comunicando cristo em um contexto animista · fenômeno do animismo na bíblia, desde as práticas...
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NORVAL OLIVEIRA DA SILVA
COMUNICANDO CRISTO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Londrina 2007
NORVAL OLIVEIRA DA SILVA
COMUNICANDO CRISTO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Monografia apresentada em cumprimento agraves exigecircncias do Curso de Bacharel em Teologia da Faculdade Teoloacutegica Sul Americana
Londrina 2007
DEDICATOacuteRIA Agrave minha querida esposa Laudiceacuteia e aos meus filhos Lucas Ana Carolina e Sara Pelo amor e carinho que tenho recebido sempre e pelo encorajamento nos momentos mais difiacuteceis Sem vocecircs natildeo conseguiria ter concluiacutedo mais essa etapa de minha vida acadecircmica
AGRADECIMENTOS
A Deus e ao nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo pelas vitoacuterias e alegrias que nos outorgou neste tempo de estudos
Aos meus colegas de missatildeo incentivadores constantes do meu crescimento como estudante dando-me conselhos e sugestotildees de como desenvolver esta pesquisa
Agrave Faculdade Teoloacutegica Sul Americana (FTSA) por sua visatildeo de preparar vidas para servir o
Reino de Deus entre as quais somos uma
Aos colegas Al e Cheryl Jensen pelo apoio e incentivo aleacutem de permitirem que eu usasse a sua biblioteca
Agraves missotildees ALEM e APMT que me acompanham em meu trabalho missionaacuterio e compreen-dem a importacircncia dessa pesquisa para o bom desempenho no campo transcultural
A Isaac Costa de Souza Cheryl Jensen e minha esposa Laudiceacuteia de Melo Silva pela revi-satildeo e correccedilatildeo do texto aleacutem de preciosas sugestotildees A Micla Souza pela traduccedilatildeo do abstract
Ao meu pai Antonio Fernandes da Silva por entender o valor inestimaacutevel da educaccedilatildeo e por ter se sacrificado para que eu e meus irmatildeos pudeacutessemos alcanccedilaacute-la
RESUMO DA SILVA Norval Oliveira Comunicando Cristo em um contexto animista 2007 60 paacutegi-nas (Monografia de Bacharelado em Teologia ndash Faculdade Teoloacutegica Sul Americana)
Apresenta uma anaacutelise do animismo enquanto forma de religiatildeo caracteriacutestica da maioria dos povos a serem alcanccedilados com o Evangelho de Jesus Cristo Faz uma siacutentese do fenocircmeno do animismo na Biacuteblia desde as praacuteticas politeiacutestas-animistas das naccedilotildees que cir-cundavam o povo de Israel no Antigo Testamento passando por uma anaacutelise da visatildeo e ati-tudes de Jesus e seus disciacutepulos sobre o mundo dos espiacuteritos culminando no ministeacuterio do apoacutestolo Paulo Daacute-se especial atenccedilatildeo agrave atitude e estrateacutegia do apoacutestolo Paulo para com os cristatildeos da cidade de Eacutefeso ante o problema da magia e outras praacuteticas animistas muito popu-lares naquela cidade e que de uma forma ou de outra afetavam os receacutem-convertidos ao e-vangelho Analisa-se os principais termos empregados pelo apoacutestolo em sua Carta aos Efeacute-sios que tecircm relaccedilatildeo com o mundo dos principados e potestades espirituais Daacute-se atenccedilatildeo ao conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista enfocando-se de forma especial salvaccedilatildeo co-mo mudanccedila de domiacutenio isto eacute animistas que outrora estavam subordinados aos espiacuteritos encontraratildeo salvaccedilatildeo e seguranccedila em Jesus Cristo o Senhor dos Senhores aquele que derro-tou e humilhou os espiacuteritos em sua morte de cruz
ABSTRACT DA SILVA Norval Oliveira Communicating Christ in an animist context 2007 60 pages (Bachelors Final Paper in Theology ndash Faculdade Teoloacutegica Sul Americana)
This paper analyses animism as the form of religion which is characteristic of most people who still need to be reached by the Gospel of Jesus Christ It gives a synthesis of the phenomenon of animism in the Bible from the polytheistic-animistic practices of the nations that surrounded the Israelite people in the Old Testament to the analyses of the attitudes of Jesus and His disciples in relation to the spirit world and culminating in the ministry of the apostle Paul Special attention is given to apostle Paulrsquos attitude and strategy in relation to the Christians of the city of Ephesus while approaching the problem of magic and other animis-tic practices which were very popular in that city and which one way or another affected those recently converted to the Gospel This paper also analyzes the main terminology related to the world of spiritual principalities and potentates used by the apostle in his letter to the Ephesians Attention is given to the concept of salvation in an animistic context focusing especially on the concept of salvation as a change of dominion ie animists who were for-merly subordinated to spirits will find salvation and safety under the dominion of Jesus Christ the Lord of Lords who defeated and humiliated the spirits by His death on the cross
SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 10 CAPIacuteTULO I Animismo conceitos e praacuteticas 13
11 O uso histoacuterico do termo 13 12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo 15 13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista 16
131 Holismo 16 132 Espiritualismo 16 133 Religiatildeo de poder 17 134 Vida comunitaacuteria 18 135 O mundo dos espiacuteritos 19 136 Religiatildeo de medo 20
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas 21 141 Praacutetica de rituais 21 142 Tipos de rituais 22
1421 Ritos apotropaacuteicos 23 1422 Ritos de eliminaccedilatildeo 23 1423 Ritos de purificaccedilatildeo 24 1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo 24
143 Uso de magia 25 144 O papel dos especialistas 27 145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual 28
CAPIacuteTULO II O Mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia 30
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento 31 211 O animismo como forma de religiatildeo antiga 31 212 A natureza dos iacutedolos 32
213 Espiacuteritos territoriais 30 214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas 30
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento 30 221 O ministeacuterio de Jesus 31 222 O ministeacuterio dos disciacutepulos 31 223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista 32
2231 A teologia Paulina a respeito dos espiacuteritos 33 2232 O contexto religioso subjacente agrave Carta aos Efeacutesios 33 2233 A natureza dos Principados e Potestades 34
22331 Anjos bons 34 22332 Estruturas sociais malignas 34 22333 Espiacuteritos malignos 35
224 O significado de stoicheia em Gaacutelatas 35 225 A batalha da igreja contra os Principados e Potestades 37 226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos 37
CAPIacuteTULO III A mensagem de salvaccedilatildeo em um contexto animista 41
31 O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo 41 311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva 41 312 Conceito escatoloacutegico 43 313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva 44
314 Conceito de resgate - Cristus Victor 45 32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista 46
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio 46 322 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista 48
33 O que a Biacuteblia fala sobre o senhorio 49 331 Ocorrecircncia do termo lsquosenhorrsquo na Biacuteblia 49
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno 50 35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo 51 36 Teologia do Reino versus teologia de conversatildeo 53 37 A luta contra o sincretismo 54 38 A relevacircncia do tema para hoje 55
CONCLUSAtildeO 56 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59
ABREVIACcedilOtildeES
ARA- Biacuteblia traduccedilatildeo de Joatildeo Ferreira de Almeida Atualizada
NTLH- Nova Traduccedilatildeo na Linguagem de Hoje
AT- Antigo Testamento
NT- Novo Testamento
APMT- Agecircncia Presbiteriana de Missotildees Transculturais ALEM- Associaccedilatildeo Linguumliacutestica Evangeacutelica Missionaacuteria
INTRODUCcedilAtildeO
Estima-se que 40 por cento da populaccedilatildeo mundial tomam o animismo como base de
suas crenccedilas Calcula-se tambeacutem que entre os 88 por cento daqueles classificados como povos
natildeo alcanccedilados pelo evangelho 135 milhotildees satildeo tribos animistas Aleacutem disso 19 bilhotildees de
pessoas no mundo estatildeo de alguma forma inseridos em uma religiatildeo mundial que apresenta
formas sincreacuteticas com o animismo Pode-se concluir portanto que o mundo natildeo alcanccedilado pelo
Evangelho como um todo eacute animista
Esse grande nuacutemero de grupos animistas natildeo alcanccedilados indica a necessidade urgente
de missionaacuterios aprenderem como comunicar a Palavra de Deus de forma eficaz em contextos
animistas
Quando se verifica a literatura sobre o tema comunicaccedilatildeo do Evangelho em contexto
animista poreacutem o que se constata eacute a ausecircncia quase absoluta de qualquer material que venha a
contribuir para a formaccedilatildeo do missionaacuterio transcultural brasileiro
O objetivo desta pesquisa eacute dar um primeiro passo no que diz respeito agrave produccedilatildeo de
material que venha ajudar missionaacuterios brasileiros em seu preparo transcultural especialmente na
compreensatildeo de conceitos e praacuteticas animistas e na aplicaccedilatildeo contextualizada do Evangelho agrave
realidade animista
Aleacutem da falta de material especiacutefico sobre a comunicaccedilatildeo do Evangelho em contextos
animistas haacute ainda um outro elemento complicador Os missionaacuterios brasileiros satildeo treinados nos
moldes do mundo ocidental sendo portanto influenciados pela teologia ocidental teologia essa
que parece natildeo levar muito em conta a questatildeo do mundo dos espiacuteritos Natildeo eacute raro encontrar
missionaacuterios brasileiros que vatildeo trabalhar com um povo animista mas que nem mesmo acreditam
na existecircncia de espiacuteritos Esses missionaacuterios satildeo frutos de uma teologia europeacuteia-americanizada
11
cuja tendecircncia ao materialismo no miacutenimo menospreza a realidade do mundo espiritual Ao
comunicar o Evangelho o missionaacuterio tenderaacute a reproduzir o modelo recebido e correraacute o risco
de natildeo comunicar o Evangelho de uma forma que cause impacto na mente e no coraccedilatildeo do povo
a ser alcanccedilado
A metodologia utilizada nesta pesquisa foi primariamente uma pesquisa bibliograacutefica
Quase todas as obras utilizadas foram escritas na liacutengua inglesa pois como jaacute mencionado quase
natildeo se encontra material sobre o tema em liacutengua portuguesa Aleacutem da pesquisa bibliograacutefica
incluem-se tambeacutem informaccedilotildees dadas por missionaacuterios que jaacute atuam com povos animistas cujos
testemunhos datildeo suporte aos conceitos apresentados A pesquisa foi dividida em trecircs capiacutetulos
No primeiro capiacutetulo apresenta-se o animismo sob o ponto de vista fenomenoloacutegico
sem qualquer julgamento teoloacutegico quanto agrave sua natureza e o seus fins Descrevem-se os
principais conceitos e as praacuteticas mais comuns da religiatildeo animista
No segundo capiacutetulo busca-se uma visatildeo panoracircmica do tema ldquoespiacuteritos na Biacutebliardquo O
principal objetivo eacute demonstrar que a Biacuteblia trata a existecircncia dos espiacuteritos de forma realista ou
seja os autores biacuteblicos natildeo tentam provar a existecircncia de seres espirituais partem do
pressuposto de que eles satildeo reais
No terceiro capiacutetulo desenvolve-se o tema da salvaccedilatildeo uma breve alusatildeo ao seu
desenvolvimento teoloacutegico na histoacuteria da igreja e por fim a defesa da tese de que o tema da
salvaccedilatildeo como ldquotransferecircncia de domiacuteniordquo eacute o mais apropriado para introduzir o Evangelho no
contexto animista Coloca-se tambeacutem a necessidade de apresentar-se o evangelho de forma
contextualizada Entende-se a contextualizaccedilatildeo natildeo como uma forma de acomodaccedilatildeo do
Evangelho aos moldes culturais animistas mas como uma estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que parte
12
do conhecido para o desconhecido do antigo para o novo O capiacutetulo finaliza-se com uma
apresentaccedilatildeo do conceito de ldquoteologia do Reinordquo e sua visatildeo integral da obra de salvaccedilatildeo
CAPIacuteTULO 1
ANIMISMO CONCEITOS E PRAacuteTICAS
Neste capiacutetulo abordaremos o tema do animismo de forma geral e abrangente
iniciando com uma anaacutelise histoacuterica do fenocircmeno e de sua terminologia ateacute os seus conceitos
fundamentais e suas praacuteticas mais comuns Fazemos aqui uma anaacutelise antropoloacutegica do
fenocircmeno religioso animista sem atribuirmos qualquer juiacutezo de valor ao termo animismo e
aos seus cognatos Vale-se do pressuposto de que eacute a partir do conhecimento fenomenoloacutegico
e de uma visatildeo criacutetica que poderemos posteriormente avaliar suas crenccedilas e praacuteticas agrave luz
das Escrituras Sagradas
11 Uso histoacuterico do termo
O termo ldquoanimismordquo eacute derivado da palavra anima em Latim e quer dizer ldquofocirclegordquo ou
ldquofocirclego de vidardquo Ele traz consigo a ideacuteia de alma ou espiacuterito (Steyne 1992 p 36) A palavra
foi usada pela primeira vez pelo antropoacutelogo britacircnico Edward B Tylor em seus escritos
mais antigos Em 1873 em sua obra Religion in Primitive Culture ele definiu animismo
como ldquoa doutrina de Seres Espirituaisrdquo (1970 p 9) e afirmou que ldquoAnimismo em seu
desenvolvimento pleno incluiacutea a crenccedila em almas e em seu estado futuro em deidades
controladoras e espiacuteritos subordinados (hellip) resultando em algum tipo de adoraccedilatildeordquo (1970 p
11) Esses espiacuteritos incluem tanto os espiacuteritos dos ancestrais vivos que satildeo ldquocapazes de
existecircncia continuadardquo apoacutes a morte como ldquooutros espiacuteritos em uma escala ascendente ateacute ao
ranking de deidades poderosasrdquo (Tylor 1970 p 10) Os escritos de Tylor abriram precedente
para definir animismo como ldquoa crenccedila em um poder sobrenatural personalizadordquo (Smalley
1971 p 24) Tylor partia do pressuposto evolucionistapositivista e acreditava que o
animismo era uma forma primitiva de religiatildeo forma essa que apresentava um modo de
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pensamento preacute-loacutegico desenvolvido posterior e gradativamente para o politeiacutesmo ateacute chegar
agraves religiotildees monoteiacutestas Apesar da rejeiccedilatildeo atual ao seu evolucionismo cultural e de
considerar-se incompleta sua ideacuteia sobre animismo natildeo se pode ignorar sua contribuiccedilatildeo para
o estudo desse assunto
Posteriormente o missionaacuterio R H Codrington descobriu na religiatildeo tradicional
Melaneacutesia em 1891 o conceito de ldquoforccedila espiritual impessoalrdquo Essa forccedila espiritual
denominada mana foi descrita em seu livro The Melanesians (Apud Steyne 1992)) Segundo
Steyne (1992) essa forccedila impessoal pode ser associada agrave energia uma essecircncia com a qual
todas as coisas satildeo carregadas e que pode passar de um elemento para outro Na religiosidade
popular brasileira por exemplo usam-se muito os termos ldquoenergia positivardquo e ldquoenergia
negativardquo para indicar a presenccedila ou natildeo de algum elemento imaterial existente que interfere
nos objetos e nas pessoas e que muitas vezes influenciam e ou determinam o curso de suas
vidas
Com base nos conceitos apresentados acima antropoacutelogos tecircm feito uma distinccedilatildeo
entre animismo crenccedila em espiacuteritos personificados e animatismo crenccedila em uma forccedila
impessoal Para Van Rheenen (1991) no entanto essa distinccedilatildeo reflete apenas uma visatildeo
exterior e natildeo fenomenoloacutegica aos proacuteprios grupos animistas pois para eles natildeo haacute distinccedilatildeo
clara entre forccedilas impessoais e seres espirituais Ele cita como exemplo o conceito de azar
na religiatildeo islacircmica Segundo o islamismo popular natildeo eacute possiacutevel saber se a origem do azar eacute
atribuiacuteda a jiin (ser espiritual personificado) ou ao mau olhado (forccedila impessoal) Assim a
definiccedilatildeo de animismo para esse autor eacute
A crenccedila que seres espirituais personificados e forccedilas espirituais impessoais tecircm poder sobre as atividades humanas e consequentemente que os seres humanos precisam descobrir quais os seres e forccedilas os estatildeo influenciando a fim de que determinem de que forma iratildeo agir e com frequumlecircncia como iratildeo manipular o poder deles (Van Rheenen 1991 pp 19-20)
15
Lothar Kaser por seu turno acrescenta mais alguns elementos em sua definiccedilatildeo de
animismo a saber a forma como esses seres sobrenaturais se manifestam
Entende-se por animismo em sua forma mais geneacuterica a crenccedila na existecircncia e atuaccedilatildeo de seres espirituais que se manifestam na forma de apariccedilotildees semelhantes a homens ou animais dispondo de conhecimentos poderes e possibilidades que o proacuteprio ser homem natildeo tem Em culturas tradicionais (sem escrita) fazem parte desses seres semelhantes a figuras espirituais natildeo somente os espiacuteritos propriamente ditos mas ainda alma de pessoas sob certas circunstacircncias tambeacutem objetos podem estar de posse de algo como uma alma (2004 p 215)
Como se pode ver o conceito de animismo sofreu modificaccedilotildees desde Tyler ateacute os
dias atuais
12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo
Estudiosos tecircm discutido ateacute que ponto o animismo eacute de fato uma religiatildeo uma vez
que natildeo possui elementos fundamentais caracteriacutesticos das religiotildees mundiais tais como
escritos sagrados templos missionaacuterios ou teologia uniforme Para Kaser por exemplo ldquoeacute
melhor (consideraacute-lo) uma cosmovisatildeo com muitos aspectosrdquo (2004 p 216) Jaacute para outros
autores esse tipo de pensamento manifesta certo etnocentrismo e preconceito pois vecirc a
religiatildeo apenas como o aspecto da vida que lida com o ldquoespiritualrdquo enquanto que a ciecircncia
lidaria com os aspectos naturais Essa postura que elimina fronteiras riacutegidas entre ciecircncia e
religiatildeo estaacute em consonacircncia com o construto poacutes-moderno de ciecircncia locus que considera as
conclusotildees de um xamatilde sobre a vida e o cosmo tatildeo vaacutelidas quanto as de um acadecircmico com
carreira universitaacuteria (ver por exemplo Ruy Ceacutesar do Espiacuterito Santo O Renascimento do
Sagrado na Educaccedilatildeo 2a Ed Coleccedilatildeo Praacutexis Campinas Papirus 2000)
Assim Hiebert Shaw amp Tieacutenou afirmam que
Antropoacutelogos agora definem lsquoreligiatildeorsquo como crenccedilas a respeito da natureza uacuteltima das coisas tais como sentimentos profundos e motivaccedilotildees valores fundamentais e lealdade Essa definiccedilatildeo fornece a maneira como as pessoas percebem a realidade Nesse sentido o ateiacutesmo budista Theravada Marxismo e cientificismo tambeacutem satildeo religiotildees (1999 p 35)
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Conclui-se portanto que o animismo eacute uma religiatildeo pois reflete uma forma especiacutefica
de interpretaccedilatildeo da realidade
13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista
Embora o animismo apresente facetas diversas nas diferentes regiotildees do mundo haacute
certas caracteriacutesticas que satildeo comuns a todos A seguir apresentamos as principais
131 Holismo
Segundo Steyne (1992 p 58) holismo eacute um termo filosoacutefico cuja visatildeo eacute de que a
vida eacute maior do que a soma de suas partes Ainda segundo Steyne ldquoo mundo interage consigo
mesmo O ceacuteu os espiacuteritos a terra o mundo fiacutesico o vivente e o falecido todos agem
interagem e reagem em consonacircnciardquo (1992 p 59) Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo proacutepria entre o
indiviacuteduo e o mundo Por essa razatildeo o animista natildeo faz separaccedilatildeo entre o sagrado e o
profano ou entre o secular e o religioso Conclui-se que o animismo eacute em uacuteltima instacircncia
uma forma de panteiacutesmo
132 Espiritualismo
O conceito de espiritualismo estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo de holismo e depende
dele Segundo a noccedilatildeo de espiritualismo a espiritualidade eacute a essecircncia fundamental da vida e
a vida estaacute repleta de possibilidades sobrenaturais Tudo na vida pode ser influenciado pelo
mundo dos espiacuteritos Tudo que ocorre no mundo fiacutesico tem um correspondente no mundo
espiritual e da mesma forma tudo que ocorre no mundo espiritual tem consequumlecircncias no
mundo fiacutesico (Van Rheenen 1991) Para os indiacutegenas brasileiros por exemplo a causa das
doenccedilas natildeo adveacutem simplesmente de bacteacuterias viacuterus etc mas da accedilatildeo direta dos espiacuteritos
sobre o indiviacuteduo Isso quase sempre resulta em acusaccedilotildees pela necessidade de se descobrir
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o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
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pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
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135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
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Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
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dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
22
Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
24
1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
26
si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
27
(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
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quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
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malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
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Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
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Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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NORVAL OLIVEIRA DA SILVA
COMUNICANDO CRISTO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Monografia apresentada em cumprimento agraves exigecircncias do Curso de Bacharel em Teologia da Faculdade Teoloacutegica Sul Americana
Londrina 2007
DEDICATOacuteRIA Agrave minha querida esposa Laudiceacuteia e aos meus filhos Lucas Ana Carolina e Sara Pelo amor e carinho que tenho recebido sempre e pelo encorajamento nos momentos mais difiacuteceis Sem vocecircs natildeo conseguiria ter concluiacutedo mais essa etapa de minha vida acadecircmica
AGRADECIMENTOS
A Deus e ao nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo pelas vitoacuterias e alegrias que nos outorgou neste tempo de estudos
Aos meus colegas de missatildeo incentivadores constantes do meu crescimento como estudante dando-me conselhos e sugestotildees de como desenvolver esta pesquisa
Agrave Faculdade Teoloacutegica Sul Americana (FTSA) por sua visatildeo de preparar vidas para servir o
Reino de Deus entre as quais somos uma
Aos colegas Al e Cheryl Jensen pelo apoio e incentivo aleacutem de permitirem que eu usasse a sua biblioteca
Agraves missotildees ALEM e APMT que me acompanham em meu trabalho missionaacuterio e compreen-dem a importacircncia dessa pesquisa para o bom desempenho no campo transcultural
A Isaac Costa de Souza Cheryl Jensen e minha esposa Laudiceacuteia de Melo Silva pela revi-satildeo e correccedilatildeo do texto aleacutem de preciosas sugestotildees A Micla Souza pela traduccedilatildeo do abstract
Ao meu pai Antonio Fernandes da Silva por entender o valor inestimaacutevel da educaccedilatildeo e por ter se sacrificado para que eu e meus irmatildeos pudeacutessemos alcanccedilaacute-la
RESUMO DA SILVA Norval Oliveira Comunicando Cristo em um contexto animista 2007 60 paacutegi-nas (Monografia de Bacharelado em Teologia ndash Faculdade Teoloacutegica Sul Americana)
Apresenta uma anaacutelise do animismo enquanto forma de religiatildeo caracteriacutestica da maioria dos povos a serem alcanccedilados com o Evangelho de Jesus Cristo Faz uma siacutentese do fenocircmeno do animismo na Biacuteblia desde as praacuteticas politeiacutestas-animistas das naccedilotildees que cir-cundavam o povo de Israel no Antigo Testamento passando por uma anaacutelise da visatildeo e ati-tudes de Jesus e seus disciacutepulos sobre o mundo dos espiacuteritos culminando no ministeacuterio do apoacutestolo Paulo Daacute-se especial atenccedilatildeo agrave atitude e estrateacutegia do apoacutestolo Paulo para com os cristatildeos da cidade de Eacutefeso ante o problema da magia e outras praacuteticas animistas muito popu-lares naquela cidade e que de uma forma ou de outra afetavam os receacutem-convertidos ao e-vangelho Analisa-se os principais termos empregados pelo apoacutestolo em sua Carta aos Efeacute-sios que tecircm relaccedilatildeo com o mundo dos principados e potestades espirituais Daacute-se atenccedilatildeo ao conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista enfocando-se de forma especial salvaccedilatildeo co-mo mudanccedila de domiacutenio isto eacute animistas que outrora estavam subordinados aos espiacuteritos encontraratildeo salvaccedilatildeo e seguranccedila em Jesus Cristo o Senhor dos Senhores aquele que derro-tou e humilhou os espiacuteritos em sua morte de cruz
ABSTRACT DA SILVA Norval Oliveira Communicating Christ in an animist context 2007 60 pages (Bachelors Final Paper in Theology ndash Faculdade Teoloacutegica Sul Americana)
This paper analyses animism as the form of religion which is characteristic of most people who still need to be reached by the Gospel of Jesus Christ It gives a synthesis of the phenomenon of animism in the Bible from the polytheistic-animistic practices of the nations that surrounded the Israelite people in the Old Testament to the analyses of the attitudes of Jesus and His disciples in relation to the spirit world and culminating in the ministry of the apostle Paul Special attention is given to apostle Paulrsquos attitude and strategy in relation to the Christians of the city of Ephesus while approaching the problem of magic and other animis-tic practices which were very popular in that city and which one way or another affected those recently converted to the Gospel This paper also analyzes the main terminology related to the world of spiritual principalities and potentates used by the apostle in his letter to the Ephesians Attention is given to the concept of salvation in an animistic context focusing especially on the concept of salvation as a change of dominion ie animists who were for-merly subordinated to spirits will find salvation and safety under the dominion of Jesus Christ the Lord of Lords who defeated and humiliated the spirits by His death on the cross
SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 10 CAPIacuteTULO I Animismo conceitos e praacuteticas 13
11 O uso histoacuterico do termo 13 12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo 15 13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista 16
131 Holismo 16 132 Espiritualismo 16 133 Religiatildeo de poder 17 134 Vida comunitaacuteria 18 135 O mundo dos espiacuteritos 19 136 Religiatildeo de medo 20
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas 21 141 Praacutetica de rituais 21 142 Tipos de rituais 22
1421 Ritos apotropaacuteicos 23 1422 Ritos de eliminaccedilatildeo 23 1423 Ritos de purificaccedilatildeo 24 1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo 24
143 Uso de magia 25 144 O papel dos especialistas 27 145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual 28
CAPIacuteTULO II O Mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia 30
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento 31 211 O animismo como forma de religiatildeo antiga 31 212 A natureza dos iacutedolos 32
213 Espiacuteritos territoriais 30 214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas 30
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento 30 221 O ministeacuterio de Jesus 31 222 O ministeacuterio dos disciacutepulos 31 223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista 32
2231 A teologia Paulina a respeito dos espiacuteritos 33 2232 O contexto religioso subjacente agrave Carta aos Efeacutesios 33 2233 A natureza dos Principados e Potestades 34
22331 Anjos bons 34 22332 Estruturas sociais malignas 34 22333 Espiacuteritos malignos 35
224 O significado de stoicheia em Gaacutelatas 35 225 A batalha da igreja contra os Principados e Potestades 37 226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos 37
CAPIacuteTULO III A mensagem de salvaccedilatildeo em um contexto animista 41
31 O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo 41 311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva 41 312 Conceito escatoloacutegico 43 313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva 44
314 Conceito de resgate - Cristus Victor 45 32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista 46
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio 46 322 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista 48
33 O que a Biacuteblia fala sobre o senhorio 49 331 Ocorrecircncia do termo lsquosenhorrsquo na Biacuteblia 49
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno 50 35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo 51 36 Teologia do Reino versus teologia de conversatildeo 53 37 A luta contra o sincretismo 54 38 A relevacircncia do tema para hoje 55
CONCLUSAtildeO 56 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59
ABREVIACcedilOtildeES
ARA- Biacuteblia traduccedilatildeo de Joatildeo Ferreira de Almeida Atualizada
NTLH- Nova Traduccedilatildeo na Linguagem de Hoje
AT- Antigo Testamento
NT- Novo Testamento
APMT- Agecircncia Presbiteriana de Missotildees Transculturais ALEM- Associaccedilatildeo Linguumliacutestica Evangeacutelica Missionaacuteria
INTRODUCcedilAtildeO
Estima-se que 40 por cento da populaccedilatildeo mundial tomam o animismo como base de
suas crenccedilas Calcula-se tambeacutem que entre os 88 por cento daqueles classificados como povos
natildeo alcanccedilados pelo evangelho 135 milhotildees satildeo tribos animistas Aleacutem disso 19 bilhotildees de
pessoas no mundo estatildeo de alguma forma inseridos em uma religiatildeo mundial que apresenta
formas sincreacuteticas com o animismo Pode-se concluir portanto que o mundo natildeo alcanccedilado pelo
Evangelho como um todo eacute animista
Esse grande nuacutemero de grupos animistas natildeo alcanccedilados indica a necessidade urgente
de missionaacuterios aprenderem como comunicar a Palavra de Deus de forma eficaz em contextos
animistas
Quando se verifica a literatura sobre o tema comunicaccedilatildeo do Evangelho em contexto
animista poreacutem o que se constata eacute a ausecircncia quase absoluta de qualquer material que venha a
contribuir para a formaccedilatildeo do missionaacuterio transcultural brasileiro
O objetivo desta pesquisa eacute dar um primeiro passo no que diz respeito agrave produccedilatildeo de
material que venha ajudar missionaacuterios brasileiros em seu preparo transcultural especialmente na
compreensatildeo de conceitos e praacuteticas animistas e na aplicaccedilatildeo contextualizada do Evangelho agrave
realidade animista
Aleacutem da falta de material especiacutefico sobre a comunicaccedilatildeo do Evangelho em contextos
animistas haacute ainda um outro elemento complicador Os missionaacuterios brasileiros satildeo treinados nos
moldes do mundo ocidental sendo portanto influenciados pela teologia ocidental teologia essa
que parece natildeo levar muito em conta a questatildeo do mundo dos espiacuteritos Natildeo eacute raro encontrar
missionaacuterios brasileiros que vatildeo trabalhar com um povo animista mas que nem mesmo acreditam
na existecircncia de espiacuteritos Esses missionaacuterios satildeo frutos de uma teologia europeacuteia-americanizada
11
cuja tendecircncia ao materialismo no miacutenimo menospreza a realidade do mundo espiritual Ao
comunicar o Evangelho o missionaacuterio tenderaacute a reproduzir o modelo recebido e correraacute o risco
de natildeo comunicar o Evangelho de uma forma que cause impacto na mente e no coraccedilatildeo do povo
a ser alcanccedilado
A metodologia utilizada nesta pesquisa foi primariamente uma pesquisa bibliograacutefica
Quase todas as obras utilizadas foram escritas na liacutengua inglesa pois como jaacute mencionado quase
natildeo se encontra material sobre o tema em liacutengua portuguesa Aleacutem da pesquisa bibliograacutefica
incluem-se tambeacutem informaccedilotildees dadas por missionaacuterios que jaacute atuam com povos animistas cujos
testemunhos datildeo suporte aos conceitos apresentados A pesquisa foi dividida em trecircs capiacutetulos
No primeiro capiacutetulo apresenta-se o animismo sob o ponto de vista fenomenoloacutegico
sem qualquer julgamento teoloacutegico quanto agrave sua natureza e o seus fins Descrevem-se os
principais conceitos e as praacuteticas mais comuns da religiatildeo animista
No segundo capiacutetulo busca-se uma visatildeo panoracircmica do tema ldquoespiacuteritos na Biacutebliardquo O
principal objetivo eacute demonstrar que a Biacuteblia trata a existecircncia dos espiacuteritos de forma realista ou
seja os autores biacuteblicos natildeo tentam provar a existecircncia de seres espirituais partem do
pressuposto de que eles satildeo reais
No terceiro capiacutetulo desenvolve-se o tema da salvaccedilatildeo uma breve alusatildeo ao seu
desenvolvimento teoloacutegico na histoacuteria da igreja e por fim a defesa da tese de que o tema da
salvaccedilatildeo como ldquotransferecircncia de domiacuteniordquo eacute o mais apropriado para introduzir o Evangelho no
contexto animista Coloca-se tambeacutem a necessidade de apresentar-se o evangelho de forma
contextualizada Entende-se a contextualizaccedilatildeo natildeo como uma forma de acomodaccedilatildeo do
Evangelho aos moldes culturais animistas mas como uma estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que parte
12
do conhecido para o desconhecido do antigo para o novo O capiacutetulo finaliza-se com uma
apresentaccedilatildeo do conceito de ldquoteologia do Reinordquo e sua visatildeo integral da obra de salvaccedilatildeo
CAPIacuteTULO 1
ANIMISMO CONCEITOS E PRAacuteTICAS
Neste capiacutetulo abordaremos o tema do animismo de forma geral e abrangente
iniciando com uma anaacutelise histoacuterica do fenocircmeno e de sua terminologia ateacute os seus conceitos
fundamentais e suas praacuteticas mais comuns Fazemos aqui uma anaacutelise antropoloacutegica do
fenocircmeno religioso animista sem atribuirmos qualquer juiacutezo de valor ao termo animismo e
aos seus cognatos Vale-se do pressuposto de que eacute a partir do conhecimento fenomenoloacutegico
e de uma visatildeo criacutetica que poderemos posteriormente avaliar suas crenccedilas e praacuteticas agrave luz
das Escrituras Sagradas
11 Uso histoacuterico do termo
O termo ldquoanimismordquo eacute derivado da palavra anima em Latim e quer dizer ldquofocirclegordquo ou
ldquofocirclego de vidardquo Ele traz consigo a ideacuteia de alma ou espiacuterito (Steyne 1992 p 36) A palavra
foi usada pela primeira vez pelo antropoacutelogo britacircnico Edward B Tylor em seus escritos
mais antigos Em 1873 em sua obra Religion in Primitive Culture ele definiu animismo
como ldquoa doutrina de Seres Espirituaisrdquo (1970 p 9) e afirmou que ldquoAnimismo em seu
desenvolvimento pleno incluiacutea a crenccedila em almas e em seu estado futuro em deidades
controladoras e espiacuteritos subordinados (hellip) resultando em algum tipo de adoraccedilatildeordquo (1970 p
11) Esses espiacuteritos incluem tanto os espiacuteritos dos ancestrais vivos que satildeo ldquocapazes de
existecircncia continuadardquo apoacutes a morte como ldquooutros espiacuteritos em uma escala ascendente ateacute ao
ranking de deidades poderosasrdquo (Tylor 1970 p 10) Os escritos de Tylor abriram precedente
para definir animismo como ldquoa crenccedila em um poder sobrenatural personalizadordquo (Smalley
1971 p 24) Tylor partia do pressuposto evolucionistapositivista e acreditava que o
animismo era uma forma primitiva de religiatildeo forma essa que apresentava um modo de
14
pensamento preacute-loacutegico desenvolvido posterior e gradativamente para o politeiacutesmo ateacute chegar
agraves religiotildees monoteiacutestas Apesar da rejeiccedilatildeo atual ao seu evolucionismo cultural e de
considerar-se incompleta sua ideacuteia sobre animismo natildeo se pode ignorar sua contribuiccedilatildeo para
o estudo desse assunto
Posteriormente o missionaacuterio R H Codrington descobriu na religiatildeo tradicional
Melaneacutesia em 1891 o conceito de ldquoforccedila espiritual impessoalrdquo Essa forccedila espiritual
denominada mana foi descrita em seu livro The Melanesians (Apud Steyne 1992)) Segundo
Steyne (1992) essa forccedila impessoal pode ser associada agrave energia uma essecircncia com a qual
todas as coisas satildeo carregadas e que pode passar de um elemento para outro Na religiosidade
popular brasileira por exemplo usam-se muito os termos ldquoenergia positivardquo e ldquoenergia
negativardquo para indicar a presenccedila ou natildeo de algum elemento imaterial existente que interfere
nos objetos e nas pessoas e que muitas vezes influenciam e ou determinam o curso de suas
vidas
Com base nos conceitos apresentados acima antropoacutelogos tecircm feito uma distinccedilatildeo
entre animismo crenccedila em espiacuteritos personificados e animatismo crenccedila em uma forccedila
impessoal Para Van Rheenen (1991) no entanto essa distinccedilatildeo reflete apenas uma visatildeo
exterior e natildeo fenomenoloacutegica aos proacuteprios grupos animistas pois para eles natildeo haacute distinccedilatildeo
clara entre forccedilas impessoais e seres espirituais Ele cita como exemplo o conceito de azar
na religiatildeo islacircmica Segundo o islamismo popular natildeo eacute possiacutevel saber se a origem do azar eacute
atribuiacuteda a jiin (ser espiritual personificado) ou ao mau olhado (forccedila impessoal) Assim a
definiccedilatildeo de animismo para esse autor eacute
A crenccedila que seres espirituais personificados e forccedilas espirituais impessoais tecircm poder sobre as atividades humanas e consequentemente que os seres humanos precisam descobrir quais os seres e forccedilas os estatildeo influenciando a fim de que determinem de que forma iratildeo agir e com frequumlecircncia como iratildeo manipular o poder deles (Van Rheenen 1991 pp 19-20)
15
Lothar Kaser por seu turno acrescenta mais alguns elementos em sua definiccedilatildeo de
animismo a saber a forma como esses seres sobrenaturais se manifestam
Entende-se por animismo em sua forma mais geneacuterica a crenccedila na existecircncia e atuaccedilatildeo de seres espirituais que se manifestam na forma de apariccedilotildees semelhantes a homens ou animais dispondo de conhecimentos poderes e possibilidades que o proacuteprio ser homem natildeo tem Em culturas tradicionais (sem escrita) fazem parte desses seres semelhantes a figuras espirituais natildeo somente os espiacuteritos propriamente ditos mas ainda alma de pessoas sob certas circunstacircncias tambeacutem objetos podem estar de posse de algo como uma alma (2004 p 215)
Como se pode ver o conceito de animismo sofreu modificaccedilotildees desde Tyler ateacute os
dias atuais
12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo
Estudiosos tecircm discutido ateacute que ponto o animismo eacute de fato uma religiatildeo uma vez
que natildeo possui elementos fundamentais caracteriacutesticos das religiotildees mundiais tais como
escritos sagrados templos missionaacuterios ou teologia uniforme Para Kaser por exemplo ldquoeacute
melhor (consideraacute-lo) uma cosmovisatildeo com muitos aspectosrdquo (2004 p 216) Jaacute para outros
autores esse tipo de pensamento manifesta certo etnocentrismo e preconceito pois vecirc a
religiatildeo apenas como o aspecto da vida que lida com o ldquoespiritualrdquo enquanto que a ciecircncia
lidaria com os aspectos naturais Essa postura que elimina fronteiras riacutegidas entre ciecircncia e
religiatildeo estaacute em consonacircncia com o construto poacutes-moderno de ciecircncia locus que considera as
conclusotildees de um xamatilde sobre a vida e o cosmo tatildeo vaacutelidas quanto as de um acadecircmico com
carreira universitaacuteria (ver por exemplo Ruy Ceacutesar do Espiacuterito Santo O Renascimento do
Sagrado na Educaccedilatildeo 2a Ed Coleccedilatildeo Praacutexis Campinas Papirus 2000)
Assim Hiebert Shaw amp Tieacutenou afirmam que
Antropoacutelogos agora definem lsquoreligiatildeorsquo como crenccedilas a respeito da natureza uacuteltima das coisas tais como sentimentos profundos e motivaccedilotildees valores fundamentais e lealdade Essa definiccedilatildeo fornece a maneira como as pessoas percebem a realidade Nesse sentido o ateiacutesmo budista Theravada Marxismo e cientificismo tambeacutem satildeo religiotildees (1999 p 35)
16
Conclui-se portanto que o animismo eacute uma religiatildeo pois reflete uma forma especiacutefica
de interpretaccedilatildeo da realidade
13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista
Embora o animismo apresente facetas diversas nas diferentes regiotildees do mundo haacute
certas caracteriacutesticas que satildeo comuns a todos A seguir apresentamos as principais
131 Holismo
Segundo Steyne (1992 p 58) holismo eacute um termo filosoacutefico cuja visatildeo eacute de que a
vida eacute maior do que a soma de suas partes Ainda segundo Steyne ldquoo mundo interage consigo
mesmo O ceacuteu os espiacuteritos a terra o mundo fiacutesico o vivente e o falecido todos agem
interagem e reagem em consonacircnciardquo (1992 p 59) Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo proacutepria entre o
indiviacuteduo e o mundo Por essa razatildeo o animista natildeo faz separaccedilatildeo entre o sagrado e o
profano ou entre o secular e o religioso Conclui-se que o animismo eacute em uacuteltima instacircncia
uma forma de panteiacutesmo
132 Espiritualismo
O conceito de espiritualismo estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo de holismo e depende
dele Segundo a noccedilatildeo de espiritualismo a espiritualidade eacute a essecircncia fundamental da vida e
a vida estaacute repleta de possibilidades sobrenaturais Tudo na vida pode ser influenciado pelo
mundo dos espiacuteritos Tudo que ocorre no mundo fiacutesico tem um correspondente no mundo
espiritual e da mesma forma tudo que ocorre no mundo espiritual tem consequumlecircncias no
mundo fiacutesico (Van Rheenen 1991) Para os indiacutegenas brasileiros por exemplo a causa das
