a gente está na lama, aí vê coisa pra deixar mais na lama ain-

da!”. (Estudante 5) “Eu pego mais comédia romântica e drama pra eu chorar”.

(Estudante 3)

Enquanto ir ao cinema é não saber bem ao certo o que vai pulsar de emoções,

as jovens demonstram um querer ir ao encontro da emoção, combinando o sen-

timento pessoal com o articulado na ficção. As emoções que o cinema pode des-

pertar são inúmeras e refletem-se na tela e no espectador. Solomon (2015) afirma

Page 49: Comunicação, audiovisual e educação

Narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora da escola | 47

que o ser humano tem uma inteligência emocional que se forma pelas ações de

participação no mundo, uma combinação que compreende a ética e a moral so-

cial do lugar referência para o indivíduo. O que se relaciona com as diferentes

manifestações do indivíduo e da plateia sobre um filme, reações diferenciadas

para o mesmo filme.

Outro fator que se mostrou presente quanto ao critério de escolha é a in-

fluência dos membros da família. Considerando que o contexto das mídias se

inicia pelas práticas em família e que o mesmo se constitui como motivador e

exerce influência nas escolhas dos jovens, destacamos três falas que exempli-

ficam a participação da família na escolha dos filmes a que assistem os jovens

da pesquisa. “Minha avó tem uma caixa com mais de 500 filmes só de terror, ela

vê muito, eu peguei um filme lá que tinha dez dele, quando eu vou lá trago muitos

vejo e devolvo”. (Estudante 2) “Lá em casa minha mãe já deixa direto no canal de

filmes. Aí passa um filme e a gente se anima de ver”. (Estudante 1)

Esses dias eu fui falar com o meu irmão, que ele está morando longe, daí eu fui pegar

uns filmes com ele e tinha um filme que ele baixou: Scott Pilgrim, é um filme de um

livrinho, eu acho que é um Mangá, não lembro. Aí é um filme muito doido, cheio de

coisa louca, ele tem que derrotar os sete reis malignos, que são os sete ex-namorados

da garota que ele quer ficar, aí eu comecei a rir do filme, achei legal, e perguntei:

‘Onde você baixou?’. (Estudante 5)

Queremos enfatizar que a família exerce um papel formativo na cultura des-

ses jovens ao participar de forma muito próxima de suas escolhas. Avó, mãe, ir-

mão participam da formação dos jovens na relação com o cinema. No capítulo

de Fernandes, Cordeiro e Gatto (2012), os alunos de pedagogia narram situação

semelhante trazendo as suas memórias nos contatos com o cinema e a família

permanece como referência nos consumos da infância. É possível pensar que a

narrativa também se faz pelo contexto do cinema quando esses jovens são mar-

cados com a história de sua experiência com a família nas escolhas que fazem

ao longo da vida nos consumos realizados muitas vezes pelas questões afetivas.

Longe de ser o gosto pelo cinema um processo individual e isolado de outras

práticas, ele se encontra, como percebemos nas falas dos jovens, inserido num

contexto de socialização e práticas comuns de consumo.

Page 50: Comunicação, audiovisual e educação

48 | Comunicação, audiovisual e educação

Nesse contexto, o cinema como prática social e cultural, conforme apontam

autores como Duarte (2009), se reafirma como espaço de socialização e forma-

ção, a experiência com o cinema pode suscitar marcas que o sujeito carrega ao

longo da vida, tornando-se necessário o aprendizado para os diferentes aspectos

em que o cinema se insere hoje.

Ao buscarmos pela relação do cinema com a cibercultura, destacamos as

buscas/pesquisas aos filmes e as narrativas sobre o assistido. Logo de início, uma

das jovens nos diz que usa a internet para procurar por novidades (se refere aos

lançamentos). Essa questão representa um simbolismo universal sobre a inter-

net. A busca é uma ação de pesquisa, de escolha e de compreensão diante do

achado. E isso não é tão fácil quanto parece, pois estamos falando de um banco

de dados global, com abas, links que redirecionam a outras interfaces, fazendo

essa “pesquisa na internet” se tornar cada vez mais complexa.

Vejamos os comentários de duas jovens a respeito da pesquisa de filmes na

internet: “Eu pesquiso filme pelos atores e diretor. Vou no trailer e site. Escrevo na

pesquisa do Google, não entro em site específico”. (Estudante 2) “Eu procuro muita

resenha sobre o filme. Resenha mesmo, a resenha original. Aí é legal, a gente faz

uma comparação boa, e dali a gente tira o que interessa”. (Estudante 3)

As falas das duas jovens demonstram a complexidade do pesquisar na inter-

net. Aqueles que o fazem precisam saber como encontrar o que desejam. Utilizar

a varredura por atores e diretores é um critério, ver o trailer é outro, buscar rese-

nhas e críticas sobre os filmes é uma outra forma. A internet se tornou um meio

muito mais fácil e rápido para a realização de pesquisas.

Diante do domínio das redes sociais em fazer com que as informações cir-

culem, Recuero (2009) sinaliza sobre a falta de credibilidade que podem estar

contidas em alguns desses conteúdos que circulam. Qualquer indivíduo pode

gerar conteúdos que alimentam esse espaço de circulação, recirculação e discus-

são de informações nas redes de notícias. O que se torna complexo é a condição

de percepção sobre o que é uma notícia com conteúdo verídico ou um boato,

exigindo que os consumidores das redes sociais sejam mais atentos e críticos aos

conteúdos. Tanto pela possibilidade de ser uma notícia falsa, como pela carga

ideológica contida nela.

Procurando pelo cinema nas postagens dos jovens da pesquisa pelo

Facebook, encontramos diferentes maneiras para essa relação. Assim como o

cinema, a cibercultura pode causar diferentes sentidos ao olhar. Para Lemos e

Cunha (2003, p. 5), a cibercultura vem mudando as formas tradicionais de comu-

Page 51: Comunicação, audiovisual e educação

Narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora da escola | 49

nicação, pois “trata-se da migração dos formatos, da lógica da reconfiguração e

não do aniquilamento de formas anteriores”.

Os autores enfatizam que apesar da reconfiguração fazer parte de uma das

três “leis”4 da cibercultura, ela não substitui outras formas da comunicação, e

para entendermos melhor o que isso significa, nesse momento, trazemos três

produções realizadas/compartilhadas pelos jovens no Facebook a respeito de

filmes. Aparecem cenas de filmes com falas de personagens como no filme do

Batman, frases de cineastas, no caso o Woody Allen, e o remake de autoria dos

jovens sobre o filme Os normais 2. As situações compartilhadas são de páginas

com temas relativos a filmes, como “Vi nos filmes” e “Crítica livre de cinema”,

demonstrando que navegam por diferentes espaços relacionados a esse tema.

No primeiro post, com 3.999 compartilhamentos, tem uma fotografia do

filme Batman: o cavaleiro das trevas, em que a combinação do personagem vi-

lão da trama e a frase “Se você é bom em alguma coisa, nunca faça isso de graça”

(Estudantes 7, 2012) montam o quadro que para nós representa um juízo de valor

social.

4 Para Lemos (2005), as três leis da cibercultura são: a livre emissão da comunicação; a conexão em rede que a tecnologia propicia; e a reconfiguração de sentidos que os sujeitos fazem ao interagir com interfaces variadas.

Figura 1 - Postagem sobre o filme Batman: o cavaleiro das trevas

Fonte: adaptada do Facebook – Estudante 7, 2012.

Page 52: Comunicação, audiovisual e educação

50 | Comunicação, audiovisual e educação

Figura 2 – Postagem sobre Woody Allen

Fonte: adaptada do Facebook – Estudante 5, 2012.

Figura 3 – Postagem sobre Remake: Os normais 2

Fonte: adaptada do Facebook – Estudante 6, 2012.

Page 53: Comunicação, audiovisual e educação

Narrativas de jovens do ensino médio sobre cinema dentro e fora da escola | 51

No segundo post, a criação combina a frase de efeito dita por um cineasta,

com um olhar mais atento, percebemos que esta foto não representa a imagem

atual dele. O foco desse post é a frase e o efeito que ela pode trazer na publicação.

No terceiro post da reconfiguração, destacamos a postagem do Remake: Os

normais 2, produzido pelos alunos do EMI.

Santaella (2008) compreende os espaços da internet como híbridos, que

abrigam ao mesmo tempo, o sujeito físico, real, no contexto do virtual. Essa in-

serção gera modificações que atingem tanto o sujeito quanto os contextos, mo-

tivando outros sujeitos à mesma prática e a outras criações. Procurando refletir

sobre as interseções nas postagens apresentadas, percebemos que duas delas

são compartilhadas – transferida de um lugar para outro –, enquanto a outra

postagem é criação dos jovens. No Facebook, é comum essa prática, a autoria vai

se movimentando, tornando-se uma obra aberta. Santos (2011, p. 88, grifo nos-

so) contribui para a compreensão do que se constituem os processos de autoria,

quando falamos da cibercultura, ao afirmar o seguinte:

Os produtos culturais que emergem da autoria e da comunicação in-

terativa são em potência hipertextos, isto é, textos que se conectam a

outros textos através da polifonia dos sentidos e significados que são

criados nos contextos on-line e off-line. Além da hipertextualidade

construída nas interfaces on-line, os conteúdos deixam de ser paco-

tes fechados e passam a ser universo semiótico plural e em rede. Seus

links, elos, levam o leitor a adentrar com autoria, leituraescritaleitura

em conteúdos estáticos e dinâmicos que se apresentam em diversos

gêneros textuais. Cada sujeito que interage com o conteúdo hipertex-

tual articula-o com sua história de leitura, produzindo novas cone-

xões físicas e mentais e diversos desdobramentos desses conteúdos

em seus cotidianos.

As práticas culturais de nossos tempos movimentam os espaços com dese-

nhos que incorporam diferentes saberes e percepções de mundo. Nesse sentido,

assim como o cinema, a cibercultura também é um elemento de mediação e edu-

cação. Percebemos com isso, como a cibercultura é impulsionadora de práticas

a favor da formação cognitiva e humana dos jovens e que assim como o cinema

não se prende a um único contexto.

Page 54: Comunicação, audiovisual e educação

52 | Comunicação, audiovisual e educação

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa aponta que ambos os espaços e tempos – incluindo aí também a

cibercultura – constituem-se como locais de acesso, fruição e debate sobre os

filmes. Percebemos que o aprendizado, de forma geral, começa na escola e se

estende a outros espaços. O fora da escola é o que mais marca a recepção, ao

pensarmos sobre o espectador e as construções que esse faz a partir do cinema.

Esses jovens se constituem como espectadores tanto na escola quanto nos de-

mais espaços sociais. No entanto, sobressai na pesquisa o papel da escola nessa

formação já que demonstram que o aprendizado maior recai sobre a narrativa

dos filmes e sobre a linguagem cinematográfica, aspectos do currículo da escola

na formação profissional.

A reflexão que traz um dos jovens do EMI ao nos dizer: “Eu não estava fa-

zendo qualquer coisa, não ‘tava’ só assistindo filme pra aprender como os outros

fazem filmes, mas também criar uma identidade nos nossos filmes” aponta que

o sentido construído por esse jovem relaciona-se aos processos de aprendi-

zagem que fazem parte do seu cotidiano nesse momento. Ele não quer imitar

um cineasta, quer aprender com ele e sobre ele para desenvolver a sua criação.

Na perspectiva do cinema educação, Bergala (2008, p. 35) defende “uma aborda-

gem do cinema como arte: aprender a tornar-se um espectador que vivencia as

emoções da própria criação”.

Nesse sentido, trabalhar o cinema na escola num horizonte formativo, pro-

cessual, é também buscar por uma pedagogia que dá sentido ao ver. Vimos que faz

parte da prática escolar do EMI a exibição de filmes, tentando criar um ambiente

semelhante ao do cinema, ao criar produções com/sobre o cinema. Pelo que nos

disseram esses alunos, pode-se viver experiências de transformação do olhar.

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Page 57: Comunicação, audiovisual e educação

| 55

3“Cinema é um acontecimento”:investigando a prática cineclubista do Cine cch na universidade

Thamyres D aletheseAdriana Hoffmann

INTRODUÇÃO

O presente texto traz um recorte da pesquisa de monografia de Dalethese (2013),

realizada no contexto de um cineclube universitário. Trata-se do projeto de

extensão “Cine CCH: aprendizagens com o cinema”,1 da Universidade Federal

do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). O projeto Cine do Centro de Ciências

Humanas (CCH) constituiu-se um dos eixos da pesquisa O cinema e a narrativa

de crianças e jovens em diferentes contextos educativos, cujo intuito era investigar

as relações construídas com o cinema em espaços de educação formal, como o

ensino fundamental, médio e superior. As ações desse projeto foram sempre fei-

tas em diálogo com outros espaços de educação, gerando trocas e parcerias de

interessantes conversas.

1 O projeto Cine CCH realizou-se durante sete anos no Auditório Paulo Freire do CCH da Unirio sob a coordenação da prof.ª Adriana Hoffmann. Esse projeto foi realizado de 2010 a 2016 e foi o campo de pesquisa desste estudo e de outros realizados no grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação (CACE) como as anteriormente apresentadas neste livro. Thamyres, uma das au-toras deste capítulo foi participante do projeto, bolsista e depois realizou uma monografia que está resumida neste artigo a partir das conversas com os sujeitos do projeto.

Page 58: Comunicação, audiovisual e educação

56 | Comunicação, audiovisual e educação

Em tempos de culturas midiáticas, é impossível pensar as relações e práti-

cas humanas sem a presença de artefatos audiovisuais. Percebe-se com cada vez

maior intensidade o caráter intrínseco que essas mídias assumem nos modos de

existência na contemporaneidade, na medida em que elas perpassam e se entre-

laçam continuamente às nossas experiências e vivências cotidianas. Em meio ao

extenso repertório midiático, o cinema se constitui um desses meios significativos

que certamente desempenha papel relevante na vida social e cultural das pessoas.

Dentre as ações pedagógicas e coletivas desempenhadas pelo cinema, des-

taca-se o papel dos cineclubes como ambientes favoráveis à socialização e difu-

são cultural. Entende-se que a dinâmica de reunir grupos para assistir e debater

filmes pode se constituir em uma prática fundamentalmente educativa que se

consolida pela criação de espaços de “significação e ressignificação de conhe-

cimentos variados”. (SILVA, 2009, p. 146) Desse modo, este capítulo traz o Cine

CCH como campo de investigação e apresenta as falas tecidas ao longo de entre-

vistas com alguns dos frequentadores do projeto a fim de perceber os sentidos

que esses participantes atribuíam ao cinema no processo de formação acadêmi-

ca que atravessavam. Trata-se de um resumo de alguns dos achados da pesquisa

no cineclube que também deu origem a outros artigos anteriores. (FERNANDES,

2010; FERNANDES; DALETHESE, 2015; FERNANDES; RIVAS; MAIA, 2012)

O projeto Cine CCH realizou-se vinculado à Escola de Educação da Unirio

e, ao longo das sessões, percebeu-se que mesmo recebendo diferentes públicos

de outros cursos como Música, Teatro, História, Engenharia etc. era do curso

de Pedagogia o público majoritário em praticamente todas as exibições. Talvez,

consequentemente, pela maior divulgação entre seus estudantes e professores.

Portanto, foi com base nos cadernos de assinatura na entrada das sessões do ci-

neclube que levantou-se o número médio de participantes por sessão, entre 80 e

100 participantes. A partir desse critério, foram selecionados e convidados para

entrevistas dez estudantes desse curso, pela assiduidade e expressiva participa-

ção nas sessões do Cine CCH.

NARRATIVAS COM O CINEMA, MEMÓRIAS DE VIDA

Ao longo do projeto, tivemos a participação de vários artistas e, dentre eles, a

Juliana Damiani, que trazemos aqui seus cartazes. Ela foi nossa voluntária e,

Page 59: Comunicação, audiovisual e educação

“Cinema é um acontecimento” | 57

infelizmente, nos deixou, mas será lembrada aqui pelos seus lindos cartazes que

fizeram parte da nossa história e também fazem parte desta pesquisa. Todos os

cartazes trazidos neste artigo foram da autoria dela.

Figura 1 – Cartaz divulgação do Cine CCH – Juliana Damiani (in memorian)

Fonte: material de pesquisa.

Os estudantes, quando questionados sobre suas relações com o cinema, fa-

lam sobre suas histórias de vida com o cinema e percebemos que a maior parte

demonstra grande envolvimento, revelando a presença expressiva do cinema em

suas vidas, desde a infância. Algumas falas são entretecidas por muita emoção,

desejos e perspectivas de vida, conotando valores significativamente afetivos e

sensíveis com o cinema. Relatos que expressam sempre experiências coletivas,

situações, hábitos compartilhados com familiares ou círculos de amizade entre-

meados por lembranças afetivas. Em determinadas falas,2 os próprios sujeitos

2 Foram realizadas ao final do ano de 2012 cerca de 10 entrevistas com frequentadores assíduos do Cine CCH até aquele momento, as quais nos permitiram ampliar a percepção das relações construídas com

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58 | Comunicação, audiovisual e educação

parecem reconstruir suas trajetórias de vida permeadas pelo cinema, reconhe-

cem o papel relevante do outro – de um parente próximo, de amigos – na forma-

ção dessas tramas, como apontam as falas seguintes:

Eu sempre gostei muito de cinema, sempre fui envolvida de alguma forma. Quando

eu era criança, assim, eu ficava perturbando o meu pai, ia na locadora toda sema-

na, alugava os mesmos filmes toda semana, aquela coisa de criança. Um hábito lá

em casa. Porque bem ou mal meu pai me levava toda semana na locadora, a gente

ia, alugava os filmes. (Vanessa)

Eu nasci numa família que ia periodicamente ao cinema, então quando eles iam

eles me levavam. Então, na minha infância eu ia pra esses filmes que tão em cartaz,

infantis, Disney, essas coisas, eu sempre ia com os meus pais. Depois que a gente se

desprende desse núcleo familiar, de programinhas tão familiares e, digamos, mais

próprio da infância e da criança, eu comecei a ir ao cinema, claro, por conta pró-

pria e fui diminuindo um pouco o ritmo. (Igor)

Eu lembro que, pequena, uma vez minha mãe levou a gente ao cinema para poder

ver Xuxa (risos). Todo mundo, eu e minhas irmãs pequenas indo ver Xuxa. A lem-

brança que eu tenho melhor da minha infância no cinema. E depois eu já lembro

muito vendo filme, que lá em casa todo mundo gosta muito de ver filme. (Sinara)

Na compreensão da narrativa em Benjamin (2012), os relatos compartilha-

dos nas entrevistas apresentam sentidos intencionalmente criativos e inven-

tivos de contar e pensar a própria história. Ao convidar os sujeitos a revisitar

suas histórias de vida, os sujeitos trazem das memórias espaços e tempos dos

passados que são entrelaçados com o hoje, intercambiando experiências de di-

ferentes tempos e lugares. No processo de rememorar, eles desencavam, sele-

cionam, imaginam e refletem sobre filmes, pessoas, gestos, comportamentos

e sentimentos que perpassaram suas trajetórias de vida com o cinema. O valor

narrativo nesse movimento de contar suas histórias reside na possibilidade de

confrontar experiências passadas com os sentidos atribuídos no presente. Desse

modo, as lembranças, quando narradas, vão sendo elaboradas através dos olha-

res de hoje, o que configura movimentos de reconstruir essas trajetórias.

o cinema ao longo de suas trajetórias de vida. Optamos por trazer seus nomes originais, tomando esses sujeitos também como autores e autoras desse projeto.

Page 61: Comunicação, audiovisual e educação

“Cinema é um acontecimento” | 59

Para Benjamin (2012), a arte de narrar busca na experiência sua matéria, a

fonte para ser tecida e compartilhada. Com isso, é que entendemos que toda coi-

sa narrada sempre traz marcas significativas que atravessaram e ainda atraves-

sam as identidades dos sujeitos produzidas em experiências com filmes, com o

cinema que se desdobram em espaços e tempos mais recentes.

A recorrência nos relatos em assistir determinados filmes diversas vezes ins-

tiga a necessidade em compreender os sentimentos e sentidos envolvidos nes-

sa forma de consumo. A prática de rever é significativa nos modos como eles

se relacionam com filmes. Essa necessidade da “repetição” aparece associada

a filmes marcantes, que lhes tocam ou referem-se a um tipo de filme de suas

preferências:

“Tem essa coisa de ver várias vezes. Então, eu alugava sempre o mesmo filme

e agora se eu gosto muito de um filme eu compro e fico vendo de novo e ninguém

aguenta ver comigo. Eu vejo sozinha, várias vezes”. (Vanessa) “Filme que me toca

eu não consigo assistir uma vez só. Não consigo cansar. Aquela coisa da experiên-

cia que você tem começo, meio e fim e acabou. Não. Quando eu assisto de novo, eu

acabo me emocionando, me atentando para as mesmas partes”. (Igor) “Eu gosto

muito de filmes da Jane Austen. Conhece a Jane Austen? Orgulho e preconceito,

Persuasão, Emma... Todos esses filmes eu vejo, revejo. Todo mundo que vai lá em

casa eu boto para ver, meu namorado tem que ver também”. (Sinara, grifo nosso)

E falar de cinema é também falar de filmes, que assim como as redes de ami-

zades e a família, as culturas de cinema (COELHO, 2012), também se formam nas

práticas de consumir e interagir com as imagens e narrativas fílmicas. Recorro

à definição de consumo para Nestor Garcia Canclini (2010, p. 60) que o entende

como “conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e

os usos dos produtos”. Na compreensão de que os filmes constituem elementos

culturais fomentadores de significações e sentidos do mundo, o consumo desses

bens também integra e intervém em modos de pensar, criar e agir na vida cole-

tiva em sociedade.

A prática de rever determinados filmes ou partes várias vezes é sinalizada na

maioria das falas. É interessante notar, por exemplo, a necessidade de Igor em

retomar cenas que lhe causaram emoção, de estar atento às mesmas cenas como

ele mesmo afirma. Essa repetição é, sem dúvida, associada a filmes que lhes to-

caram, provocaram vestígios que podem se configurar em experiências no sen-

tido que Larrosa (2002) nos fala. Parece então que no retorno ao filme, ou a uma

Page 62: Comunicação, audiovisual e educação

60 | Comunicação, audiovisual e educação

determinada cena, há uma tentativa de ser novamente tocado, de apreender o

efeito produzido outrora. Mesmo na impossibilidade da experiência se repetir,

é preciso sempre um reencontro que reafirme as emoções, sentidos e afetos pro-

vocados naquele encontro.

A partir das referências cinematográficas que aparecem nas entrevistas

como filmes que mais gostam ou que mais lhe marcaram, como os próprios su-

jeitos dizem, os filmes são concebidos como produtos culturais que, na intera-

ção com os espectadores, se constituem consumidores e produtores singulares e

múltiplos de culturas de cinema. Tal como Larrosa (2002) conceitua o sujeito da

experiência como território de passagem, o espectador se define pela disposição

e receptividade para ser atravessado pelo filme que assiste. Assim, penso que,

quando dizem que algum filme lhes marcou, os sujeitos admitem a condição de

entrega e abertura para serem transpassados pelo filme e nele transpassar.

Outro ponto relevante que surge na maioria das entrevistas é a distinção

entre filmes fora do circuito industrial e filmes comerciais que apontam para

uma forma significativa de consumo, como compreendem e se relacionam com

filmes. Algumas denotam certo desprezo pelas produções hollywoodianas ou

comerciais, apresentando esse tipo de critério para discriminar filmes bons e

filmes ruins.

“Eu tento me informar mais sobre esses filmes alternativos porque eu não costu-

mo gostar muito do que está passando nas salas. Eu amo cinema, mas não gosto de

ver Lanterna Verde, Hulk, Batman”. (Mariana) “Como a gente mora afastado desse

eixo zona sul/centro, lá perto de casa é difícil a gente ter filmes mais assim... É mais

pastelão, blockbuster. Então, meu namorado, às vezes tá com preguiça de ir pra lon-

ge e aí a gente vai ver, sabe, esses filmes. E aí eu acho um saco”. (Vanessa) “Quando

eu digo ‘ir ao cinema’, não necessariamente numa sala de cinema com essas apre-

sentações de filmes hollywoodianos que também não são os que mais me apetecem,

mas algo alternativo, né? Estação, Cine Santa, deixa eu ver... Arteplex”. (Tiago)

Percebe-se como a criação desses valores é decisiva nos modos de escolher e

avaliar filmes, constituindo assim uma forma de ser espectador. Duarte (2009, p.

64) aponta que a criação dessas categorias repousa numa “concepção de cinefi-

lia” com a qual os sujeitos tendem a valorizar produções que abordem temáticas

mais complexas, produções experimentais e fora do grande circuito comercial

que envolvem também práticas de pesquisa e investimento intelectual sobre

cinema.

Page 63: Comunicação, audiovisual e educação

“Cinema é um acontecimento” | 61

A grande maioria dos entrevistados faz referência ao cinema como um pro-

grama social, evento ou passeio, fazendo distinção do filme em si. Alguns entre-

vistados admitem a baixa frequência a salas de cinema, denotando outros hábi-

tos adquiridos para se relacionar com a arte cinematográfica.

É uma espécie de ritual, né? Um ritual de você ir ao cinema, de estar ali no coleti-

vo, partilhando daquela experiência de ver aquele filme, enfim, tem todo um ritual

que em casa não tem. (Tiago)

Hoje em dia, eu ir ao cinema é um pouco difícil, eu assisto filme em casa mesmo,

baixo na internet ou pego filme com alguém e assisto no meu computador. É bem

diferente, né, a sensação é outra. Na verdade, eu não tenho ido muito ao cinema

porque eu moro em Niterói e as salas de cinema que tinham lá praticamente todas

fecharam. (Aghatha)

Cinema virou um lazer um pouco difuso. É um pouco disperso hoje em dia, na mi-

nha experiência atual. Não sei se cabe falar aqui, mas eu baixo muitos filmes na

internet [fala rindo com certa ‘vergonha’], acho que não cabe, né? É pra falar de

cinema? Eu baixo muitos filmes em alta definição, coloco no meu HD externo, assis-

to o filme e a experiência é outra. Não digo nem que é melhor ou pior, mas é outra

experiência. (Igor)

O acesso a filmes pela internet, através de compra, locação de filmes em

DVD e cópias não autorizadas sobressaem como as formas que os sujeitos bus-

cam para assistir filmes. Evidencia-se com isso um consumo de filmes muito

mais relacionado com esses suportes do que a frequência a salas de cinema vista

como um “ritual”. Por outro lado, vemos que uma parte deles ainda frequenta,

com alguma regularidade, as salas de cinema tanto quanto buscam e utilizam

outros meios e recursos para consumo de filmes. No entanto, essa frequência ao

cinema tem um objetivo específico como nos aponta a fala seguinte que corro-

bora com a de outros entrevistados: “O cinema é mais um acontecimento. Estou

querendo comemorar alguma coisa, tive uma semana muito estressante, então eu

vou ao cinema”. (Juliana)

Essa imagem trazida por Juliana remete inevitavelmente às palavras de

Larrosa (2002, p. 24), que chama o sujeito da experiência de “espaço onde tem

lugar os acontecimentos”. “Ponto de chegada”, “território de passagem” ou “lu-

Page 64: Comunicação, audiovisual e educação

62 | Comunicação, audiovisual e educação

gar do acontecer” são termos que o autor utiliza para se referir ao sujeito no

qual a experiência passa. Isso supõe que a experiência não é o acontecimento,

mas o que torna o sujeito vulnerável a habitar acontecimentos. Sendo assim, o

acontecimento é sempre exterior a nós, algo que não resulta das nossas ideias,

projeções, vontades e poderes. Nesse sentido, a prática de ir a salas de cinema

é sentida e tratada pela maioria como ocasião especial, “um ritual” como disse

Tiago, que não deve ser reduzida a uma situação corriqueira. A noção do cinema

como acontecimento repousa nesse entendimento de escapar temporariamente

dos regulamentos e linearidade da vida cotidiana e se lançar ao que está fora de

nós, abrir em si um caminho para que o novo e inesperado ganhem passagem.

Figura 2 – Cartaz divulgação do Cine CCH – Juliana Damiani (in memorian)

Fonte: material de pesquisa.

Page 65: Comunicação, audiovisual e educação

“Cinema é um acontecimento” | 63

NARRATIVAS COM O CINEMA E A UNIVERSIDADE

Num segundo momento, procuramos focalizar nas entrevistas as relações que

existem e que podem existir entre o cinema e a universidade pela percepção dos

estudantes, qual o lugar do cinema, dos filmes no espaço acadêmico.

A gente está na universidade, só lê texto, vira uma coisa maçante, não que isso seja

chato, também adoro ler. Mas também é tão legal ir numa aula, diferenciar, em vez

de ler, ver um filme. A gente está ganhando tanto quanto, aprendendo tanto quan-

to, mas de uma maneira diferente, de outra forma de expressão. (Mariana)

Uma vez eu falei isso lá na Unirio, diante dos professores, uns adoraram, outros

ficaram com a cara meio torta, mas eu falo. Eu posso estar totalmente enganado,

mas é meu ponto de vista! Eu acho que o cinema é um... Não gosto da palavra dispo-

sitivo, mas na falta de outra eu vou falar: é um dispositivo formativo privilegiado.

E qual é a crítica que eu faço? Que na universidade, na Unirio, no curso de Pedagogia

mesmo, muitos professores, a despeito de ter uma discussão de cinema no curso de

Pedagogia não entendem, do meu ponto de vista, o cinema como essa possibilidade

de formação. Ainda tem – isso do meu ponto de vista – um ranço de achar que o

cinema é pra discutir a matéria. Porque vai quando o filme tem a ver com a minha

disciplina, se não tem, vou perder o tempo da aula, como se a aula garantisse a pes-

soa discutir questões... Entendeu? E aí você perde uma experiência que é formativa

do ponto de vista estético, do ponto de vista ético, e do ponto de vista epistemológico

mesmo. (Tiago)

Os relatos acima apontam, sob diferentes perspectivas, a constatação de

um tratamento escasso e distante que o cinema encontra no contexto de forma-

ção universitária e defendem o seu valor como possibilidade de aprendizado,

diálogo e experiência. Assim como Mariana, Tiago também contesta a maneira

secundária com que o cinema é contemplado nas práticas curriculares, ressal-

tando sua potencialidade formativa tanto quanto a prática recorrente de leitura

de textos no curso que frequentam. Tiago acredita que, em geral, os professores

tenham ainda receios e dificuldades em trabalhar com o cinema em suas diver-

sas vertentes de abordagem, como ele mesmo cita, que podem ser pelo ponto de

vista epistemológico, estético, ético, em detrimento de reduzir um filme como

ferramenta de apoio disciplinar.

Page 66: Comunicação, audiovisual e educação

64 | Comunicação, audiovisual e educação

Eu não iria evitar em citar o próprio filme numa dissertação, num trabalho. Eu

já fiz isso! Uma música, alguma obra de arte... Por que não um filme? Então, se eu

estou assistindo um filme na universidade que possa ter me tocado e que eu posso

fazer uma relação com a minha vida e com a minha pesquisa, com o que eu leio, por

que não? Eu acho que a gente tem que ter o livre arbítrio e a universidade tem rom-

per... Não romper, apenas, com alguns modelos, mas deixar com que a própria vida

entre na formação. E quando começa a pesquisa, será que você não pode trazer um

pouco do que você vê, do que você faz atualmente para a pesquisa? (Igor)

Essa fala deixa transparecer como o cinema já é referência na vida cotidiana

dele e essa forma de ver e pensar o mundo com e através de filmes esbarra nas ló-

gicas convencionais e hegemônicas de pesquisas acadêmicas. Essa postura é um

desafio para se pensar em possibilidades outras de produzir, refletir e circular

o saber científico, pelas quais também sejam legitimados processos discursivos

e investigativos promovidos com a linguagem cinematográfica. É interessante

notar, pelo relato de Igor, o reconhecimento de como a relação com filmes pode

tomar rumos transformadores. Como o próprio estudante afirma, um filme pode

desestabilizar o pensamento, subverter formas rígidas e naturalizadas de con-

ceber o mundo que, também, estão imbricadas em formas de ser e estar na uni-

versidade. Se é na abertura e exposição ao outro que a experiência nos acontece,

como nos fala Larrosa (2002), um filme é um possível outro para nos atingir, nos

arrebatar e formar.

Essa percepção do caráter formador do cinema construída dentro da univer-

sidade é evidenciada em outras falas, como Sinara e Lúcia, que sinalizam para o

que já havia sido apontado pelos outros colegas, o cinema como parte inerente

ao cotidiano e, portanto, já atravessa o meio universitário.

Faz parte, da universidade, da escola, da nossa vida como um todo. O cinema tam-

bém é uma forma de aprendizagem. As pessoas não enxergam dessa forma. E a gen-

te está aprendendo, está crescendo, amadurecendo. (Sinara)

É uma arte, né. É uma leitura, uma construção, uma linguagem que o homem fala

do seu cotidiano, do que afeta, dos seus incômodos, inventa, inventa tanta coisa...

É muito bonito. Tem a literatura que já é uma loucura, né, e o cinema... então!

A gente aprende muito com o cinema. (Lucia)

Page 67: Comunicação, audiovisual e educação

“Cinema é um acontecimento” | 65

Apropriando-se das palavras de Lucia, esta pesquisa acredita que o cinema

que afeta é o que nos forma, e, incomodados, nos afetamos e nos (co)movemos

para formar o outro, a realidade. Nesse exercício de narrar o cinema dentro da

universidade, eles não só problematizam o lugar que ele ocupa no âmbito aca-

dêmico, como também buscam pensar nas pontes e tramas entre o cinema e a

própria formação cultural e social.

Eu acredito que ele (cinema) deve ser incorporado na universidade de uma forma

planejada e sistematizada mesmo, mas sem com isso perder a participação coleti-

va, espontaneidade, atendendo a demanda das pessoas. [...] Até porque, por exem-

plo, na faculdade de Pedagogia, sobretudo, você vai trabalhar com professores e o

professor para desenvolver uma demagogia da leitura, ele tem que ler. E, hoje em

dia, você já tem que ler, ler o mundo, você lê diversas linguagens, inclusive cinema.

Então, o professor nos processos de letramento de mundo é ideal que ele trabalhe

com o audiovisual porque as crianças estão sendo bombardeadas por isso o tempo

todo. Então, assim, é bom que tenha isso, em ter espaço sistematizado para você

enriquecer a sua experiência com o cinema, é importante. (Aghatha)

Vejamos que Aghatha defende a integração do cinema com a universidade

na formação dos sujeitos assim como seus colegas. Contudo, seu olhar focaliza

a experiência com o cinema, isto é, como a universidade pode contribuir na for-

mação com e para a linguagem cinematográfica. O cinema não aparece em sua

fala apenas como elemento potencializador de questões e debates para os cursos

acadêmicos, como recurso de aprendizado a ser contemplado nas práticas disci-

plinares. O que ela propõe é a importância da universidade incorporar o cinema

através de atividades, projetos e recursos materiais, no reconhecimento do valor

coletivo e acolhedor das imagens fílmicas na formação cultural das pessoas.

NARRANDO O CINE CCH, A UNIVERSIDADE ATRAVESSADA PELA EXPERIÊNCIA CINECLUBISTA

No terceiro momento das entrevistas, buscamos trazer dos entrevistados seus

olhares e dizeres para o projeto Cine CCH e para a própria experiência construí-

da enquanto espectador/estudante. Nas falas a seguir, eles contam como conhe-

ceram o projeto, suas motivações e expectativas para participar e continuar a

frequentá-lo.

Page 68: Comunicação, audiovisual e educação

66 | Comunicação, audiovisual e educação

O leitor, a Janela da alma e Carregadoras de sonhos foram três filmes em que a

professora deixou a gente ir assistir o filme e discutir depois em sala. Ela pediu pra

gente assistir, fazer uma relação com a disciplina. Sobre a questão da leitura e da

escrita. Discutir um pouco o filme, o que a gente compreendeu e como a gente enxer-

garia, como a gente poderia se situar naquele contexto da menina que não sabia ler

e pedia pra outra pessoa ler. (Igor, grifo nosso)

Tinha disciplina que você conseguia negociar: o professor não vai, mas deixa que

você vá, e tem outras que não dava pra negociar e aí não tinha jeito. No início, era

porque era disciplina. As disciplinas pediam pra levar, pra ir. Depois eu comecei a

gostar. Assim, vivendo na experiência mesmo de ver o filme e depois discutir sobre o

filme, aí comecei a gostar. Alguns professores não levavam, mas aí eu falava que ia,

eles deixavam e eu ia. E quando não deixavam... Teve dois... Teve uma vez que uma

professora disse que não podia abrir mão da aula, eu tinha direito a falta, faltei.

E acabou! (Tiago)

A professora sugeriu que a gente assistisse. Porque na verdade, professor não leva,

ele sugere. Tem gente que assina (caderno de presença) e foge, né. O aluno não fica se

não quiser, por isso que eu disse que não leva. Ele assina, foge, entra e sai pela outra

porta. Eu fui para participar do debate porque eu acho interessante essa coisa do

filme com debate. (Lucia)

É claro nesses relatos como o papel do professor que permite a ida ou sugere,

nas palavras de Lucia, uma determinada sessão do Cine CCH para seus estudan-

tes se mostrou fundamental para a entrada desses sujeitos no projeto, mesmo

que seja em favor de sua própria disciplina. Como projeto de extensão, o Cine

CCH não possui vínculo com qualquer disciplina específica dos cursos ofereci-

dos pela Unirio, apesar do caráter articulador com práticas de ensino e pesquisa.

Dessa forma, quando há o desejo de estar presente em algum filme e debate, os

estudantes também sugerem a seus professores que levem a turma, ou, como diz

Tiago, criam argumentos e estratégias para negociar.

Já Aghatha e Mariana demonstram outro aspecto de envolvimento com o

cinema que revela o interesse e curiosidade em vivenciar uma atividade nova na

universidade, uma experiência cineclubista.

É uma coisa que estava faltando, uma coisa que eu acho maravilhosa e que estava

faltando. Tudo de bom! Ela faz sessões de cinema, não com filmes de cinema que

Page 69: Comunicação, audiovisual e educação

“Cinema é um acontecimento” | 67

passam no cinema... É muito bom! Na universidade e podendo ainda conversar so-

bre o filme depois. Eu acho muito legal a ideia do projeto. A gente sempre passa pela

primeira Unirio e lá tem sempre um cartaz do Cinema e Psicanálise (outro cineclu-

be na Unirio) e eu sempre queria ir lá, só que é lá, é longe e é sempre nos horários de

aula. Aqui (prédio do CCH), por mais que seja no horário de aula, além de alguns

professores liberarem, é aqui, aqui embaixo, é pertinho, dá para a gente ir, matar

aula se for o caso... para ver um filme acho que vale a pena. (Mariana)

Eu comecei a participar quando veio a ideia de sala de exibição lá no prédio do

CCH, achei superinteressante, foi produtivo e aí, geralmente você vem para aula e

os professores quando liberam para ver o filme, pô, não tem porque você não ir, você

já tá aqui, você vem para a aula, então vai acontecer um filme, vamos ver o filme,

é super enriquecedor sim, parar e ver o filme ali, todo mundo e, discutir depois.

(Aghatha)

Ao narrar suas participações no projeto, os estudantes avaliam o lugar e

significado do projeto na Unirio, percebendo-o como espaço alternativo de vi-

venciar a travessia enquanto universitários. A proposta de assistir e debater os

filmes em meio a práticas de formação acadêmica surge como possibilidade de

ampliar, diversificar e pluralizar a trajetória na universidade. Isis e Juliana expli-

citam que buscam e encontram no Cine CCH a possibilidade de exercitar olhares

e fazeres outros para além das disciplinas curriculares.

Eu gosto dessa coisa de ter esse espaço na universidade porque há um tempo não

tinha. É uma que eu sinto falta na universidade, é falar de questões atuais ou ques-

tões que não são ligadas à educação. Então no Cine CCH, nos debates, eu vou pelo

filme também, que eu gosto de ver filme, mas nos debates, eu acho que essa coisa

não que venha ser tão forte assim, mas às vezes eu consigo falar mais sobre o que

está acontecendo hoje em dia do que só o mundo à parte e sobre outras coisas. Eu

posso debater sobre outras coisas e que a gente não fala na sala de aula ou na uni-

versidade. (Isis)

Eu acho interessante se criar esse espaço. Se a gente for pensar nisso, a gente não

tem espaço na Unirio que se utilize de outra forma. E o Cine CCH é mais ou menos

isso, é uma opção de você estar na faculdade e você debater, não é só assistir o filme

e ir embora. É você discutir sobre alguma coisa, não necessariamente na sala de

aula, não necessariamente sobre educação. Discutir outras coisas que são impor-

Page 70: Comunicação, audiovisual e educação

68 | Comunicação, audiovisual e educação

tantes também. Aí se trata da questão da universidade, né, que é faculdade-pesqui-

sa-extensao-ensino, né. Não é só ensino, não é só sala de aula. É utilizar o espaço de

diversas maneiras. (Juliana)

Os relatos anteriores tomam o Cine CCH como campo de embrenhar ques-

tões e territórios poucos explorados do cotidiano acadêmico, favorecendo a ex-

pressão e construção de sentidos e conhecimentos desalojados das exigências

curriculares da graduação. Não por acaso, essas últimas entrevistadas acabaram

ingressando na equipe que organizava o projeto, tais eram suas identificações

com a proposta. Essa postura que se revela em suas atitudes e falas que é impul-

sionada pela escolha, abertura e disponibilidade ao diferente, que escapa das

situações impostas e instituídas é o que Larrosa (2002) chama de “gesto de inter-

rupção”. A vontade de parar, suspender os rituais e obrigatoriedades de sala de

aula, pressupõe um gesto de busca e risco. Se retomarmos ao que Lucia disse, o

professor nunca leva, ele sugere que seus estudantes participem do Cine CCH. O

que os instiga é a vivência ao diferente, experimentar maneiras outras de estar e

ser estudante na Unirio.

Assim, ao arriscar abdicar-se, temporariamente, das demandas disciplina-

res do dia a dia, os sujeitos procuram intencionalmente deslocar e reinventar

olhares e relações na e com a universidade, que não sejam vinculados ao saber

vivenciado, produzido, habilitado, mas o saber da experiência. Por isso, o sujeito

da experiência se define como “superfície sensível que aquilo que acontece lhe

afeta de algum modo” (LARROSA, 2002, p. 19), pois somente quando rompe com

as práticas calculáveis centradas na ação e produção de conteúdos, na compe-

tência e execução de tarefas é que se torna um território de passagem para que o

outro lhe atravesse e lhe altere.

Nessa perspectiva, destacam-se relatos nos quais os sujeitos reconhecem a

participação no Cine CCH como lugar possível para que algo lhes aconteça, isto

é, espaço onde podem emergir outros sentidos e caminhos para a própria for-

mação. Como bem lembra Vanessa, o Cine CCH “contribui pra formação e, além

disso, formação cultural, assim, formação como pessoa, te dá mais repertório”.

Tudo o que acontece na universidade faz parte da minha formação. Às vezes a gen-

te acha que não, que são coisas isoladas, um evento que a gente participa, um filme,

ou uma oficina. Está tudo ligado, é o processo de formação da gente como estudante

Page 71: Comunicação, audiovisual e educação

“Cinema é um acontecimento” | 69

universitário. Por isso eu acho tão bacana. Eu acho que deveria até ter outras coi-

sas também além do Cine CCH. Sair um pouco da sala de aula. (Sinara)

O gesto de interrupção que requer a abertura e disposição para escutar,

olhar, abrir e se expor ao outro é evidenciado em muitos relatos. Reconhecem o

lugar do outro como aquele que lhe é externo, diferente, mas também constitui-

dor da sua experiência, que provoca, incita e contribui na construção de olhares

e significados novos nos momentos de debates após os filmes. Contudo, algumas

falas deixam expressar como a diversidade de sentidos apropriados e partilha-

dos a partir dos filmes podem causar incômodos, que é próprio também do que

nos afeta.

