comunicaÇÃo e antropologia por meio da imagem … · 2017. 2. 22. · pela construtibilidade da...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP RENATA MIRANDA DE OLIVEIRA COMUNICAÇÃO E ANTROPOLOGIA POR MEIO DA IMAGEM TÉCNICA MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica sob a orientação do Prof a . Dr a . Lucrécia D´Alessio Ferrara. SÃO PAULO 2007

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULOPUC-SP

RENATA MIRANDA DE OLIVEIRA

COMUNICAÇÃO E ANTROPOLOGIA

POR MEIO DA IMAGEM TÉCNICA

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadorada Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,como exigência parcial para obtenção do título deMestre em Comunicação e Semiótica sob aorientação do Profa. Dra. Lucrécia D´AlessioFerrara.

SÃO PAULO2007

2

Banca Examinadora

________________________________________

________________________________________

________________________________________

3

Agradecimentos

A Profa. Dra. Lucrécia D´Alessio Ferrara, pelas orientações precisas, e também pelo incentivo epaciência.

Regiane e Sadao

Minha mãe, por tornar mais amenas as dificuldades encontradas; e meu pai, que, a sua maneira,facilitou a realização deste e de outros projetos.

Cláudio, que ficou comigo justamente quando eu tinha menos de mim para oferecer. Seu carinhoe compreensão, além do apoio prático, foram fundamentais.

Cleo, que fez com que eu mantivesse o mínimo de lucidez necessária para terminar o mestrado.

Aos amigos que compreenderam minha ausência e torceram por mim; e aos meus alunos, quemesmo indiretamente, compartilharam comigo as dificuldades e alegrias desse período.

A Capes, pela concessão de bolsa modalidade II durante 18 meses.

4

Este trabalho teve o objetivo de avaliar como as relações comunicativas geradas pelo

signo fotográfico podem ser associadas à produção de conhecimento em Antropologia. De um

modo geral, as Ciências Sociais baseiam-se no argumento de autoreferencialidade da fotografia

para fazer dela um recurso de produção de dados e inferências de hipóteses. Contudo, sabemos

que as possibilidades comunicatvas da imagem extrapolam esse caráter de objetividade. Sendo

assim, buscamos compreender o grau e a natureza da informação produzida a partir de diferentes

arranjos sígnicos fotográficos. O corpus de análise foi delimitado na obra do fotógrafo e etnógrafo

Pierre Verger. Sua escolha deve-se à congregação de traços existentes nas fotografias que, ora

remetem ao etnógrafo em busca do discurso científico, ora ao fotógrafo construindo mensagens

com objetivos comunicativos mais amplos. Recorre-se à discriminação semiótica da composição

da imagem a fim de observar seu modo de atuação como elemento, ao mesmo tempo,

metodológico e epistemológico. Foi possível observar como as diferentes estratégias de

construção do signo fotográfico determinam sua comunicabilidade e complexidade

informacional, e assim relacioná-las a alguns parâmetros que norteam a produção de

conhecimento em Antropologia. Há casos em a imagem, construída a partir de uma visualidade

mais convencional, estabelece uma relação de adequação ao discurso científico inaugural da

Antropologia e Etnografia como ciências. É o caso de fotografias baseadas no argumento de

indicialidade desse signo, que também apresentam a dominância da função referencial. Em

outros casos, dada a natureza polifônica do signo visual, a imagem fotográfica mostra-se como

um campo repleto de possibilidades comunicativas, integrando, em sua composição, elementos

capazes de gerar mensagens mais refinadas sobre o objeto e, portanto, representam a

possibilidade de produção de conhecimento intercultural e intersubjetivo, correlacionada a

novos paradigmas da pesquisa antropológica. Para tanto, primeiramente percorremos os

clássicos da Etnografia, destacando o Funcionalismo Britânico e a Escola Americana, para

compreendermos suas orientações e possíveis influências sobre a produção de imagens na

pesquisa antropológica . Em seguida, recorremos aos debates atuais da disciplina, que propõem

novos paradigmas para o trabalho empírico em Antropologia e suas relações com a Comunicação,

concentrando-nos nas obras de Néstor Garcia Canclini, Clifford Geertz e James Clifford. Para

estes autores, a etnografia deve ser encarada como um recurso de apreensão de traços

intersubjetivos e interculturais e, neste panorama, a visualidade mostra-se como uma linguagem

repleta de possibilidades sígnicas. Para alcançarmos este ponto, utilizamos a teoria semiótica

da cultura a partir das proposições de análise sistêmica de Iuri Lótman, percebendo as

reordenações mútuas e trocas informacionais entres os sistemas abordados. As análises também

farzem referência aos conceitos desenvolvidos por Charles Sanders Peirce, no tocante à

interpretação das imagens como sígnos mediadores do conhecimento; e a identificação de funções

de linguagem dominantes na mensagem, desenvolvida pelo lingüista Roman Jakobson.