doenccedilas natildeo adveacutem simplesmente de bacteacuterias viacuterus etc mas da accedilatildeo direta dos espiacuteritos
sobre o indiviacuteduo Isso quase sempre resulta em acusaccedilotildees pela necessidade de se descobrir
17
o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
18
pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
19
135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
20
Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
21
dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
22
Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
23
Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
24
1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
25
missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
26
si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
27
(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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DEDICATOacuteRIA Agrave minha querida esposa Laudiceacuteia e aos meus filhos Lucas Ana Carolina e Sara Pelo amor e carinho que tenho recebido sempre e pelo encorajamento nos momentos mais difiacuteceis Sem vocecircs natildeo conseguiria ter concluiacutedo mais essa etapa de minha vida acadecircmica
AGRADECIMENTOS
A Deus e ao nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo pelas vitoacuterias e alegrias que nos outorgou neste tempo de estudos
Aos meus colegas de missatildeo incentivadores constantes do meu crescimento como estudante dando-me conselhos e sugestotildees de como desenvolver esta pesquisa
Agrave Faculdade Teoloacutegica Sul Americana (FTSA) por sua visatildeo de preparar vidas para servir o
Reino de Deus entre as quais somos uma
Aos colegas Al e Cheryl Jensen pelo apoio e incentivo aleacutem de permitirem que eu usasse a sua biblioteca
Agraves missotildees ALEM e APMT que me acompanham em meu trabalho missionaacuterio e compreen-dem a importacircncia dessa pesquisa para o bom desempenho no campo transcultural
A Isaac Costa de Souza Cheryl Jensen e minha esposa Laudiceacuteia de Melo Silva pela revi-satildeo e correccedilatildeo do texto aleacutem de preciosas sugestotildees A Micla Souza pela traduccedilatildeo do abstract
Ao meu pai Antonio Fernandes da Silva por entender o valor inestimaacutevel da educaccedilatildeo e por ter se sacrificado para que eu e meus irmatildeos pudeacutessemos alcanccedilaacute-la
RESUMO DA SILVA Norval Oliveira Comunicando Cristo em um contexto animista 2007 60 paacutegi-nas (Monografia de Bacharelado em Teologia ndash Faculdade Teoloacutegica Sul Americana)
Apresenta uma anaacutelise do animismo enquanto forma de religiatildeo caracteriacutestica da maioria dos povos a serem alcanccedilados com o Evangelho de Jesus Cristo Faz uma siacutentese do fenocircmeno do animismo na Biacuteblia desde as praacuteticas politeiacutestas-animistas das naccedilotildees que cir-cundavam o povo de Israel no Antigo Testamento passando por uma anaacutelise da visatildeo e ati-tudes de Jesus e seus disciacutepulos sobre o mundo dos espiacuteritos culminando no ministeacuterio do apoacutestolo Paulo Daacute-se especial atenccedilatildeo agrave atitude e estrateacutegia do apoacutestolo Paulo para com os cristatildeos da cidade de Eacutefeso ante o problema da magia e outras praacuteticas animistas muito popu-lares naquela cidade e que de uma forma ou de outra afetavam os receacutem-convertidos ao e-vangelho Analisa-se os principais termos empregados pelo apoacutestolo em sua Carta aos Efeacute-sios que tecircm relaccedilatildeo com o mundo dos principados e potestades espirituais Daacute-se atenccedilatildeo ao conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista enfocando-se de forma especial salvaccedilatildeo co-mo mudanccedila de domiacutenio isto eacute animistas que outrora estavam subordinados aos espiacuteritos encontraratildeo salvaccedilatildeo e seguranccedila em Jesus Cristo o Senhor dos Senhores aquele que derro-tou e humilhou os espiacuteritos em sua morte de cruz
ABSTRACT DA SILVA Norval Oliveira Communicating Christ in an animist context 2007 60 pages (Bachelors Final Paper in Theology ndash Faculdade Teoloacutegica Sul Americana)
This paper analyses animism as the form of religion which is characteristic of most people who still need to be reached by the Gospel of Jesus Christ It gives a synthesis of the phenomenon of animism in the Bible from the polytheistic-animistic practices of the nations that surrounded the Israelite people in the Old Testament to the analyses of the attitudes of Jesus and His disciples in relation to the spirit world and culminating in the ministry of the apostle Paul Special attention is given to apostle Paulrsquos attitude and strategy in relation to the Christians of the city of Ephesus while approaching the problem of magic and other animis-tic practices which were very popular in that city and which one way or another affected those recently converted to the Gospel This paper also analyzes the main terminology related to the world of spiritual principalities and potentates used by the apostle in his letter to the Ephesians Attention is given to the concept of salvation in an animistic context focusing especially on the concept of salvation as a change of dominion ie animists who were for-merly subordinated to spirits will find salvation and safety under the dominion of Jesus Christ the Lord of Lords who defeated and humiliated the spirits by His death on the cross
SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 10 CAPIacuteTULO I Animismo conceitos e praacuteticas 13
11 O uso histoacuterico do termo 13 12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo 15 13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista 16
131 Holismo 16 132 Espiritualismo 16 133 Religiatildeo de poder 17 134 Vida comunitaacuteria 18 135 O mundo dos espiacuteritos 19 136 Religiatildeo de medo 20
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas 21 141 Praacutetica de rituais 21 142 Tipos de rituais 22
1421 Ritos apotropaacuteicos 23 1422 Ritos de eliminaccedilatildeo 23 1423 Ritos de purificaccedilatildeo 24 1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo 24
143 Uso de magia 25 144 O papel dos especialistas 27 145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual 28
CAPIacuteTULO II O Mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia 30
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento 31 211 O animismo como forma de religiatildeo antiga 31 212 A natureza dos iacutedolos 32
213 Espiacuteritos territoriais 30 214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas 30
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento 30 221 O ministeacuterio de Jesus 31 222 O ministeacuterio dos disciacutepulos 31 223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista 32
2231 A teologia Paulina a respeito dos espiacuteritos 33 2232 O contexto religioso subjacente agrave Carta aos Efeacutesios 33 2233 A natureza dos Principados e Potestades 34
22331 Anjos bons 34 22332 Estruturas sociais malignas 34 22333 Espiacuteritos malignos 35
224 O significado de stoicheia em Gaacutelatas 35 225 A batalha da igreja contra os Principados e Potestades 37 226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos 37
CAPIacuteTULO III A mensagem de salvaccedilatildeo em um contexto animista 41
31 O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo 41 311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva 41 312 Conceito escatoloacutegico 43 313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva 44
314 Conceito de resgate - Cristus Victor 45 32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista 46
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio 46 322 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista 48
33 O que a Biacuteblia fala sobre o senhorio 49 331 Ocorrecircncia do termo lsquosenhorrsquo na Biacuteblia 49
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno 50 35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo 51 36 Teologia do Reino versus teologia de conversatildeo 53 37 A luta contra o sincretismo 54 38 A relevacircncia do tema para hoje 55
CONCLUSAtildeO 56 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59
ABREVIACcedilOtildeES
ARA- Biacuteblia traduccedilatildeo de Joatildeo Ferreira de Almeida Atualizada
NTLH- Nova Traduccedilatildeo na Linguagem de Hoje
AT- Antigo Testamento
NT- Novo Testamento
APMT- Agecircncia Presbiteriana de Missotildees Transculturais ALEM- Associaccedilatildeo Linguumliacutestica Evangeacutelica Missionaacuteria
INTRODUCcedilAtildeO
Estima-se que 40 por cento da populaccedilatildeo mundial tomam o animismo como base de
suas crenccedilas Calcula-se tambeacutem que entre os 88 por cento daqueles classificados como povos
natildeo alcanccedilados pelo evangelho 135 milhotildees satildeo tribos animistas Aleacutem disso 19 bilhotildees de
pessoas no mundo estatildeo de alguma forma inseridos em uma religiatildeo mundial que apresenta
formas sincreacuteticas com o animismo Pode-se concluir portanto que o mundo natildeo alcanccedilado pelo
Evangelho como um todo eacute animista
Esse grande nuacutemero de grupos animistas natildeo alcanccedilados indica a necessidade urgente
de missionaacuterios aprenderem como comunicar a Palavra de Deus de forma eficaz em contextos
animistas
Quando se verifica a literatura sobre o tema comunicaccedilatildeo do Evangelho em contexto
animista poreacutem o que se constata eacute a ausecircncia quase absoluta de qualquer material que venha a
contribuir para a formaccedilatildeo do missionaacuterio transcultural brasileiro
O objetivo desta pesquisa eacute dar um primeiro passo no que diz respeito agrave produccedilatildeo de
material que venha ajudar missionaacuterios brasileiros em seu preparo transcultural especialmente na
compreensatildeo de conceitos e praacuteticas animistas e na aplicaccedilatildeo contextualizada do Evangelho agrave
realidade animista
Aleacutem da falta de material especiacutefico sobre a comunicaccedilatildeo do Evangelho em contextos
animistas haacute ainda um outro elemento complicador Os missionaacuterios brasileiros satildeo treinados nos
moldes do mundo ocidental sendo portanto influenciados pela teologia ocidental teologia essa
que parece natildeo levar muito em conta a questatildeo do mundo dos espiacuteritos Natildeo eacute raro encontrar
missionaacuterios brasileiros que vatildeo trabalhar com um povo animista mas que nem mesmo acreditam
na existecircncia de espiacuteritos Esses missionaacuterios satildeo frutos de uma teologia europeacuteia-americanizada
11
cuja tendecircncia ao materialismo no miacutenimo menospreza a realidade do mundo espiritual Ao
comunicar o Evangelho o missionaacuterio tenderaacute a reproduzir o modelo recebido e correraacute o risco
de natildeo comunicar o Evangelho de uma forma que cause impacto na mente e no coraccedilatildeo do povo
a ser alcanccedilado
A metodologia utilizada nesta pesquisa foi primariamente uma pesquisa bibliograacutefica
Quase todas as obras utilizadas foram escritas na liacutengua inglesa pois como jaacute mencionado quase
natildeo se encontra material sobre o tema em liacutengua portuguesa Aleacutem da pesquisa bibliograacutefica
incluem-se tambeacutem informaccedilotildees dadas por missionaacuterios que jaacute atuam com povos animistas cujos
testemunhos datildeo suporte aos conceitos apresentados A pesquisa foi dividida em trecircs capiacutetulos
No primeiro capiacutetulo apresenta-se o animismo sob o ponto de vista fenomenoloacutegico
sem qualquer julgamento teoloacutegico quanto agrave sua natureza e o seus fins Descrevem-se os
principais conceitos e as praacuteticas mais comuns da religiatildeo animista
No segundo capiacutetulo busca-se uma visatildeo panoracircmica do tema ldquoespiacuteritos na Biacutebliardquo O
principal objetivo eacute demonstrar que a Biacuteblia trata a existecircncia dos espiacuteritos de forma realista ou
seja os autores biacuteblicos natildeo tentam provar a existecircncia de seres espirituais partem do
pressuposto de que eles satildeo reais
No terceiro capiacutetulo desenvolve-se o tema da salvaccedilatildeo uma breve alusatildeo ao seu
desenvolvimento teoloacutegico na histoacuteria da igreja e por fim a defesa da tese de que o tema da
salvaccedilatildeo como ldquotransferecircncia de domiacuteniordquo eacute o mais apropriado para introduzir o Evangelho no
contexto animista Coloca-se tambeacutem a necessidade de apresentar-se o evangelho de forma
contextualizada Entende-se a contextualizaccedilatildeo natildeo como uma forma de acomodaccedilatildeo do
Evangelho aos moldes culturais animistas mas como uma estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que parte
12
do conhecido para o desconhecido do antigo para o novo O capiacutetulo finaliza-se com uma
apresentaccedilatildeo do conceito de ldquoteologia do Reinordquo e sua visatildeo integral da obra de salvaccedilatildeo
CAPIacuteTULO 1
ANIMISMO CONCEITOS E PRAacuteTICAS
Neste capiacutetulo abordaremos o tema do animismo de forma geral e abrangente
iniciando com uma anaacutelise histoacuterica do fenocircmeno e de sua terminologia ateacute os seus conceitos
fundamentais e suas praacuteticas mais comuns Fazemos aqui uma anaacutelise antropoloacutegica do
fenocircmeno religioso animista sem atribuirmos qualquer juiacutezo de valor ao termo animismo e
aos seus cognatos Vale-se do pressuposto de que eacute a partir do conhecimento fenomenoloacutegico
e de uma visatildeo criacutetica que poderemos posteriormente avaliar suas crenccedilas e praacuteticas agrave luz
das Escrituras Sagradas
11 Uso histoacuterico do termo
O termo ldquoanimismordquo eacute derivado da palavra anima em Latim e quer dizer ldquofocirclegordquo ou
ldquofocirclego de vidardquo Ele traz consigo a ideacuteia de alma ou espiacuterito (Steyne 1992 p 36) A palavra
foi usada pela primeira vez pelo antropoacutelogo britacircnico Edward B Tylor em seus escritos
mais antigos Em 1873 em sua obra Religion in Primitive Culture ele definiu animismo
como ldquoa doutrina de Seres Espirituaisrdquo (1970 p 9) e afirmou que ldquoAnimismo em seu
desenvolvimento pleno incluiacutea a crenccedila em almas e em seu estado futuro em deidades
controladoras e espiacuteritos subordinados (hellip) resultando em algum tipo de adoraccedilatildeordquo (1970 p
11) Esses espiacuteritos incluem tanto os espiacuteritos dos ancestrais vivos que satildeo ldquocapazes de
existecircncia continuadardquo apoacutes a morte como ldquooutros espiacuteritos em uma escala ascendente ateacute ao
ranking de deidades poderosasrdquo (Tylor 1970 p 10) Os escritos de Tylor abriram precedente
para definir animismo como ldquoa crenccedila em um poder sobrenatural personalizadordquo (Smalley
1971 p 24) Tylor partia do pressuposto evolucionistapositivista e acreditava que o
animismo era uma forma primitiva de religiatildeo forma essa que apresentava um modo de
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pensamento preacute-loacutegico desenvolvido posterior e gradativamente para o politeiacutesmo ateacute chegar
agraves religiotildees monoteiacutestas Apesar da rejeiccedilatildeo atual ao seu evolucionismo cultural e de
considerar-se incompleta sua ideacuteia sobre animismo natildeo se pode ignorar sua contribuiccedilatildeo para
o estudo desse assunto
Posteriormente o missionaacuterio R H Codrington descobriu na religiatildeo tradicional
Melaneacutesia em 1891 o conceito de ldquoforccedila espiritual impessoalrdquo Essa forccedila espiritual
denominada mana foi descrita em seu livro The Melanesians (Apud Steyne 1992)) Segundo
Steyne (1992) essa forccedila impessoal pode ser associada agrave energia uma essecircncia com a qual
todas as coisas satildeo carregadas e que pode passar de um elemento para outro Na religiosidade
popular brasileira por exemplo usam-se muito os termos ldquoenergia positivardquo e ldquoenergia
negativardquo para indicar a presenccedila ou natildeo de algum elemento imaterial existente que interfere
nos objetos e nas pessoas e que muitas vezes influenciam e ou determinam o curso de suas
vidas
Com base nos conceitos apresentados acima antropoacutelogos tecircm feito uma distinccedilatildeo
entre animismo crenccedila em espiacuteritos personificados e animatismo crenccedila em uma forccedila
impessoal Para Van Rheenen (1991) no entanto essa distinccedilatildeo reflete apenas uma visatildeo
exterior e natildeo fenomenoloacutegica aos proacuteprios grupos animistas pois para eles natildeo haacute distinccedilatildeo
clara entre forccedilas impessoais e seres espirituais Ele cita como exemplo o conceito de azar
na religiatildeo islacircmica Segundo o islamismo popular natildeo eacute possiacutevel saber se a origem do azar eacute
atribuiacuteda a jiin (ser espiritual personificado) ou ao mau olhado (forccedila impessoal) Assim a
definiccedilatildeo de animismo para esse autor eacute
A crenccedila que seres espirituais personificados e forccedilas espirituais impessoais tecircm poder sobre as atividades humanas e consequentemente que os seres humanos precisam descobrir quais os seres e forccedilas os estatildeo influenciando a fim de que determinem de que forma iratildeo agir e com frequumlecircncia como iratildeo manipular o poder deles (Van Rheenen 1991 pp 19-20)
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Lothar Kaser por seu turno acrescenta mais alguns elementos em sua definiccedilatildeo de
animismo a saber a forma como esses seres sobrenaturais se manifestam
Entende-se por animismo em sua forma mais geneacuterica a crenccedila na existecircncia e atuaccedilatildeo de seres espirituais que se manifestam na forma de apariccedilotildees semelhantes a homens ou animais dispondo de conhecimentos poderes e possibilidades que o proacuteprio ser homem natildeo tem Em culturas tradicionais (sem escrita) fazem parte desses seres semelhantes a figuras espirituais natildeo somente os espiacuteritos propriamente ditos mas ainda alma de pessoas sob certas circunstacircncias tambeacutem objetos podem estar de posse de algo como uma alma (2004 p 215)
Como se pode ver o conceito de animismo sofreu modificaccedilotildees desde Tyler ateacute os
dias atuais
12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo
Estudiosos tecircm discutido ateacute que ponto o animismo eacute de fato uma religiatildeo uma vez
que natildeo possui elementos fundamentais caracteriacutesticos das religiotildees mundiais tais como
escritos sagrados templos missionaacuterios ou teologia uniforme Para Kaser por exemplo ldquoeacute
melhor (consideraacute-lo) uma cosmovisatildeo com muitos aspectosrdquo (2004 p 216) Jaacute para outros
autores esse tipo de pensamento manifesta certo etnocentrismo e preconceito pois vecirc a
religiatildeo apenas como o aspecto da vida que lida com o ldquoespiritualrdquo enquanto que a ciecircncia
lidaria com os aspectos naturais Essa postura que elimina fronteiras riacutegidas entre ciecircncia e
religiatildeo estaacute em consonacircncia com o construto poacutes-moderno de ciecircncia locus que considera as
conclusotildees de um xamatilde sobre a vida e o cosmo tatildeo vaacutelidas quanto as de um acadecircmico com
carreira universitaacuteria (ver por exemplo Ruy Ceacutesar do Espiacuterito Santo O Renascimento do
Sagrado na Educaccedilatildeo 2a Ed Coleccedilatildeo Praacutexis Campinas Papirus 2000)
Assim Hiebert Shaw amp Tieacutenou afirmam que
Antropoacutelogos agora definem lsquoreligiatildeorsquo como crenccedilas a respeito da natureza uacuteltima das coisas tais como sentimentos profundos e motivaccedilotildees valores fundamentais e lealdade Essa definiccedilatildeo fornece a maneira como as pessoas percebem a realidade Nesse sentido o ateiacutesmo budista Theravada Marxismo e cientificismo tambeacutem satildeo religiotildees (1999 p 35)
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Conclui-se portanto que o animismo eacute uma religiatildeo pois reflete uma forma especiacutefica
de interpretaccedilatildeo da realidade
13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista
Embora o animismo apresente facetas diversas nas diferentes regiotildees do mundo haacute
certas caracteriacutesticas que satildeo comuns a todos A seguir apresentamos as principais
131 Holismo
Segundo Steyne (1992 p 58) holismo eacute um termo filosoacutefico cuja visatildeo eacute de que a
vida eacute maior do que a soma de suas partes Ainda segundo Steyne ldquoo mundo interage consigo
mesmo O ceacuteu os espiacuteritos a terra o mundo fiacutesico o vivente e o falecido todos agem
interagem e reagem em consonacircnciardquo (1992 p 59) Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo proacutepria entre o
indiviacuteduo e o mundo Por essa razatildeo o animista natildeo faz separaccedilatildeo entre o sagrado e o
profano ou entre o secular e o religioso Conclui-se que o animismo eacute em uacuteltima instacircncia
uma forma de panteiacutesmo
132 Espiritualismo
O conceito de espiritualismo estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo de holismo e depende
dele Segundo a noccedilatildeo de espiritualismo a espiritualidade eacute a essecircncia fundamental da vida e
a vida estaacute repleta de possibilidades sobrenaturais Tudo na vida pode ser influenciado pelo
mundo dos espiacuteritos Tudo que ocorre no mundo fiacutesico tem um correspondente no mundo
espiritual e da mesma forma tudo que ocorre no mundo espiritual tem consequumlecircncias no
mundo fiacutesico (Van Rheenen 1991) Para os indiacutegenas brasileiros por exemplo a causa das
doenccedilas natildeo adveacutem simplesmente de bacteacuterias viacuterus etc mas da accedilatildeo direta dos espiacuteritos
sobre o indiviacuteduo Isso quase sempre resulta em acusaccedilotildees pela necessidade de se descobrir
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o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
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pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
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135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
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Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
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dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
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Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
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1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
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si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
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(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
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22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
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Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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AGRADECIMENTOS
A Deus e ao nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo pelas vitoacuterias e alegrias que nos outorgou neste tempo de estudos
Aos meus colegas de missatildeo incentivadores constantes do meu crescimento como estudante dando-me conselhos e sugestotildees de como desenvolver esta pesquisa
Agrave Faculdade Teoloacutegica Sul Americana (FTSA) por sua visatildeo de preparar vidas para servir o
Reino de Deus entre as quais somos uma
Aos colegas Al e Cheryl Jensen pelo apoio e incentivo aleacutem de permitirem que eu usasse a sua biblioteca
Agraves missotildees ALEM e APMT que me acompanham em meu trabalho missionaacuterio e compreen-dem a importacircncia dessa pesquisa para o bom desempenho no campo transcultural
A Isaac Costa de Souza Cheryl Jensen e minha esposa Laudiceacuteia de Melo Silva pela revi-satildeo e correccedilatildeo do texto aleacutem de preciosas sugestotildees A Micla Souza pela traduccedilatildeo do abstract
Ao meu pai Antonio Fernandes da Silva por entender o valor inestimaacutevel da educaccedilatildeo e por ter se sacrificado para que eu e meus irmatildeos pudeacutessemos alcanccedilaacute-la
RESUMO DA SILVA Norval Oliveira Comunicando Cristo em um contexto animista 2007 60 paacutegi-nas (Monografia de Bacharelado em Teologia ndash Faculdade Teoloacutegica Sul Americana)
Apresenta uma anaacutelise do animismo enquanto forma de religiatildeo caracteriacutestica da maioria dos povos a serem alcanccedilados com o Evangelho de Jesus Cristo Faz uma siacutentese do fenocircmeno do animismo na Biacuteblia desde as praacuteticas politeiacutestas-animistas das naccedilotildees que cir-cundavam o povo de Israel no Antigo Testamento passando por uma anaacutelise da visatildeo e ati-tudes de Jesus e seus disciacutepulos sobre o mundo dos espiacuteritos culminando no ministeacuterio do apoacutestolo Paulo Daacute-se especial atenccedilatildeo agrave atitude e estrateacutegia do apoacutestolo Paulo para com os cristatildeos da cidade de Eacutefeso ante o problema da magia e outras praacuteticas animistas muito popu-lares naquela cidade e que de uma forma ou de outra afetavam os receacutem-convertidos ao e-vangelho Analisa-se os principais termos empregados pelo apoacutestolo em sua Carta aos Efeacute-sios que tecircm relaccedilatildeo com o mundo dos principados e potestades espirituais Daacute-se atenccedilatildeo ao conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista enfocando-se de forma especial salvaccedilatildeo co-mo mudanccedila de domiacutenio isto eacute animistas que outrora estavam subordinados aos espiacuteritos encontraratildeo salvaccedilatildeo e seguranccedila em Jesus Cristo o Senhor dos Senhores aquele que derro-tou e humilhou os espiacuteritos em sua morte de cruz
ABSTRACT DA SILVA Norval Oliveira Communicating Christ in an animist context 2007 60 pages (Bachelors Final Paper in Theology ndash Faculdade Teoloacutegica Sul Americana)
This paper analyses animism as the form of religion which is characteristic of most people who still need to be reached by the Gospel of Jesus Christ It gives a synthesis of the phenomenon of animism in the Bible from the polytheistic-animistic practices of the nations that surrounded the Israelite people in the Old Testament to the analyses of the attitudes of Jesus and His disciples in relation to the spirit world and culminating in the ministry of the apostle Paul Special attention is given to apostle Paulrsquos attitude and strategy in relation to the Christians of the city of Ephesus while approaching the problem of magic and other animis-tic practices which were very popular in that city and which one way or another affected those recently converted to the Gospel This paper also analyzes the main terminology related to the world of spiritual principalities and potentates used by the apostle in his letter to the Ephesians Attention is given to the concept of salvation in an animistic context focusing especially on the concept of salvation as a change of dominion ie animists who were for-merly subordinated to spirits will find salvation and safety under the dominion of Jesus Christ the Lord of Lords who defeated and humiliated the spirits by His death on the cross
SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 10 CAPIacuteTULO I Animismo conceitos e praacuteticas 13
11 O uso histoacuterico do termo 13 12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo 15 13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista 16
131 Holismo 16 132 Espiritualismo 16 133 Religiatildeo de poder 17 134 Vida comunitaacuteria 18 135 O mundo dos espiacuteritos 19 136 Religiatildeo de medo 20
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas 21 141 Praacutetica de rituais 21 142 Tipos de rituais 22
1421 Ritos apotropaacuteicos 23 1422 Ritos de eliminaccedilatildeo 23 1423 Ritos de purificaccedilatildeo 24 1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo 24
143 Uso de magia 25 144 O papel dos especialistas 27 145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual 28
CAPIacuteTULO II O Mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia 30
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento 31 211 O animismo como forma de religiatildeo antiga 31 212 A natureza dos iacutedolos 32
213 Espiacuteritos territoriais 30 214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas 30
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento 30 221 O ministeacuterio de Jesus 31 222 O ministeacuterio dos disciacutepulos 31 223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista 32
2231 A teologia Paulina a respeito dos espiacuteritos 33 2232 O contexto religioso subjacente agrave Carta aos Efeacutesios 33 2233 A natureza dos Principados e Potestades 34
22331 Anjos bons 34 22332 Estruturas sociais malignas 34 22333 Espiacuteritos malignos 35
224 O significado de stoicheia em Gaacutelatas 35 225 A batalha da igreja contra os Principados e Potestades 37 226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos 37
CAPIacuteTULO III A mensagem de salvaccedilatildeo em um contexto animista 41
31 O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo 41 311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva 41 312 Conceito escatoloacutegico 43 313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva 44
314 Conceito de resgate - Cristus Victor 45 32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista 46
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio 46 322 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista 48
33 O que a Biacuteblia fala sobre o senhorio 49 331 Ocorrecircncia do termo lsquosenhorrsquo na Biacuteblia 49
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno 50 35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo 51 36 Teologia do Reino versus teologia de conversatildeo 53 37 A luta contra o sincretismo 54 38 A relevacircncia do tema para hoje 55
CONCLUSAtildeO 56 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59
ABREVIACcedilOtildeES
ARA- Biacuteblia traduccedilatildeo de Joatildeo Ferreira de Almeida Atualizada
NTLH- Nova Traduccedilatildeo na Linguagem de Hoje
AT- Antigo Testamento
NT- Novo Testamento
APMT- Agecircncia Presbiteriana de Missotildees Transculturais ALEM- Associaccedilatildeo Linguumliacutestica Evangeacutelica Missionaacuteria
INTRODUCcedilAtildeO
Estima-se que 40 por cento da populaccedilatildeo mundial tomam o animismo como base de
suas crenccedilas Calcula-se tambeacutem que entre os 88 por cento daqueles classificados como povos
natildeo alcanccedilados pelo evangelho 135 milhotildees satildeo tribos animistas Aleacutem disso 19 bilhotildees de
pessoas no mundo estatildeo de alguma forma inseridos em uma religiatildeo mundial que apresenta
formas sincreacuteticas com o animismo Pode-se concluir portanto que o mundo natildeo alcanccedilado pelo
Evangelho como um todo eacute animista
Esse grande nuacutemero de grupos animistas natildeo alcanccedilados indica a necessidade urgente
de missionaacuterios aprenderem como comunicar a Palavra de Deus de forma eficaz em contextos
animistas
Quando se verifica a literatura sobre o tema comunicaccedilatildeo do Evangelho em contexto
animista poreacutem o que se constata eacute a ausecircncia quase absoluta de qualquer material que venha a
contribuir para a formaccedilatildeo do missionaacuterio transcultural brasileiro
O objetivo desta pesquisa eacute dar um primeiro passo no que diz respeito agrave produccedilatildeo de
material que venha ajudar missionaacuterios brasileiros em seu preparo transcultural especialmente na
compreensatildeo de conceitos e praacuteticas animistas e na aplicaccedilatildeo contextualizada do Evangelho agrave
realidade animista
Aleacutem da falta de material especiacutefico sobre a comunicaccedilatildeo do Evangelho em contextos
animistas haacute ainda um outro elemento complicador Os missionaacuterios brasileiros satildeo treinados nos
moldes do mundo ocidental sendo portanto influenciados pela teologia ocidental teologia essa
que parece natildeo levar muito em conta a questatildeo do mundo dos espiacuteritos Natildeo eacute raro encontrar
missionaacuterios brasileiros que vatildeo trabalhar com um povo animista mas que nem mesmo acreditam
na existecircncia de espiacuteritos Esses missionaacuterios satildeo frutos de uma teologia europeacuteia-americanizada
11
cuja tendecircncia ao materialismo no miacutenimo menospreza a realidade do mundo espiritual Ao
comunicar o Evangelho o missionaacuterio tenderaacute a reproduzir o modelo recebido e correraacute o risco
de natildeo comunicar o Evangelho de uma forma que cause impacto na mente e no coraccedilatildeo do povo
a ser alcanccedilado
A metodologia utilizada nesta pesquisa foi primariamente uma pesquisa bibliograacutefica
Quase todas as obras utilizadas foram escritas na liacutengua inglesa pois como jaacute mencionado quase
natildeo se encontra material sobre o tema em liacutengua portuguesa Aleacutem da pesquisa bibliograacutefica
incluem-se tambeacutem informaccedilotildees dadas por missionaacuterios que jaacute atuam com povos animistas cujos
testemunhos datildeo suporte aos conceitos apresentados A pesquisa foi dividida em trecircs capiacutetulos
No primeiro capiacutetulo apresenta-se o animismo sob o ponto de vista fenomenoloacutegico
sem qualquer julgamento teoloacutegico quanto agrave sua natureza e o seus fins Descrevem-se os
principais conceitos e as praacuteticas mais comuns da religiatildeo animista
No segundo capiacutetulo busca-se uma visatildeo panoracircmica do tema ldquoespiacuteritos na Biacutebliardquo O
principal objetivo eacute demonstrar que a Biacuteblia trata a existecircncia dos espiacuteritos de forma realista ou
seja os autores biacuteblicos natildeo tentam provar a existecircncia de seres espirituais partem do
pressuposto de que eles satildeo reais
No terceiro capiacutetulo desenvolve-se o tema da salvaccedilatildeo uma breve alusatildeo ao seu
desenvolvimento teoloacutegico na histoacuteria da igreja e por fim a defesa da tese de que o tema da
salvaccedilatildeo como ldquotransferecircncia de domiacuteniordquo eacute o mais apropriado para introduzir o Evangelho no
contexto animista Coloca-se tambeacutem a necessidade de apresentar-se o evangelho de forma
contextualizada Entende-se a contextualizaccedilatildeo natildeo como uma forma de acomodaccedilatildeo do
Evangelho aos moldes culturais animistas mas como uma estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que parte
12
do conhecido para o desconhecido do antigo para o novo O capiacutetulo finaliza-se com uma
apresentaccedilatildeo do conceito de ldquoteologia do Reinordquo e sua visatildeo integral da obra de salvaccedilatildeo
CAPIacuteTULO 1
ANIMISMO CONCEITOS E PRAacuteTICAS
Neste capiacutetulo abordaremos o tema do animismo de forma geral e abrangente
iniciando com uma anaacutelise histoacuterica do fenocircmeno e de sua terminologia ateacute os seus conceitos
fundamentais e suas praacuteticas mais comuns Fazemos aqui uma anaacutelise antropoloacutegica do
fenocircmeno religioso animista sem atribuirmos qualquer juiacutezo de valor ao termo animismo e
aos seus cognatos Vale-se do pressuposto de que eacute a partir do conhecimento fenomenoloacutegico
e de uma visatildeo criacutetica que poderemos posteriormente avaliar suas crenccedilas e praacuteticas agrave luz
das Escrituras Sagradas
11 Uso histoacuterico do termo
O termo ldquoanimismordquo eacute derivado da palavra anima em Latim e quer dizer ldquofocirclegordquo ou
ldquofocirclego de vidardquo Ele traz consigo a ideacuteia de alma ou espiacuterito (Steyne 1992 p 36) A palavra
foi usada pela primeira vez pelo antropoacutelogo britacircnico Edward B Tylor em seus escritos
mais antigos Em 1873 em sua obra Religion in Primitive Culture ele definiu animismo
como ldquoa doutrina de Seres Espirituaisrdquo (1970 p 9) e afirmou que ldquoAnimismo em seu
desenvolvimento pleno incluiacutea a crenccedila em almas e em seu estado futuro em deidades
controladoras e espiacuteritos subordinados (hellip) resultando em algum tipo de adoraccedilatildeordquo (1970 p
11) Esses espiacuteritos incluem tanto os espiacuteritos dos ancestrais vivos que satildeo ldquocapazes de
existecircncia continuadardquo apoacutes a morte como ldquooutros espiacuteritos em uma escala ascendente ateacute ao
ranking de deidades poderosasrdquo (Tylor 1970 p 10) Os escritos de Tylor abriram precedente
para definir animismo como ldquoa crenccedila em um poder sobrenatural personalizadordquo (Smalley
1971 p 24) Tylor partia do pressuposto evolucionistapositivista e acreditava que o
animismo era uma forma primitiva de religiatildeo forma essa que apresentava um modo de
14
pensamento preacute-loacutegico desenvolvido posterior e gradativamente para o politeiacutesmo ateacute chegar
agraves religiotildees monoteiacutestas Apesar da rejeiccedilatildeo atual ao seu evolucionismo cultural e de
considerar-se incompleta sua ideacuteia sobre animismo natildeo se pode ignorar sua contribuiccedilatildeo para
o estudo desse assunto
Posteriormente o missionaacuterio R H Codrington descobriu na religiatildeo tradicional
Melaneacutesia em 1891 o conceito de ldquoforccedila espiritual impessoalrdquo Essa forccedila espiritual
denominada mana foi descrita em seu livro The Melanesians (Apud Steyne 1992)) Segundo
Steyne (1992) essa forccedila impessoal pode ser associada agrave energia uma essecircncia com a qual
todas as coisas satildeo carregadas e que pode passar de um elemento para outro Na religiosidade
popular brasileira por exemplo usam-se muito os termos ldquoenergia positivardquo e ldquoenergia
negativardquo para indicar a presenccedila ou natildeo de algum elemento imaterial existente que interfere
nos objetos e nas pessoas e que muitas vezes influenciam e ou determinam o curso de suas
vidas
Com base nos conceitos apresentados acima antropoacutelogos tecircm feito uma distinccedilatildeo
entre animismo crenccedila em espiacuteritos personificados e animatismo crenccedila em uma forccedila
impessoal Para Van Rheenen (1991) no entanto essa distinccedilatildeo reflete apenas uma visatildeo
exterior e natildeo fenomenoloacutegica aos proacuteprios grupos animistas pois para eles natildeo haacute distinccedilatildeo
clara entre forccedilas impessoais e seres espirituais Ele cita como exemplo o conceito de azar
na religiatildeo islacircmica Segundo o islamismo popular natildeo eacute possiacutevel saber se a origem do azar eacute
atribuiacuteda a jiin (ser espiritual personificado) ou ao mau olhado (forccedila impessoal) Assim a
definiccedilatildeo de animismo para esse autor eacute
A crenccedila que seres espirituais personificados e forccedilas espirituais impessoais tecircm poder sobre as atividades humanas e consequentemente que os seres humanos precisam descobrir quais os seres e forccedilas os estatildeo influenciando a fim de que determinem de que forma iratildeo agir e com frequumlecircncia como iratildeo manipular o poder deles (Van Rheenen 1991 pp 19-20)
15
Lothar Kaser por seu turno acrescenta mais alguns elementos em sua definiccedilatildeo de
animismo a saber a forma como esses seres sobrenaturais se manifestam
Entende-se por animismo em sua forma mais geneacuterica a crenccedila na existecircncia e atuaccedilatildeo de seres espirituais que se manifestam na forma de apariccedilotildees semelhantes a homens ou animais dispondo de conhecimentos poderes e possibilidades que o proacuteprio ser homem natildeo tem Em culturas tradicionais (sem escrita) fazem parte desses seres semelhantes a figuras espirituais natildeo somente os espiacuteritos propriamente ditos mas ainda alma de pessoas sob certas circunstacircncias tambeacutem objetos podem estar de posse de algo como uma alma (2004 p 215)
Como se pode ver o conceito de animismo sofreu modificaccedilotildees desde Tyler ateacute os
dias atuais
12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo
Estudiosos tecircm discutido ateacute que ponto o animismo eacute de fato uma religiatildeo uma vez
que natildeo possui elementos fundamentais caracteriacutesticos das religiotildees mundiais tais como
escritos sagrados templos missionaacuterios ou teologia uniforme Para Kaser por exemplo ldquoeacute
melhor (consideraacute-lo) uma cosmovisatildeo com muitos aspectosrdquo (2004 p 216) Jaacute para outros
autores esse tipo de pensamento manifesta certo etnocentrismo e preconceito pois vecirc a
religiatildeo apenas como o aspecto da vida que lida com o ldquoespiritualrdquo enquanto que a ciecircncia
lidaria com os aspectos naturais Essa postura que elimina fronteiras riacutegidas entre ciecircncia e
religiatildeo estaacute em consonacircncia com o construto poacutes-moderno de ciecircncia locus que considera as
conclusotildees de um xamatilde sobre a vida e o cosmo tatildeo vaacutelidas quanto as de um acadecircmico com
carreira universitaacuteria (ver por exemplo Ruy Ceacutesar do Espiacuterito Santo O Renascimento do
Sagrado na Educaccedilatildeo 2a Ed Coleccedilatildeo Praacutexis Campinas Papirus 2000)
Assim Hiebert Shaw amp Tieacutenou afirmam que
Antropoacutelogos agora definem lsquoreligiatildeorsquo como crenccedilas a respeito da natureza uacuteltima das coisas tais como sentimentos profundos e motivaccedilotildees valores fundamentais e lealdade Essa definiccedilatildeo fornece a maneira como as pessoas percebem a realidade Nesse sentido o ateiacutesmo budista Theravada Marxismo e cientificismo tambeacutem satildeo religiotildees (1999 p 35)
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Conclui-se portanto que o animismo eacute uma religiatildeo pois reflete uma forma especiacutefica
de interpretaccedilatildeo da realidade
13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista
Embora o animismo apresente facetas diversas nas diferentes regiotildees do mundo haacute
certas caracteriacutesticas que satildeo comuns a todos A seguir apresentamos as principais
131 Holismo
Segundo Steyne (1992 p 58) holismo eacute um termo filosoacutefico cuja visatildeo eacute de que a
vida eacute maior do que a soma de suas partes Ainda segundo Steyne ldquoo mundo interage consigo
mesmo O ceacuteu os espiacuteritos a terra o mundo fiacutesico o vivente e o falecido todos agem
interagem e reagem em consonacircnciardquo (1992 p 59) Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo proacutepria entre o
indiviacuteduo e o mundo Por essa razatildeo o animista natildeo faz separaccedilatildeo entre o sagrado e o
profano ou entre o secular e o religioso Conclui-se que o animismo eacute em uacuteltima instacircncia
uma forma de panteiacutesmo
132 Espiritualismo
O conceito de espiritualismo estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo de holismo e depende
dele Segundo a noccedilatildeo de espiritualismo a espiritualidade eacute a essecircncia fundamental da vida e
a vida estaacute repleta de possibilidades sobrenaturais Tudo na vida pode ser influenciado pelo
mundo dos espiacuteritos Tudo que ocorre no mundo fiacutesico tem um correspondente no mundo
espiritual e da mesma forma tudo que ocorre no mundo espiritual tem consequumlecircncias no
mundo fiacutesico (Van Rheenen 1991) Para os indiacutegenas brasileiros por exemplo a causa das
doenccedilas natildeo adveacutem simplesmente de bacteacuterias viacuterus etc mas da accedilatildeo direta dos espiacuteritos