Você discute com pessoas que você conhece, outras que você não conhece, e sem-

pre surge uma questão nova, que te faz pensar, e isso me motivou a ir ao encontro.

Porque se for só pelo filme, eu não sei se eu iria. Não vou nem dizer que eu gosto dos

debates, porque a gente não sabe como vão ser, mas a possibilidade de ter o debate.

Eu mesmo quase não participo, mas ouvir o outro... (Igor)

Sinceramente, a parte que eu mais gosto (os debates) – sem contar o filme, que é

uma experiência ótima. Mas eu gosto muito dos debates. Porque você tem a possibi-

lidade de compartilhar pontos de vista, ouvir o ponto de vista do outro que, muitas

vezes, te mostra ou te convida a pensar em uma coisa que você nem tinha pensado.

Agora, claro que tem aquelas pessoas que falam umas coisas que você fica arrepia-

do. Né? Eu fico arrepiado, me dá um frio na espinha, mas faz parte, é lidar com o

outro, né, com a diferença. (Tiago)

Todos os entrevistados admitiram participar e gostar dos momentos de de-

bate após os filmes. Como o Cine CCH é sempre aberto, sem temas e debatedores

direcionados, as discussões que se seguem aos filmes são compostas conforme

as articulações e movimentos criados pelos próprios frequentadores. Para além

de expor opiniões e explicações sobre o filme, os sujeitos percebem os debates

como momentos de troca, escuta, confronto de ideias, ampliação do olhar e da

reflexão. Assim como Tiago e Igor, os demais entrevistados também valorizam a

fala do outro, mesmo que controversa, como legítima na dinâmica dos debates.

Isso sugere uma compreensão do olhar do outro que também constitui o olhar

que construímos com o filme.

Page 72: Comunicação, audiovisual e educação

70 | Comunicação, audiovisual e educação

Os relatos tecidos ao longo dos debates podem ser entendidos como narrati-

vas criadas a partir das marcas provocadas pelo filme. No movimento de narrar

e escutar, os sujeitos dialogam, aprendem, refletem e compartilham suas expe-

riências trazidas com os filmes. Afinal, o filme nunca é um lugar fechado em si,

mas habita possibilidades e experiências. Os olhares que se revelam em narra-

tivas são abertos e receptivos ao outro, assim, ao narrar e escutar a experiência

com o filme se recria. E é exatamente isso que se denota pelos entrevistados, a

busca, nos debates, de outro sentido com o filme, a possibilidade de ampliar as

tramas na relação com o que foi exibido.

Figura 3 – Logo do projeto Cine CCH

Fonte: autoria Isis Lucena.

CONCLUSÃO

Nesse exercício de narrar, os estudantes entrevistados do curso de Pedagogia

não só problematizam o lugar que o cinema ocupa no âmbito acadêmico, como

também buscam pensar nos possíveis entrelaçamentos entre o cinema e a edu-

cação. As entrevistas se revelaram momentos de narração tecidos pelas conver-

sas e encontros entre diferentes espaços e tempos que provocam outros afetos,

Page 73: Comunicação, audiovisual e educação

“Cinema é um acontecimento” | 71

inquietações, reflexões e desejos com o cinema, com a universidade e com a

realidade.

Destaco das falas, a importância atribuída ao Cine CCH, em suas formações,

ao reconhecê-lo como atividade que possibilitou redimensionar a estrada que

percorriam como universitários. Como futuros educadores e educadoras, essa

constatação denota não apenas o valor que percebem da prática cineclubista no

contexto da graduação, mas implicitamente compreendem o cineclube como

alternativa para os espaços tradicionais de aprendizado formal, como possibili-

dade de produção e interação de conhecimentos. Assim, o Cine CCH como ativi-

dade cineclubista pode ser entendido como lugar de construção e circulação de

saberes entre seus participantes favoráveis à sociabilidade, à ampliação do re-

pertório cinematográfico e à formação do espectador. Nesse sentido, percebe-se

como a experiência com o cinema na universidade possibilita outras maneiras

de construir esse percurso de formação, isto é, criar maneiras outras de ver, pen-

sar, agir, criar e se relacionar com esse espaço que não está prescrito nas ementas

curriculares.

REFERÊNCIAS

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DUARTE, R. Cinema e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

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LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência.

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social. Domínios da imagem, Londrina, v. 2, p. 137-147, 2009.

Page 75: Comunicação, audiovisual e educação

“Cinema é um acontecimento” | 73

Semente de ecrã 3

Fonte: Ludmila Duarte (2020).

Projeto “O cinema e as narrativas na era da

convergência: modos de consumo, formação e

produção de audiovisuais de crianças, jovens

e professores”(2013-2018)

Page 76: Comunicação, audiovisual e educação
Page 77: Comunicação, audiovisual e educação

| 75

4Jovens youtubers: novas aprendizagens

Lucineia Batista

INTRODUÇÃO

“O que você tanto assiste aí nesse computador, filho?”. Foi observando meus fi-

lhos assistindo diariamente a vídeos que me aproximei do tema. Eram vídeos de

toda sorte: mangás, cômicos, animações de jogos... Desse universo, o que mais

me chamou atenção foram os vídeos produzidos por outros jovens, inclusive

mais novos do que eles. “Garotos produzindo vídeos e assemelhando-se a pro-

dutores culturais de mercado, divulgando-os e tendo audiência considerável?!”.

Orozco-Gómez, já em 2010, refletia sobre o processo de midiatização da socieda-

de, no qual tornamo-nos todos simultaneamente audiências e produtores nas di-

ferentes telas e plataformas. Esses jovens iam além do costumeiro: consumiam,

produziam vídeos e publicizavam sua produção para uma audiência ampliada,

que chegava a ter centenas e até milhares de visualizações, algo impensável há

pouco anos atrás, antes do advento da internet 2.0.

Quem seriam eles? Que produções seriam essas? O que os levaria a fazer

esses vídeos e com que recursos? Como aprenderam a produzir audiovisual?

O que pretendiam e o que ganhavam com isso? Essas foram questões que levaram

aos eixos norteadores minha pesquisa de mestrado Jovens youtubers: autoria e

aprendizagens contemporâneas, que realizei no Programa de Pós-Graduação

Page 78: Comunicação, audiovisual e educação

76 | Comunicação, audiovisual e educação

em Educação (PPGEDU) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

(Unirio).1 (BATISTA, 2014)

No âmbito da educação, embora convivamos dia após dia com adolescentes

e jovens em sala de aula, ainda pouco se conhece sobre suas vidas fora da escola

e sua presença no mundo contemporâneo – modos de ser e de viver. Há muitos

discursos e representações sociais, que formam mitos acerca da juventude, que

repetimos sem nos darmos conta dos conceitos e preconceitos que neles estão

embutidos.

O certo é que os jovens não constituem uma classe social ou um grupo:

compõem-se em agregados sociais com características continuamente flutuan-

tes (CARRANO, 2007), não facilmente capturáveis. A condição juvenil é dada

a “cada tempo e lugar, em função de fatores históricos, estruturais e conjuntu-

rais, que determinam as vulnerabilidades e as potencialidades das juventudes

(ou dos diferentes segmentos e agrupamentos juvenis)” (NOVAES, 2007), numa

perspectiva coletiva, social e familiar. Mais do que a dimensão biológica, ser jo-

vem é viver uma experiência geracional comum. (NOVAES, 2008) No entanto, o

que muitas vezes não nos damos conta é que toda experiência geracional é inédi-

ta, ou seja, só sabe o que é ser jovem hoje, quem é jovem hoje. Não devemos usar

a nossa juventude de outros tempos e circunstâncias como referência.

Na contemporaneidade das sociedades urbanas interconectadas, as vivências

e as expectativas da atual geração de jovens parecem ser mais complexas e me-

nos previsíveis do que as das gerações que a antecederam, visto serem largamente

atravessadas pela experiência massiva do consumo e da comunicação, na nossa

sociedade hoje tão tecnificada e midiatizada. No entanto, os jovens vivem essas

experiências em diferentes graus de profundidade e imersão a depender de fato-

res sociais e individuais. Temos de levar em conta suas múltiplas dimensões de

socialização locais, sem esquecer que eles também estão submetidos a processos

globais transnacionais, desterritorializados, facilitados pela técnica e pelas tecno-

logias, vivendo novas formas de sociabilidade com as quais convivem e modificam

os modos tradicionais da relação cotidiana, em um ambiente de consumo global

que produz uma cultura remix, caracterizada por hibridismos de toda ordem.

Essa reflexão representou um grande desafio para a pesquisa. Há uma ur-

gência que a Educação se aproxime mais da experiência geracional da atual

1 Para os que se interessarem, outra vertente dessa pesquisa foi publicada em revista. Ver: Fernandes e Batista (2016).

Page 79: Comunicação, audiovisual e educação

Jovens youtubers | 77

juventude, o que, pelo menos em parte, esta pesquisa tinha como propósito ao

tentar desvelar o mundo dos youtubers. No entanto, como adentrar esse univer-

so complexo, com códigos próprios, de jovens produtores culturais que são co-

nhecidos por meio de seus produtos, sendo eu uma pesquisadora pertencente a

outra geração? Como encontrá-los já que não se tratava de um grupo controlado

ou cadastrado? E, principalmente, como definir uma metodologia investigativa

que pudesse apreender a riqueza do fenômeno e sua intrincada relação com a

produção audiovisual, a vida digital e off-line, considerando-os em suas próprias

perspectivas, sendo sujeitos de suas narrativas e história?

Visto que a minha área de interesse é a educação, fiz o recorte de trabalhar

com jovens que estivessem em idade escolar – educação básica ou universitária

– e estabeleci alguns critérios para delimitar o objeto de estudo: ter uma produ-

ção frequente ou, pelo menos, alguns vídeos produzidos (não uma experiência

isolada); não trabalhar com audiovisual e nem pertencer a famílias cujos paren-

tes próximos fossem profissionais da área.

Havia ainda o caminho metodológico a definir. Era claro que a investigação

deveria ser de cunho qualitativo e que tínhamos de ir a campo encontrar com

esses sujeitos em seus ambientes de produção cultural. Optamos pela pesquisa

em rede,2 na qual um participante indica o outro, pois ele possui informações

privilegiadas do campo pesquisado. Ou seja, os próprios jovens pesquisados ser-

viram de “embaixadores”, ajudando-me a identificar outros jovens e a decifrar

os códigos envolvidos. Assim, iniciando com os conhecidos de meus filhos, che-

guei a sete jovens divididos em duas redes de relacionamento. Foram, pelo me-

nos, duas horas de entrevistas adensadas individuais, presenciais ou via Skype,

complementadas pelo acompanhamento da presença digital de cada um no

YouTube e no Facebook, observando imagens, escritas, ícones, fluxos e sentidos

atribuídos por eles à sua produção nesses espaços. Acrescidas, também, dos da-

dos objetivos: quantidade e tipo de vídeos produzidos, volume de inscritos e as

trocas estabelecidas pelos jovens nessas plataformas. Por oito meses –setembro

de 2013 a abril de 2014 –, pude observar esses aspectos que ajudaram a compor a

narrativa sobre a identidade e o fazer de cada um.

2 Na pesquisa em rede, a partir dos contatos diretos ou indiretos de uma pessoa, chega-se via seus inter-relacionamentos à outra pessoa situada dentro da rede. (BOTT, 1976 apud DUARTE, 2002)

Page 80: Comunicação, audiovisual e educação

78 | Comunicação, audiovisual e educação

OS JOVENS YOUTUBERS E SEUS CANAIS: UM ESPELHO DE SI?

Os jovens a que chegamos eram todos do sexo masculino, moradores de gran-

des cidades no Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco, que tinham entre 15 e

21 anos, nascidos entre 1994 e 1998, usuários da web 2.03 desde criança e que,

nesse sentido, viviam a mesma experiência geracional. Eles cresceram imersos

na cibercultura, acessavam a internet desde os 9 e 10 anos, especialmente os jo-

gos eletrônicos, “que sempre estiveram presentes”, como resume um deles. Foi

o jogo a chave de entrada na vida on-line. Eles se diziam gamers antes de serem

youtubers, ou seja, todos compartilhavam a cultura dos jogos eletrônicos, que vai

muito além do que apenas jogar. O mundo gamer é uma base comum entre eles,

mesmo que não pertencessem à mesma rede e nem soubessem da existência

do outro. Suponho que a metodologia utilizada na pesquisa tenha corroborado

grandemente para este recorte. Como cada um fazia suas indicações, ficamos

restritos a suas redes de relacionamento, o que levou a circunscrever a pesquisa

ao sexo masculino e a um mesmo tipo de utilização da internet, e, por outro lado,

possibilitou aprofundarmos a compreensão acerca dessa perspectiva.

A cibercultura e os games apresentaram-se como marcadores identitários

que perpassavam a todos os participantes. Também, o hábito de consumir ví-

deos. Alegavam que assistiam a vídeos todos os dias, no computador ou no ce-

lular. Vídeos de toda ordem e tipo, até instrumentais, mas pouco assistiam à

TV. Assistiam ao que queriam e na hora que queriam, em um comportamento

“midiaticamente ativo” como cita Henry Jenkins falando de jovens americanos

que não conheceram a TV antes do cabo ou da internet. (JENKINS, 2008) Eram

videófilos no sentido que Canclini (2008) descreve: jovens que cresceram com o

vídeo e têm uma relação natural com a exibição em telas menores e estão sempre

em busca do mais novo lançamento, num presente sem memória. Eram prosu-

mers,4 ou seja, o consumidor fundido com o produtor, perfil que parece ser cada

vez mais comum nos nossos dias, e que se concretiza na produção efetiva de

conteúdo gerado por não profissionais. (AMARAL, 2012) No caso, produção em

imagem e som.

3 Evolução da web para uma modalidade de conversação e interação.

4 Prosumer: consumo + produção, no original, producer + consumer – conceito cunhado por Alvin Toffler, nos anos 1980, sobre a terceira onda do marketing.

Page 81: Comunicação, audiovisual e educação

Jovens youtubers | 79

Ao final da fase de pesquisa, os sete, juntos, já haviam postado quase 850 ví-

deos em seus oito canais,5 visualizados quase 1,7 milhões vezes, por cerca de 23 mil

inscritos. Vários classificavam seus canais como “de jogo” (gameplay),6 com vídeos

de partidas comentadas, nos quais davam dicas, mostravam erros, bugs etc. Ou de

comédia: com vídeos engraçados, vestindo-se, com outra narração sobre as ima-

gens dos jogos, novas edições misturando personagens de jogos diferentes, narra-

tivas ficcionais cômicas próprias ou sobre trechos de obras prontas. Além desses,

havia muito testemunhal (vlog), videoclipes e vídeos instrucionais etc.

Um aspecto que me intrigava era saber o porquê teriam aberto um canal.

A maior parte informou que queria ser youtuber, ou seja, ter presença na plata-

forma YouTube como produtor de conteúdo audiovisual, ser visto e reconhecido

por seus vídeos. Havia uma busca explícita por reconhecimento, pela aceitação

no coletivo. Isso ficou evidente na importância que davam aos comentários e

curtidas em suas páginas. Percebi que a atividade em si era um valor para eles, a

ponto de se autointitularem youtubers nos seus perfis do Facebook: era também

um modo de se diferenciar e ao mesmo tempo signo de pertença e protagonis-

mo, buscas muito recorrentes nessa faixa etária. Quando perguntados sobre o

quanto o canal tinha a ver com eles,7 Tet teve um insight: “Mesmo que ele não

tenha uma imagem minha, é um somatório das imagens que tão comigo. Por mais

que eu tente desvincular, não tem como impedir isso 100%. [...] todos eles [os ví-

deos] têm um pouco de mim”. (Tet)

Essa dimensão da identidade de cada um dos entrevistados foi emergindo

dos relatos sobre suas práticas como produtores de vídeos ao longo da pesquisa.

Cada canal no YouTube tem identidade própria, com nome e visualidade

escolhidas pelo seu dono, além de haver símbolos e outros links que represen-

tam status ou apoio de outros youtubers. Observei que trocavam muito o banner

identificador do canal (arte do canal),8 sempre em busca de atualização, e alme-

javam certos ícones (logomarcas de networks), que seriam marcadores de qua-

5 Um deles tinha dois canais.

6 Vídeos que mostram trechos de jogos, com jogadores narrando o que está sendo feito: passo a passo, comentados, ou de zoeira, detonados etc.

7 Entrevista foi concedida em 9 de fevereiro de 2014. Informo que foram utilizados os seus nomes públi-cos que apareciam no canal do Youtube.

8 Segundo o YouTube, a arte é usada para “proporcionar uma aparência única à página e para estabelecer a identidade visual”.

Page 82: Comunicação, audiovisual e educação

80 | Comunicação, audiovisual e educação

lidade. André Lemos (2009) observa que, neste momento de embaçamento de

fronteiras, há o surgimento de novos modos de territorialização no mundo digi-

tal, com seus ícones, artes, apresentações, títulos, endereçamentos transmidiá-

ticos, símbolos de distinção, que transbordam para outros “lugares” na internet,

como as redes sociais ou os perfis criados para seus personagens. Entendi que

este seria o caso, pelo qual disputavam presença, notoriedade e reconhecimento.

Os jovens declararam também intenções de se divertir e de divertir aos ou-

tros (seu público), mostrar o seu trabalho, “o que ele fez” ou o que tiveram acesso.

Eu gravava para mostrar pras pessoas que quisessem ver. Era só gravar e mostrar

como é que jogava o jogo tal, como é que passava de tal parte. E tentar entreter as

pessoas comicamente. (Mizu)

Isso são coisas que a pessoa não vai ter acesso, mas eu tenho, então, eudou um jeito

de permitir que a pessoa veja como é que é. [...] Eu tenho autoridade naquilo que eu

faço. (Tet)

Além do componente lúdico explicitamente colocado, havia a cultura do

compartilhamento instaurada: tomar parte, participar de e dividir com o outro.

Lemos (2009) afirma que a cibercultura potencializa essa prática social, que é

própria de toda dinâmica cultural, o compartilhamento, a distribuição, a coope-

ração, a apropriação dos bens simbólicos. A própria plataforma do YouTube já é

construída nessa lógica, pois ao final da exibição de cada vídeo abre a possibili-

dade de compartilhamento para mais de dez redes sociais.

COMO APRENDERAM, AFINAL?

Como educadora, eu tinha uma curiosidade muito grande em saber como apren-

deram a fazer vídeos e me perguntava se a escola teria tido alguma participação

nesse processo. Não, não teve.

Tudo eu aprendi pela internet. É engraçado isso, eu também fico pensando:

como? (Renan)

Eles disseram que aprenderam na base da pesquisa na internet, do “se

vira boy” e de tutoriais. Resumindo, consideravam que aprenderam sozinhos.

Page 83: Comunicação, audiovisual e educação

Jovens youtubers | 81

No entanto, ao longo da investigação, percebi que não era bem assim. Os pró-

prios tutoriais mencionados são “aulas virtuais” de outros youtubers ou video-

makers – jovens ou não, profissionais ou amadores. Também falaram de suas

referências, ou seja, canais grandes e pequenos, gringos e brasileiros, de conhe-

cidos seus e de desconhecidos em que se espelhavam. Pelo menos em parte, es-

ses canais lhes serviram de modelo, uma primeira aproximação e apreensão da

realidade de youtubers, na qual desejavam se inserir.

Relatavam que o começo não tinha sido nada fácil, pois não tinham ideia

de como gravar vídeos da tela ou com câmera, não tinham equipamento, nem

sabiam o que precisariam e que quebraram muito a cabeça. Citavam sempre os

amigos – físicos e virtuais – que tinham interesses em comum e nos quais eles se

sustentavam em uma rede de apoio mútuo. Essa menção foi constante e apareceu

nas entrevistas de todos. Eles se “juntam” por grupos de afinidade, organizados

em torno da cultura gamer e youtuber. A indústria cultural do universo dos jo-

gos eletrônicos e o YouTube criam um lastro de significação semelhante para os

diferentes jovens de variadas origens e o seu uso traça novos sentidos e apropria-

ções. Dominam códigos e sentidos específicos dessas culturas, compartilhando

comportamentos e consumindo produtos ligados à cultura do jogo eletrônico e

do YouTube. Também conhecem os vídeos e os mesmos canais-referência, além

dos criados por membros dessa comunidade. É o que Orozco-Goméz (1991) con-

ceitua como comunidade interpretativa: “Uma comunidad de interpretación

se entiende básicamente como un conjunto de sujetos sociales unidos por un

ámbito de significación del cual emerge uma significación especial para su ac-

tuación social (agency)”. (OROZCO-GOMÉZ (19--]) apud VARELLA, 1999, p. 5)

Ela se caracteriza por essa comunhão de propósitos e práticas no uso da

mídia. (SCHRAMM, 2005) Não se trata de uma comunidade territorial. Com

a mundialização da cultura (ORTIZ, 2007), as comunidades interpretativas se

ampliaram atravessando cada vez mais fronteiras. Usando o meio digital, eles

estabelecem contatos, conversam com seus inscritos e fazem amizades com ou-

tros youtubers e jogadores que nunca viram, mas que consideram. Encontram

pessoas digitalmente e, muitas vezes, acabam constituindo com elas um vínculo

mais duradouro, formando redes de relacionamento e de aprendizagem. Lucke,

um dos youtubers pesquisados, por exemplo, embora morasse em outro estado,

era amigo de Renan e chegou, inclusive, a ser seu editor de efeitos especiais por

um tempo. Eles nunca se viram pessoalmente.

Page 84: Comunicação, audiovisual e educação

82 | Comunicação, audiovisual e educação

E o legal é que a gente é muito parceiro, muito, muito. A gente se fala todo dia.

A gente conversa, a gente zoa, a gente causa, é engraçado. A gente não se conhece,

mas se fala bastante. Eu fiz um teste pro meu clã de sniper, aí, ele entrou contente.

Pô, aí, a gente ficou muito amigo, muito amigo mesmo. (Renan)

Foi selecionado para o tal clã pelo que sabia, sem nenhum outro tipo de

barreira, social, étnica, etária, geográfica etc. Renan, filho de classe média alta,

morador de Santos, São Paulo. Lucke, da Baixada Fluminense, pai motorista de

caminhão e mãe, costureira. Gabriel, de Pernambuco, tem no Renan sua refe-

rência, era um dos seus milhares de inscritos. Renan nem sabia de sua existên-

cia. Renan alegava ter aprendido muito sobre edição com o Lucke, que aprendeu

vendo tutoriais e correndo atrás do inglês, auxiliado por uma prima. Como Lucke

fez edição de vários vídeos para o Renan, em contrapartida, colocou o ícone do

canal de Lucke na sessão “canais parceiros”, aumentando as chances de visua-

lização deste. Gabriel conheceu Renan por meio do Bobcutback, um dos jovens

que foi influenciado diretamente por Renan a abrir um canal, pois era seu amigo

pessoal e estudavam juntos. Gabriel fez uma arte do canal para o Bobcutback

de graça. E assim, nessa intrincada rede, um ia ajudando e aprendendo com o

outro, por meio de dicas e da cópia de procedimentos, estratégias de divulgação,

organização etc. Também na solução de problemas que não conseguiam resolver

sozinhos. Aprendiam em rede de cooperação e colaboração.

Nelson Pretto (2010) destaca essas redes ponto a ponto – peer-to-peer: rede

entre pares, rede entre amigos – que se formam na cultura digital. Elas têm em

sua base a produção e a circulação colaborativa, por meio das quais partilham as

produções e seus conhecimentos. Nesses poucos meses em que acompanhei es-

ses jovens, soube ou mesmo vi essa colaboração acontecer de diferentes modos:

um fazendo para o outro, um enviando link para o outro aprender, dando dicas

sobre como resolver uma situação, fazendo junto, fazendo uma parte junto, in-

terferindo no processo do outro e dando ideia, acionando o amigo no que ele era

bom etc. Para tal, usavam os recursos das ferramentas de comunicação disponí-

veis: Facebook, Skype, Twitter, Team Speak, YouTube.

Também vi ações cooperativas (BELLONI; GOMES, 2008) nas quais dois

ou mais youtubers colaboravam para um projeto comum, como aconteceu com

Lucke e Renan nos projetos de vídeos em que trabalharam, um criando e o outro

aprimorando a edição. Ou, como no caso de Mizu ou Hoxton, levando amigos

Page 85: Comunicação, audiovisual e educação

Jovens youtubers | 83

youtubers a participar de uma live com eles, fazendo comentários, aparecendo

no vídeo ou outro modo de participação.

COMO PRODUZEM E SEUS DILEMAS

Inicialmente, eu tinha uma suposição de que produziriam muito com celular

e gravariam coisas aleatórias do cotidiano, performances suas e de colegas.

Não era isso. Até gravavam eventualmente com celular, mas não para o canal.

Alegaram que a qualidade da imagem do celular ficava ruim. A maioria dos ví-

deos era gravada sem roteiro prévio nos seus tempos livres, depois da escola ou

fins de semana, em seus computadores, principalmente os gameplays. Alguns

vídeos eram captados com webcam, como os vlogs e as séries nas quais apare-

ciam. Definiam alguns formatos e os perseguiam. Parte dos jovens lançava mão

de uma prática um tanto comum no YouTube que é a organização de seus vídeos

por séries, a partir de formatos consagrados de outros canais ou inventando o

seu próprio, arriscando-se. As séries tinham episódios numerados, podendo

ser sequenciados ou não. Mizu, por exemplo, tinha cerca de 12 diferentes séries,

como a Naruto Shippuden, com 40 vídeos e mais de 100 mil visualizações.

Concluí que, na aparente anarquia ou aleatoriedade, havia uma organiza-

ção, por vezes, até bem rígida. Os canais tinham um perfil temático/identitário

definido. Os jovens criavam formatos e séries temáticas, sempre de olho no que

sua audiência pedia ou no que dava mais visualização.

A relação com o público foi um ponto que ressaltou na pesquisa. A maio-

ria fazia seu canal para garotos como eles e para um público ampliado, o qual

tinham o desejo que se ampliasse mais e mais. Valorizavam indicadores como

a quantidade de “gostei” (likes) recebidos, de comentários elogiosos e comparti-

lhamentos, de vezes que eram classificados como favoritos e o número de novos

inscritos no canal. É a relação positiva com o público que mantém o youtuber ati-

vo e com vontade de continuar, apesar de todas as dificuldades que enfrentam.

No entanto, nem sempre é assim que ocorre e, por vezes, ficam muito desesta-

bilizados emocionalmente com o que recebem de retorno, especialmente nos

comentários. Os entrevistados que tinham mais idade pareciam já terem apren-

dido que “estar exposto na rede é correr mesmo este risco [...] Muita gente critica,

né? Mas, faz parte”. (Mizu)

Page 86: Comunicação, audiovisual e educação

84 | Comunicação, audiovisual e educação

Também enfrentavam o dilema entre atender ao pedido do público, o que

significaria manter e, até mesmo, ampliar suas visualizações e inscritos, ou aten-

der aos próprios desejos, pois nem sempre ambos coincidem. O público pres-

sionava. “O canal é de quem?”. Renan esbravejava: não queria fazer mais vídeos

de bugs! Mizu havia parado de fazer gameplays do Naruto havia mais de ano:

cansou, mas sua audiência continuava pedindo e assistindo aos antigos, aumen-

tando suas visualizações. Aos poucos, iam aprendendo lidar, cada um a seu jeito.

Sempre observando as reações do público iam chegando a algumas conclusões

do que dava certo. É um eterno repensar e reconquistar o público, que nunca

é 100% previsível. Isso é um fenômeno de toda produção cultural, que implica

num elevado grau de incerteza no nível da demanda, já que não é possível prever

o êxito ou o fracasso. Na internet, as práticas e preferências revelam-se ainda

mais heterogêneas, ecléticas e cambiantes. (SANTINI; CALVI, 2013) Um vídeo

pode “bombar” em visualizações e outro semelhante ser um retumbante fias-

co. Ficavam intrigados, levantavam hipóteses. Uma coisa que logo aprenderam

foi a se tornarem responsáveis com o seu público: assumiam compromisso com

ele. Preocuparam-se em esclarecer, por exemplo, quando não tinham tempo de

postar um vídeo novo, por conta das provas escolares. Postavam um vídeo expli-

cativo. Percebiam-se, progressivamente, como comunicadores, vetores de infor-

mação, o que era muito recompensador e melhorava a imagem que tinham de

si – produtores culturais: youtubers.

O QUE APRENDEMOS COM A PESQUISA?

O desafio a que a pesquisa se propôs não foi pequeno e nela encontramos uma

riqueza de aprendizagens e de bons pontos para reflexão. Considero que a me-

todologia de trabalho foi acertada, pois propiciou que pudéssemos, ainda que

temporariamente, mergulhar nas redes de relacionamentos formadas entre eles.

Também permitiu que os protagonistas pudessem contar suas próprias narrati-

vas com detalhes e iluminassem aspectos que, de outro modo, poderiam ficar

despercebidos.

Os sete jovens em foco cresceram em um ecossistema cultural mediado pelo

consumo e pela onipresença das mídias, convergentes em sua maioria – no qual

as fronteiras entre o natural e o artificial, o tradicional e o novo, a realidade e a

ficção se confundem; em que as interações virtuais são tão ou mais significativas

Page 87: Comunicação, audiovisual e educação

Jovens youtubers | 85

que as presenciais; e no qual as janelas se abrem para o mundo web, globalizado

e multicultural. Desde crianças, convivem com a internet e com os jogos eletrô-

nicos, dominam a cultura gamer e querem mais: ser youtubers.

Quando adotam essa persona, assumem um papel social diferente e pas-

sam a ter público e novas responsabilidades, limites e possibilidades. É um

novo mundo a ser conquistado, com regras e contratos diferentes do que esta-

vam habituados até então. Enfrentam o desafio e a excitação do caminhar pelo

desconhecido, com suas alegrias, dificuldades e contradições. Passam a ter um

projeto que envolve muita dedicação, horas de edição, de pesquisa, definição de

estratégias de manutenção e ampliação do seu território virtual, solução de pro-

blemas práticos e éticos, exposição amplificada, elogios e críticas do público etc.

Tornam-se produtores culturais submetidos a regras e sanções de mercado e a

viverem experiências das quais não têm controle. Do ponto de vista da comu-

nicação, aprendem a se colocar, a construir narrativas audiovisuais que façam

sentido para si e para seu público, a organizá-las em séries e a avaliá-las segundo

objetivos pré-determinados. Também têm de se renovar e se arriscar em novos

gêneros, em falar ao vivo para sua audiência, usar recursos da publicidade e da

transmídia, sempre observando a reação dos seus interlocutores. Mediam confli-

tos por escrito, defendendo-se, seja com seu público ou com o próprio YouTube.

Têm de lidar com agruras como plágios ou críticas, educadas ou não. E dilemas

éticos. Angustiam-se. Enfrentam sucessos e fracassos, recomeçam e se reinven-

tam. Mudam, comemoram, mas nem sempre acertam. São reconhecidos, entre-

tanto, várias vezes não se reconhecem no que faz sucesso da sua produção.

Muitas são as questões e desafios. Para tal, é evidente que há um forte com-

ponente motivacional que promove toda essa busca autônoma e os faz resilien-

tes. Por trás, entre outros fatores, há uma rede de apoio que os suporta nessa

trajetória por meio das comunidades virtuais e presenciais que participam. Logo

descobrem que “nenhum de nós pode saber tudo; cada um de nós sabe alguma

coisa; e podemos juntar as peças, se associarmos nossos recursos e unirmos nos-

sas habilidades” (JENKINS, 2008, p. 28), característica importante da cultura da

participação. Aprendem juntos e em rede, na qual cada um contribui comparti-

lhando o que sabe, pesquisou e descobriu, em projetos coletivos ou individuais,

interconectados por interesses afins.

Durante a pesquisa, fiquei pensando que esses comportamentos citados

não são possíveis apenas no ambiente digital e poderiam/deveriam acontecer

Page 88: Comunicação, audiovisual e educação

86 | Comunicação, audiovisual e educação

em qualquer ambiente de aprendizagem, especialmente na escola. Como seria

seu comportamento no ambiente escolar? Será que eram assim tão aguerridos e

motivados? Praticavam a colaboração e a cooperação para avançarem nas ativi-

dades escolares? Compartilhavam o que aprendiam, dando acesso aos demais ao

que descobriram? Será que seus professores ofereciam essas oportunidades de

desenvolverem essas competências e habilidades?

É uma riqueza de oportunidades educacionais que passa ao largo das esco-

las. Das discussões e experiências que se dão nas brechas, nos intervalos do al-

moço, no recreio, todos com o celular na mão twittando, postando, fotografando,

navegando e conversando... Muitas dessas conversas, questões e modos de fazer

poderiam ser trazidos para a sala de aula. Nenhuma das escolas dos sete jovens

investigados, de diferentes regiões do país, aproximou-se da experiência vivida

por eles ou considerou o aporte que poderiam trazer para os demais. Ficou a

pergunta: por quê? Que fatores ou elementos afastam os educadores de enxergar

a potência que ela pode representar? Fatores pessoais, culturais, institucionais

ou todos simultaneamente? O que gera esse descompasso entre a vida familiar e

a vida escolar? O que poderíamos fazer para superá-lo?

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5Pedagogias da animação: experiências de criação de filmes na escola

Jo ana S o bral Milliet

Onde não há tudo, mas onde cada palavra, cada olhar, cada gesto tem fundamentos.

(BRESSON, 2005, p. 31)

A Animação não é a arte dos DESENHOS-que-se-movem, mas a arte dos MOVIMENTOS-que-são-desenhados.O que acontece entre cada fotograma é muito mais importante do que o que existe em cada fotograma.A Animação é, portanto, a arte de manipular os interstícios invisíveis que se encontram entre os fotogramas.(MARTIN ([199-]) apud MAGALHÃES, 2004)

AUDIOVISUAL NA ESCOLA

A comunicação e a informação ocupam hoje papéis centrais na configuração das

sociedades contemporâneas e vêm, ao longo das últimas décadas, produzindo

impactos e transformações nos modos de vida das pessoas nas mais diversas ins-

tituições sociais, inclusive na escola. Diferentes fatores estabelecem as condi-

ções históricas para essas transformações, entre eles a popularização de alguns

aparatos tecnológicos como o computador, o tablet e o celular, que são, hoje,

grandes mediadores das relações interpessoais e culturais dos sujeitos.

Page 92: Comunicação, audiovisual e educação

90 | Comunicação, audiovisual e educação

No campo da educação, muitos autores têm questionado de que forma as

novas tecnologias podem se integrar a um projeto pedagógico realmente ino-

vador. Com o acesso cada vez maior, principalmente de crianças e jovens aos

meios digitais, nos colocamos hoje em um patamar diferente enquanto recepto-

res. Orozco (2010, p. 16) diz que, na “condição comunicacional contemporânea”,

temos, pela primeira vez na história, a oportunidade de interagir de maneira real

com os produtos midiáticos, graças à interatividade que o digital permite, e não

apenas de maneira simbólica como era anteriormente, na dimensão analógica,

em que a atividade das audiências não se manifestava de maneira visível. Agora,

temos a possibilidade de “desconstruir comunicacionalmente” os referentes mi-

diáticos, podendo, enquanto audiência, ressemantizá-los, destruí-los e recons-

truí-los, tanto materialmente como informacionalmente. Por isso, Orozco (2010)

ressalta que um dos grandes desafios que hoje se apresenta é o desenvolvimento

de competências comunicativas para sermos, enquanto audiências, não ape-

nas receptores, mas também produtores e emissores. Ele afirma a necessidade

de uma política comunicacional-educativa que busque fortalecer as capacida-

des de produção comunicativa dos cidadãos: “Porque assim como não se nasce

receptor de TV ou rádio, mas torna-se um, também não nascemos emissores,

transmissores ou criadores, temos que aprender a sê-lo”.1 (OROZCO, 2010, p. 17,

tradução nossa) Sibilia (2012) sugere que a escola do século XXI deve ser um es-

paço capaz de ensinar aos alunos estratégias que deem sentido e transformem

em experiência o grande fluxo de informações e operações disponibilizadas pe-

las novas tecnologias.

Nesse contexto, os usos desses aparatos tecnológicos estão cada vez mais

vinculados à imagem, que parece ser o principal meio de comunicação, seja na

propaganda, nas notícias, nas histórias narradas – filmes, novelas, seriados tele-

visivos – e na internet – sites, redes sociais. Pode-se dizer que vivemos, hoje, uma

audiovisualização da nossa cultura, impactando as relações que as crianças têm

com o conhecimento, pela presença da imagem em seu processo de formação.

(FERNANDES, 2010)

Diante dessa realidade, Duarte e Alegria (2008) apontam ser fundamen-

tal oferecer às novas gerações a formação que necessitam para viver e pensar

1 Texto original “Porque si bien como receptor o televidente o radioescucha no se nacía, sino que se iba lle-gando a ser, como emisores y transmisores, como creadores, tampoco se nace, hay que aprender a serlo”.

Page 93: Comunicação, audiovisual e educação

Pedagogias da animação | 91

numa sociedade de imagens. Sendo o cinema percebido como “a narrativa mais

complexa que permite, de forma mais ampla, a percepção da formação narra-

tiva dos sujeitos em seus modos de ler e narrar por imagens” (FERNANDES,

2010, p. 2), parece significativo refletirmos sobre a presença do cinema no con-

texto escolar. Essa mesma autora aponta, em pesquisas anteriormente realiza-

das (FERNANDES, 2012), a relação significativa das crianças com os desenhos

animados e isso reforça a escolha por fazer pesquisa na escola com práticas de

professoras com animação, realizando com as crianças os chamados “desenhos

animados” que elas tanto gostam.

PEDAGOGIAS DA ANIMAÇÃO

Nessa perspectiva, propõe-se analisar o uso na escola de uma linguagem audio-

visual que tem seu modo de fazer muito peculiar: a animação. As reflexões aqui

apresentadas são fruto da pesquisa realizada durante o mestrado em Educação,

na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), que teve, como

sujeitos pesquisados, quatro professoras da rede municipal de educação do Rio

de Janeiro que participaram do Anima Escola em 2012 e 2013. O projeto Anima

Escola, uma iniciativa do Anima Mundi,2 Festival Internacional de Animação

do Brasil, oferece cursos de formação de cinema de animação para professores.

O projeto divide-se em várias etapas, com cursos introdutórios e mais avançados

para professores, oficinas com alunos e uma fase de produção autônoma nas es-

colas. O campo da pesquisa centrou-se nesta última etapa do projeto, a produção

autônoma, em que professores que já passaram pelas etapas anteriores – cur-

sos e oficinas – são convidados, através de um edital, a proporem um projeto de

produção de um filme de animação em suas escolas, realizando esses filmes com

seus alunos de forma autônoma, sem a presença de monitores ou professores do

Anima Escola, contando com apoio do projeto no empréstimo de equipamentos,

quando necessário, participando de encontros para trocas de experiências entre

os professores, ou acionando, via telefone ou e-mail, a equipe do projeto para

tirarem dúvidas quando precisam.

2 O Projeto Anima Escola há 18 anos leva o cinema de animação, através de cursos e oficinas, para alu-nos e professores de escolas públicas e particulares de diversas cidades do Brasil. Na rede municipal de educação do Rio de Janeiro, já chegou a mais de 2 mil professores e 10 mil alunos.

Page 94: Comunicação, audiovisual e educação

92 | Comunicação, audiovisual e educação

Os professores que se inscrevem nessa etapa do projeto e se propõem a rea-

lizar um filme com seus alunos são, portanto, os condutores desse processo de

criação de animação na escola. A partir do aprendizado técnico sobre a lingua-

gem da animação, ensinado durante os cursos de capacitação para professores

do Anima Escola, o que criam esses professores com seus alunos? Durante esse

processo de criação, estariam os professores construindo uma pedagogia? É

possível percebermos semelhanças e diferenças entre as possíveis pedagogias

criadas pelos professores? Como os professores atuam como narradores nesse

processo? Essas foram as principais questões colocadas para a pesquisa.

Pensar sobre a possível criação de uma pedagogia da animação, por parte

de professores que realizam filmes de animação com seus alunos na escola, foi

o objetivo principal da pesquisa. O termo “pedagogia da animação”, inspirado

na pedagogia dos cineastas,3 surge do pressuposto de que há gestos pedagógi-

cos nos modos de fazer cinema e que cada professor desenvolve uma pedagogia

própria a partir das escolhas feitas durante o processo de criação dos filmes de

animação com seus alunos.

Para refletir a respeito da criação das pedagogias da animação, foi funda-

mental saber quem são esses professores, ouvi-los sobre como realizam a pro-

dução dos filmes de animação com seus alunos, buscando entender os funda-

mentos das “palavras, olhares e gestos”, como cita Bresson na abertura deste

texto, utilizados na criação das diversas etapas desse processo de realização de

animação na escola. Foi preciso olhar para diferentes aspectos relativos à cria-

ção dos filmes de cada professora, observando as regularidades, os elementos

privilegiados, suas fontes e critérios. Tais fundamentos do fazer delas carregam

narrativas e experiências, assim como vão constituindo uma pedagogia/modo

ou forma de contar.

Entendendo a pedagogia da animação como as escolhas feitas durante o

processo de produção de filmes de animação e os gestos pedagógicos existentes

nesse “fazer”, foi possível perceber ao longo da pesquisa que cada professora

tem a sua própria pedagogia da animação, criada a partir de diferentes experiên-

3 A pedagogia dos cineastas é uma proposta da Adriana Fresquet e Anita Leandro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) de buscar o que há de pedagógico no processo criativo dos cineastas. A pedagogia de Abbas Kiarostami foi discutida durante a disciplina Pedagogia dos cineastas cursa-da por Joana Milliet, em 2012, e lecionada pela professora Adriana Fresquet no Programa de Pós- -Graduação em Educação da UFRJ.

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Pedagogias da animação | 93

cias constituídas em suas histórias enquanto professoras, a partir da cultura em

que estão inseridas e seus consumos e relações com a cultura do cinema.

As principais marcas observadas em cada pedagogia foram resumidas no

quadro a seguir:

Quadro 1 – Principais marcas das pedagogias da animação de cada professora

Alessandra Amália Tatiana Imaculada

- Valorização das

atividades prévias com

os brinquedos óticos;

- Busca por não

didatizar a experiência

de produção dos filmes;

- Fazer animação como

forma de trabalhar as

relações na escola;

- Cinema na escola

como algo estranho ao

cotidiano escolar;

- Storyboard como

forma de planejamento;

- Temas das animações

dialogando com a

literatura – liberdade de

“caminhar dentro da

obra”.

- Tentativa de mexer

com o tempo escolar

para conseguir produzir

animação;

- Temas articulados

com os projetos da

escola;

- Parceria com os

professores;

- Criação coletiva do

roteiro;

- Todos os alunos

participam de todas as

etapas;

- Materiais utilizados:

sucata, recorte,

massinha.

- Criação coletiva do

roteiro, com liberdade

para ser modificado ao

longo da filmagem;

- Pesquisa para

contextualização do

tema e busca por

referências;

- Parceria com outros

professores.

- Autonomia dos alunos

durante a produção;

- Valorização da

comunidade onde os

alunos vivem / visão de

mundo dos alunos.