Palavras-chave: Fotografia – Antropologia – Pierre Verger – Comunicação

Resumo

5

Abstract

This paper had the objective of evaluating how the communicative relationships generated

by the photographic sign can be associated to the knowledge production in Anthropology. In

general, the Social sciences base on the argument of self-referenciality of the picture to do of her

a resource of data production and inferences of hypotheses. However, we know that the

communicative possibilities of the image extrapolate that objectivity character. Being like this,

we looked for to understand the degree and the nature of the information produced starting

from different arrangements photographic signs. The analysis corpus was delimited in the

photographer’s work and ethnographer Pierre Verger. Her choice is due to the congregation of

existent lines in the pictures that, now they send to the ethnography in search of the scientific

speech, for now to the photographer building messages with wider communicative objectives.

It is fallen back upon the discrimination semiotics of the composition of the image in order to

observe his way of performance as element, at the same time, methodological and

epistemological. It was possible to observe as the different strategies of construction of the

photographic sign determine her communication and complexity of information, and like this

to relate them the some parameters that orientate the knowledge production in Anthropology.

There are some images, built starting from a more conventional presentation; it establishes an

adaptation relationship to the inaugural scientific speech of the Anthropology and Ethnography

as sciences. It is the case of pictures based in the argument of indiciality of that sign, that you/

they also present the dominance of the function referential. In other cases, given the polyphonic

nature of the visual sign, the photographic image is shown as a field of communicative

possibilities, integrating, in her composition, elements capable to generate more refined messages

on the object and, therefore, they represent the possibility of production of knowledge shared,

correlated to new paradigms of the anthropological research. For so much, firstly we traveled

the classic of the Ethnography, detaching the British Functionalism and the American School,

for us to understand their orientations and possible influences on the production of images in

the anthropological research. Soon afterwards, we fell back upon the current debates of the

discipline, that they propose new paradigms for the empiric work in Anthropology and their

relationships with the Communication, concentrating on the works of Néstor Garcia Canclini,

Clifford Geertz and James Clifford. For these authors, the ethnography should be faced as a

resource of apprehension of lines intersubjective and intercultural and, in this view, the visuality

is shown as a replete language of possibilities of sense. For us to reach this point, we used the

theory semiotics of the culture starting from the propositions of systemic analysis of Iuri Lótman,

noticing the mutual realignments and changes of information enters the approached systems.

The analyses also make reference to the concepts developed by Charles Sanders Peirce,

concerning the interpretation of the images as signs mediators of the knowledge; and the

identification of dominant language functions in the message, developed by the linguistic Roman

Jakobson.

Word-key: Picture - Anthropology - Pierre Verger - Communication

6

Introdução: Imagem Técnica e Antropologia....................................................................07

Capítulo I – O desenvolvimento da Disciplina Etnográfica.........................................11

1.1. O método etnográfico como controle..................................................................12

1.1. 1. A Observação Participante e o Funcionalismo Britânico........................141.1.2. O Culturalismo e a Escola Americana......................................................191.1.3. A imagem técnica como objetivação dos sentidos...................................21

1.2. O método etnográfico como diálogo....................................................................29

1.2.1. Visualidade e produção de conhecimento................................................38

Capítulo II – Pierre Verger e o ofício fotográfico/etnográfico.....................................43

2.1. A fotografia vai a campo......................................................................................472.2. A fotografia como registro comprativo..............................................................612.3. A fotografia como ordem ocidental....................................................................652.4. A fotografia que ensina a ver.............................................................................72

Capítulo III – A fotografia como ruptura.......................................................................80

3.1. O menino e a pipa...........................................................................................833.2. A roda de capoeira.........................................................................................91

Considerações Finais.........................................................................................................97

Índice de imagens..............................................................................................................101

Bibliografia.........................................................................................................................102

Índice

7

Imagem Técnica e Antropologia

Ciência criada ao longo do século XVIII, a Antropologia, destinada a compreender

o ser humano em seus aspectos sociais e culturais, necessitou desenvolver instrumentos

capazes de analisar seu objeto de interesse, bastante peculiar comparado aos das demais

ciências. “Escrever a cultura”, tradução livre do termo Etnografia, surge como um método

instrumental que caracteriza a natureza linear na etapa inicial do trabalho antropológico.