sobre o indiviacuteduo Isso quase sempre resulta em acusaccedilotildees pela necessidade de se descobrir
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o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
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pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
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135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
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Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
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dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
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Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
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1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
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si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
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(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
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Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
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os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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RESUMO DA SILVA Norval Oliveira Comunicando Cristo em um contexto animista 2007 60 paacutegi-nas (Monografia de Bacharelado em Teologia ndash Faculdade Teoloacutegica Sul Americana)
Apresenta uma anaacutelise do animismo enquanto forma de religiatildeo caracteriacutestica da maioria dos povos a serem alcanccedilados com o Evangelho de Jesus Cristo Faz uma siacutentese do fenocircmeno do animismo na Biacuteblia desde as praacuteticas politeiacutestas-animistas das naccedilotildees que cir-cundavam o povo de Israel no Antigo Testamento passando por uma anaacutelise da visatildeo e ati-tudes de Jesus e seus disciacutepulos sobre o mundo dos espiacuteritos culminando no ministeacuterio do apoacutestolo Paulo Daacute-se especial atenccedilatildeo agrave atitude e estrateacutegia do apoacutestolo Paulo para com os cristatildeos da cidade de Eacutefeso ante o problema da magia e outras praacuteticas animistas muito popu-lares naquela cidade e que de uma forma ou de outra afetavam os receacutem-convertidos ao e-vangelho Analisa-se os principais termos empregados pelo apoacutestolo em sua Carta aos Efeacute-sios que tecircm relaccedilatildeo com o mundo dos principados e potestades espirituais Daacute-se atenccedilatildeo ao conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista enfocando-se de forma especial salvaccedilatildeo co-mo mudanccedila de domiacutenio isto eacute animistas que outrora estavam subordinados aos espiacuteritos encontraratildeo salvaccedilatildeo e seguranccedila em Jesus Cristo o Senhor dos Senhores aquele que derro-tou e humilhou os espiacuteritos em sua morte de cruz
ABSTRACT DA SILVA Norval Oliveira Communicating Christ in an animist context 2007 60 pages (Bachelors Final Paper in Theology ndash Faculdade Teoloacutegica Sul Americana)
This paper analyses animism as the form of religion which is characteristic of most people who still need to be reached by the Gospel of Jesus Christ It gives a synthesis of the phenomenon of animism in the Bible from the polytheistic-animistic practices of the nations that surrounded the Israelite people in the Old Testament to the analyses of the attitudes of Jesus and His disciples in relation to the spirit world and culminating in the ministry of the apostle Paul Special attention is given to apostle Paulrsquos attitude and strategy in relation to the Christians of the city of Ephesus while approaching the problem of magic and other animis-tic practices which were very popular in that city and which one way or another affected those recently converted to the Gospel This paper also analyzes the main terminology related to the world of spiritual principalities and potentates used by the apostle in his letter to the Ephesians Attention is given to the concept of salvation in an animistic context focusing especially on the concept of salvation as a change of dominion ie animists who were for-merly subordinated to spirits will find salvation and safety under the dominion of Jesus Christ the Lord of Lords who defeated and humiliated the spirits by His death on the cross
SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 10 CAPIacuteTULO I Animismo conceitos e praacuteticas 13
11 O uso histoacuterico do termo 13 12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo 15 13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista 16
131 Holismo 16 132 Espiritualismo 16 133 Religiatildeo de poder 17 134 Vida comunitaacuteria 18 135 O mundo dos espiacuteritos 19 136 Religiatildeo de medo 20
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas 21 141 Praacutetica de rituais 21 142 Tipos de rituais 22
1421 Ritos apotropaacuteicos 23 1422 Ritos de eliminaccedilatildeo 23 1423 Ritos de purificaccedilatildeo 24 1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo 24
143 Uso de magia 25 144 O papel dos especialistas 27 145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual 28
CAPIacuteTULO II O Mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia 30
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento 31 211 O animismo como forma de religiatildeo antiga 31 212 A natureza dos iacutedolos 32
213 Espiacuteritos territoriais 30 214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas 30
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento 30 221 O ministeacuterio de Jesus 31 222 O ministeacuterio dos disciacutepulos 31 223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista 32
2231 A teologia Paulina a respeito dos espiacuteritos 33 2232 O contexto religioso subjacente agrave Carta aos Efeacutesios 33 2233 A natureza dos Principados e Potestades 34
22331 Anjos bons 34 22332 Estruturas sociais malignas 34 22333 Espiacuteritos malignos 35
224 O significado de stoicheia em Gaacutelatas 35 225 A batalha da igreja contra os Principados e Potestades 37 226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos 37
CAPIacuteTULO III A mensagem de salvaccedilatildeo em um contexto animista 41
31 O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo 41 311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva 41 312 Conceito escatoloacutegico 43 313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva 44
314 Conceito de resgate - Cristus Victor 45 32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista 46
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio 46 322 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista 48
33 O que a Biacuteblia fala sobre o senhorio 49 331 Ocorrecircncia do termo lsquosenhorrsquo na Biacuteblia 49
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno 50 35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo 51 36 Teologia do Reino versus teologia de conversatildeo 53 37 A luta contra o sincretismo 54 38 A relevacircncia do tema para hoje 55
CONCLUSAtildeO 56 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59
ABREVIACcedilOtildeES
ARA- Biacuteblia traduccedilatildeo de Joatildeo Ferreira de Almeida Atualizada
NTLH- Nova Traduccedilatildeo na Linguagem de Hoje
AT- Antigo Testamento
NT- Novo Testamento
APMT- Agecircncia Presbiteriana de Missotildees Transculturais ALEM- Associaccedilatildeo Linguumliacutestica Evangeacutelica Missionaacuteria
INTRODUCcedilAtildeO
Estima-se que 40 por cento da populaccedilatildeo mundial tomam o animismo como base de
suas crenccedilas Calcula-se tambeacutem que entre os 88 por cento daqueles classificados como povos
natildeo alcanccedilados pelo evangelho 135 milhotildees satildeo tribos animistas Aleacutem disso 19 bilhotildees de
pessoas no mundo estatildeo de alguma forma inseridos em uma religiatildeo mundial que apresenta
formas sincreacuteticas com o animismo Pode-se concluir portanto que o mundo natildeo alcanccedilado pelo
Evangelho como um todo eacute animista
Esse grande nuacutemero de grupos animistas natildeo alcanccedilados indica a necessidade urgente
de missionaacuterios aprenderem como comunicar a Palavra de Deus de forma eficaz em contextos
animistas
Quando se verifica a literatura sobre o tema comunicaccedilatildeo do Evangelho em contexto
animista poreacutem o que se constata eacute a ausecircncia quase absoluta de qualquer material que venha a
contribuir para a formaccedilatildeo do missionaacuterio transcultural brasileiro
O objetivo desta pesquisa eacute dar um primeiro passo no que diz respeito agrave produccedilatildeo de
material que venha ajudar missionaacuterios brasileiros em seu preparo transcultural especialmente na
compreensatildeo de conceitos e praacuteticas animistas e na aplicaccedilatildeo contextualizada do Evangelho agrave
realidade animista
Aleacutem da falta de material especiacutefico sobre a comunicaccedilatildeo do Evangelho em contextos
animistas haacute ainda um outro elemento complicador Os missionaacuterios brasileiros satildeo treinados nos
moldes do mundo ocidental sendo portanto influenciados pela teologia ocidental teologia essa
que parece natildeo levar muito em conta a questatildeo do mundo dos espiacuteritos Natildeo eacute raro encontrar
missionaacuterios brasileiros que vatildeo trabalhar com um povo animista mas que nem mesmo acreditam
na existecircncia de espiacuteritos Esses missionaacuterios satildeo frutos de uma teologia europeacuteia-americanizada
11
cuja tendecircncia ao materialismo no miacutenimo menospreza a realidade do mundo espiritual Ao
comunicar o Evangelho o missionaacuterio tenderaacute a reproduzir o modelo recebido e correraacute o risco
de natildeo comunicar o Evangelho de uma forma que cause impacto na mente e no coraccedilatildeo do povo
a ser alcanccedilado
A metodologia utilizada nesta pesquisa foi primariamente uma pesquisa bibliograacutefica
Quase todas as obras utilizadas foram escritas na liacutengua inglesa pois como jaacute mencionado quase
natildeo se encontra material sobre o tema em liacutengua portuguesa Aleacutem da pesquisa bibliograacutefica
incluem-se tambeacutem informaccedilotildees dadas por missionaacuterios que jaacute atuam com povos animistas cujos
testemunhos datildeo suporte aos conceitos apresentados A pesquisa foi dividida em trecircs capiacutetulos
No primeiro capiacutetulo apresenta-se o animismo sob o ponto de vista fenomenoloacutegico
sem qualquer julgamento teoloacutegico quanto agrave sua natureza e o seus fins Descrevem-se os
principais conceitos e as praacuteticas mais comuns da religiatildeo animista
No segundo capiacutetulo busca-se uma visatildeo panoracircmica do tema ldquoespiacuteritos na Biacutebliardquo O
principal objetivo eacute demonstrar que a Biacuteblia trata a existecircncia dos espiacuteritos de forma realista ou
seja os autores biacuteblicos natildeo tentam provar a existecircncia de seres espirituais partem do
pressuposto de que eles satildeo reais
No terceiro capiacutetulo desenvolve-se o tema da salvaccedilatildeo uma breve alusatildeo ao seu
desenvolvimento teoloacutegico na histoacuteria da igreja e por fim a defesa da tese de que o tema da
salvaccedilatildeo como ldquotransferecircncia de domiacuteniordquo eacute o mais apropriado para introduzir o Evangelho no
contexto animista Coloca-se tambeacutem a necessidade de apresentar-se o evangelho de forma
contextualizada Entende-se a contextualizaccedilatildeo natildeo como uma forma de acomodaccedilatildeo do
Evangelho aos moldes culturais animistas mas como uma estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que parte
12
do conhecido para o desconhecido do antigo para o novo O capiacutetulo finaliza-se com uma
apresentaccedilatildeo do conceito de ldquoteologia do Reinordquo e sua visatildeo integral da obra de salvaccedilatildeo
CAPIacuteTULO 1
ANIMISMO CONCEITOS E PRAacuteTICAS
Neste capiacutetulo abordaremos o tema do animismo de forma geral e abrangente
iniciando com uma anaacutelise histoacuterica do fenocircmeno e de sua terminologia ateacute os seus conceitos
fundamentais e suas praacuteticas mais comuns Fazemos aqui uma anaacutelise antropoloacutegica do
fenocircmeno religioso animista sem atribuirmos qualquer juiacutezo de valor ao termo animismo e
aos seus cognatos Vale-se do pressuposto de que eacute a partir do conhecimento fenomenoloacutegico
e de uma visatildeo criacutetica que poderemos posteriormente avaliar suas crenccedilas e praacuteticas agrave luz
das Escrituras Sagradas
11 Uso histoacuterico do termo
O termo ldquoanimismordquo eacute derivado da palavra anima em Latim e quer dizer ldquofocirclegordquo ou
ldquofocirclego de vidardquo Ele traz consigo a ideacuteia de alma ou espiacuterito (Steyne 1992 p 36) A palavra
foi usada pela primeira vez pelo antropoacutelogo britacircnico Edward B Tylor em seus escritos
mais antigos Em 1873 em sua obra Religion in Primitive Culture ele definiu animismo
como ldquoa doutrina de Seres Espirituaisrdquo (1970 p 9) e afirmou que ldquoAnimismo em seu
desenvolvimento pleno incluiacutea a crenccedila em almas e em seu estado futuro em deidades
controladoras e espiacuteritos subordinados (hellip) resultando em algum tipo de adoraccedilatildeordquo (1970 p
11) Esses espiacuteritos incluem tanto os espiacuteritos dos ancestrais vivos que satildeo ldquocapazes de
existecircncia continuadardquo apoacutes a morte como ldquooutros espiacuteritos em uma escala ascendente ateacute ao
ranking de deidades poderosasrdquo (Tylor 1970 p 10) Os escritos de Tylor abriram precedente
para definir animismo como ldquoa crenccedila em um poder sobrenatural personalizadordquo (Smalley
1971 p 24) Tylor partia do pressuposto evolucionistapositivista e acreditava que o
animismo era uma forma primitiva de religiatildeo forma essa que apresentava um modo de
14
pensamento preacute-loacutegico desenvolvido posterior e gradativamente para o politeiacutesmo ateacute chegar
agraves religiotildees monoteiacutestas Apesar da rejeiccedilatildeo atual ao seu evolucionismo cultural e de
considerar-se incompleta sua ideacuteia sobre animismo natildeo se pode ignorar sua contribuiccedilatildeo para
o estudo desse assunto
Posteriormente o missionaacuterio R H Codrington descobriu na religiatildeo tradicional
Melaneacutesia em 1891 o conceito de ldquoforccedila espiritual impessoalrdquo Essa forccedila espiritual
denominada mana foi descrita em seu livro The Melanesians (Apud Steyne 1992)) Segundo
Steyne (1992) essa forccedila impessoal pode ser associada agrave energia uma essecircncia com a qual
todas as coisas satildeo carregadas e que pode passar de um elemento para outro Na religiosidade
popular brasileira por exemplo usam-se muito os termos ldquoenergia positivardquo e ldquoenergia
negativardquo para indicar a presenccedila ou natildeo de algum elemento imaterial existente que interfere
nos objetos e nas pessoas e que muitas vezes influenciam e ou determinam o curso de suas
vidas
Com base nos conceitos apresentados acima antropoacutelogos tecircm feito uma distinccedilatildeo
entre animismo crenccedila em espiacuteritos personificados e animatismo crenccedila em uma forccedila
impessoal Para Van Rheenen (1991) no entanto essa distinccedilatildeo reflete apenas uma visatildeo
exterior e natildeo fenomenoloacutegica aos proacuteprios grupos animistas pois para eles natildeo haacute distinccedilatildeo
clara entre forccedilas impessoais e seres espirituais Ele cita como exemplo o conceito de azar
na religiatildeo islacircmica Segundo o islamismo popular natildeo eacute possiacutevel saber se a origem do azar eacute
atribuiacuteda a jiin (ser espiritual personificado) ou ao mau olhado (forccedila impessoal) Assim a
definiccedilatildeo de animismo para esse autor eacute
A crenccedila que seres espirituais personificados e forccedilas espirituais impessoais tecircm poder sobre as atividades humanas e consequentemente que os seres humanos precisam descobrir quais os seres e forccedilas os estatildeo influenciando a fim de que determinem de que forma iratildeo agir e com frequumlecircncia como iratildeo manipular o poder deles (Van Rheenen 1991 pp 19-20)
15
Lothar Kaser por seu turno acrescenta mais alguns elementos em sua definiccedilatildeo de
animismo a saber a forma como esses seres sobrenaturais se manifestam
Entende-se por animismo em sua forma mais geneacuterica a crenccedila na existecircncia e atuaccedilatildeo de seres espirituais que se manifestam na forma de apariccedilotildees semelhantes a homens ou animais dispondo de conhecimentos poderes e possibilidades que o proacuteprio ser homem natildeo tem Em culturas tradicionais (sem escrita) fazem parte desses seres semelhantes a figuras espirituais natildeo somente os espiacuteritos propriamente ditos mas ainda alma de pessoas sob certas circunstacircncias tambeacutem objetos podem estar de posse de algo como uma alma (2004 p 215)
Como se pode ver o conceito de animismo sofreu modificaccedilotildees desde Tyler ateacute os
dias atuais
12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo
Estudiosos tecircm discutido ateacute que ponto o animismo eacute de fato uma religiatildeo uma vez
que natildeo possui elementos fundamentais caracteriacutesticos das religiotildees mundiais tais como
escritos sagrados templos missionaacuterios ou teologia uniforme Para Kaser por exemplo ldquoeacute
melhor (consideraacute-lo) uma cosmovisatildeo com muitos aspectosrdquo (2004 p 216) Jaacute para outros
autores esse tipo de pensamento manifesta certo etnocentrismo e preconceito pois vecirc a
religiatildeo apenas como o aspecto da vida que lida com o ldquoespiritualrdquo enquanto que a ciecircncia
lidaria com os aspectos naturais Essa postura que elimina fronteiras riacutegidas entre ciecircncia e
religiatildeo estaacute em consonacircncia com o construto poacutes-moderno de ciecircncia locus que considera as
conclusotildees de um xamatilde sobre a vida e o cosmo tatildeo vaacutelidas quanto as de um acadecircmico com
carreira universitaacuteria (ver por exemplo Ruy Ceacutesar do Espiacuterito Santo O Renascimento do
Sagrado na Educaccedilatildeo 2a Ed Coleccedilatildeo Praacutexis Campinas Papirus 2000)
Assim Hiebert Shaw amp Tieacutenou afirmam que
Antropoacutelogos agora definem lsquoreligiatildeorsquo como crenccedilas a respeito da natureza uacuteltima das coisas tais como sentimentos profundos e motivaccedilotildees valores fundamentais e lealdade Essa definiccedilatildeo fornece a maneira como as pessoas percebem a realidade Nesse sentido o ateiacutesmo budista Theravada Marxismo e cientificismo tambeacutem satildeo religiotildees (1999 p 35)
16
Conclui-se portanto que o animismo eacute uma religiatildeo pois reflete uma forma especiacutefica
de interpretaccedilatildeo da realidade
13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista
Embora o animismo apresente facetas diversas nas diferentes regiotildees do mundo haacute
certas caracteriacutesticas que satildeo comuns a todos A seguir apresentamos as principais
131 Holismo
Segundo Steyne (1992 p 58) holismo eacute um termo filosoacutefico cuja visatildeo eacute de que a
vida eacute maior do que a soma de suas partes Ainda segundo Steyne ldquoo mundo interage consigo
mesmo O ceacuteu os espiacuteritos a terra o mundo fiacutesico o vivente e o falecido todos agem
interagem e reagem em consonacircnciardquo (1992 p 59) Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo proacutepria entre o
indiviacuteduo e o mundo Por essa razatildeo o animista natildeo faz separaccedilatildeo entre o sagrado e o
profano ou entre o secular e o religioso Conclui-se que o animismo eacute em uacuteltima instacircncia
uma forma de panteiacutesmo
132 Espiritualismo
O conceito de espiritualismo estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo de holismo e depende
dele Segundo a noccedilatildeo de espiritualismo a espiritualidade eacute a essecircncia fundamental da vida e
a vida estaacute repleta de possibilidades sobrenaturais Tudo na vida pode ser influenciado pelo
mundo dos espiacuteritos Tudo que ocorre no mundo fiacutesico tem um correspondente no mundo
espiritual e da mesma forma tudo que ocorre no mundo espiritual tem consequumlecircncias no
mundo fiacutesico (Van Rheenen 1991) Para os indiacutegenas brasileiros por exemplo a causa das
doenccedilas natildeo adveacutem simplesmente de bacteacuterias viacuterus etc mas da accedilatildeo direta dos espiacuteritos
sobre o indiviacuteduo Isso quase sempre resulta em acusaccedilotildees pela necessidade de se descobrir
17
o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
18
pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
19
135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
20
Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
21
dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
22
Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
24
1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
25
missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
26
si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
27
(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
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os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
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22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
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quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
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Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
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sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
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No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
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malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
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Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
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Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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ABSTRACT DA SILVA Norval Oliveira Communicating Christ in an animist context 2007 60 pages (Bachelors Final Paper in Theology ndash Faculdade Teoloacutegica Sul Americana)
This paper analyses animism as the form of religion which is characteristic of most people who still need to be reached by the Gospel of Jesus Christ It gives a synthesis of the phenomenon of animism in the Bible from the polytheistic-animistic practices of the nations that surrounded the Israelite people in the Old Testament to the analyses of the attitudes of Jesus and His disciples in relation to the spirit world and culminating in the ministry of the apostle Paul Special attention is given to apostle Paulrsquos attitude and strategy in relation to the Christians of the city of Ephesus while approaching the problem of magic and other animis-tic practices which were very popular in that city and which one way or another affected those recently converted to the Gospel This paper also analyzes the main terminology related to the world of spiritual principalities and potentates used by the apostle in his letter to the Ephesians Attention is given to the concept of salvation in an animistic context focusing especially on the concept of salvation as a change of dominion ie animists who were for-merly subordinated to spirits will find salvation and safety under the dominion of Jesus Christ the Lord of Lords who defeated and humiliated the spirits by His death on the cross
SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 10 CAPIacuteTULO I Animismo conceitos e praacuteticas 13
11 O uso histoacuterico do termo 13 12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo 15 13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista 16
131 Holismo 16 132 Espiritualismo 16 133 Religiatildeo de poder 17 134 Vida comunitaacuteria 18 135 O mundo dos espiacuteritos 19 136 Religiatildeo de medo 20
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas 21 141 Praacutetica de rituais 21 142 Tipos de rituais 22
1421 Ritos apotropaacuteicos 23 1422 Ritos de eliminaccedilatildeo 23 1423 Ritos de purificaccedilatildeo 24 1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo 24
143 Uso de magia 25 144 O papel dos especialistas 27 145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual 28
CAPIacuteTULO II O Mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia 30
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento 31 211 O animismo como forma de religiatildeo antiga 31 212 A natureza dos iacutedolos 32
213 Espiacuteritos territoriais 30 214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas 30
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento 30 221 O ministeacuterio de Jesus 31 222 O ministeacuterio dos disciacutepulos 31 223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista 32
2231 A teologia Paulina a respeito dos espiacuteritos 33 2232 O contexto religioso subjacente agrave Carta aos Efeacutesios 33 2233 A natureza dos Principados e Potestades 34
22331 Anjos bons 34 22332 Estruturas sociais malignas 34 22333 Espiacuteritos malignos 35
224 O significado de stoicheia em Gaacutelatas 35 225 A batalha da igreja contra os Principados e Potestades 37 226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos 37
CAPIacuteTULO III A mensagem de salvaccedilatildeo em um contexto animista 41
31 O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo 41 311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva 41 312 Conceito escatoloacutegico 43 313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva 44
314 Conceito de resgate - Cristus Victor 45 32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista 46
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio 46 322 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista 48
33 O que a Biacuteblia fala sobre o senhorio 49 331 Ocorrecircncia do termo lsquosenhorrsquo na Biacuteblia 49
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno 50 35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo 51 36 Teologia do Reino versus teologia de conversatildeo 53 37 A luta contra o sincretismo 54 38 A relevacircncia do tema para hoje 55
CONCLUSAtildeO 56 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59
ABREVIACcedilOtildeES
ARA- Biacuteblia traduccedilatildeo de Joatildeo Ferreira de Almeida Atualizada
NTLH- Nova Traduccedilatildeo na Linguagem de Hoje
AT- Antigo Testamento
NT- Novo Testamento
APMT- Agecircncia Presbiteriana de Missotildees Transculturais ALEM- Associaccedilatildeo Linguumliacutestica Evangeacutelica Missionaacuteria
INTRODUCcedilAtildeO
Estima-se que 40 por cento da populaccedilatildeo mundial tomam o animismo como base de
suas crenccedilas Calcula-se tambeacutem que entre os 88 por cento daqueles classificados como povos
natildeo alcanccedilados pelo evangelho 135 milhotildees satildeo tribos animistas Aleacutem disso 19 bilhotildees de
pessoas no mundo estatildeo de alguma forma inseridos em uma religiatildeo mundial que apresenta
formas sincreacuteticas com o animismo Pode-se concluir portanto que o mundo natildeo alcanccedilado pelo
Evangelho como um todo eacute animista
Esse grande nuacutemero de grupos animistas natildeo alcanccedilados indica a necessidade urgente
de missionaacuterios aprenderem como comunicar a Palavra de Deus de forma eficaz em contextos
animistas
Quando se verifica a literatura sobre o tema comunicaccedilatildeo do Evangelho em contexto
animista poreacutem o que se constata eacute a ausecircncia quase absoluta de qualquer material que venha a
contribuir para a formaccedilatildeo do missionaacuterio transcultural brasileiro
O objetivo desta pesquisa eacute dar um primeiro passo no que diz respeito agrave produccedilatildeo de
material que venha ajudar missionaacuterios brasileiros em seu preparo transcultural especialmente na
compreensatildeo de conceitos e praacuteticas animistas e na aplicaccedilatildeo contextualizada do Evangelho agrave
realidade animista
Aleacutem da falta de material especiacutefico sobre a comunicaccedilatildeo do Evangelho em contextos
animistas haacute ainda um outro elemento complicador Os missionaacuterios brasileiros satildeo treinados nos
moldes do mundo ocidental sendo portanto influenciados pela teologia ocidental teologia essa
que parece natildeo levar muito em conta a questatildeo do mundo dos espiacuteritos Natildeo eacute raro encontrar
missionaacuterios brasileiros que vatildeo trabalhar com um povo animista mas que nem mesmo acreditam
na existecircncia de espiacuteritos Esses missionaacuterios satildeo frutos de uma teologia europeacuteia-americanizada
11
cuja tendecircncia ao materialismo no miacutenimo menospreza a realidade do mundo espiritual Ao
comunicar o Evangelho o missionaacuterio tenderaacute a reproduzir o modelo recebido e correraacute o risco
de natildeo comunicar o Evangelho de uma forma que cause impacto na mente e no coraccedilatildeo do povo
a ser alcanccedilado
A metodologia utilizada nesta pesquisa foi primariamente uma pesquisa bibliograacutefica
Quase todas as obras utilizadas foram escritas na liacutengua inglesa pois como jaacute mencionado quase
natildeo se encontra material sobre o tema em liacutengua portuguesa Aleacutem da pesquisa bibliograacutefica
incluem-se tambeacutem informaccedilotildees dadas por missionaacuterios que jaacute atuam com povos animistas cujos
testemunhos datildeo suporte aos conceitos apresentados A pesquisa foi dividida em trecircs capiacutetulos
No primeiro capiacutetulo apresenta-se o animismo sob o ponto de vista fenomenoloacutegico
sem qualquer julgamento teoloacutegico quanto agrave sua natureza e o seus fins Descrevem-se os
principais conceitos e as praacuteticas mais comuns da religiatildeo animista
No segundo capiacutetulo busca-se uma visatildeo panoracircmica do tema ldquoespiacuteritos na Biacutebliardquo O
principal objetivo eacute demonstrar que a Biacuteblia trata a existecircncia dos espiacuteritos de forma realista ou
seja os autores biacuteblicos natildeo tentam provar a existecircncia de seres espirituais partem do
pressuposto de que eles satildeo reais
No terceiro capiacutetulo desenvolve-se o tema da salvaccedilatildeo uma breve alusatildeo ao seu
desenvolvimento teoloacutegico na histoacuteria da igreja e por fim a defesa da tese de que o tema da
salvaccedilatildeo como ldquotransferecircncia de domiacuteniordquo eacute o mais apropriado para introduzir o Evangelho no
contexto animista Coloca-se tambeacutem a necessidade de apresentar-se o evangelho de forma
contextualizada Entende-se a contextualizaccedilatildeo natildeo como uma forma de acomodaccedilatildeo do
Evangelho aos moldes culturais animistas mas como uma estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que parte
12
do conhecido para o desconhecido do antigo para o novo O capiacutetulo finaliza-se com uma
apresentaccedilatildeo do conceito de ldquoteologia do Reinordquo e sua visatildeo integral da obra de salvaccedilatildeo
CAPIacuteTULO 1
ANIMISMO CONCEITOS E PRAacuteTICAS
Neste capiacutetulo abordaremos o tema do animismo de forma geral e abrangente
iniciando com uma anaacutelise histoacuterica do fenocircmeno e de sua terminologia ateacute os seus conceitos
fundamentais e suas praacuteticas mais comuns Fazemos aqui uma anaacutelise antropoloacutegica do
fenocircmeno religioso animista sem atribuirmos qualquer juiacutezo de valor ao termo animismo e
aos seus cognatos Vale-se do pressuposto de que eacute a partir do conhecimento fenomenoloacutegico
e de uma visatildeo criacutetica que poderemos posteriormente avaliar suas crenccedilas e praacuteticas agrave luz
das Escrituras Sagradas
11 Uso histoacuterico do termo
O termo ldquoanimismordquo eacute derivado da palavra anima em Latim e quer dizer ldquofocirclegordquo ou
ldquofocirclego de vidardquo Ele traz consigo a ideacuteia de alma ou espiacuterito (Steyne 1992 p 36) A palavra
foi usada pela primeira vez pelo antropoacutelogo britacircnico Edward B Tylor em seus escritos
mais antigos Em 1873 em sua obra Religion in Primitive Culture ele definiu animismo
como ldquoa doutrina de Seres Espirituaisrdquo (1970 p 9) e afirmou que ldquoAnimismo em seu
desenvolvimento pleno incluiacutea a crenccedila em almas e em seu estado futuro em deidades
controladoras e espiacuteritos subordinados (hellip) resultando em algum tipo de adoraccedilatildeordquo (1970 p
11) Esses espiacuteritos incluem tanto os espiacuteritos dos ancestrais vivos que satildeo ldquocapazes de
existecircncia continuadardquo apoacutes a morte como ldquooutros espiacuteritos em uma escala ascendente ateacute ao
ranking de deidades poderosasrdquo (Tylor 1970 p 10) Os escritos de Tylor abriram precedente
para definir animismo como ldquoa crenccedila em um poder sobrenatural personalizadordquo (Smalley
1971 p 24) Tylor partia do pressuposto evolucionistapositivista e acreditava que o
animismo era uma forma primitiva de religiatildeo forma essa que apresentava um modo de
14
pensamento preacute-loacutegico desenvolvido posterior e gradativamente para o politeiacutesmo ateacute chegar
agraves religiotildees monoteiacutestas Apesar da rejeiccedilatildeo atual ao seu evolucionismo cultural e de
considerar-se incompleta sua ideacuteia sobre animismo natildeo se pode ignorar sua contribuiccedilatildeo para
o estudo desse assunto
Posteriormente o missionaacuterio R H Codrington descobriu na religiatildeo tradicional
Melaneacutesia em 1891 o conceito de ldquoforccedila espiritual impessoalrdquo Essa forccedila espiritual
denominada mana foi descrita em seu livro The Melanesians (Apud Steyne 1992)) Segundo
Steyne (1992) essa forccedila impessoal pode ser associada agrave energia uma essecircncia com a qual
todas as coisas satildeo carregadas e que pode passar de um elemento para outro Na religiosidade
popular brasileira por exemplo usam-se muito os termos ldquoenergia positivardquo e ldquoenergia
negativardquo para indicar a presenccedila ou natildeo de algum elemento imaterial existente que interfere
nos objetos e nas pessoas e que muitas vezes influenciam e ou determinam o curso de suas
vidas
Com base nos conceitos apresentados acima antropoacutelogos tecircm feito uma distinccedilatildeo
entre animismo crenccedila em espiacuteritos personificados e animatismo crenccedila em uma forccedila
impessoal Para Van Rheenen (1991) no entanto essa distinccedilatildeo reflete apenas uma visatildeo
exterior e natildeo fenomenoloacutegica aos proacuteprios grupos animistas pois para eles natildeo haacute distinccedilatildeo
clara entre forccedilas impessoais e seres espirituais Ele cita como exemplo o conceito de azar
na religiatildeo islacircmica Segundo o islamismo popular natildeo eacute possiacutevel saber se a origem do azar eacute
atribuiacuteda a jiin (ser espiritual personificado) ou ao mau olhado (forccedila impessoal) Assim a
definiccedilatildeo de animismo para esse autor eacute
A crenccedila que seres espirituais personificados e forccedilas espirituais impessoais tecircm poder sobre as atividades humanas e consequentemente que os seres humanos precisam descobrir quais os seres e forccedilas os estatildeo influenciando a fim de que determinem de que forma iratildeo agir e com frequumlecircncia como iratildeo manipular o poder deles (Van Rheenen 1991 pp 19-20)
15
Lothar Kaser por seu turno acrescenta mais alguns elementos em sua definiccedilatildeo de
animismo a saber a forma como esses seres sobrenaturais se manifestam
Entende-se por animismo em sua forma mais geneacuterica a crenccedila na existecircncia e atuaccedilatildeo de seres espirituais que se manifestam na forma de apariccedilotildees semelhantes a homens ou animais dispondo de conhecimentos poderes e possibilidades que o proacuteprio ser homem natildeo tem Em culturas tradicionais (sem escrita) fazem parte desses seres semelhantes a figuras espirituais natildeo somente os espiacuteritos propriamente ditos mas ainda alma de pessoas sob certas circunstacircncias tambeacutem objetos podem estar de posse de algo como uma alma (2004 p 215)
Como se pode ver o conceito de animismo sofreu modificaccedilotildees desde Tyler ateacute os
dias atuais
12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo
Estudiosos tecircm discutido ateacute que ponto o animismo eacute de fato uma religiatildeo uma vez
que natildeo possui elementos fundamentais caracteriacutesticos das religiotildees mundiais tais como
escritos sagrados templos missionaacuterios ou teologia uniforme Para Kaser por exemplo ldquoeacute
melhor (consideraacute-lo) uma cosmovisatildeo com muitos aspectosrdquo (2004 p 216) Jaacute para outros
autores esse tipo de pensamento manifesta certo etnocentrismo e preconceito pois vecirc a
religiatildeo apenas como o aspecto da vida que lida com o ldquoespiritualrdquo enquanto que a ciecircncia
lidaria com os aspectos naturais Essa postura que elimina fronteiras riacutegidas entre ciecircncia e
religiatildeo estaacute em consonacircncia com o construto poacutes-moderno de ciecircncia locus que considera as
conclusotildees de um xamatilde sobre a vida e o cosmo tatildeo vaacutelidas quanto as de um acadecircmico com
carreira universitaacuteria (ver por exemplo Ruy Ceacutesar do Espiacuterito Santo O Renascimento do
Sagrado na Educaccedilatildeo 2a Ed Coleccedilatildeo Praacutexis Campinas Papirus 2000)
Assim Hiebert Shaw amp Tieacutenou afirmam que
Antropoacutelogos agora definem lsquoreligiatildeorsquo como crenccedilas a respeito da natureza uacuteltima das coisas tais como sentimentos profundos e motivaccedilotildees valores fundamentais e lealdade Essa definiccedilatildeo fornece a maneira como as pessoas percebem a realidade Nesse sentido o ateiacutesmo budista Theravada Marxismo e cientificismo tambeacutem satildeo religiotildees (1999 p 35)
16
Conclui-se portanto que o animismo eacute uma religiatildeo pois reflete uma forma especiacutefica
de interpretaccedilatildeo da realidade
13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista
Embora o animismo apresente facetas diversas nas diferentes regiotildees do mundo haacute
certas caracteriacutesticas que satildeo comuns a todos A seguir apresentamos as principais
131 Holismo
Segundo Steyne (1992 p 58) holismo eacute um termo filosoacutefico cuja visatildeo eacute de que a
vida eacute maior do que a soma de suas partes Ainda segundo Steyne ldquoo mundo interage consigo
mesmo O ceacuteu os espiacuteritos a terra o mundo fiacutesico o vivente e o falecido todos agem
interagem e reagem em consonacircnciardquo (1992 p 59) Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo proacutepria entre o
indiviacuteduo e o mundo Por essa razatildeo o animista natildeo faz separaccedilatildeo entre o sagrado e o
profano ou entre o secular e o religioso Conclui-se que o animismo eacute em uacuteltima instacircncia
uma forma de panteiacutesmo
132 Espiritualismo
O conceito de espiritualismo estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo de holismo e depende
dele Segundo a noccedilatildeo de espiritualismo a espiritualidade eacute a essecircncia fundamental da vida e
a vida estaacute repleta de possibilidades sobrenaturais Tudo na vida pode ser influenciado pelo
mundo dos espiacuteritos Tudo que ocorre no mundo fiacutesico tem um correspondente no mundo
espiritual e da mesma forma tudo que ocorre no mundo espiritual tem consequumlecircncias no
mundo fiacutesico (Van Rheenen 1991) Para os indiacutegenas brasileiros por exemplo a causa das
doenccedilas natildeo adveacutem simplesmente de bacteacuterias viacuterus etc mas da accedilatildeo direta dos espiacuteritos
sobre o indiviacuteduo Isso quase sempre resulta em acusaccedilotildees pela necessidade de se descobrir
17
o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
18
pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
19
135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
20
Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
21
dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
22
Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
23
Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
24
1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
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si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
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(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 10 CAPIacuteTULO I Animismo conceitos e praacuteticas 13
11 O uso histoacuterico do termo 13 12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo 15 13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista 16
131 Holismo 16 132 Espiritualismo 16 133 Religiatildeo de poder 17 134 Vida comunitaacuteria 18 135 O mundo dos espiacuteritos 19 136 Religiatildeo de medo 20
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas 21 141 Praacutetica de rituais 21 142 Tipos de rituais 22
1421 Ritos apotropaacuteicos 23 1422 Ritos de eliminaccedilatildeo 23 1423 Ritos de purificaccedilatildeo 24 1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo 24
143 Uso de magia 25 144 O papel dos especialistas 27 145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual 28
CAPIacuteTULO II O Mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia 30
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento 31 211 O animismo como forma de religiatildeo antiga 31 212 A natureza dos iacutedolos 32
213 Espiacuteritos territoriais 30 214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas 30
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento 30 221 O ministeacuterio de Jesus 31 222 O ministeacuterio dos disciacutepulos 31 223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista 32
2231 A teologia Paulina a respeito dos espiacuteritos 33 2232 O contexto religioso subjacente agrave Carta aos Efeacutesios 33 2233 A natureza dos Principados e Potestades 34
22331 Anjos bons 34 22332 Estruturas sociais malignas 34 22333 Espiacuteritos malignos 35
224 O significado de stoicheia em Gaacutelatas 35 225 A batalha da igreja contra os Principados e Potestades 37 226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos 37
CAPIacuteTULO III A mensagem de salvaccedilatildeo em um contexto animista 41
31 O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo 41 311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva 41 312 Conceito escatoloacutegico 43 313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva 44
314 Conceito de resgate - Cristus Victor 45 32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista 46
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio 46 322 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista 48
33 O que a Biacuteblia fala sobre o senhorio 49 331 Ocorrecircncia do termo lsquosenhorrsquo na Biacuteblia 49
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno 50 35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo 51 36 Teologia do Reino versus teologia de conversatildeo 53 37 A luta contra o sincretismo 54 38 A relevacircncia do tema para hoje 55
CONCLUSAtildeO 56 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59
ABREVIACcedilOtildeES