- Exibição de filmes que

mostrem o processo

de produção da

animação/confecção de

brinquedos óticos.

- “Fazer animação”

enquanto experiência

artística;

- Ênfase na liberdade de

criação individual dos

alunos.

- Animação “trash”

– criação a partir das

possibilidades;

- Busca por trabalhar

o artesanal e o

tecnológico.

Fonte: elaborado pela autora.

Como pode ser observado no Quadro 1, um dos aspectos de análise nas pe-

dagogias das professoras foi a forma de escolha dos temas para as animações.

Olhando, por exemplo, para o conjunto de filmes já realizados pela Alessandra,

professora de sala de leitura, com seus alunos, percebemos que os temas eram

bem variados, alguns inspirados em livros e outros ligados a assuntos estudados

em sala de aula com os alunos, como animais que habitam a savana, o pintor

Picasso e a Copa do Mundo. Quando questionada sobre a escolha dos temas,

Alessandra disse que procura fazer do trabalho com animação algo que não seja

estritamente ligado aos projetos da escola.

Page 96: Comunicação, audiovisual e educação

94 | Comunicação, audiovisual e educação

Figuras 1 – Brinquedos óticos:

flipbooks

Fonte: arquivos de pesquisa.

Figura 2 – Brinquedos óticos:

taumatrópios

Fonte: arquivos de pesquisa.

Figura 3 – Brinquedos óticos:

zootrópio feito de caixa de DVD

na escola da Alessandra 

Fonte: arquivos de pesquisa.

Page 97: Comunicação, audiovisual e educação

Pedagogias da animação | 95

Eu não gosto de usar a animação de forma didática, dentro do projeto da escola

[...]. Eu acho que animação tem que ser um momento em que os alunos estão na

escola, fazendo coisas de escola e acham que não estão, entendeu? É um momento

que eles estão ali, que estão fazendo uma coisa que eles estão a fim de fazer e que teo-

ricamente não está em livro, não tem que estudar para a prova. É diferente de você

colocar uma folha de redação e dizer: produza um texto. Ali eles estão produzindo

um texto deles, riquíssimo, fazendo inúmeras interpretações de textos já existentes

e não tem prova. Você vê, eles vêm fora do horário porque querem. Eles estavam em

tempo vago, podiam descer para o recreio e subiram. Tem que ter alguma coisa que

faça eles quererem estar na escola. Tem um professor de história da outra escola

que diz: o que você lembra dos seus professores? Você lembra de oração coordenada,

oração subordinada? Não, você lembra da pessoa, você lembra de um livro, de uma

leitura que foi feita, de uma festa que teve, você lembra é das relações, então, a esco-

la tem que ter isso. (Alessandra)

Na pedagogia da animação de Alessandra, a opção por não trabalhar com

assuntos ligados ao projeto ou currículo escolar aparece de forma marcante em

sua fala. Não só na escolha dos temas, mas também do tempo para se fazer a ani-

mação, Alessandra busca mexer com a rotina da escola. Ela desenvolve o projeto

com os alunos no contraturno e muitas vezes os alunos aparecem na sala de lei-

tura nos tempos vagos, interessados em dar continuidade ao filme de animação.

As falas em negrito demonstram como Alessandra percebe o papel da animação

na construção da sua pedagogia: algo que faça eles quererem estar na escola, que

amplie as relações. Os temas, de acordo com ela, quando relacionados ao que

motiva os alunos, geram esse afeto, esse gosto por estar ali até na hora do recreio.

Figura 4 – Imagem do filme

Fogo no céu (Alessandra)

Fonte: adaptada de Anima Escola

(2008).

Page 98: Comunicação, audiovisual e educação

96 | Comunicação, audiovisual e educação

Bergala (2008) diz que o cinema tem que entrar na escola como um elemento

de caos e desordem, justamente para se contrapor ao lugar da ordem, da regra e

do didatismo presentes na escola, como nos relata Alessandra. Sendo esse ele-

mento perturbador, o cinema tem a possibilidade de estar na escola enquanto

arte e promover o encontro com a alteridade. Esse encontro com o outro, com

o que é diferente, também aparece na fala de Alessandra, quando ela diz que a

escola precisa das relações – proporcionadas por momentos como o de produção

de animação –, pois acredita que é isso que fica na memória, na experiência dos

alunos. “Ver o encantamento nos olhos dos alunos” nada mais é do que construir

uma experiência que “fica” na dimensão apontada por Benjamin (1985). Como

ela diz: “afinal, o que você lembra dos seus professores?”. O que marca a experiên-

cia deles, alunos, faz parte da pedagogia de Alessandra.

Outra professora pesquisada, Amália, também responsável pela sala de leitu-

ra, aponta como um dos desafios de fazer animação na escola a organização do

tempo escolar e a necessidade que as atividades entrem nesse planejamento, ten-

do que se encaixar em tempos de 50 minutos e atenderem concomitantemente

todos os alunos da turma. Para conseguir dar atenção e trabalhar com pequenos

grupos, algo que na pedagogia da animação de Amália aparece como fundamen-

tal, ela e as professoras com quem trabalha em parceria precisam atender aos alu-

nos em seus horários de Centros de Estudos,4 fora do tempo das aulas.

4 Os Centros de Estudos são um cumprimento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN) nº 9394/96, em seu artigo 67, inciso V, que estabelece aos professores um período reservado a estudos, planejamentos e avaliação, incluído na carga horária de trabalho.

Figura 5 – Imagem do filme Voo,

inspirada no livro de Picasso

(Alessandra)

Fonte: adaptada de Anima Escola

(2013).

Page 99: Comunicação, audiovisual e educação

Pedagogias da animação | 97

A realidade vivida pela professora Amália em sua escola trouxe novas refle-

xões sobre a dificuldade de se vivenciar a experiência na velocidade em que vi-

vemos atualmente, que atravessa também os muros da escola. Segundo Larossa

(2002), o sujeito da experiência se define por sua receptividade feita de paciência

e atenção, além de disponibilidade e abertura para ser tocado. O autor, ao pensar

a educação a partir da experiência, diz que esta é cada vez mais rara por falta de

tempo e excesso de trabalho e que isso está acontecendo também na escola.

Nessa lógica de destruição generalizada da experiência, estou cada

vez mais convencido de que os aparatos educacionais também fun-

cionam cada vez mais no sentido de tornar impossível que alguma

coisa nos aconteça [...] Cada vez estamos mais tempo na escola, mas

cada vez temos menos tempo. (LAROSSA, 2002, p. 23)

Uma das formas que Amália encontrou para conseguir fazer filmes de ani-

mação na escola mesmo com a falta de tempo, foi trabalhar em parceria com

outros professores, como os regentes das turmas e a professora de artes, que aju-

dam na confecção dos personagens e cenários. É assim que busca tempo para

que “algo nos aconteça” na escola:

Aquela professora da turma que você acompanhou no ano passado entrou mara-

vilhosamente bem no projeto, aí vai muito mais fácil. Então depende também de

com quem você está trabalhando, como está aceitando. A professora de artes é uma

que há anos faz junto, então isso auxilia à beça. Ela também cansa de pegar centro

de estudos dela para pegar as crianças para fazer material para as animações [...]

Não tem um horário em que você possa fazer isso com os grupos, então isso atrapa-

lha. Ele [o projeto de animação] não entra tão naturalmente assim dentro do plane-

jamento como deveria ser, que seria muito mais enriquecedor. Infelizmente ele não

entra mais assim. (Amália)

Durante o trabalho de campo, Tatiana, que é professora de Artes Visuais,

demonstrou em seu discurso uma preocupação em desenvolver competências

comunicativas nos alunos. (OROZCO, 2010) Tatiana nos ajuda a perceber que,

apesar da vivência que os alunos possuem com o audiovisual, para a experiência

da produção de filmes de animação, é preciso um aprendizado e apoio propor-

cionados pela escola:

Page 100: Comunicação, audiovisual e educação

98 | Comunicação, audiovisual e educação

Figura 7 – Alunos produzindo o filme Arca de Noé, em 2013

Fonte: arquivos de pesquisa.

Figura 6 – Alunos da Amália produzindo o filme Sonho, em 2012

Fonte: arquivos de pesquisa.

Page 101: Comunicação, audiovisual e educação

Pedagogias da animação | 99

Eles estão sempre ligados na internet, sempre ligados na televisão [...]. Então eles

ficam ligados nessas mídias né, eles sempre visualizam isso. Agora a parte de tra-

balhar minuciosamente na animação, o movimento tem que ser assim, assado,

eles não têm essa noção, eles têm a noção a partir do momento em que eu explico e

que eles participam das oficinas. Olha fazendo assim dá pra vocês fazerem isso, aí

eles despertam. Eles gostam, se sentem fascinados pelo movimento, mas eles ainda

não têm a noção de como fazer aquilo mesmo vendo tanta coisa na tv e na internet.

(Tatiana)

Tatiana reafirma, a partir de sua prática, o que destaca Orozco (2010) sobre o

fato de que não nascemos emissores e criadores de audiovisual, mas precisamos

aprender a sê-lo e a escola tem também esse papel. Segundo Tatiana, o consu-

mo de mídias – internet e TV, principalmente – dos alunos não garante o co-

nhecimento sobre a forma de se produzir o movimento na animação. Ao mesmo

tempo, ela destaca que a partir do momento em que eles são introduzidos a esse

universo rapidamente ganham autonomia para realizarem sozinhos as cenas

dos filmes:

Ficava um aluno responsável porque eu dava aula nos outros tempos e tinha isso, eu

praticamente deixava eles sozinhos, eles faziam animação sozinhos. Eles já sabiam

fazer tudo. Durante a aula, eu ia lá, corria pra ver como é que estava. Mostravam

pra mim, ‘aí professora tem que tirar isso, isso e isso’, já sabiam até as cenas que

tinham que tirar. Então vamos tirar e agora vamos ver o roteiro, o que está faltan-

do? Cena quatro, cena cinco, cena seis. Eu ia lá dava uma olhada, mas eles eram

autônomos, sabiam o que fazer, entendeu? [...]

Tinha maquiadora, tinha cabeleireira, a que fazia as roupas, a que carregava as

coisas, cada um tinha uma responsabilidade, tem que delegar senão você enlou-

quece. (Tatiana)

A confiança dos alunos durante o processo de fazer o filme e a crença de

Tatiana no saber de seus alunos são corroborados por Fresquet (2013), quando

diz que fazer cinema na escola ajuda a reduzir assimetrias entre professores e

estudantes, desconstruindo papéis. Nesse processo, ambos são criadores e tra-

balham em conjunto na realização do filme, mexendo com a hierarquia presente

em sala de aula.

Page 102: Comunicação, audiovisual e educação

100 | Comunicação, audiovisual e educação

Figura 9 – Cena do filme Jasmin, a princesa da Maré. A arquitetura de Paris, desenhada pelos alunos

Fonte: adaptada de Anima Escola (2011).

Figura 8 – Imagem do filme A Família Real na Maré com os alunos da Tatiana caracterizados

na Baía de Guanabara

Fonte: adaptada de Anima Escola (2008).

Page 103: Comunicação, audiovisual e educação

Pedagogias da animação | 101

Como professora de Artes, Imaculada, outra professora pesquisada, priori-

za o fazer artesanal proporcionado pela animação. Alguns filmes de animação

produzidos pelos alunos ela denomina como “Animação Trash I, II, III...”. Em

suas falas ela explica o porquê do uso do termo, que o blog da escola chama de

“estética poética trash”:

Porque eu via na internet as pessoas falando que faziam filmes trash e eu falava,

nossa isso parece com o que eu faço na escola, a gente tem que improvisar, a gente

pensa numa coisa e tem que usar outra, é o material que tem e as ideias vão surgin-

do a partir dali. Até isso é legal também porque entra um elemento novo, o acaso.

Eu acho essas coisas interessantes. Você saber trabalhar com aquela dificuldade

que surge, né? Está faltando isso, mas a gente pode usar aquilo. Então já surge uma

ideia nova, são coisas boas numa situação de aprendizagem, de desenvolver isso

neles, e na gente também. Eu acho que o tempo todo a gente ensina e aprende, né?

A gente aprende fazendo aquilo ali, a gente vê muita coisa nova que vai surgindo

deles e que eles passam para a gente e a gente passa pra eles e vai saindo. Eu acho

isso muito legal! E essa questão mesmo que eu falei, que eu chamo de trash, porque

o cinema trash tem aquela coisa muito do acaso, não é só por ser mal feito. Porque

o cinema trash é conhecido por ser mal feito, mas o que eu acho legal é a situação

que a pessoa precisa resolver. Não tem sangue cinematográfico? Coloca ketchup!

(Imaculada)

Quando define seu cinema de animação trash, Imaculada fala também da

sua forma de criar com os alunos, usando o que há disponível na escola, tanto em

termos de recursos quanto de tempo, aprendendo e ensinando através desse fa-

zer e, também, correndo riscos junto com os alunos, como o passador de Daney

(2007 apud BERGALA 2008), estimulando a criatividade a partir do que surge

como possibilidade. O “passador”, conceito proposto por Serge Daney e retoma-

do por Bergala, é aquele que inicia o outro em algo que lhe é caro, a partir de um

lugar menos protegido, pois envolve seus gostos e o que o toca pessoalmente. Por

isso, corre riscos junto com seus alunos, estando ao seu lado no fazer e nas des-

cobertas, falando de um outro lugar que, simbolicamente, não é o do professor

tal como definido pela instituição escolar. (BERGALA, 2008)

Um outro aspecto fundamental para se compreender a pedagogia de

Imaculada é a forma como ela vê a experiência de produzir animação enquanto

arte, como ela relata:

Page 104: Comunicação, audiovisual e educação

102 | Comunicação, audiovisual e educação

Figura 11 – Imagem do filme O pardal distraído (técnica de recortes)

Fonte: adaptada de O Pardal distraído (2013).

Figura 10 – Imagem do filme O pintor, da série animação Trash 2 (técnica de pixilation)

Fonte: adaptada de O Pintor (animação trash 2) (2011).

Page 105: Comunicação, audiovisual e educação

Pedagogias da animação | 103

Eu acho que é essa experiência de arte mesmo, que não tem uma coisa assim de o

que me traz de útil. Uma experiência de fazer animação é uma experiência da arte,

então eu não posso falar assim, o que isso trouxe de bom para a sua vida, porque

eles são muito novinhos [...]. Então é aquela experiência mesmo que eles têm em

relação à arte, de conhecer uma arte nova, de experimentar uma arte nova. Eu

não vejo só utilidade, utilidade é o que a nossa sociedade quer, né? Mas com a arte

nem sempre a gente tem isso de ter que ser útil. (Imaculada)

Essa experiência de conhecer uma nova forma de arte faz parte do modo

como Imaculada define sua pedagogia. Como professora de Artes, ela se posicio-

na sobre sua crença na potência de “fazer animação” enquanto experiência artís-

tica, dialogando com Bergala (2008, p. 31), que defende em sua hipótese-cinema

que a arte não pode ser concebida pelo aluno sem a experiência do “fazer”: “a

arte não se ensina, mas se encontra, se experimenta, se transmite por outras vias

além do discurso do saber, e, às vezes, mesmo sem qualquer discurso. O ensino

se ocupa da regra, a arte deve ocupar um lugar de exceção”.

Imaculada vê seu trabalho com animação, assim como Bergala (2008) tam-

bém aponta, acima de tudo como uma experiência que os alunos devem viven-

ciar e que, como sabemos por Benjamin (1985), é capaz de tocar e transformar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A imersão na complexidade dos processos de fazer cinema de animação na es-

cola, durante o trabalho de campo e na análise do material coletado das quatro

professoras pesquisadas, evidenciou não só as marcas características das dife-

rentes pedagogias da animação, mas também que esses filmes de animação fei-

tos na escola – sem descolar, é claro, cada filme de todo o seu processo de cria-

ção – se apresentam como uma forma de narrar contemporânea. Inspirados em

Benjamin (1985, p. 200), que diz que “o narrador é um homem que sabe dar con-

selhos”, podemos ver os professores como narradores, que “aconselham” seus

alunos ao indicarem os caminhos para produzirem juntos as animações. Nesse

processo, o professor/narrador retira da sua experiência o que conta, o que pro-

põe aos alunos e nesse movimento de fazer junto, incorpora as coisas narradas

à experiência de seus alunos e à sua própria experiência, transformando ambos.

“Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na

Page 106: Comunicação, audiovisual e educação

104 | Comunicação, audiovisual e educação

argila do vaso” (BENJAMIN, 1985, p. 205), da mesma forma que as pedagogias da

animação nos filmes realizados.

A animação e sua forma própria de produção, que difere bastante do cinema

live action, com maior destaque nos debates de autores e pesquisas acadêmi-

cas, apareceram no decorrer da pesquisa como uma proposta que mexe bastante

com o cotidiano escolar. Seu processo de realização, que demanda muito tempo,

atenção e trabalho em grupo, acontece muitas vezes, como visto na pesquisa,

nas brechas do sistema educacional, como um elemento estranho e perturbador,

como defende Bergala (2008). E a escola, quando possibilita esse trabalho com

animação, desponta como lugar em que também é possível “inventar espaços

e tempos que possam perturbar uma ordem dada, do que está instituído, dos

lugares de poder” (FRESQUET, 2013, p. 25), assim como concordamos que a edu-

cação não é mais algo que possa prescindir dos demais meios de comunicação,

procurando meios de dialogar e integrá-los ao cotidiano escolar como mais um

dos muitos modos de leitura capazes de promover – a partir da experiência das

crianças com a animação – uma pedagogia do olhar. (FERNANDES, 2012)

Nessa invenção de espaços, lugares e novas ordens, descobre-se que ainda

é possível trocar experiências enquanto se cria animações na escola, quando

é exigido um tempo diferente das pessoas e o contato direto entre elas, como

acontecia na cultura da oralidade. (BENJAMIN, 1985) Se, para Benjamin (1985),

o fracasso da experiência na sociedade moderna capitalista extinguiu a arte de

contar, a reconstrução da experiência seria acompanhada de uma nova forma

de narratividade, “fruto de um trabalho de construção empreendido justamente

por aqueles que reconhecem a impossibilidade da experiência tradicional na so-

ciedade moderna e se recusam a se contentar com a privaticidade da experiência

vivida individual”. (GAGNEBIN [19--] apud BENJAMIN, 1985,p. 197) Parece que

esses professores sujeitos da pesquisa de fato não se contentam com o tempo

e ritmo impostos pela escola e se arriscam a propor novas formas de ensinar e

aprender junto com os alunos. Fazer animação na escola, como foi visto durante

a pesquisa, representa essa nova forma de narrar contemporânea que Benjamin

diz ser necessária, que está em consonância com os modos de ser dos sujeitos,

constituídos a partir da cultura audiovisual. (SIBILIA, 2012) Animar requer ges-

tos raros nos dias de hoje: demorar-se nos detalhes, cultivar a atenção, a paciên-

cia, a escuta, parar para olhar, pensar, ações que possibilitam que a experiência

nos aconteça. (LARROSA, 2002) A análise das pedagogias da animação das pro-

Page 107: Comunicação, audiovisual e educação

Pedagogias da animação | 105

fessoras mostrou também que, nas diferentes etapas e propostas para os pro-

cessos de criação, professores e alunos intercambiam experiências. Se a arte de

narrar é cada vez mais rara por falta de condições de realização da transmissão

da experiência, ligada a um trabalho e tempo compartilhados, podemos pensar

que ações como essa de realizar animação fazem da escola um lugar onde a ex-

periência e a narrativa ainda são possíveis na atualidade.

A função do professor durante esse processo de criação coletiva com os alu-

nos esteve em foco na análise do material do campo. Como o sujeito que apre-

senta aos alunos algo que lhes tocou – fazer filmes de animação –, verificou-se

que ele exerce o papel que Daney ([19--]) (apud BERGALA, 2008) denominou de

“passador”, investindo nas propostas dos alunos, buscando soluções em parce-

ria, apresentando seus gostos, permitindo que os alunos contribuam com seus

saberes, correndo riscos juntos num fazer compartilhado.

Finalizando, retomamos aqui umas das razões iniciais que impulsionaram

essa pesquisa: pensar a dimensão formativa do cinema no contexto escolar.

Dimensão essa que pode ser percebida em diferentes ações, por diversos cami-

nhos, mas que neste percurso se deu através do olhar sobre invenções e escolhas

capitais das professoras para proporcionar a criação de filmes de animação na

escola. Dialogando com o que diz Norman MacLaren na abertura deste texto, po-

demos dizer que analisar as pedagogias da animação das professoras é também

uma busca por tornar visíveis os “interstícios invisíveis que se encontram entre

os fotogramas” dos filmes feitos nas escolas.

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1 DVD (92 min).

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1 DVD (103 min).

ANIMA Escola. Produção: Anima Mundi. Rio de Janeiro: SME, 2013.

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Page 111: Comunicação, audiovisual e educação

| 109

6Uma pesquisa com filmes para jovens cegos: cultura do ouvir no contar filmes e/ou audiodescrever

Margareth OlegárioAdriana Hoffmann

INTRODUÇÃO

A questão em foco neste texto trata de um debate surgido na pesquisa realiza-

da em uma escola especializada com jovens estudantes cegos e com baixa visão

do 4º ano do ensino fundamental. O objetivo da pesquisa foi perceber o acesso

desse público aos filmes e o modo como se relacionavam com os filmes vistos.

Trata-se do estudo realizado por Margareth Olegário no Mestrado em Educação.

(OLEGARIO, 2015)1

Explicitamos que pelo fato da mestranda, autora da dissertação de mestra-

do e coautora deste capítulo, ser cega de nascença, optou-se por não trazer no

mesmo notas de rodapé. As informações estarão todas no corpo do texto a fim

de possibilitar a leitura de pessoas cegas através de leitores de tela. Reiteramos

também que por tratar-se de assunto como a audiodescrição – em grande parte

desconhecido do público – optamos por fazer um artigo que procura apresentar

um pouco do universo dos jovens cegos e as questões envolvidas no acesso aos

materiais audiovisuais tendo a audiodescrição um papel de tecnologia assistiva

1 O texto apresenta uma versão revisada do artigo já publicado na Revista Teias.

Page 112: Comunicação, audiovisual e educação

110 | Comunicação, audiovisual e educação

por dar acesso, de forma profissional, aos que não podem ver o que hoje circula

nas muitas telas da atualidade.

Algumas das questões que fizeram parte da investigação são: que ideia de

cinema teriam os jovens que não o enxergam? Como pensar sobre um cinema

para os que têm acesso ao som mas não a imagem? Seria essa uma outra forma

de entender o cinema?

Tal experiência assemelha-se ao que foi vivido por vários dos depoentes do

filme brasileiro Janela da Alma de João Jardim e Walter Carvalho de 2001. O fil-

me, já em seu título, alude à frase de Leonardo da Vinci: o olho é a janela da alma,

o espelho do mundo. Essa visão de que só se tem ideia do mundo pelo ver é algo

que nos traz questionamentos. Os diretores do filme tem o desafio de nos fazer

pensar sobre isso. Para tanto, entrevistaram pessoas de diferentes países e com

diferentes profissões para refletir sobre o que é a visão na experiência de cada

um deles. Os entrevistados no filme tem diferentes graus de visão indo desde

a cegueira, com maior ou menor acuidade da visão, ao uso dos óculos de grau.

Os depoimentos do filme nos desacomodam e nos fazem pensar sobre o que ve-

mos e como vemos. O filme nos faz perceber que – mesmo tendo visão – nem

sempre vemos com os olhos. Nos deparamos no filme com o depoimento de Win

Wenders que nos diz que prefere “ver enquadrado” para ver menos e ver melhor

e com falas como a de Hermeto Paschoal que diz ver com sua vista embaçada o

que a maioria não vê. A visão torna-se algo que não é apenas a imagem mas algo

que se constrói com as imagens ou que se diz ou se faz com elas. O filme nos faz

questionar nossa relação com a visão e a funcionalidade do olho na percepção

do mundo ao redor.

Nesse sentido, um exercício importante na pesquisa realizada foi o que vi-

veu uma das autoras deste capítulo – Margareth Olegário – que, por ser cega de

nascença, encarou o desafio de rever sua experiência com os filmes para poder

– a partir dela – perceber a experiência dos sujeitos da pesquisa.

Como Margareth Olegário, cega de nascença, viveu e entendeu até hoje os

filmes? Como construiu essa relação com a TV, o cinema e os audiovisuais de for-

ma geral? O que é acessível ou não a ela? Como faz suas escolhas do que assistir

e como busca entender o que assiste? O que a estimula a querer assistir algo ou a

continuar assistindo e o que a faz desistir de tentar?

E, afinal: como esses jovens que são cegos ou com baixa-visão se relacionam

com filmes que passam na TV e no cinema? De que forma eles tornam-se ou não

Page 113: Comunicação, audiovisual e educação

Uma pesquisa com filmes para jovens cegos | 111

acessíveis a eles? Que ponto de encontro existe entre a experiência de Margareth

e a experiência deles?

Margareth relata que nasceu cega mas tem quatro irmãos que enxergam nor-

malmente e sempre buscaram inseri-la nas atividades das quais eles participa-

vam. Algumas eram atividades que tinham imagens como assistir a desenhos

animados na TV, filmes, novelas, reportagens, entre outras. A TV foi o primeiro

recurso audiovisual a que Margareth teve acesso e desde muito cedo teve inte-

resse pelo que se passava nas imagens da TV. Os irmãos descreviam – a maneira

deles – o que estavam vendo e ela os inquiria acerca do que não compreendia.

Porém, o internato de segunda a sexta-feira aos seis anos de idade para que pu-

desse estudar, interrompeu um pouco esse contato com o audiovisual contado

pelos seus irmãos e às vezes por sua mãe, pois na escola quase não assistia à

televisão e quando assistia a alguma programação na TV, não havia esse contar

ou descrever o que se passava.

Não se recorda a idade em que foi pela primeira vez ao cinema, mas nesse

dia, assistiu com os irmãos ao filme Tarzan. Foi tão impactante para todos que

eles quase não falaram no momento do filme. Somente no caminho de casa, ela

soube um pouco do que se passou na tela e não foi compreendido por ela.

Muitos anos se passaram e chegou o dia que ela conheceu o recurso da au-

diodescrição no primeiro Festival Assim Vivemos, no Centro Cultural do Banco

do Brasil (CCBB), quando já atuava como professora no Instituto Benjamin

Constant (IBC). Na época, foram exibidos filmes acerca de questões que envol-

vem as deficiências e esses eram todos audiodescritos e acessíveis a ela.

A descoberta da audiodescrição tornou-a mais curiosa do que antes e exi-

gente nas descrições não só de filmes, mas de imagens estáticas, tais como qua-

dros e esculturas e objetos. Atualmente, ela dá preferência a programações que

possuam audiodescrição mas, não deixa de ir a eventos sem a audiodescrição,

pois se assim o fizer, estará fadada a não ir ao cinema, teatro, exposições, pois

reconhece que ainda são pouquíssimos os eventos audiovisuais que utilizam-se

do recurso da audiodescrição. No entanto, fica sem dúvida, limitada a frequen-

tar esses locais somente na companhia de quem enxerga para contar para ela o

que ocorre nas imagens mesmo que informalmente. No seu ponto de vista, a au-

sência da audiodescrição prejudica imensamente a compreensão dos conteúdos

audiovisuais, principalmente, os filmes que não têm muitas falas.

Page 114: Comunicação, audiovisual e educação

112 | Comunicação, audiovisual e educação

Uma questão surgida na experiência de Margareth apareceu também na fala

dos sujeitos da pesquisa: o acesso aos filmes e materiais audiovisuais se dá em

sua maior parte por dois meios: pelo contar do outro ou pela audiodescriçao.

As duas são formas apontadas pelos sujeitos e por Margareth de acesso à expe-

riência com filmes e audiovisual trazem um ponto de encontro entre a experiên-

cia dela e dos seus sujeitos de pesquisa.

Uma questão em especial assemelha-se no contar e na audiodescriçao. Nos

dois, o jovem cego tem acesso as imagens pela fala de outra pessoa – que não

ele próprio – já que ele não as pode ver. Nas duas situações, ele precisa confiar

em quem conta ou na equipe que audiodescreve. Assumir que precisa do outro

para viver a experiência com a imagem é remeter a alteridade imprescindível

dela. Para fazer essa discussão, nos remeteremos a Larossa para pensar que a

experiência dos cegos com a imagem é uma experiência fundante de alteridade.

Larossa (2011, p. 2) chama de “princípio de alteridade” a experiência que ele ex-

plica adiante:

A experiência é ‘isso que me passa’. A experiência supõe, em primeiro

lugar, um acontecimento ou, dito de outro modo, o passar de algo que

não sou eu. E ‘algo que não sou eu’ significa também algo que não

depende de mim, que não é uma projeção de mim mesmo, que não é

resultado de minhas palavras, nem de minhas ideias, nem de minhas

representações, nem de meus sentimentos, nem de meus projetos,

nem de minhas intenções, que não depende nem do meu saber, nem

de meu poder, nem de minha vontade. ‘Que não sou eu’ significa que

é ‘outra coisa que eu’, outra coisa do que aquilo que eu digo, do que

aquilo que eu sei, do que aquilo que eu sinto, do que aquilo que eu

penso, do que eu antecipo, do que eu posso, do que eu quero.

Desse modo, esses jovens cegos vivem essa experiência com o princípio da

alteridade de forma extrema, entendendo que dependem da alteridade, ainda

mais do que nós, como forma de localizarem-se e atuarem no mundo em que

vivem. No entanto, dialogando com Larossa, pensamos que essa alteridade que

não sou eu é a alteridade que me permite ser mais eu e, no caso dos cegos, é a

alteridade que os faz ver como eu percebo e crio minha imagem a partir do ouvir

da imagem dita pelos outros.

Page 115: Comunicação, audiovisual e educação

Uma pesquisa com filmes para jovens cegos | 113

José Eugenio Menezes (2008, p. 114) vai discutir a cultura do ouvir. Na escuta

de si mesmo e na escuta do outro, “o ouvido desenvolve um papel fundamental

na constituição da subjetividade e da sociabilidade”. Como seria contar esses fil-

mes a quem não vê? E o que seria a audiodescrição? A audiodescrição asseme-

lha-se ou diferencia-se do contar o filme oralmente?

Essas e outras questões foram discutidas na pesquisa realizada por Margareth

dentro da ótica da pesquisa-intervenção. Para a pesquisa, foram realizadas qua-

tro sessões de exibição de curtas audiodescritos na escola com cerca de 20 jovens

cegos de 16 a 23 anos com debate posterior. Também foram feitos questionários

e entrevistas com os jovens participantes. O objetivo foi perceber como ocorria

essa experiência com os filmes e o audiovisual no ponto de vista deles.

Percebeu-se em todos os depoimentos da pesquisa que o ouvir para o cego

é fundamental. Através do ouvir, é que ele tem acesso ao mundo que ele não vê.

Algumas das reflexões feitas por Jose Eugenio Menezes (2008) buscam investi-

gar como os vínculos sonoros podem ampliar as experiências de cidadania indo

além da profusão de imagens do nosso cotidiano. Algumas de suas questões são:

“É possível dissolver a fixação espacial do olho? Não se devem reforçar as capa-

cidades do ouvido?”; “O que seria uma ‘cultura do ouvir’”?

Dessa maneira, este capítulo procura fazer uma reflexão acerca das relações

entre jovens cegos e os filmes pensando também sobre esse “contar um filme”

e “assistir ao filme com audiodescrição” no cotidiano desse público. Traremos a

seguir dois exemplos de situações em que são apresentadas o contar o filme e o

audiodescrever o filme para refletirmos sobre alteridade do ver pelo outro e essa

questão da cultura do ouvir como possibilidade de cidadania.

CONTANDO FILMES

Havia crianças que recebiam dinheiro de seus pais para irem ao ci-

nema, e preferiam vir para a minha casa (ouvir contar o filme), fazer

uma doação mínima e gastar o resto em bobagens. E muitos adultos

analfabetos, quando o filme era ‘com letras’, escolhiam ouvi-lo con-

tado por mim em vez de ir ao cinema e não entender nada. E descobri

também que tinha gente que vinha me ouvir, não porque não pudes-

se pagar a entrada do cinema, mas porque gostavam de verdade era

Page 116: Comunicação, audiovisual e educação

114 | Comunicação, audiovisual e educação

que alguém contasse os filmes. Alguns diziam que eu era tão boa para

caracterizar os personagens que, só com piscar os olhos, podia passar

a expressão de candidez de Branca de Neve à ferocidade do leão da

Metro Goldwyn Mayer. E que me ouvir era como ouvir aquelas radio-

novelas que eram transmitidas dia a dia lá na capital, pois, além de

imitar as vozes e fazer caras, eu sabia manter a platéia em suspense.

[...] Sem nem ter pensado nisso, para eles eu tinha me transformado

numa fazedora de ilusões. (RIVERA LETELIER, 2012, p. 2)

Nesse trecho do livro A contadora de filmes (2012), Hernan Letelier nos conta

que a personagem principal mora numa localidade onde se tem pouco acesso

aos filmes exibidos no cinema. Devido a isso, o pai faz uma eleição entre todos

os filhos para ver qual deles será o contador de filmes, ou seja, aquele que vai ao

cinema e depois conta o filme aos demais da família. A personagem contadora

ganha essa eleição e toda semana conta um filme começando a ganhar notorie-

dade dentro da comunidade. Esse contar dos filmes de que o livro fala revela

que trata-se de um momento coletivo de narrativa na dimensão de que nos fala

Walter Benjamin (1994) ao falar sobre o narrador tradicional, que reconta o que

viu pela narrativa oral. O narrador é aquele que narra entremeando a narrativa à

sua experiência vivida, algo que a menina do livro aprende e faz bem ao narrar os

filmes. Passa a narrar as partes que mais lhe agradam esquecendo-se das demais

e o contar de cada filme ganha uma interpretação própria da narradora. Como

narradora, torna-se uma fazedora de ilusões para alguns que buscam suas his-

tórias no lugar dos filmes, apontando como o contar é parte desse viver e desse

estar junto.

Foi por pensar em situações como essas que nos questionaram se esse contar

filmes não poderia ser uma forma de tornar os filmes acessíveis aos jovens cegos.

Será que esses jovens conseguiriam entender o que a personagem conta dos fil-

mes de forma acessível?

Importante pensar como um jovem cego teria acesso à parte visível da con-

tação – ou seja – as caras e bocas da contadora e seus trejeitos, os objetos usados

para contar, as vestimentas e outras informações visuais que muitas vezes não

nos damos conta de que fazem também parte do contar... Refletir sobre o acesso

que se tem pelo ouvir do outro, pela alteridade, demanda também pensarmos

Page 117: Comunicação, audiovisual e educação

Uma pesquisa com filmes para jovens cegos | 115

o quanto o ouvir de que nos fala Menezes (2008) vai além do ouvido. Baitello

Junior (2005, p. 116 apud MENEZES, 2008, p. 116) relembra:

O ouvir e o ver, operações perceptivas associadas a cada um destes

dois universos, requerem ambos o cuidado e o cultivo dos próprios

limites. O ouvir, mais vinculado ao universo do sentir, da paixão, do

passivo, do receber e do aceitar. O ver, mais associado ao universo da

ação, do fazer, da atividade, do atuar, do agir e do poder.

Percebe-se que, no contar, o ouvir e o ver se articulam na sociedade. Percebe-

se que o receber e o fazer, a ação e a passividade não ocorrem desse modo estan-

que remetendo apenas da experiência de ver ou de ouvir. Como Larossa (2011)

nos aponta: o princípio da subjetividade ou da transformação revela que essa

experiência sou eu. Portanto, esse ouvir e esse ver são a experiência do sujeito e

também o que ele faz com ela a transformando em parte de si próprio. No caso

dos jovens da pesquisa, esse ouvir sem ver seria parte desse princípio da sub-

jetividade deles. Mas como seria esse ouvir do outro tendo em vez do contar o

audiodescrever? O que seria a audiodescrição dessas imagens que não podem

ser vistas?

AUDIODESCREVENDO FILMES

Aqui, traremos como exemplo de audiodescrição, parte do roteiro do curta

Engano, que foi audiodescrito por Daniel Machlini. Nele, vê-se as imagens das

cenas iniciais e a audiodescrição aparecerá aqui no texto como legenda da ima-

gem, mas no filme esse material é falado no mesmo instante em que as imagens

passam.

Page 118: Comunicação, audiovisual e educação

116 | Comunicação, audiovisual e educação

Figura 1 – Cena do curta Engano

Audiodescrição: Tela dividida em duas partes: na direita, Mila em foco. Na esquerda, Rodrigo aguarda o

trem, na estação de metrô. A moça de vestido verde e braços cruzados, parece aguardar algo na rua. O

rapaz de camisa cinza e pasta azul na mão faz sinal enquanto a moça vê o ônibus parar em um ponto à

sua frente. Ela rói as unhas e em seguida, guarda uma revista em sua bolsa.

Fonte: material de pesquisa.

Trecho de audiodescrição

Ao assistir a esse trecho inicial do curta, percebe-se que é audiodescrito somente

o conteúdo imagético elaborado por Cavi Borges. (ENGANO, 2015) Antes de ini-

ciar o filme, os seus créditos são lidos e, deste modo, a pessoa cega tem acesso às

informações sobre o filme que irá assistir. Porém, em outros casos, o audiodes-

critor opta por audiodescrever o cenário em que se passará o início do filme ou

faz a leitura dos nomes dos atores do elenco ou dos diretores. A essa descrição

prévia dá-se o nome de “notas proemias”. Trata-se de informações de apresenta-

ção inicial do filme para situar quem escuta.

Portanto, o principal objetivo da audiodescrição é permitir que a pessoa cega

saiba o conteúdo imagético de um filme, peça teatral ou de qualquer obra de

arte. Não cabe ao audiodescritor opinar/interpretar acerca do que está vendo,

mas, falar somente o que vê, permitindo ao sujeito que terá acesso a essa tecno-

logia assistiva formar a sua própria opinião acerca do que está sendo exibido.

Page 119: Comunicação, audiovisual e educação

Uma pesquisa com filmes para jovens cegos | 117

Mesmo reconhecendo que o outro nos constitui, busca-se deixar livre a inter-

pretação das imagens audiodescritas que é papel do ouvinte da audiodescrição.

Em geral, a audiodescrição, para tornar as imagens acessíveis aos cegos, é fei-

ta por uma equipe composta de: audiodescritor (pessoa que elabora o roteiro da

audiodescrição); consultor (pessoa cega ou com baixa visão que verifica se as des-

crições das imagens estão compreensíveis a uma pessoa com deficiência visual);

revisor (profissional com formação em língua portuguesa, que revisa o texto do

roteiro); e o locutor, que poderá ser o próprio audiodescritor, conforme o filme

que exemplificamos acima, consultor ou revisor, que tenha boa dicção e leitura

clara, obedecendo à ordem das cenas do filme. Trata-se de uma proposta profis-

sional de acessibilidade de materiais audiovisuais a pessoas que não podem ver.

A audiodescrição é compreendida como um serviço cujo alvo são as pessoas

que não veem e conforme a leitura de Lima (2010), a audiodescrição precisa ter

um caráter narrativo somente para descrever: vestimentas, gestos e efetuar lei-

tura de créditos que aparecem na tela ou qualquer outra informação que não é

dita pelos atores mas que aparece nas imagens.

Seria a audiodescrição suficiente para tornar o filme acessível aos jovens ce-

gos? Como eles percebem esse recurso e como acessam os filmes audiodescritos?

Que diferenças percebem entre ter acesso aos filmes pelo contar de alguém ou

pela audiodescrição?

EXPERIÊNCIA E CULTURA DO OUVIR: FILMES COM E SEM AUDIODESCRIÇÃO E O VER PELO OUVIR DO PONTO DE VISTA DOS SUJEITOS

A exploração ou uso acentuado do sentido da visão marca, ainda que

de forma diferente, as características bidimensionais das imagens

nas telas dos equipamentos eletrônicos ou nos impressos. Isso nos

leva a pensar que o envolvimento de um maior número de sentidos,

como a audição, pode ajudar na percepção da tridimensionalidade

dos objetos e especialmente das pessoas envolvidas nos processos

de comunicação. Assim, os conhecimentos obtidos por um sentido

teriam uma expressão diferente dos conhecimentos obtidos por um

conjunto de sentidos ou, no nosso caso, pela audição [...]

Page 120: Comunicação, audiovisual e educação

118 | Comunicação, audiovisual e educação

Os sons ou vibrações entre duas pessoas criam um espaço de inter-

locução, repercutem envolvendo concreta e fisicamente os corpos.

É possível que este universo sonoro nos ajude a percebermos que a

ampliação do número de sentidos envolvidos permite questionar-

mos uma epistemologia cartesiana e privilegiarmos os caminhos

para uma epistemologia aberta à compreensão da complexidade dos

processos comunicacionais. (MENEZES, 2008, p. 113)

Nesse trecho, Menezes nos faz pensar sobre como seria adquirir conheci-

mentos pelo sentido da audição. Trata-se do debate empreendido pelo autor em

torno da cultura do ouvir. Que espaço de interlocução poderia ser esse criado

prioritariamente a partir do ouvir como é a experiência dos jovens cegos?

Durante a pesquisa nos momentos de exibição dos filmes com e sem audio-

descrição, percebemos a diferença nesse processo de recepção. Alguns filmes

exibidos sem audiodescrição e sem alguém que conte a eles o que ocorre nas

imagens tornam-se completamente inacessíveis a esse público. Eles passam a

fazer da relação com as imagens uma relação de adivinhação do que deve estar

se passando e, com o tempo, desinteressam-se por tentar entender o que ocorre.

Também deve ser por motivo semelhante que foi percebido ao longo da pes-

quisa que os jovens cegos costumam ter pouco acesso a materiais de filmes e au-

diovisuais. A maioria costuma ter acesso apenas por passeios feitos pela escola e

contatos pela família. No seu cotidiano, veem TV ou assistem a filmes em geral

com a ajuda de uma pessoa próxima para contar o que acontece a eles. Fato se-

melhante ocorreu na experiência de Margareth. São poucos os locais que exibem

filmes com audiodescrição.

Na escola, os jovens da pesquisa apontaram que foram a eventos com esse

recurso e viveram algumas sessões com audiodescrição dentro da pesquisa.

Perguntamos a eles sobre como perceberam as diferenças e suas percepções

de assistir a um filme com e sem audiodescrição. De que modo percebem essas

diferenças?

Algumas das falas dos jovens aqui trazidas apresentam as tensões existentes

nessa relação: “[...] no filme tem como escutar com audiodescrição, aí você vê me-

lhor”. (I) “Ah... Esses filmes assim do cinema é sem audiodescrição. E quando sento

lá atrás, eu não vejo o que tá passando, meu irmão tem que ficar contando pra

mim”. (J) “Eu vejo mais rápido (sem audiodescrição). Sei lá. De repente aconteceu

Page 121: Comunicação, audiovisual e educação

Uma pesquisa com filmes para jovens cegos | 119

alguma coisa. É uma coisa mais direta, é mais rápido de entender. Com a audio-

descrição fica tudo embolado, entendeu?” (T)

As falas anteriores dos jovens apontam diferentes relações com os filmes

com e sem audiodescrição. Assim como os primeiros depoimentos ressaltam

a audiodescrição dos filmes dizendo que com esse recurso “você vê melhor”, a

última já coloca que a audiodescrição torna o entendimento do filme confuso.

Ao mesmo tempo, o segundo depoimento fala do “irmão [que] tem que con-

tar para mim”, algo que também aparece na fala de outros jovens da pesquisa.