Como tal, estabelece uma série de regras de observação, coleta de dados e de descrição

baseada na pesquisa in loco, com o intuito de produzir elementos válidos para reflexões

científicas posteriores. Em seus primórdios, essa espécie de laboratório das Ciências

Sociais não estava preparada para prever a complexidade de relações e problemas

considerados atualmente, inclusive no que se refere à utilização de imagens captadas

por meio de recursos técnicos como aparato metodológico e epistemológico na produção

de conhecimento. Por algum tempo, esse tipo de imagem foi considerada apenas um

elemento acessório, pouco investigada em sua potencialidade hermenêutica. Mas,

recentemente, o debate em torno de sua utilização intensificou-se e aprimorou-se,

trazendo questões interdisciplinares latentes, algumas das quais abordaremos neste

trabalho.

O surgimento da fotografia incitou no século XIX o debate sobre a produção de

imagens aparentemente sem a interferência subjetiva de um autor, supostamente

possibilitada pelos recursos tecnológicos de captação de imagem do período. Esse ideário

estava nitidamente correlacionado ao pensamento científico-filosófico do positivismo,

que norteava a época, inclusive na formulação e legitimação das então recentes Ciências

Sociais, como a Sociologia, a Psicologia e a Antropologia.

8

A partir desses pressupostos, a Antropologia fez uso do recurso fotográfico

como mais um instrumento metodológico para a obtenção de dados empíricos, abrindo

margem até mesmo para especulações acerca do surgimento de uma nova disciplina

denominada Antropologia Visual. Entre o fim do século XIX e início do século XX,

justificava-se o uso desse recurso para registrar sociedades e culturas em processo

de desaparecimento, pois seu emprego era considerado capaz de produzir um registro

objetivo e isento de valores sobre essas sociedade, ou seja, um material essencialmente

autoreferencial que incorporava-se às práticas etnográficas surgidas no período, com

destaque para a chamada “Observação Participante” derivada do Estruturalismo

Britânico; e para os estudos culturalistas da Escola Americana.

Passado esse primeiro momento, a neutralidade e extrema objetividade da

imagem produzida por vias tecnológicas começam a ser questionadas, dentre outros

fatores, pela consideração da fotografia e do cinema como formas de expressão

artísticas, e também por suas utilizações como meios de comunicação. Assim como

um texto verbal apresenta-se repleto de intencionalidades, ainda que aparentemente

proponha-se neutro e científico, os usos histórico-sociais das imagens técnicas

demonstram o quanto elas representam em termos de possibilidades comunicativas.

Atualmente, a compreensão da mensagem visual, inclusive fotográfica, supera a

interpretação apenas de seu referente, propondo a análise de significados construídos

a partir de elementos sintáticos próprios desta linguagem.

O emprego da fotografia na prática científica antropológica trouxe um novo

desafio para a disciplina: compreender o grau de comunicabilidade e informação gerada

9

pela construtibilidade da imagem sobre o objeto científico da Ciências Sociais. Esse

aspecto, sem dúvida, amplia o caráter interdisciplinar da Antropologia. A imagem

produzida nesse contexto precisa ser encarada como algo além de um registro acessório

ou simplesmente como mais um elemento de descrição dos relatos sociais típicos das

monografias etnográficas. Superar este aspecto significa considerar que há novas

possibilidades de conhecimento a partir da produção e análise dessas imagens. Para

tanto, abordaremos alguns princípios antropológicos fundamentais, entre os quais, os

paradigmas clássicos da Etnografia, com destaque para o Funcionalismo britânico e

para a Escola americana, com o intuito de verificarmos possíveis relações entre estes

conceitos e algumas estratégias sígnicas de produção de imagem.

Entre os debates contemporâneos que revisam os preceitos metodológicos e

epistemológicos da Etnografia, existem aqueles que se direcionam para questões de

linguagem e comunicação. Eles consideram que, numa nova perspectiva de

interculturalidade e intersubjetividade do trabalho etnográfico, sua reflexão necessita

pensar-se talvez como uma linguagem, ciente das possibilidades de produção de

conhecimento pertinentes à sua composição. Nesse panorama, a imagem pode

representar uma linguagem promissora, pois extrapola certos limites estabelecidos

pelo texto verbal, legitimado como a linguagem mais apropriada ao fazer científico,

dado seu caráter de controle e linearidade. Porém, para certos objetivos das Ciências

Humanas, como, por exemplo, atingir os “imponderáveis da vida cotidiana”, ela se

torna por vezes limitante. A imagem, por meio da exploração de seus recursos plásticos,

pode atingir um grau comunicativo mais expressivo para a abordagem da cultura,

10

como procuraremos demonstrar nas análises baseadas em seus traços compositivos.