ARA- Biacuteblia traduccedilatildeo de Joatildeo Ferreira de Almeida Atualizada
NTLH- Nova Traduccedilatildeo na Linguagem de Hoje
AT- Antigo Testamento
NT- Novo Testamento
APMT- Agecircncia Presbiteriana de Missotildees Transculturais ALEM- Associaccedilatildeo Linguumliacutestica Evangeacutelica Missionaacuteria
INTRODUCcedilAtildeO
Estima-se que 40 por cento da populaccedilatildeo mundial tomam o animismo como base de
suas crenccedilas Calcula-se tambeacutem que entre os 88 por cento daqueles classificados como povos
natildeo alcanccedilados pelo evangelho 135 milhotildees satildeo tribos animistas Aleacutem disso 19 bilhotildees de
pessoas no mundo estatildeo de alguma forma inseridos em uma religiatildeo mundial que apresenta
formas sincreacuteticas com o animismo Pode-se concluir portanto que o mundo natildeo alcanccedilado pelo
Evangelho como um todo eacute animista
Esse grande nuacutemero de grupos animistas natildeo alcanccedilados indica a necessidade urgente
de missionaacuterios aprenderem como comunicar a Palavra de Deus de forma eficaz em contextos
animistas
Quando se verifica a literatura sobre o tema comunicaccedilatildeo do Evangelho em contexto
animista poreacutem o que se constata eacute a ausecircncia quase absoluta de qualquer material que venha a
contribuir para a formaccedilatildeo do missionaacuterio transcultural brasileiro
O objetivo desta pesquisa eacute dar um primeiro passo no que diz respeito agrave produccedilatildeo de
material que venha ajudar missionaacuterios brasileiros em seu preparo transcultural especialmente na
compreensatildeo de conceitos e praacuteticas animistas e na aplicaccedilatildeo contextualizada do Evangelho agrave
realidade animista
Aleacutem da falta de material especiacutefico sobre a comunicaccedilatildeo do Evangelho em contextos
animistas haacute ainda um outro elemento complicador Os missionaacuterios brasileiros satildeo treinados nos
moldes do mundo ocidental sendo portanto influenciados pela teologia ocidental teologia essa
que parece natildeo levar muito em conta a questatildeo do mundo dos espiacuteritos Natildeo eacute raro encontrar
missionaacuterios brasileiros que vatildeo trabalhar com um povo animista mas que nem mesmo acreditam
na existecircncia de espiacuteritos Esses missionaacuterios satildeo frutos de uma teologia europeacuteia-americanizada
11
cuja tendecircncia ao materialismo no miacutenimo menospreza a realidade do mundo espiritual Ao
comunicar o Evangelho o missionaacuterio tenderaacute a reproduzir o modelo recebido e correraacute o risco
de natildeo comunicar o Evangelho de uma forma que cause impacto na mente e no coraccedilatildeo do povo
a ser alcanccedilado
A metodologia utilizada nesta pesquisa foi primariamente uma pesquisa bibliograacutefica
Quase todas as obras utilizadas foram escritas na liacutengua inglesa pois como jaacute mencionado quase
natildeo se encontra material sobre o tema em liacutengua portuguesa Aleacutem da pesquisa bibliograacutefica
incluem-se tambeacutem informaccedilotildees dadas por missionaacuterios que jaacute atuam com povos animistas cujos
testemunhos datildeo suporte aos conceitos apresentados A pesquisa foi dividida em trecircs capiacutetulos
No primeiro capiacutetulo apresenta-se o animismo sob o ponto de vista fenomenoloacutegico
sem qualquer julgamento teoloacutegico quanto agrave sua natureza e o seus fins Descrevem-se os
principais conceitos e as praacuteticas mais comuns da religiatildeo animista
No segundo capiacutetulo busca-se uma visatildeo panoracircmica do tema ldquoespiacuteritos na Biacutebliardquo O
principal objetivo eacute demonstrar que a Biacuteblia trata a existecircncia dos espiacuteritos de forma realista ou
seja os autores biacuteblicos natildeo tentam provar a existecircncia de seres espirituais partem do
pressuposto de que eles satildeo reais
No terceiro capiacutetulo desenvolve-se o tema da salvaccedilatildeo uma breve alusatildeo ao seu
desenvolvimento teoloacutegico na histoacuteria da igreja e por fim a defesa da tese de que o tema da
salvaccedilatildeo como ldquotransferecircncia de domiacuteniordquo eacute o mais apropriado para introduzir o Evangelho no
contexto animista Coloca-se tambeacutem a necessidade de apresentar-se o evangelho de forma
contextualizada Entende-se a contextualizaccedilatildeo natildeo como uma forma de acomodaccedilatildeo do
Evangelho aos moldes culturais animistas mas como uma estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que parte
12
do conhecido para o desconhecido do antigo para o novo O capiacutetulo finaliza-se com uma
apresentaccedilatildeo do conceito de ldquoteologia do Reinordquo e sua visatildeo integral da obra de salvaccedilatildeo
CAPIacuteTULO 1
ANIMISMO CONCEITOS E PRAacuteTICAS
Neste capiacutetulo abordaremos o tema do animismo de forma geral e abrangente
iniciando com uma anaacutelise histoacuterica do fenocircmeno e de sua terminologia ateacute os seus conceitos
fundamentais e suas praacuteticas mais comuns Fazemos aqui uma anaacutelise antropoloacutegica do
fenocircmeno religioso animista sem atribuirmos qualquer juiacutezo de valor ao termo animismo e
aos seus cognatos Vale-se do pressuposto de que eacute a partir do conhecimento fenomenoloacutegico
e de uma visatildeo criacutetica que poderemos posteriormente avaliar suas crenccedilas e praacuteticas agrave luz
das Escrituras Sagradas
11 Uso histoacuterico do termo
O termo ldquoanimismordquo eacute derivado da palavra anima em Latim e quer dizer ldquofocirclegordquo ou
ldquofocirclego de vidardquo Ele traz consigo a ideacuteia de alma ou espiacuterito (Steyne 1992 p 36) A palavra
foi usada pela primeira vez pelo antropoacutelogo britacircnico Edward B Tylor em seus escritos
mais antigos Em 1873 em sua obra Religion in Primitive Culture ele definiu animismo
como ldquoa doutrina de Seres Espirituaisrdquo (1970 p 9) e afirmou que ldquoAnimismo em seu
desenvolvimento pleno incluiacutea a crenccedila em almas e em seu estado futuro em deidades
controladoras e espiacuteritos subordinados (hellip) resultando em algum tipo de adoraccedilatildeordquo (1970 p
11) Esses espiacuteritos incluem tanto os espiacuteritos dos ancestrais vivos que satildeo ldquocapazes de
existecircncia continuadardquo apoacutes a morte como ldquooutros espiacuteritos em uma escala ascendente ateacute ao
ranking de deidades poderosasrdquo (Tylor 1970 p 10) Os escritos de Tylor abriram precedente
para definir animismo como ldquoa crenccedila em um poder sobrenatural personalizadordquo (Smalley
1971 p 24) Tylor partia do pressuposto evolucionistapositivista e acreditava que o
animismo era uma forma primitiva de religiatildeo forma essa que apresentava um modo de
14
pensamento preacute-loacutegico desenvolvido posterior e gradativamente para o politeiacutesmo ateacute chegar
agraves religiotildees monoteiacutestas Apesar da rejeiccedilatildeo atual ao seu evolucionismo cultural e de
considerar-se incompleta sua ideacuteia sobre animismo natildeo se pode ignorar sua contribuiccedilatildeo para
o estudo desse assunto
Posteriormente o missionaacuterio R H Codrington descobriu na religiatildeo tradicional
Melaneacutesia em 1891 o conceito de ldquoforccedila espiritual impessoalrdquo Essa forccedila espiritual
denominada mana foi descrita em seu livro The Melanesians (Apud Steyne 1992)) Segundo
Steyne (1992) essa forccedila impessoal pode ser associada agrave energia uma essecircncia com a qual
todas as coisas satildeo carregadas e que pode passar de um elemento para outro Na religiosidade
popular brasileira por exemplo usam-se muito os termos ldquoenergia positivardquo e ldquoenergia
negativardquo para indicar a presenccedila ou natildeo de algum elemento imaterial existente que interfere
nos objetos e nas pessoas e que muitas vezes influenciam e ou determinam o curso de suas
vidas
Com base nos conceitos apresentados acima antropoacutelogos tecircm feito uma distinccedilatildeo
entre animismo crenccedila em espiacuteritos personificados e animatismo crenccedila em uma forccedila
impessoal Para Van Rheenen (1991) no entanto essa distinccedilatildeo reflete apenas uma visatildeo
exterior e natildeo fenomenoloacutegica aos proacuteprios grupos animistas pois para eles natildeo haacute distinccedilatildeo
clara entre forccedilas impessoais e seres espirituais Ele cita como exemplo o conceito de azar
na religiatildeo islacircmica Segundo o islamismo popular natildeo eacute possiacutevel saber se a origem do azar eacute
atribuiacuteda a jiin (ser espiritual personificado) ou ao mau olhado (forccedila impessoal) Assim a
definiccedilatildeo de animismo para esse autor eacute
A crenccedila que seres espirituais personificados e forccedilas espirituais impessoais tecircm poder sobre as atividades humanas e consequentemente que os seres humanos precisam descobrir quais os seres e forccedilas os estatildeo influenciando a fim de que determinem de que forma iratildeo agir e com frequumlecircncia como iratildeo manipular o poder deles (Van Rheenen 1991 pp 19-20)
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Lothar Kaser por seu turno acrescenta mais alguns elementos em sua definiccedilatildeo de
animismo a saber a forma como esses seres sobrenaturais se manifestam
Entende-se por animismo em sua forma mais geneacuterica a crenccedila na existecircncia e atuaccedilatildeo de seres espirituais que se manifestam na forma de apariccedilotildees semelhantes a homens ou animais dispondo de conhecimentos poderes e possibilidades que o proacuteprio ser homem natildeo tem Em culturas tradicionais (sem escrita) fazem parte desses seres semelhantes a figuras espirituais natildeo somente os espiacuteritos propriamente ditos mas ainda alma de pessoas sob certas circunstacircncias tambeacutem objetos podem estar de posse de algo como uma alma (2004 p 215)
Como se pode ver o conceito de animismo sofreu modificaccedilotildees desde Tyler ateacute os
dias atuais
12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo
Estudiosos tecircm discutido ateacute que ponto o animismo eacute de fato uma religiatildeo uma vez
que natildeo possui elementos fundamentais caracteriacutesticos das religiotildees mundiais tais como
escritos sagrados templos missionaacuterios ou teologia uniforme Para Kaser por exemplo ldquoeacute
melhor (consideraacute-lo) uma cosmovisatildeo com muitos aspectosrdquo (2004 p 216) Jaacute para outros
autores esse tipo de pensamento manifesta certo etnocentrismo e preconceito pois vecirc a
religiatildeo apenas como o aspecto da vida que lida com o ldquoespiritualrdquo enquanto que a ciecircncia
lidaria com os aspectos naturais Essa postura que elimina fronteiras riacutegidas entre ciecircncia e
religiatildeo estaacute em consonacircncia com o construto poacutes-moderno de ciecircncia locus que considera as
conclusotildees de um xamatilde sobre a vida e o cosmo tatildeo vaacutelidas quanto as de um acadecircmico com
carreira universitaacuteria (ver por exemplo Ruy Ceacutesar do Espiacuterito Santo O Renascimento do
Sagrado na Educaccedilatildeo 2a Ed Coleccedilatildeo Praacutexis Campinas Papirus 2000)
Assim Hiebert Shaw amp Tieacutenou afirmam que
Antropoacutelogos agora definem lsquoreligiatildeorsquo como crenccedilas a respeito da natureza uacuteltima das coisas tais como sentimentos profundos e motivaccedilotildees valores fundamentais e lealdade Essa definiccedilatildeo fornece a maneira como as pessoas percebem a realidade Nesse sentido o ateiacutesmo budista Theravada Marxismo e cientificismo tambeacutem satildeo religiotildees (1999 p 35)
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Conclui-se portanto que o animismo eacute uma religiatildeo pois reflete uma forma especiacutefica
de interpretaccedilatildeo da realidade
13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista
Embora o animismo apresente facetas diversas nas diferentes regiotildees do mundo haacute
certas caracteriacutesticas que satildeo comuns a todos A seguir apresentamos as principais
131 Holismo
Segundo Steyne (1992 p 58) holismo eacute um termo filosoacutefico cuja visatildeo eacute de que a
vida eacute maior do que a soma de suas partes Ainda segundo Steyne ldquoo mundo interage consigo
mesmo O ceacuteu os espiacuteritos a terra o mundo fiacutesico o vivente e o falecido todos agem
interagem e reagem em consonacircnciardquo (1992 p 59) Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo proacutepria entre o
indiviacuteduo e o mundo Por essa razatildeo o animista natildeo faz separaccedilatildeo entre o sagrado e o
profano ou entre o secular e o religioso Conclui-se que o animismo eacute em uacuteltima instacircncia
uma forma de panteiacutesmo
132 Espiritualismo
O conceito de espiritualismo estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo de holismo e depende
dele Segundo a noccedilatildeo de espiritualismo a espiritualidade eacute a essecircncia fundamental da vida e
a vida estaacute repleta de possibilidades sobrenaturais Tudo na vida pode ser influenciado pelo
mundo dos espiacuteritos Tudo que ocorre no mundo fiacutesico tem um correspondente no mundo
espiritual e da mesma forma tudo que ocorre no mundo espiritual tem consequumlecircncias no
mundo fiacutesico (Van Rheenen 1991) Para os indiacutegenas brasileiros por exemplo a causa das
doenccedilas natildeo adveacutem simplesmente de bacteacuterias viacuterus etc mas da accedilatildeo direta dos espiacuteritos
sobre o indiviacuteduo Isso quase sempre resulta em acusaccedilotildees pela necessidade de se descobrir
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o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
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pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
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135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
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Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
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dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
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Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
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1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
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si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
27
(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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314 Conceito de resgate - Cristus Victor 45 32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista 46
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio 46 322 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista 48
33 O que a Biacuteblia fala sobre o senhorio 49 331 Ocorrecircncia do termo lsquosenhorrsquo na Biacuteblia 49
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno 50 35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo 51 36 Teologia do Reino versus teologia de conversatildeo 53 37 A luta contra o sincretismo 54 38 A relevacircncia do tema para hoje 55
CONCLUSAtildeO 56 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59
ABREVIACcedilOtildeES
ARA- Biacuteblia traduccedilatildeo de Joatildeo Ferreira de Almeida Atualizada
NTLH- Nova Traduccedilatildeo na Linguagem de Hoje
AT- Antigo Testamento
NT- Novo Testamento
APMT- Agecircncia Presbiteriana de Missotildees Transculturais ALEM- Associaccedilatildeo Linguumliacutestica Evangeacutelica Missionaacuteria
INTRODUCcedilAtildeO
Estima-se que 40 por cento da populaccedilatildeo mundial tomam o animismo como base de
suas crenccedilas Calcula-se tambeacutem que entre os 88 por cento daqueles classificados como povos
natildeo alcanccedilados pelo evangelho 135 milhotildees satildeo tribos animistas Aleacutem disso 19 bilhotildees de
pessoas no mundo estatildeo de alguma forma inseridos em uma religiatildeo mundial que apresenta
formas sincreacuteticas com o animismo Pode-se concluir portanto que o mundo natildeo alcanccedilado pelo
Evangelho como um todo eacute animista
Esse grande nuacutemero de grupos animistas natildeo alcanccedilados indica a necessidade urgente
de missionaacuterios aprenderem como comunicar a Palavra de Deus de forma eficaz em contextos
animistas
Quando se verifica a literatura sobre o tema comunicaccedilatildeo do Evangelho em contexto
animista poreacutem o que se constata eacute a ausecircncia quase absoluta de qualquer material que venha a
contribuir para a formaccedilatildeo do missionaacuterio transcultural brasileiro
O objetivo desta pesquisa eacute dar um primeiro passo no que diz respeito agrave produccedilatildeo de
material que venha ajudar missionaacuterios brasileiros em seu preparo transcultural especialmente na
compreensatildeo de conceitos e praacuteticas animistas e na aplicaccedilatildeo contextualizada do Evangelho agrave
realidade animista
Aleacutem da falta de material especiacutefico sobre a comunicaccedilatildeo do Evangelho em contextos
animistas haacute ainda um outro elemento complicador Os missionaacuterios brasileiros satildeo treinados nos
moldes do mundo ocidental sendo portanto influenciados pela teologia ocidental teologia essa
que parece natildeo levar muito em conta a questatildeo do mundo dos espiacuteritos Natildeo eacute raro encontrar
missionaacuterios brasileiros que vatildeo trabalhar com um povo animista mas que nem mesmo acreditam
na existecircncia de espiacuteritos Esses missionaacuterios satildeo frutos de uma teologia europeacuteia-americanizada
11
cuja tendecircncia ao materialismo no miacutenimo menospreza a realidade do mundo espiritual Ao
comunicar o Evangelho o missionaacuterio tenderaacute a reproduzir o modelo recebido e correraacute o risco
de natildeo comunicar o Evangelho de uma forma que cause impacto na mente e no coraccedilatildeo do povo
a ser alcanccedilado
A metodologia utilizada nesta pesquisa foi primariamente uma pesquisa bibliograacutefica
Quase todas as obras utilizadas foram escritas na liacutengua inglesa pois como jaacute mencionado quase
natildeo se encontra material sobre o tema em liacutengua portuguesa Aleacutem da pesquisa bibliograacutefica
incluem-se tambeacutem informaccedilotildees dadas por missionaacuterios que jaacute atuam com povos animistas cujos
testemunhos datildeo suporte aos conceitos apresentados A pesquisa foi dividida em trecircs capiacutetulos
No primeiro capiacutetulo apresenta-se o animismo sob o ponto de vista fenomenoloacutegico
sem qualquer julgamento teoloacutegico quanto agrave sua natureza e o seus fins Descrevem-se os
principais conceitos e as praacuteticas mais comuns da religiatildeo animista
No segundo capiacutetulo busca-se uma visatildeo panoracircmica do tema ldquoespiacuteritos na Biacutebliardquo O
principal objetivo eacute demonstrar que a Biacuteblia trata a existecircncia dos espiacuteritos de forma realista ou
seja os autores biacuteblicos natildeo tentam provar a existecircncia de seres espirituais partem do
pressuposto de que eles satildeo reais
No terceiro capiacutetulo desenvolve-se o tema da salvaccedilatildeo uma breve alusatildeo ao seu
desenvolvimento teoloacutegico na histoacuteria da igreja e por fim a defesa da tese de que o tema da
salvaccedilatildeo como ldquotransferecircncia de domiacuteniordquo eacute o mais apropriado para introduzir o Evangelho no
contexto animista Coloca-se tambeacutem a necessidade de apresentar-se o evangelho de forma
contextualizada Entende-se a contextualizaccedilatildeo natildeo como uma forma de acomodaccedilatildeo do
Evangelho aos moldes culturais animistas mas como uma estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que parte
12
do conhecido para o desconhecido do antigo para o novo O capiacutetulo finaliza-se com uma
apresentaccedilatildeo do conceito de ldquoteologia do Reinordquo e sua visatildeo integral da obra de salvaccedilatildeo
CAPIacuteTULO 1
ANIMISMO CONCEITOS E PRAacuteTICAS
Neste capiacutetulo abordaremos o tema do animismo de forma geral e abrangente
iniciando com uma anaacutelise histoacuterica do fenocircmeno e de sua terminologia ateacute os seus conceitos
fundamentais e suas praacuteticas mais comuns Fazemos aqui uma anaacutelise antropoloacutegica do
fenocircmeno religioso animista sem atribuirmos qualquer juiacutezo de valor ao termo animismo e
aos seus cognatos Vale-se do pressuposto de que eacute a partir do conhecimento fenomenoloacutegico
e de uma visatildeo criacutetica que poderemos posteriormente avaliar suas crenccedilas e praacuteticas agrave luz
das Escrituras Sagradas
11 Uso histoacuterico do termo
O termo ldquoanimismordquo eacute derivado da palavra anima em Latim e quer dizer ldquofocirclegordquo ou
ldquofocirclego de vidardquo Ele traz consigo a ideacuteia de alma ou espiacuterito (Steyne 1992 p 36) A palavra
foi usada pela primeira vez pelo antropoacutelogo britacircnico Edward B Tylor em seus escritos
mais antigos Em 1873 em sua obra Religion in Primitive Culture ele definiu animismo
como ldquoa doutrina de Seres Espirituaisrdquo (1970 p 9) e afirmou que ldquoAnimismo em seu
desenvolvimento pleno incluiacutea a crenccedila em almas e em seu estado futuro em deidades
controladoras e espiacuteritos subordinados (hellip) resultando em algum tipo de adoraccedilatildeordquo (1970 p
11) Esses espiacuteritos incluem tanto os espiacuteritos dos ancestrais vivos que satildeo ldquocapazes de
existecircncia continuadardquo apoacutes a morte como ldquooutros espiacuteritos em uma escala ascendente ateacute ao
ranking de deidades poderosasrdquo (Tylor 1970 p 10) Os escritos de Tylor abriram precedente
para definir animismo como ldquoa crenccedila em um poder sobrenatural personalizadordquo (Smalley
1971 p 24) Tylor partia do pressuposto evolucionistapositivista e acreditava que o
animismo era uma forma primitiva de religiatildeo forma essa que apresentava um modo de
14
pensamento preacute-loacutegico desenvolvido posterior e gradativamente para o politeiacutesmo ateacute chegar
agraves religiotildees monoteiacutestas Apesar da rejeiccedilatildeo atual ao seu evolucionismo cultural e de
considerar-se incompleta sua ideacuteia sobre animismo natildeo se pode ignorar sua contribuiccedilatildeo para
o estudo desse assunto
Posteriormente o missionaacuterio R H Codrington descobriu na religiatildeo tradicional
Melaneacutesia em 1891 o conceito de ldquoforccedila espiritual impessoalrdquo Essa forccedila espiritual
denominada mana foi descrita em seu livro The Melanesians (Apud Steyne 1992)) Segundo
Steyne (1992) essa forccedila impessoal pode ser associada agrave energia uma essecircncia com a qual
todas as coisas satildeo carregadas e que pode passar de um elemento para outro Na religiosidade
popular brasileira por exemplo usam-se muito os termos ldquoenergia positivardquo e ldquoenergia
negativardquo para indicar a presenccedila ou natildeo de algum elemento imaterial existente que interfere
nos objetos e nas pessoas e que muitas vezes influenciam e ou determinam o curso de suas
vidas
Com base nos conceitos apresentados acima antropoacutelogos tecircm feito uma distinccedilatildeo
entre animismo crenccedila em espiacuteritos personificados e animatismo crenccedila em uma forccedila
impessoal Para Van Rheenen (1991) no entanto essa distinccedilatildeo reflete apenas uma visatildeo
exterior e natildeo fenomenoloacutegica aos proacuteprios grupos animistas pois para eles natildeo haacute distinccedilatildeo
clara entre forccedilas impessoais e seres espirituais Ele cita como exemplo o conceito de azar
na religiatildeo islacircmica Segundo o islamismo popular natildeo eacute possiacutevel saber se a origem do azar eacute
atribuiacuteda a jiin (ser espiritual personificado) ou ao mau olhado (forccedila impessoal) Assim a
definiccedilatildeo de animismo para esse autor eacute
A crenccedila que seres espirituais personificados e forccedilas espirituais impessoais tecircm poder sobre as atividades humanas e consequentemente que os seres humanos precisam descobrir quais os seres e forccedilas os estatildeo influenciando a fim de que determinem de que forma iratildeo agir e com frequumlecircncia como iratildeo manipular o poder deles (Van Rheenen 1991 pp 19-20)
15
Lothar Kaser por seu turno acrescenta mais alguns elementos em sua definiccedilatildeo de
animismo a saber a forma como esses seres sobrenaturais se manifestam
Entende-se por animismo em sua forma mais geneacuterica a crenccedila na existecircncia e atuaccedilatildeo de seres espirituais que se manifestam na forma de apariccedilotildees semelhantes a homens ou animais dispondo de conhecimentos poderes e possibilidades que o proacuteprio ser homem natildeo tem Em culturas tradicionais (sem escrita) fazem parte desses seres semelhantes a figuras espirituais natildeo somente os espiacuteritos propriamente ditos mas ainda alma de pessoas sob certas circunstacircncias tambeacutem objetos podem estar de posse de algo como uma alma (2004 p 215)
Como se pode ver o conceito de animismo sofreu modificaccedilotildees desde Tyler ateacute os
dias atuais
12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo
Estudiosos tecircm discutido ateacute que ponto o animismo eacute de fato uma religiatildeo uma vez
que natildeo possui elementos fundamentais caracteriacutesticos das religiotildees mundiais tais como
escritos sagrados templos missionaacuterios ou teologia uniforme Para Kaser por exemplo ldquoeacute
melhor (consideraacute-lo) uma cosmovisatildeo com muitos aspectosrdquo (2004 p 216) Jaacute para outros
autores esse tipo de pensamento manifesta certo etnocentrismo e preconceito pois vecirc a
religiatildeo apenas como o aspecto da vida que lida com o ldquoespiritualrdquo enquanto que a ciecircncia
lidaria com os aspectos naturais Essa postura que elimina fronteiras riacutegidas entre ciecircncia e
religiatildeo estaacute em consonacircncia com o construto poacutes-moderno de ciecircncia locus que considera as
conclusotildees de um xamatilde sobre a vida e o cosmo tatildeo vaacutelidas quanto as de um acadecircmico com
carreira universitaacuteria (ver por exemplo Ruy Ceacutesar do Espiacuterito Santo O Renascimento do
Sagrado na Educaccedilatildeo 2a Ed Coleccedilatildeo Praacutexis Campinas Papirus 2000)
Assim Hiebert Shaw amp Tieacutenou afirmam que
Antropoacutelogos agora definem lsquoreligiatildeorsquo como crenccedilas a respeito da natureza uacuteltima das coisas tais como sentimentos profundos e motivaccedilotildees valores fundamentais e lealdade Essa definiccedilatildeo fornece a maneira como as pessoas percebem a realidade Nesse sentido o ateiacutesmo budista Theravada Marxismo e cientificismo tambeacutem satildeo religiotildees (1999 p 35)
16
Conclui-se portanto que o animismo eacute uma religiatildeo pois reflete uma forma especiacutefica
de interpretaccedilatildeo da realidade
13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista
Embora o animismo apresente facetas diversas nas diferentes regiotildees do mundo haacute
certas caracteriacutesticas que satildeo comuns a todos A seguir apresentamos as principais
131 Holismo
Segundo Steyne (1992 p 58) holismo eacute um termo filosoacutefico cuja visatildeo eacute de que a
vida eacute maior do que a soma de suas partes Ainda segundo Steyne ldquoo mundo interage consigo
mesmo O ceacuteu os espiacuteritos a terra o mundo fiacutesico o vivente e o falecido todos agem
interagem e reagem em consonacircnciardquo (1992 p 59) Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo proacutepria entre o
indiviacuteduo e o mundo Por essa razatildeo o animista natildeo faz separaccedilatildeo entre o sagrado e o
profano ou entre o secular e o religioso Conclui-se que o animismo eacute em uacuteltima instacircncia
uma forma de panteiacutesmo
132 Espiritualismo
O conceito de espiritualismo estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo de holismo e depende
dele Segundo a noccedilatildeo de espiritualismo a espiritualidade eacute a essecircncia fundamental da vida e
a vida estaacute repleta de possibilidades sobrenaturais Tudo na vida pode ser influenciado pelo
mundo dos espiacuteritos Tudo que ocorre no mundo fiacutesico tem um correspondente no mundo
espiritual e da mesma forma tudo que ocorre no mundo espiritual tem consequumlecircncias no
mundo fiacutesico (Van Rheenen 1991) Para os indiacutegenas brasileiros por exemplo a causa das
doenccedilas natildeo adveacutem simplesmente de bacteacuterias viacuterus etc mas da accedilatildeo direta dos espiacuteritos
sobre o indiviacuteduo Isso quase sempre resulta em acusaccedilotildees pela necessidade de se descobrir
17
o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
18
pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
19
135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
20
Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
21
dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
22
Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
24
1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
26
si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
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(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
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Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
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cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
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22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
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quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
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Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
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estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
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sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
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No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
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malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
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a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
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36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
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Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
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crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
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Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
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do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
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ABREVIACcedilOtildeES
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NTLH- Nova Traduccedilatildeo na Linguagem de Hoje
AT- Antigo Testamento
NT- Novo Testamento
APMT- Agecircncia Presbiteriana de Missotildees Transculturais ALEM- Associaccedilatildeo Linguumliacutestica Evangeacutelica Missionaacuteria
INTRODUCcedilAtildeO
Estima-se que 40 por cento da populaccedilatildeo mundial tomam o animismo como base de
suas crenccedilas Calcula-se tambeacutem que entre os 88 por cento daqueles classificados como povos
natildeo alcanccedilados pelo evangelho 135 milhotildees satildeo tribos animistas Aleacutem disso 19 bilhotildees de
pessoas no mundo estatildeo de alguma forma inseridos em uma religiatildeo mundial que apresenta
formas sincreacuteticas com o animismo Pode-se concluir portanto que o mundo natildeo alcanccedilado pelo
Evangelho como um todo eacute animista
Esse grande nuacutemero de grupos animistas natildeo alcanccedilados indica a necessidade urgente
de missionaacuterios aprenderem como comunicar a Palavra de Deus de forma eficaz em contextos
animistas
Quando se verifica a literatura sobre o tema comunicaccedilatildeo do Evangelho em contexto
animista poreacutem o que se constata eacute a ausecircncia quase absoluta de qualquer material que venha a
contribuir para a formaccedilatildeo do missionaacuterio transcultural brasileiro
O objetivo desta pesquisa eacute dar um primeiro passo no que diz respeito agrave produccedilatildeo de
material que venha ajudar missionaacuterios brasileiros em seu preparo transcultural especialmente na
compreensatildeo de conceitos e praacuteticas animistas e na aplicaccedilatildeo contextualizada do Evangelho agrave
realidade animista
Aleacutem da falta de material especiacutefico sobre a comunicaccedilatildeo do Evangelho em contextos
animistas haacute ainda um outro elemento complicador Os missionaacuterios brasileiros satildeo treinados nos
moldes do mundo ocidental sendo portanto influenciados pela teologia ocidental teologia essa
que parece natildeo levar muito em conta a questatildeo do mundo dos espiacuteritos Natildeo eacute raro encontrar
missionaacuterios brasileiros que vatildeo trabalhar com um povo animista mas que nem mesmo acreditam
na existecircncia de espiacuteritos Esses missionaacuterios satildeo frutos de uma teologia europeacuteia-americanizada
11
cuja tendecircncia ao materialismo no miacutenimo menospreza a realidade do mundo espiritual Ao
comunicar o Evangelho o missionaacuterio tenderaacute a reproduzir o modelo recebido e correraacute o risco
de natildeo comunicar o Evangelho de uma forma que cause impacto na mente e no coraccedilatildeo do povo
a ser alcanccedilado
A metodologia utilizada nesta pesquisa foi primariamente uma pesquisa bibliograacutefica
Quase todas as obras utilizadas foram escritas na liacutengua inglesa pois como jaacute mencionado quase
natildeo se encontra material sobre o tema em liacutengua portuguesa Aleacutem da pesquisa bibliograacutefica
incluem-se tambeacutem informaccedilotildees dadas por missionaacuterios que jaacute atuam com povos animistas cujos
testemunhos datildeo suporte aos conceitos apresentados A pesquisa foi dividida em trecircs capiacutetulos
No primeiro capiacutetulo apresenta-se o animismo sob o ponto de vista fenomenoloacutegico
sem qualquer julgamento teoloacutegico quanto agrave sua natureza e o seus fins Descrevem-se os
principais conceitos e as praacuteticas mais comuns da religiatildeo animista
No segundo capiacutetulo busca-se uma visatildeo panoracircmica do tema ldquoespiacuteritos na Biacutebliardquo O
principal objetivo eacute demonstrar que a Biacuteblia trata a existecircncia dos espiacuteritos de forma realista ou
seja os autores biacuteblicos natildeo tentam provar a existecircncia de seres espirituais partem do
pressuposto de que eles satildeo reais
No terceiro capiacutetulo desenvolve-se o tema da salvaccedilatildeo uma breve alusatildeo ao seu
desenvolvimento teoloacutegico na histoacuteria da igreja e por fim a defesa da tese de que o tema da
salvaccedilatildeo como ldquotransferecircncia de domiacuteniordquo eacute o mais apropriado para introduzir o Evangelho no
contexto animista Coloca-se tambeacutem a necessidade de apresentar-se o evangelho de forma
contextualizada Entende-se a contextualizaccedilatildeo natildeo como uma forma de acomodaccedilatildeo do
Evangelho aos moldes culturais animistas mas como uma estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que parte
12
do conhecido para o desconhecido do antigo para o novo O capiacutetulo finaliza-se com uma
apresentaccedilatildeo do conceito de ldquoteologia do Reinordquo e sua visatildeo integral da obra de salvaccedilatildeo
CAPIacuteTULO 1
ANIMISMO CONCEITOS E PRAacuteTICAS
Neste capiacutetulo abordaremos o tema do animismo de forma geral e abrangente
iniciando com uma anaacutelise histoacuterica do fenocircmeno e de sua terminologia ateacute os seus conceitos
fundamentais e suas praacuteticas mais comuns Fazemos aqui uma anaacutelise antropoloacutegica do
fenocircmeno religioso animista sem atribuirmos qualquer juiacutezo de valor ao termo animismo e
aos seus cognatos Vale-se do pressuposto de que eacute a partir do conhecimento fenomenoloacutegico
e de uma visatildeo criacutetica que poderemos posteriormente avaliar suas crenccedilas e praacuteticas agrave luz
das Escrituras Sagradas
11 Uso histoacuterico do termo
O termo ldquoanimismordquo eacute derivado da palavra anima em Latim e quer dizer ldquofocirclegordquo ou
ldquofocirclego de vidardquo Ele traz consigo a ideacuteia de alma ou espiacuterito (Steyne 1992 p 36) A palavra
foi usada pela primeira vez pelo antropoacutelogo britacircnico Edward B Tylor em seus escritos
mais antigos Em 1873 em sua obra Religion in Primitive Culture ele definiu animismo
como ldquoa doutrina de Seres Espirituaisrdquo (1970 p 9) e afirmou que ldquoAnimismo em seu
desenvolvimento pleno incluiacutea a crenccedila em almas e em seu estado futuro em deidades
controladoras e espiacuteritos subordinados (hellip) resultando em algum tipo de adoraccedilatildeordquo (1970 p
11) Esses espiacuteritos incluem tanto os espiacuteritos dos ancestrais vivos que satildeo ldquocapazes de
existecircncia continuadardquo apoacutes a morte como ldquooutros espiacuteritos em uma escala ascendente ateacute ao
ranking de deidades poderosasrdquo (Tylor 1970 p 10) Os escritos de Tylor abriram precedente
para definir animismo como ldquoa crenccedila em um poder sobrenatural personalizadordquo (Smalley
1971 p 24) Tylor partia do pressuposto evolucionistapositivista e acreditava que o
animismo era uma forma primitiva de religiatildeo forma essa que apresentava um modo de
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pensamento preacute-loacutegico desenvolvido posterior e gradativamente para o politeiacutesmo ateacute chegar
agraves religiotildees monoteiacutestas Apesar da rejeiccedilatildeo atual ao seu evolucionismo cultural e de
considerar-se incompleta sua ideacuteia sobre animismo natildeo se pode ignorar sua contribuiccedilatildeo para
o estudo desse assunto
Posteriormente o missionaacuterio R H Codrington descobriu na religiatildeo tradicional
Melaneacutesia em 1891 o conceito de ldquoforccedila espiritual impessoalrdquo Essa forccedila espiritual
denominada mana foi descrita em seu livro The Melanesians (Apud Steyne 1992)) Segundo
Steyne (1992) essa forccedila impessoal pode ser associada agrave energia uma essecircncia com a qual
todas as coisas satildeo carregadas e que pode passar de um elemento para outro Na religiosidade
popular brasileira por exemplo usam-se muito os termos ldquoenergia positivardquo e ldquoenergia
negativardquo para indicar a presenccedila ou natildeo de algum elemento imaterial existente que interfere
nos objetos e nas pessoas e que muitas vezes influenciam e ou determinam o curso de suas
vidas
Com base nos conceitos apresentados acima antropoacutelogos tecircm feito uma distinccedilatildeo
entre animismo crenccedila em espiacuteritos personificados e animatismo crenccedila em uma forccedila
impessoal Para Van Rheenen (1991) no entanto essa distinccedilatildeo reflete apenas uma visatildeo
exterior e natildeo fenomenoloacutegica aos proacuteprios grupos animistas pois para eles natildeo haacute distinccedilatildeo
clara entre forccedilas impessoais e seres espirituais Ele cita como exemplo o conceito de azar
na religiatildeo islacircmica Segundo o islamismo popular natildeo eacute possiacutevel saber se a origem do azar eacute
atribuiacuteda a jiin (ser espiritual personificado) ou ao mau olhado (forccedila impessoal) Assim a
definiccedilatildeo de animismo para esse autor eacute
A crenccedila que seres espirituais personificados e forccedilas espirituais impessoais tecircm poder sobre as atividades humanas e consequentemente que os seres humanos precisam descobrir quais os seres e forccedilas os estatildeo influenciando a fim de que determinem de que forma iratildeo agir e com frequumlecircncia como iratildeo manipular o poder deles (Van Rheenen 1991 pp 19-20)
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Lothar Kaser por seu turno acrescenta mais alguns elementos em sua definiccedilatildeo de
animismo a saber a forma como esses seres sobrenaturais se manifestam
Entende-se por animismo em sua forma mais geneacuterica a crenccedila na existecircncia e atuaccedilatildeo de seres espirituais que se manifestam na forma de apariccedilotildees semelhantes a homens ou animais dispondo de conhecimentos poderes e possibilidades que o proacuteprio ser homem natildeo tem Em culturas tradicionais (sem escrita) fazem parte desses seres semelhantes a figuras espirituais natildeo somente os espiacuteritos propriamente ditos mas ainda alma de pessoas sob certas circunstacircncias tambeacutem objetos podem estar de posse de algo como uma alma (2004 p 215)
Como se pode ver o conceito de animismo sofreu modificaccedilotildees desde Tyler ateacute os
dias atuais
12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo
Estudiosos tecircm discutido ateacute que ponto o animismo eacute de fato uma religiatildeo uma vez
que natildeo possui elementos fundamentais caracteriacutesticos das religiotildees mundiais tais como
escritos sagrados templos missionaacuterios ou teologia uniforme Para Kaser por exemplo ldquoeacute
melhor (consideraacute-lo) uma cosmovisatildeo com muitos aspectosrdquo (2004 p 216) Jaacute para outros
autores esse tipo de pensamento manifesta certo etnocentrismo e preconceito pois vecirc a
religiatildeo apenas como o aspecto da vida que lida com o ldquoespiritualrdquo enquanto que a ciecircncia
lidaria com os aspectos naturais Essa postura que elimina fronteiras riacutegidas entre ciecircncia e
religiatildeo estaacute em consonacircncia com o construto poacutes-moderno de ciecircncia locus que considera as
conclusotildees de um xamatilde sobre a vida e o cosmo tatildeo vaacutelidas quanto as de um acadecircmico com
carreira universitaacuteria (ver por exemplo Ruy Ceacutesar do Espiacuterito Santo O Renascimento do
Sagrado na Educaccedilatildeo 2a Ed Coleccedilatildeo Praacutexis Campinas Papirus 2000)
Assim Hiebert Shaw amp Tieacutenou afirmam que
Antropoacutelogos agora definem lsquoreligiatildeorsquo como crenccedilas a respeito da natureza uacuteltima das coisas tais como sentimentos profundos e motivaccedilotildees valores fundamentais e lealdade Essa definiccedilatildeo fornece a maneira como as pessoas percebem a realidade Nesse sentido o ateiacutesmo budista Theravada Marxismo e cientificismo tambeacutem satildeo religiotildees (1999 p 35)
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Conclui-se portanto que o animismo eacute uma religiatildeo pois reflete uma forma especiacutefica
de interpretaccedilatildeo da realidade
13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista
Embora o animismo apresente facetas diversas nas diferentes regiotildees do mundo haacute
certas caracteriacutesticas que satildeo comuns a todos A seguir apresentamos as principais
131 Holismo
Segundo Steyne (1992 p 58) holismo eacute um termo filosoacutefico cuja visatildeo eacute de que a
vida eacute maior do que a soma de suas partes Ainda segundo Steyne ldquoo mundo interage consigo
mesmo O ceacuteu os espiacuteritos a terra o mundo fiacutesico o vivente e o falecido todos agem
interagem e reagem em consonacircnciardquo (1992 p 59) Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo proacutepria entre o