Sabemos que é pelo contar – pelas pessoas próximas – que eles passam a ter os

primeiros acessos a materiais com imagem. Esse contar é algo que os jovens ce-

gos têm acesso desde pequenos. Da mesma forma, a audiodescrição torna-se um

processo de aprendizagem para eles. Para entenderem o que fala o audiodescri-

tor e também as falas do filme, precisam aprender a lidar com essas diferentes

falas e concatená-las. É algo que demanda viver essa experiência cotidianamen-

te. Demanda aprendizagem. Trata-se de dificuldade semelhante a que tem al-

guns dos nossos jovens videntes com a leitura de legendas dos filmes quando

essa é uma prática pouco vivida por eles.

Todos os 20 jovens pesquisados têm um consumo da imagem de forma redu-

zida por dependerem de outros para acessá-las e contá-las. Mesmo quando têm

acesso a pessoas que contam para eles, em sua maioria, estas são familiares que

veem junto os filmes, contando-os ao mesmo tempo em que assistem. Da mes-

ma forma, essas pessoas selecionam o que eles podem assistir de acordo com

suas preferências e também selecionam o que contam ou não a eles. Assim, nem

sempre eles tem autonomia para fazer escolhas sobre o que assistirão. Essa é a

forma como vivem esse princípio da alteridade de que fala Larossa (2011).

No entanto, a partir do que aponta Menezes, esse contar ou audiodescrever

parecem não ter uma relação mais direta com a cultura do ouvir da qual ele fala.

De acordo com o próprio autor, o ouvir relaciona-se com o ver. No entanto, indo

além do que Menezes aborda e, pensando especificamente nesse público que

não vê, podemos pensar numa cultura do ouvir sem ver, entendendo que essa

forma de acesso tem uma especificidade própria que tem no outro o ouvir prio-

ritário. Menezes destaca que “quando falamos em cultura do ouvir retomamos

as possibilidades do corpo, em especial do universo sonoro, antes e depois dos

equipamentos de comunicação”. (MENEZES, 2008, p. 115)

Page 122: Comunicação, audiovisual e educação

120 | Comunicação, audiovisual e educação

O outro que narra ou que audiodescreve traz seu universo sonoro e comu-

nica-se com seu ouvinte instituindo a cultura do ouvir, pois é somente por ele e

pela troca com este que o cego terá acesso às imagens. Não há experiência sem o

outro, sem algo exterior a mim conforme nos aponta Larossa (2011). E isso é cada

vez mais claro na experiência dos jovens cegos. Há uma relação constitutiva en-

tre a ideia de experiência e a ideia de formação. O autor deixa claro que o resulta-

do da experiência é a formação ou a transformação do sujeito da experiência. O

sujeito da experiência é nada mais que o sujeito da formação e da transformação.

Nesse caso, a experiência ocorre pelo sensorium do ouvido e pela fala do outro.

Walter Benjamin (1994) é o autor que nos fala do sensorium. Podemos nos

referir que esse ouvir das imagens pelo outro ancora-se nesse sensorium dife-

rente do visual – um sensorium prioritariamente auditivo – do ouvir e do ouvir

do outro. Uma narrativa que se estrutura com base no relato do outro para cons-

tituir o seu próprio relato. Todos nós somos constituídos pelos outros, mas ter

essa predominância do ouvir do outro na sua constituição pela impossibilidade

da visualidade torna esse outro ainda mais perceptível. Entende-se, no entanto,

que isso não impede a autonomia de pensamento e as escolhas dos jovens cegos

com base em tudo o que ouviram a respeito. Trata-se de uma ideia de formação

com base no sensorium do ouvir sem o ver, uma formação outra. Uma construção

outra de alteridade.

Mesmo que o contar tenha uma dimensão afetiva importante para os sujei-

tos nesse contato alteritário com a família e pessoas próximas, descobrir que há

um outro modo de tornar os produtos audiovisuais acessíveis a eles – através da

audiodescrição – é uma descoberta importante, pois lhes dá maior autonomia

mesmo que esta ainda seja pouco acessível nas obras audiovisuais. A aposta é

que com as novas legislações que trazem a audiodescrição como direito se ca-

minhe para tornar os filmes e produções audiovisuais da TV e de outros espaços

mais acessíveis a esse público.

REFLETINDO SOBRE OS DESAFIOS QUE NÃO CESSAM

Menezes (2008) questiona: de que forma uma cultura do ouvir contribui para a

passagem de sociedades de informação para as futuras sociedades de conheci-

mento, nas quais além de controlar ferramentas o homem crie novos conteúdos,

Page 123: Comunicação, audiovisual e educação

Uma pesquisa com filmes para jovens cegos | 121

cultive vínculos e experimente a ampliação da cidadania em termos intersubjeti-

vos e interculturais? Considerando que os estudos a respeito da cultura do ouvir

investigam caminhos para o cultivo dos vínculos e ampliação da cidadania em

termos intersubjetivos e interculturais, entendemos a mútua interação entre os

estudos de cultura do ouvir e os estudos da alfabetização para os meios. O autor

nos remete ao antropólogo Christoph Wulf (2001 apud MENEZES, 2008, p. 114) o

qual afirma que, na escuta de si mesmo e na escuta do outro, “o ouvido desenvol-

ve um papel fundamental na constituição da subjetividade e da sociabilidade”.

A compreensão do universo da cultura do ouvir nos remete tanto aos tempos

das grandes narrativas mitológicas como também à atual valorização das histó-

rias contadas de geração a geração. O autor considera que é pouco estudada a

passagem da ênfase no ouvir para o processo civilizatório que gerou o predomí-

nio da cultura do ver, ou cultura da imagem que temos hoje.

Menezes (2008) questiona se a cultura do ouvir pode ajudar a enriquecer os

processos comunicativos da visão. Nós questionamos se essa cultura do ouvir

que procura incorporar mais o ouvir na comunicação valorizando, não somente

e prioritariamente as imagens, pode dar maior acesso aos que não têm a faculda-

de da visão, que poderiam estar mais inseridos nos espaços e ações que privile-

giassem o sonoro para além apenas do visual.

Entendemos também que falar de cinema é mais do que falar de filme. Trata-

se da cultura de cinema de que nos fala Coelho (1997) na qual o cinema, mais

especificamente a cultura do cinema, remete a domínio bem mais amplo. Assim

como o ver, esse ouvir faz parte dessa cultura. A cultura do cinema se infiltra

por toda parte, da memória mais íntima à roupa que se veste; a cultura fílmica e

ao que está nos livros e criticas de jornais. São diferenças nada pequenas entre

filme e cultura do cinema. No caso dos jovens cegos, essa cultura do cinema vai

sendo adquirida por eles nessa experiência do ouvir.

Sendo assim, é a acessibilidade às imagens dos filmes que ajuda a constituir

a cultura do cinema dos jovens pesquisados e, dessa forma, quanto mais acesso

tiverem, mais possibilidades de entendimento dessa cultura e participação nela

poderão ter. Falar de cultura nesse contexto é também falar de consumo. Afinal,

a pesquisa buscou saber como os jovens consomem os filmes. Sonhamos com

um dia próximo em que consumir os filmes não seja um modo de diferenciação

entre os que veem ou não. Que brevemente esses jovens que não veem possam

participar dessa cultura do cinema de que fala Coelho (1997), podendo viver essa

Page 124: Comunicação, audiovisual e educação

122 | Comunicação, audiovisual e educação

experiência de modo acessível a eles, com total possibilidade de troca com os vi-

dentes, experimentando essa relação com os bens culturais dentro da sociedade

se apropriando e recriando-os por sua própria escolha de forma acessível.

Finalizando, podemos destacar que a principal diferença entre o “contar o

filme” e “assistir ao filme audiodescrito” refere-se a maior possibilidade de aces-

so autônomo ao filme como uma política de ampliação de repertório. Importante

destacar que a audiodescrição ocorre de antemão na maioria dos filmes e obras,

e não no momento de exibição, o que já é característica informal do “contar os

filmes”. Para que os materiais sejam audiodescritos, há uma equipe que realiza

essa audiodescrição assim como ocorre também na legendagem dos filmes.

Assim, os dois – contar e audiodescrever – criam sentidos diferentes e cum-

prem funções também diversas no cotidiano do jovem cego. O audiodescritor

não é um narrador de filmes, mas um descritor de conteúdos imagéticos em mo-

vimento ou estático.

Da mesma forma, vimos que podem ter os que preferem vivenciar em alguns

momentos o contar filmes e em outros a audiodescrição. Esse contar torna-se

um contar afetivo que alia os ouvintes aos contadores assim como Benjamin

(1987) comenta na narrativa tradicional. Afinal, quem não gosta de ouvir alguém

contar uma boa história? Mas gostar de ouvir filmes contados não pode ser moti-

vo para deixarmos de lado a importância da acessibilidade e sua necessidade de

ampliação para os vários usos que os não videntes precisam fazer dos conteúdos

audiovisuais – hoje cada vez mais dentro dos processos de ensino e aprendiza-

gem dos sujeitos. Para isso, a audiodescrição tem um papel importante.

Em primeiro lugar, cabe-nos esclarecer que o filme assistido por quem não

enxerga mantém a sua originalidade e pode suscitar relações com os fazeres e

cotidianos desses sujeitos. No entanto, a audiodescrição, conforme relato dos

jovens pesquisados, é um recurso que auxilia na compreensão do que é exibido

na tela, exclusivamente em relação ao conteúdo imagético que quem não en-

xerga a ele não tem acesso. Entender que esse direito amplia – e muito – a vida

e as possibilidades dos que não enxergam é perceber que essa é uma demanda

política tanto para os que produzem audiovisual quanto para os que trabalham

com cinema na educação.

O debate trazido neste capítulo foi apresentado em eventos da área e torna-

-se cada vez mais relevante principalmente nesse momento em que se discute o

impacto de duas novas legislações: a Lei nº 13.006, de 26 de junho de 2014, que

Page 125: Comunicação, audiovisual e educação

Uma pesquisa com filmes para jovens cegos | 123

diz respeito à exibição de duas horas de cinema nacional na escola e também a

Instrução Normativa da Agência Nacional do Cinema (Ancine) nº 116, de 18 de

dezembro de 2014, que trata da obrigatoriedade da audiodescrição nos filmes

com financiamento público (para o acesso de pessoas cegas).

Se entendemos que o acesso à cultura é parte do processo educativo por pos-

sibilitar a ampliação do repertório dos sujeitos, percebemos que essa discussão

aqui trazida apenas se inicia... Muito há ainda para se fazer e se pensar de forma

a integrar os sujeitos cegos em nossa sociedade predominantemente visual.

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA NACIONAL DO CINEMA (Brasil). Instrução Normativa

nº 116, de 18 de dezembro de 2014. Dispõe sobre as normas gerais e

critérios básicos de acessibilidade a serem observados por projetos

audiovisuais financiados com recursos públicos federais geridos pela

ANCINE; altera as Instruções Normativas n° 22, de 30 de dezembro de

2003, n° 44, de 11 de novembro de 2005, nº 61, de 7 de maio de 2007

e n° 80, de 20 de outubro de 2008, e dá outras providências. Diário

Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 151, n. 245, p. 10, 18 dez.

2014.

BENJAMIN, W. O narrador. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e

política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 2. ed. São Paulo:

Editora Brasiliense, 1994. p. 221.

BRASIL. Lei nº 13.006, de 26 de junho de 2014. Acrescenta § 8º ao

art. 26 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as

diretrizes e bases da educação nacional, para obrigar a exibição de

filmes de produção nacional nas escolas de educação básica. Diário

Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 151, n. 121 p. 1-2, 27 jun. 2014.

COELHO, T. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo:

Iluminuras, 1997.

ENGANO. Direção: Cavi Borges. Produção: Cavi Borges e Gustavo

Pizzi. Fotografia: Paulo Camacho e Paulo Castiglioni. Música: Phillipe

Pye. Elenco: Felipe Monaco e Miila Derzet. Rio de Janeiro: [Portas

Curtas], 2015. 1 vídeo (11 min), son., color.

Page 126: Comunicação, audiovisual e educação

124 | Comunicação, audiovisual e educação

FERNANDES, A. H. O Cinema e as narrativas na era da convergência:

modos de consumo, formação e produção de audiovisuais de crianças,

jovens e professores. Rio de Janeiro, 2013. Projeto de pesquisa

institucional da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

JANELA da Alma. Direção: Joao Jardim e Walter Carvalho. Produção:

João Jardim e Flávio Ramos Tambellini. Roteiro: João Jardim e Walter

Carvalho. [Brasil]: [Tambellini Filmes e Produções Audiovisuais], 2001.

1 vídeo (73 min), p&b.

LAROSSA, J. Experiencia e alteridade em educação. Revista Reflexão e

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online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/view/2444/1898. Acesso

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LIMA, F. J. O que é a áudio-descrição e quem a utiliza. Revista

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www.rbtv.associadosdainclusao.com.br/index.php/principal/

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MACHADO, I. P. R. A linguagem cinematográfica na audiodescrição.

Revista Brasileira de Tradução Visual, [s. l.], v. 8, n. 8, 2011.

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contemporaneidade. Revista Casper Libero, São Paulo, ano 11, n. 21,

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– Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,

2015.

RIVERA-LETELIER, H. A contadora de filmes. São Paulo: Cosac Naify,

2012.

Page 127: Comunicação, audiovisual e educação

| 125

7 Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo

Érika L ourenço de Menezes

INTRODUÇÃO

Desenhos animados já encantavam quem os visse antes mesmo do primeiro fil-

me de animação para o cinema. Fossatti (2009) assinala que a primeira anima-

ção produzida freme a freme foi Fantasmagorie, em 1908, por Emile Cohl. Desde

então, pessoas de todo o mundo assistem e desenvolvem as mais diferentes re-

lações com essas mídias. Trago aqui fragmentos de minha dissertação de mes-

trado, cujas reflexões sobre a relação entre um grupo de jovens e os desenhos

animados – a partir de seus relatos – permitiram encontrar uma série de cons-

truções com e sobre o tempo.

Este capítulo trata de pesquisa realizada no mestrado em Educação

(MENEZES, 2017)1 com jovens do ensino médio de uma escola pública federal no

Rio de Janeiro. A metodologia foi construída ao longo do processo de pesquisa,

através de leituras,2 conversas com o grupo de pesquisa e atividades com o pró-

1 Identificados no texto com o nome de seus personagens favoritos, por motivos burocráticos determi-nados pela escola em que a pesquisa foi feita.

2 Uma conversa com Gustavo Fischman. Esse artigo foi realizado pelas autoras Sandra Kretli da Silva, Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni e Jaqueline Magalhães Brum, no ano de 2015. Além de pesquisas com infância e desenhos animados feitas por Adriana Fernandes (2005; 2007; 2012), Raquel Salgado (2006; 2012) e Analice Pilar (2005).

Page 128: Comunicação, audiovisual e educação

126 | Comunicação, audiovisual e educação

prio grupo de sujeitos com o qual pesquisei, além da organização de encontros

nos quais realizamos algumas atividades e conversamos sobre diversos temas re-

lacionados às questões da pesquisa. O desejo de pesquisar juventude e desenhos

animados surgiu de um movimento percebido dentro da escola em que trabalho

e foi fomentado por uma vontade de encontrar nesse grupo uma continuidade

de pesquisas realizadas com crianças anteriormente – que consideramos mes-

ma geração desses sujeitos – como na pesquisa de Fernandes (2012). Pensar em

jovens e desenhos animados, hoje, é também refletir sobre uma relação construí-

da em um tempo de canais exclusivos para desenhos, e o aumento na produção

dessas mídias para TV e cinema nos últimos anos. Nesse diálogo com a pesquisa,

tive como referencial teórico autores dos estudos culturais latino-americanos,

que me ajudaram a refletir sobre cultura e as relações dos sujeitos com a mídia

e a tecnologia.

As leituras transcritas dos encontros com os jovens apresentaram muitas

possibilidades de eixos para as análises. As falas surgidas no contexto da pes-

quisa entremeavam-se, algumas complementavam-se, outras destacavam-se.

Percebemos, então, o tempo como linha de guia e união para a construção das

reflexões que se seguem. Trago aqui um olhar dos jovens sobre o tempo a par-

tir de suas vivencias com os desenhos animados: “tempo livre”, “falta de tem-

po”, “cursos da vida”. E é desse eixo da pesquisa que apresento meu olhar neste

artigo. Destaco que, para preservar a identidade dos jovens sujeitos da minha

pesquisa, optei nomeá-los por nomes de personagens de desenhos animados.

A escolha dos nomes foi feita pelos próprios jovens e, portanto, cada nome de

personagem que aparece no texto refere-se a um jovem participante da pesquisa

tal como Katara, Ash, Dexter etc. como poderão ver a seguir.

“DESENHO ERA A MINHA VIDA”: TEMPO LIVRE DENTRO E FORA DA ESCOLA PELO PONTO DE VISTA DOS JOVENS

Eu era meia viciada porque eu estudava de manhã, aí eu ia pra escola e quando

eu chegava [da escola] não fazia mais nada, só via desenho. Sabe? Comia, tomava

banho e só via desenho não estudava nem nada. (Katara)

Page 129: Comunicação, audiovisual e educação

Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 127

Assim, eu sempre tive TV a cabo, desde bebê. Então eu sempre assisti desenho. Eu

assisti Discovery Kids, eu assistia TV Cultura, TV Cultura é aberto né, mas eu assis-

tia desenhos de bebê e criancinha. E depois já fui pro Cartoon, Nicklodeon etc. [...]

Mas isso acabava que eu era um pouco assim, eu era uma criança muito tímida e eu

não tinha muitos amigos. Então, assim, eu acabava que me fechando no mundo dos

desenhos, e acabava ficando naquilo sabe? Desenho era a minha vida, tá ligado?

Chegava em casa pra ver desenhos e era isso [...]. (Ash)

Assistir a desenhos, para os jovens com os quais pesquisei, era uma ativida-

de comum do tempo em que não estavam na escola. Essas falas – “desenho era

a minha vida” e “eu não fazia mais nada, só via desenho – nos dão a ideia de que

esses jovens, quando crianças, não tinham tempo ou que o tempo fora da escola

era todo ocupado com desenhos. No entanto, é preciso relativizar que essas falas

ditas pelos jovens são “modos de dizerem” que gostam muito de desenhos e que

se ocupavam muito com os mesmos.

Nas oficinas realizadas, surgiram os mais diversos temas, desde as conver-

sas sobre as memórias da infância até a falta de tempo de um vestibulando. Os

encontros trouxeram para esta pesquisa um convite para pensar no tempo. Por

isso, sentimos a necessidade de pensar e refletir um pouco sobre esse tempo fora

da escola, que era preenchido por brincadeiras e desenhos animados. Um tempo

tratado por eles como uma continuação de suas atividades diárias, as quais, pri-

meiramente, não se tinham referido em nenhum momento como tempo livre ou

de lazer, mas, sim, como o tempo depois da escola.

Para esse tempo fora da escola, farei uso do conceito de “tempo livre” ba-

seando-me no sociólogo francês Joffre Dumazedier. Para Dumazedier, Lima e

Ansarah (1994, p. 48), tempo livre é “um tempo que a sociedade, num determina-

do momento de suas forças produtivas, pode liberar para o sujeito social fora dos

tempos socialmente marcados pela obrigação ou pelo compromisso”, e esse tem-

po seria uma conquista dos sujeitos, um espaço de autonomia e aprendizagem.

O momento de “caminhar sem rumo” (DUMAZEDIER; LIMA; ANSARAH, 1994,

p. 49), o tempo de lazer e da imaginação. Esse é um tempo organizado da ma-

neira deles. E sendo assim, aparecem diferentes maneiras de viver esse tempo.

eu via com meus pais às vezes também. Meu pai adora Coragem também. E bob es-

ponja também eu via. Mas eu gostava de assistir sozinho, era tipo o meu momento.

Page 130: Comunicação, audiovisual e educação

128 | Comunicação, audiovisual e educação

Meu ritual. Chegava no quarto e via mais de noite, então, às vezes era pra eu ir

dormir eu fingia que tava dormindo assim, aí eu ligava a TV e ficava assistindo.

Desenho era minha vida. Eu amava muito [...] (Dexter, grifo nosso)

É importante contextualizar a escolha teórica desse conceito através de

Dumazedier, Lima e Ansarah (1994). Esses autores, assim como nos estudos cul-

turais latino-americanos, foca seus estudos em compreender os usos, apropria-

ções, relações e consequências das relações que os sujeitos estabelecem com a

cultura. Elementos que Dumazedier, Lima e Ansarah (1994) vão identificar, na

maioria das vezes, como presentes no tempo do “não trabalho”, o momento do

tempo livre. Dumazedier, Lima e Ansarah (1994) também associam esse tempo

livre como fora do espaço escolar de escola paralela, ou ainda, escola do tempo

livre. Dessa forma, seu conceito vai ao encontro da forma expressa pelos jovens

desta pesquisa – o tempo fora da escola – e, também, valoriza com essa deno-

minação a formação não escolar, podendo dialogar com autores atuais, como

Barbero (2002), que, entende todos os espaços como espaços de aprendizagem e

formação de sentidos.

Dumazedier, Lima e Ansarah (1994), buscando entender a evasão3 escolar no

ano de 1988, realizou uma pesquisa com 1199 jovens franceses, de idades entre

15 e 24 anos. Nesse estudo, Dumazedier, Lima e Ansarah levaram em conside-

ração o calendário escolar da época, composto por 136 dias letivos e 200 dias

de tempo livre (recessos, fins de semana, e férias escolares). Salientando o uso

de mídias como TV e rádio nos momentos de tempo livre (próprios da época).

Como resultado dessa pesquisa, os autores relatam que os jovens identificam o

tempo livre como um espaço no qual desenvolvem autonomia, atividades físi-

cas, criatividade e trato social – seja com a família ou amigos – de maneira mais

aprofundada e satisfatória do que na escola. Essa questão da facilidade de estrei-

tar (aprofundar) relações fora do espaço escolar também apareceu durante as

nossas oficinas. Um jovem relata a importância do tempo durante as ocupações

estudantis de 2016 para construir amizades como as que viviam fora da escola,

pelo tempo para conversas sobre individualidades:

3 Com base um uma pesquisa anterior do Institut Français d’opinion Publique (Ifop), de 1973, que apon-tava que o número de estudantes que abandonavam a escola por falta de interesse e tédio era maior do que o número de estudantes que abandonavam por questões financeiras.

Page 131: Comunicação, audiovisual e educação

Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 129

[...] eu sou mais amigo do pessoal fora do colégio. Não mais amigos, mas são as ami-

zades que eu confio mais. Aqui na escola são poucas pessoas. Não agora porque eu

tô tipo tendo contato. Como a gente na ocupação 24h por dia, você tem um contato

maior, você conhece mais a pessoa fora do horário dela. Porque na escola você pode

fingir ser uma pessoa. Mas pô, passar 24h fingindo ser uma pessoa. Você começa a

descobrir coisas que você não sabia de tal pessoa. [...] E você vai criando amizades

verdadeiras aqui. Então também me ajudou bastante. (Virgil)

Falar sobre suas individualidades para outrem, dentro do processo de cons-

trução de confiança em uma relação de amizade, apresenta, nessa fala, o ele-

mento que difere os amigos com quem se pode contar, dividir problemas e trocar

experiências, das relações construídas pela convivência dentro da escola. Ainda

que para Virgil todos sejam seus amigos dentro da escola, nos poucos momentos

de conversa fora das aulas, não seria possível conhecer alguém tão bem quanto

“fora do horário dela”, no horário em que se é estudante dentro do tempo crono-

metrado da escola.

Para os jovens da pesquisa de Dumazedier, Lima e Ansarah (1994), a escola

seria responsável por ampliar seus conhecimentos sobre o mundo, garantir um

futuro profissional, melhorar sua comunicação e formar cidadãos responsáveis.

O tempo da escola e o tempo livre seriam dois espaços distintos, cada qual com

sua relevância para a formação dos jovens, segundo eles mesmos constataram.

A fala de Virgil mostra que há uma mistura e que não é possível dividir esse tem-

po da escola e tempo livre de forma tão estanque, como o denomina Dumazedier,

Lima e Ansarah (1994). Os autores falam, ainda, de outro contexto de juventude e

de outro contexto tanto da relação dos jovens com a tecnologia quanto do modo

como a escola vive o tempo.

Importante lembrar que a maneira como lidamos e vemos o tempo está

relacionada com o nosso tempo. Quando Dumazedier, Lima e Ansarah (1994)

fizeram seu estudo, não havia a internet com todas as demandas que ela traz

hoje, estreitando o tempo do trabalho e o do lazer num único e mesmo tempo.

Portanto, mesmo sendo muito relevante pensar nesse tempo livre, percebemos

que atualmente o tempo livre é percebido em um contexto totalmente diferen-

te do vivido por Dumazedier, Lima e Ansarah em seu estudo. Mesmo assim, os

autores nos ajudam a pensar a respeito, trazendo discussões que são relevantes

para nossa reflexão.

Page 132: Comunicação, audiovisual e educação

130 | Comunicação, audiovisual e educação

Alguns jovens fizeram relações em suas falas sobre criatividade, elemento

também comum ao tempo livre, segundo Dumazedier, Lima e Ansarah (1994), e

desenhos animados. Para eles, o consumo dos desenhos favorecia a vontade de

criar histórias, brincadeiras e outros personagens. Nos parece que essa rituali-

dade do tempo livre favorece a criação. Seria essa a relação que fazem os jovens?

Você me disse que quer ser designer, que tem alguma ligação com isso? Você quer ser

designer pelo seu envolvimento com os desenhos? (Pesq)

Tem, talvez.... Eu acho que tem na questão do... tipo, quando eu era criança, eu

gostava de tentar desenhar os ... os desenhos que eu gostava, desenhar aquilo no

papel. Eu não conseguia muitas vezes, claro, mas eu ficava inspirado pra desenhar,

e querer desenhar e misturava os personagens... fazia minha história. (Ikki)

Você misturava os personagens? (Pesq)

Sim, eu pegava um personagem de uma história e falava: esse aqui combina com

esse aqui, eles vão fazer um bom trabalho juntos. E aí eu criava minha história, e

eu achava isso bem interessante [...]. De vez em quando, eu pegava um boneco super

aleatório, um soldado, e ficava imaginando em um desenho e fazia minha própria

história. As coisas aconteciam mais na minha cabeça, eu nem mexia as mãos, às

vezes, só ficava imaginando [...].(Ikki)

Na fala de Ikki, podemos perceber a continuidade de atividades. Dos dese-

nhos assistidos, passa-se para os bonecos e para criação de histórias que com-

plementariam as vistas, ou ainda, novas histórias para suas brincadeiras. Tudo

a partir de uma vontade de interferir no que foi visto. Vontade que aqui toma

lugar de motivação para criações durante as brincadeiras em seu tempo livre.

A pergunta que fiz sobre a vontade de formação em designer surgiu, pois, ao lon-

go da conversa, Ikki sempre voltava nesse ponto de gostar de imaginar continui-

dade ou mudanças nas histórias. Essas misturas vividas por Ikki se parecem com

o que traz Fernandes (2003), em sua pesquisa, quando fala das hibridações das

criações pelas crianças. Parece que, nesse aspecto, crianças e jovens não se di-

ferenciam muito. Ambos gostam de hibridar personagens e situações e de criar

novos mundos a partir do consumo que fazem.

Page 133: Comunicação, audiovisual e educação

Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 131

Acho que por conta disso, por conta de querer interferir no desenho, é.... eu acho

que eu comecei a jogar vídeo game. Porque eu via no desenho a possibilidade de

fazer a minha história, sabe? Acho que tem uma ligação muito forte com isso. (Ikki)

A vontade de criar, construída desde a infância, possivelmente traz alguma

influência na carreira escolhida. Além de gostar de desenhar, o jovem falou so-

bre seu gosto por programação e informática e apontou que uma das possibi-

lidades dentro da área de designer mais admiradas por ele é a de designer de

games.4 Uma soma de atividades no seu tempo livre e em espaços formais de

aprendizagem, encontrando um caminho comum em sua formação acadêmica.

O espaço de aprendizagem, colocado por Dumazedier, Lima e Ansarah (1994),

com os jovens, apresenta uma relação de continuidade quando se trata dos dese-

nhos animados. Algo iniciado na infância, apresentando suas marcas em outras

produções ou, ainda, sendo uma atividade comum no tempo livre do jovem.

Barbero (2013) identificou, como Dumazedier, Lima e Ansarah (1994), o es-

paço do “não trabalho” como um lugar de sociabilidades, criatividade e forma-

ção de identidades (individual e coletiva). Todos esses elementos se constituem

como mediações para os sujeitos, e essas mediações populares tomariam lugar

de “resistência intrínseca, espontânea, que o subalterno oporia ao hegemônico”.

(DUMAZEDIER; LIMA; ANSARAH, 1994, p. 268)

Em toda nossa trajetória sobre o tempo livre, podemos observar, primeira-

mente, o lugar de destaque dos desenhos animados dentro das atividades desse

momento do dia, principalmente, durante a infância. Pensando nesse momento

como um lugar de aprendizagens dentro das reflexões de Dumazedier, Lima e

Ansarah (1994) e Barbero (2013), é possível desconstruir o senso comum e com-

preender a relevância das construções – sociais e culturais – estabelecidas nesse

lugar e seus desdobramentos em diferentes fases da vida.

“NÃO EXISTE TEMPO QUANDO VOCÊ É CRIANÇA”: DIFERENTES RELAÇÕES COM O TEMPO

A frase que nomeia esta seção traz a fala de Fiona, quando afirma que o tempo

não existe quando você é criança. Com essa frase simples e singela, a jovem nos

4 Dado revelado em sala de aula.

Page 134: Comunicação, audiovisual e educação

132 | Comunicação, audiovisual e educação

conta que o tempo é criado pelo mundo adulto, pela rotina do trabalho e das

obrigações que você escolhe e que na infância essa rotina é vivida de outra for-

ma. Com o tempo escolhido, surge, também, a “falta de tempo”. Só sente falta do

tempo quem tem consciência da existência dele. A falta de tempo surge também

na fala dos alunos ou como um ritmo paralelo dos mais velhos, quando ainda são

crianças, ou como um dos fatores que reduziram seu contato com os desenhos

ou outras atividades de lazer. A falta de tempo é ainda utilizada para falar do

momento atual que vivem. Mas afinal, o que seria essa falta de tempo? Excesso

de atividades? Uma relação mais responsável sobre o seu tempo? Uma sensação

causada pelo excesso de informações pelas mídias nos dias de hoje? Na conversa

com os jovens, que trago a seguir sobre como assistiam aos desenhos, surgem

ideias relativas ao tempo e seus consumos.

“Você assistia [desenhos] sozinha? Acompanhada?”. (Pesq) “É, eu só via so-

zinha mesmo, porque minha irmã tava sempre ocupada estudando porque ela é

mais velha e tal... é isso”. (Katara) “E você Jimmy, assistia mais desenhos sozinho

[...]?” (Pesq) “Assisti, mas... Eu tenho duas irmãs mais velhas, assistia sozinho por-

que elas já tinham passado essa fase, talvez. Quer dizer, não sei se tem fase, mas sei

lá... elas já tinham parado um pouco. Também os horários não batiam. Assistia

mais de manhã e elas estavam do colégio, sei lá...” (Jimmy)

Essas falas, ainda que se refiram à infância, são colocadas pelo jovem em seu

novo/outro olhar sobre aquele momento. De qualquer forma, essa é a percepção

de que, no mundo adulto, o tempo é algo destinado às obrigações. Os horários

que não batem apontam uma agenda cheia de obrigações. Essa ideia de que o

ver está associado a fases da vida, também chama a atenção. Que tempo vivido

é esse que permite que assistam desenhos numa época e não os permite mais

em outra? Essa percepção já apareceu também em pesquisas sobre infância e

desenhos animados, como na pesquisa de Fernandes (2012), em que alguns de

seus sujeitos falam sobre como como os adultos trabalham “24 horas por dia”5

e que estes só teriam tempo de ver desenho nas férias. Será que eles passaram

da fase de assistir a desenhos no ponto de vista das crianças e também dos jo-

vens? Ou ainda, como diz Hoffmann, quando as crianças dizem que os adultos

que assistem a desenhos parecem crianças. Isso parece-nos trazer a concepção

5 Fala de Thiago, aluno de uma escola particular. Fala contida no livro As crianças e os desenhos animados: mediações nas produções de sentidos, publicado em 2012.

Page 135: Comunicação, audiovisual e educação

Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 133

de que assistir a desenhos seria uma atividade que exige tempo (suficiente para

se aprofundar na atmosfera de um desenho), algo que só as crianças possuem.

Nessa análise, Fernandes (2012, p. 126) fala sobre a relação com o “saber” cons-

truído nesse contexto:

Percebe-se que a maior presença dos meios de comunicação, espe-

cialmente a TV, na vida das crianças favorece a construção de outros

saberes que não os tradicionalmente instituídos na relação entre

crianças e adultos. O fato de as crianças saberem coisas que os adul-

tos não sabem descentra o papel do adulto e também impõem a ele

desafios de que para entender os desenhos é preciso ser também um

pouco criança.

Fernandes (2012) reforça, com essa colocação, o lugar do lazer como lugar

de aprendizagem, e sua pesquisa, mesmo realizada nos anos 2000, pode dialo-

gar com o estudo de Dumazedier, realizado na década de 1980. Fernandes (2012)

apresenta também a relação com a TV, que é um espaço fora da escola, e, ain-

da, apresenta os desenhos animados como lugar de autonomia até mesmo do

mundo adulto (os pais). O que nos resta, dentro do contexto desta pesquisa com

jovens e neste estudo sobre o tempo, é perceber que para ser um pouco criança

é preciso se desvencilhar do relógio como fala uma jovem de minha pesquisa.

“Eu não pensava muito em tempo quando eu era criança. Porque não existe

tempo quando você é criança. Você não fica pensando, você não vê a hora, você

não cronometra. Você não racionaliza”. (Fiona) “É sempre a mãe que fala – Ah,

vem comer [...]”. (Scooby)

É sempre a mãe que tá avisando, você não racionaliza as atividades, eu acho, você

não sistematiza sabe? É justamente o meio adulto, a escola, as instituições sociais

que fazem você ir criando essa coisa... né? De dividir as atividades, de ter obriga-

ção. Quando você é criança você é livre. Você faz o que você quiser, quando você qui-

ser. Eu acordava de madrugada pra ver desenho, pra ver filme. Eu não tinha esse

senso de tempo. (Fiona)

Pela fala da jovem, o tempo, quando se é criança, é o tempo dado pelo adulto

quando diz que está “na hora disso” ou “na hora daquilo”. Falar que não tinha

“esse senso de tempo”, nos remete a alguns questionamentos: como essa racio-

Page 136: Comunicação, audiovisual e educação

134 | Comunicação, audiovisual e educação

nalização do tempo chega com a juventude? Como ela ocorre e quais são seus

desdobramentos? Embora, talvez, possamos perceber pela própria fala dos jo-

vens que essa percepção consciente do tempo é uma construção social, pautada

pelas instituições como a escola e a família, assim como apontou a jovem na fala

anterior. E ainda, mesmo que ela diga que “quando você é criança você é livre”

em relação ao tempo, sua fala já aponta um controle externo do tempo, ou seja,

uma liberdade limitada.

Outro ponto presente nessa fala é que, mais uma vez, pensar no tempo é algo

comum ao mundo adulto. Racionalizar o tempo é se tornar adulto. Perceber-se

dentro das horas do dia e tentar resolver as demandas dentro desse tempo são

processos nos quais a escola, nesse momento específico da vida, exerce grande

influência. Alguns vão organizar seu tempo diante das necessidades movidas

por fatores internos ou externos. Outros irão perceber o “tempo adulto” e irão

transgredi-lo sempre que for conveniente.

Eu estudo tipo, agora por dia, na ocupação, eu tô meio ausentando da ocupação,

mas pra eu dar aquela, aquele gás na UERJ então eu tô estudando assim: tem dias

que eu estudo três horas, tem dias que estudo quatro horas. Tem dias que, eu acho

que eu estudo 6 horas, mas tem aquele tempo em que você dá aquela olhada. (Virgil)

A fala do jovem, embora confusa, apresenta uma tentativa de organização de

seu tempo para buscar “dar conta” de todas as atividades importantes para ele.

O que a fala não revela são características cotidianas de Virgil no espaço esco-

lar. Com boas notas e frequência de visitante, Virgil é famoso entre professores

e estudantes pelo desempenho escolar acima da média. Sua presença em sala

é comemorada por todos de forma amigável e divertida (até mesmo nas redes

sociais). Durante as oficinas, ficou claro para o grupo que suas tardes – em que

ele deveria estar na escola – eram preenchidas com desenhos animados, cuida-

dos com os irmãos mais novos e muitos cochilos. Apesar disso, ele esteve pre-

sente em todas as oficinas e, também, presente de forma intensa, no período

de ocupação da escola durante a greve das escolas e universidades federais no

fim do ano de 2016. Fica claro que ele dedica seu tempo ao que identifica como

mais importante ou motivador para si. Passou para arquitetura em duas grandes

universidades do Rio de Janeiro, com sua organização temporal diferente dos

demais colegas de turma.

Page 137: Comunicação, audiovisual e educação

Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 135

Para Schwertner e Fischer (2012), o movimento de transgressão do “tempo

adulto” seria algo comum a essa geração. Para as autoras, ao pensar nas tem-

poralidades juvenis, não podemos nos desapegar da realidade em que vivem.

Schwertner e Fischer refletem sobre o “tempo presente”, afirmando que esse

presente está regido “cotidianamente por incertezas e mudanças constantes, os

jovens são submetidos a uma exigência de alta performance, de um amplo dina-

mismo; defrontam-se eles com uma ordem de imediatismo”. (SCHWERTNER;

FISCHER, 2012, p. 402) Na fala do jovem, fica claro que ele não persegue uma

rotina “adulta”, destina seu tempo para as importâncias do presente ou de um

futuro próximo.

A falta de tempo como elemento que limita atividades, apareceu na fala de

alguns sujeitos trazendo curiosidade ao grupo e também momentos de identifi-

cação coletiva.

Pesq: Vocês ainda assistem desenho hoje em dia?

Scooby: Não.

Kira: Quando você assistia?

Ash: Acho importante você estar nessa oficina.

Pesq: Por que você não assiste mais desenhos animados?

Scooby: Porque eu não tenho tempo mesmo.

Pesq: Você estuda muito?

Scooby: estou fazendo outras coisas ou prioridades.

Pesq: Você assiste televisão?

Scooby: Também não.

Pesq: Também não, você assiste YouTube?

Scooby: No YouTube é mais música.

Katara: Série?

Scooby: Série é só nas férias que eu assisto

Cosmo: Só seriado brasileiro.

Scooby: Só, também não sou de assistir série, eu assisto mais filmes.

Pesq: Você escuta música?

Scooby: Sim, e desenho só quando eu era pequeno que eu falei na oficina e era

aqueles desenhos que passavam no Bom dia e cia e foi basicamente isso, era basica-

mente esses que eu assistia, e quando passa são os que eu assisto de vez em quando

com o meu irmão.

[...]

Page 138: Comunicação, audiovisual e educação

136 | Comunicação, audiovisual e educação

Pesq: Você gosta mais de ler, de ouvir música, o que você mais gosta de fazer?

Scooby: Ler também eu não estou lendo muito.

A turma ri e fala sobre a falta de tempo de Scooby.

Pesq: Mas, se você tivesse uma semana, em que você falasse assim: ‘Não estou fa-

zendo nada’?

Scooby: Eu iria assistir um filme e iria escutar música, porque música eu escuto

fazendo outras coisas.

Virgil: Eu assisto música vendo TV.

Os jovens falam de não ter tempo e de ter que escolher prioridades. Essa

seria uma das formas pelas quais começam a construir essa noção de tempo?

Quando crianças, são os adultos que escolhem as prioridades da vida deles.

Podemos pensar que, ao poderem escolher quais são as suas prioridades, já de-

monstram que percebem como está sendo essa passagem para o mundo adulto.

O tempo e os usos que fazem dele marcam esse momento.

Você tem tempo livre hoje? (Pesq)

Agora que a gente tá em greve eu tenho tempo livre, rs. Mesmo estudando... por

isso até que eu estudo. Pra preencher meu tempo com o estudo. Mas eu coloco limi-

tes, claro! Eu faço atividade física. Mas quando eu tava na escola, quando a gente

tava tendo aulas normais, eu sentia que eu não tinha assim.... é muito sufocante

[...] (Fiona)

Em poucos anos, deixa-se a infância, na qual o tempo não importa, e entra-se

em uma corrida contra ele. O que mudou então? O que faz essa geração correr

tanto contra o relógio? Para estudantes de ensino médio, vestibulandos, em uma

escola com aulas de segunda a sábado, 13 disciplinas e uma grade horária que

conta com aulas no contraturno, o tempo nunca sobra. O ano de 2016, então,

foi uma grande luta para dar conta das exigências da escola e as horas extras de

estudo para o vestibular. Estudar, ainda que não apareça claramente nas falas

durante as oficinas, é o principal motivo das olheiras e cansaço segundo as falas

dos estudantes no dia a dia de sala de aula. Fazer mais de uma atividade ao mes-

mo tempo, como disseram alguns jovens com os quais pesquisei, poderia assim

ser uma possibilidade para fazer coisas simples, como ouvir música, que se torna

tão valiosa pela necessidade de ter algo que não se parece uma obrigação nesses

Page 139: Comunicação, audiovisual e educação

Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 137

dias tão corridos. No cenário de hoje, passar de ano na escola e passar no vestibu-

lar ao mesmo tempo – para os jovens que almejam e/ou possuem melhor estrutu-

ra familiar e escolar – é mais que uma necessidade, é quase que uma obrigação.

TEMPO, AS TELAS E A ESCOLA: RELAÇÕES SURGIDAS

Além da escola, você acha assim que tudo no entorno, celular apitando toda hora.

As informações chegando mais rápidas, isso também gera uma diminuição do tem-

po? (Pesq)

Acho que sim, porque a gente não fica o tanto tempo no celular assim direto. Mas a

gente fica um pouquinho aqui, um pouquinho ali... de pouquinho em pouquinho,

a gente poderia estar fazendo outras coisas. É uma coisa que ocupa. E a gente fala

que não tem tempo mas a gente tem tempo pra pegar o celular e ver a mensagem

quando toca. Então eu acho que tem a ver com a velocidade das informações. É

muito fácil você ver qualquer informação na internet, você falar com qualquer pes-

soa. Então, fica tudo muito rápido. (Fiona)

Para o uso do celular, o tempo acaba surgindo mesmo em meio às diversas

atividades do dia. Manter os canais sempre abertos é uma prática comum, e, por

vezes, até automática de muitas pessoas, principalmente para os jovens. Nesse

ponto, durante a fala dos jovens, o que me chamou a atenção foi o fato de que

esses elementos – celulares e redes de comunicação – só foram apontados como

possíveis provocadores de falta de tempo quando fiz essa pergunta diretamen-

te. As atividades diárias como escola, cursos e deveres de casa são as que foram

citadas como as preenchedoras do dia. Surgiram, assim, duas possibilidades

para o fato, sem que uma exclua a outra: ou eles não percebem os canais aber-

tos como produtores de um tempo acelerado – pois enxergam estes muito mais

como espaços de diversão e sociabilidade, ou, ainda, por falta de experiências

com outras vivencias com o tempo, não percebem a existência dessa diferença

como acontece com outras gerações. Estar conectado para essa geração sempre

fez parte do cotidiano.