indiviacuteduo e o mundo Por essa razatildeo o animista natildeo faz separaccedilatildeo entre o sagrado e o
profano ou entre o secular e o religioso Conclui-se que o animismo eacute em uacuteltima instacircncia
uma forma de panteiacutesmo
132 Espiritualismo
O conceito de espiritualismo estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo de holismo e depende
dele Segundo a noccedilatildeo de espiritualismo a espiritualidade eacute a essecircncia fundamental da vida e
a vida estaacute repleta de possibilidades sobrenaturais Tudo na vida pode ser influenciado pelo
mundo dos espiacuteritos Tudo que ocorre no mundo fiacutesico tem um correspondente no mundo
espiritual e da mesma forma tudo que ocorre no mundo espiritual tem consequumlecircncias no
mundo fiacutesico (Van Rheenen 1991) Para os indiacutegenas brasileiros por exemplo a causa das
doenccedilas natildeo adveacutem simplesmente de bacteacuterias viacuterus etc mas da accedilatildeo direta dos espiacuteritos
sobre o indiviacuteduo Isso quase sempre resulta em acusaccedilotildees pela necessidade de se descobrir
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o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
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pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
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135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
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Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
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dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
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Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
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1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
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si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
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(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
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teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
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De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
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A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
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314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
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Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
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de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
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3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
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sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
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No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
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malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
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a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
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36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
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Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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INTRODUCcedilAtildeO
Estima-se que 40 por cento da populaccedilatildeo mundial tomam o animismo como base de
suas crenccedilas Calcula-se tambeacutem que entre os 88 por cento daqueles classificados como povos
natildeo alcanccedilados pelo evangelho 135 milhotildees satildeo tribos animistas Aleacutem disso 19 bilhotildees de
pessoas no mundo estatildeo de alguma forma inseridos em uma religiatildeo mundial que apresenta
formas sincreacuteticas com o animismo Pode-se concluir portanto que o mundo natildeo alcanccedilado pelo
Evangelho como um todo eacute animista
Esse grande nuacutemero de grupos animistas natildeo alcanccedilados indica a necessidade urgente
de missionaacuterios aprenderem como comunicar a Palavra de Deus de forma eficaz em contextos
animistas
Quando se verifica a literatura sobre o tema comunicaccedilatildeo do Evangelho em contexto
animista poreacutem o que se constata eacute a ausecircncia quase absoluta de qualquer material que venha a
contribuir para a formaccedilatildeo do missionaacuterio transcultural brasileiro
O objetivo desta pesquisa eacute dar um primeiro passo no que diz respeito agrave produccedilatildeo de
material que venha ajudar missionaacuterios brasileiros em seu preparo transcultural especialmente na
compreensatildeo de conceitos e praacuteticas animistas e na aplicaccedilatildeo contextualizada do Evangelho agrave
realidade animista
Aleacutem da falta de material especiacutefico sobre a comunicaccedilatildeo do Evangelho em contextos
animistas haacute ainda um outro elemento complicador Os missionaacuterios brasileiros satildeo treinados nos
moldes do mundo ocidental sendo portanto influenciados pela teologia ocidental teologia essa
que parece natildeo levar muito em conta a questatildeo do mundo dos espiacuteritos Natildeo eacute raro encontrar
missionaacuterios brasileiros que vatildeo trabalhar com um povo animista mas que nem mesmo acreditam
na existecircncia de espiacuteritos Esses missionaacuterios satildeo frutos de uma teologia europeacuteia-americanizada
11
cuja tendecircncia ao materialismo no miacutenimo menospreza a realidade do mundo espiritual Ao
comunicar o Evangelho o missionaacuterio tenderaacute a reproduzir o modelo recebido e correraacute o risco
de natildeo comunicar o Evangelho de uma forma que cause impacto na mente e no coraccedilatildeo do povo
a ser alcanccedilado
A metodologia utilizada nesta pesquisa foi primariamente uma pesquisa bibliograacutefica
Quase todas as obras utilizadas foram escritas na liacutengua inglesa pois como jaacute mencionado quase
natildeo se encontra material sobre o tema em liacutengua portuguesa Aleacutem da pesquisa bibliograacutefica
incluem-se tambeacutem informaccedilotildees dadas por missionaacuterios que jaacute atuam com povos animistas cujos
testemunhos datildeo suporte aos conceitos apresentados A pesquisa foi dividida em trecircs capiacutetulos
No primeiro capiacutetulo apresenta-se o animismo sob o ponto de vista fenomenoloacutegico
sem qualquer julgamento teoloacutegico quanto agrave sua natureza e o seus fins Descrevem-se os
principais conceitos e as praacuteticas mais comuns da religiatildeo animista
No segundo capiacutetulo busca-se uma visatildeo panoracircmica do tema ldquoespiacuteritos na Biacutebliardquo O
principal objetivo eacute demonstrar que a Biacuteblia trata a existecircncia dos espiacuteritos de forma realista ou
seja os autores biacuteblicos natildeo tentam provar a existecircncia de seres espirituais partem do
pressuposto de que eles satildeo reais
No terceiro capiacutetulo desenvolve-se o tema da salvaccedilatildeo uma breve alusatildeo ao seu
desenvolvimento teoloacutegico na histoacuteria da igreja e por fim a defesa da tese de que o tema da
salvaccedilatildeo como ldquotransferecircncia de domiacuteniordquo eacute o mais apropriado para introduzir o Evangelho no
contexto animista Coloca-se tambeacutem a necessidade de apresentar-se o evangelho de forma
contextualizada Entende-se a contextualizaccedilatildeo natildeo como uma forma de acomodaccedilatildeo do
Evangelho aos moldes culturais animistas mas como uma estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que parte
12
do conhecido para o desconhecido do antigo para o novo O capiacutetulo finaliza-se com uma
apresentaccedilatildeo do conceito de ldquoteologia do Reinordquo e sua visatildeo integral da obra de salvaccedilatildeo
CAPIacuteTULO 1
ANIMISMO CONCEITOS E PRAacuteTICAS
Neste capiacutetulo abordaremos o tema do animismo de forma geral e abrangente
iniciando com uma anaacutelise histoacuterica do fenocircmeno e de sua terminologia ateacute os seus conceitos
fundamentais e suas praacuteticas mais comuns Fazemos aqui uma anaacutelise antropoloacutegica do
fenocircmeno religioso animista sem atribuirmos qualquer juiacutezo de valor ao termo animismo e
aos seus cognatos Vale-se do pressuposto de que eacute a partir do conhecimento fenomenoloacutegico
e de uma visatildeo criacutetica que poderemos posteriormente avaliar suas crenccedilas e praacuteticas agrave luz
das Escrituras Sagradas
11 Uso histoacuterico do termo
O termo ldquoanimismordquo eacute derivado da palavra anima em Latim e quer dizer ldquofocirclegordquo ou
ldquofocirclego de vidardquo Ele traz consigo a ideacuteia de alma ou espiacuterito (Steyne 1992 p 36) A palavra
foi usada pela primeira vez pelo antropoacutelogo britacircnico Edward B Tylor em seus escritos
mais antigos Em 1873 em sua obra Religion in Primitive Culture ele definiu animismo
como ldquoa doutrina de Seres Espirituaisrdquo (1970 p 9) e afirmou que ldquoAnimismo em seu
desenvolvimento pleno incluiacutea a crenccedila em almas e em seu estado futuro em deidades
controladoras e espiacuteritos subordinados (hellip) resultando em algum tipo de adoraccedilatildeordquo (1970 p
11) Esses espiacuteritos incluem tanto os espiacuteritos dos ancestrais vivos que satildeo ldquocapazes de
existecircncia continuadardquo apoacutes a morte como ldquooutros espiacuteritos em uma escala ascendente ateacute ao
ranking de deidades poderosasrdquo (Tylor 1970 p 10) Os escritos de Tylor abriram precedente
para definir animismo como ldquoa crenccedila em um poder sobrenatural personalizadordquo (Smalley
1971 p 24) Tylor partia do pressuposto evolucionistapositivista e acreditava que o
animismo era uma forma primitiva de religiatildeo forma essa que apresentava um modo de
14
pensamento preacute-loacutegico desenvolvido posterior e gradativamente para o politeiacutesmo ateacute chegar
agraves religiotildees monoteiacutestas Apesar da rejeiccedilatildeo atual ao seu evolucionismo cultural e de
considerar-se incompleta sua ideacuteia sobre animismo natildeo se pode ignorar sua contribuiccedilatildeo para
o estudo desse assunto
Posteriormente o missionaacuterio R H Codrington descobriu na religiatildeo tradicional
Melaneacutesia em 1891 o conceito de ldquoforccedila espiritual impessoalrdquo Essa forccedila espiritual
denominada mana foi descrita em seu livro The Melanesians (Apud Steyne 1992)) Segundo
Steyne (1992) essa forccedila impessoal pode ser associada agrave energia uma essecircncia com a qual
todas as coisas satildeo carregadas e que pode passar de um elemento para outro Na religiosidade
popular brasileira por exemplo usam-se muito os termos ldquoenergia positivardquo e ldquoenergia
negativardquo para indicar a presenccedila ou natildeo de algum elemento imaterial existente que interfere
nos objetos e nas pessoas e que muitas vezes influenciam e ou determinam o curso de suas
vidas
Com base nos conceitos apresentados acima antropoacutelogos tecircm feito uma distinccedilatildeo
entre animismo crenccedila em espiacuteritos personificados e animatismo crenccedila em uma forccedila
impessoal Para Van Rheenen (1991) no entanto essa distinccedilatildeo reflete apenas uma visatildeo
exterior e natildeo fenomenoloacutegica aos proacuteprios grupos animistas pois para eles natildeo haacute distinccedilatildeo
clara entre forccedilas impessoais e seres espirituais Ele cita como exemplo o conceito de azar
na religiatildeo islacircmica Segundo o islamismo popular natildeo eacute possiacutevel saber se a origem do azar eacute
atribuiacuteda a jiin (ser espiritual personificado) ou ao mau olhado (forccedila impessoal) Assim a
definiccedilatildeo de animismo para esse autor eacute
A crenccedila que seres espirituais personificados e forccedilas espirituais impessoais tecircm poder sobre as atividades humanas e consequentemente que os seres humanos precisam descobrir quais os seres e forccedilas os estatildeo influenciando a fim de que determinem de que forma iratildeo agir e com frequumlecircncia como iratildeo manipular o poder deles (Van Rheenen 1991 pp 19-20)
15
Lothar Kaser por seu turno acrescenta mais alguns elementos em sua definiccedilatildeo de
animismo a saber a forma como esses seres sobrenaturais se manifestam
Entende-se por animismo em sua forma mais geneacuterica a crenccedila na existecircncia e atuaccedilatildeo de seres espirituais que se manifestam na forma de apariccedilotildees semelhantes a homens ou animais dispondo de conhecimentos poderes e possibilidades que o proacuteprio ser homem natildeo tem Em culturas tradicionais (sem escrita) fazem parte desses seres semelhantes a figuras espirituais natildeo somente os espiacuteritos propriamente ditos mas ainda alma de pessoas sob certas circunstacircncias tambeacutem objetos podem estar de posse de algo como uma alma (2004 p 215)
Como se pode ver o conceito de animismo sofreu modificaccedilotildees desde Tyler ateacute os
dias atuais
12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo
Estudiosos tecircm discutido ateacute que ponto o animismo eacute de fato uma religiatildeo uma vez
que natildeo possui elementos fundamentais caracteriacutesticos das religiotildees mundiais tais como
escritos sagrados templos missionaacuterios ou teologia uniforme Para Kaser por exemplo ldquoeacute
melhor (consideraacute-lo) uma cosmovisatildeo com muitos aspectosrdquo (2004 p 216) Jaacute para outros
autores esse tipo de pensamento manifesta certo etnocentrismo e preconceito pois vecirc a
religiatildeo apenas como o aspecto da vida que lida com o ldquoespiritualrdquo enquanto que a ciecircncia
lidaria com os aspectos naturais Essa postura que elimina fronteiras riacutegidas entre ciecircncia e
religiatildeo estaacute em consonacircncia com o construto poacutes-moderno de ciecircncia locus que considera as
conclusotildees de um xamatilde sobre a vida e o cosmo tatildeo vaacutelidas quanto as de um acadecircmico com
carreira universitaacuteria (ver por exemplo Ruy Ceacutesar do Espiacuterito Santo O Renascimento do
Sagrado na Educaccedilatildeo 2a Ed Coleccedilatildeo Praacutexis Campinas Papirus 2000)
Assim Hiebert Shaw amp Tieacutenou afirmam que
Antropoacutelogos agora definem lsquoreligiatildeorsquo como crenccedilas a respeito da natureza uacuteltima das coisas tais como sentimentos profundos e motivaccedilotildees valores fundamentais e lealdade Essa definiccedilatildeo fornece a maneira como as pessoas percebem a realidade Nesse sentido o ateiacutesmo budista Theravada Marxismo e cientificismo tambeacutem satildeo religiotildees (1999 p 35)
16
Conclui-se portanto que o animismo eacute uma religiatildeo pois reflete uma forma especiacutefica
de interpretaccedilatildeo da realidade
13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista
Embora o animismo apresente facetas diversas nas diferentes regiotildees do mundo haacute
certas caracteriacutesticas que satildeo comuns a todos A seguir apresentamos as principais
131 Holismo
Segundo Steyne (1992 p 58) holismo eacute um termo filosoacutefico cuja visatildeo eacute de que a
vida eacute maior do que a soma de suas partes Ainda segundo Steyne ldquoo mundo interage consigo
mesmo O ceacuteu os espiacuteritos a terra o mundo fiacutesico o vivente e o falecido todos agem
interagem e reagem em consonacircnciardquo (1992 p 59) Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo proacutepria entre o
indiviacuteduo e o mundo Por essa razatildeo o animista natildeo faz separaccedilatildeo entre o sagrado e o
profano ou entre o secular e o religioso Conclui-se que o animismo eacute em uacuteltima instacircncia
uma forma de panteiacutesmo
132 Espiritualismo
O conceito de espiritualismo estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo de holismo e depende
dele Segundo a noccedilatildeo de espiritualismo a espiritualidade eacute a essecircncia fundamental da vida e
a vida estaacute repleta de possibilidades sobrenaturais Tudo na vida pode ser influenciado pelo
mundo dos espiacuteritos Tudo que ocorre no mundo fiacutesico tem um correspondente no mundo
espiritual e da mesma forma tudo que ocorre no mundo espiritual tem consequumlecircncias no
mundo fiacutesico (Van Rheenen 1991) Para os indiacutegenas brasileiros por exemplo a causa das
doenccedilas natildeo adveacutem simplesmente de bacteacuterias viacuterus etc mas da accedilatildeo direta dos espiacuteritos
sobre o indiviacuteduo Isso quase sempre resulta em acusaccedilotildees pela necessidade de se descobrir
17
o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
18
pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
19
135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
20
Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
21
dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
22
Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
24
1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
25
missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
26
si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
27
(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
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Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
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cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
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22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
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quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
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Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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11
cuja tendecircncia ao materialismo no miacutenimo menospreza a realidade do mundo espiritual Ao
comunicar o Evangelho o missionaacuterio tenderaacute a reproduzir o modelo recebido e correraacute o risco
de natildeo comunicar o Evangelho de uma forma que cause impacto na mente e no coraccedilatildeo do povo
a ser alcanccedilado
A metodologia utilizada nesta pesquisa foi primariamente uma pesquisa bibliograacutefica
Quase todas as obras utilizadas foram escritas na liacutengua inglesa pois como jaacute mencionado quase
natildeo se encontra material sobre o tema em liacutengua portuguesa Aleacutem da pesquisa bibliograacutefica
incluem-se tambeacutem informaccedilotildees dadas por missionaacuterios que jaacute atuam com povos animistas cujos
testemunhos datildeo suporte aos conceitos apresentados A pesquisa foi dividida em trecircs capiacutetulos
No primeiro capiacutetulo apresenta-se o animismo sob o ponto de vista fenomenoloacutegico
sem qualquer julgamento teoloacutegico quanto agrave sua natureza e o seus fins Descrevem-se os
principais conceitos e as praacuteticas mais comuns da religiatildeo animista
No segundo capiacutetulo busca-se uma visatildeo panoracircmica do tema ldquoespiacuteritos na Biacutebliardquo O
principal objetivo eacute demonstrar que a Biacuteblia trata a existecircncia dos espiacuteritos de forma realista ou
seja os autores biacuteblicos natildeo tentam provar a existecircncia de seres espirituais partem do
pressuposto de que eles satildeo reais
No terceiro capiacutetulo desenvolve-se o tema da salvaccedilatildeo uma breve alusatildeo ao seu
desenvolvimento teoloacutegico na histoacuteria da igreja e por fim a defesa da tese de que o tema da
salvaccedilatildeo como ldquotransferecircncia de domiacuteniordquo eacute o mais apropriado para introduzir o Evangelho no
contexto animista Coloca-se tambeacutem a necessidade de apresentar-se o evangelho de forma
contextualizada Entende-se a contextualizaccedilatildeo natildeo como uma forma de acomodaccedilatildeo do
Evangelho aos moldes culturais animistas mas como uma estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que parte
12
do conhecido para o desconhecido do antigo para o novo O capiacutetulo finaliza-se com uma
apresentaccedilatildeo do conceito de ldquoteologia do Reinordquo e sua visatildeo integral da obra de salvaccedilatildeo
CAPIacuteTULO 1
ANIMISMO CONCEITOS E PRAacuteTICAS
Neste capiacutetulo abordaremos o tema do animismo de forma geral e abrangente
iniciando com uma anaacutelise histoacuterica do fenocircmeno e de sua terminologia ateacute os seus conceitos
fundamentais e suas praacuteticas mais comuns Fazemos aqui uma anaacutelise antropoloacutegica do
fenocircmeno religioso animista sem atribuirmos qualquer juiacutezo de valor ao termo animismo e
aos seus cognatos Vale-se do pressuposto de que eacute a partir do conhecimento fenomenoloacutegico
e de uma visatildeo criacutetica que poderemos posteriormente avaliar suas crenccedilas e praacuteticas agrave luz
das Escrituras Sagradas
11 Uso histoacuterico do termo
O termo ldquoanimismordquo eacute derivado da palavra anima em Latim e quer dizer ldquofocirclegordquo ou
ldquofocirclego de vidardquo Ele traz consigo a ideacuteia de alma ou espiacuterito (Steyne 1992 p 36) A palavra
foi usada pela primeira vez pelo antropoacutelogo britacircnico Edward B Tylor em seus escritos
mais antigos Em 1873 em sua obra Religion in Primitive Culture ele definiu animismo
como ldquoa doutrina de Seres Espirituaisrdquo (1970 p 9) e afirmou que ldquoAnimismo em seu
desenvolvimento pleno incluiacutea a crenccedila em almas e em seu estado futuro em deidades
controladoras e espiacuteritos subordinados (hellip) resultando em algum tipo de adoraccedilatildeordquo (1970 p
11) Esses espiacuteritos incluem tanto os espiacuteritos dos ancestrais vivos que satildeo ldquocapazes de
existecircncia continuadardquo apoacutes a morte como ldquooutros espiacuteritos em uma escala ascendente ateacute ao
ranking de deidades poderosasrdquo (Tylor 1970 p 10) Os escritos de Tylor abriram precedente
para definir animismo como ldquoa crenccedila em um poder sobrenatural personalizadordquo (Smalley
1971 p 24) Tylor partia do pressuposto evolucionistapositivista e acreditava que o
animismo era uma forma primitiva de religiatildeo forma essa que apresentava um modo de
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pensamento preacute-loacutegico desenvolvido posterior e gradativamente para o politeiacutesmo ateacute chegar
agraves religiotildees monoteiacutestas Apesar da rejeiccedilatildeo atual ao seu evolucionismo cultural e de
considerar-se incompleta sua ideacuteia sobre animismo natildeo se pode ignorar sua contribuiccedilatildeo para
o estudo desse assunto
Posteriormente o missionaacuterio R H Codrington descobriu na religiatildeo tradicional
Melaneacutesia em 1891 o conceito de ldquoforccedila espiritual impessoalrdquo Essa forccedila espiritual
denominada mana foi descrita em seu livro The Melanesians (Apud Steyne 1992)) Segundo
Steyne (1992) essa forccedila impessoal pode ser associada agrave energia uma essecircncia com a qual
todas as coisas satildeo carregadas e que pode passar de um elemento para outro Na religiosidade
popular brasileira por exemplo usam-se muito os termos ldquoenergia positivardquo e ldquoenergia
negativardquo para indicar a presenccedila ou natildeo de algum elemento imaterial existente que interfere
nos objetos e nas pessoas e que muitas vezes influenciam e ou determinam o curso de suas
vidas
Com base nos conceitos apresentados acima antropoacutelogos tecircm feito uma distinccedilatildeo
entre animismo crenccedila em espiacuteritos personificados e animatismo crenccedila em uma forccedila
impessoal Para Van Rheenen (1991) no entanto essa distinccedilatildeo reflete apenas uma visatildeo
exterior e natildeo fenomenoloacutegica aos proacuteprios grupos animistas pois para eles natildeo haacute distinccedilatildeo
clara entre forccedilas impessoais e seres espirituais Ele cita como exemplo o conceito de azar
na religiatildeo islacircmica Segundo o islamismo popular natildeo eacute possiacutevel saber se a origem do azar eacute
atribuiacuteda a jiin (ser espiritual personificado) ou ao mau olhado (forccedila impessoal) Assim a
definiccedilatildeo de animismo para esse autor eacute
A crenccedila que seres espirituais personificados e forccedilas espirituais impessoais tecircm poder sobre as atividades humanas e consequentemente que os seres humanos precisam descobrir quais os seres e forccedilas os estatildeo influenciando a fim de que determinem de que forma iratildeo agir e com frequumlecircncia como iratildeo manipular o poder deles (Van Rheenen 1991 pp 19-20)
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Lothar Kaser por seu turno acrescenta mais alguns elementos em sua definiccedilatildeo de
animismo a saber a forma como esses seres sobrenaturais se manifestam
Entende-se por animismo em sua forma mais geneacuterica a crenccedila na existecircncia e atuaccedilatildeo de seres espirituais que se manifestam na forma de apariccedilotildees semelhantes a homens ou animais dispondo de conhecimentos poderes e possibilidades que o proacuteprio ser homem natildeo tem Em culturas tradicionais (sem escrita) fazem parte desses seres semelhantes a figuras espirituais natildeo somente os espiacuteritos propriamente ditos mas ainda alma de pessoas sob certas circunstacircncias tambeacutem objetos podem estar de posse de algo como uma alma (2004 p 215)
Como se pode ver o conceito de animismo sofreu modificaccedilotildees desde Tyler ateacute os
dias atuais
12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo
Estudiosos tecircm discutido ateacute que ponto o animismo eacute de fato uma religiatildeo uma vez
que natildeo possui elementos fundamentais caracteriacutesticos das religiotildees mundiais tais como
escritos sagrados templos missionaacuterios ou teologia uniforme Para Kaser por exemplo ldquoeacute
melhor (consideraacute-lo) uma cosmovisatildeo com muitos aspectosrdquo (2004 p 216) Jaacute para outros
autores esse tipo de pensamento manifesta certo etnocentrismo e preconceito pois vecirc a
religiatildeo apenas como o aspecto da vida que lida com o ldquoespiritualrdquo enquanto que a ciecircncia
lidaria com os aspectos naturais Essa postura que elimina fronteiras riacutegidas entre ciecircncia e
religiatildeo estaacute em consonacircncia com o construto poacutes-moderno de ciecircncia locus que considera as
conclusotildees de um xamatilde sobre a vida e o cosmo tatildeo vaacutelidas quanto as de um acadecircmico com
carreira universitaacuteria (ver por exemplo Ruy Ceacutesar do Espiacuterito Santo O Renascimento do
Sagrado na Educaccedilatildeo 2a Ed Coleccedilatildeo Praacutexis Campinas Papirus 2000)
Assim Hiebert Shaw amp Tieacutenou afirmam que
Antropoacutelogos agora definem lsquoreligiatildeorsquo como crenccedilas a respeito da natureza uacuteltima das coisas tais como sentimentos profundos e motivaccedilotildees valores fundamentais e lealdade Essa definiccedilatildeo fornece a maneira como as pessoas percebem a realidade Nesse sentido o ateiacutesmo budista Theravada Marxismo e cientificismo tambeacutem satildeo religiotildees (1999 p 35)
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Conclui-se portanto que o animismo eacute uma religiatildeo pois reflete uma forma especiacutefica
de interpretaccedilatildeo da realidade
13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista
Embora o animismo apresente facetas diversas nas diferentes regiotildees do mundo haacute
certas caracteriacutesticas que satildeo comuns a todos A seguir apresentamos as principais
131 Holismo
Segundo Steyne (1992 p 58) holismo eacute um termo filosoacutefico cuja visatildeo eacute de que a
vida eacute maior do que a soma de suas partes Ainda segundo Steyne ldquoo mundo interage consigo
mesmo O ceacuteu os espiacuteritos a terra o mundo fiacutesico o vivente e o falecido todos agem
interagem e reagem em consonacircnciardquo (1992 p 59) Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo proacutepria entre o
indiviacuteduo e o mundo Por essa razatildeo o animista natildeo faz separaccedilatildeo entre o sagrado e o
profano ou entre o secular e o religioso Conclui-se que o animismo eacute em uacuteltima instacircncia
uma forma de panteiacutesmo
132 Espiritualismo
O conceito de espiritualismo estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo de holismo e depende
dele Segundo a noccedilatildeo de espiritualismo a espiritualidade eacute a essecircncia fundamental da vida e
a vida estaacute repleta de possibilidades sobrenaturais Tudo na vida pode ser influenciado pelo
mundo dos espiacuteritos Tudo que ocorre no mundo fiacutesico tem um correspondente no mundo
espiritual e da mesma forma tudo que ocorre no mundo espiritual tem consequumlecircncias no
mundo fiacutesico (Van Rheenen 1991) Para os indiacutegenas brasileiros por exemplo a causa das
doenccedilas natildeo adveacutem simplesmente de bacteacuterias viacuterus etc mas da accedilatildeo direta dos espiacuteritos
sobre o indiviacuteduo Isso quase sempre resulta em acusaccedilotildees pela necessidade de se descobrir
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o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
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pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
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135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
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Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
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dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
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Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
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1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
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si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
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(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
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De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
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A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
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314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
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Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
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de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
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sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
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No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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12
do conhecido para o desconhecido do antigo para o novo O capiacutetulo finaliza-se com uma
apresentaccedilatildeo do conceito de ldquoteologia do Reinordquo e sua visatildeo integral da obra de salvaccedilatildeo
CAPIacuteTULO 1
ANIMISMO CONCEITOS E PRAacuteTICAS
Neste capiacutetulo abordaremos o tema do animismo de forma geral e abrangente
iniciando com uma anaacutelise histoacuterica do fenocircmeno e de sua terminologia ateacute os seus conceitos
fundamentais e suas praacuteticas mais comuns Fazemos aqui uma anaacutelise antropoloacutegica do
fenocircmeno religioso animista sem atribuirmos qualquer juiacutezo de valor ao termo animismo e
aos seus cognatos Vale-se do pressuposto de que eacute a partir do conhecimento fenomenoloacutegico
e de uma visatildeo criacutetica que poderemos posteriormente avaliar suas crenccedilas e praacuteticas agrave luz
das Escrituras Sagradas
11 Uso histoacuterico do termo
O termo ldquoanimismordquo eacute derivado da palavra anima em Latim e quer dizer ldquofocirclegordquo ou
ldquofocirclego de vidardquo Ele traz consigo a ideacuteia de alma ou espiacuterito (Steyne 1992 p 36) A palavra
foi usada pela primeira vez pelo antropoacutelogo britacircnico Edward B Tylor em seus escritos
mais antigos Em 1873 em sua obra Religion in Primitive Culture ele definiu animismo
como ldquoa doutrina de Seres Espirituaisrdquo (1970 p 9) e afirmou que ldquoAnimismo em seu
desenvolvimento pleno incluiacutea a crenccedila em almas e em seu estado futuro em deidades
controladoras e espiacuteritos subordinados (hellip) resultando em algum tipo de adoraccedilatildeordquo (1970 p
11) Esses espiacuteritos incluem tanto os espiacuteritos dos ancestrais vivos que satildeo ldquocapazes de
existecircncia continuadardquo apoacutes a morte como ldquooutros espiacuteritos em uma escala ascendente ateacute ao
ranking de deidades poderosasrdquo (Tylor 1970 p 10) Os escritos de Tylor abriram precedente
para definir animismo como ldquoa crenccedila em um poder sobrenatural personalizadordquo (Smalley
1971 p 24) Tylor partia do pressuposto evolucionistapositivista e acreditava que o
animismo era uma forma primitiva de religiatildeo forma essa que apresentava um modo de
14
pensamento preacute-loacutegico desenvolvido posterior e gradativamente para o politeiacutesmo ateacute chegar
agraves religiotildees monoteiacutestas Apesar da rejeiccedilatildeo atual ao seu evolucionismo cultural e de
considerar-se incompleta sua ideacuteia sobre animismo natildeo se pode ignorar sua contribuiccedilatildeo para
o estudo desse assunto
Posteriormente o missionaacuterio R H Codrington descobriu na religiatildeo tradicional
Melaneacutesia em 1891 o conceito de ldquoforccedila espiritual impessoalrdquo Essa forccedila espiritual
denominada mana foi descrita em seu livro The Melanesians (Apud Steyne 1992)) Segundo
Steyne (1992) essa forccedila impessoal pode ser associada agrave energia uma essecircncia com a qual
todas as coisas satildeo carregadas e que pode passar de um elemento para outro Na religiosidade
popular brasileira por exemplo usam-se muito os termos ldquoenergia positivardquo e ldquoenergia
negativardquo para indicar a presenccedila ou natildeo de algum elemento imaterial existente que interfere
nos objetos e nas pessoas e que muitas vezes influenciam e ou determinam o curso de suas
vidas
Com base nos conceitos apresentados acima antropoacutelogos tecircm feito uma distinccedilatildeo
entre animismo crenccedila em espiacuteritos personificados e animatismo crenccedila em uma forccedila
impessoal Para Van Rheenen (1991) no entanto essa distinccedilatildeo reflete apenas uma visatildeo
exterior e natildeo fenomenoloacutegica aos proacuteprios grupos animistas pois para eles natildeo haacute distinccedilatildeo
clara entre forccedilas impessoais e seres espirituais Ele cita como exemplo o conceito de azar
na religiatildeo islacircmica Segundo o islamismo popular natildeo eacute possiacutevel saber se a origem do azar eacute
atribuiacuteda a jiin (ser espiritual personificado) ou ao mau olhado (forccedila impessoal) Assim a
definiccedilatildeo de animismo para esse autor eacute
A crenccedila que seres espirituais personificados e forccedilas espirituais impessoais tecircm poder sobre as atividades humanas e consequentemente que os seres humanos precisam descobrir quais os seres e forccedilas os estatildeo influenciando a fim de que determinem de que forma iratildeo agir e com frequumlecircncia como iratildeo manipular o poder deles (Van Rheenen 1991 pp 19-20)
15
Lothar Kaser por seu turno acrescenta mais alguns elementos em sua definiccedilatildeo de
animismo a saber a forma como esses seres sobrenaturais se manifestam
Entende-se por animismo em sua forma mais geneacuterica a crenccedila na existecircncia e atuaccedilatildeo de seres espirituais que se manifestam na forma de apariccedilotildees semelhantes a homens ou animais dispondo de conhecimentos poderes e possibilidades que o proacuteprio ser homem natildeo tem Em culturas tradicionais (sem escrita) fazem parte desses seres semelhantes a figuras espirituais natildeo somente os espiacuteritos propriamente ditos mas ainda alma de pessoas sob certas circunstacircncias tambeacutem objetos podem estar de posse de algo como uma alma (2004 p 215)
Como se pode ver o conceito de animismo sofreu modificaccedilotildees desde Tyler ateacute os
dias atuais
12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo
Estudiosos tecircm discutido ateacute que ponto o animismo eacute de fato uma religiatildeo uma vez
que natildeo possui elementos fundamentais caracteriacutesticos das religiotildees mundiais tais como
escritos sagrados templos missionaacuterios ou teologia uniforme Para Kaser por exemplo ldquoeacute
melhor (consideraacute-lo) uma cosmovisatildeo com muitos aspectosrdquo (2004 p 216) Jaacute para outros
autores esse tipo de pensamento manifesta certo etnocentrismo e preconceito pois vecirc a
religiatildeo apenas como o aspecto da vida que lida com o ldquoespiritualrdquo enquanto que a ciecircncia
lidaria com os aspectos naturais Essa postura que elimina fronteiras riacutegidas entre ciecircncia e
religiatildeo estaacute em consonacircncia com o construto poacutes-moderno de ciecircncia locus que considera as
conclusotildees de um xamatilde sobre a vida e o cosmo tatildeo vaacutelidas quanto as de um acadecircmico com
carreira universitaacuteria (ver por exemplo Ruy Ceacutesar do Espiacuterito Santo O Renascimento do
Sagrado na Educaccedilatildeo 2a Ed Coleccedilatildeo Praacutexis Campinas Papirus 2000)
Assim Hiebert Shaw amp Tieacutenou afirmam que
Antropoacutelogos agora definem lsquoreligiatildeorsquo como crenccedilas a respeito da natureza uacuteltima das coisas tais como sentimentos profundos e motivaccedilotildees valores fundamentais e lealdade Essa definiccedilatildeo fornece a maneira como as pessoas percebem a realidade Nesse sentido o ateiacutesmo budista Theravada Marxismo e cientificismo tambeacutem satildeo religiotildees (1999 p 35)
16
Conclui-se portanto que o animismo eacute uma religiatildeo pois reflete uma forma especiacutefica
de interpretaccedilatildeo da realidade
13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista
Embora o animismo apresente facetas diversas nas diferentes regiotildees do mundo haacute
certas caracteriacutesticas que satildeo comuns a todos A seguir apresentamos as principais
131 Holismo
Segundo Steyne (1992 p 58) holismo eacute um termo filosoacutefico cuja visatildeo eacute de que a
vida eacute maior do que a soma de suas partes Ainda segundo Steyne ldquoo mundo interage consigo
mesmo O ceacuteu os espiacuteritos a terra o mundo fiacutesico o vivente e o falecido todos agem
interagem e reagem em consonacircnciardquo (1992 p 59) Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo proacutepria entre o
indiviacuteduo e o mundo Por essa razatildeo o animista natildeo faz separaccedilatildeo entre o sagrado e o
profano ou entre o secular e o religioso Conclui-se que o animismo eacute em uacuteltima instacircncia
uma forma de panteiacutesmo
132 Espiritualismo
O conceito de espiritualismo estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo de holismo e depende
dele Segundo a noccedilatildeo de espiritualismo a espiritualidade eacute a essecircncia fundamental da vida e
a vida estaacute repleta de possibilidades sobrenaturais Tudo na vida pode ser influenciado pelo
mundo dos espiacuteritos Tudo que ocorre no mundo fiacutesico tem um correspondente no mundo
espiritual e da mesma forma tudo que ocorre no mundo espiritual tem consequumlecircncias no
mundo fiacutesico (Van Rheenen 1991) Para os indiacutegenas brasileiros por exemplo a causa das
doenccedilas natildeo adveacutem simplesmente de bacteacuterias viacuterus etc mas da accedilatildeo direta dos espiacuteritos
sobre o indiviacuteduo Isso quase sempre resulta em acusaccedilotildees pela necessidade de se descobrir
17
o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
18
pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
19
135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
20
Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
21
dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
22
Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
23
Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
24
1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
25
missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
26
si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
27
(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
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quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
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Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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CAPIacuteTULO 1
ANIMISMO CONCEITOS E PRAacuteTICAS
Neste capiacutetulo abordaremos o tema do animismo de forma geral e abrangente
iniciando com uma anaacutelise histoacuterica do fenocircmeno e de sua terminologia ateacute os seus conceitos
fundamentais e suas praacuteticas mais comuns Fazemos aqui uma anaacutelise antropoloacutegica do
fenocircmeno religioso animista sem atribuirmos qualquer juiacutezo de valor ao termo animismo e
aos seus cognatos Vale-se do pressuposto de que eacute a partir do conhecimento fenomenoloacutegico
e de uma visatildeo criacutetica que poderemos posteriormente avaliar suas crenccedilas e praacuteticas agrave luz
das Escrituras Sagradas
11 Uso histoacuterico do termo
O termo ldquoanimismordquo eacute derivado da palavra anima em Latim e quer dizer ldquofocirclegordquo ou
ldquofocirclego de vidardquo Ele traz consigo a ideacuteia de alma ou espiacuterito (Steyne 1992 p 36) A palavra
foi usada pela primeira vez pelo antropoacutelogo britacircnico Edward B Tylor em seus escritos
mais antigos Em 1873 em sua obra Religion in Primitive Culture ele definiu animismo
como ldquoa doutrina de Seres Espirituaisrdquo (1970 p 9) e afirmou que ldquoAnimismo em seu
desenvolvimento pleno incluiacutea a crenccedila em almas e em seu estado futuro em deidades
controladoras e espiacuteritos subordinados (hellip) resultando em algum tipo de adoraccedilatildeordquo (1970 p
11) Esses espiacuteritos incluem tanto os espiacuteritos dos ancestrais vivos que satildeo ldquocapazes de
existecircncia continuadardquo apoacutes a morte como ldquooutros espiacuteritos em uma escala ascendente ateacute ao
ranking de deidades poderosasrdquo (Tylor 1970 p 10) Os escritos de Tylor abriram precedente
para definir animismo como ldquoa crenccedila em um poder sobrenatural personalizadordquo (Smalley
1971 p 24) Tylor partia do pressuposto evolucionistapositivista e acreditava que o
animismo era uma forma primitiva de religiatildeo forma essa que apresentava um modo de
14
pensamento preacute-loacutegico desenvolvido posterior e gradativamente para o politeiacutesmo ateacute chegar
agraves religiotildees monoteiacutestas Apesar da rejeiccedilatildeo atual ao seu evolucionismo cultural e de
considerar-se incompleta sua ideacuteia sobre animismo natildeo se pode ignorar sua contribuiccedilatildeo para
o estudo desse assunto
Posteriormente o missionaacuterio R H Codrington descobriu na religiatildeo tradicional
Melaneacutesia em 1891 o conceito de ldquoforccedila espiritual impessoalrdquo Essa forccedila espiritual
denominada mana foi descrita em seu livro The Melanesians (Apud Steyne 1992)) Segundo
Steyne (1992) essa forccedila impessoal pode ser associada agrave energia uma essecircncia com a qual
todas as coisas satildeo carregadas e que pode passar de um elemento para outro Na religiosidade
popular brasileira por exemplo usam-se muito os termos ldquoenergia positivardquo e ldquoenergia
negativardquo para indicar a presenccedila ou natildeo de algum elemento imaterial existente que interfere
nos objetos e nas pessoas e que muitas vezes influenciam e ou determinam o curso de suas
vidas
Com base nos conceitos apresentados acima antropoacutelogos tecircm feito uma distinccedilatildeo
entre animismo crenccedila em espiacuteritos personificados e animatismo crenccedila em uma forccedila
impessoal Para Van Rheenen (1991) no entanto essa distinccedilatildeo reflete apenas uma visatildeo
exterior e natildeo fenomenoloacutegica aos proacuteprios grupos animistas pois para eles natildeo haacute distinccedilatildeo
clara entre forccedilas impessoais e seres espirituais Ele cita como exemplo o conceito de azar
na religiatildeo islacircmica Segundo o islamismo popular natildeo eacute possiacutevel saber se a origem do azar eacute
atribuiacuteda a jiin (ser espiritual personificado) ou ao mau olhado (forccedila impessoal) Assim a
definiccedilatildeo de animismo para esse autor eacute
A crenccedila que seres espirituais personificados e forccedilas espirituais impessoais tecircm poder sobre as atividades humanas e consequentemente que os seres humanos precisam descobrir quais os seres e forccedilas os estatildeo influenciando a fim de que determinem de que forma iratildeo agir e com frequumlecircncia como iratildeo manipular o poder deles (Van Rheenen 1991 pp 19-20)
15
Lothar Kaser por seu turno acrescenta mais alguns elementos em sua definiccedilatildeo de
animismo a saber a forma como esses seres sobrenaturais se manifestam
Entende-se por animismo em sua forma mais geneacuterica a crenccedila na existecircncia e atuaccedilatildeo de seres espirituais que se manifestam na forma de apariccedilotildees semelhantes a homens ou animais dispondo de conhecimentos poderes e possibilidades que o proacuteprio ser homem natildeo tem Em culturas tradicionais (sem escrita) fazem parte desses seres semelhantes a figuras espirituais natildeo somente os espiacuteritos propriamente ditos mas ainda alma de pessoas sob certas circunstacircncias tambeacutem objetos podem estar de posse de algo como uma alma (2004 p 215)
Como se pode ver o conceito de animismo sofreu modificaccedilotildees desde Tyler ateacute os
dias atuais
12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo
Estudiosos tecircm discutido ateacute que ponto o animismo eacute de fato uma religiatildeo uma vez
que natildeo possui elementos fundamentais caracteriacutesticos das religiotildees mundiais tais como
escritos sagrados templos missionaacuterios ou teologia uniforme Para Kaser por exemplo ldquoeacute
melhor (consideraacute-lo) uma cosmovisatildeo com muitos aspectosrdquo (2004 p 216) Jaacute para outros
autores esse tipo de pensamento manifesta certo etnocentrismo e preconceito pois vecirc a
religiatildeo apenas como o aspecto da vida que lida com o ldquoespiritualrdquo enquanto que a ciecircncia
lidaria com os aspectos naturais Essa postura que elimina fronteiras riacutegidas entre ciecircncia e
religiatildeo estaacute em consonacircncia com o construto poacutes-moderno de ciecircncia locus que considera as
conclusotildees de um xamatilde sobre a vida e o cosmo tatildeo vaacutelidas quanto as de um acadecircmico com
carreira universitaacuteria (ver por exemplo Ruy Ceacutesar do Espiacuterito Santo O Renascimento do
Sagrado na Educaccedilatildeo 2a Ed Coleccedilatildeo Praacutexis Campinas Papirus 2000)
Assim Hiebert Shaw amp Tieacutenou afirmam que
Antropoacutelogos agora definem lsquoreligiatildeorsquo como crenccedilas a respeito da natureza uacuteltima das coisas tais como sentimentos profundos e motivaccedilotildees valores fundamentais e lealdade Essa definiccedilatildeo fornece a maneira como as pessoas percebem a realidade Nesse sentido o ateiacutesmo budista Theravada Marxismo e cientificismo tambeacutem satildeo religiotildees (1999 p 35)
16
Conclui-se portanto que o animismo eacute uma religiatildeo pois reflete uma forma especiacutefica
de interpretaccedilatildeo da realidade
13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista
Embora o animismo apresente facetas diversas nas diferentes regiotildees do mundo haacute
certas caracteriacutesticas que satildeo comuns a todos A seguir apresentamos as principais
131 Holismo
Segundo Steyne (1992 p 58) holismo eacute um termo filosoacutefico cuja visatildeo eacute de que a
vida eacute maior do que a soma de suas partes Ainda segundo Steyne ldquoo mundo interage consigo
mesmo O ceacuteu os espiacuteritos a terra o mundo fiacutesico o vivente e o falecido todos agem
interagem e reagem em consonacircnciardquo (1992 p 59) Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo proacutepria entre o
indiviacuteduo e o mundo Por essa razatildeo o animista natildeo faz separaccedilatildeo entre o sagrado e o
profano ou entre o secular e o religioso Conclui-se que o animismo eacute em uacuteltima instacircncia
uma forma de panteiacutesmo
132 Espiritualismo
O conceito de espiritualismo estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo de holismo e depende
dele Segundo a noccedilatildeo de espiritualismo a espiritualidade eacute a essecircncia fundamental da vida e
a vida estaacute repleta de possibilidades sobrenaturais Tudo na vida pode ser influenciado pelo
mundo dos espiacuteritos Tudo que ocorre no mundo fiacutesico tem um correspondente no mundo
espiritual e da mesma forma tudo que ocorre no mundo espiritual tem consequumlecircncias no
mundo fiacutesico (Van Rheenen 1991) Para os indiacutegenas brasileiros por exemplo a causa das
doenccedilas natildeo adveacutem simplesmente de bacteacuterias viacuterus etc mas da accedilatildeo direta dos espiacuteritos
sobre o indiviacuteduo Isso quase sempre resulta em acusaccedilotildees pela necessidade de se descobrir
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o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
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pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
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135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
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Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
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dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
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Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
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1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
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si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
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(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
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Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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pensamento preacute-loacutegico desenvolvido posterior e gradativamente para o politeiacutesmo ateacute chegar
agraves religiotildees monoteiacutestas Apesar da rejeiccedilatildeo atual ao seu evolucionismo cultural e de
considerar-se incompleta sua ideacuteia sobre animismo natildeo se pode ignorar sua contribuiccedilatildeo para
o estudo desse assunto
Posteriormente o missionaacuterio R H Codrington descobriu na religiatildeo tradicional
Melaneacutesia em 1891 o conceito de ldquoforccedila espiritual impessoalrdquo Essa forccedila espiritual
denominada mana foi descrita em seu livro The Melanesians (Apud Steyne 1992)) Segundo
Steyne (1992) essa forccedila impessoal pode ser associada agrave energia uma essecircncia com a qual
todas as coisas satildeo carregadas e que pode passar de um elemento para outro Na religiosidade
popular brasileira por exemplo usam-se muito os termos ldquoenergia positivardquo e ldquoenergia
negativardquo para indicar a presenccedila ou natildeo de algum elemento imaterial existente que interfere
nos objetos e nas pessoas e que muitas vezes influenciam e ou determinam o curso de suas
vidas
Com base nos conceitos apresentados acima antropoacutelogos tecircm feito uma distinccedilatildeo
entre animismo crenccedila em espiacuteritos personificados e animatismo crenccedila em uma forccedila
impessoal Para Van Rheenen (1991) no entanto essa distinccedilatildeo reflete apenas uma visatildeo
exterior e natildeo fenomenoloacutegica aos proacuteprios grupos animistas pois para eles natildeo haacute distinccedilatildeo
clara entre forccedilas impessoais e seres espirituais Ele cita como exemplo o conceito de azar
na religiatildeo islacircmica Segundo o islamismo popular natildeo eacute possiacutevel saber se a origem do azar eacute
atribuiacuteda a jiin (ser espiritual personificado) ou ao mau olhado (forccedila impessoal) Assim a
definiccedilatildeo de animismo para esse autor eacute
A crenccedila que seres espirituais personificados e forccedilas espirituais impessoais tecircm poder sobre as atividades humanas e consequentemente que os seres humanos precisam descobrir quais os seres e forccedilas os estatildeo influenciando a fim de que determinem de que forma iratildeo agir e com frequumlecircncia como iratildeo manipular o poder deles (Van Rheenen 1991 pp 19-20)
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Lothar Kaser por seu turno acrescenta mais alguns elementos em sua definiccedilatildeo de
animismo a saber a forma como esses seres sobrenaturais se manifestam
Entende-se por animismo em sua forma mais geneacuterica a crenccedila na existecircncia e atuaccedilatildeo de seres espirituais que se manifestam na forma de apariccedilotildees semelhantes a homens ou animais dispondo de conhecimentos poderes e possibilidades que o proacuteprio ser homem natildeo tem Em culturas tradicionais (sem escrita) fazem parte desses seres semelhantes a figuras espirituais natildeo somente os espiacuteritos propriamente ditos mas ainda alma de pessoas sob certas circunstacircncias tambeacutem objetos podem estar de posse de algo como uma alma (2004 p 215)
Como se pode ver o conceito de animismo sofreu modificaccedilotildees desde Tyler ateacute os
dias atuais
12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo
Estudiosos tecircm discutido ateacute que ponto o animismo eacute de fato uma religiatildeo uma vez
que natildeo possui elementos fundamentais caracteriacutesticos das religiotildees mundiais tais como
escritos sagrados templos missionaacuterios ou teologia uniforme Para Kaser por exemplo ldquoeacute
melhor (consideraacute-lo) uma cosmovisatildeo com muitos aspectosrdquo (2004 p 216) Jaacute para outros
autores esse tipo de pensamento manifesta certo etnocentrismo e preconceito pois vecirc a
religiatildeo apenas como o aspecto da vida que lida com o ldquoespiritualrdquo enquanto que a ciecircncia
lidaria com os aspectos naturais Essa postura que elimina fronteiras riacutegidas entre ciecircncia e
religiatildeo estaacute em consonacircncia com o construto poacutes-moderno de ciecircncia locus que considera as
conclusotildees de um xamatilde sobre a vida e o cosmo tatildeo vaacutelidas quanto as de um acadecircmico com
carreira universitaacuteria (ver por exemplo Ruy Ceacutesar do Espiacuterito Santo O Renascimento do
Sagrado na Educaccedilatildeo 2a Ed Coleccedilatildeo Praacutexis Campinas Papirus 2000)
Assim Hiebert Shaw amp Tieacutenou afirmam que
Antropoacutelogos agora definem lsquoreligiatildeorsquo como crenccedilas a respeito da natureza uacuteltima das coisas tais como sentimentos profundos e motivaccedilotildees valores fundamentais e lealdade Essa definiccedilatildeo fornece a maneira como as pessoas percebem a realidade Nesse sentido o ateiacutesmo budista Theravada Marxismo e cientificismo tambeacutem satildeo religiotildees (1999 p 35)
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Conclui-se portanto que o animismo eacute uma religiatildeo pois reflete uma forma especiacutefica
de interpretaccedilatildeo da realidade
13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista
Embora o animismo apresente facetas diversas nas diferentes regiotildees do mundo haacute
certas caracteriacutesticas que satildeo comuns a todos A seguir apresentamos as principais
131 Holismo
Segundo Steyne (1992 p 58) holismo eacute um termo filosoacutefico cuja visatildeo eacute de que a
vida eacute maior do que a soma de suas partes Ainda segundo Steyne ldquoo mundo interage consigo
mesmo O ceacuteu os espiacuteritos a terra o mundo fiacutesico o vivente e o falecido todos agem
interagem e reagem em consonacircnciardquo (1992 p 59) Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo proacutepria entre o
indiviacuteduo e o mundo Por essa razatildeo o animista natildeo faz separaccedilatildeo entre o sagrado e o
profano ou entre o secular e o religioso Conclui-se que o animismo eacute em uacuteltima instacircncia
uma forma de panteiacutesmo
132 Espiritualismo
O conceito de espiritualismo estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo de holismo e depende
dele Segundo a noccedilatildeo de espiritualismo a espiritualidade eacute a essecircncia fundamental da vida e
a vida estaacute repleta de possibilidades sobrenaturais Tudo na vida pode ser influenciado pelo
mundo dos espiacuteritos Tudo que ocorre no mundo fiacutesico tem um correspondente no mundo
espiritual e da mesma forma tudo que ocorre no mundo espiritual tem consequumlecircncias no
mundo fiacutesico (Van Rheenen 1991) Para os indiacutegenas brasileiros por exemplo a causa das
doenccedilas natildeo adveacutem simplesmente de bacteacuterias viacuterus etc mas da accedilatildeo direta dos espiacuteritos
sobre o indiviacuteduo Isso quase sempre resulta em acusaccedilotildees pela necessidade de se descobrir
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o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
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pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
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135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
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Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
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dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
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Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
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1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
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si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
27
(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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15
Lothar Kaser por seu turno acrescenta mais alguns elementos em sua definiccedilatildeo de
animismo a saber a forma como esses seres sobrenaturais se manifestam
Entende-se por animismo em sua forma mais geneacuterica a crenccedila na existecircncia e atuaccedilatildeo de seres espirituais que se manifestam na forma de apariccedilotildees semelhantes a homens ou animais dispondo de conhecimentos poderes e possibilidades que o proacuteprio ser homem natildeo tem Em culturas tradicionais (sem escrita) fazem parte desses seres semelhantes a figuras espirituais natildeo somente os espiacuteritos propriamente ditos mas ainda alma de pessoas sob certas circunstacircncias tambeacutem objetos podem estar de posse de algo como uma alma (2004 p 215)
Como se pode ver o conceito de animismo sofreu modificaccedilotildees desde Tyler ateacute os
dias atuais
12 Animismo religiatildeo ou cosmovisatildeo
Estudiosos tecircm discutido ateacute que ponto o animismo eacute de fato uma religiatildeo uma vez
que natildeo possui elementos fundamentais caracteriacutesticos das religiotildees mundiais tais como
escritos sagrados templos missionaacuterios ou teologia uniforme Para Kaser por exemplo ldquoeacute
melhor (consideraacute-lo) uma cosmovisatildeo com muitos aspectosrdquo (2004 p 216) Jaacute para outros
autores esse tipo de pensamento manifesta certo etnocentrismo e preconceito pois vecirc a
religiatildeo apenas como o aspecto da vida que lida com o ldquoespiritualrdquo enquanto que a ciecircncia
lidaria com os aspectos naturais Essa postura que elimina fronteiras riacutegidas entre ciecircncia e
religiatildeo estaacute em consonacircncia com o construto poacutes-moderno de ciecircncia locus que considera as
conclusotildees de um xamatilde sobre a vida e o cosmo tatildeo vaacutelidas quanto as de um acadecircmico com
carreira universitaacuteria (ver por exemplo Ruy Ceacutesar do Espiacuterito Santo O Renascimento do
Sagrado na Educaccedilatildeo 2a Ed Coleccedilatildeo Praacutexis Campinas Papirus 2000)
Assim Hiebert Shaw amp Tieacutenou afirmam que
Antropoacutelogos agora definem lsquoreligiatildeorsquo como crenccedilas a respeito da natureza uacuteltima das coisas tais como sentimentos profundos e motivaccedilotildees valores fundamentais e lealdade Essa definiccedilatildeo fornece a maneira como as pessoas percebem a realidade Nesse sentido o ateiacutesmo budista Theravada Marxismo e cientificismo tambeacutem satildeo religiotildees (1999 p 35)
16
Conclui-se portanto que o animismo eacute uma religiatildeo pois reflete uma forma especiacutefica
de interpretaccedilatildeo da realidade
13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista
Embora o animismo apresente facetas diversas nas diferentes regiotildees do mundo haacute
certas caracteriacutesticas que satildeo comuns a todos A seguir apresentamos as principais
131 Holismo
Segundo Steyne (1992 p 58) holismo eacute um termo filosoacutefico cuja visatildeo eacute de que a
vida eacute maior do que a soma de suas partes Ainda segundo Steyne ldquoo mundo interage consigo
mesmo O ceacuteu os espiacuteritos a terra o mundo fiacutesico o vivente e o falecido todos agem
interagem e reagem em consonacircnciardquo (1992 p 59) Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo proacutepria entre o
indiviacuteduo e o mundo Por essa razatildeo o animista natildeo faz separaccedilatildeo entre o sagrado e o
profano ou entre o secular e o religioso Conclui-se que o animismo eacute em uacuteltima instacircncia
uma forma de panteiacutesmo
132 Espiritualismo
O conceito de espiritualismo estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo de holismo e depende
dele Segundo a noccedilatildeo de espiritualismo a espiritualidade eacute a essecircncia fundamental da vida e
a vida estaacute repleta de possibilidades sobrenaturais Tudo na vida pode ser influenciado pelo
mundo dos espiacuteritos Tudo que ocorre no mundo fiacutesico tem um correspondente no mundo
espiritual e da mesma forma tudo que ocorre no mundo espiritual tem consequumlecircncias no
mundo fiacutesico (Van Rheenen 1991) Para os indiacutegenas brasileiros por exemplo a causa das
doenccedilas natildeo adveacutem simplesmente de bacteacuterias viacuterus etc mas da accedilatildeo direta dos espiacuteritos
sobre o indiviacuteduo Isso quase sempre resulta em acusaccedilotildees pela necessidade de se descobrir
17
o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
18
pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
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135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
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Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
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dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
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Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
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1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
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si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
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(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
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Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
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quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
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Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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16
Conclui-se portanto que o animismo eacute uma religiatildeo pois reflete uma forma especiacutefica
de interpretaccedilatildeo da realidade
13 Caracteriacutesticas principais da religiatildeo animista
Embora o animismo apresente facetas diversas nas diferentes regiotildees do mundo haacute
certas caracteriacutesticas que satildeo comuns a todos A seguir apresentamos as principais
131 Holismo
Segundo Steyne (1992 p 58) holismo eacute um termo filosoacutefico cuja visatildeo eacute de que a
vida eacute maior do que a soma de suas partes Ainda segundo Steyne ldquoo mundo interage consigo
mesmo O ceacuteu os espiacuteritos a terra o mundo fiacutesico o vivente e o falecido todos agem
interagem e reagem em consonacircnciardquo (1992 p 59) Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo proacutepria entre o
indiviacuteduo e o mundo Por essa razatildeo o animista natildeo faz separaccedilatildeo entre o sagrado e o
profano ou entre o secular e o religioso Conclui-se que o animismo eacute em uacuteltima instacircncia
uma forma de panteiacutesmo
132 Espiritualismo
O conceito de espiritualismo estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo de holismo e depende
dele Segundo a noccedilatildeo de espiritualismo a espiritualidade eacute a essecircncia fundamental da vida e
a vida estaacute repleta de possibilidades sobrenaturais Tudo na vida pode ser influenciado pelo
mundo dos espiacuteritos Tudo que ocorre no mundo fiacutesico tem um correspondente no mundo
espiritual e da mesma forma tudo que ocorre no mundo espiritual tem consequumlecircncias no
mundo fiacutesico (Van Rheenen 1991) Para os indiacutegenas brasileiros por exemplo a causa das
doenccedilas natildeo adveacutem simplesmente de bacteacuterias viacuterus etc mas da accedilatildeo direta dos espiacuteritos
sobre o indiviacuteduo Isso quase sempre resulta em acusaccedilotildees pela necessidade de se descobrir
17
o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
18
pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
19
135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
20
Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
21
dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
22
Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
24
1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
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si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
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(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
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quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
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Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
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sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
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No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
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malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
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a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
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Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
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crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
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Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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17
o causador do mal agraves vezes com consequumlecircncias traacutegicas Espiritualidade diferentemente do
conceito encontrado no cristianismo natildeo eacute um estaacutegio a ser atingido pelo animista Antes eacute
um axioma sendo simplesmente a natureza da realidade Nas palavras de Mircea Eliade
(2001 p 142) o homem ldquoparticipa da santidade do mundordquo Essa eacute precisamente a razatildeo pela
qual o animista leva tanto a seacuterio o mundo dos espiacuteritos sob pena de sofrer as consequumlecircncias
naturais de quem ignora a realidade
133 Religiatildeo de poder
O elemento essencial da concepccedilatildeo animista eacute poder - poder dos ancestrais para
controlar aqueles de sua linhagem poder de um ldquomau olhadordquo para matar um receacutem-nascido
ou destruir uma lavoura poder dos planetas em afetarem o destino da terra poder dos
democircnios para possuir um meacutedium ou xamatilde poder de maacutegica para controlar eventos
humanos poder de forccedilas impessoais para curar uma crianccedila ou tornar uma pessoa rica
Como afirma Kamps (1986 p 5) ldquoo fundamento do animismo eacute baseado em poder e em
personalidades poderosasrdquo Ou como diz Zukeran (2006) ldquotudo que acontece (no mundo)
pode ser explicado pela noccedilatildeo de poderes em guerra (grifo meu) O alvo eacute obter poder para
controlar as forccedilas que cercam as pessoas (acreacutescimo meu)rdquo Para o animista esse poder estaacute
estreitamente relacionado agrave realidade como afirma Mircea Eliade
O homem das sociedades arcaicas tem a tendecircncia de viver o mais possiacutevel no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados Essa tendecircncia eacute compreensiacutevel pois para os ldquoprimitivosrdquo como para o homem de todas as sociedades preacute-modernas o sagrado equivale ao poder e em uacuteltima anaacutelise agrave realidade por excelecircncia (hellip) Eacute portanto faacutecil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser participar da realidade saturar-se de poder (2001 pp 18-19)
Com frequumlecircncia missionaacuterios que atuam entre povos indiacutegenas do Brasil se defrontam
com situaccedilotildees em que esse poder se evidencia de forma bem perceptiacutevel Em 1995 na aldeia
Tembeacute do Gurupi no estado do Paraacute onde eu e minha esposa trabalhaacutevamos como
missionaacuterios apoacutes orar por um indiviacuteduo possesso por um espiacuterito mau e este ser liberto a
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pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
19
135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
20
Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
21
dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
22
Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
24
1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
26
si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
27
(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
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os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
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22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
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quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
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No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
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malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
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Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
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Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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18
pessoa que nos auxiliava na traduccedilatildeo do Novo Testamento naquela eacutepoca1 ao presenciar o
fato afirmou ldquoEacute por isso que tenho medo de vocecircs missionaacuterios porque vocecircs tecircm esse
poderrdquo
Segundo Van Rheenen (1991) o uso secreto de poder espiritual por parte de um
indiviacuteduo tem quase sempre intenccedilatildeo maleacutefica isto eacute intenta causar sofrimento a algueacutem Por
outro lado o uso puacuteblico de poder espiritual feito por liacutederes respeitados de uma determinada
sociedade eacute considerado benigno e tem a intenccedilatildeo de descobrir quem trouxe o mal sobre
aquela sociedade
134 Vida comunitaacuteria
Uma outra caracteriacutestica de um povo animista eacute a sua praacutetica de vida comunitaacuteria
Sobre isso Steyne comenta
Ele (o animista) natildeo vecirc a si mesmo como um indiviacuteduo mas acredita que sua verdadeira vida estaacute na vida comunitaacuteria com os seus Ele acredita que estaraacute incompleto e se tornaraacute inadequado sem eles Ele necessita do apoio da comunidade e soacute se sente normal quando estaacute em relacionamento com ela Na verdade um relacionamento quebrado eacute algo muito seacuterio no pensamento teoloacutegico animista Se haacute algo que pode ser considerado pecado na religiatildeo animista eacute a quebra de relacionamento entre as pessoas de um mesmo grupo (1992 p 61)
O senso de comunidade entre os povos animistas tem sido particularmente um desafio
para missionaacuterios ocidentais proveniente de culturas que valorizam e enfatizam o indiviacuteduo e
a vida independente bem como a individualidade Para esses a conversatildeo por exemplo deve
ser um ato de decisatildeo individual Soacute recentemente o mundo ocidental se ateve para o conceito
de conversatildeo coletiva isto eacute quando grupos familiares inteiros decidem aderir ao
cristianismo2 Recentemente em uma aldeia do Paraacute apoacutes a resoluccedilatildeo de uma experiecircncia
traumaacutetica um pai de famiacutelia indagou em sua casa quem gostaria de se converter junto com
ele Diante do silecircncio ele natildeo prosseguiu em seu discurso de conversatildeo3
19
135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
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Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
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dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
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Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
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1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
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si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
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(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
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Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
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de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
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os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
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Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
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cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
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22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
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quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
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Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
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estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
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No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
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malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
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Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
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Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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19
135 Mundo dos espiacuteritos
Na cosmovisatildeo judaico-cristatilde os seres espirituais satildeo categorizados em apenas dois
grupos a saber os anjos e os democircnios sendo que os anjos satildeo tidos como bons e os
democircnios tidos como maus no animismo por seu turno os seres espirituais satildeo categorizados
de forma mais complexa Enquanto na liacutengua grega a palavra pneuma acuteespiacuteritoacute se aplica ao
Espiacuterito Santo espiacuterito mau e a espiacuterito como parte imaterial do ser humano em liacutenguas
tupi-guarani do Brasil como o Guajajara essa palavra teria que ser traduzida de vaacuterias
maneiras dependendo do seu contexto especiacutefico Charles Wagley e Eduardo Galvatildeo (1961
p 107-114) descrevem a classificaccedilatildeo dos espiacuteritos segundo a taxonomia do povo Guajajara
Para eles haacute os seguintes seres espirituais
(1) azagraveg ndash espiacuteritos dos mortos que praticaram o mal em vida - seres maus por
natureza cuja principal atividade eacute imprimir medo e doenccedilas sobre os humanos
Habitam a floresta e especialmente os cemiteacuterios
(2) ywan - dono da aacutegua e de tudo que mora nela
(3) tupiwar ndash espiacuterito ou alma dos animais- alguns satildeo maus e podem causar seacuterias
doenccedilas em humanos
(4) karuwar ndash espiacuterito dos ancestrais mortos
(5) iapiterer ndash semelhante ao que os brasileiros regionais chamam popularmente de
visagem
(6) maranuacuteyw ndash ser espiritual considerado como o dono da floresta e de todos os
seres que habitam nela
20
Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
21
dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
22
Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
24
1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
26
si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
27
(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
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quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
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sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
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No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
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malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
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Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
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Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
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do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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20
Outras tribos indiacutegenas brasileiras como os Bororo por exemplo acreditam que natildeo
somente os humanos mas tambeacutem os animais vegetais e ateacute os minerais possuem alma
(Melatti 1970 p 208)
136 Religiatildeo de medo
O animista vive com medo dos poderes espirituais Em funccedilatildeo de temor de represaacutelias
ele tenta apaziguar os espiacuteritos antes e depois da colheita Aleacutem disso busca o mundo
espiritual para garantir o sucesso do casamento de sua filha ou ateacute mesmo veste o seu filho
como uma garota para que ele natildeo sofra o mau olhado do seu vizinho invejoso A tribo
indiacutegena Tembeacute do sudeste do Paraacute cola uma pena de arara vermelha na cabeccedila das crianccedilas
menores na regiatildeo junto agrave testa para desviar o olhar das pessoas protegendo-as assim de um
possiacutevel mau olhado Eacute comum entre tribos indiacutegenas brasileiras colocar-se espinhos ou outro
amuleto vegetal nas portas e janelas da casa apoacutes a morte de um indiviacuteduo afim de se
protegerem contra o espiacuterito do mesmo pois crecircem que o espiacuterito do morto poderaacute voltar e
fazer mal agraves pessoas Houve um caso entre os Arara do Paraacute onde uma senhora alegou ter
recebido visita sexual noturna de seu esposo falecido e um dia depois disso manifestou
infecccedilatildeo vaginal4 Hiebert Shaw e Tieacutenou parecem estar corretos quando afirmam que ldquoem
um mundo cheio de espiacuteritos feiticcedilaria magia negra pragas maus pressentimentos tabus
quebrados ancestrais irados inimigos humanos e falsas acusaccedilotildees de vaacuterios tipos a vida eacute
raramente tranquumlila e segurardquo (1999 p 87)
A necessidade que o animista tem de integrar-se agrave natureza faz com que ele busque e
lute por poderes que lhe conceda as forccedilas necessaacuterias para ldquoequilibrarrdquo a sua vida Isso faz
com que o animista seja em geral mais cuidadoso para com a preservaccedilatildeo da natureza Isaac
Souza missionaacuterio entre o povo Arara conta que certa vez houve incecircndio involuntaacuterio de
floresta virgem apoacutes queimada de uma roccedila Arara O espiacuterito dono dos macacos pregos um
21
dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
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Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
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1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
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si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
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(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
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Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
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Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
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cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
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quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
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Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
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estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
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malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
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Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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21
dos alimentos mais desejados entre esses indiacutegenas solicitou que houvesse treacutegua na matanccedila
desse siacutemeo ateacute que ele liberasse a caccedila dos mesmos O xamatilde comunicou isso ao povo que soacute
retornou agrave caccedilada do animal apoacutes segunda ordem do espiacuterito proprietaacuterio dos macacos Nesse
caso o xamatilde eacute o uacutenico com poder para negociar com os espiacuteritos donos dos animais A
infraccedilatildeo pode provocar morte de parentes do infrator5 A necessidade de equiliacutebrio ambiental
foi determinada pelo espiacuterito-dono dos animais
14 Algumas praacuteticas caracteriacutesticas aos animistas
141 Praacutetica de rituais
O coraccedilatildeo da religiatildeo animista estaacute no ritual (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999 p 283)
Segundo Steyne ritual ou rito ldquoeacute a foacutermula para elicitar a ajuda do mundo espiritual e
manipulaccedilatildeo da natureza para servir aos propoacutesitos do homemrdquo (199293) Ele eacute uma
atividade especial que busca produzir um determinado efeito (Kaser 2004 p 199)
Segundo Juacutelio Cezar Melatti para o homem animista haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o
mito e o rito (1970 p 128) Como essas sociedades chamadas primitivas estatildeo repletas de
mitos eacute de se esperar portanto que tambeacutem manifestem um nuacutemero consideraacutevel de ritos
Em geral para cada rito haacute um mito que narra como o povo o aprendeu Melatti cita por
exemplo o mito Timbira que estaacute por traacutes da proibiccedilatildeo das mulheres tocarem certos
instrumentos musicais Conta a lenda que um certo espiacuterito mal chamado Uakti violava e
pervertia as mulheres Os Timbira decidiram mataacute-lo e o seu corpo foi enterrado No local em
que ele fora enterrado cresceram trecircs palmeiras que abrigam o seu espiacuterito Eacute desse tipo de
palmeira que os Timbira confeccionam seus instrumentos musicais O som emitido pelos
instrumentos eacute o mesmo que Uakti emitia quando era vivo Assim as mulheres que ao menos
virem os instrumentos ficaratildeo imundas e doentes Outro exemplo vem do povo Yawanawa
22
Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
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Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
24
1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
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si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
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(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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22
Certa vez o cacique desse povo me contou a razatildeo pela qual o Yawanawa natildeo come carne de
javali Segundo ele em um passado distante os javalis eram Yawanawa e por alguma razatildeo
se transformaram em animais Assim os Yawanawa natildeo podem mataacute-los e comecirc-los por
causa de sua relaccedilatildeo de parentesco Os ritos portanto tecircm funccedilatildeo importante para manter o
povo e sua cultura em funcionamento e equiliacutebrio Como bem afirmam Hiebert Shaw e
Tieacutenou
Rituais datildeo expressatildeo e reforccedilam as estruturas sociais informaccedilotildees comunicativas a respeito das crenccedilas culturais compartilhadas sentimentos e valores e provecircem um sentido individual e corporativo de identidade para aqueles envolvidos sejam como participantes ou como espectadores Em o fazendo os integram em uma poderosa experiecircncia de realidade Eacute essa integraccedilatildeo de todas as dimensotildees da vida nas atuaccedilotildees rituais que tornam os rituais tatildeo poderosos tanto para renovar como para transforma sociedades culturas e pessoas individuais em curtos periacuteodos de tempo (1999 p 290)
O ato de praticar o ritual de forma correta conforme prescrita garantiraacute o sucesso na
vida Concomitantemente a quebra de um ritual traraacute desequiliacutebrio e puniccedilatildeo agravequeles que
infringiram as normais rituais O exemplo biacuteblico de Moiseacutes batendo na rocha quando o
Senhor havia dito a ele para natildeo tocaacute-la ilustra bem essa relaccedilatildeo entre algo prescrito e sua
desobediecircncia
Haacute tambeacutem um caraacuteter emocional nos ritos Atraveacutes deles os homens podem expressar
os seus sentimentos suas emoccedilotildees sentir-se parte de um todo orgacircnico experimentar o
sentimento de pertencer a algo ou algueacutem Esse sentimento de pertenccedila parece fazer a
diferenccedila entre o ldquoindiviacuteduordquo e a ldquopessoardquo onde o primeiro termo refere-se apenas ao aspecto
fiacutesico e o outro ao ser integral do gecircnero humano
142 Tipos de rituais
Para alguns antropoacutelogos os rituais podem ser divididos em dois tipos a saber ritos
de transformaccedilatildeo e ritos de intensificaccedilatildeo6 Poderiacuteamos ilustrar os dois tipos com dois