Pensar no tempo, na contemporaneidade, é pensar bastante em como a tec-

nologia influência nas nossas práticas cotidianas. Barbero (2008, p. 70) diz que

vivemos um novo regime cultural baseado na tecnicidade e que “a experiência

Page 140: Comunicação, audiovisual e educação

138 | Comunicação, audiovisual e educação

com o audiovisual transformada pela revolução digital [...] marca a construção

de novas temporalidades ligadas à compreensão da informação”. Barbero (2008)

ainda afirma que todas essas transformações na relação com o tempo trabalham

sempre o presente, o “aqui e agora”, que nos faz pensar na importância do que se

faz naquele instante da vida e, até mesmo, a necessidade de se publicizar tudo

o que é feito, o tempo todo, por meio das mídias. Barbero (2008) fala ainda que

esse movimento desvaloriza o passado e naturaliza o instantâneo, logo, pode-

mos começar a refletir sobre as urgências dos jovens vestibulandos colocadas

anteriormente.

Dentro de todo conceito “tempo livre” desenhado por Dumazedier, Lima e

Ansarah (1994), sua definição, abrangência e suas observações sobre o tema no

cotidiano de jovens estudantes, não só percebemos um aporte teórico impor-

tante para se pensar no tempo fora do espaço escolar, como também refletimos

sobre o tempo livre nos dias de hoje nesse contexto de consumo vivido pelos

jovens de hoje.

Falar sobre tempo livre, em 2016, é falar sobre um tempo em que a tela cabe

no bolso, o uso de mídias não se restringe ao tempo fora da escola. Segundo a

Empresa Brasil de Comunicação (EBC),6 uma criança ou jovem, entre 4 e 17 anos,

passa uma média de 5 horas e 35 minutos por dia em frente à televisão. Hoje, po-

der-se-ia dizer que essas horas são maiores em frente ao celular do que em frente

à TV, fato que as empresas de comunicação nem sempre admitem, o que geraria

uma média de 1.947 horas por ano, quase o dobro apresentado na pesquisa de

Dumazedier, Lima e Ansarah (1994). Sem contar que, para além do uso de tele-

visões, temos os celulares e tablets, nas mais diferentes telas, o que gera um uso

quase que contínuo de mídias. Trata-se de uma época em que o tempo é quase

todo vivido nas telas, sendo tempo livre ou não.

Enquanto a escola proíbe celulares e espera que os estudantes façam uma

atividade por vez, eles já vivem uma realidade de estarem habituados a lidar com

muitas situações ao mesmo tempo. Precisamos refletir sobre como lidar com di-

ferentes relações temporais dentro da escola.

Sposito (2003) apresenta reflexões importantes sobre o que ela nomeia como

“Uma perspectiva não escolar sobre o estudo sociológico da escola”. Para a auto-

6 Pesquisa realizada entre 2004 e 2014, publicada em 2015. Ver: http://www.ebc.com.br/infantil/para- pais/ 2015/06/tempo-de-criancas-e-adolescentes-assistindo-tv-aumenta-em-10-anos.

Page 141: Comunicação, audiovisual e educação

Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 139

ra, pensar em escola hoje é perceber a autonomia dos universos juvenis e como

eles interferem e modificam o espaço escolar e a relação dos jovens com esse

lugar. Dentro dessa perspectiva, Sposito (2003) apresenta a importância de se

pensar e pesquisar os lugares externos presentes no cotidiano dos estudantes,

para compreender essas mudanças, os jovens e pensar em possibilidades a partir

dessas observações.

Trata-se de pensar a escola, quer como unidade analítica quer como

objeto empírico de investigação, em seus elementos não escolares.

Ao se apoiar nos estudos sociológicos sobre a formação dos atores

coletivos – a sociologia da ação coletiva e dos movimentos sociais –

como na investigação sobre os sujeitos no ciclo de vida – a sociologia

da juventude e das relações entre as gerações – a análise dos fenôme-

nos educativos e escolares não se inscreve em um registro único das

sociologias especiais. (SPOSITO, 2003, p. 222)

Assim, todas as questões percebidas pela pesquisa que trago aqui, no con-

texto das temporalidades, apresentam esse lugar externo à escola do qual fala

Sposito (2003). Lugar esse que proporciona diferentes elementos que integram

os modos com os quais os estudantes interagem e interpretam a escola. Nesse

contexto, a forma de lidar com o tempo, se perceber e se colocar, baseado em

suas relações com as mídias – e aqui especificamente com os desenhos anima-

dos – trazem importantes questões para se pensar na escola nos dias de hoje.

A autora ainda nos traz uma importante questão sobre a escola e os espaços ex-

ternos a ela, e também, o que ela representa no cotidiano dos jovens. Ela diz que:

Na ausência de experiências mediadoras entre o mundo da casa e

o universo impessoal da esfera pública, a escola passa a ser o único

território de interações contínuas para adolescentes e jovens, ainda

sob certa proteção do mundo adulto, mesmo que este último apareça

como distanciado e, também, em crise. (SPOSITO, 2003, p. 222)

E é preciso estar consciente dos choques de temporalidades entre alunos e

professores, e a própria estrutura escolar. Possibilitar experiências diferentes

para permitir as diversas formas de lidar com o tempo em um mundo, no qual

a informação está cada vez mais acessível, traz um desafio nada pequeno para

Page 142: Comunicação, audiovisual e educação

140 | Comunicação, audiovisual e educação

a escola. É essa instituição que ainda guarda o lugar da sociabilidade, pois é o

lugar onde, dentro do cotidiano dos estudantes, é possível conviver com mui-

tas pessoas e aprender coletivamente e com as diferenças. A escola é o lugar da

pausa e da concentração. Ainda que também seja o espaço da exigência e de uma

constante corrida contra o tempo. Como aliviar pressões e lidar melhor com o

tempo dentro da escola? Essa resposta todos nós ainda buscamos.

CONCLUSÃO

As análises da pesquisa de campo nos levaram a refletir sobre o tempo. Naquele

lugar, percebemos a importância do tempo livre e o lugar de destaque dos de-

senhos animados nesse momento do dia durante a infância de nossos sujeitos.

Percebemos a importância da autonomia nesse tempo no qual, entre outros

atributos, se desenvolve a criatividade através de brincadeiras e desenhos (sem

se esquecer que ver desenho também faz parte da brincadeira). Contrapondo o

tempo livre, também pensamos sobre a falta de tempo presente nas narrativas

dos jovens. Percebemos como a concepção de “não ter tempo” está vinculada ao

mundo adulto e como os jovens começam a lidar de forma mais consciente com

o tempo, elegendo prioridades e organizações para lidar com todas as suas tare-

fas e necessidades diárias. Perceber o tempo, para os jovens, parece-nos trazer

um amadurecimento, uma passagem da infância para a juventude e para a pró-

xima etapa, a vida adulta. Refletimos sobre como a tecnologia influencia nessa

falta de tempo a partir da narrativa dos jovens, e chegamos à escola.

O lugar do tempo livre, a partir de Dumazedier, Lima e Ansarah (1994), já não

dispõe de todos os elementos do passado. O tempo fora da escola já se transfor-

mou, para muitas crianças e jovens, em um tempo para outras atividades crono-

metradas. A presença de parentes e amigos nesse tempo vem dando lugar aos

grupos em aplicativos de bate-papo em plataformas on-line. O tempo livre perdeu

tempo e pessoas. Enquanto isso, a escola se encontra em uma posição de perda da

centralidade do conhecimento e vive – como evidenciado nesta pesquisa – uma

crise de temporalidades entre diferentes gerações, provocada pela rápida trans-

formação temporal ocorrida nos últimos anos com crianças e jovens, resultado

das mudanças que a tecnologia vem imprimindo em nossa sociedade.

Page 143: Comunicação, audiovisual e educação

Juventude, desenhos animados e modos de viver o tempo | 141

Esta pesquisa, ainda que não trate de algo do cotidiano escolar, segue o ca-

minho apontado por Sposito (2003), de perceber o que trazem os jovens – de seus

cotidianos fora da escola – para suas vivencias e leituras dentro desse espaço.

Percebemos como os jovens desta pesquisa trazem a escola em suas falas, não só

por estarmos dentro dela durante o processo. Falam pela centralidade da escola

em seu cotidiano, dentro das horas do dia, dividindo-o em antes, durante e de-

pois do horário escolar. E também, em como percebem que essa escola poderia

ser diferente. Vejo assim, que é quase impossível pensar em qualquer elemento

da vida de crianças e jovens de forma separada da escola. Chegar a essa percep-

ção só reforça a importância de entender mais os jovens e crianças em seus uni-

versos, para assim, buscar caminhos para o novo lugar da escola na formação e

mediação desses sujeitos.

Entendo como possibilidade para equilibramos as perdas de ambos os espa-

ços – tempo livre e tempo de escola – uma troca mais ampla entre as aprendiza-

gens e as possibilidades de experiências. As pessoas estão nas escolas, e sempre

estarão. Como melhorar a interação e a qualidade das relações estabelecidas den-

tro desse espaço? Precisamos perceber que pessoas fazem parte dessas pequenas

comunidades. Tirando-as da invisibilidade ou passividade dos processos que

constituem esse ambiente. Buscando entender os elementos – principalmente

sobre crianças e jovens – que as compõe para criar possibilidades a partir disso.

Bem como respeitar os limites e diferenças – sejam elas quais forem, e incluo

aqui a diferença temporal – de todos os sujeitos que convivem nesse espaço (es-

tudantes, docentes, dirigentes etc.). A escola é, ainda, o lugar do tempo de pausa,

de reflexão, de saber ouvir a si e aos outros. Algo raro nos espaços em que transi-

tamos nos dias de hoje, raro e importante. Precisamos pensar em caminhos para

melhores usos desse lugar dentro de suas possibilidades e potencialidades.

Sigo buscando conhecer melhor os estudantes que atravessam meu cotidia-

no como professora. Procurando caminhos para pensar em uma escola mais pró-

xima das necessidades que eles trazem de suas vivências. Pensar em desenhos

animados é pensar em um importante traço cultural e identitário que os cons-

titui. Ainda que seja um pequeno passo para entender o universo jovem, todo

passo é importante para uma caminhada.

Page 144: Comunicação, audiovisual e educação

142 | Comunicação, audiovisual e educação

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Page 146: Comunicação, audiovisual e educação
Page 147: Comunicação, audiovisual e educação

| 145

8“Se inscreve no meu canal”: relações entre crianças e YouTube

Thamyres D alethese

INTRODUÇÃO

Este texto traz um recorte de parte dos aspectos que surgiram em minha pesqui-

sa de mestrado em Educação. (DALETHESE, 2017) A pesquisa estava articulada

ao projeto institucional (FERNANDES, 2013) e teve como objetivo investigar as

práticas de consumo e produção audiovisuais de crianças na plataforma de ví-

deos YouTube. A questão principal da pesquisa foi perceber que sentidos cultu-

rais as crianças construíam nas interações com esse ambiente virtual.

Tomei o YouTube como foco do estudo ao perceber a importância que esse

ciberespaço assume nas interações das crianças com o audiovisual e com a cul-

tura em que vivem. Na complexidade de ambientes culturais protagonizados

pelas mídias, o YouTube se afirma como um dos espaços em que os saberes

construídos e compartilhados entre os grupos sociais vão sendo cada vez mais

estruturados pelo consumo de objetos e informações que circulam pelas redes

transnacionais e hipermidiáticas na contemporaneidade.

Para realizar essa pesquisa, busquei indicações de amigos, colegas de tra-

balho e trocas com o grupo de pesquisa pela metodologia da rede para selecio-

nar crianças que fossem atuantes no YouTube. A pesquisa reuniu sete crianças

interlocutoras entre 7 e 12 anos de idade, seis moradoras de diferentes regiões

da cidade do Rio de Janeiro e uma do município de São Gonçalo. As estratégias

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146 | Comunicação, audiovisual e educação

metodológicas empreendidas foram encontros on-line e off-line com cada uma

delas. Busquei encontrá-las em seus ambientes domésticos e em seus canais

no YouTube. Nos casos das crianças que tinham canal aberto no YouTube, esse

meio serviu como fonte prévia de informações para a pesquisa. Das crianças in-

vestigadas, cinco tinham canais públicos no YouTube e duas não, mas tinham

intenções de publicar seus vídeos nesse site.

Diante das mudanças vividas pelas crianças e jovens nos últimos anos

(FERNANDES, 2010), percebe-se cada vez mais uma perspectiva da cultura atre-

lada à comunicação e, entende-se que, para perceber os processos interativos

entre crianças com o YouTube, é preciso olhar mais para o conjunto de media-

ções do que para seus conteúdos. (MARTIN-BARBERO, 1997) Partindo dessa

lógica, é que me proponho a apresentar alguns dos aspectos percebidos nas

produções, nos relatos das crianças e nos contextos de consumo e produção de

vídeos. Dentre os aspectos que as crianças apresentaram em suas produções e

relatos, trago no presente trabalho a perspectiva sobre o YouTube pela lógica do

espetáculo (SIBILIA, 2016) que atua como um dos mediadores nos processos de

consumo e produção de vídeos delas. Junto a isso, destaco os discursos autobio-

gráficos que caracterizam as novas modalidades narrativas que compareceram

com expressividade entre as crianças.

YOUTUBE, UMA VITRINE DE SI

Eu sempre quis ser uma youtuber desde que eu nasci. Quero ser uma youtuber que tenha fãs porque deve ser muito legal cuidar deles. Isso deve ser muito legal!. (Talita, grifo nosso)

Essa frase é do primeiro vídeo que uma das crianças interlocutoras da pesquisa

publicou em seu canal no YouTube. Nele, ela anuncia o início do canal e justifica

o motivo que a levou a abri-lo: a vontade de ser uma youtuber. Burgess e Green

(2009) designam esse termo para sujeitos que são muito ativos no YouTube, mas

para as crianças são as novas celebridades da internet, pessoas que produzem

vídeos para o YouTube e ganham muita notoriedade nesse ciberespaço. Não à

toa, Talita faz essa associação entre ter um canal e ter fãs, pessoas que te sigam

e te admirem e pelas quais se deve zelar, como ela mesma diz. Eu desconhecia a

grande parte dos youtubers que as crianças citaram, mas para elas são como se

Page 149: Comunicação, audiovisual e educação

“Se inscreve no meu canal” | 147

fossem ídolos, pessoas pelas quais as crianças se inspiram, falam com entusias-

mo e admiração. Mas o prestígio que atribuem aos youtubers é pelas narrativas

que produzem ou pelo sucesso atingido nesse ciberespaço?

Eu acho interessante [ter um canal]. Eu vejo muito YouTube também. Aí, eu disse

‘Por que não ter um canal no YouTube?’ Eu posso ter um canal famoso também! Aí,

de repente surgiu. (Yuki)

[Eu gosto] porque no YouTube você vê pessoas famosas. (Alice)

O que essas falas apontam é a percepção que as crianças parecem construir

sobre esses sujeitos que emergem nesse contexto midiático, mas, vale ressaltar,

são minoria. Essa construção do olhar sobre os caminhos possíveis de se trilhar

no YouTube não é à toa. A própria premissa do site com o slogan “Broadcast

yourself” – numa tradução literal significa “transmita a si mesmo” – incita a

uma suposta autonomia de seus usuários para que sejam também produtores

de conteúdos. De modo geral, a dinâmica do YouTube funciona de acordo

com ações interativas que convoca a “expressão comunicativa e curatorial do

público usuário, por meio do que consomem, produzem ou recomendam”.

(BATISTA, 2014, p. 38) E os sujeitos que estão promovendo essa nova forma de

entretenimento para as crianças, divulgando produtos e conteúdos, suscitando

valores e emoções, surgiram no próprio ambiente virtual do YouTube.

As crianças acompanham nas telas usuários comuns produzindo e trans-

mitindo vídeos amadores e observam a evolução de suas produções, o aperfei-

çoamento de técnicas de edição, o crescimento da audiência, de anúncios pu-

blicitários até virarem celebridades. Por usuário comum, entendo pessoas que

produzem vídeos em seus ambientes particulares como a casa ou o quarto, de

forma independente de conglomerados das mídias. O discurso midiático que se

cria e circula nesse ciberespaço – presente desde os youtubers à própria política

do site – é de que chegou a vez da “indústria caseira, de fundo de quintal, feita na

garagem ou no escritório de casa por você, eu ou qualquer um de nós” (SIBILIA,

2016, p. 76) conquistar o seu lugar na tela. As mensagens que se divulgam nessas

redes digitais e interativas são de que todos somos potencialmente criativos e

promissores. Basta estar conectado que somos constantemente convocados a se

mostrar.

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148 | Comunicação, audiovisual e educação

As crianças seguem jovens no YouTube que produzem vídeos que começa-

ram de forma despretensiosa. O que começa como um hobby, uma atividade de

lazer e diversão, como a prática de jogar videogames com amigos, pode se tornar

uma profissão remunerada e bem-sucedida. Como as próprias crianças relatam,

os youtubers extrapolam as fronteiras virtuais do YouTube viram capas de revis-

tas, cadernos escolares, aparecem em programas televisivos, livros. Com a facili-

dade que elas dispõem de algum tipo de recurso de gravação audiovisual, assim

como seus youtubers favoritos, também podem criar suas narrativas e socializá-

-las nas mídias sociais da internet e, quem sabe, também ficar famosos.

Eu já parei pra pensar que o YouTube pode ser uma carreira. Pode ser um trabalho.

Tipo, fazer vídeo pro YouTube e eu ser famosa. Sei lá, ter fãs que gostam de você, que

te apoiam, que compartilham seus vídeos, que te ajudam. Acho que é muito legal.

(Talita)

Essa perspectiva sobre o YouTube pela lógica da fama perpassou em todas

as falas das crianças de alguma forma. Mesmo os que não diziam explicitamente

como Talita o desejo em ser reconhecido no YouTube, deixavam transparecer

que atribuíam valor significativo aos canais com grande audiência e repercussão

nesse ambiente virtual, que tinham como inspiração canais famosos. Podemos

pensar, então, que as narrativas que as crianças criam em suas gravações são me-

diadas, sobretudo, pelo prisma do mercado que nos fala Orozco-Goméz (2009,

p. 174) no qual “construir uma história não é suficiente, deve-se fazer dela um

espetáculo para que seja consumida por mais audiências”.

Samara: Eu sei que falta muito, mas é um sonho né, conseguir a plaquinha do

YouTube!

Pesquisadora: Por que você acha que é legal receber a plaquinha do YouTube?

Samara: Porque eu acho que é o nosso trabalho né, a gente se esforçar, é o nosso

trabalho reconhecido, né! Tipo, como que tem a plaquinha de 100 mil, de 1 milhão

e de 10 milhões. A de 100 mil é de ferro, a de 1 milhão é de ouro e a de 10 milhões é

de diamante!

Como Samara aponta em sua fala, o YouTube premia os canais que alcan-

çam mais de 100 mil inscrições neles. Há um desejo em ampliar o quantitativo

de usuários inscritos em seu canal. Essa política do YouTube parece funcionar

Page 151: Comunicação, audiovisual e educação

“Se inscreve no meu canal” | 149

como uma motivação para produzir e difundir conteúdos. Portanto, ser famoso

no YouTube é atingir números altos de visualizações nos vídeos postados e na

quantidade de inscrições em seu canal. Quando isso ocorre, além do usuário re-

ceber em sua residência uma placa da empresa YouTube, o canal pode ficar em

destaque na página inicial do sítio e aparecer como sugestão em outros canais de

modo a atingir outros usuários. Possuir um canal com notoriedade, ter muitos

inscritos é um símbolo de status porque significa que você está sendo visto, se-

guido por muitos outros nativos na comunidade do YouTube.

Paula Sibilia (2016) reflete sobre esse fenômeno na sociedade contemporâ-

nea que é a exposição voluntária nas telas globais. A publicização dos espaços

que antes eram privados, como a autora contextualiza, é um traço característico

dos novos arranjos de comunicação permeados pelas mídias. As subjetividades

que se constituíam de dentro para fora, agora se constroem de fora para dentro.

O eu que precisava ser protegido, recluso e zelosamente reservado no âmbito ín-

timo e familiar para ser autenticado, agora se desloca para o exterior. Passamos

do retraimento da intimidade burguesa para a euforia da exibição midiática.

Sibília destaca que é preciso primeiro ser visto para depois existir.

A importância que dão para o número de inscritos, visualizações e dos

cliques de “gostei” nos seus vídeos expressa uma ânsia constante de conquis-

tar mais audiência. A visibilidade é o principal objetivo em ter um canal no

YouTube e, por isso, ampliar o quantitativo de visualizações e inscritos acaba

sendo uma expectativa que se constrói ao publicar produtos nesse espaço. Para

Sibilia (2016), a lógica da visibilidade ocorre em meio a um grau de narrativas

midiáticas centradas no eu, na exibição da trivialidade da vida cotidiana. E, nes-

se contexto, o YouTube comparece como grande palco virtual, uma vitrine de si.

Sem dúvida, tal comportamento obedece a uma condição de mercado que

domina o intercâmbio cultural ao redor das telas (OROZCO-GOMÉZ, 2009) que

permeia a atmosfera cultural em que vivemos de que para comunicar é preciso

que os outros nos vejam. Segundo o autor, estamos presos nessa lógica da socie-

dade globalizada de que construir uma história é transformá-la em produto de

mercadoria. Novos dispositivos como YouTube convertem os usuários em auto-

res do próprio ambiente como mecanismo de transformá-los também em pro-

duto mercantil. A tirania do exibicionismo empurra a intimidade do quarto, das

paredes particulares dos lares para as telas globais. Para a autora, o cenário atual

da sociedade se organiza e funciona sob essa lógica. E o YouTube se configura

Page 152: Comunicação, audiovisual e educação

150 | Comunicação, audiovisual e educação

como espaço privilegiado no amplo leque das novas práticas comunicativas que

enaltecem essa ordem.

Se o contexto comunicacional no qual as crianças estão crescendo e se for-

mando sujeitos convoca as personalidades a se mostrarem, essas personalidades

precisam da aceitação do outro por meio de curtidas, comentários, inscrições.

O olhar alheio é o que confirma nossa existência já que os outros também nos

narram. (SIBILIA, 2016) Dentre as crianças da pesquisa, Mateus foi o único que

não mostrava seu corpo e rosto em seus vídeos. No entanto, ele publicava vídeos

que traziam marcas de suas identidades ao transitar entre referências como as

Tartarugas Ninja, personagens de terror, música rap e games. Essa personalida-

de, no entanto, é uma obra criada. Uma obra projetada para ser exibida de acordo

com o que ele espera de aprovação social, do grupo social que ele quer pertencer

na comunidade YouTube.

Samara fez um vídeo para comemorar e agradecer as 30 inscrições em seu

canal e, da mesma forma, Talita fez um vídeo para anunciar que havia alcançado

mil visualizações em seus vídeos, como podemos ver na Figura 1. Esses feitos

merecem ser enaltecidos, destacados e, claro, compartilhados com os demais.

Mais do que se exibir na tela, há uma necessidade em ter um cúmplice, um

admirador. Há nessa busca pela aprovação do outro uma obediência subliminar

a lógica da exposição. Isaac expressou não se importar com o quantitativo de

visualizações de seus vídeos no canal, mas quando comenta de um formato de

Figura 1 – Vídeo publicado no canal de Talita

Fonte: captura de tela elaborada pela autora.

Page 153: Comunicação, audiovisual e educação

“Se inscreve no meu canal” | 151

vídeo muito recorrente em seu canal que ele intitula de “intro”, ele demonstra

certa preocupação em agradar sua audiência.

Eu não ligo muito não para as visualizações. [...] Pras pessoas verem, pra gostarem

do meu canal eu faço vídeo de intro. (Isaac)

Percebe-se pela fala de Isaac como o desejo em atrair outros usuários para o

seu canal o leva a produzir e postar muitos vídeos que ele chama de “intro”, um

tipo de vinheta de abertura para suas produções. Ao mesmo tempo em que ele

subestima a estatística de vezes que seus vídeos foram assistidos, deixa trans-

parecer que há sim um esforço para assegurar a frequência de seus espectado-

res. Na verdade, a busca não é apenas pelo olhar alheio mas, sobretudo, para se

adequar, ser aceito socialmente por uma comunidade. No seu caso, o desejo de

pertencimento da comunidade de consumidores dos jogos Roblox e Kogama que

são os temas que dominam seu canal.

Figura 2 – Vídeo do jogo Roblox publicado no canal de Isaac

Fonte: captura de tela elaborada pela autora.

Diana foi a criança que trouxe com mais expressão a ideia de como as práti-

cas de consumo com o YouTube também dizem muito sobre as formas de legiti-

mar nossa expressão no mundo, de objetivar os lugares que anseiam pertencer.

Page 154: Comunicação, audiovisual e educação

152 | Comunicação, audiovisual e educação

Todos as youtubers teens geralmente têm vinte e poucos anos, e eles sempre falam

de virgindade, da sua primeira vez, do seu primeiro beijo. E uma coisa que eu acho

que eu sempre quis falar também, é um negócio de bullying, esse negócio de homo-

fobia. Porque eu gosto de falar desses assuntos, eu sou uma pessoa que gosta dessa

praia. (Diana, grifo nosso)

Diana deixa claro que, se voltar a ter um canal no YouTube, quer ser da praia

dos youtubers que ela considera teens, pois abordam assuntos mais maduros para

crianças. No entanto, seus vídeos produzidos eram de temáticas diferentes como:

desafios, tutoriais de maquiagem, dublagens de música, histórias com bonecas bar-

bie e brincadeiras com os irmãos mais novos. Sobre esses vídeos, ela disse: “Eu vou

fazer uma coisa mais legal que as pessoas gostam de ver”. Para ela, publicar um vídeo

de uma brincadeira de desafio com os irmãos mais novos é dizer que ela consome

esse tipo de vídeo no YouTube. No entanto, como ela não se reconhece mais como

criança, como apontam suas falas, busca se distinguir dos irmãos mais novos.

Esse aspecto simbólico parte da hipótese de que “quando selecionamos os

bens e nos apropriamos deles, definimos o que consideramos publicamente va-

lioso”. (CANCLINI, 2010, p. 35) A construção da imagem on-line é uma constru-

ção da identidade que visa a uma aproximação de grupos de usuários de um lu-

gar ao qual ela deseja pertencer. Sobre isso, Sibilia (2016) faz um alento de que o

eu que se apresenta na tela são fragmentos selecionados, editados e reordenados

de si. As crianças selecionam fragmentos de si, de suas identidades e criam seus

mosaicos do que querem expor de si.

Se as crianças são motivadas pelo YouTube a produzir vídeos, elas esperam

entrar nas dinâmicas interativas desse ciberespaço e se situar na condição de

consumidores, produtores, seguidores e, logicamente, de “seguidos”. Para tanto,

é preciso fazer vídeos que atraiam audiências, em especial, aquelas que sejam da

sua comunidade de pertencimento.

Penso que, para as crianças, ter um canal significa se apresentar ao mundo,

ou pelo menos ao mundo que você gostaria de participar. E ter baixo rendimento

nesse ciberespaço é ser desaprovado pelo outro. Dialogando com Sibilia (2016),

entendo o canal como uma objetivação do eu. Cada obra são pedaços do show

performático que criam sobre si na web. Podemos entender que essa prática de

narração comum na contemporaneidade caracteriza uma forma de apresenta-

ção, uma performance de si já que estão criando um personagem. O que elas

Page 155: Comunicação, audiovisual e educação

“Se inscreve no meu canal” | 153

são em seus canais é a personalidade construída para ser vista, um personagem

mediado pelas interações sociais estabelecidas nessa comunidade virtual.

Figura 3 – Vídeo de gameplay publicado no canal de Yuki

Fonte: captura de tela elaborada pela autora.

Esses mecanismos de interação com outros usuários no YouTube são

significativos nas produções e publicações das crianças em seus canais. Em uma

das minhas visitas semanais ao YouTube, observei dois comentários novos no

canal de Samara que criticavam a qualidade da imagem de seu vídeo. Uma sema-

na depois, notei que todos os vídeos de seu canal tinham sido apagados sem avi-

so prévio para seus seguidores. Havia mais comentários de outros usuários em

outras postagens interagindo com perguntas sobre jogos, fazendo elogios e pedi-

dos para entrar em seus canais. Porém, dois comentários de desaprovação foram

suficientes para ela excluir de uma vez tudo que havia produzido e postado. Em

nossa conversa, Samara acabou falando desse ocorrido sem eu tocar no assunto.

Eu percebi que estava tendo comentários ruins por causa da qualidade do telefone,

aí agora eu voltei porque eu… Eu pretendo comprar uma câmera, ter tudo de filma-

gem, luz essas coisas, e tentar conversar com meu tio pra ele me ensinar a editar os

Page 156: Comunicação, audiovisual e educação

154 | Comunicação, audiovisual e educação

vídeos, pra ter uma qualidade melhor e a gente conseguir chegar aos 100 mil, né!.

(Samara)

Fiquei me questionando se caso não houvesse comentários negativos, ela

continuaria produzindo e postando vídeos. Se a necessidade em melhorar a qua-

lidade da imagem, iluminação e som em seus vídeos já existia, ou surgiu ape-

nas com as poucas reações nos comentários de pessoas que ela nem ao menos

conhecia em sua vida off-line. Essa categoria apresenta o importante papel do

outro nas relações que se estabelecem on-line. E para satisfazer o olhar alheio,

sua exposição precisa ser construída, por isso, surge uma preocupação em admi-

nistrar a própria imagem on-line para atender aos critérios do outro. Nessas es-

tratégias de cultivo e cuidados com a própria imagem, Sibilia (2016, p. 42) reflete

[...] até que ponto tais comportamentos se naturalizam entre nós,

com uma rapidez inusitada, passando a desempenhar um papel fun-

damental no cotidiano de qualquer um. Afinal, o que se busca ao se

exibir nas redes? Seduzir, agradar, provocar, ostentar, demonstrar

aos outros – ou a alguém em particular – quanto se é belo e feliz, mes-

mo que todos estejam a par de uma obviedade: o que se mostra nes-

sas vitrines costuma ser uma versão ‘otimizada’ das próprias vidas.

O tom informal de conversa, bem-humorado e descontraído que os youtubers

e também as crianças na pesquisa adotam em seus vídeos imprimem a sensação

de confidência, de companhia e aproximação com o outro. Essa sede por olhares,

por manter sua audiência, por estar na tela, o desejo em ser bajulado se aproxima,

na verdade, de uma noção de celebridade. Como Sibilia (2016) aponta, elas não

querem propagar suas obras, ter seus trabalhos reconhecidos e aclamados, como

muitas dizem, elas buscam a aclamação de si mesmas. A busca pelo outro é a

busca em um confidente, alguém para compartilhar os fatos intencionalmente

selecionados e negociados de si, da vida e, por isso, ser aceito.

50 FATOS SOBRE MIM, YOUTUBE E O CONTAR DE SI

Ao prestarmos atenção ao que as crianças dizem em seus relatos e produções no

YouTube, percebemos que a tendência hegemônica que atravessa suas narra-

Page 157: Comunicação, audiovisual e educação

“Se inscreve no meu canal” | 155

tivas com o YouTube são discursos autorreferentes, autobiográficos. O que ob-

servei nas produções é o uso majoritário do gênero narrativo que Lemos (2002)

chama de “ciberdiário”, uma espécie de diário pessoal, porém, aberto na web.

O autor analisa que quando o usuário comum conquista maior liberdade da

grande mídia para produzir e disponibilizar suas obras, ocorre o efeito crescente

da publicização do espaço privado. Isto é, ao exercitar o papel de emissor – pos-

sibilitada pelas novas tecnologias da comunicação – o sujeito traz situações e

interesses particulares para suas criações on-line.

Vejamos os títulos dos vídeos de Talita em minha última consulta a seu ca-

nal: “10 fatos sobre mim”; “Minhas 5 músicas favoritas”; “Minhas 5 séries favo-

ritas”; e ”2 verdades e 1 mentira”. Este último tem a participação de uma amiga

e é um tipo de desafio de contar três episódios de suas vidas, de modo que o

outro precisa descobrir qual é o falso. Ela também publicou um vídeo chama-

do “Medo”, em que contava o que lhe causava medo e os que já havia perdido.

Samara também publicou vídeos nessa mesma linha como os intitulados: “Tour

pelo quarto”, em que mostra cada detalhe de seu quarto; “Se arrume comigo para

a escola”, esse tipo de vídeo ela chegou a publicar quatro vezes; “Meu celular

morreu”; “Passeio no shopping”; “Meus melhores amigos”; e “Minhas capinhas

de celular”. Os títulos dos vídeos são autoexplicativos e trazem conteúdos do que

promovem. Elas duas crianças foram as que mais atualizavam seus canais com

informações e situações da vida pessoal.

Mateus, em meio a publicações de vídeos de gameplay, personagens de fil-

mes de terror e super-heróis – que não deixam de ser marcas de um consumo

identitário – chegou a postar vídeos mostrando fotos suas quando era bebê,

também fez vídeos para mostrar os presentes que havia ganhado de Natal e, em

outro, comentava sobre um livro de extraterrestres que também havia ganhado.

Mas todos esses foram apagados do canal em pouco tempo. Alice fez um vídeo

mostrando sua casa de boneca, fez um vídeo sobre sua rotina em casa, vídeos

brincando com os irmãos. Isaac tem vídeos de sua festa de aniversário, de um

passeio com a família, mostrando uma visita à casa de sua tia, brincando com os

primos. Diana contou que o primeiro vídeo que pretende postar quando tiver seu

canal será “50 fatos sobre mim”, uma forma de se apresentar para as audiências.

Contar ocorrências do cotidiano, exibir objetos pessoais de consumo, divi-

dir informações particulares, eventos familiares são formatos narrativos muito

comuns nas produções das crianças da pesquisa. Se nos atentarmos ao nome

Page 158: Comunicação, audiovisual e educação

156 | Comunicação, audiovisual e educação

“YouTube”, “you” é a palavra inglesa para “você”, e “tube” uma gíria que faz alu-

são à televisão, de modo que sugere que “você é a TV”. Assim sendo, ao con-

vencer os usuários que também podem ser os protagonistas, roteiristas, atores e

autores, “as personalidades são convocadas para se mostrarem”. (SIBILIA, 2016,

p. 48) E, nesse jogo, as crianças trazem para a sua TV elas mesmas, conteúdos

particulares, seus gostos, interesses, sonhos e experiências pessoais. Em uma

cultura da informação baseada na exposição, o YouTube comparece com força

como uma vertente para os usos confessionais na internet. As narrativas audio-

visuais que as crianças produzem e publicam na internet trazem marcas dessa

lógica do espetáculo midiático e sinalizam para a tendência cada vez mais exibi-

cionista, autocentradas e performáticas que alimentam a construção das subje-

tividades. (SIBILIA, 2016)

Figura 4 – Vídeo publicado no canal de Mateus

Fonte: captura de tela elaborada pela autora.

O maior exemplo que encontro nessa modalidade de narrativa são os vlogs,

termo constantemente usado pelas crianças nas nossas conversas. Talita, Diana

e Samara, por exemplo, caracterizavam dessa forma os vídeos que produziam.

Em muitos momentos, as crianças diziam esse termo de maneira natural, che-

gando a usar a expressão ao invés de simplesmente “vídeo”. Vlog é a junção das

Page 159: Comunicação, audiovisual e educação

“Se inscreve no meu canal” | 157

palavras “vídeo” e “blog”, videoblog, que se caracteriza como uma forma de nar-

rativa audiovisual composta por “experiências amadoras, produtos narcisísticos

e exibicionistas” (RECUERO, 2002), com o propósito de publicação nas redes vir-

tuais. São formatos narrativos compostos de imagens, sons e movimentos gera-

dores de conteúdos particulares. Assim como os diários íntimos, o vlog também

se estrutura numa lógica confessional, uma escrita/imagem de si. Mas diferen-

temente dos diários, o vlog não tem cunho introspectivo com conteúdos restritos

e, na maioria, secretos. O que antes era abafado e preservado, agora se estrutura

sob a lógica da visibilidade. A sua narrativa é construída para ser compartilhada

e, por isso, supõe a existência de um público. Portanto, a construção dessa escri-

ta/gravação é interpelada pelo outro na medida em que as curtidas, comentários

e números de visualizações acabam exercendo papel de mediar as construções

dessas obras sobre eles mesmos.

Percebo nesse formato de vídeo o esforço em glorificar a menor das peque-

nezas para torná-las a maior das grandezas (SIBILIA, 2016), em elevar a banali-

dade da vida ao estado de arte pura. (LEMOS, 2002) O que se busca é fazer do

ordinário da vida comum um acontecimento. É possível sentir nessa compulsão

em publicizar o que se veste, o que se come, o que assiste, o que ouve e o que

se compra o sabor das conversas cotidianas, dos assuntos fiados e corriqueiros

do dia a dia. Pormenores sufocados pela velocidade e abundância de fatos e in-

formações que nos passam incessantemente ganham a preferência das narrati-

vas produzidas e compartilhadas no YouTube. Atribuir valor para os pequenos

detalhes que escapam para a maioria como trivialidades reside na importância

em contar a sua história. E narrar no contexto global mediado pelas interações

sociais digitalizadas reside predominantemente em práticas de autoexposição.

NÃO DEIXE DE CURTIR OU CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebi que as crianças são consumidoras midiaticamente ativas nas relações

que estabelecem com o YouTube. Para elas, a plataforma tem um significado

maior que um mero artefato para assistir e publicar conteúdos audiovisuais.

Quando criam conta no Google e fazem login no YouTube, elas podem se inscre-

ver em seus canais favoritos, acompanhar as atualizações dos youtubers, dar like

nos vídeos, comentar, compartilhar em outras redes sociais e até mesmo postar

Page 160: Comunicação, audiovisual e educação

158 | Comunicação, audiovisual e educação

suas próprias produções. São ações que podem se traduzir na formação de redes

de contato, colaboração e cooperação. (BATISTA, 2014) Sendo assim, as crian-

ças encontram no YouTube um terreno fértil para criar vínculos e se afirmar so-

cialmente como sujeitos. Por meio virtual, as crianças incorporam novos papéis

sociais, assumem posições como espectadores, produtores e comunicadores e,

assim, vão construindo seus territórios por meio eletrônico.

Se o consumo de vídeos no YouTube atua na produção e circulação de senti-

dos culturais e simbólicos, as crianças estão se apropriando de mecanismos, lin-

guagens, formatos e conteúdos narrativos inerentes ao furor da espetaculariza-

ção midiática. Por isso, arrisco a dizer que, em geral, parte das interações sociais

que se criam nesse ciberespaço são significativamente mediadas pela noção

do espetáculo. As crianças com um pouco mais de autonomia em suas produ-

ções filmam e postam suas interpretações sobre o que elas já veem no YouTube.

Penso que, como espaço de sociabilidade, as crianças não buscam no YouTube

um meio de apresentar suas experimentações audiovisuais como o próprio site

propaga num suposto estímulo a usuários serem produtores.

As crianças fazem vídeo para postar nas redes da internet, porque elas que-

rem se comunicar com o outro. E se comunicar é dar expressão a formas de ser e

estar mundo. É no intercâmbio com indivíduos e grupos que a vida ganha sen-

tido, que legitimamos quem somos. Sibilia (2016) fala da construção da subjeti-

vidade visível. Comunicar no YouTube é ser visto. Elas querem expressar, apre-

sentar e compartilhar com alguém do outro lado da tela o que pensam, o que

gostam, o que sonham, o que vivem.

Sibília (2016) acredita que no cenário de avidez pelo consumo e produção

de conteúdos íntimos, a narrativa e autor se confundem sendo o narrador a sua

própria obra. O que se mostra é o que se diz, e o que se diz é quem se é. Narrar é se

expor. As infâncias atuais estão se (trans)formando junto com esse ambiente vir-

tual, globalizado e hiperconectado e essas interações provocam outras maneiras

de olhar, de sentir, de narrar. Na sociedade do espetáculo, as crianças narram ao

mesmo tempo em que se mostram e constroem imagens de suas identidades que

são fluidas e plurais.

Page 161: Comunicação, audiovisual e educação

“Se inscreve no meu canal” | 159

REFERÊNCIAS

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e narrativas contemporâneas. 2018. Dissertação (Mestrado em

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LEMOS, A. L. M. A arte da vida. Webcams e diários pessoais na

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MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura

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OROZCO-GÓMEZ, G. O. Entre telas: novos papéis comunicativos das

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Page 162: Comunicação, audiovisual e educação

160 | Comunicação, audiovisual e educação

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SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE COMUNICAÇÃO, 7., 2002, Belo

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http://www.raquelrecuero.com/webrings.pdf. Acesso em: 20 mar. 2017.

SIBILIA, P. O Show do Eu: a intimidade como espetáculo. Rio de

Janeiro: Contraponto, 2016.

Page 163: Comunicação, audiovisual e educação

| 161

9 Professores de artes: a experiência audiovisual como formação e prática

Jamila Guimarães

INTRODUÇÃO

Este capítulo tem como objetivo apresentar um recorte dos achados da minha

pesquisa de mestrado (SILVA, 2017) realizada dentro do projeto institucional.

(FERNANDES, 2013) O objetivo da pesquisa foi investigar os processos formati-

vos dos professores de Artes com o audiovisual. Para discutir essa relação entre

arte e audiovisual e o processo formativo dos professores, apresento uma refle-

xão que relaciona as duas áreas, mostrando o quanto são cada vez mais imbrica-

das na atualidade.

A proposta aqui é investigar as relações de experiência e formação com o

audiovisual que atravessam a vida e a prática do professor de artes. Vale ressal-

tar que o meu entendimento sobre audiovisual abarca os mais diversos suportes

disponíveis como o cinema, filmes baixados da internet, conteúdo acessado em

canais de vídeo – YouTube, Vimeo etc. –, a televisão, redes sociais – compartilha-

mento de vídeos no Facebook, Instagram, SnapChat, WhatsApp –, entre outros.

Para esta análise, terei como base as leituras feitas no grupo de pesquisa sobre

os estudos culturais latino-americanos – Canclini (2005; 2013) e Barbero (2002;

2013) – assim como autores que tratam das questões da arte e do audiovisual.

A pesquisa, de cunho qualitativo, num momento inicial, buscou ouvir e ana-

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162 | Comunicação, audiovisual e educação

lisar as narrativas dos professores através de relato autobiográfico. Tive como

arcabouço teórico para esse momento o conceito de narrativa e experiência de

Benjamin (2012) e Larrosa (2002).

Quando penso a formação do professor de artes, consigo estabelecer um

paralelo com a concepção do “ser artista”. Ao artista associamos a genialidade.

Prefiro pensar no artista como um ser dotado de talento. Talento além da capaci-

dade de produzir algo fantástico, mas talento como a capacidade sensível de tra-

duzir plasticamente as inquietações que nele habitam germinadas por seu am-

biente cultural. Sendo a arte um dos elementos de construção de conhecimento,

cultura e identidade, penso de que forma o professor de artes “se constrói” com

as narrativas audiovisuais que permeiam sua vida.

A ARTE NA/DA DOCÊNCIA: CONVERSAS AUTOBIOGRÁFICAS

Para a metodologia da pesquisa, a organização das questões que me orientaram

não poderia ter uma ordem hierárquica, dessa forma, a melhor forma para orga-

nizá-las foi através do seguinte rizoma:

Figura 1 – Rizoma das relações de formação dos professores

Fonte: elaborada pela autora.

Temos o professor de Artes Visuais como parte de uma estrutura em que ele

– indivíduo, professor, aluno, experimentador, produtor, consumidor, pensador,

Page 165: Comunicação, audiovisual e educação

Professores de artes | 163

criador – compõe uma teia de relações a serem pensadas aqui: com o audiovisual,

seus modos de consumo, produção e formação; o que os levou à prática docen-

te vendo quais seriam os reflexos desses cruzamentos em sua prática. Da forma

como compreendo essas articulações na pesquisa, penso que esses conceitos estão

entremeados, tecendo as histórias e experiências desse sujeito professor. Sendo

assim, optei por elaborar esse rizoma de modo a contemplar essas diferentes pos-

sibilidades de formação. As suas relações de consumo e produção relacionam-se

diretamente com as experiências que esses professores tiveram e têm com as Artes

e com o audiovisual e a partir delas pensam sobre o que é Arte e audiovisual.