exemplos das Escrituras O batismo representa um rito de transformaccedilatildeo enquanto a Ceia do
23
Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
24
1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
25
missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
26
si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
27
(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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23
Senhor representa um rito de intensificaccedilatildeo Preferimos aqui a classificaccedilatildeo apresentada por
Kaser (2004 p 199) que aponta para a existecircncia de quatro tipos baacutesicos de ritos todos
definidos pelo propoacutesito ou finalidade que almejam alcanccedilar
1421 Ritos apotropaacuteicos
Satildeo rituais cujos atos tecircm o objetivo de afastar o mal Segundo a cosmovisatildeo animista
o mal pode se manifestar de vaacuterias maneiras e ter formas bastante diferenciadas O ritual
Tembeacute de colar uma pena de arara na testa da crianccedila descrito anteriormente ilustra bem esse
tipo de ritual No interior da Bahia quando chove muito com trovotildees e relacircmpagos as
crianccedilas aprendem que se repetirem continuamente a expressatildeo ldquopaacutera chuva que a bateria
acabourdquo a chuva iraacute parar Os catoacutelicos Romanos fazem o sinal da cruz quando passam
proacuteximo a um cemiteacuterio e os espiacuteritas tomam banho de ervas para afastar o mau olhado Os
indiacutegenas Guajajara do interior do Maranhatildeo fumam um cigarro feito da fibra de uma aacutervore
chamada tauari durante os seus rituais para impedir que espiacuteritos indesejados tomem posse
dos participantes
1422 Ritos de eliminaccedilatildeo
Nem sempre os rituais apotropaacuteicos satildeo suficientes para afastar o mal e ele pode
penetrar repentinamente em uma determinada sociedade ou famiacutelia Os ritos de eliminaccedilatildeo
portanto satildeo os rituais para eliminar os males que porventura tenham passado A figura
veacutetero-testamentaacuteria do ldquobode expiatoacuteriordquo eacute um exemplo de um ritual de eliminaccedilatildeo O povo
Mundurucu do oeste do Paraacute costuma matar os pajeacutes de sua tribo que se enquadram na
categoria ldquopajeacute brabordquo isto eacute pajeacutes que em vez de curar as pessoas as matam Jaacute os Tembeacute
tecircm o que chamam de puhagraveg traduzidos por eles como ldquoremeacutediordquo mas que satildeo na verdade
certos segredos para eliminar o azar de um caccedilador que natildeo consegue abater a sua presa
24
1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
25
missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
26
si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
27
(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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24
1423 Ritos de purificaccedilatildeo
Esses ritos satildeo semelhantes aos ritos de eliminaccedilatildeo em que a intenccedilatildeo eacute expurgar o
mal poreacutem este o elimina do indiviacuteduo enquanto o outro o elimina da sociedade Eacute comum
se utilizar elementos tais como o fogo a aacutegua o sangue ou o sal nesse tipo de accedilatildeo Em outras
sociedades utilizam-se a oraccedilatildeo (meditaccedilatildeo) e o jejum como elementos de purificaccedilatildeo
1424 Ritos de passagem ou transiccedilatildeo
Como o proacuteprio termo jaacute indica ritos de passagem satildeo ritos praticados em situaccedilotildees de
mudanccedila de estaacutegio na vida na situaccedilatildeo social na idade etc Vaacuterios ritos de passagem satildeo
tambeacutem ritos de iniciaccedilatildeo uma vez que a passagem indica o iniacutecio de uma nova fase Eacute assim
que os Guajajara comemoram o wira lsquou haw ldquofesta das moccedilasrdquo ritual que indica a passagem
das jovens da tribo agrave vida adulta
Nos ritos de passagem eacute comum a reclusatildeo dos iniciados Os jovens Felupes de
Guineacute-Bissau por exemplo ficam reclusos na mata por mais de 30 dias em preparaccedilatildeo para o
rito da circuncisatildeo7 Em outras culturas eacute a oportunidade para se demonstrar forccedila e
coragem Os jovens rapazes da tribo Kayapoacute no Paraacute por exemplo devem subir em uma
aacutervore e destruir uma casa de marimbondos com as proacuteprias matildeos jaacute os Satereacute-Maweacute do
Amazonas colocam a matildeo em uma luva cheia de tocandira8 Os rituais da circuncisatildeo e do
batismo respectivamente satildeo exemplos de ritos de passagem na Biacuteblia Alguns ritos de
passagem da cultura brasileira que podem ser citados satildeo o casamento e o ato de raspar a
cabeccedila do jovem que passa no vestibular Finalmente um rito de passagem que todo ser
humano em todas as culturas experimentam eacute a morte
Como se pode deduzir do que foi apresentado acima nem todos os ritos culturais tecircm
cunho religioso Eacute importante que a pessoa que entra em contato com uma outra cultura natildeo
julgue a priori os rituais com os quais venha a se deparar Infelizmente eacute comum encontrar
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missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
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si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
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(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
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quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
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Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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25
missionaacuterios que devido agrave sua bagagem cultural ocidental tecircm desenvolvido a praacutetica de
demonizar as culturas chamadas primitivas Para esses todo e qualquer ritual tem cunho
religioso e portanto eacute demoniacuteaco antes mesmo de fazer uma anaacutelise acurada e especiacutefica do
rito ou fenocircmeno Segundo Hiebert
Se os missionaacuterios esperam ganhar convertidos e plantar igrejas vivas pelo mundo afora eles precisam reexaminar o papel dos rituais nas sociedades humanas e suas proacuteprias atitudes preconceituosas (em relaccedilatildeo a eles) Somente entatildeo seratildeo capazes de entender a necessidade de ter rituais vivos para expressar e sustentar a feacute em igrejas jovens (1999 p 283)
Conclui-se com isso que haacute sempre necessidade de se estudar e conhecer os
rituais sem preacute-julgamento para que se chegue a uma conclusatildeo agrave luz das Escrituras
Sagradas quanto agrave sua natureza
143 Uso de magia
O termo magia natildeo eacute usado aqui em seu sentido popular hodierno de um efeito
meramente ilusionista praticado para entreter uma determinada plateacuteia Ele eacute usado em seu
sentido antropoloacutegico definido como ldquoa tentativa de se controlar as forccedilas sobrenaturais desse
mundo por meio de foacutermulas amuletos e rituais automaacuteticosrdquo (Hiebert Shaw amp Tieacutetou 1999
p 69) Eacute tambeacutem indicativo de uma forma de causar no mundo fiacutesico um efeito sobrenatural
de natureza boa ou maacute (Steyne 1992 p 107)
James Frazer (Apud Steyne 1991) observou dois princiacutepios baacutesicos por traacutes da praacutetica
da magia Ele chamou o primeiro princiacutepio de ldquolei de simpatiardquo Segundo essa lei elementos
iguais causam efeitos iguais Os seguintes exemplos ilustram esse fenocircmeno um feiticeiro
derrama um pouco de aacutegua para chamar a chuva perfura um boneco semelhante a um
indiviacuteduo com uma agulha para causar a sua morte ou ainda um caccedilador que carrega em sua
bolsa de municcedilatildeo uma miniatura do animal que deseja abater O segundo princiacutepio ele
chamou de ldquolei de contaacutegiordquo Eacute o princiacutepio de que coisas que antes tenham tido contato entre
26
si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
27
(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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26
si continuaratildeo agindo uma sobre a outra para sempre (apud Hiebert Shaw ampe Tieacutetou 1999
p 69) Por exemplo o maacutegico pode fazer a sua magia em um pedaccedilo de pano ou em algum
outro objeto da pessoa causando-lhe alguma doenccedila ou mal Ou o teacutecnico de futebol que usa
sempre a mesma camisa em jogos decisivos por ser a sua camisa da sorte No Brasil haacute um
teacutecnico de futebol famoso que vecirc no nuacutemero treze o seu nuacutemero de sorte e procura usaacute-lo
sempre em situaccedilotildees competitivas de todas as formas possiacuteveis
Um outro elemento caracteriacutestico da magia a ser mencionado eacute a sua natureza amoral
Isto eacute pode ser usada com intenccedilotildees positivas ou negativas para o bem ou para o mal Por
exemplo o ldquopai de santordquo do espiritismo brasileiro pode aceitar ldquotrabalhosrdquo para promover o
casamento ou a separaccedilatildeo entre duas pessoas Tudo dependeraacute da intenccedilatildeo de quem
encomenda os serviccedilos Agrave magia cuja finalidade eacute causar o mal costuma-se chamar de magia
negra
Maacutegica natildeo eacute um elemento exclusivo de religiotildees animistas Wander Proenccedila em seu
livro Magia Prosperidade e Messianismo (2003) analisa a natureza maacutegica de algumas
praacuteticas do movimento neo-pentecostal brasileiro tais como o uso de sal grosso aacutegua
consagrada fogueira santa e outros elementos
Natildeo raras vezes cristatildeos receacutem-convertidos do animismo interpretam as Escrituras de
forma maacutegica Por exemplo haacute pessoas que deixam a Biacuteblia aberta em suas casas em um
determinado capiacutetulo do livro dos Salmos como forma de protegecirc-la do mal Ou ainda haacute
aqueles que carregam oraccedilotildees escritas no bolso de forma a se sentirem protegidos de qualquer
perigo
144 O papel dos especialistas
Todas as religiotildees possuem especialistas Eles satildeo considerados indispensaacuteveis agrave
sociedade por conhecer e compreender as fontes de ajuda que estatildeo disponiacuteveis ao homem
27
(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
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quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
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Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
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malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
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Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
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Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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27
(Steyne 1977 p 146) Nas sociedades animistas os especialistas natildeo satildeo respeitados em
funccedilatildeo de sua moralidade ou do seu exemplo de vida Satildeo sim em funccedilatildeo do poder que
possuem e da eficiecircncia ou natildeo do seu desempenho Nas culturas indiacutegenas brasileiras por
exemplo frequentemente os pajeacutes mais respeitados satildeo aqueles que conseguem resolver os
casos mais difiacuteceis Assim como a eficiecircncia garante o sucesso o fracasso tambeacutem traz suas
consequumlecircncias e pode significar ateacute a morte em certas sociedades
Haacute vaacuterios tipos de especialistas nas religiotildees mas a mais comum entre povos
animistas eacute a figura do xamatilde tambeacutem chamado de pajeacute ou feiticeiro Uma pessoa pode se
tornar um xamatilde por escolha pessoal ou por hereditariedade Steyne resume o papel do xamatilde
da seguinte forma
Acredita-se que o xamatilde estaacute em contato direto com os espiacuteritos Espera-se deles que usem rituais apropriados para manipular os poderes sobrenaturais usando palavras maacutegicas encantaccedilotildees e muacutesica (normalmente usando tambores) para conseguir a atenccedilatildeo dos espiacuteritos Eles agem como meacutediuns entrando em transe ou usam outros para canalizarem mensagens (1977 p 154)
Acredita-se que os xamatildes satildeo capazes de efetuar viagens em transe a outros mundos
inferiores ou superiores e encontrar as causas de doenccedilas e desastres Em geral acredita-se
que as causas dos males podem advir de feiticcedilaria praga ou violaccedilotildees de certos tabus Uma
vez que a causa eacute diagnosticada o xamatilde prescreve o tratamento especiacutefico (Hiebert Shaw amp
Tieacutetou 1999 p 324)
Compete aos xamatildes conhecer a vontade especiacutefica dos espiacuteritos e comunicar ao povo
suas insatisfaccedilotildees e desejos
Atribui-se tambeacutem aos xamatildes a capacidade de guerrearem no mundo espiritual pela
alma das pessoas O pajeacute yanomami por exemplo eacute capaz de visitar em espiacuterito aldeias
inimigas e matar crianccedilas com o poder dos espiacuteritos que o possuem9
Em algumas culturas quando o xamatilde estaacute velho e natildeo tem maior serventia aos
espiacuteritos estes o abandonam ou ateacute o matam e vatildeo agrave procura de um outro pajeacute mais jovem10
28
Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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Natildeo eacute raro o caso de xamatildes que morrem de causa violenta Evidencia-se assim uma relaccedilatildeo
inconstante do pajeacute com o mundo sobrenatural caracterizando-se por momentos de paixatildeo e
pura devoccedilatildeo enquanto em outros momentos experiecircncia de medo e puniccedilatildeo
145 A comunicaccedilatildeo com o mundo espiritual
O animista acredita que o mundo dos espiacuteritos deseja comunicar-se com os seres
humanos e haacute meios pelos quais os seres humanos podem conhecer os seus desejos e
pensamentos Dentre os vaacuterios meios de comunicaccedilatildeo possiacuteveis estatildeo sonhos visotildees e
adivinhaccedilotildees (Steyne 1997 p 124) Entre muitos povos indiacutegenas uma das primeiras
indagaccedilotildees matinais eacute ldquoCom que vocecirc sonhourdquo Observa-se que a praacutetica de sonhos e visotildees
tecircm desempenhado papel importante na experiecircncia de conversotildees de animistas ao
cristianismo O fato de pessoas animistas serem sensiacuteveis ao mundo espiritual torna a sua
cosmovisatildeo bem mais proacutexima da visatildeo biacuteblica do que da visatildeo ocidental por exemplo
Como veremos no proacuteximo capiacutetulo a crenccedila no sobrenatural e na existecircncia em um mundo
espiritual eacute o que haacute de semelhante entre o cristianismo e o animismo Estas religiotildees poreacutem
iratildeo discordar quanto agrave natureza dos espiacuteritos
1 Essa traduccedilatildeo eacute na verdade uma adaptaccedilatildeo da traduccedilatildeo do Novo Testamento feita por Carl Harrison para a liacutengua Guajajara Como as liacutenguas Guajajara e Tembeacute satildeo muito proacuteximas optou-se por adaptar o Novo Testamento Guajajara para os Tembeacute 2 Don Richardson em seu livro O Fator Melquisedeque Editora Vida Nova 2001 cita vaacuterios exemplos de grupos que coletivamente tomaram a decisatildeo de seguir a Cristo 3 Isaac Souza comunicaccedilatildeo pessoal 4 Ibid 5 Ibid 6 Ver Hiebert Shaw amp Tieacutetou pp 303-315 7 Timoacuteteo Backman comunicaccedilatildeo pessoal 8 Tocandira eacute uma formiga grande comum em toda a Amazocircnia cuja picada causa dor insuportaacutevel 9 Ouvi de vaacuterias pessoas da tribo Tembeacute que seus pajeacutes eram capazes de passar dias e ateacute semanas no fundo do rio com os espiacuteritos das aacuteguas 10 Ver o livro Spirit of the Rain Forest - a yanomamouml shamanrsquos story (Espiacuterito da Floresta Tropical - a histoacuteria de um xamatilde yanomamouml) Nele encontramos a linda histoacuteria de um pajeacute yanomami que dedicou toda a sua vida aos espiacuteritos mas que na velhice se sente enganado e traiacutedo por eles
CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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CAPIacuteTULO 2
O MUNDO DOS ESPIacuteRITOS NA BIacuteBLIA
No capiacutetulo anterior procuramos apresentar os principais conceitos e praacuteticas da
religiatildeo animista ainda que como dissemos ela seja deveras diversificada e apresente
caracteriacutesticas peculiares ao redor do mundo
Neste capiacutetulo pretendemos abordar o mundo dos espiacuteritos na Biacuteblia trazendo alguns
exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento Enfocaremos especialmente a visatildeo
dos autores biacuteblicos e o tratamento que estes datildeo agraves praacuteticas animistas Perceber-se-aacute que haacute
elementos em comum entre o animismo e a cosmovisatildeo biacuteblica pelo menos em certos
aspectos como por exemplo a existecircncia de um mundo invisiacutevel espiritual que interage
com o mundo fiacutesico Poreacutem haacute elementos discordantes no que diz respeito agrave natureza dos
espiacuteritos e agrave relaccedilatildeo do homem para com eles
O animismo eacute uma forma de religiatildeo muito antiga Embora discordemos da visatildeo
evolucionista de Tylor de que o animismo tenha sido a primeira forma de religiatildeo do homem
natildeo haacute como negar o fato de que concepccedilotildees animistas da realidade acompanham a histoacuteria da
humanidade desde tempos imemoriais Como a Biacuteblia retrata tambeacutem a histoacuteria do homem
podemos esperar que de alguma forma o tema do animismo seja abordado na mesma
Por razatildeo de espaccedilo bem como de escopo desse trabalho mencionaremos apenas de
forma breve alguns aspectos animistas encontrados nas religiotildees dos povos vizinhos agrave naccedilatildeo
de Israel O enfoque maior seraacute no Novo Testamento por este nos trazer de forma mais
detalhada os desafios da comunicaccedilatildeo do evangelho a pessoas animistas Abordaremos
especialmente a atitude e estrateacutegias dos comunicadores do evangelho neste contexto
especiacutefico Este capiacutetulo se concentraraacute em uma anaacutelise ainda que sucinta do ministeacuterio do
apoacutestolo Paulo sua forma de ver as religiotildees pagatildes dos povos para os quais fora enviado sua
30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
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Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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30
reaccedilatildeo a elas e a estrateacutegia de comunicaccedilatildeo que ele adotou para alcanccedilar esses povos com o
evangelho Por fim analisaremos a linguagem utilizada pelo apoacutestolo e os temas teoloacutegicos
abordados por ele no processo de discipulado dessas pessoas
21 O mundo dos espiacuteritos no Antigo Testamento
211 O animismo como forma de religiatildeo antiga
Apoacutes a Queda (Gn 3) o homem passou a adorar a criatura em vez do criador (Rm 1)
Por isso natildeo eacute de estranhar o fato de que o Antigo Testamento relata as crenccedilas animista-
politeiacutestas dos povos antigos Como observa Clinton Arnold (1992 p 56) ldquoas naccedilotildees ao redor
de Israel adoravam uma multiplicidade de deuses e deusas Em todos os seacuteculos e em todas as
regiotildees geograacuteficas incluindo a Palestina os judeus viveram em um ambiente politeiacutestardquo
Embora a religiatildeo das naccedilotildees vizinhas a Isael seja caracterizada tecnicamente como
politeiacutesta nem sempre eacute faacutecil distinguir animismo e politeiacutesmo pois como se afirmou no
capiacutetulo anterior este uacuteltimo eacute por natureza politeiacutesta Steyne afirma que ldquoum olhar para a
praacutetica das religiotildees do mundo iraacute revelar que o animismo se encontra na superfiacutecie de todas
elas (1977 p 40)
212 A natureza dos iacutedolos
Os iacutedolos que representavam os deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel satildeo por vezes
apresentados como vazios e sem vida O Salmo 1155-7 diz que eles
Tecircm boca e natildeo falam
tecircm olhos e natildeo vecircem
tecircm ouvidos e natildeo ouvem
tecircm nariz e natildeo cheiram
Suas matildeos natildeo apalpam
seus peacutes natildeo andam
31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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31
som nenhum lhes sai da gargantardquo (Ver tambeacutem Sl 13515-17)
Em outros momentos poreacutem a verdadeira natureza dos iacutedolos eacute revelada satildeo
democircnios Em Deuteronocircmio 3216-17 por exemplo o ato de Israel abandonar a Deus eacute
explicado da seguinte maneira
Com deuses estranhos o provocaram a zelos com abominaccedilotildees o irritaram Sacrifiacutecios ofereceram aos democircnios natildeo a Deus a deuses que natildeo conheceram novos deuses que vieram haacute pouco dos quais natildeo se estremeceram seus pais (itaacutelico meu)
Os salmistas tambeacutem apresentam a ideacuteia de que por traacutes dos iacutedolos estatildeo na verdade
seres espirituais do mal No Salmo 10637-38 por exemplo o salmista estabelece um paralelo
entre o sacrifiacutecio aos iacutedolos de Canaatilde com o sacrifiacutecio aos democircnios (ver tambeacutem Sl 3217)
pois imolaram seus filhos e suas filhas aos democircnios e derramaram sangue inocente o sangue de seus filhos e filhas que sacrificaram aos iacutedolos de Canaatilde e a terra foi contaminada com sangue
Esta perspectiva de que os iacutedolos satildeo de fato democircnios eacute encontrada ainda no Salmo
965 ldquoPorque todos os deuses dos povos natildeo passam de iacutedolos o SENHOR poreacutem fez os
ceacuteusrdquo Embora o texto hebraico (seguido pela versatildeo Almeida Atualizada) apresente a palavra
mylyla ldquoiacutedolosrdquo a Septuaginta apresenta uma leitura alternativa δαιmicroόνια ldquodemocircniosrdquo
refletindo a convicccedilatildeo judaica de que o iacutedolo representa um ser espiritual maligno (Arnold
1992a p 57)
Aleacutem de referecircncias a divindades o Antigo Testamento tambeacutem fala de espiacuteritos maus
(hebraico huר hwr) Algumas vezes eles satildeo mencionados por nome Em Isaiacuteas 3414 por
exemplo o termo traduzido por ldquofantasmardquo em Almeida Atualizada eacute a palavra hebraica
tylyl lsquolilithrsquo Segundo Arnold (1992a p 57) lilith era um espiacuterito mau na Mesopotacircmia
32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
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Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
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cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
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quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
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Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
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Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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32
Vaacuterias outras referecircncias a espiacuteritos satildeo encontradas no Antigo Testamento Em todas
elas estes satildeo sempre caracterizados como estando debaixo do soberano controle de Deus (cf
Jz 923 1 Sm 1614-23 1810-11199-10 1 Re 221-40)
213 Espiacuteritos territoriais
Um outro aspecto apresentado em relaccedilatildeo ao mundo dos espiacuteritos no Antigo
Testamento especialmente nos livros produzidos no periacuteodo do cativeiro babilocircnico eacute a
noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Segundo essa noccedilatildeo certos espiacuteritos tinham controle sobre
determinadas regiotildees geograacuteficas1 No livro de Daniel por exemplo eacute dito que certos anjos
maus exercem influecircncia sobre a Peacutersia e a Greacutecia2
214 A condenaccedilatildeo de praacuteticas animistas
Por todo o Antigo Testamento evidencia-se de forma clara e inequiacutevoca a condenaccedilatildeo
de praacuteticas animistas Israel fora colocado por Deus no centro das religiotildees pagatildes para ser
uma testemunha do Deus uacutenico e verdadeiro e para conclamaacute-las a abandonar os seus iacutedolos e
servir a Yahweh Poreacutem o contraacuterio aconteceu Por vaacuterias vezes a naccedilatildeo de Israel se sentiu
atraiacuteda pela religiosidade das naccedilotildees vizinhas e abandonou o culto a Deus trocando-o pela
adoraccedilatildeo a deuses falsos e a democircnios Deus entatildeo enviou os seus profetas para condenar o
pecado da naccedilatildeo e anunciar o seu juiacutezo ateacute que ela se arrependesse
22 O mundo dos espiacuteritos no Novo Testamento
Para os autores do Novo Testamento a existecircncia de seres espirituais eacute uma
informaccedilatildeo dada isto eacute sem necessidade de que provas a seu respeito sejam apresentadas por
ser de consenso geral Todos partem do princiacutepio de que eles existem O tema principal do
Novo Testamento em relaccedilatildeo aos espiacuteritos eacute sua natureza anti-Deus seus propoacutesitos malignos
33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
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quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
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Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
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sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
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No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
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malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
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Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
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Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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33
de aprisionar os homens e principalmente a sua oposiccedilatildeo ao Reino de Deus Em suma no
Novo Testamento quando se fala do mundo dos espiacuteritos fala-se em guerra entre o Reino de
Deus e o impeacuterio das trevas
221 O ministeacuterio de Jesus
Diferentemente da teologia dos saduceus (At 239) tanto Jesus quanto os seus
apoacutestolos reconheceram a realidade do mundo dos espiacuteritos O proacuteprio ministeacuterio de Jesus se
iniciou apoacutes ser ele tentado por Satanaacutes (Mt 41-11)
Uma parte fundamental do ministeacuterio de Jesus foi a libertaccedilatildeo de pessoas possessas
por espiacuteritos maus (cf Mt 932-34 1718 Mc 726-30 Lc 433-37 1114) Como afirma
Arnold (1992 p 77) ldquoa atividade de Jesus de expulsar espiacuteritos maus foi uma das coisas mais
marcantes a seu respeito na visatildeo do povo dos seus dias Os escritores dos Evangelhos
dedicam uma porccedilatildeo substancial de suas narrativas recontando o embate de Jesus com esses
espiacuteritosrdquo
Nos ensinos de Jesus fica evidente o fato de que Satanaacutes o maioral dos espiacuteritos tem
certo poder sobre as pessoas (cf Mt 48-9 Lc 46 Jo 1231) Em Marcos 3 Satanaacutes eacute descrito
como o ldquohomem forterdquo que precisa ser amarrado antes que a sua casa seja assaltada Jesus
veio entatildeo para dominar e derrotar o inimigo mor de Deus Arnold comenta
Pelo contexto das palavras de Jesus fica claro que o lsquohomem fortersquo eacute uma referecircncia a Satanaacutes e a lsquosua casarsquo corresponde ao seu reinohellipAssim essa passagem se torna um importante testemunho agrave missatildeo de Jesus Ela provecirc clarificaccedilatildeo adicional quanto agrave natureza de sua morte vicaacuteria Jesus natildeo veio somente para tratar do problema do pecado no mundo mas tambeacutem para lidar com o oponente sobrenatural de Deus - o proacuteprio Satanaacutes (1992a p 79)
222 O ministeacuterio dos disciacutepulos
Os disciacutepulos seguiram os passos do Mestre e perceberam em atitudes e
comportamentos humanos a ingerecircncia de poderes sobrenaturais Segundo Willard Swarley
34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
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malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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34
os evangelistas dedicam boa parte de sua narrativa ao tema do confronto entre Jesus e os
espiacuteritos maus
No Evangelho de Marcos a proclamaccedilatildeo de Jesus do Reino de Deus em palavras e obras eacute o tiro fatal agrave realidade espiritual comandada por Satanaacutes Aproximadamente um terccedilo do Evangelho de Marcos conteacutem ecircnfase em exorcismo A principal histoacuteria do ministeacuterio de Jesus em Marcos descreve Jesus expulsando um democircnio na sinagoga (Mc 123-28) Inuacutemeras outras histoacuterias (similares) ocorrem A histoacuteria de Jesus e da igreja primitiva em Lucas - Atos traz de forma abundante a ideacuteia de que Jesus veio para destruir o poder do mal que manteacutem a humanidade cativa (2006)
Da mesma forma o livro de Atos demonstra como a igreja cristatilde avanccedilou pelo mundo
lutando contra os poderes de Satanaacutes Felipe por exemplo incluiu a praacutetica de expulsar
democircnios em seu ministeacuterio em Samaria (At 87) praacutetica essa tambeacutem adotada pelo apoacutestolo
Paulo Lucas narra em Atos dos Apoacutestolos pelo menos um episoacutedio quando Paulo expulsou
o espiacuterito de adivinhaccedilatildeo da jovem de Filipos (At 1616)
223 O ministeacuterio Paulino em um contexto animista
O apoacutestolo Paulo eacute considerado por muitos estudiosos senatildeo o maior um dos maiores
e mais importantes missionaacuterios cristatildeos de todos os tempos Desenvolvendo o seu ministeacuterio
no mundo Greco-romano do primeiro seacuteculo da Era Cristatilde ele pregou o evangelho para um
puacuteblico com cosmovisatildeo animista Como bem afirma Clinton Arnold (1992b p 20) ldquoPaulo
pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que criam na existecircncia de espiacuteritos
malignos Esse fato teve impacto em como ele pregou o evangelho e sobre o que ele ensinou
agravequeles novos cristatildeos em suas cartasrdquo De fato podemos encontrar terminologia e ecircnfases
paulinas dirigidas claramente aos seus ouvintes que experimentaram em sua vida preacute-cristatilde a
forma de religiosidade animista Esta eacute a razatildeo pela qual escolhemos o ministeacuterio Paulino para
ilustrar a proclamaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista nos primoacuterdios da igreja cristatilde
Natildeo seria demais afirmar que a mesma experiecircncia mui provavelmente ocorreu com Pedro
35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
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quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
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Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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35
Joatildeo e os demais apoacutestolos A seguir citaremos alguns dos termos usados pelo apoacutestolo que
tecircm relaccedilatildeo com o contexto animista
2231 A teologia paulina a respeito dos espiacuteritos
Embora teoacutelogos do ocidente tenham tentado ldquodesmitologizarrdquo todo e qualquer
aspecto sobrenatural das Escrituras uma leitura mais de perto dos escritos paulinos levaraacute o
leitor agrave conclusatildeo de que para o apoacutestolo o mundo dos espiacuteritos era real e natildeo simples ilusatildeo
de mentes pagatildes Sobre isso Arnold comenta
Sobre este assunto Paulo foi certamente um homem de seu tempo Concordando com o pensamento popular tanto dos pagatildeos como dos judeus ele tambeacutem assumiu que o mundo estaacute repleto de espiacuteritos hostis agrave humanidade Ele nunca demonstrou qualquer duacutevida em relaccedilatildeo agrave existecircncia de tal dimensatildeo Pelo contraacuterio ensinou as suas igreja como viver e ministrar em um mundo onde estes oponentes sobrenaturais existem (1992a p 89)
E William Hendriksen comentando Efeacutesios 611 diz
Eacute evidente que o apoacutestolo cria na existecircncia de um priacutencipe do mal pessoal Paulo estava escrevendo a pessoas das quais muitas antes de sua bem recente conversatildeo agrave feacute cristatilde nutriam grande temor pelos espiacuteritos maus De que maneira Paulo neutraliza esse medo Disse o que muitos dizem hoje lsquoo mundo dos espiacuteritos eacute uma grande irrealidade pura invenccedilatildeo da imaginaccedilatildeorsquo Certamente que natildeo Em vez disso sem aceitar a demonologia ou animismo pagatildeo ele enfatiza a grande e sinistra influecircncia de Satanaacutes (2005 p 321)
2232 O contexto religioso subjacente agrave carta aos Efeacutesios
Um dos escritos mais importantes no que diz respeito agrave natureza do mundo espiritual
na Biacuteblia eacute a carta de Paulo aos Efeacutesios Nesta carta pode-se perceber uma riqueza enorme de
terminologia relacionada ao mundo dos espiacuteritos Conveacutem perguntar qual seria a razatildeo de
Paulo ter se referido tanto a esse assunto nesta carta Os estudiosos do assunto concordam de
forma geral que o contexto religioso preacute-cristatildeo dos efeacutesios eacute a razatildeo Eacutefeso era o centro da
religiatildeo da deusa Diana um centro de religiatildeo maacutegica por que natildeo dizer animista Bruce
Metzger afirma que ldquode todas as antigas cidades greco-romanas Eacutefeso a terceira maior
36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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36
cidade do impeacuterio era de longe a mais hospitaleira aos maacutegicos adivinhos e charlatotildees de
toda categoriardquo (apud Arnold 1992b p 14) Aleacutem disso havia a influecircncia de concepccedilotildees
miacutesticas judaicas que corroboraram para que o pano de fundo da cidade refletisse uma
percepccedilatildeo maacutegica e espiritualista da realidade Os poderes das trevas parecem ganhar acesso
direto agraves vidas das pessoas e isso era feito atraveacutes da magia feiticcedilaria e adivinhaccedilatildeo Natildeo eacute de
estranhar que os sete filhos de um dos chefes dos sacerdotes chamado Ceva tenham achado
em Eacutefeso um campo vasto de trabalho (At 1913-17)
2233 A natureza dos principados e potestades
Muito se tem discutido na literatura especializada quanto agrave natureza dos ldquoprincipados e
potestadesrdquo mencionados por Paulo em sua carta aos Efeacutesios Clinton Arnold em seu livro
Ephesians Power and Magic faz uma siacutentese do pensamento dos estudiosos do assunto a
qual reproduzimos aqui de forma breve
22331 Anjos bons
Haacute quem interprete a expressatildeo paulina ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia aos que estatildeo ao redor do trono de Deus O principal defensor desta tese eacute Wesley
Carr Seu principal argumento eacute de que o conceito de poderes demoniacuteacos natildeo fazia parte do
pensamento intelectual do primeiro seacuteculo da era cristatilde Para ele as pessoas que viveram no
primeiro seacuteculo da Era Cristatilde acreditavam existir somente um ser mau Satanaacutes Ainda
segundo Carr somente no segundo seacuteculo eacute que se desenvolveu a ideacuteia de uma multidatildeo de
poderes demoniacuteacos Mas se esse eacute o caso como explicar Efeacutesios 612 onde fica evidente o
conflito entre a igreja e estes seres Carr vecirc essa passagem como sendo uma interpolaccedilatildeo do
segundo seacuteculo Poreacutem seu argumento parece ser falho uma vez que natildeo haacute evidecircncia textual
de interpolaccedilatildeo e testemunhas textuais antigas comprovam a autenticidade do versiacuteculo
37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
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teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
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De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
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A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
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314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
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Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
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de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
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sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
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No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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37
22332 Estruturas sociais malignas
Walter Wink em seu livro Engaging The Powers defende a ideacuteia de que a expressatildeo
usada por Paulo realmente se refere a representantes do mal Poreacutem os interpreta como sendo
o mal estrutural corporativo Segundo ele a expressatildeo eacute uma referecircncia agraves estruturas soacutecio-
econocircmicas do impeacuterio romano
Minha tese eacute que o que as pessoas do mundo biacuteblico experimentaram como e chamaram lsquoPrincipados e Potestadesrsquo era de fato real Eles estavam discernindo a verdadeira espiritualidade no centro das instituiccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e culturais dos seus dias O aspecto espiritual das potestades natildeo eacute simplesmente uma lsquopersonificaccedilatildeorsquo de qualidades institucionais que existiriam sendo elas personificadas ou natildeo Pelo contraacuterio a espiritualidade de uma instituiccedilatildeo existe como um aspecto real da instituiccedilatildeo mesmo quando ela natildeo eacute vista como tal Instituiccedilotildees tecircm um ethos spiritual verdadeiro e noacutes negligenciamos esse aspecto da vida institucional (Apud Arnold 1992b p 1)
22333 Espiacuteritos malignos
Haacute vaacuterios autores que interpretam a expressatildeo ldquoprincipados e potestadesrdquo como uma
referecircncia a espiacuteritos malignos Para Arnold (1992b p 51) por exemplo ldquotemos todas as
razotildees de supor que quando o autor de Efeacutesios falou de lsquoprincipados e potestadesrsquo seus
leitores iriam de forma natural tomar como uma referecircncia aos democircnios a quem eles tanto
temiamrdquo Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos tradutores da Biacuteblia de Jerusaleacutem (Ediccedilatildeo 1985)
Trata-se dos espiacuteritos que na opiniatildeo dos antigos governavam os astros e por eles todo o universo Residiam lsquonos ceacuteusrsquo (120s 310 Fl 210) ou lsquono arrsquo (22) entre a terra e a morada de Deus e coincidiam em parte com o que Paulo chama noutro lugar de elementos do mundo (Gl 43) Foram infieacuteis a Deus e quiseram escravizar a si os homens no pecado (22) mas Cristo veio libertar-nos da sua escravidatildeohellip Armados com a sua forccedila os cristatildeos podem agora lutar contra eles
O grande estudioso biacuteblico FF Bruce (1988) tambeacutem compartilha a visatildeo de que
Paulo estaacute se referindo a seres espirituais ao afirmar que ldquoessas satildeo forccedilas reais do mal as
38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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38
quais satildeo encontradas na esfera espiritual e precisam ser resistidas O espiacuterito deste seacuteculo
qualquer seacuteculo eacute raramente encontrado em alianccedila com o Espiacuterito de Cristordquo
224 O significado de ldquostoicheiardquo em Gaacutelatas
Um outro termo empregado pelo apoacutestolo Paulo que embora natildeo provenha de Efeacutesios
eacute usado paralelamente para se referir ao mundo espiritual eacute a palavra Stoicheia Essa palavra
reflete uma visatildeo popular tanto heleniacutestica quanto judaica de que certas entidades coacutesmicas
ou poderes astrais foram colocados sobre os quatro elementos planetas e estrelas Os papiros
da magia grega usam stoicheia ldquopara se referir aos 36 servos astrais que governam a cada dez
degraus dos ceacuteus (Gloria Wiese 2006 p 1) Segundo James Dunn (1993 p15) as cartas
paulinas falam em vaacuterios lugares das forccedilas dos elementos da natureza como elementos que
escravizam as pessoas (Gl 43 9 Cl 28 20) Embora o significado da frase lsquoforccedila dos
elementosrsquo seja debatido entre estudiosos segundo Dunn Paulo provavelmente tinha em
mente o mesmo pensamento popular das pessoas dos seus dias isto eacute que elementos
fundamentais do cosmos incluindo natildeo somente as estrelas podiam e de fato exerciam com
frequumlecircncia influecircncia sobre o indiviacuteduo e a sociedade No texto apoacutecrifo Testamento de
Salomatildeo datado do segundo ou terceiro seacuteculo da Era Cristatilde os democircnios que vecircm a
Salomatildeo se apresentam como stoicheia (Bruce 1988)
O fato do apoacutestolo Paulo natildeo esclarecer muito a terminologia utilizada por ele para
falar do mundo espiritual pode ser um sinal de que as expressotildees que ele utiliza eram bem
conhecidas e utilizadas por sua audiecircncia original Sobre isso Dunn comenta
O aspecto da compreensatildeo de Paulo das realidades coacutesmicas que mais me tem chamado a atenccedilatildeo poreacutem eacute o fato de que ele fala tatildeo pouco em termos de descrever esses principados e potestades Eacute como se muito do que ele fala ateacute este ponto fosse ad hominem isto eacute deliberadamente dirigido a pessoas em termos que eles mesmo utilizam Eacute como se Paulo estivesse dizendo aos seus leitores esse principados e potestades sejam eles quem forem vocecircs natildeo precisam temecirc-los o Evangelho de Cristo provecirc um contra-ataque decisivo contra eles (1993 p 15)
39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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39
Esta afirmaccedilatildeo de Dunn parece ser realmente correta se tomarmos o propoacutesito da
carta aos Efeacutesios como o de demonstrar como de fato eacute a supremacia de Cristo sobre os
poderes espirituais e que ele conferiu poder espiritual agrave igreja para esta combater as hostes
malignas nas regiotildees celestes
225 A batalha da igreja contra os principados e potestades
Um outro elemento que se evidencia do texto de Efeacutesios jaacute mencionado brevemente eacute
a realidade de que estas entidades espirituais a quem os efeacutesios serviam e temiam estatildeo em
franca oposiccedilatildeo ao Reino de Deus e precisam ser combatidas pela igreja Como mui bem diz
Hendriksen (2005 p 325) ldquoa igreja e Satanaacutes satildeo inimigos declarados Lanccedilam-se um contra
o outro Digladiam com violecircnciardquo3
226 A supremacia de Cristo sobre os espiacuteritos
Que a igreja e Satanaacutes estatildeo em guerra pode facilmente ser inferido natildeo soacute do texto
paulino como dos demais autores do Novo Testamento Poreacutem devemos perguntar agora em
que termos o apoacutestolo Paulo conclama a igreja a lutar contra esses poderes do mal A resposta
vem de sua cristologia A visatildeo que ele tem da pessoa de Cristo eacute a base e o subsiacutedio para o
engajamento da igreja nesta luta Cristo eacute superior aos espiacuteritos e os humilhou na cruz (Cl
215)4 Nas palavras de Hiebert (2006) ldquona guerra espiritual biacuteblica a cruz eacute a vitoacuteria final e
decisivardquo (1 Co 118-25)
A vitoacuteria de Cristo sobre os seres espirituais do mal eacute um tema que precisa ser
abordado de forma profunda e seacuteria para as pessoas que proveacutem do animismo Todo
missionaacuterio que deseja trabalhar com povos animistas precisa ter em mente que o mundo dos
espiacuteritos eacute muito real Apresentando de forma clara e objetiva a supremacia de Cristo sobre
esses seres o missionaacuterio aleacutem de estar comunicando um tema de muita relevacircncia na Biacuteblia