Entendo que o primeiro passo para compreender a formação do professor

de artes visuais é conhecer como viveram e pensaram sobre suas vidas até o mo-

mento a partir de suas experiências. Por esse motivo, a pesquisa optou por traba-

lhar de modo autobiográfico com as narrativas dos professores.

Por trazer ao narrador um momento de pausa e reflexão sobre si (DUARTE,

2004), a autobiografia tem também uma dimensão formativa. Autores como

Souza (2007, p. 61) assinalam a narrativa autobiográfica como “método para a

compreensão do percurso de vida do professor como metodologia de pesquisa,

pois intercambiar experiências é um processo de conhecimento com potencia-

lidade formativa”. Além disso, a narrativa autobiográfica como metodologia de

pesquisa deu-se principalmente pela compreensão de que os espaços de forma-

ção se dão também na academia e na escola, mas não apenas nesses. Como, a

partir dos autores que serviram de arcabouço teórico para essa escrita, penso a

formação como processo contínuo que atravessa as mais diversas instituições –

escolares, acadêmicas, sociais, virtuais, culturais, artísticas etc. – essas leituras

ajudam a perceber a “formação como percursos rizomáticos que se multiplicam

e problematizam-se a partir do reconhecimento do não-aprender, do não-conhe-

cimento também como lugares de formação buscando, com isso, desestabilizar

esses pensamentos quase naturalizados”. (SÜSSEKIND; FERRAÇO; OLIVEIRA,

2015, p. 4, grifo dos autores)

Os atores desta pesquisa são quatro professores de artes. Era um grupo bas-

tante heterogêneo no que diz respeito à faixa etária tendo o mais jovem 28 anos

e o mais velho 56 anos. No entanto, o grupo é mais homogêneo no tempo de ex-

periência como professor porque todos têm em média dez anos de experiência e

atuam na rede pública de educação. À exceção de um professor, todos trabalham

com ensino fundamental.

Page 166: Comunicação, audiovisual e educação

164 | Comunicação, audiovisual e educação

A busca pelos sujeitos da pesquisa deu-se através de contatos de integran-

tes de um grupo de pesquisa, de redes sociais – página do Facebook do grupo

de professores de arte – e contatos pessoais em eventos como o da Associação

Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) Sudeste e o evento

no Museu de Arte do Rio (MAR). Tivemos um número pequeno de professores,

mas os achados foram significativos, pois a pesquisa pôde ser realizada com mais

profundidade, atenta ao percurso individual desses professores. Identificar os

sujeitos por seus nomes foi uma decisão acertada e autorizada pelos professores.

No diálogo com Walter Benjamin (2012), em sua concepção de narrativa e ex-

periência, entendo que, do ponto de vista desse autor, a narrativa pode ser com-

preendida como o relato de uma história carregada de investimentos simbólicos.

A palavra “experiência” tem sua raiz no latim, e significa “passagem através do

perigo”. Essa passagem traz ao sujeito uma aprendizagem. A essa aprendizagem

podemos associar a ideia de experiência de que nos fala Benjamin comentado

por Larrosa (2002, p. 25-26), em que “a experiência é aquilo que ‘nos passa’, nos

toca, ou que acontece, e ao nos passar, nos forma e nos transforma” e, pensando

que o sujeito deve se mostrar sensível a vivências outras, complementa: “somen-

te o sujeito da experiência está aberto à sua própria transformação”. (LARROSA,

2002, p. 26) Essa sensibilidade é uma forma de mobilização poética do sujeito em

relação ao nosso cotidiano, pois

a experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque,

requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos

tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar

para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais

devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos deta-

lhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade,

suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza,

abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a

lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito,

ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2002, p. 24)

Para Benjamin (2012), as palavras não são ingênuas, elas definem uma rela-

ção de essência entre a história, carregando-a com investimentos simbólicos. Ao

narrar sua própria vida, o narrador revisita suas memórias, seus marcos, suas ex-

periências, organizando-as de uma forma compreensível a ele mesmo e a quem

o ouve. Dessa forma, o narrador elabora e reelabora sua própria história, cria um

Page 167: Comunicação, audiovisual e educação

Professores de artes | 165

roteiro no qual – tal qual um diretor de cinema que decide os cortes e duração de

uma cena, ou um pintor que, através do uso da luz e da sombra, consegue desta-

car um elemento específico da obra – decide quais fatos são relevantes ao pon-

to de serem mais bem desenvolvidos em sua trama narrativa e quais merecem

menos destaque. Essas leituras ajudam a pensar que a cultura enquanto eixo

formador da identidade do sujeito está diretamente relacionada às experiências

vividas por esses professores.

FORMAÇÕES DOS PROFESSORES

Nesse momento, minha intenção foi tratar das formações dos professores en-

trevistados pensando essa relação especificamente a partir de seus consumos

culturais para, dessa forma, pensar suas trajetórias.

Tenho aqui a intenção de abordar as múltiplas possibilidades formativas dos

professores, por isso uso o termo “formações” no plural, pois entendo que os su-

jeitos se formam em diversas instâncias que não se restringem apenas às acadê-

micas. As pesquisas de (FRANGE, 2009; LOPONTE, 2011; NEITZEL; CARVALHO,

2013; SOARES; ALVES, 2011; SOARES, 2010 entre outros) apontam para essa di-

reção de uma formação de caráter mais amplo, que entendem que todos os es-

paços são potências formativas. Recorro a este trecho de Luciana Loponte (2011,

p. 42, grifos da autora) para ilustrar esse entendimento:

Acredito que um grupo de docentes em formação não é um ponto

de chegada e a ético-estética que o constitui, uma ética que adjetivo

como ‘artista’, pouco tem a ver com a arte das ‘obras-primas’ e sua in-

suspeitada originalidade cristalina. Assemelha-se mais àquela arte

que se assume como esboço, como rascunho contínuo, como

busca de estilo, como experimentação, como resultado árduo e

quase infinito de trabalho do artista sobre si mesmo. Uma arte

que se aproxima mais do que chamamos hoje de arte contemporâ-

nea, avessa a rotulações, legendas definidoras, sentidos fechados,

rompendo com fronteiras de materiais, técnicas e temáticas. Para

Bauman (2009, p. 99), fazer da existência uma ‘obra de arte’ nesse

mundo líquido-moderno é ‘viver num estado de transformação per-

manente, autorredefinir-se perpetuamente tornando-se (ou pelo

menos tentando se tornar) uma pessoa diferente daquela que tem

sido até então’.

Page 168: Comunicação, audiovisual e educação

166 | Comunicação, audiovisual e educação

Atribuir a metáfora do esboço e do rascunho à formação – acredito que não

apenas a docente – nos ajuda a entender como esse caminho não é único e como

ele não possui um ponto de chegada. Nossa formação se dá através de erro e

acerto, fazer e refazer, escrever e reescrever, desenhar e redesenhar, numa ação

contínua que nos constrói enquanto sujeito e enquanto profissional, embora

uma função não esteja apartada da outra.

A busca pelo conhecimento dá-se por diversas vias e uma delas é pelo acesso

aos bens culturais. (NEITZEL; CARVALHO, 2013) O acesso a esses bens, a intera-

ção com eles, sua apropriação e relação contribuirão para a formação estética dos

professores de arte já que segundo Vygotsky (2013, p. 234 apud SOARES, 2010,

p. 2) “como toda vivência intensa, a vivência estética cria um estado muito sen-

sível para as ações posteriores e, naturalmente, nunca passa sem deixar marcas

em nosso comportamento posterior”. Como um profissional que possui estreita

relação com a imagem, é essencial pensar as esferas em que se dão sua formação

estética, pois é a partir dela/com ela que sua prática pedagógica será norteada.

Rosália Duarte e João Alegria questionam como se faz a formação estética de

espectadores (2008, p. 74) para pensar a construção do gosto pelo cinema, mas

penso que a pergunta se aplica à formação estética e de gosto de uma forma ge-

ral. Os autores usam o pensamento de Bergala (2002 apud DUARTE; ALEGRIA,

2008) para ajudar a formular uma resposta ao seu questionamento. Este diz que

o gosto não se ensina como dogma, tratando-se de “uma disposição que se forma

lentamente, pouco a pouco, por imersão e experimentação, em ambientes em

que existam obras de arte cinematográfica e nos quais estas sejam valorizadas

como objeto de fruição”. (BERGALA, 2002 apud DUARTE; ALEGRIA, 2008, p. 74)

A partir do entendimento sobre o que esses autores me dizem sobre forma-

ção e formação estética, trago a seguir um dos aspectos mais interessantes que

pude observar na narrativa dos professores, que diz respeito à formação como

uma busca.

BUSCA CULTURAL COMO FORMAÇÃO

Nesse momento, é importante esclarecer a ideia de “consumo” que pretendo

abordar e, para isso, trago o entendimento que Canclini (2005) nos dá sobre esse

conceito, de não compreendê-lo apenas como uma ação irrefletida, mas como

uma forma de identificação e pertencimento social e cultural. Em um mundo

Page 169: Comunicação, audiovisual e educação

Professores de artes | 167

globalizado, no qual as fronteiras estão cada vez mais se diluindo, e nos inserin-

do numa sociedade cada vez mais heterogênea,

[...] encontramos códigos que nos unificam, ou que ao menos per-

mitem que nos entendamos. Mas esses códigos compartilhados são

cada vez menos os da etnia, da classe ou da nação em que nascemos.

Essas velhas unidades, quando subsistem, parecem se reformular

como pactos móveis de leitura dos bens e das mensagens. Uma

nação, por exemplo, a esta altura é pouco definida pelos limites ter-

ritoriais ou por sua história política. Sobrevive melhor como uma

comunidade hermenêutica de consumidores, cujos hábitos tradicio-

nais levam-nos a se relacionar de um modo peculiar com os objetos e

a informação circulante nas redes internacionais. Ao mesmo tempo

encontramos comunidades internacionais de consumidores [...] que

dão sentido de pertencimento quando se diluem as lealdades nacio-

nais. (CANCLINI, 2005, p. 67, grifo do autor)

Existem formas de consumir que aproximam as pessoas de seus pares

criando códigos de aproximação, conforme veremos adiante com as falas dos

professores. O consumo é entendido aqui não apenas como a aquisição de bens

materiais, mas do acesso/participação de ambientes, lugares, leituras, aprecia-

ções que permeiam a identidade dos sujeitos enquanto professores de arte, que

caracterizam ainda modos de circulação. Trata-se de um consumo como forma-

ção. Essa circulação é importante para pensarmos que a promoção de acesso a

diferentes bens culturais rompe com o conhecimento hegemônico. Dentro dessa

temática, o questionamento levantado aos professores foi sobre os critérios para

escolherem o que veem, leem, assistem, visitam, enfim, aquilo que se relaciona

ao consumo de bens culturais. Alguns professores deram respostas a linguagens

específicas como cinema e exposições, outros falaram de forma mais generaliza-

da. Tentarei fazer um apanhado geral do que eles me disseram.1

1 A coleta dos dados se deu por entrevista presencial, gravada em áudio e transcrita pela autora. Os professores assinaram uma autorização para participação na pesquisa relacionada à questão ética, na qual eram esclarecidos sobre a possibilidade de as informações dadas poderem ser divulgadas nos mais diversos meios e onde deveriam assinalar a opção de revelar seus nomes ou não.

Page 170: Comunicação, audiovisual e educação

168 | Comunicação, audiovisual e educação

A temática do filme, diretor. Diretor e temática, isso me prende. [...] Ah, eu gosto

de cinema de artes e cinemas voltados à temática LGBT, essas questões de di-

versidade de orientação sexual, até porque eu trabalho isso na escola com alu-

nos, então eu procuro ver, procuro participar de movimento social, eu gosto de ver

como é que as pessoas têm esse olhar, como isso está sendo mostrado. [...] Exposição

sempre o que tem no CCBB, no MAR – hoje, né? – e no MAM eu vou independente

do que seja até pra ver o que está acontecendo em termos de artes plásticas.

No Oi Futuro, também, como agora tem uma exposição lá de mídias. [...] E até pra

indicar também para aluno, porque quando eu vou à exposição, eu indico

pros meus alunos. (Antônio, grifos nosso)

[Filme] Geralmente eu escolho pelo enredo, né? Quando eu leio a sinopse ou en-

tão quando leio também algum comentário, alguma crítica, ou então... Pelo

diretor, pelo ator também. Varia. Exposição também, vai de acordo com as obras

que estão sendo expostas. O artista às vezes é um artista que é desconhecido por

mim aí me desperta interesse de repente pelo enfoque que tem a obra daquele ar-

tista e surge a curiosidade de conhecer e às vezes também é em relação ao trabalho

porque alguma coisa que eu estou trabalhando com alunos eu acho interessante

ver, ou então levar os alunos, então preciso ir antes pra conhecer, também varia!

(risos). (Sobre o que lê) Varia do momento e do interesse mesmo de ocasião, assim...

às vezes da necessidade também (risos). [...] Antes de eu entrar pra faculdade de

artes eu já visitava exposições. Não com a frequência que eu faço hoje, mas já visi-

tava, inclusive visitava às vezes com amigos, colegas de escola. Eu acho, (ênfase) eu

acho que tenha sido algo que foi despertado pela escola também. (Rosiane, grifos

nosso)

(Risos). Acho que não tem nenhum critério na verdade. A gente escuta de Adele a...

Sei lá, Smashing Pumpikins. [...] Tem coisas que acho que me atraem mais

que as outras de modo muito natural, [...] Eu acho que eu levo muito em con-

sideração o que falam sobre as coisas, então, por exemplo, se vai sair um filme

a primeira coisa que eu faço é ir no Google, digitar o nome do filme no Metacritic

que é um site que soma os índices de avaliação pra ver quantos pontos tem. Então,

tem uma relação com essa crítica muito forte. Tem uma relação muito forte

com o que as pessoas indicam. [...] Claro que eu tenho gostos, então, no campo da

música particularmente eu não sou muito fã de música brasileira, é difícil eu ou-

vir alguma coisa, mas eu já adoro música eletrônica, adoro músicas que envolvam

eletropop, rock, coisas assim. Adoro ouvir coisa ruim também, que é sei lá, Inês

Page 171: Comunicação, audiovisual e educação

Professores de artes | 169

Brasil, coisas que a gente sabe que são ruins, mas fazem a gente rir. Acho que te-

nho uma tendência muito forte para o humor também, entendeu? Tanto pra

cinema quanto pra música quanto pra tudo, mas um humor mais ácido. Agora

pras artes visuais, por exemplo, como é uma coisa que eu trabalho, eu tento ter

um olhar muito amplo. Então, sei lá, eu adoro pintura, mas eu acho mais fácil

encontrar um bom trabalho de pintura do que um bom trabalho de performance.

Como eu trabalho com curadoria eu tento me obrigar a ver tudo, entendeu?

E tento não ter pré-conceitos em relação a isso. Só que é claro que eu acho que

alguns trabalhos têm uma linguagem supostamente mais tradicional me atraem,

entendeu? E acho que acabo sendo guiado por esses gostos. (Raphael, grifos nosso)

Eu acho que sou muito de momento. [...] Eu tenho momentos que eu estou mais ro-

mântica, mais cult, tem momentos que eu estou muito aérea e aí nessa coisa do mo-

mento, às vezes rola uma busca mesmo de ‘ah, eu quero buscar uma leitura mais

mitológica, mais ligada à mitologia’. Ou eu quero buscar uma leitura mais ligada

à ficção. Eu sinto que eu tenho um pouco de momento. Mas eu sempre me vejo

buscando coisas que eu posso trabalhar com as crianças. [...] Então, às vezes,

eu estou trocando de canal na televisão e aí tá passando um desenho animado. Aí

eu paro, vou ler sobre o que é aquele desenho animado, quanto tempo ele tem e, às

vezes, eu começo a assistir ‘caramba, esse tema dá para trabalhar com os alunos’.

[...] Às vezes, estou passando de canal e vejo que dá pra linkar com alguma coisa, eu

paro de fato pra assistir. Mas a minha busca mais individual, fora da questão

do que eu posso usar na escola, eu acho que ela tem muito a ver com o momento,

e às vezes eu me forço a ver ‘ah, isso aqui é sobre arte’, então eu vou parar e

vou ver. Às vezes me prende, e às vezes não. Às vezes, eu acho chato e dispenso. Mas

eu tento sempre estar ligada na arte. [...] O primeiro (critério) é muito emotivo

mesmo, de exposição é muito emotivo: um artista que eu goste; um tema que

me interesse; às vezes eu nem sei direito quem é o artista, mas eu sei que o

tema é um tema do meu interesse, então eu pego e vou, faço um esforço pra

ir. E também que eu posso usar com os alunos. Tem um exemplo muito recente

que foi Frida Kahlo. Eu não sou muito fã, mas numa aula no PEJA eu resolvi falar

sobre ela e... Falei e senti um interesse muito grande dos alunos e por isso eu me

interessei em ir à exposição. Então dentro de arte tem a ver com isso: o afetivo

e o que eu posso trabalhar com os alunos. (Thaís, grifos nosso)

Pode-se notar que o consumo desses professores está associado a uma bus-

ca, como podemos perceber na fala da professora Thaís: “[...] eu sempre me vejo

Page 172: Comunicação, audiovisual e educação

170 | Comunicação, audiovisual e educação

buscando coisas que eu posso trabalhar com as crianças [...] A minha busca mais

individual [...] tem muito a ver com o momento, e às vezes eu me forço a ver ‘ah, isso

aqui é sobre arte’, então eu vou parar e vou ver”. A “busca” nesse contexto pode

ser entendida como procura, e como ir a algum lugar e trazer de lá o conheci-

mento ou vivência que o professor entende como necessário principalmente à

sua prática profissional, como eles mesmos dizem. Mesmo quando o consumo

é atribuído a um viés pessoal, aquilo que eles encontram em suas buscas acaba

refletindo nas suas práticas como é o caso do professor Antônio, cujo interesse

pessoal pela temática LGBT reflete-se nos usos que faz do audiovisual em sala de

aula. Como nos aponta Nóvoa (1992, p. 13),

a formação não se constrói por acumulação (de cursos, de conheci-

mentos ou de técnicas), mas sim através de um trabalho de reflexivi-

dade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma

identidade pessoal. Por isso é tão importante investir a pessoa e dar

um estatuto ao saber da experiência.

Dentro desse contexto, os professores buscam suas experiências estéticas –

e, consequentemente, formativas – levados também pela relação com o trabalho,

como nos dizem os entrevistados Rosiane e Raphael, respectivamente: “às vezes

também é em relação ao trabalho”. “Como é uma coisa que eu trabalho, eu tento

ter um olhar muito amplo”.

Observando o que os professores contam, é possível perceber que em relação

ao consumo de Arte – idas a exposições, museus, galerias – existe forte incli-

nação a associar isso às suas práticas profissionais, ou seja, como eles podem

utilizar esse conhecimento com os alunos ou, no caso do Raphael, na crítica de

Arte. Para isso, apesar de terem seus gostos e preferências, no que se relaciona a

exposições e práticas artísticas, não existem embarreiramentos no processo de

escolha do que visitar, mantendo o olhar atento a todas as possibilidades artísti-

cas, já que entendem que sempre pode haver uma porta para que seja trabalhada

em sala de aula ou para indicar aos seus alunos (Antônio, Rosiane e Thaís). É in-

teressante perceber que ao pensar em indicar ou levar os estudantes a visitarem

exposições, os professores estão preocupados também em ampliar seus repertó-

rios culturais, promovendo acesso a outros códigos de linguagem. Segundo Ana

Mae Barbosa (2012, p. 34), “o canal de realização estética é inerente à natureza

Page 173: Comunicação, audiovisual e educação

Professores de artes | 171

humana e não conhece diferenças sociais”. Ao indicarem exposições aos alunos,

esses professores potencializam a formação de seus aprendizes, ascendendo à

condição de cidadão. (CANCLINI, 2005) Ainda segundo esse autor:

Estas ações, políticas, pelas quais os consumidores ascendem à con-

dição de cidadãos, implicam uma concepção de mercado não como

simples lugar de troca de mercadorias, mas como parte de interações

sociais mais complexas. [...] O consumo é visto não como mera pos-

sessão individual de objetos isolados mas como apropriação coletiva,

em relações de solidariedade e distinção com outros, de bens que

proporcionam satisfações biológicas, que servem para enviar e rece-

ber mensagens. (CANCLINI, 2005, p. 70, grifo nosso)

Podemos pensar que existe um aspecto formativo do professor na intenção

de formar o outro, pois nesse gesto se reflete a sua própria formação, já que, ao

indicar uma exposição, ele o faz a partir da experiência que teve com a mesma.

Adriana Fresquet (2013, p. 46) afirma que a formação do professor é fun-

damental e, para isso, é preciso investir em hábitos de leitura, cultura e gosto

pelas artes. A autora coloca que o bom professor deve ser um bom “passador”,

de acordo com Alain Bergala e Serge Daney. (FRESQUET, 2013) “O passeur é

alguém que dá muito de si, que acompanha, e em um barco ou na montanha,

aqueles que ele deve conduzir e ‘fazer passar’, correndo os mesmos riscos que

as pessoas pelas quais se torna provisoriamente responsável”. (BERGALA, 2006

apud FRESQUET, 2013, p. 47, grifo nosso) Percebe-se que os professores têm in-

ternalizado dentro de suas práticas essa ideia do passador, ainda que essa ação

ocorra de modo instintivo, ao tentar aproximar outras visualidades, seja den-

tro da sala de aula, seja fora dela, do cotidiano de seus estudantes. Acredito que

isso fica claro na fala do professor Raphael, quando ele diz não ter pré-conceitos

acerca das coisas, pois penso que uma educação realmente emancipadora em

artes deve ser livre de padrões e julgamentos preestabelecidos. Ainda sobre o

professor Raphael, existe uma fala dele que nos faz refletir sobre o que são nos-

sas experiências quando ele diz existirem coisas que o atraem de modo muito

natural. Ora, o que seria esse modo natural? Esse natural não é também uma

construção social adquirida através de nossas experiências? Segundo Benjamin

(2012, p. 128), as peças do patrimônio humano são as que nos tornam ricos em

Page 174: Comunicação, audiovisual e educação

172 | Comunicação, audiovisual e educação

experiências, é através delas que experimentamos esteticamente e isso é experi-

mentar o mundo.

A EXPERIÊNCIA DO AUDIOVISUAL EM SALA DE AULA

A pesquisa teve como objetivo perceber, principalmente, as relações dos profes-

sores de artes com o audiovisual no sentido de formação e produção. No decorrer

da pesquisa, percebi vários usos do audiovisual feitos pelos professores de artes

que nem sempre visavam apenas a produção. O contato com esses professores

trouxe a diversidade de possibilidades existente em suas práticas. Destaco aqui

um dos usos feitos pelos professores que possui relação direta com o pensamen-

to da experiência como processo de formação de sujeitos.

Como parte desse processo de formação, é necessário um momento de apre-

ciação e fruição, ou seja, a sensibilidade estética está diretamente ligada às con-

dições sob as quais os sujeitos têm contatos com diferentes produções imagéti-

cas, conforme nos afirma Ana Mae Barbosa em diversos textos quando aponta

essa necessidade para o professor de artes.

A artista Fayga Ostrower, em seu livro Criatividade e processos de criação

(2007), nos apresenta um enfrentamento ao problema da criatividade enquanto

reflexão teórica e como experiência vital da artista, cabendo aqui como supor-

te para análise já que os sujeitos aqui investigados, sendo professores de Artes,

atuam nesses dois campos: o de reflexão e o da prática artística.

Ostrower (2007) nos permite entender o potencial criador do ser humano

como elaboração através do trabalho. Ela nos diz que “a criação se desdobra no

trabalho porquanto este traz em si a necessidade que gera as possíveis soluções

criativas. Nem na arte existiria criatividade se não pudéssemos encarar o fazer

artístico como trabalho, como um fazer intencional produtivo e necessário que

amplia em nós a capacidade de viver”. (OSTROWER, 2007, p. 31) Assim, podemos

compreender que o trabalho artístico demanda certa compreensão dos limites

e possibilidades dentro do fazer, ou seja, da produção. Como nos diz a autora,

Toda atividade humana está inserida em uma realidade social, cujas

carências e cujos recursos materiais e espirituais constituem o con-

texto de vida para o indivíduo. São esses aspectos, transformados em

valores culturais, que solicitam o indivíduo e o motivam para agir.

Page 175: Comunicação, audiovisual e educação

Professores de artes | 173

Sua ação se circunscreve dentro dos possíveis objetivos de sua época.

Assim, o conceito de materialidade não indica apenas um determi-

nado campo de ação humana. Indica também certas possibilidades

do contexto cultural, a partir de normas e meios disponíveis. Com

efeito, para o indivíduo que vai lidar com uma matéria, ela já sur-

ge em algum nível de informação e já de certo modo configurada –

isso, em todas as culturas; já vem impregnada de valores culturais.

(OSTROWER, 2007, p. 43)

Entendo a materialidade da qual nos fala a autora como as produções huma-

nas – não apenas as artísticas – e, a partir desse entendimento, podemos mais

uma vez perceber como o meio em que vivemos influencia nossas práticas, favo-

recendo – ou não – possibilidades de formação estética e humana.

No cotidiano do trabalho em escola, percebo como o audiovisual é utilizado

nas aulas – aqui não trato especificamente das aulas de Artes, mas de todas as

disciplinas e em todos os segmentos – como um momento de descanso do pro-

fessor. Nessa pesquisa, não foi diferente. É notoriamente sabido o desgaste físico

do profissional de educação principalmente no nosso contexto social e, como

seres humanos, o descanso deve se fazer presente, mas o uso seja do filme ou do

vídeo tem aqui o sentido não apenas do “parar de falar”, mas também de obser-

var as reações dos estudantes mediante a imagem que se apresenta a eles, con-

forme nos aponta o professor Raphael. Quando Larrosa (2002) compara o saber

da informação com o saber da experiência, é possível estabelecer um paralelo

com esse momento específico da aula: quando o professor fala, e quando o estu-

dante assiste ao vídeo/filme, quando existe a possibilidade de que algo aconteça

a ele quando assiste àquele conjunto de imagens. Esse momento do assistir tor-

na-se um momento de pausa, um momento de deixar-se permitir experimentar

outra sensação ou transferir-se para um espaço outro que não o da sala de aula.

Ou seja, nas palavras desse autor, “o sujeito da experiência se define não por sua

atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibili-

dade, por sua abertura”. (LARROSA, 2002, p. 24) Além disso, o professor Raphael

sente que

Os alunos prestam mais atenção do que a projeção de imagens, tipo slide, Power

Point, o vídeo cria... O cinema tem essa coisa de todo mundo querer ver, debater,

Page 176: Comunicação, audiovisual e educação

174 | Comunicação, audiovisual e educação

querer falar se gostou ou não gostou tipo um YouTube da vida. E eu fazia isso que

era um modo de eu descansar também na aula.

O momento de pausa também é percebido na fala da professora Thais quan-

do fala do cineclube como um espaço em que os alunos aprenderam a agir dife-

rente do que era feito na sala de aula, aprenderam a fazer a pausa diferente da

vivida em sala de aula.

E eu vejo ano passado, quando teve esse cineclube que foi um pouco mais intenso,

que tinha uma programação certinha, era gente de fora e era interessante que ela

tinha uma abordagem um pouco diferente da gente. Ela direcionava muito mais

eles do que quando são as professoras que estão acostumadas a fazer o cineclube,

elas direcionam menos [...] e aí a gente via uma mudança no comportamento do

aluno. Então, isso aconteceu em abril... Alunos que em fevereiro, março não que-

riam muita coisa com a vida, a gente tinha certa exigência, esses alunos mudaram

o comportamento até dentro de sala de aula, no horário diferente do cineclube.

O professor tem duas experiências no que diz respeito à fruição na sala de

aula: aquela quando ele assiste determinada produção audiovisual e decide uti-

lizá-la em sua aula, na qual ele tem uma experiência específica e quando ele as-

siste novamente com seus alunos, quando a experiência é renovada a partir das

reações percebidas ao longo da exibição e a partir dos comentários tecidos em

eventuais debates acerca do que foi mostrado. E tem ainda uma terceira fora do

contexto da sua aula quando assiste num cineclube organizado por pessoas ex-

ternas à escola, fora de seu planejamento e percebe as reações e comportamen-

tos de seus alunos nesse momento.

REFLEXÕES FINAIS

Em nosso cotidiano, estamos sempre em contato com o audiovisual nas dife-

rentes situações vividas e basta andar pelas ruas para perceber isso. Estamos

a todo o momento em contato com alguém de olhos e ouvidos atentos ao seu

smartphone. Parece que o que era contado por nossos antepassados, através de

histórias orais e depois escritas, nos é contado hoje de forma mais dinâmica atra-

vés de novos suportes, principalmente audiovisuais. A nossa capacidade narra-

Page 177: Comunicação, audiovisual e educação

Professores de artes | 175

tiva se renova na medida em que o homem e o mundo à sua volta se renovam.

Continuamos contando histórias, mas a forma de multiplicá-las mudou.

Ao serem questionados sobre o que os levam a consumir determinado bem

cultural, os professores foram bem enfáticos com relação ao consumo direcio-

nado à arte, dizendo que visitam exposições não apenas guiados por seus gos-

tos pessoais, mas principalmente por conta do trabalho. Consigo entender que

há uma preocupação com relação à ampliação dos seus repertórios artísticos.

O mesmo comportamento não se vê presente no que diz respeito aos seus con-

sumos relacionados ao audiovisual, quando os gostos pessoais apresentam-se

como principais critérios de escolha. Quando entrei em contato com os profes-

sores, pedi que narrassem suas experiências marcantes com o audiovisual e as

artes. Os professores contam que uma das possibilidades de uso do audiovisual

é como uma pausa, entendendo essa pausa como um descanso e renovação da

experiência no momento em que ela torna-se outra ao ser compartilhada em ou-

tro espaço.

Como nos diz Larrosa (2002), sobre a experiência ser resultado de que algo

nos toque e nos sensibilize, é necessário esse momento de parada. Pensemos

um mesmo filme visto em três circunstâncias diferentes: numa sala de cinema,

pelo computador em casa e na sala de aula. Mesmo que o filme seja o mesmo,

as motivações e situações em que a exibição ocorre proporcionam experiências

diferenciadas. Escolher um filme seja pelo enredo, pelo diretor ou pela temáti-

ca; locomover-se até a sala de exibição, comprar pipoca, ficar na fila, escolher

o assento; isso implica em uma relação corporal quase afetiva com o filme.

Ao decidir por ver o mesmo filme em casa, dentro do seu quarto, as motivações

já serão outras, incluindo a hipótese de já estar pensando em apresentá-lo como

material para aula, direcionando o olhar mais para o conteúdo que para a parte

estética. E, por fim, exibir um filme para uma turma de 30 a 40 alunos proporcio-

na uma relação totalmente diferente das anteriores, na qual a atenção se divide

entre a narrativa do filme e as reações dos estudantes. O debate gerado a partir

das impressões sobre o filme também alteram a perspectiva do professor em re-

lação a ele. Assim, mesmo que o professor tenha vivenciado as três experiências

exemplificadas aqui, cada experiência terá sua particularidade.

Essas particularidades devem-se principalmente às múltiplas possibilida-

des de suportes que encontramos nos dias atuais, em que as relações entre am-

bientes virtuais e reais estão cada vez mais entrelaçadas, possibilitando renova-

Page 178: Comunicação, audiovisual e educação

176 | Comunicação, audiovisual e educação

ções no campo da experiência e da formação. Tendo isso em mente, gostaria de

finalizar este texto trazendo esse aspecto da aproximação dos ambientes para

traçar um paralelo em relação ao texto, destacando que a formação do profes-

sor com o audiovisual precede o seu uso e compõe uma cadeia composta de um

distanciamento temporal, mas também uma aproximação pela experiência for-

mativa. Quando os professores propõem-se a buscar algo, estão se permitindo

experienciar esse algo que, no futuro, sendo utilizado em suas aulas, será viven-

ciado de outra forma. O deixar-se sensibilizar é imprescindível nesse processo.

Encerro com a fala de Fayga Ostrower (2007, p. 39, grifos nosso) a respeito da

sensibilidade e da imaginação como reflexão final deste texto:

[...] a imaginação criativa nasce do interesse, do entusiasmo do indi-

víduo pelas possibilidades maiores de certas matérias ou certas rea-

lidades. Provém de sua capacidade de se relacionar com elas. Pois,

antes de mais nada, as indagações constituem formas de relaciona-

mento afetivo, formas de respeito pela essencialidade de um fenô-

meno. [...] Ao mesmo tempo que se aprofunda na razão de ser de

um fenômeno, essa afetividade implica uma amplitude de visão que

permite muitas coisas se elaborarem e se interligarem, implica uma

visão globalizante dos processos de vida. A visão global dependerá

da sensibilidade de uma pessoa; mas, reciprocamente, para se trans-

formar em capacidade criativa real, a sensibilidade sempre depende

dessa visão global.

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Page 181: Comunicação, audiovisual e educação

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10 Cibercultura e redes sociais: refletindo sobre as práticas das juventudes

Lucy Anna DinizAdriana Hoffmann

INTRODUÇÃO

Atualmente, temos observado de perto diversas relações dos jovens com a ciber-

cultura. Nessas observações, as redes sociais são motivo de muitos debates e vá-

rias pesquisas e estudiosos vêm trazendo reflexões a respeito das redes, dos usos

e questões que elas nos trazem na atualidade. Alguns dos autores com os quais

dialogamos neste capítulo foram Nelson Pretto, André Lemos e Paula Sibília.

Este capítulo apresenta os achados de um estudo de monografia (DINIZ, 2016)

realizado no contexto do projeto institucional. (FERNANDES, 2013)

Entendemos, de acordo com Lemos (2004), que cibercultura é a cultura con-

temporânea, marcada pela circulação incessante de informações através das re-

des telemáticas, pela promoção de uma sociabilidade on-line e de uma espécie

de cultura de compartilhamento. (LEMOS, 2004) A interconexão mundial dos

computadores, e, acrescentamos, dos dispositivos de informação e comunica-

ção, dá início ao que Lévy (1999) chamou de ciberespaço, ou seja, esse espaço de

comunicação digital que abriga um “dilúvio” de informações e pessoas que não

só navegam nesse dilúvio mas também alimentam-no.

Discutimos a cibercultura como “fruto de influencias mútuas, trabalho coo-

perativo, de criação e livre circulação de informação através dos novos disposi-

Page 182: Comunicação, audiovisual e educação

180 | Comunicação, audiovisual e educação

tivos” (LEMOS, 2004, p. 16) um novo espaço de comunicação. Assim, alguns dos

princípios da cibercultura são a liberação do polo da emissão de forma coletiva e

em rede, a conexão generalizada e aberta e a reconfiguração cultural. De acordo

com Lemos (2005), a grande potência da cibercultura é a potência da conversa-

ção. Os três princípios apontam esse movimento de conexão e de troca coletiva

na produção e na recepção de conteúdos e mostram os desafios que uma mu-

dança dessa ordem pode trazer para os processos de aprendizagem baseados na

linearidade e sequencialidade como os vividos na escola.

Alguns autores como Pretto (2008), Lemos (2004; 2005) e Sibília (2012) dis-

cutem também o conceito de cibercultura relacionando o processo da educação

e das redes com as questões que o contexto atual abarca. Ao mesmo tempo em

que as redes trazem questões para a escola e tensões a partir da reconfiguração

pela qual a cultura está passando a partir da cibercultura, o processo educativo

nos ajuda nesse processo de reconfiguração. De acordo com Lemos (2005), a me-

táfora que mais se aproxima do estado social atual é a da sociedade em rede. Que

reconfiguração cultural seria essa pela qual passamos? Comunicar-se em rede

seria o novo modo de convivência atual?

“As redes constituem a nova morfologia social das nossas sociedades, e a di-

fusão da lógica das redes modifica substancialmente a operação e as consequên-

cias dos processos de produção, experiência, poder e cultura [...]”. (CASTELLS,

1996, p. 469 apud LEMOS, 2005, p. 6)

O infográfico a seguir mostra a profusão de redes que foram criadas desde

o início das comunicações, começando pelo telefone. Mesmo considerando que

várias redes sociais atuais, bem como as que já existiram e não são mais utiliza-

das, não estão representadas nesse gráfico, essa pequena mostra já nos faz per-

ceber como é crescente o surgimento de cada vez mais novas redes que ampliam

esse processo gerado e mantido no coletivo da rede de produção e circulação de

conteúdos.

O presente capítulo pretende apresentar parte dos dados de uma pesqui-

sa que foi realizada dentro do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual,

Cultura e Educação (CACE). Trata-se de uma busca por entender melhor o que

pensam e fazem os jovens nesse acesso às redes, problematizando e refletindo

sobre os usos realizados em diálogo com os autores e teorias em estudo.

Nesse momento, temos como objetivo apresentar os dados produzidos em

entrevistas e questionários realizados com os jovens da faixa etária entre 11 e 15

Page 183: Comunicação, audiovisual e educação

Cibercultura e redes sociais | 181

Figura 1 – Infográfico com a linha do tempo

do surgimento de algumas mídias sociais,

do telégrafo ao Snapchat

Fonte: adaptada de Mídia Boom (2015).

Page 184: Comunicação, audiovisual e educação

182 | Comunicação, audiovisual e educação

anos acerca do acesso dos jovens à internet, sua definição de internet, suportes

de acesso e usos feitos por eles. Interessa-nos discutir e refletir a respeito de uma

situação que nos chamou especial atenção na pesquisa: o fato da maioria dos

jovens deste estudo afirmarem que usam as redes sociais para manter contato

somente com as pessoas mais próximas como a família e os amigos. O que os leva

a escolher relacionar-se nas redes sociais apenas com as pessoas com as quais já

tem contato cotidiano fora da rede? Como isso pode ser pensado num contexto

em que a discussão sobre cibercultura fala justamente da liberação do polo da

emissão, da palavra, da ampliação da comunicação nessa dimensão do coletivo?

Seria uma questão de risco que é passada por eles pela família ou por pessoas

próximas?

Para uma análise dos dados produzidos, traremos alguns trechos de entre-

vista para reflexão. Devido à escolha ética de preservar a identidade dos sujeitos

participantes da pesquisa, que não desejaram ser identificados, utilizaremos

abreviações de seus nomes que os representarão. Foram realizados questioná-

rios com 26 jovens e entrevistas com 11 jovens, aqui descritos pelas siglas: E.; C.;

N.V.; C.C.; P.G.; V.; A.C.; T.; N.; J.; e H.

O ACESSO DE JOVENS À INTERNET

Os jovens pesquisados são estudantes de uma escola pública e eram participan-

tes do Programa Mais Educação em 2015, são em sua maioria moradores de uma

comunidade próxima à escola em que a pesquisa foi realizada. Do ponto de vista

de uso de dispositivos, os jovens que fizeram parte da pesquisa encaixam-se nas

estatísticas divulgadas pelas pesquisas do Comitê Gestor da Internet no Brasil

(CGI.br) em 2015 e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em

2016, e continuam a mostrar a ampliação dos usos no TIC Kids On-line 2017 que

aborda usos de crianças e adolescentes. Tais estatísticas apontam que 92% dos

domicílios brasileiros possuem telefone celular. Presença massivamente maior

que a de tablets, computadores e telefones fixos, e que grande parte do acesso à

internet é realizado através de dispositivos móveis.

Como podemos observar a partir da Figura 2, os dispositivos móveis são uti-

lizados de forma frequente pelos jovens desta pesquisa: 18 entre os 26 estudantes

que participaram da pesquisa disseram ser pelos dispositivos móveis os modos

pelos quais seu acesso é mais frequente. Apesar de muitos terem acesso e usa-

Page 185: Comunicação, audiovisual e educação

Cibercultura e redes sociais | 183

rem computadores de mesa, é através de dispositivos móveis como celulares e

tablets que esses estudantes acessam à internet com mais frequência. Esse dado

pode influenciar no tipo de conteúdo acessado, pela existência de sites e conteú-

dos que são mais acessíveis para mobiles ou para computadores.

Figura 2 – Indicador dos suportes mais utilizados pelos estudantes da pesquisa para acesso à internet

Fonte: elaborada pelas autoras.

Acessar redes sociais, aplicativos de conversas e alguns sites de notícia pode

ser inclusive mais fácil em dispositivos móveis. Por outro lado, o consumo e a

edição de vídeos, o uso de jogos mais complexos e a edição de imagens, a partici-

pação em determinados fóruns de discussão, por exemplo, são atividades que se

tornam mais simples quando o acesso se dá através de computadores de mesa ou

notebooks. Tendo em vista ainda os aspectos econômicos, podemos supor que

por dispositivos móveis serem mais baratos que computadores de mesa e note-

books, sejam mais facilmente adquiridos pelas famílias desses jovens.

Esse uso frequente a partir de dispositivos móveis pode influenciar também

o modo como esses jovens lidam com os planos de internet, a questão do uso

Page 186: Comunicação, audiovisual e educação

184 | Comunicação, audiovisual e educação

de dados móveis e franquias, e a diferença entre a qualidade da internet móvel

e da internet fixa. Em determinado momento da pesquisa, uma das estudantes

reclama da qualidade de seu plano de dados, afirmando que atinge a franquia

muito rapidamente e seus créditos acabam na mesma semana da recarga. Essa

reclamação acontece em um momento em que a estudante está na escola, que

não permite acesso à rede local.

A maior parte dos estudantes diz acessar à internet de casa, sendo a escola

um espaço em que apenas oito afirmam usar a internet, e nenhum dos estudan-

tes afirma ser o local em que acessam à internet com mais frequência. A esse

dado, cabe acrescentar que existe uma lei municipal no estado do Rio de Janeiro

– como sabemos também existir em outros estados do país – que proíbe o uso

de aparelhos eletrônicos em sala de aula, e que talvez o pouco acesso na escola

possa se dever às normas escolares.

É interessante observar que, apesar de os estudantes não dizerem ter

conhecimentos técnicos sobre o funcionamento da internet e das redes, eles

aprendem na prática o que é mais vantajoso para o uso que eles fazem. A maior

parte dos jovens que responderam ao questionário afirmam ter acesso à inter-

net em suas casas, com obstáculos diferentes e velocidades de conexão variadas,

mas apenas três dos 26 relataram não ter acesso em casa. Levando em conta que

os sujeitos pesquisados são moradores de periferia, podemos perceber que o po-

der aquisitivo das famílias dos estudantes não é um impeditivo completo no que

diz respeito ao acesso à rede, à conexão, embora suas experiências com as cone-

xões sejam bastante variadas.

Com relação às atividades que fazem na internet, a maior parte dos estu-

dantes afirma que a de maior frequência são os jogos, embora digam fazer mui-

tas outras coisas, principalmente assistir a vídeos, utilizar redes sociais, fazer

trabalhos para escola, escutar rádio, conversar em aplicativos de chat e postar

fotos. Podemos perceber essa variedade de atividades e a predominância dos

jogos através da Figura 3. Nesse sentido, podemos perceber alguma relação

entre as atividades e suportes mais frequentes. Do total de 26 estudantes, 19

responderam ao questionário apontando como atividade mais frequente os jo-

gos, redes sociais e aplicativos de chat. Redes sociais e aplicativos de chat têm

aplicações específicas, e, em alguns casos, exclusivas para dispositivos móveis.