40
estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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estaraacute pavimentando o caminho para prevenir o sincretismo pois o ex-animista entenderaacute que
estando com Cristo estaraacute ao lado do Todo-Poderoso e natildeo precisa temer o mal nem recorrer
aos espiacuteritos para resolver problemas do dia-a-dia Um grupo de Yanomamouml crentes da
Venezuela foi ameaccedilado por outros vizinhos da mesma etnia que sofreriam danos caso
saiacutessem de sua aldeia para qualquer atividade Com o desabastecimento de carne um crente
resolveu desafiar o poder dos xamatildes da outra aldeia Logo ao sair viu um veado e o matou
De volta agrave sua aldeia todos pensavam que havia ocorrido algo a ele A alegria foi completa ao
verem que ele chegava tatildeo raacutepido com a caccedila5 Atraveacutes desse evento natildeo houve duacutevidas sobre
a proteccedilatildeo que Jesus oferecia aos seus seguidores Nas palavras das proacuteprias Escrituras
ldquomaior eacute Aquele que estaacute em noacutes do que aquele que estaacute no mundordquo (1 Jo 44)
1 Eacute preciso poreacutem tomar muito cuidado com essa noccedilatildeo de espiacuteritos territoriais Missioacutelogos
modernos tecircm estabelecido uma teologia de espiacuteritos territoriais muito mais baseados em fenocircmenos religiosos observados ao redor do mundo do que nas proacuteprias Escrituras
2 Cf Daniel 1020-21 3 O termo Guerra Espiritual tem sido usado de vaacuterias maneiras em nosso paiacutes e muito abuso tem sido
comentido no meio evangeacutelico brasileiro A intenccedilatildeo desse trabalho natildeo eacute em hipoacutetese alguma corroborar com essa praacutetica O autor como ministro presbiteriano parte do pressuposto da Teologia Reformada e natildeo deseja dar mais ecircnfase agrave obra de Satanaacutes do que agrave Obra de Cristo
4 O tema da superioridade de Cristo e seu senhorio seratildeo desenvolvidos no proacuteximo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo
5 Isaac de Souza comunicaccedilatildeo pessoal citado com permissatildeo
CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
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De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
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314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
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Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
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sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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CAPIacuteTULO 3
A MENSAGEM DE SALVACcedilAtildeO EM UM CONTEXTO ANIMISTA
Certa feita algueacutem escreveu em um muro a frase ldquoJesus eacute a respostardquo Depois de
algum tempo uma outra pessoa veio e escreveu ldquoE qual eacute a perguntardquo
Falar de salvaccedilatildeo em um contexto missionaacuterio transcultural tem praticamente o mesmo
efeito da ilustraccedilatildeo acima Dizer para uma pessoa que nunca ouviu o evangelho que Jesus
salva eacute algo que soa meio abstrato e vago Ao comunicarmos Cristo em um contexto
transcultural temos que dizer de que ele salva
Quando se examina o tema salvaccedilatildeo nas Escrituras percebe-se a variedade de nuances
que ele possui
O objetivo deste capiacutetulo eacute fazer uma breve anaacutelise do tema salvaccedilatildeo procurando
enfocar os aspectos da teologia biacuteblica que devem receber uma ecircnfase maior por parte
daqueles missionaacuterios que atuam em um contexto de povos animistas
31 Conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo
Haacute vaacuterias respostas biacuteblico-teoloacutegicas agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo A seguir
apresentaremos uma siacutentese de como o tema da salvaccedilatildeo tem sido abordado na histoacuteria da
teologia cristatilde
311 Conceito juriacutedico - salvaccedilatildeo objetiva
Se algueacutem perguntar a um missionaacuterio ocidental ldquoJesus salva de quecircrdquo eacute muito
provaacutevel que ele venha a responder que Jesus salva da pena juriacutedica que pesa sobre todo
pecador O conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo permeia os compecircndios de teologia sistemaacutetica no
ocidente Segundo McGrath (2001 p 135) o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica iniciou-se com o
42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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42
teoacutelogo Ancelmo Este conhecido teoacutelogo cristatildeo desenvolveu o conceito de satisfaccedilatildeo em
relaccedilatildeo agrave Obra expiatoacuteria de Cristo na Idade Meacutedia e de laacute para caacute este conceito foi
absorvido de forma geral especialmente pela igreja do Ocidente Essa forma de ver a obra de
Cristo e a salvaccedilatildeo eacute a razatildeo de encontrarmos na praacutetica de evangelismo ocidental uma ecircnfase
muito grande na consciecircncia da pessoa de que ela eacute pecadora e em sua necessidade de
arrependimento Ainda segundo McGrath (2001 p 136) essa ideacuteia de satisfaccedilatildeo teria sua
origem no sistema juriacutedico alematildeo ou no proacuteprio sistema de penitecircncia da igreja
Embutidos no conceito juriacutedico de salvaccedilatildeo estatildeo os conceitos de culpa e
arrependimento Para o indiviacuteduo ser salvo portanto eacute preciso se arrepender confessar o
pecado recorrer a Jesus (que pagou o preccedilo pelo pecado) para ter a sua diacutevida cancelada O
pano de fundo eacute a noccedilatildeo de que a transgressatildeo eacute um crime e como tal merece a condenaccedilatildeo
Os comentaristas da Biacuteblia de Genebra comentando Romanos 325 dizem
Segundo as Escrituras toda pessoa peca e precisa fazer expiaccedilatildeo de suas culpas poreacutem faltam o poder e os recursos para isso Temos ofendido o nosso Criador cuja natureza eacute odiar o pecado (Jr 444 Hc 113) e punir o mesmo (Sl 54-6 Rm 118 25-9) Os que tecircm pecado natildeo podem ser aceitos por Deus e natildeo podem ter comunhatildeo com ele a menos que seja feita expiaccedilatildeo Uma vez que haacute pecado mesmo nas melhores accedilotildees das criaturas pecadoras qualquer coisa que faccedilamos na esperanccedila de ressarcir os danos soacute pode aumentar a nossa culpa ou piorar a nossa situaccedilatildeo porque ldquoo sacrifiacutecio dos perversos eacute abominaacutevel ao SENHORrdquo (Pv 158) Natildeo haacute modo de a pessoa poder estabelecer a proacutepria justiccedila diante de Deus (Joacute 1514-16 Is 646 Rm 102-3) isso simplesmente natildeo pode ser feito
Um conceito fundamental atrelado ao conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica eacute a ideacuteia de que o
pecado do homem provocou a ira divina e essa ira soacute foi aplacada com a morte sacrificial de
Jesus Cristo na cruz Como diz mais uma vez os comentaristas da Biacuteblia de Genebra
A cruz aplacou Deus Isso significa que ela aplacou a ira de Deus contra noacutes expiando nossos pecados e desse modo removendo-os de diante de seus olhos (Rm 325 Hb 217 1 Jo 22 410) A cruz produziu esse resultado porque em seu sofrimento Cristo assumiu nossa identidade e suportou o juiacutezo retributivo que pesava contra noacutes isto eacute ldquoa maldiccedilatildeo da leirdquo (Gl 313) Ele sofreu como nosso substituto com o registro condenatoacuterio de nossas transgressotildees pregado por Deus na sua cruz como a lista de crimes pelos quais ele morreu (Cl 214 conforme Mt 2737 Is 534-6 Lc 2237)
43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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43
De fato pode depreender-se do texto sagrado que o conceito de salvaccedilatildeo juriacutedica tem
base biacuteblica Tiago diz ldquoDeus eacute o uacutenico que faz as leis e o uacutenico juiz Soacute ele pode salvar ou
destruirrdquo (412a NTLH) O apoacutestolo Paulo desenvolve o mesmo raciociacutenio em sua carta aos
Romanos No capiacutetulo 51 ele diz ldquojustificados pois pela feacute temos paz com Deusrdquo Ele
demonstra assim que o ato de justificaccedilatildeo (juriacutedica) precede o relacionamento com Deus
Comentando esse verso Joatildeo Calvino (1997 p 176) diz que ldquoNingueacutem que natildeo tenha o
temor de Deus se manteraacute em sua presenccedila a natildeo ser que se refugie na graciosa
reconciliaccedilatildeo pois enquanto Deus exercer a funccedilatildeo Juiz todos os homens devem encher-se de
medo e confusatildeordquo
Um outro texto que lanccedila base para a noccedilatildeo de salvaccedilatildeo juriacutedica encontra-se em
Colossenses quando Paulo diz ldquotendo cancelado o escrito de diacutevida que era contra noacutes e que
constava de ordenanccedilas o qual nos era prejudicial removeu- o inteiramente encravando-o na
cruzrdquo (Cl 214 ARA) Portanto natildeo se estaacute pondo em duacutevida aqui a validade biacuteblica do
presente conceito Apenas se estaacute apontando que ao lado desse conceito outros podem ser
incluiacutedos para melhor refletir o plano de Deus para a humanidade
312 Conceito escatoloacutegico
Uma outra nuance do conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo eacute a salvaccedilatildeo escatoloacutegica ou seja a
salvaccedilatildeo que Deus proveraacute para os seus escolhidos livrando-os de sua ira eterna
Eacute nesse sentido que o escritor de Hebreus escreve ldquoAssim tambeacutem Cristo foi
oferecido uma soacute vez em sacrifiacutecio para tirar os pecados de muitas pessoas Depois ele
apareceraacute pela segunda vez natildeo para tirar pecados mas para salvar as pessoas que estatildeo
esperando por elerdquo (Hb 928 NTLH)
44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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44
A salvaccedilatildeo em sua nuance escatoloacutegica tem a sua ecircnfase na noccedilatildeo de resgate Nos
uacuteltimos dias haveraacute destruiccedilatildeo e morte Mas aqueles que crecircem em Cristo seratildeo resgatados
da destruiccedilatildeo e levados ilesos por Ele para o ceacuteu (Mt 24) Essa eacute uma esperanccedila baacutesica no
cristianismo Paulo argumentando a respeito da ressurreiccedilatildeo chega a dizer que se a nossa
esperanccedila em Cristo se concentra apenas a essa vida terrestre somos os mais infelizes de
todos os humanos (1519)
313 Conceito moral - salvaccedilatildeo subjetiva
O conceito de salvaccedilatildeo objetiva de Ancelmo sofreu criacuteticas de teoacutelogos do ocidente
que viam nele uma ecircnfase exagerada na justiccedila de Deus em detrimento do seu amor Seu
principal oponente na Idade Meacutedia foi o teoacutelogo francecircs Pedro Abelardo Abelardo dava uma
ecircnfase maior ao impacto subjetivo da cruz Segundo ele ldquoo propoacutesito e a causa da encarnaccedilatildeo
de Cristo era que Cristo iluminasse o mundo pela sua sabedoria e excitasse-o ao amor de si
mesmordquo (apud McGrath 2001 pp 138-139) Para ele a cruz de Cristo natildeo deveria ser vista
como uma expiaccedilatildeo pelo pecado No dizer de Berkhof ldquoFoi soacute uma manifestaccedilatildeo do amor de
Deus sofrendo em e com suas criaturas pecadoras e tomado sobre si suas enfermidades e
doresrdquo (1981 p 459)
No entanto embora a Biacuteblia deixe claro o amor de Deus como motivo para a salvaccedilatildeo
do pecador (Jo 316) a morte de Cristo eacute considerada pelas Escrituras como sendo muito mais
do que um simples exemplo moral para a humanidade
A teologia de Abelardo se equivoca em natildeo reconhecer o caraacuteter objetivo da salvaccedilatildeo
tatildeo claro nas Escrituras (ver por exemplo Mt 2028 2627 Jo 129 316 1011 1513 2 Co
519-20) Eacute portanto uma teologia falha em sua base Como todos os outros reducionismos
padece da incompletude intriacutensica a esse tipo de abordagem
45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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45
314 Conceito de resgate - Christus Victor
A teologia ocidental foi influenciada pela filosofia (Alberto Roldan apud Kohl amp
Barro 2006 p 254) e por isso buscou explicar a obra de Cristo em termos filosoacuteficos Ao
fazer uso de conceitos loacutegicos e abstratos para explicar o pensamento teoloacutegico estava
contextualizando a mensagem do Evangelho para o homem medieval europeu cuja mente
refletia o pensamento racional objetivo do pensamento filosoacutefico Com isso poreacutem enfatizou
somente um aspecto da obra salviacutefica de Cristo negligenciando outros aspectos da salvaccedilatildeo
Uma nuance da obra da salvaccedilatildeo que ficou um tanto esquecida no mundo ocidental
desde Ancelmo foi o fato de que Cristo veio para destruir as obras de Satanaacutes e conquistar a
vitoacuteria sobre o mal Em seu claacutessico Christus Victor o teoacutelogo sueco Gustav Aulen faz uma
anaacutelise histoacuterica da teologia da expiaccedilatildeo e chega agrave conclusatildeo de que eacute errocircneo conceber a
obra da salvaccedilatildeo somente em seu caraacuteter objetivo (a morte de Cristo reconciliando a
humanidade ao Pai) ou subjetivo (a morte de Cristo inspirando e transformando a
humanidade) Para ele haacute um terceiro aspecto ao qual chama dramaacutetico e claacutessico John Stott
(1991 p 206) explica os conceitos de Aulen dizendo que ldquoeacute dramaacutetico porque concebe a
expiaccedilatildeo como um drama coacutesmico no qual Deus em Cristo luta com os poderes do mal e
conquista a vitoacuteria Eacute lsquoclaacutessicorsquo porque foi a ideacuteia dominante da Expiaccedilatildeo nos primeiros mil
anos da histoacuteria cristatilderdquo Para Aulen ldquoa Obra de Cristo eacute antes e acima de tudo uma vitoacuteria
sobre os poderes que mantecircm a humanidade em cativeiro o pecado a morte e o diabordquo
(1931 p 20) Este autor defende que a teoria do resgate era a visatildeo predominante na igreja
primitiva apoiada pelos Pais da Igreja Oriental desde Irineu ateacute Joatildeo Damasceno Ela tambeacutem
foi o pensamento dominante no Ocidente ateacute Ancelmo (McGrath 2001 p 103) Teoacutelogos de
renome como Oriacutegenes Atanaacutesio Basiacutelio e Joatildeo Crisoacutestomo no Oriente e Ambroacutesio
Agostinho Leatildeo o Grande e Gregoacuterio o Grande no Ocidente tambeacutem a subscreviam
46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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46
Aleacutem da base histoacuterica tem-se tambeacutem base exegeacutetica para se afirmar que a
terminologia biacuteblica conteacutem a noccedilatildeo de resgate como campo semacircntico do verbo grego swzw
ldquosalvarrdquo Segundo Katy Barnwell (2003 p 42) ldquoSalvar ou salvaccedilatildeo pode se referir ao resgate
de uma pessoa de um perigo fiacutesico (como a morte ou sequumlestro por um inimigo) ou ao resgate
de um perigo espiritual Aleacutem da ideacuteia sobre a situaccedilatildeo de perigo que a pessoa foi resgatada
haacute sempre tambeacutem a ideacuteia do lugar seguro para onde a pessoa eacute levadardquo
32 Salvaccedilatildeo em um contexto animista
Diante dessa siacutentese histoacuterica da doutrina da expiaccedilatildeo conveacutem perguntar agora o que
um missionaacuterio enviado a um povo animista deve comunicar sobre o tema salvaccedilatildeo Deve ele
enfatizar o seu caraacuteter objetivo e concentrar a sua mensagem no conceito juriacutedico de
salvaccedilatildeo Ou seria mais apropriado apresentar de iniacutecio a noccedilatildeo de resgate para soacute depois
ensinar o conceito de salvaccedilatildeo como uma obra de satisfaccedilatildeo da honra e da justiccedila divinas
A seguir apresentaremos o que entendemos ser a melhor maneira de abordar o tema
da Obra de Cristo em um contexto animista
321 Salvaccedilatildeo como transferecircncia de domiacutenio
Partimos do pressuposto nesse trabalho de que as verdades biacuteblicas satildeo absolutas e se
aplicam a todos os contextos culturais Poreacutem tambeacutem cremos que cristatildeos de diferentes
eacutepocas e lugares no afatilde de aplicar estas verdades ao seu contexto particular deram ecircnfases a
certos conceitos biacuteblicos partindo do pressuposto de sua proacutepria cultura Com isso deixaram
muitas vezes de enfatizar outros aspectos dessas mesmas verdades Assim no contexto
ocidental altamente influenciado por pensamentos de rigor loacutegico a ecircnfase teoloacutegica recaiu
sobre aspectos mais filosoacuteficos das verdades biacuteblicas Aplicando essas verdades num contexto
intelectualizado e filosoacutefico os cristatildeos ocidentais estavam apresentando as verdades biacuteblicas
47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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47
de forma que elas fossem relevantes para o povo ocidental As ecircnfases filosoacuteficas contudo
quando aplicadas a outros contextos culturais podem ser inoperantes e irrelevantes pelo
menos de imediato Nesse sentido eacute necessaacuterio fazer uma diferenccedila entre teologia e doutrina
ou entre teologia sistemaacutetica e verdades biacuteblicas absolutas (teologia biacuteblica)
Os povos animistas estatildeo muito interessados no aqui e agora Por isso precisamos
apresentar a eles um conceito de salvaccedilatildeo que tambeacutem decirc respostas agraves questotildees imanentes
como eles podem lidar com os fenocircmenos espirituais no dia a dia por exemplo o que Jesus e
sua mensagem dizem sobre o mundo dos espiacuteritos e os perigos cotidianos advindos dele
Quando Jesus salva ele salva aqui e agora ou a salvaccedilatildeo eacute apenas para um futuro pos-
mortem Esses satildeo assuntos pertinentes num contexto animista Bob Dooley que trabalha
com o povo Guarani haacute muitos anos fez uma pesquisa das muacutesicas compostas por este povo
buscando o tema ldquoJesus salva de quecircrdquo Para surpresa geral a pesquisa revelou que o principal
tema dos hinos guarani em resposta agrave referida pergunta era Jesus salva da tristeza1 Ora a
tristeza eacute um sentimento imanente presente no aqui e agora de cada membro da comunidade
guarani Jesus veio para dar conta disso Esse problema natildeo podia ser deixado para depois
para um outro momento para um outro lugar Robert Blaschke (2001 p 33) que foi
missionaacuterio na Aacutefrica comentando a respeito da pregaccedilatildeo do evangelho a povos animistas
diz que ldquoo chamado lsquoevangelho ocidentalrsquo () enquanto biacuteblico nem sempre inclui o restante
do evangelho (isto eacute o senhorio de Jesus) o qual eacute necessaacuterio para confrontar as experiecircncias
de vida com espiacuteritos malignos em culturas natildeo ocidentaisrdquo Como se pode perceber o
argumento de Blaschke natildeo pretende denunciar qualquer tipo de heresia ele somente aponta
para um reducionismo de um todo para apenas algumas de suas partes Com isso ele quer
dizer que um olhar holiacutestico precisa ser lanccedilado na teologia missionaacuteria ao se propagar o
evangelho para povos natildeo ocidentais
48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
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a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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48
3211 O conceito de senhorio na cosmovisatildeo animista
Um conceito altamente relevante para pessoas que vecircm de um contexto animista eacute
Jesus salva do domiacutenio (senhorio2) dos espiacuteritos
A cosmovisatildeo animista eacute repleta do conceito de senhorio Quase tudo no universo tem
seu dono metafiacutesico os animais (terrestres aquaacuteticos e aeacutereos) as frutas tubeacuterculos e
legumes (cultivados ou natildeo) a aacutegua a floresta e assim por diante As pessoas animistas
apesar de natildeo se considerarem posse dos espiacuteritos vivem em funccedilatildeo deles sob pena de
receber castigo severo na forma de doenccedilas infortuacutenios e ateacute morte caso os desobedeccedilam Ou
seja haacute uma posse velada natildeo declarada mas que pode ser percebida O missionaacuterio que
trabalha com povos animistas precisa dar resposta a todas essas questotildees quando fala de
salvaccedilatildeo Se a teologia do missionaacuterio natildeo tem lugar para esse conceito de transferecircncia de
senhorio o que aconteceraacute eacute que as pessoas iratildeo aceitar o evangelho como forma de se salvar
da condenaccedilatildeo pos-mortem (salvaccedilatildeo transcendente) mas continuaraacute recorrendo ao animismo
para resolver os problemas do dia-a-dia (salvaccedilatildeo imanente) Caso o conceito de salvaccedilatildeo
ensinado pelo missionaacuterio natildeo contemple as questotildees imanentes o neo-convertido passaraacute por
grandes conflitos em relaccedilatildeo agrave sua antiga religiatildeo e sofreraacute a tentaccedilatildeo de adequaacute-lo ao novo
sistema produzindo uma feacute sincreacutetica Quando o seu filho adoecer por exemplo ele recorreraacute
ao pajeacute quando algueacutem morrer desconfiaraacute que aquela morte foi fruto de alguma quebra de
regra determinada no mundo dos espiacuteritos e buscaraacute um ato compensatoacuterio para que assim
traga reequiliacutebrio ao mundo espiritual Tem-se verificado casos de cristatildeos indiacutegenas no Brasil
que ficam nesse dilema Foram ensinados pelos missionaacuterios que estatildeo salvos e tecircm vida
eterna garantida no ceacuteu Robison Cavalcante comentando esse tipo de salvaccedilatildeo que
contempla somente o transcendente diz que para muitos cristatildeos a salvaccedilatildeo eacute como se
estivessem em uma sala de embarque prontos para ir para o ceacuteurdquo Poreacutem esses cristatildeos
advindos do animismo precisam ser ensinados a como viver ateacute que cheguem ao ceacuteu Natildeo
49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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49
sabem a quem recorrer em situaccedilotildees como as mencionadas acima Em muitos casos por falta
de ensino cria-se uma religiatildeo sincreacutetica uma combinaccedilatildeo do sistema cristatildeo e do
pensamento animista A maioria das pessoas que professam a feacute Catoacutelica no Brasil tambeacutem
faz uso de praacuteticas animistas Infelizmente ateacute mesmo algumas denominaccedilotildees chamadas de
evangeacutelicas estatildeo utilizando certas praacuteticas que cheiram completamente a animismo onde haacute
uso de sal grosso aacutegua benta do rio Jordatildeo fitas no pulso sessotildees de exorcismos etc
Infelizmente algumas denominaccedilotildees chamadas de neo-pentecostais deveriam ser chamadas
de ldquoneo-animistasrdquo Nesse sentido essas denominaccedilotildees praticam um sincretismo prejudicial a
si mesmas e ao envangelho em geral
33 O que a Biacuteblia fala sobre senhorio
331 Ocorrecircncias do termo ldquosenhorrdquo na Biacuteblia
A Biacuteblia traduccedilatildeo Atualizada de Joatildeo Ferreira de Almeida usa o termo ldquosenhorrdquo
(vaacuterios termos hebraicos e grego kurios) seis mil oitocentos e trinta e oito vezes O termo eacute
usado como pronome de tratamento (ex Gn 236) ao senhorio humano (ex Ef 6 5 Cl 322)
Mas em grande parte o uso de ldquosenhorrdquo eacute uma referecircncia a Deus eou a Jesus e se refere ao
domiacutenio de Deus sobre um territoacuterio (1 Co 1026) um povo (Ex 62-7) ou sobre a criaccedilatildeo (Mt
1125) No Novo Testamento haacute igual ou maior ecircnfase a Jesus como Senhor do que como
Salvador Tanto no AT como no NT portanto salvaccedilatildeo implica em aceitar o senhorio de
Deus No capiacutetulo 6 de Ecircxodo quando Deus envia Moiseacutes para resgatar os israelitas das matildeos
do Faraoacute fica claro que Deus natildeo estaacute simplesmente livrando os israelitas do cativeiro (e
agora eles podem fazer o que quiserem) Ele estaacute se apropriando do povo para ser o seu
Senhor
50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
51
malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
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salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
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58
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50
No Novo Testamento o senhorio de Deus se revela na pessoa de Jesus A Biacuteblia
afirma que Jesus natildeo apenas morreu para nos salvar dos pecados mas para ter controle
absoluto da nova criaccedilatildeo da qual os crentes satildeo as primiacutecias Em Romanos 149 Paulo diz
ldquoFoi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor tanto de
mortos como de vivosrdquo
Vale lembrar que na igreja primitiva os cristatildeos sofriam atrocidades natildeo porque se
convertiam silenciosamente em seu escrutiacutenio iacutentimo mas porque confessavam a Cristo como
Senhor e nesse sentido colocavam em cheque o senhorio pretendido pelos ceacutesares
imperadores Era uma questatildeo de confissatildeo puacuteblica a respeito de quem realmente era o
Senhor
34 Em que sentido o mundo jaz no maligno
Natildeo eacute possiacutevel abordar o tema da mudanccedila de senhorio sem abordar o problema
teoloacutegico do poder de satanaacutes Eacute preciso se perguntar em que sentido Satanaacutes tem controle
sobre o mundo ou sobre as pessoas especialmente se tratando de um mundo criado e mantido
por um Deus soberano
Conveacutem observar que ao se referir agrave estrutura de poder de Satanaacutes a Biacuteblia natildeo a
caracteriza como reino e sim como impeacuterio A diferenccedila baacutesica entre os dois eacute que o uacuteltimo eacute
construiacutedo agrave forccedila enquanto o primeiro adveacutem da autoridade inerente do seu soberano Deus
reina porque lhe eacute inerente reinar Satanaacutes tem certo domiacutenio imperial mas este domiacutenio natildeo
eacute legiacutetimo aleacutem de ser temporaacuterio
Embora a Biacuteblia apresente de forma clara o fato de que Deus eacute soberano e tem
controle absoluto sobre toda a criaccedilatildeo ela tambeacutem reconhece que Satanaacutes exerce influecircncia
sob as pessoas e as manteacutem cativas Na Primeira Carta de Joatildeo no capiacutetulo 5 verso 19 por
exemplo eacute dito que o mundo jaz no maligno A traduccedilatildeo NTLH interpreta a expressatildeo ldquojaz no
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malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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malignordquo como uma referecircncia ao controle de Satanaacutes e a traduz como ldquoo mundo todo estaacute
debaixo do poder do malignordquo Segundo Craig Keener (1993 p 745) esse pensamento
joanino vem da noccedilatildeo judaica de que todas as naccedilotildees exceto os proacuteprios judeus estavam sob
o domiacutenio de Satanaacutes e seus anjos Essa mesma ideacuteia eacute encontrada tambeacutem no Evangelho de
Joatildeo capiacutetulo 12 verso 31 onde o autor chama Satanaacutes de ldquopriacutencipe desse mundordquo O termo
grego traduzido pela ARA por ldquopriacutenciperdquo eacute eρχων Esse eacute o termo mais comum para se
referir a governantes A traduccedilatildeo NTLH reflete isso e traduz a palavra como ldquoaquele que
mandardquo
Outro trecho da Escrituras que admite o controle de satanaacutes sobre as pessoas que natildeo
tecircm a Cristo eacute Colossenses 113 onde diz que Jesus nos libertou do impeacuterio das trevas e nos
transportou para o reino do filho do seu amorrdquo Conveacutem observar dois substantivos e dois
verbos neste texto Os substantivos lsquoimpeacuteriorsquo para se referir agrave estrutura de poder do mal e
lsquoreinorsquo para a esfera de poder de Deus satildeo recorrentes Jaacute os verbos lsquolibertarrsquo e lsquotransportarrsquo
respectivamente significam natildeo soacute o ato de Deus invadir o territoacuterio humano para libertar os
indiviacuteduos mas tambeacutem conduzi-los ateacute um lugar seguro A linguagem usada por Paulo nesse
texto eacute semelhante agrave usada no livro de Ecircxodo quando Deus resgatou o povo de Israel do
cativeiro do Egito Assim nesta escatologia inaugurada os filhos de Deus estatildeo seguros
protegidos e marchando rumo agrave Canaatilde celestial natildeo precisando temer as forccedilas espirituais
que se lhes opotildeem
35 A contextualizaccedilatildeo e a mensagem de salvaccedilatildeo
Um pressuposto que permeia este trabalho desde o seu iniacutecio embora nunca
mencionado explicitamente eacute que o processo de comunicaccedilatildeo do evangelho deve ser feito de
forma contextualizada Embora o termo contextualizaccedilatildeo seja visto das mais variadas formas
toma-se aqui a noccedilatildeo de contextualizaccedilatildeo criacutetica adotada por Paul Hiebert (1985 p 186)que
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a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
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36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
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Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
ARNOLD Clinton E Powers of Darkness-Principalities amp Powers in Paulacutes Letters Illinois InterVasity Press 1992a
_________ Ephesians Power and Magic the Concept of Power in Ephesians in Light of Its Hisorical Setting Grand Rapids Baker Book House 1992b
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60
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ZUKERAN Patrick A Cosmovisatildeo do Animismo httpwwwprobeorgcults-and-world-religionscults-and-world-religionsthe-world-of-animismhtml Acessado em 21122006
52
a define como o ato de avaliar a cultura agrave luz das Escrituras sem aceitaccedilatildeo ou condenaccedilatildeo
preacutevias de conceitos ou praacuteticas
Percebe-se nos autores biacuteblicos uma preocupaccedilatildeo de apresentar o Evangelho de
forma especiacutefica para cada povo particular isto eacute o Evangelho natildeo eacute visto como um ldquopacote
fechadordquo para ser aberto em qualquer contexto Observando-se os autores dos quatro
Evangelhos percebe-se que cada um apresenta a mensagem a respeito de Jesus de forma
peculiar de acordo com a audiecircncia original para quem o livro fora escrita Mateus por
exemplo apresenta Jesus como o Messias uma vez que escreveu o seu evangelho para os
judeus Jaacute Lucas que escreveu o seu evangelho para os gregos apresenta Jesus como o
homem perfeito Marcos por sua vez apresenta aos romanos Jesus o servo perfeito
Finalmente o evangelista Joatildeo que escreveu o seu evangelho para uma audiecircncia geral
apresenta Jesus como o filho eterno de Deus
O apostolo Paulo tambeacutem apresentou o Evangelho de forma contextualizada e
associou a verdade do Evangelho a conhecimentos preacutevios dos povos com os quais trabalhou
O livro de Atos dos Apoacutestolos apresenta a sua estrateacutegia para os atenienses quando associou
o ldquoDeus desconhecidordquo dos atenienses ao Deus Supremo e verdadeiro das Escrituras Ao fazecirc-
lo partiu do conhecido para o desconhecido Pode-se resumir portanto esse toacutepico com as
palavras do missioacutelogo e antropoacutelogo Ronaldo Lidoacuterio ao definir a contextualizaccedilatildeo da
seguinte maneira
Contextualizar o evangelho eacute traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo natildeo seraacute apenas um princiacutepio abstrato ou mera doutrina importada mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensatildeo e criteacuterio baacutesico em relaccedilatildeo aos valores culturais que formam a substacircncia com a qual avaliamos o existir humano (2006)
A pergunta que se faz necessaacuteria a esta altura eacute como apresentar de forma relevante
e contextualizada o Evangelho em um contexto animista A seguir apresentamos o que
consideramos ser a forma mais adequada de se comunicar a mensagem de salvaccedilatildeo neste
contexto especiacutefico
53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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53
36 Teologia do Reino versus teologia da conversatildeo
De forma geral missionaacuterios ocidentais comeccedilam o processo de evangelizaccedilatildeo
enfatizando o pecado do indiviacuteduo e sua necessidade de salvaccedilatildeo individual Mas como
observa Van Rheenen (1991 p 129) ldquotatildeo intenso individualismo eacute estranho agrave maioria dos
povos animistasrdquo Essa ecircnfase exagerada em aspectos individualistas eacute chamada por Van
Rheenen (1991 p 130) de ldquoteologia da conversatildeordquo Para ele o problema dessa teologia eacute que
conquanto apresente aspectos biacuteblicos verdadeiros falha em natildeo daacute ao novo convertido vindo
do mundo animista uma visatildeo global de Deus e de sua obra na terra A salvaccedilatildeo do indiviacuteduo
natildeo deve ser vista como um ato isolado agrave parte do plano coacutesmico de Deus
Van Rheenen propotildee como alternativa para a comunicaccedilatildeo do evangelho em
contextos animistas o que ele chama de lsquoteologia do Reinorsquo Segundo ele essa teologia eacute
apropriada por vaacuterias razotildees A seguir apresentaremos os seus principais argumentos
Primeiro a teologia do Reino provecirc um modelo de interpretaccedilatildeo do mundo espiritual
baseado na Palavra de Deus Ele explica ldquoIncorporaccedilatildeo espiritual e apaziguamento de
espiacuteritos tanto malevolentes como ambivalentes satildeo da esfera de Satanaacutes a adoraccedilatildeo do
maravilhoso e majestoso Criador eacute da esfera de Deusrdquo (1991 p 139) Aleacutem disso enquanto
no reino de Satanaacutes moralidade eacute relativa e determinada pela relaccedilatildeo com os seres espirituais
no Reino de Deus ela eacute absoluta e eacute definida por um Deus santo que espera que seu povo
reflita Sua natureza
Segundo a teologia do Reino apresenta ao crente o Reino de Deus o qual equipa os
crentes para atacar e derrotar os poderes de Satanaacutes Pelo poder de Cristo fetiches altares
feiticcedilos satildeo destruiacutedos A Palavra de Deus e a oraccedilatildeo satildeo apresentados como armas poderosas
para neutralizar as setas do inimigo Pertencer ao Reino de Cristo eacute pertencer a quem eacute mais
forte do que os espiacuteritos (1 Jo 44)
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
ARNOLD Clinton E Powers of Darkness-Principalities amp Powers in Paulacutes Letters Illinois InterVasity Press 1992a
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ZUKERAN Patrick A Cosmovisatildeo do Animismo httpwwwprobeorgcults-and-world-religionscults-and-world-religionsthe-world-of-animismhtml Acessado em 21122006
54
Terceiro a teologia do Reino natildeo faz qualquer dicotomia entre o que eacute natural e o
que eacute sobrenatural Eacute portanto uma teologia integral Nas palavras de Van Rheenen ldquoo
missionaacuterio trabalhando em uma sociedade animista precisa crer no domiacutenio de Deus sobre
todas as esferas da vidardquo (Van Rheen 1991 p 140)
Quarto enquanto a lsquoteologia da conversatildeorsquo tem caraacuteter individualista a teologia do
Reino eacute sistecircmica Seu objetivo eacute permear todas as esferas da cultura e natildeo somente aquilo
que eacute visto como lsquoespiritualrsquo Como Van Rheenen diz ldquonatildeo soacute o indiviacuteduo se torna leal ao
Deus Criador em Jesus Cristo mas os costumes a moral e leis que foram distorcidas por
Satanaacutes tambeacutem precisam ser cristianizadasrdquo (1991 p 140)
37 A luta contra o sincretismo
Um dos grandes desafios que um crente vindo do animismo enfrenta diz respeito ao
abandono de praacuteticas impostas pelo mundo dos espiacuteritos Enfatizar portanto que ele pertence
a um novo dono eacute importante porque ele entenderaacute que a partir daquele momento viveraacute sob
as normas e padrotildees do seu novo dono Ele entenderaacute que natildeo estaacute mais sujeito ao seu antigo
ldquodonordquo e portanto natildeo precisa temecirc-lo nem obedececirc-lo O seu novo Dono tem mais poder do
que todos os espiacuteritos (1 Jo 44) e os derrotou e humilhou na cruz (Cl 215) Por isso o crente
natildeo pode continuar servindo aos espiacuteritos (1 Co 1021) Deve sim viver para agradar o seu
Dono (Cl 26 323) Contudo ele soacute vai perceber esse poder maior nos confrontos de poderes
ocorridos na experiecircncia dos membros de sua comunidade incluindo ele proacuteprio Novamente
isso natildeo se daacute em uma esfera somente do mundo do aleacutem mas tambeacutem em um mundo do
aqueacutem na vivecircncia do dia-a-dia onde os espiacuteritos atuam como qualquer outro ser vivo fiacutesico
38 A relevacircncia do tema para hoje
O conceito biacuteblico de salvaccedilatildeo como mudanccedila de senhorio natildeo eacute relevante somente
para pessoas advindas do animismo Num paiacutes como o Brasil em que se vecirc o nuacutemero de
55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
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democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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VAN RHEENEN Gailyn Communicating Christ in Animistic Contexts Pasadena CA William Carey Library 1991
WAGLEY Charles amp GALVAtildeO Eduardo Os Iacutendios Tenetehara Rio de Janeiro Departamento de Imprensa Nacional 1961
WIESE Gloria Addressing the Issue of Celestial Beings httpwwwaslansplacecompdfCelestialBeingspdf Acessado em 25122006
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55
crentes aumentar consideravelmente ao mesmo tempo em que natildeo se vecirc as pessoas
demonstrando um compromisso de vida seacuteria para com Deus eacute importante mostrar que Deus
natildeo quer salvar apenas para livrar o homem de uma condenaccedilatildeo eterna oferecendo a ele uma
senha de salvo conduto para o dia do incecircndio Ele quer um povo para si quer conviver com
ele quer conduzi-lo como Senhor quer produzir uma nova criaccedilatildeo para Sua honra e gloacuteria Eacute
o que nos fala 1 Pe 29 ldquoEle nos conduziu das trevas para a sua maravilhosa luz para sermos
uma raccedila eleita um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo de Sua propriedade exclusiva
a fim de proclamarmos as Suas virtudes a outras pessoasrdquo
1 Comunicaccedilatildeo pessoal Citado com permissatildeo
2 Estamos usando o termo domiacutenio ou senhorio aqui partindo do ponto de vista ecircmico do
proacuteprio animista embora sob o ponto de vista teoloacutegico possa-se discutir se de fato satanaacutes eacute senhor
das pessoas
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
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poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
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ZUKERAN Patrick A Cosmovisatildeo do Animismo httpwwwprobeorgcults-and-world-religionscults-and-world-religionsthe-world-of-animismhtml Acessado em 21122006
CONCLUSAtildeO
Ao longo deste trabalho discorremos a respeito da cosmovisatildeo e das praacuteticas animistas
procurando apresentar os principais aspectos da sua religiosidade
No capiacutetulo primeiro vimos que o animista acredita em um mundo repleto de espiacuteritos os
quais controlam a natureza Para que o homem consiga viver em equiliacutebrio faz-se necessaacuterio
dominar pela manipulaccedilatildeo essas forccedilas espirituais que controlam o mundo Essa manipulaccedilatildeo se
daacute atraveacutes de foacutermulas maacutegicas praacutetica de rituais e a utilizaccedilatildeo de mediadores especialistas no
mundo dos espiacuteritos os chamados pajeacutes ou xamatildes figuras de grande importacircncia no interior das
comunidades em que vivem Vimos tambeacutem que o senso de coletividade eacute uma caracteriacutestica
marcante do animista e que o individualismo eacute visto no miacutenimo com extrema desconfianccedila
No capiacutetulo dois fizemos uma viagem panoracircmica pelas Escrituras a fim de investigar
como elas apresentam o mundo dos espiacuteritos Vimos que as Escrituras natildeo se preocupam em
argumentar a respeito da existecircncia dos espiacuteritos Elas simplesmente assumem que eles existem
como um fato consumado Quanto ao Antigo Testamento vimos que os espiacuteritos maus estatildeo
associados aos iacutedolos pagatildeos deuses das naccedilotildees vizinhas a Israel Ficou evidente pelos textos
apresentados que Deus condena veementemente o culto e a veneraccedilatildeo a esses seres No Novo
Testamento vimos que tanto Jesus como os seus disciacutepulos utilizaram a praacutetica de expulsar
democircnios e essa praacutetica estava intimamente associada aos sinais do Evangelho do Reino Vimos
tambeacutem a teologia paulina em relaccedilatildeo ao mundo dos principados e potestades especialmente no
contexto de sua Carta aos Efeacutesios Salientou-se o fato de que para o apoacutestolo um crente advindo
do animismo natildeo precisa temer ou obedecer a esses espiacuteritos pois eles foram derrotados por
Cristo na cruz A vitoacuteria de Cristo poreacutem natildeo exime a igreja de ter que colocar a armadura de
57
Deus para se engajar nessa guerra de Cristo e do seu Reino contra as hostes malignas de
Satanaacutes
Finalmente no capiacutetulo trecircs analisou-se o conceito de salvaccedilatildeo em um contexto animista
A pesquisa procurou apresentar uma siacutentese da resposta agrave pergunta ldquoJesus salva de quecircrdquo Viu-se
que haacute vaacuterias nuances biacuteblicas no que diz respeito agrave obra de Cristo e a salvaccedilatildeo dos homens
Cristo veio para satisfazer a justiccedila divina aviltada pelo pecado Ele tambeacutem veio para destruir as
obras de Satanaacutes e resgatar a humanidade do cativeiro em que se encontra Viu-se que esta
nuance especiacutefica da Obra de Cristo deve ser enfatizada em um contexto animista pois ao
comunicar esse fato o missionaacuterio estaraacute dando seguranccedila aos novos crentes ao mesmo tempo
em que daacute um passo importante para evitar o sincretismo Por fim apresentou-se a Teologia do
Reino como alternativa segura agrave comunicaccedilatildeo do evangelho em um contexto animista A teologia
do Reino com sua visatildeo integral do plano de Deus natildeo soacute em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo mas tambeacutem
em termos do mundo todo visa a transformaccedilatildeo e conformaccedilatildeo de toda a terra aos padrotildees do
Reino de Deus Ela eacute ao nosso ver a forma biacuteblica e correta de apresentar um Deus todo-
poderoso criador do ceacuteu e da terra que estaacute ativamente transformando o mundo caiacutedo e usurpado
por Satanaacutes para a Sua Honra e para a Sua Gloacuteria
Conclui-se esse trabalho com a convicccedilatildeo de que para que o missionaacuterio transcultural
comunique de forma eficaz o Evangelho em um contexto animista ele precisa repensar a sua
proacutepria teologia retornar agraves Escrituras e ser desafiado por ela Eacute preciso estar consciente de que o
mundo dos espiacuteritos eacute real pois a Biacuteblia assim o apresenta Eacute preciso retornar agraves palavras do
apoacutestolo Paulo em Romanos 116 quando diz que o Evangelho eacute o ldquopoder de Deus para a
salvaccedilatildeordquo Eacute esse evangelho de poder que apresenta um Cristo vitorioso sobre Satanaacutes e suas
hostes malignas que soaraacute como Boas Novas aos ouvidos daqueles que servem a criatura em vez
58
do Criador e que ainda estatildeo no impeacuterio das trevas aguardando para serem transportados para o
Reino do Cristo vitorioso
59
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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