Jogos variam em complexidade, mas existe uma infinidade compatíveis com os

dispositivos mobile.

Page 187: Comunicação, audiovisual e educação

Cibercultura e redes sociais | 185

Figura 3 – Atividades mais exercidas pelos jovens da pesquisa quando acessam à internet

Fonte: elaborada pelas autoras.

A partir da análise das atividades que esses jovens apontam como mais fre-

quentes, podemos iniciar uma reflexão acerca do posicionamento desses jovens

com relação ao consumo de produtos culturais e à construção de conhecimen-

tos. Quais seriam os jogos que eles jogam? No relacionamento nas redes sociais,

seriam eles produtores de conteúdo? Esses questionamentos nos levam a pensar

se esses jovens teriam na internet relações muito distintas das relações que eles

estabelecem fora das redes.

Apesar de a maioria relatar ter acesso à internet em casa, cinco jovens en-

cararam a pergunta “por qual motivo você não acessa à internet?” como uma

pergunta desvinculada da pergunta relacionada ao acesso, indicando que es-

tar na internet para eles não se relaciona à facilidade ou à dificuldade de co-

nexão. Apenas dois disseram não ter vontade de acessar e outros dois disseram

ter medo, sendo que apenas um afirma não acessar por não ter condições para

acesso.

Page 188: Comunicação, audiovisual e educação

186 | Comunicação, audiovisual e educação

INTERNET: O QUE É NO PONTO DE VISTA DOS JOVENS DA PESQUISA?

Trazemos aqui em forma de infográfico as respostas deles à pergunta: O que é in-

ternet para você? O infográfico a seguir aponta as palavras que mais apareceram

nas respostas dos entrevistados.

A Figura 4 revela a dificuldade que os estudantes da pesquisa têm em con-

ceituar “internet”. Um aspecto da realidade com que a maioria deles diz ter con-

tato diariamente e aparentemente nunca pararam para formular um conceito

para o termo. As expressões “internet”, “assim”, “sei lá”, “coisas” aparecem com

um tamanho maior, indicando que são as expressões mais ditas no momento de

resposta a essa pergunta.

Figura 4 – Infográfico de nuvem de palavras relativo às respostas à pergunta: “o que é internet para você?”

Fonte: elaborada pelas autoras.

Page 189: Comunicação, audiovisual e educação

Cibercultura e redes sociais | 187

Em seguida, podemos perceber outras expressões em tamanho menor, mas

ainda com destaque, que nos dão pistas do que esses jovens encaram como parte

da internet: “Facebook”, “comunicação”, “meio”, “jogo”, “pesquisar”. Com essas

expressões, poderíamos construir um padrão que representa a maioria das respos-

tas obtidas na entrevista e chegamos à conclusão que os estudantes conceituam

a internet a partir de seus usos. Internet é uma coisa que serve para fazer alguma

coisa, para se comunicar, jogar e pesquisar a partir das respostas mais frequentes.

É interessante observar que nenhum estudante menciona a palavra “rede”

ou “conexão”, denunciando que essa é uma ideia que não está presente quando

eles pensam nas atividades que fazem proporcionadas pela internet. Apesar de

demonstrarem que percebem uma funcionalidade de comunicação e pesquisa,

não elaboraram ainda a ideia de que essas funcionalidades são promovidas pela

conexão entre computadores e usuários. Talvez da mesma forma não percebam

que essa conexão cria possibilidades ainda não conhecidas por eles. Os usos e

relações trazidas a seguir pelas falas selecionadas podem nos ajudar a refletir

a respeito desses modos de acesso trazidos pelos sujeitos da pesquisa. Estarão

mesmo esses sujeitos dentro dessa cibercultura de que fala Lemos (2004; 2005)?

O que os modos de acesso deles falam de como percebem sua ação social na rede?

CONVERSO NA REDE “SÓ COM MINHA MÃE E COM MEU PAI”: USOS DA REDE SOCIAL NA DIMENSÃO PRIVADA

A famosa frase dita pelas famílias – “tome cuidado, não fale com estranhos” – às

crianças quando pequenas parece se perpetuar nos usos que os jovens da pes-

quisa fazem nas suas interações nas redes sociais. As falas a seguir apontam que

os entrevistados – em sua maioria – somente utilizam as redes sociais para in-

teragir com as pessoas que são do seu círculo de convívio cotidiano – família e

amigos próximos.

Os jovens da pesquisa referem-se a seus familiares e amigos quando falam de

seus usos das tecnologias digitais, e boa parte deles chega a afirmar que interage

exclusiva ou prioritariamente na rede com seus familiares e amigos. Podemos

perceber nos trechos de entrevista a seguir:

[...]

Entrevistador: Você tem perfil em site de rede social essas coisas assim? Facebook,

Instagram?

Page 190: Comunicação, audiovisual e educação

188 | Comunicação, audiovisual e educação

P.G.: Tenho Facebook e WhatsApp.

Entrevistador: E com quem você conversa no WhatsApp?

P.G.: Com meus primos, alguns amigos da minha sala, meus primos que moram lá

em Caxias, os que moram lá em Cordovil…

[...]

Entrevistador: Você conversa com quem no WhatsApp?

A.C.: Só tenho.. é.. Com minha tia, só com minha tia, minha mãe e meu pai.

Entrevistador: Só com a família?

A.C.: É, isso mesmo.

Entrevistador: O que vocês conversam?

A.C.: Ah, quando tem alguma urgência a gente usa. E conversa, diariamente quan-

do a gente não se vê.

[...]

Entrevistador: Você sempre posta foto na internet?

N.V.: Nem sempre. Só um pouco.

Entrevistador: E é sempre foto sua?

N.V.: É. Minha ou da minha prima.

Entrevistador: E a sua prima mora com você?

N.V.: Não.

Entrevistador: O que você faz no Facebook além de olhar foto dos outros?

N.V.: Nada.

Entrevistador: Só olha foto dos outros?

N.V.: Da minha mãe, da minha irmã…

Entrevistador: Você conversa com a sua família no Facebook?

N.V.: É.

[...]

N.V., A.C. e P.G. dão exemplos do tipo de resposta dado ao questionamento de

com que pessoas esses jovens interagem em determinadas redes. Inicialmente,

podemos desconfiar dessas afirmações, mas com a recorrência em que as men-

cionam no decorrer das entrevistas, resta a dúvida: por que será que esses jovens

concentram suas interações com aqueles com quem eles já interagem fora das

redes? Outro jovem nos traz algumas pistas:

[...]

CC: Ah internet pra mim é pesquisa, pesquisar música, mexer no WhatsApp,

Facebook…

Page 191: Comunicação, audiovisual e educação

Cibercultura e redes sociais | 189

Entrevistador: Você tem WhatsApp?

CC: Aham.

Entrevistador: Com quem que você conversa no WhatsApp?

CC: Só com a minha mãe só, com minha mãe e com meu pai.

Entrevistador: Você não conversa com nenhum amigo, nenhum parente que não

seja seus pais?

CC: Eu conversava, só que agora eu não tô conversando com mais ninguém.

Entrevistador: Por quê?

CC: WhatsApp só dá apurrinhação.

Entrevistador: Como assim? Me explica.

CC: Ah o pessoal fica botando vários negócios, aí tu bota um negócio aí o outro gra-

va…

Entrevistador: Aí dá problema?

CC: É.

[...]

Dessa forma, C.C. aponta para transtornos que podem ocorrer no caso da in-

teração com pessoas que não são do seu círculo cotidiano. Usos indevidos ou ex-

posição não autorizada de informações compartilhadas, por exemplo, podem con-

figurar o que C.C. chama de “apurrinhação”. A autora Paula Sibilia (2012) fala da

“cultura da humilhação” vivida hoje nas interações nas redes sociais. Uma cultura

associada ao bullying em que, com qualquer passo em falso, se pode virar chacota

de um grupo e ser ridicularizado. Esse medo de sofrer com isso talvez seja o motivo

que leva alguns desses jovens a limitarem seu acesso apenas a pessoas próximas.

Ao mesmo tempo que a decisão de C.C. de manter contato apenas com seus

pais se baseie em experiências prévias, não podemos concluir que todos os jo-

vens que dizem interagir apenas com familiares e amigos tenham tido experiên-

cias ruins na interação com pessoas de outros círculos. E esse uso deles nos leva

a questionar: afinal, o que falam e trocam nas redes sociais apenas entre pessoas

do convívio cotidiano? Seria essa resposta dada pela maioria dos jovens da pes-

quisa uma forma de impedir o nosso conhecimento a esse universo mais íntimo

deles? O que significa estar em múltiplas redes e agir dentro delas priorizando

determinadas conexões, determinados nós mais pessoais ou privados?

Esses jovens – mesmo estando conectados à internet – parecem não co-

nhecer e viver os princípios da cibercultura de que fala Lemos. Isso nos mostra

Page 192: Comunicação, audiovisual e educação

190 | Comunicação, audiovisual e educação

que essa experiência cibercultural não depende diretamente da conexão, do ter

acesso à internet. Pelo que as entrevistas apontam, essa experiência na cibercul-

tura para ser vivida nesse modo de reconfiguração cultural de que Lemos (2004;

2005) fala e gerar novos processos de produção, experiência, poder e cultura de-

pende da mediação social, conforme destaca Castells (1999). Quem são os adul-

tos e jovens com os quais esse público convive? Que tipo de experiência de co-

municação é usual nas suas práticas sociais? Essa experiência social vivida por

eles nos parece, nesse sentido, mediadora e definidora das práticas nas redes so-

ciais. Portanto, é preciso mais do que “estar conectado” para estar e agir em rede.

Martín-Barbero (2006) ressalta dois discursos correntes sobre a globaliza-

ção e a comunicação em rede: um que aponta perversões; e outro, que aponta

oportunidades. Para o autor, há ainda a permanência das grandes corporações

no gerenciamento das informações aliado a um discurso de controle e vigilância

a serviço de uma necessidade de segurança. Ao mesmo tempo, o autor aponta

para a possibilidade de desmontar alguns dualismos relacionados às linguagens

e meios de informação, comunicação e conhecimento e para a possibilidade de

criação de novas configurações de exercício da cidadania.

Obviamente, o autor faz uma leitura macrossocial dos movimentos que en-

volvem a comunicação em rede. Mas, certamente, os discursos otimistas e pes-

simistas se entrelaçam com as experiências desses jovens. Em determinado mo-

mento das entrevistas, A.C. traz uma preocupação com conteúdos que podem

existir na internet. Em momento posterior, relata que seu pai tem medo que ele

acesse outros espaços diferentes do Facebook. O medo do pai é mediador dos

acessos que essa jovem faz na rede.

Tal fato remete para o que diz Martín-Barbero (2013) ao tratar das mediações

que envolvem o processo comunicativo, ressaltando que não podemos ignorar as

questões culturais e políticas ao analisar essas comunicações. Nas entrevistas, as

famílias não aparecem apenas no momento da interação através das redes, mas

também na interação com as redes. Apesar de muitos estudantes relatarem que

aprenderam sozinhos a usar os dispositivos e a acessar à internet, por tentativa e

erro, é possível perceber em suas falas que os familiares aparecem nos momen-

tos de tal aprendizagem. Desse modo, as mediações abordadas pelo autor podem

interferir tanto nos usos feitos das redes pelos jovens quanto no processo mesmo

da pesquisa. Investigar sobre o uso das redes no espaço da escola considerado

“proibido” por lei pode trazer esses traços de “não ditos” por parte deles. Da mes-

Page 193: Comunicação, audiovisual e educação

Cibercultura e redes sociais | 191

ma forma, como pudemos perceber, muitas famílias são mediadoras desses usos

das redes sociais limitando ou controlando o que fazem ou não na rede e isso

de alguma forma limita o acesso deles a pessoas fora de seu convívio cotidiano.

O que significa no contexto em que se discutem os três princípios da ciber-

cultura – como liberação da emissão de forma coletiva e em rede, conexão ge-

neralizada e reconfiguração dos modos de aprender – descobrirmos jovens que

mantêm em suas práticas com a cibercultura bases mais atreladas a um contex-

to local de convívio só com conhecidos? É no mínimo desafiador perceber que,

num contexto em que se fala das redes trazendo transformações na lógica da

cibercultura, surjam desafios à escola pelas mudanças que essa traz que não dia-

loga com o modo como a escola se organiza. Perceber que esses modos de aces-

sar à rede pelos jovens não caracteriza “a rede” tal como é concebida e discutida

pelos autores é algo importante.

Jesús Martín-Barbero (2006) comenta que há nas práticas culturais sempre

um “destempo”. Esse destempo de que ele fala relaciona-se a essa diferença en-

tre o que a tecnologia pode proporcionar e os usos que os sujeitos fazem em rela-

ção a ela. Assim, mesmo uma tecnologia proporcionando novas práticas, muitas

vezes, os sujeitos ainda não conseguem utilizá-las, repetindo práticas anteriores,

mais usuais e tradicionais em seu convívio social, características de tecnologias

mais antigas e já conhecidas pelos sujeitos. Talvez seja isso o que percebamos

nesses resultados. Isso nos leva a notar que não basta ser jovem, não basta estar

conectado, não basta ter os dispositivos móveis para atuar na cibercultura com

todo o potencial que ela oferece.

NÃO É A CONEXÃO QUE DEFINE O PROTAGONISMO DO JOVEM

Que reflexões essa descoberta inicial nos traz? O que podemos dizer a respeito

desses usos dos jovens olhando para o contexto social? Estarão esses jovens real-

mente tendo acesso à rede? A partir desses dados, já pode-se perceber que não

é a rede que determina a experiência do jovem, mas seus usos. A experiência

desses jovens é substancialmente diferente da de jovens youtubers, gamers ou

outros que constroem na rede novas experiências que dificilmente teriam fora

dela. Desse modo, os dados apontam que o “estar na rede” não é um diferencial

Page 194: Comunicação, audiovisual e educação

192 | Comunicação, audiovisual e educação

para todos os jovens, ou que “estar na rede” precisa ser bem mais do que ter aces-

so à rede. O navegar não é livre para todos. Os papéis de produtores e recepto-

res tão difundidos como sendo parte do protagonismo dos jovens da atualidade

também não transparecem nesses jovens pesquisados.

Os usos que fazem nas redes – excluindo-se essa dimensão de com quem

interagem – não trazem uma dimensão mais ampla de produção de conteúdos.

Usam a rede para acessar notícias, blogs, ver vídeos, postar fotos e enviar men-

sagens. São aparentemente mais consumidores do que produtores de conteúdos

e isso talvez se deva às mediações vividas socialmente. Como ser protagonista

com um acesso limitado ou pela velocidade da conexão ou pela mediação dos

que limitam seu contato ou interações com outros? Como produzir sem ter a

ideia da produção como um horizonte possível? Martín-Barbero (2013) ainda

aponta em seu mapa das mediações o quanto nossas práticas não são descoladas

da socialidade – práticas sociais com as mídias –, das ritualidades – modo como

consumimos, rituais que repetimos socialmente –, e das institucionalidades –

como as instituições da sociedade de alguma forma mediam e regulam os usos

que fazemos das mídias. Portanto, os dados desta pesquisa nos revelam o quanto

as mediações são relevantes quando se fala dos usos que são feitos socialmente.

Não são as tecnologias que definem os usos sociais, mas o contexto cultural em

que os sujeitos estão imersos que pode gerar e proporcionar reduções ou amplia-

ções nos usos sociais feitos dessas mesmas tecnologias.

Nelson Pretto e Alessandra Assis (2008) apontam para a necessidade do

estímulo à produção de informações e conteúdos na escola como contributo à

formação cidadã que a escola pretende, permitindo a superação da postura de

consumo que é estimulada pelos veículos de massa. Os autores ressaltam que

para o estímulo à produção é preciso mais do que o simples acesso às tecnolo-

gias que garantam tal produção, é preciso que haja a apropriação criativa de tais

tecnologias.

O que isso nos diz sobre a escola? O que isso nos faz pensar sobre o papel da

escola e sobre a presença das mídias na escola ser muitas vezes vista como amea-

ça? São muitos os desafios que se apresentam para nossa reflexão e a respos-

ta não é simples e nem fácil. Para que haja a apropriação criativa de que falam

Pretto e Assis (2008), é preciso que a escola encare a cibercultura como parte da

cultura escolar, não como concorrente desta. Sigamos observando o que acon-

tece em nosso entorno com os jovens que estão na escola para pensarmos nos

Page 195: Comunicação, audiovisual e educação

Cibercultura e redes sociais | 193

desafios que temos – pelas falas deles mesmos em cada contexto –, e não pelo

que dizem que os jovens usam e fazem.

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Page 197: Comunicação, audiovisual e educação

| 195

11A arte de criar tapetes de histórias: ensaiando um convite narrativo entre o artesanal e o tecnológico

D aniela Fossaluza

Era uma vez uma atriz e artesã, graduada em Artes Cênicas pela Unirio, que percebeu nas brincadeiras das crianças, após ouvirem as histórias contadas por ela e quando se arriscavam na manipulação dos cenários e personagens de pano criados a partir de livros infan-to-juvenis, uma possibilidade fértil para desenvolver uma pesquisa sobre as infâncias e seus modos específicos de recepção e produção. Vislumbrou, na especificidade da linguagem dos tapetes de histórias e no interesse das crianças por filmarem as brincadeiras e performan-ces produzindo vídeos, um possível diálogo entre tradição e contempo-raneidade. Uma questão emergiu: existe a possibilidade de alinhavar um fazer artesanal a um fazer tecnológico? O que podemos considerar sobre esses fazeres nas práticas das crianças?. (FOSSALUZA, 2018)

Essas indagações impulsionaram um processo de pesquisa que se desenvolveu

como uma dissertação de mestrado dentro do contexto do projeto institucional.

(FERNANDES, 2013) O texto aqui trazido narra o percurso vivido e a construção

da pesquisa e as questões que a permearam.

Page 198: Comunicação, audiovisual e educação

196 | Comunicação, audiovisual e educação

Figura 1 – Crianças interagindo com o tapete de histórias

Fotografo: Claudio Medeiros disponível no Blog Costurando Histórias (2011).

OS TAPETES DE HISTÓRIAS E A PESQUISA DE MESTRADO

A ideia de transpor narrativas de livros para cenários de pano interativos con-

cretizados como tapetes foi da educadora Clotilde Hammam, em meados da

década de 1980, na França. “Para ajudar as crianças a se familiarizarem com o

livro, procuramos um meio lúdico, estético, afetuoso e tátil, que facilitasse essa

aproximação e fizesse com que elas descobrissem a felicidade da leitura-pra-

zer”.1 (HAMMAM, 1998) Essa iniciativa vem sendo difundida como projeto de fo-

mento à leitura literária em vários países da Europa através do pedagogo, diretor

teatral e artista plástico Tarak Hammam, filho de Clotilde. O artista ministrou

1 Esta observação em relação ao objeto artístico pedagógico raconte-tapis e ao projeto homônimo de fomento à leitura (Raconte-Tapis) foi traduzida pelo filho da educadora Clotilde Hammam (Eric Tarak Hammam) em 1998 – do francês para o português – a partir de um folheto promocional elaborado para ser entregue em instituições de ensino e espaços culturais.

Page 199: Comunicação, audiovisual e educação

A arte de criar tapetes de histórias | 197

estágios e oficinas sobre essa linguagem entre os anos de 1998 a 2001 através

do Departamento de Extensão do Centro de Letras e Artes (CLA) da Unirio, in-

troduzindo o Raconte-Tapis no Brasil, um projeto do qual participei ativamente

como integrante e bolsista-pesquisadora, uma vivência tão significativa que fiz

da experiência a minha profissão. Desde 2001, coordeno um grupo de artistas-e-

ducadores que desenvolvem a linguagem dos tapetes em instituições de ensino

e espaços culturais – o Costurando Histórias.

A arte de contar histórias com tapetes é uma prática que encontrou sensí-

vel e promissor terreno no Brasil para se desenvolver, uma linguagem poética

e interativa – apoiada na oralidade, na performance, nos materiais têxteis e nos

conteúdos dos livros. Em relação ao envolvimento e interesse pela linguagem,

resultados positivos são atestados por mim em 20 anos de trabalho, assim como

também enormes desafios para manter viva uma arte tradicional que sobrevi-

ve com especificidades num contexto de intenso consumo de informações pro-

duzidas e transmitidas via mídias eletrônicas e outras plataformas afins. Novas

tecnologias não param de emergir, influenciando significativamente nas subje-

tividades, comportamentos e nos processos de formação cognitiva dos sujeitos,

bem como nos modos e formatos de narrar.

Percebo em minha prática como artista e professora uma necessária atuali-

zação da linguagem – a dos tapetes de histórias – com o objetivo de mantê-la viva

e em diálogo fértil com os interlocutores que dela se beneficiam. Mesmo que de

modo sutil, surge na prática a necessidade constante de ressignificar conteúdos,

modos, palavras e gestos diante dos públicos sempre renováveis em cada situa-

ção de transmissão. Apostando nisso, integrei-me ao grupo de pesquisa para de-

senvolver o estudo.

Escolhi como campo de pesquisa o Solar Meninos de Luz – instituição filan-

trópica que atende crianças e jovens em situação de risco social das comunida-

des do Pavão Pavãozinho e Cantagalo, localizadas na zona sul da cidade do Rio de

Janeiro – que me abriu as portas para a realização das atividades. Participaram

da pesquisa 22 crianças com idades entre 9 e 11 anos. Nesse contexto socioeco-

nômico, encontrei uma situação de certa exclusão digital, apenas duas crianças

possuíam aparelhos de celular próprios e computadores disponíveis em suas

casas, porém, a maioria estabelecia algum tipo de acesso frequente à internet

e contato com mídias eletrônicas, sendo, portanto, intensamente influenciados

pelas tecnologias.

Page 200: Comunicação, audiovisual e educação

198 | Comunicação, audiovisual e educação

Impulsionada pelo desejo de refletir sobre os efeitos que a linguagem dos

tapetes poderia ter na produção de vídeos narrativos elaborados pelas crianças

e o desenho e percurso que a proposta poderia tomar, a partir das apropriações

feitas por elas, tinha como objetivo também analisar a relevância de processos

dessa natureza em percursos de formação. No caminho trilhado com as crian-

ças, despontaram reivindicações: “Eu quero contar. Eu quero filmar. Eu quero

mexer. Eu quero o meu próprio tapete, quero mais aulas”, nos escreveu Beatriz.

As crianças expressaram, portanto, também o desejo de costurar e criar seus pró-

prios tapetes, inventando histórias, não querendo produzir somente a partir dos

cenários já tecidos por nós a partir de alguns livros específicos e disponibilizados

para elas (acervo do Costurando Histórias).

Neste texto, tenho a intenção de refletir sobre o processo narrativo viven-

ciado pelas crianças, percebendo como a função do narrador desponta na expe-

riência a partir de um fazer artesanal, imerso num mundo onde as tecnologias

se apresentam cada vez mais de modos imperativos. Para essa reflexão, procuro

tecer uma conversa com Walter Benjamin no que ele reflete sobre a resistência

de um fazer artesanal e sobre as particularidades dos convites que as crianças

apresentam relacionados a determinados modos de ser, estar, criar e reivindicar

seus próprios percursos de experiências.

AS COSTURAS DAS CRIANÇAS E O DESPONTAR DO EU NARRATIVO: QUANDO AS CRIANÇAS DECIDEM O QUE E COMO CONTAR

Essas propostas autorais solicitadas precisaram, então, ser elaboradas pelas

crianças que se aventuraram comigo na arte da costura, na brincadeira de unir

retalhos compondo personagens e ambientes e na criação de enredos e embriões

narrativos, proporcionando aprendizados e trocas. Impressões, ideias, canções,

livros, episódios da vida, personagens e situações de jogos eletrônicos, além de

letras de música e outros retalhos provenientes de diferentes lugares foram tra-

zidos para a roda de histórias e para as mesas de “trabalho e criação” com o in-

tuito de serem transpostos para a linguagem dos tapetes. Mesmo esbarrando em

dificuldades inerentes ao próprio processo de elaborar um tapete de histórias e

em dificuldades por nós percebidas e relacionadas com as habilidades de leitura

Page 201: Comunicação, audiovisual e educação

A arte de criar tapetes de histórias | 199

e produção de texto, o grupo manteve-se atento, envolvido, exercitando a pa-

ciência e desenvolvendo-se com interesse e criatividade, de forma colaborativa.

Dois celulares com câmeras digitais foram disponibilizados para o grupo

com o intuito de registrar o processo e, também, para que eu pudesse observar os

usos específicos dessa tecnologia no processo vivenciado. Entre agulhas, linhas,

livros, lápis, panos e tesouras, com as presenças das câmeras, muitas descobertas

aconteceram. Como resultado inesperado da experiência, as crianças seguraram

o fio do tempo nas mãos e “perderam-se” prazerosamente no processo de criar

e costurar, brincando de inventar enredos que pareciam não querer ser “presos”

em roteiros escritos ou vídeos gravados, pois teimosamente se mantinham aber-

tos. Nesse processo, que durou um ano letivo, as crianças foram convidadas a se

perceberem também como investigadoras, autoras e artistas, numa metodologia

que construímos juntas e que arrisquei chamar de “pesquisa-ateliê” – um fazer

que se situa também como prática educomunicativa.

A PROPOSTA METODOLÓGICA DA PESQUISA-ATELIÊ E OS TECIDOS DE BASE

Emergiu, então, a proposta metodológica de pesquisa-ateliê, um processo que

transcorreu com a sensação de “suspensão do tempo”. Mesmo com certa pers-

pectiva dada, a escrita da dissertação e a produção dos vídeos feitos pelas crian-

ças com os tapetes de histórias, nos aventuramos numa demanda criativa que

caminhou lado a lado com movimentos reflexivos e filosóficos e que nos fize-

ram quase esquecer das finalidades, pois os propósitos confluíam no presente

de cada encontro, dando sempre espaço ao inesperado. Assim, pouco a pouco,

temas foram brotando, monstros foram ganhando contornos, sonhos foram se

colorindo, ideias e sensações sendo trocadas e um enredo de pesquisa sendo

construído. Se, no início do processo, as crianças emudeciam quando pedíamos

para que contassem histórias, no decorrer da experiência, olhando para o que

faziam e influenciadas pelos próprios materiais e processos, mergulhadas em

suas invenções e situações, elas mesmas, e também eu enquanto pesquisadora,

percebemos que tínhamos algo que poderíamos comunicar através de relatos,

fragmentos poéticos, imagens e impressões que foram produzidos durante todo

o tempo em conjunto nessa pesquisa-ateliê.

Page 202: Comunicação, audiovisual e educação

200 | Comunicação, audiovisual e educação

Como um artesão que esculpe cuidadosamente sua obra lidando com a

concretude dos materiais, considerando o imaginário, fomos conduzidos por

um fazer que aconteceu através de “mãos pensantes”, experimentando ideias

e tecidos. Em movimentos de fluências e embates, fomos dialogando e fazen-

do escolhas, problematizando limites. Para além de reiterar dicotomias, muitas

descobertas surgiram entre possíveis contornos: comunicação-educação, adul-

to-criança, cotidiano-escola, trabalho-brincadeira, estudo-prazer, concreto-

-abstrato, ciência-arte, artesanal-tecnológico. As crianças arriscaram a união de

retalhos e fragmentos, exercitando a arte dos tapetes e o convite do pacthwork.

Eu, na função de pesquisadora acadêmica, fui arriscando composições textuais

para contar, pensar e analisar tudo o que se passava.

A ideia da pesquisa-ateliê foi desenvolvida não somente para expressar o

que foi vivenciado com as crianças, mas como conceito que norteou também o

processo da própria escrita dissertativa, com o texto sendo elaborado como se

estivesse sendo construído um “tapete da pesquisa” – uma topografia com fins

de apresentar e projetar determinadas perspectivas percebidas no contato com

as crianças. A narrativa da pesquisa se configurou como uma base para apoiar as

possíveis representações dos sujeitos-personagens e dos ambientes onde vivem.

Nesse processo, eu fui me percebendo como pesquisadora, mas também como

autora e personagem. Nesse processo, as crianças do Solar projetaram vozes e

evidenciaram matizes específicas de suas infâncias.

Em relação à pesquisa acadêmica, arriscando um paralelo entre a constru-

ção do estudo e o método de confeccionar um tapete, ao longo do percurso, uma

base foi sendo preparada com tecidos resistentes – um panorama de leituras teó-

ricas – para acomodar as percepções do campo – justaposições de diversos panos

e retalhos que unidos e experimentados em perspectivas ajudaram a compor o

cenário da pesquisa: sua narrativa.

O resultado obtido foi uma “base de tapete” ou narrativa dissertativa que

buscou não conter somente uma perspectiva com determinada projeção, mas

diversos embriões narrativos que podem funcionar como “janelas” – passagens

que permitem links e acessos, convidando para reflexões e significações outras,

para além das “costuras” tecidas no texto. Como num livro em que a narrativa

salta de suas páginas, arrisquei elaborar um texto que não aprisionasse os sen-

tidos e as histórias das crianças, com a ilusão de reter significados, impedindo

outras análises. Pelo contrário, meu intuito foi criar uma base “tapete-cenário

Page 203: Comunicação, audiovisual e educação

A arte de criar tapetes de histórias | 201

da pesquisa” que acomodasse impressões e sugestões que pudessem ser, de al-

gum modo, sempre atualizadas, como faço quando conto minhas histórias. As

histórias dos livros que busco como inspiração não mudam em sua “estrutura”

registrada num texto escrito ou roteiro, por exemplo, mas permitem sempre no-

vos olhares sobre elas. Seria possível?

Quanto aos “tecidos de base” da pesquisa, para refletir sobre os proces-

sos de produção e recepção cultural e suas relações com o artesanal e o tecno-

lógico, o estudo abordou autores que discutem experiência e narrativa como

Walter Benjamin (2012a, 2012b, 2014), Nestor Canclini (1997), Martim-Barbero

(1997, 2008, 2011), David Buckingham (2007), Adriana Hoffmann (2019), Gilka

Girardello (2011, 2015, 2018) Rita Ribes (2011, 2012), Clarice Cohn (2005) entre

outros. A proposta metodológica da pesquisa com infância ocorreu nas perspec-

tivas discutidas por Rita Ribes, Solange Jobim e Clarice Cohn a qual se fez com

os sujeitos e não sobre eles.

CONFABULAÇÕES SOBRE UM TRAJETO E INSPIRAÇÃO PARA NOVAS ROTAS

Nesse desenrolar do fio do tempo – ou do fio mágico que surgiu –, as crianças

desenvolveram com certa liberdade propostas narrativas a partir de seus ima-

ginários que foram fertilizados por histórias que levávamos para o grupo, pelos

livros encontrados na biblioteca, mas, principalmente, pelos conteúdos de seus

consumos culturais. A linguagem dos tapetes foi, dessa forma, reconfigurada

em novas possibilidades de usos através das crianças do Solar que passaram a

costurar não somente enredos literários – como acontece na proposta inicial

da linguagem –, mas também impressões provenientes de contextos diversos.

Crianças artesãs tecendo materiais, ao mesmo tempo que elaboravam discursos

próprios, exercitando leituras de mundo. As crianças compuseram cenários su-

gerindo narrativas abertas, convidando interlocutores para jogarem, navegando

e dando asas à imaginação, seguindo pistas, estabelecendo conexões e enfren-

tando desafios. Internautas? Tecelãs? É possível?

Na pesquisa-ateliê, sugestões infantis foram sempre acolhidas. Procurou-

se não censurar nenhum conteúdo. Assim, foram costurados diversos temas e

imagens: a morte, o medo, a coragem, a violência, armas, venenos, antídotos,

Page 204: Comunicação, audiovisual e educação

202 | Comunicação, audiovisual e educação

doces, remédios, monstros, heróis, o amor, a guerra, festas e metamorfoses entre

bichos e humanos, com a presença de livros e conteúdos provenientes de várias

plataformas e mídias inspirando as criações. Como projetos norteadores – e com

o intuito de organizar as produções –, foram concebidos seis universos narrati-

vos projetados em costuras, servindo como bases para dramatizações, perfor-

mances de contação e brincadeiras livres. As crianças permaneceram até o final

desse ciclo de pesquisa, improvisando enredos e formatos, configurando o que

chamamos de “histórias abertas, fugidias, cruzadas, brincadas e linkadas”.

O tempo cronológico não foi suficiente para que pudessem experimentar

e descobrir a linguagem audiovisual com maior propriedade, mas isso não se

configurou como um problema, nem para as crianças e nem para os achados

da pesquisa. Certa dimensão do tempo (kairós) fez-se presente, abrindo portais

para que os sentidos da experiência fossem para além das elaborações de produ-

tos finais.

Mesmo com o interesse evidente pelo uso das câmeras digitais, as crianças

demonstravam não saber o que expressar diante das lentes. Constatando no

percurso silenciamentos que aconteciam quando as crianças eram convidadas

a narrar, percebi que experimentações artísticas, a partir de temas de interesse,

despontam como ações potencializadoras de movimentos de encorajamento e

podem ajudar na estruturação da linguagem e do imaginário, estimulando a co-

municação e a troca. Perspectivas que somente as crianças através da expressão

de seus desejos e conflitos organizados aos seus modos podem nos contar.

A arte da costura vinculada ao imaginário pareceu desacelerar o tempo,

inserindo-nos numa lógica de produção na qual a necessidade de resultados e

as expectativas sobre eles perderam força. Nesse movimento, vozes foram bro-

tando sem maiores pressões. Como nos aponta Benjamin (2014), as crianças são

especialmente dadas a investigação de materiais e gostam de aprender a partir

dessa liberdade. Num ambiente de produção e inspiração mútua, mais em cola-

boração do que em competição, o grupo desenvolveu projetos paralelos, indivi-

duais e coletivos, em várias direções.

Pensar mais detalhadamente a partir da multiplicidade de comportamentos

percebidos, com particularidades significativas, mesmo num grupo que convi-

ve diariamente num mesmo contexto social, nos remete sobre a relevância das

mediações culturais que operam na vida de cada um e também sobre a necessi-

dade de permitir que essas individualidades construam percursos próprios de

Page 205: Comunicação, audiovisual e educação

A arte de criar tapetes de histórias | 203

aprendizagem em bases coletivas, como, por exemplo, no espaço escolar. Alguns

autores integram os chamados estudos culturais, percebemos claramente a im-

portância das mediações nos processos de produção e recepção cultural e, prin-

cipalmente, no que confere ao fomento à leitura literária e ao processo de escrita

e autoria.

Através das criações e costuras, as crianças produziram imagens táteis e

tridimensionais que configuram possibilidades de alinhavos do abstrato com

o concreto. Algumas delas criaram a partir de conteúdos de jogos eletrônicos,

sendo perceptivelmente influenciadas pelos formatos narrativos dessas plata-

formas e meios. Projetaram narrativas que nunca encontravam um fim ou se

decodificavam através de fragmentos e episódios, características das narrativas

contemporâneas. Em algum momento, uma das crianças que escolheu o jogo

eletrônico “Five Nights at Freddy’s” como inspiração, me pareceu estar aprisio-

nada dentro de um game (com dificuldades para alinhavar suas contribuições

com as de outras crianças e também de encontrar escoamentos outros para suas

construções narrativas que fugissem de certas lógicas operantes e percetíveis

no ambiente de confinamento e terror que configura o contexto desse game, em

especial). Porém, além de escrever páginas e mais páginas desenvolvendo hipó-

teses para situações-problema fertilizadas e percebidas a partir do ambiente e

enredo do jogo, Lucas foi o único da turma que projetou e finalizou uma base-

-cenário (mapa) que acolhesse e acomodasse seus fragmentos narrativos. Jamais

desistia de seu projeto e de encontrar escuta para o que o mobilizava, confiava

em sua proposta. Sua fala era firme e bem colocada, mas perdia-se no tempo e

em certa tagarelice nem sempre bem ancorada. Suas compreensões de mundo

me pareciam fugir de leituras mais lineares e apontavam para várias direções.

Mas, Lucas não conseguia trazer para os tecidos suas projeções e confabula-

ções. Não conseguia lidar com os materiais concretos – panos, moldes, dimen-

sões, o tempo cronológico parecia sempre pouco para a intensidade de suas fan-

tasias e elocubrações. Foi com a ajuda de Julia e Lorena, das “costureirinhas”,

– como apelidei as meninas que produziam com certa organização prática, pa-

ciência e empenho –, e com a ajuda de dois amigos, Marcos – que se destacava

com suas análises contundentes sobre o mundo e as realidades concretas e sim-

bólicas que cercam e acomodam as vidas dessas crianças do Solar – e Breno – o

fiel amigo sempre disposto a embarcar nas viagens e aventuras de Lucas –, que o

cenário, materialmente falando, foi concebido. Um verdadeiro trabalho de equi-

Page 206: Comunicação, audiovisual e educação

204 | Comunicação, audiovisual e educação

pe. Se, por um lado, o fazer artesanal foi evidenciado como potência, por outro,

pareceu-me fundamental considerar nos diálogos com as crianças conteúdos e

formatos que por elas são vivenciados cotidianamente em suas interações com

as mídias eletrônicas e trazem novas questões para a constituição do pensamen-

to humano. Dessa forma, as crianças são reconhecidas em suas demandas e for-

talecidas em seus processos de autoria e autonomia.

O eu narrativo das crianças brotou no processo de pesquisa na medida em

que forças se encontraram, sendo alinhavadas: a do fazer artesanal com as lógi-

cas narrativas contemporâneas, mas também desse fazer que acontece através

de experimentações e interações com as narrativas transmitidas e guardadas de

algum modo bem peculiar nos livros. Se para as crianças as histórias se multi-

plicam em hipóteses, em repetições intermináveis, em situações problemas que

não caminham necessariamente para uma culminância, mas para várias, faço

aqui o exercício de, como Lucas, levantar algumas hipóteses que continuarão

sendo investigadas numa proposta de doutoramento e que vêm estimulando ou-

tras experiências no coletivo que coordeno, o Costurando Histórias.

Entre as experiências que venho desenvolvendo a partir das descobertas da

pesquisa acadêmica realizada em cima da prática e linguagem dos tapetes de

histórias com as crianças, venho conduzindo e orientando um espaço perma-

nente de ateliê coletivo em que participam como alunos educadores, artesãos e

profissionais do meio literário desde 2017, alguns ainda atuantes no mercado de

trabalho e outros aposentados. Nos encontros quinzenais, as participantes – por-

que foram mulheres que se disponibilizaram e se interessaram pela experiência

– têm aprendido a técnica de criar e costurar tapetes, ampliando e aprofundan-

do conhecimentos técnicos. Configuram-se momentos de pura poesia e criação,

nos quais a descoberta de si mesmo, como alguém capaz de produzir maravilhas

a serem compartilhadas com crianças, jovens e outros sujeitos, encontra um es-

coamento que fomenta de modo efetivo e prazeroso à leitura literária, além de

valorizar o fazer com as mãos, a troca com o outro, a paciência necessária ao

fazer artesanal, a movimentação e ação das mãos em conexão com o intelecto,

a experimentação de materiais, a atenção necessária a reutilização ou descarte

das “sobras”, a busca e o reconhecimento constante por tecidos, a construção e

percepção de narrativas, a beleza da reciclagem e das autorias.

Essa experiência significativa e as atividades que desenvolvo com crianças

em várias instituições públicas e privadas, além das oficinas e estágios de forma-

Page 207: Comunicação, audiovisual e educação

A arte de criar tapetes de histórias | 205

ção na arte de contar histórias oferecidos a docentes, vêm embasando e fertili-

zando reflexões sobre a relevância do fazer artesanal imerso num mundo cada

vez mais tecnológico e, como isso, pode influenciar e afetar nos processos de

constituição dos sujeitos.

Percebi, durante a pesquisa de mestrado realizada com as crianças do Solar,

uma diversidade de composições e comportamentos que caracteriza individua-

lidades, além das múltiplas mediações e híbridas linguagens a que temos aces-

so no mundo contemporâneo, em que diversas espacialidades e temporalidades

convivem, no qual o artesanal se encontra não em contraposição ao tecnológico,

mas em emaranhado, em influência mútua. Cada pessoa sendo um caleidoscópio

cultural imerso em tecidos culturais que dão base a ele. Identifiquei, também,

silenciamentos – individuais e coletivos – que me pareceram importantes e a ne-

cessidade de nutrir e orientar processos e situações que colaborem com a organi-

zação dos discursos através de experimentações e momentos de trocas culturais,

como as situações de roda de contação de histórias, o intercâmbio de relatos e

os ateliês para a criação de materiais que evocam e convidam para as narrativas.

Seguindo a proposta metodológica do Costurando Histórias, aquele que cria

seus próprios materiais traduz e expõe leituras e escolhas, encontra formas, co-

res e texturas para expressar seu imaginário e leituras de mundo, em diálogo

com os autores dos livros e outras inspirações. As mãos do artesão concretizam

obras, mas é nas mãos dos outros através das manipulações desses materiais que

suas impressões e apostas são ressignificadas. Ou seja, o espaço para a convivên-

cia e troca é fundamental e, também, estruturante. O eu artesão é tão necessário

quanto o eu que contempla e manipula. Qual a importância desse movimento

para a constituição de si mesmo? Que particularidades essa ação implica? Quais

aprendizados pode viabilizar? Esse fazer com as mãos, alinhado ou alinhavado

com o coração e mente, não podem ser substituídos por máquinas que produ-

zem automaticamente a partir de logaritmos sem a percepção das identidades

dos sujeitos implicados.

Pude perceber, nos materiais produzidos pelas crianças e nos comportamen-

tos mapeados, rastros de anseios e sinais de dificuldades, movimentos inerentes

aos processos de constituição de si mesmo, conferindo tentativas de costuras

entre as subjetividades/interioridades e o mundo externo. Identidades em cons-

tante formação, mas que vão se configurando e sendo formadas a partir de diver-

sos fragmentos de experiências viabilizados por práticas culturais. Identificar

Page 208: Comunicação, audiovisual e educação

206 | Comunicação, audiovisual e educação

essas mediações e analisar apropriações podem colaborar com movimentos de

reflexão sobre processos de formação que objetivem, além do exercício das indi-

vidualidades, atitudes e práticas cidadãs.

Constatei nos momentos em que as crianças manipulavam os materiais

por elas produzidos grande riqueza expressa em silêncios e explosões narra-

tivas. Algo misterioso e simbólico acontecia nesses instantes onde o imaginá-

rio era tateado encontrando gestos e sons, movimentos e pausas, interações.

Os elementos cuidadosamente costurados fertilizavam esses movimentos que

expressavam também traços de relações e comportamentos sociais. Arrisco di-

zer, a visibilidade e a materialidade dos objetos elaborados traziam de algum

modo para os discursos e impressões compartilhadas questões que podemos

considerar invisibilizadas socialmente, sendo, muitas vezes, menosprezadas

pelas instituições ou pelo universo considerado “adulto” e que se propõe a or-

ganizar e decidir sobre os conteúdos consumidos e apresentados às crianças – o

que facilmente pode escapar dos controles se nos remetermos aos universos vir-

tuais que as crianças têm acesso no mundo atual, por exemplo. Mapear e anali-

sar essas pistas pode nos falar também sobre possíveis conflitos que as crianças

encontram e como buscam superá-los, individual e coletivamente. Assim, arte

e vida encontram-se entremeadas nos processos de comunicação e educação

como proposta de representar e discutir as sociedades. Em relação aos proces-

sos de formação dos sujeitos, “tocar” essas imagens costuradas por si mesmo

pode produzir escoamentos, desbloquear conteúdos paralisantes e alimentar e

desenvolver os processos discursivos. Essas questões também são percebidas na

prática e experiência com os adultos.

A multiplicidade de estímulos observados nas propostas narrativas das

crianças da pesquisa de mestrado realizada nos fala do contexto contemporâ-

neo em que vivem. Nós, adultos e educadores, também estamos e fazemos parte

desse mundo. Acolher esses estímulos e trabalhar também a partir deles pode

nos dizer sobre possíveis alinhavos entre o artesanal e o tecnológico e sobre o

necessário diálogo entre gerações, valorizando a diversidade e a convivência dos

saberes e fazeres e as experiências, tanto daqueles que possuem vastas memó-

rias de vida porque acomodadas no tempo e em tramas que podem funcionar

como bases que nutrem processos outros além dos próprios, quanto daqueles

que reivindicam trajetórias próprias a serem escritas e significadas a partir de

Page 209: Comunicação, audiovisual e educação

A arte de criar tapetes de histórias | 207

necessidades autorais e do tempo presente, o instante capaz de significar os en-

contros e as práticas cotidianas. Todos com histórias para contar e compartilhar.

Acreditando nessa hipótese dos alinhavos entre o artesanal e o tecnológi-

co, continuo dialogando com autores que pensam as constituições dos sujeitos

a partir das práticas culturais. Hoje, diversas mídias fertilizam nossos imaginá-

rios, porém, acredito que, para alinhavá-los e costurá-los, a formação e o desen-

volvimento do eu artesão tornam-se fundamentais para que os sujeitos não se

percam de si mesmos, em meio a tantos materiais disponíveis, estímulos e pos-

sibilidades de conexão.

Como nos aponta Tierno, referenciando Benjamin, existe toda uma discus-

são a respeito da morte da narrativa tradicional e do fazer artesanal que rondou

a pesquisa, alimentando reflexões importantes.

Foi sem dúvida a sensação de aceleração do tempo, causada pelo

aperfeiçoamento das técnicas produtivas inventadas pelo capitalis-

mo – o que suprimiu o fazer com as próprias mãos e com ele o pro-

cesso de dizer e escutar saberes da experiência – que desencadeou o

emudecimento das populações urbanas... Não havendo o fazer com

as próprias mãos, não há o que contar. Não havendo o que contar,

desaparece o narrador. (TIERNO; ERDTMANN, 2017, p. 23)

Se no início da pesquisa de mestrado eu tinha dúvidas sobre a relevância do

fazer artesanal em um mundo cada vez mais frenético e acelerado – nesse sen-

tido, em determinado entendimento, excessivamente tecnológico –, o resultado

que cheguei com as crianças do Solar e que aponta em direção à relevância do

fazer artesanal torna-se agora o ponto de partida que impulsiona novas rotas e

experiências com professores e adultos, num caminho de valorização de suas

experiências e trajetos de vida, suas visadas particulares e dedicações à educa-

ção. A prática e a linguagem dos tapetes de histórias continuam a fertilizar os

campos.

Page 210: Comunicação, audiovisual e educação

208 | Comunicação, audiovisual e educação

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A arte de criar tapetes de histórias | 209

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Page 212: Comunicação, audiovisual e educação
Page 213: Comunicação, audiovisual e educação

| 211

12Agamben e a profanação da educação:as relações do cinema com a sala de aula e a formação de professores

P edro Freitas

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, trago um recorte dos principais achados da minha pesquisa de

mestrado (FREITAS, 2018) que teve como objetivo investigar a possibilidade ou

não de profanar o processo educacional em uma sala de aula de formação de

professores através dos saberes cinematográficos. Essa pesquisa foi realizada no

contexto de um projeto institucional (FERNANDES, 2013) e o trabalho de campo

foi realizado com uma turma de formação de professores num curso intensivo

– com duração de três semanas, de segunda a sexta – oferecido no período de

férias em uma universidade pública. Tendo Giorgio Agamben como principal

autor para a pesquisa, no curso, precisei desenvolver uma metodologia que pro-

porcionasse o diálogo entre os escritos dele com a educação e a formação de pro-

fessores. O objetivo era discutir e refletir sobre os dispositivos de poder e se eram

ou não profanados pelos educandos no curso.

A escolha de Agamben para a pesquisa deve-se pela leitura que ele faz da

atualidade, buscando criar ideias para a modificação dela, principalmente com

a profanação dos dispositivos de poder. Elegeu-se como foco de diálogo no cam-

po a linguagem do cinema, o que tornou possível o trabalho com as indagações

provenientes de leituras sobre a cultura visual.

Page 214: Comunicação, audiovisual e educação

212 | Comunicação, audiovisual e educação

CULTURA VISUAL, ARTE E CINEMA

A partir da leitura de Campos (2012, p. 17), surgiu a definição de cultura visual,

que seria diferente de cultura visualista. Esta última seria relativa a um modelo

cultural fortemente marcado pela imagem e pela dimensão visual. Já a cultura

visual seria um subuniverso dentro de um universo cultural:

[...] um sistema em que os modos de olhar e representar visualmen-

te o que nos rodeia são, histórica e culturalmente, modelados. Deste

modo, não abrange unicamente os processos de produção de arte-

factos visuais e de comunicação visual, mas, igualmente, a forma

particular como as relações estabelecidas no âmbito do visível se

processam. Quem olha o quê e de que modo, são indagações centrais

para entender a cultura visual de um determinado período histórico

ou recorte social.

Logo, a cultura visual foi entendida como um sistema composto por diversos

subuniversos, com diferentes agentes, objetos, processos de produção, difusão

e recepção de imagens e bens visuais. Dentro desse universo, o cinema tem um

local privilegiado no século passado e no começo do século atual, constituin-

do uma ferramenta marcante na construção de diferentes culturas do ociden-

te. Nele, residem os resquícios de diferentes artes e, por isso, a história da arte

está no próprio cinema. (AGAMBEN, 2015b; BORDWELL, 2013; CANCLINI; 2010)

A questão que decorreu desse ponto foi: que história seria essa? A resposta en-

contrada, através do estudo genealógico de Agamben (2013a) sobre a arte no oci-

dente, nos apontou caminhos para entender o cinema, a arte e a cultura visual a

partir de uma leitura que questiona o universo estético.

O HOMEM SEM CONTEÚDO E O CINEMA COMO MEIO

Agamben (2013b) aponta que o saber estético tirou da arte seu conteúdo históri-

co, que era construir a verdade, para colocar o juízo estético como a única forma

de julgamento artístico. Esse saber gerou um homem sem conteúdo, o artista que

agora só tem em seu gesto de criação, sem nada de concreto para trabalhar, o jul-

gamento do que produzir. Ao mesmo tempo, o estatuto da arte foi cindido, de um

Page 215: Comunicação, audiovisual e educação

Agamben e a profanação da educação | 213

lado, o artista que incorpora o gênio da criação e, do outro, o espectador que só

possui seu juízo de gosto para julgar a obra. O artista vaga, agora, em uma total li-

berdade, sua subjetividade é a essência absoluta, separado de todo o conteúdo, é

a inessencialidade. A arte foi transformada, assim, em um nada que se nadifica,

sobrevivendo eternamente a si mesma, ilimitada e sem conteúdo. Ela morreu,

mas morreu porque “a morte é, precisamente, não poder morrer, não poder ter

mais como sua medida a origem da obra”. (AGAMBEN, 2013b, p. 99) Assim, a arte

tornou-se pura negação, ela, em sua essência, tornou-se niilista, tem o destino

dos seres humanos como o nada. Ela é incapaz de atingir sua dimensão concreta

e, por isso, sua crise é a crise da poises, que é o fazer mesmo dos seres humanos.

A poesia foi separada da práxis quando o trabalho intelectual foi separado

do manual. Indo a Platão e a Aristóteles, Agamben (2013b, p. 99) define, por sua

vez, a poesia como “aquilo que faz passar algo do não ser para o ser”. Sendo a

técnica que permite a entrada na presença da obra, dando-lhe uma forma, pois

“é precisamente a forma e a partir de uma forma que o que é produzido entra

na presença”. (AGAMBEN, 2013b, p. 105) Na contemporaneidade, a rigor, des-

de a segunda metade do século XVIII, o modo da presença das coisas poder ser

explicado como sendo dividido em dois, um sobre o estatuto da estética, a arte,

e o outro sobre o da técnica, produtos em geral. A arte passou a ser identificada

como fruto da originalidade ou autenticidade. Para os gregos, a verdadeira ativi-

dade produtiva estava na obra e não no artista, eles, sequer, separavam o artesão

do artista. Com a estética, essa relação se inverteu, a produtividade passou a ser

vista no artista e não na obra, que se tornou um resíduo da genialidade daquele.

(AGAMBEN, 2013a) No campo do vazio, o juízo estético e o prazer desinteressado

do espectador conduziram a arte ao Terror. (OLIVEIRA, 2013) Há alguma saída

dessa prisão? Agamben (2013b) diz que, quando a obra é dada ao gozo estético,

ela deixa de trazer a presença, de constituir uma realidade. Quando ela está na

dimensão do estatuto poético do ser humano, ela para o instante, despedaçan-

do o tempo linear, fazendo o ser humano se reencontrar no espaço presente,

“[...] alcançando uma dimensão mais original do tempo, o homem é um ser his-

tórico, para o qual está em jogo, a cada instante, o próprio passado e o próprio

futuro”. (AGAMBEN, 2013b, p. 164) Assim, a arte é o dom mais original dos seres

humanos e observá-la é: “[...] ser lançado para fora, em um tempo mais original,

êxtase na abertura epocal do ritmo, que doa e mantém. [...] Na experiência da

Page 216: Comunicação, audiovisual e educação

214 | Comunicação, audiovisual e educação

obra de arte, o ser humano está de pé na verdade, isto é, na origem que se lhe

revelou no ato poético”. (AGAMBEN, 2013b, p. 165)

Agamben (2013b) evoca a ideia de que estamos no Juízo Universal, o anjo

da história de Benjamin já há muito está no céu, na verdade, ele sempre esteve

lá. Consequentemente, abole-se a ideia de história linear para se afirmar que es-

tamos perpetuamente no evento fundamental da história humana, dando aos

seres humanos responsabilidade pelos seus atos. Devendo a arte tornar-se trans-

missão, independente do conteúdo:

Quando uma cultura perde os próprios meios de transmissão, o ho-

mem se encontra privado de pontos de referência e acuado entre um

passado que se acumula incessantemente às suas costas e o oprime

com a multiplicidade de seus conteúdos tornados indecifráveis e um

futuro que ele não possui ainda e não lhe fornece nenhuma luz na

sua luta com o passado. A ruptura da tradição, que é para nós hoje um

fato acabado, abre, de fato, uma época na qual, entre velho e novo,

não há mais nenhum liame possível, a não ser a infinita acumula-

ção do velho em um tipo de arquivo monstruoso ou o estranhamen-

to operado pelo meio mesmo que deveria servir a sua transmissão.

(AGAMBEN, 2013b, p. 175)

O passado cessou de ser critério para a ação e para a salvação. Assim, não há

mais a possibilidade de ele ser atualizado, como acontecia nas sociedades tra-

dicionais, a cada ato de transmissão. Segundo Martins (2015, p. 75), “[...] o que

está em jogo, na modernidade, não é mais a transmissibilidade de algo, mas a

exacerbação de uma absoluta intransmissibilidade”, o que compõe assim uma

cultura visualista. (CAMPOS, 2012) Isto é, agora, o conteúdo a ser transmitido é

sobrevalorizado, apagando o ato de transmitir em si. É preciso, portanto, apro-

priar-se da condição histórica da humanidade, saindo da ilusão do tempo linear

para se resolver o conflito entre passado e presente. (AGAMBEN, 2013b)

Trazer a arte de volta à presença, retirá-la do reino estético, é uma missão

messiânica, que o próprio Agamben (2013b) entende não ser possível somente

através da arte, mas que essa deve fazer seu papel largando as garantias do ver-

dadeiro por um amor à transmissibilidade. O cinema talvez seja a linguagem ar-

tística com maior potencial de redenção. Como aponta Agamben (2007, p. 24), ao

Page 217: Comunicação, audiovisual e educação

Agamben e a profanação da educação | 215

falar das fotografias (a matéria-prima da imagem cinematográfica são fotogra-

fias postas em movimento): “o sujeito fotografado exige algo de nós”, ele exige

não ser esquecido. Para ele, a fotografia “representa o mundo assim como apare-

ce no último dia, no Dia da Cólera”. (AGAMBEN, 2007, p. 23) Nesse dia, não será o

corpo que irá ressuscitar, “mas sua figura, seu eidos. A fotografia, nesse sentido,

é uma profecia do corpo glorioso”. (AGAMBEN, 2007, p. 25) São as fotos os teste-

munhos de todos os nomes perdidos, são elas como o livro da vida que um novo

anjo apocalíptico, o anjo da fotografia, “tem entre as mãos no final dos dias, ou

seja, todos os dias”. (AGAMBEN, 2007, p. 26) Força messiânica, de ética e política,

mais do que da estética, que o cinema carrega: “Trata-se, antes, de uma exigên-

cia de redenção. A imagem fotográfica é sempre mais que uma imagem: é o lugar

de um descarte, de um fragmento sublime entre o sensível e o inteligível, entre

a cópia e a realidade, entre a lembrança e a esperança”. (AGAMBEN, 2007, p. 25)

É através da montagem cinematográfica que, segundo Serge Daney ([199-]

apud AGAMBEN, 2014, p. 25), a imagem adquire seu poder messiânico. A mon-

tagem que se dá através da repetição e da paragem. A paragem é o poder de in-

terromper algo, o que justamente diferencia o cinema da narrativa, por exemplo.

Repetição “é a memória do que não era. O que é também a definição do cinema: a

memória do que não era”.1 (AGAMBEN, 2014, p. 26, tradução nossa) “A memória

é, por assim dizer, o órgão de modalização da realidade; ela é o que pode trans-

formar a realidade em possibilidade e a possibilidade em realidade. [...] O cine-

ma não faz isso sempre, transformar a realidade em possibilidade e possibilida-

de em realidade?”.2 (AGAMBEN, 2002, p. 316, tradução nossa)

Ou seja, o cinema pode trabalhar sobre a égide da possibilidade, proje-

tando poder e possibilidade em direção ao que seria impossível, ao passado.

(AGAMBEN, 2014) A repetição e a paragem fazem a imagem, então, aparecer

como média (meio), se configurando como um pure means, tornando-se visível

ao invés de desaparecer para o que está mostrando. O que contrapõe, segundo

Agamben (2014, p. 318, grifo do autor, tradução nossa), o conceito dominante de

expressão, proveniente do modelo hegeliano, que entende que “todas as expres-

1 Texto original: “is the memory of that which was not. This is also a definition of the cinema: the memory of that which was not”.

2 Texto original: “Memory is, so to speak, the organ of reality’s modalization; it is that which can trans-form the real into the possible and the possible into the real. Doesn’t cinema always do just that, trans-form the real into the possible and the possible into the real?”.

Page 218: Comunicação, audiovisual e educação

216 | Comunicação, audiovisual e educação

sões são realizadas por um medium […] que no final deve desaparecer na realiza-

ção completa da expressão”.3 A montagem clássica, fortemente usada pelo cine-

ma hollywoodiano – utilizado de forma massiva na tevê e nas séries de internet –,

tem como alicerce esse princípio (BORDWELL, 2013), ela pretende esconder ao

máximo a existência do médium.

Há duas maneiras de mostrar essa ‘desimagenilidade’, dois jeitos de

fazer visível o fato de não existir mais nada a ser visto. Uma é a por-

nografia e o anúncio, que agem como se sempre tivesse algo a mais

para ser visto, sempre mais imagens atrás da imagem; o outro jeito

é exibir a imagem como imagem e, assim, permitir a aparência da

‘desimagenilidade’, o que é, como disse Benjamin, o refúgio de todas

as imagens. É aqui, na diferença, que a ética e a política do cinema

surgem.4 (AGAMBEN, 2002, p. 319, tradução nossa)

O tema do cinema é a questão da ética e da política, segundo Agamben

(2015a). Para ele, o cinema está mais para essas questões do que para a estética,

isso não quer dizer que ele não esteja dentro do reino estético, mas que parece

evocar a ética e a política mais do que questões estéticas. É importante notar que

a ética aqui não se assemelha ao “direito a olhar” proposto por Mirzoeff (2016),

pois ao discutir a cultura visual, esse autor, coloca as questões éticas no campo

das disputas estéticas, espaço que, justamente, Agamben quer desativar como

dispositivo de poder na arte. O cinema parece, assim, mais propenso a redimir

a arte do que qualquer outro meio, pois precisamente evoca mais que questões

concernentes à imagem estética, evoca a própria ética dos gestos: “Se o fazer é

um meio em vista de um fim e a práxis é um fim sem meios, o gesto rompe a falsa

alternativa entre fins e meios que paralisa a moral e apresenta meios que, como

3 Texto original: “all expression is realized by a medium—an image, a word, or a color— which in the end must disappear in the fully realized expression”.

4 Texto original: “There are two ways of showing this ‘imagelessness,’ two ways of making visible the fact that there is nothing more to be seen. One is pornography and advertising, which act as though there were always something more to be seen, always more images behind the images; while the other way is to exhibit the image as image and thus to allow the appearance of ‘imagelessness,’ which, as Benjamin said, is the refuge of all images. It is here, in this difference, that the ethics and the politics of cinema come into play.”

Page 219: Comunicação, audiovisual e educação

Agamben e a profanação da educação | 217

tais, se subtraem ao âmbito da medialidade, sem se tornarem, por isso, fins”.

(AGAMBEN, 2015a, p. 59)

O gesto é, assim, uma medialidade pura e sem fim que se comunica, uma

comunicação de uma comunicabilidade, ela nada diz: “pois aquilo que mostra

é o ser-na-linguagem do homem como pura medialidade”. (AGAMBEN, 2015a,

p. 60) Podemos ver aqui a extrema proximidade entre o que faz Godard com a

imagem, ou melhor dizendo, com immageless e o gesto, que “faz aparecer o ser-

-em-um-meio do homem e, desse modo, abre-lhe a dimensão ética”. (AGAMBEN,

2015a, p. 59) Se “o cinema reconduz as imagens à pátria do gesto” (AGAMBEN,

2015a, p. 58), em Godard, isso é aparente. Ao mostrar o ser-na-linguagem, o ges-

to é essencialmente sempre gesto de não obter êxito na linguagem e, assim, é

sempre gag, “algo que se coloca na boca para impedir a palavra”. (AGAMBEN,

2015a, p. 60)

PROFANAR E EDUCAR

Para Agamben (1999), o estudo é, em si mesmo, interminável, é um estado de

“potência”, por um lado passiva – paixão pura e virtualmente infinita –, por ou-

tro, potência ativa – tensão que é irredutível em direção ao seu fim. O estudante

seria alguém que foi atingido por um sinal e ficou estupefato, absorto em um

processo de sofrimento e paixão que, devido à herança messiânica do estudo,

incita-o a prosseguir e concluir. Vivendo-se em um ritmo de alternância entre

estupefação e lucidez, descoberta e perda, paixão e ação.

Na pesquisa, então, o que interessava era pensar uma metodologia que abrisse

espaço para que os participantes experimentassem o ato de estudar: o embate

e o choque que é encontrar fragmentos que prometem novas vias, que logo são

abandonadas em favor de novas descobertas. (AGAMBEN, 1999) Entretanto, é

preciso entender que a instituição universitária é também um dispositivo de po-

der, logo a ideia de estudo não é algo simplesmente dado na sala de aula, já que

os dispositivos sagram as “coisas”, isso é, as tiram do uso comum (AGAMBEN,

2009), e estudar é um ato, como apontado, que envolve a ação do indivíduo na

construção de seus percursos.

Para Agamben (2009), dispositivos de poder são mais que instituições –

como as prisões, manicômios e escolas –, são também a caneta, a escritura, o

Page 220: Comunicação, audiovisual e educação

218 | Comunicação, audiovisual e educação

cigarro, o telefone celular, o computador, a filosofia etc. “[...] Qualquer coisa que

tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, intercep-

tar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os dis-

cursos dos seres viventes”. (AGAMBEN, 2009, p. 49)

Os dispositivos são os meios pelos quais o poder interfere na individualida-

de, construindo as subjetividades. No entanto, na atual fase do capitalismo, o

que o dispositivo produz é um efeito de dessubjetivação, que está implícito no

próprio processo de subjetivação, constituindo não um novo sujeito, a não ser

como uma forma espectral: “Na não-verdade do sujeito não há mais de modo al-

gum a sua verdade [...] o espectador que passa as suas noites diante da televisão

recebe em troca da sua dessubjetivação apenas a máscara frustrante do zappeur

ou a inclusão no cálculo de um índice de audiência”. (AGAMBEN, 2009, p. 47-48,

grifo do autor)

A educação, assim, é um dispositivo por si só, assim como a universidade

e a escola o são, em todos seus aspectos: os saberes trabalhados, a carteira da

sala, o quadro, os horários etc. (AZEVEDO; ROSA, 2014) A questão é, então, como

desarmar esse dispositivo? Para Agamben (2007, p. 61), isso ocorre através da

profanação, ato que “[...] desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso co-

mum os espaços que ele havia confiscado”. Sendo o oposto de sagrar, “[...] que

designava a saída das coisas da esfera do direito humano”. (AGAMBEN, 2007,

p. 61) Essa devolução não é um voltar para um suposto estado natural das coi-

sas, mas levar a um novo uso delas, de maneira a brincar com a separação, se

fazer ato de emancipação da sua relação com a finalidade original, criando um

meio puro, desativando os velhos usos e, assim, os dispositivos que produzem a

separação. Logo, não é uma relação negativa, de tentativa de enfrentamento de

determinado dispositivo pela sua negação, o que acabaria, em última instância,

confirmando o dispositivo. Pelo contrário, é a abertura para uma nova forma de

utilização das coisas que não destrói o dispositivo, mas ele, ainda existindo, se

torna inoperante, ineficaz, suspenso:

A atividade que daí resulta torna-se dessa forma um puro meio, ou

seja, uma prática que, embora conserve tenazmente a sua natureza

de meio, se emancipou da sua relação com uma finalidade, esque-

ceu alegremente o seu objetivo, podendo agora exibir-se como tal,

como meio sem fim. Assim, a criação de um novo uso só é possí-

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Agamben e a profanação da educação | 219

vel ao homem se ele desativar o velho uso, tornando-o inoperante.

(AGAMBEN, 2007, p. 67)

A ideia de estudo se combina na pesquisa com a de cinema na relação que se

faz de ambas como meio puro em um ato político de desativação dos dispositi-

vos. Portanto, com a linguagem do cinema e seu meio de produção, foi pensado

uma forma de criar condições para que outro uso dos processos educacionais

fosse possível, ou seja, para que a profanação da educação pudesse acontecer.

CRIANDO UMA METODOLOGIA

Optou-se pela utilização de uma metodologia que permitisse ver as reações e as

criações dos educandos como um processo de constituição de si exposto em seus

diversos discursos permeados pelas suas experiências, a partir da noção de que

só podemos fazer experiências e não mais tê-las. Para tal, era necessário traçar

uma proposta metodológica mais livre, que proporcionasse uma abertura maior

para que o experimentado em campo se expropriasse com honestidade na lin-

guagem, constituindo-a como lugar intencional da verdade. (AGAMBEN, 2005)

Experiência, no entanto, está vinculada à imaginação e tem uma conexão intrín-

seca com o tempo. Isto é, era preciso que a metodologia permitisse uma relação

diferente com o tempo da pesquisa: valorizando o átimo, não como ponto no

tempo linear contínuo na construção de um progresso, mas procurando enten-

der que o passado se presentifica sem ser prisão ou acúmulo de conhecimento,

por isso, o resgate de memórias desenvolvido (seja através das memórias dos

educandos, seja através dos textos, seja através dos filmes, ou de outras formas

de se entrar em contato com a memória de nossa sociedade); e explicitando que

do futuro não se deve esperar um modelo exato (o que, nesse ponto, parece ser

um pressuposto de qualquer pesquisa, não esperar algo que já se sabe, ou que

se deseja). Assim, era necessário que a pesquisa tentasse construir situações em

que pudessem florescer o tempo parado, um tempo vivido de forma suspensa,

um tempo como história, o kairós, em um processo de trabalho “[...] que, a cada

instante, é capaz de parar o tempo, pois conservava a lembrança de que a pátria

originária do homem é o prazer”. (AGAMBEN, 2005, p. 126, grifo nosso) O prazer

foi, então, uma preocupação fundamentalmente metodológica, sem ele não ha-

veria possibilidade de que a pesquisa pudesse contemplar o que ela objetivava.

Page 222: Comunicação, audiovisual e educação

220 | Comunicação, audiovisual e educação

Além disso, era de extrema importância que a imaginação dos participantes fos-

se levada em conta como saber, entendida como ligada ao conhecimento e, até

mais, como condição fundamental deste. (AGAMBEN, 2005) Demanda essa que,

por sua vez, trazia a ideia de desejo como pedra fundamental para o processo de

pesquisa: “[...] fantasia e desejo são estreitamente conexo. Aliás, o fantas-

ma, que é a verdadeira origem do desejo [...], e logo, em última análise, de

sua satisfação”. (AGAMBEN, 2005, p. 34-35, grifo do autor)

Através de dinâmicas, buscaram-se espaços para a construção de ideias,

de debates e a validação dos diversos saberes, tanto no âmbito coletivo quanto

individual. Tendo o cinema como inspiração, os trabalhos foram coordenados

pelos próprios participantes divididos em três Grandes Grupos (GG): produção,

continuidade e exibição. A cada semana, os integrantes mudavam de grupo.

O GG de produção tinha como função: organização das atividades propostas,

coordenando os Grupos de Trabalho (GTs) durante as atividades, organização

do espaço físico e materiais utilizados. O GG de continuidade devia: registrar

o diário de classe –texto resumitivo do que foi a aula –, as discussões ocorridas

nas atividades dos GTs e no trabalho final do GT (quando pedido). O GG de exi-

bição era responsável: pela explanação de informações relevantes para todos os

grupos, leitura da ata do encontro anterior, apresentação dos trabalhos escritos

realizados nos GTs e organização da exibição de outros materiais produzidos em

atividades.

Quase todas as tarefas diárias eram realizadas em GTs, nos quais membros

dos três GG se misturavam, mantendo suas responsabilidades. Um participante,

por aula, do GG continuidade, tinha como função registrar os acontecimentos do

dia, que era lido no encontro seguinte por algum integrante do GG de exibição.

Os GTs tinham, sempre, como primeira tarefa expor internamente o que

cada integrante pensava sobre o tema da atividade, de forma a trazer refletidas

suas histórias pessoais. Depois, eram confrontados com diferentes perspectivas

de múltiplos autores sobre o tema. Por fim, deveriam dar uma reposta sobre o

assunto, sem certo ou errado. Essa forma de atividade gerou um vasto material

para análise: escritas, vídeos e desenhos livres.

Outro pilar de produção de conhecimento foi o caderno pessoal. A cada dia,

os participantes deveriam escrever um relato pessoal, englobando os conhe-

cimentos trabalhados no dia e como haviam se sentido durante o desenvolvi-

mento da aula. A última tarefa da turma foi a produção de um curta-metragem

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Agamben e a profanação da educação | 221

Figura 1 – Exemplo de trabalho escrito

Fonte: fotografia do autor.

Figura 2 – Ata registro de atividades e trabalho com imagens

Fonte: fotografia do autor.

Page 224: Comunicação, audiovisual e educação

222 | Comunicação, audiovisual e educação

durante três dias. Somados a essa vivência final, os materiais produzidos em

grupo e o caderno pessoal permitem uma análise da relação que os indivíduos

pesquisados tinham e construíram com os saberes trabalhados, tanto no coleti-

vo quanto no individual.

OS CADERNOS PESSOAIS, INDÍCIOS DE PROFANAÇÃO NA FORMAÇÃO

A análise dos materiais produzidos no campo atentou para os indícios de dessa-

cralização dos aparatos envolvidos no processo educacional, dos mais abstratos

– como a ideia do que é conhecimento, por exemplo – aos mais concretos – como

o horário e notas, dentre outros. Assim, profanar a educação foi entendido como

o ato dos educandos constituírem seus saberes através de um processo de es-

tudo, apropriando-se dos meios de produção de discursos e produzindo coleti-

vamente o pensamento e, por isso, uma forma-de-vida: uma vida insegregável

de sua forma, inseparável da materialidade dos processos corpóreos e modos

de vida vividos pelos educandos e, assim, trazendo a existência ao pensamento.

(AGAMBEN, 2015a)

Figura 3 – Capa de um caderno pessoal

Fonte: fotografia do autor.

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Agamben e a profanação da educação | 223

A vivência em sala de aula levou a uma produção em que não foi evocado

“o fazer para ganhar uma boa nota ou o seu oposto, o descaso com a nota final”.

Figura 4 – Miolo de um caderno pessoal

Fonte: fotografia do autor.

Diversos relatos apontam uma preocupação com o trabalho estar bem feito

ou não e demonstram uma enorme importância com o processo de produção.

A relação julgamento-nota, assim, foi modificada. Relação que podemos inferir

estar no processo de julgamento e culpa. Para Agamben (2014), o acusado em

um processo perde sua inocência, ele já é culpado e a pena é o próprio julga-

mento. Dessa forma, sendo já culpado, a absolvição não é inocência, “pois ela é

só o reconhecimento de um non liquet, de uma insuficiência de julgamento”.

(AGAMBEN, 2018, p. 38, grifo do autor)

Na educação, podemos interpretar que essa relação funciona como um dis-

positivo de subjetivação a partir da qualificação em valor do educando em rela-

ção ao seu desempenho em um trabalho, a partir do ponto de vista do professor.

Page 226: Comunicação, audiovisual e educação

224 | Comunicação, audiovisual e educação

Numa espécie de tribunal, em que o educando apresenta uma obra a ser julgada

pelo professor que, por sua vez, como juiz, julga se ela contempla ou não os requi-

sitos elencados por ele para possuir a nota máxima. A soma de todos os trabalhos

durante o curso vai corresponder a nota final do educando e não a dos trabalhos.

Logo, o que se julga não é o trabalho, mas o educando. A tarefa realizada funcio-

na muito mais como prova ou falta de prova da culpa do réu de ter se desviado

de sua tarefa de educando: ser capaz de cumprir os requisitos elencados pelo

professor/juiz. Assim, como num tribunal, o educando já é acusado e já está sen-

do penalizado, podendo ser absolvido, por uma falta de “provas”. Entendemos

que esse dispositivo classificatório se tornou inoperante, sendo desarmado: ele

continuava a existir, pois, ao final, o currículo da universidade pedia uma nota

e os educandos sabiam que seriam classificados, mas não tendo mais efeito, não

mais operando sobre as subjetividades envolvidas nos trabalhos.

O outro ponto que parece ter sido afetado foi a dicotomia meio-fim. Havia

por parte dos estudantes o desejo de chegar ao produto final, inclusive porque

só poderia ser um estudo, na perspectiva agambiana, se existisse o incessante

prosseguir para concluir o estudado. (AGAMBEN, 1999) Entretanto, o objetivo

final de cada tarefa pareceu ficar em suspenso, inoperante, durante as ativida-

des. Por isso, a ação não se caracterizou nem como práxis e nem como fazer, mas

como um gesto, como um meio puro, “[...] rompendo a falsa alternativa entre fins

e meios [...]”. (AGAMBEN, 2015a, p. 59) As preocupações de muitos educandos

durante os encontros voltaram-se justamente para a vivência do processo pro-

dutivo, que os fazia perder a ideia do fim obrigatório imposto pelo titã Krónos,

principalmente pela alegria de realizar as tarefas, o que paralisava o tempo, tra-

zendo o cairos (AGAMBEN, 2005): “[...] o tempo passou e mal percebemos, quando

vimos estava na hora de ir embora [...]” (P.A. Caderno Pessoal, 17 de fevereiro de

2018); “[...] nos divertimos muito no ensaio, a produção levou tudo muito a sério e

se permitissem estaríamos gravando noite a fora [...]”. (J.C., Caderno Pessoal, 21

de fevereiro de 2017)

A felicidade se juntou a diferentes sentimentos e demonstrou uma relação

verdadeiramente intrínseca entre sentimentos e conhecimentos, uma relação

imanente: “Me envolvi, me emocionei, me liberei, me estressei, mas saio com uma

vasta bagagem informativa e formativa […]”. (A.S., Caderno Pessoal, 23 de feve-

reiro de 2017)

Page 227: Comunicação, audiovisual e educação

Agamben e a profanação da educação | 225

Para Agamben (2015b, p. 335), a imanência é um agenciamento absoluto, “[...]

que inclui também a ‘não-relação’, ou a relação que deriva de não-relação [...]”.

O que é imanente jorra não de si, e sim deságua incessante e vertiginosamente em

si mesmo, é um movimento que, no entanto, suspende o movimento, é potência.

Logo, a relação sentimento-conhecimento mostrou-se como algo único, um está

no outro como potência. A imanência se deu também no próprio ato de cons-

trução do trabalho, nas relações que se constituíram dentro dos grupos. O sen-

timento expresso de comunhão com os colegas, nas circunstâncias vividas, per-

mitiu uma formação imanente. (D’HOEST; LEWIS, 2015) Isto é, “[...] estudo entre

amigos que estão em mútua aprendizagem em relação a um sinal”.5 (D’HOEST;

LEWIS, 2015p. 539, tradução nossa) A relação entre amigos transformou o estu-

do em um processo de compartilhar o compartilhamento, de dividir a própria

existência com o outro e, ao mesmo tempo, separado dele, numa com-divisão.

(AGAMBEN, 2009) Logo, a aprendizagem não se deu de um para outro, mas de

um que se faz o outro e do outro que se faz o um: “ouvi ideias se complementarem

e pude ver a expressão nos rostos de surpresa e contentamento quando uma ideia se

agregava a outra”. (G.L., Caderno Pessoal, dia 08 de fevereiro de 2017); “engraça-

do ver como as pessoas se abriam com outros que nem conheciam e dividiam suas

experiências [...]”. (M.S., Caderno Pessoal, dia 07 de fevereiro de 2017).

Outro aspecto modificado foi a relação entre verdade e linguagem. A partir

do momento em que os educandos estavam envolvidos passionalmente com as

suas produções, compartilhando suas ideias com os amigos, tornaram-se uma

espécie de professor do outro e, por imanência, de si mesmo. Assim, os saberes

oriundos dos próprios educandos fugiram das dicotomias das ciências moder-

nas e se deram como um conhecimento unido ao prazer, como filosofia, de um

amor do saber e de um saber de amor. (AGAMBEN, 2017)

O que os integrantes relatavam nas apresentações de um grupo para o outro

não foi, em sua maioria, um mero cumprimento de dever, passando a ser um

dizer passional que professava o saber constituído em grupo, como palavra de fé

messiânica e, por isso, como afirmação da vida para além da negatividade e da

dialética. (VLIEGHE; ZAMOJSKI, 2017) Sendo uma experiência da palavra, “[...]

se apresenta como uma pura e comum potência do dizer, capaz de um uso livre e

gratuito do tempo e do mundo”. (AGAMBEN, 2016, p. 154) Assim, resguardou-se

5 Texto original: “[...] studying between friends who are in mutual apprenticeship to a sign”.

Page 228: Comunicação, audiovisual e educação

226 | Comunicação, audiovisual e educação

uma potência no ato, capaz de desarticular saberes passados e modificá-los no

presente (AGAMBEN, 2016):

Mudando totalmente meu conceito formado ontem sobre o que é arte, hoje já penso

que nem tudo é arte [...] arte para mim está ligado à questão do que é belo para de-

terminada sociedade. O momento social histórico, político, cultural, e até mesmo fi-

losófico, interfere profundamente na concepção de beleza da mesma. (P.S. Caderno

Pessoal, 10 de fevereiro de 2017)

REFERÊNCIAS

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abs/10.1177/1478210317706621. Acesso em: 5 abr. 2018.

Page 231: Comunicação, audiovisual e educação

| 229

Sobre os autores

Adriana Hoffmann

Professora associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

(UNIRIO), é coordenadora do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual,

Cultura e Educação (CACE UNIRIO) pesquisando as interrelações entre comuni-

cação, educação e arte. Atua como organizadora desse livro junto com Vanessa

Gnisci e Rosane Tesch sendo co-autora de vários artigos publicados nesse livro

que comemora os 10 anos do grupo de pesquisa que coordena.

Daniela Fossaluza

Formada em Artes Cênicas com mestrado em Educação, ambos pela

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Especialista em lite-

ratura infantojuvenil pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atriz,

artesã, contadora de histórias e idealizadora e coordenadora do projeto de arte

e educação e grupo de artistas – Costurando Histórias – há mais de vinte anos,

desenvolvendo atividades em instituições de ensino, arte e cultura. Membro do

grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação (CACE) da

Unirio com pesquisa voltada para a contação de histórias e sua relação com a

tecnologia.

Érica Rivas Gatto

Doutoranda e mestre em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio

de Janeiro (Unirio). É membro do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual,

Cultura e Educação (CACE) da Unirio desde 2011 e desenvolve sua trajetória

Page 232: Comunicação, audiovisual e educação

230 | Comunicação, audiovisual e educação

acadêmica de pesquisa abordando temáticas voltadas para as relações entre in-

fância, narrativas e mídias. Professora do Colégio Pedro II, atuando no ensino

fundamental.

Érika Lourenço de Menezes

Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

(Unirio) com graduação em Licenciatura em Educação Artística - Desenho, pela

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).  Foi membro do grupo de pes-

quisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação (CACE) da Unirio, no qual

desenvolveu uma pesquisa relacionada a jovens e desenhos animados. Professora

de Desenho do Colégio Pedro II, atuando no segundo segmento do ensino funda-

mental e no ensino médio.

Jamila Guimarães

Mestre em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

(Unirio), licenciada em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Rio de

Janeiro (UFRJ). Foi membro do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual,

Cultura e Educação (CACE) da Unirio, no qual desenvolveu uma pesquisa sobre a

relação dos professores de Artes Visuais e o audiovisual em suas aulas. Atua há

oito anos como professora na Prefeitura municipal do Rio de Janeiro e, desde

2016, leciona na Prefeitura municipal de Duque de Caxias, além de atuar em pro-

jetos paralelos relacionados à moda e à consultoria de imagem.

Joana Sobral Milliet

Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de

Janeiro (PUC-Rio), bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior (Capes). Atualmente, é integrante do Grupo de Pesquisa Educação

e Mídia (Grupem). Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Estado

do Rio de Janeiro (Unirio). Formada em Comunicação Social (Jornalismo) e es-

pecialista em Mídia-Educação pela PUC-Rio. Foi membro do grupo de pesquisa

Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação (CACE) da Unirio, no qual pes-

Page 233: Comunicação, audiovisual e educação

Sobre os autores | 231

quisou as pedagogias da animação por professores de escolas públicas que pro-

duzem filmes com seus alunos. Atua há 20 anos em projetos sociais na área de

mídia e educação.

Kelly Maia Cordeiro

Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

(PUC-Rio), bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior (Capes). Integrante do Grupo de Pesquisa Educação e Mídia (Grupem)

da PUC-Rio e do Observatório de Educação Especial e Inclusão Educacional

(ObEE) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Mestrado em

Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Foi

membro do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação

(CACE) da Unirio, bolsista do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e

Expansão das Universidades Federais (Reuni), no qual pesquisou a relação dos jo-

vens com o cinema na escola pública. Professora na rede municipal de educação

em Angra dos Reis (RJ).

Lucineia Batista

Pedagoga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestre em

Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Foi

membro do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação

(CACE) da Unirio, no qual pesquisou a relação dos jovens com a aprendizagem

pelo YouTube. Na área há 40 anos, atuou como docente nas redes públicas de en-

sino no Rio de Janeiro e em formação de professores. Prestou consultoria para a

série “Trama do Olhar” da TV Escola e TVE. No Canal Futura, foi supervisora pe-

dagógica de produtos audiovisuais e participou de projetos sociais. Atualmente,

trabalha com atendimento educacional especializado no Colégio Pedro II.

Lucy Anna Diniz

Pedagoga formada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

(Unirio). Foi membro do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e

Page 234: Comunicação, audiovisual e educação

232 | Comunicação, audiovisual e educação

Educação (CACE) da Unirio como bolsista de iniciação científica de 2013 a 2016 e,

desde o ano de 2017, é orientadora educacional no Colégio Federal Geraldo Reis

- Coluni da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Margareth Olegário

Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

(PUC-Rio), mestrado em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio

de Janeiro (Unirio). Pós-graduação em Psicopedagogia com ênfase em educação

inclusiva pela PUC-Rio. Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado

do Rio de Janeiro (UERJ). Foi membro do grupo de pesquisa Comunicação,

Audiovisual, Cultura e Educação (CACE) da Unirio durante o mestrado, com

pesquisa sobre a relação dos jovens cegos com o cinema na escola. Docente no

ensino básico técnico e tecnológico do Instituto Benjamin Constant (IBC) do

Ministério da Educação (MEC) com experiência como consultora em audiodes-

crição e tutora a distância.

Pedro Freitas

Doutorando em Educação na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

(Unirio), pedagogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em

Direção Cinematográfica pela Escola Brasileira de Audiovisual (Escola de

Cinema Darcy Ribeiro). Na graduação, pesquisou, durante três anos, em regime

de iniciação científica, a relação entre oralidade e audiovisual. Como integrante

do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação (CACE) da

Unirio, pesquisou a relação Cinema, educação e profanação e, atualmente, ini-

cia o doutorado. Atua profissionalmente como midiaeducador no Colégio Santo

Inácio, desenvolvendo projetos de midiaeducação e realizando trabalhos artísti-

cos com fotografia e vídeo.

Renata Costa Ferreira

Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

(Unirio), pós-graduada em Educação Psicomotora pelo Colégio Pedro II. Foi in-

Page 235: Comunicação, audiovisual e educação

Sobre os autores | 233

tegrante do grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação

(CACE) da Unirio como bolsista de iniciação científica por três anos na graduação.

Já atuou como professora de educação infantil no município do Rio de Janeiro

e na Prefeitura de Belford Roxo.  Atualmente, atua como professora do ensino

fundamental na rede municipal do Rio de Janeiro

Thamyres Dalethese

Mestre em Educação e graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do

Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Durante a graduação, foi membro do projeto

de extensão “Cine CCH: aprendizagens com o cinema”, um cineclube dentro da

universidade a partir do qual desenvolveu sua monografia. Durante a graduação

e mestrado, foi integrante, durante seis anos, do grupo de pesquisa Comunicação,

Audiovisual, Cultura e Educação (CACE) da Unirio, desenvolvendo pesquisa so-

bre cinema e YouTube. Atualmente, é professora dos anos iniciais na rede muni-

cipal do Rio de Janeiro.

Page 236: Comunicação, audiovisual e educação

Este livro foi publicado no formato 17 x 24 cm utilizando a família tipográfica Tiempos Text e ScalaSansMiolo em papel Off-Set 75 g/m2 impresso na EDUFBA Capa em Cartão Supremo 300 g/m2 impressa na Gráfica 3300 exemplares

Page 237: Comunicação, audiovisual e educação
Page 238: Comunicação, audiovisual e educação

O livro Comunicação, audiovisual e educação: narrativas de pesquisa traz uma diversidade de

estudos sobre a temática, dialogando com várias obras e pesquisas anteriormente publicadas no Brasil. Destina-se ao público de pesquisadores

professores e alunos de pós-graduação e demais interessados em investigações que relacionem a comunicação e a educação, tendo o audiovisual

como elemento de diálogo e reflexão.

grupo de estudios e investigación comunicación audiovisual, cultura y educación