A obra do fotógrafo e etnógrafo Pierre Verger foi o “campo empírico” deste

trabalho, pois, na sua riqueza e vastidão, foi possível encontrar diferentes estratégias

de composição da imagem fotográfica, e assim avaliar como este aspecto está

correlacionado a algumas propostas de produção de conhecimento em Antropologia.

11

Capítulo I

O desenvolvimento do método etnográficocomo forma de conhecimento

12

1.1. O método etnográfico como controle

A Antropologia, surgida ao longo do século XIX, em correlação íntima com

neocolonialismo europeu, traz em seu cerne parâmetros positivistas de pensamento

que, muitas vezes, levaram a generalizações forçosamente atribuídas ao seu objeto

científico. Há uma cisão entre sujeito e objeto de pesquisa, pois este é fracionado e

manipulado num arranjo determinado pelo investigador.

Uma das tendências de pesquisa desse período foi a realização de trabalhos

baseados principalmente em dados quantitativos ou de caráter extremamente

objetivos, que levariam à quantificação e tipificação dos grupos humanos. Foi o que

ocorreu nas então recém-colônias conquistadas por franceses e sobretudo por ingleses

em territórios da África, Ásia e Oceania. Tornou-se comum, entre os pesquisadores,

a prática da reflexão antropológica baseada em dados colhidos por meio de

questionários aplicados pelas autoridades coloniais, que investigavam arranjos

familiares, atividades econômicas, religião e outros aspectos. A orientação das questões

estava claramente ligada à legitimação do projeto colonial, por isso tomava como

parâmetro a cultura ocidental para construírem uma imagem de exotismo e atraso

das populações dominadas. Tratava-se do darwinismo social que, juntamente com

outros pressupostos teóricos do evolucionismo, pretendia explicar as origens e o

desenvolvimento da humanidade. Podemos destacar, entre os principais autores de

linha antropológica evolucionista, os nomes de Herbert Spencer, Edward Burnet Tylor,

Lewis Henry Morgan e James Georges Frazer entre outros.

Contemporâneo e até mesmo em reação ao evolucionismo, surge a interpretação

difusionista, defendida por Adolf Bastian, Willian H. R. Rivers, Fritz Graebner e Fr.

13

Wilhelm Schmidt entre outros. Ela propunha o entendimento da origem e

desenvolvimento da cultura com base na idéia de empréstimos, imitações e absorção

de traços culturais distintos. Esses aspectos caracterizavam, segundo o difusionismo,

um mecanismo de evolução cultural. Assim, proporcionar o contato entre sociedades

diversas alavancaria o processo evolutivo daquelas supostamente menos complexas

e desenvolvidas.

O século XIX é também o período de emergência das imagens, e os meios

tecnológicos de sua captação e produção foram amplamente empregados numa prática

que ficou conhecida como antropometria ou antropologia física. Pelo emprego de

medições e comparações de crânios, fêmures e demais aspectos fenotípicos, tentava-

se comprovar a superioridade da raça branca em relação às irregularidades e mesmo

àquilo que era considerado como aberração biológica das demais raças. Esse tipo de

procedimento foi inclusive utilizado nas pesquisas de orientação dos evolucionistas,

que pretendiam comprovar sua tese acerca dos diferentes estágios de evolução humana

também naquilo que se referia à diferenciação física e não apenas cultural.

Em razão dessa metodologia que utilizava toda a espécie de dado quantitativo

e descritivo de sociedades desconhecidas (questionários, relatos, medições, etc.), esse

período configurou a chamada “antropologia de gabinete”. Suas reflexões baseavam-

se em informações já impregnadas pela visão do colonizador, levando os pesquisadores

dessa área a conclusões orientadas pela ideologia etnocêntrica que marcava a época.

É no início do século XX que uma nova metodologia de trabalho antropológico

se desarvora, com a introdução da pesquisa de campo que, de certa maneira, influencia

14

toda a prática reflexiva da disciplina. Temos, então, o desenvolvimento praticamente

paralelo de duas tradições de pesquisa etnográfica: a inglesa e a americana, tendo em

Bronislaw Malinowski e Franz Boas, respectivamente, seus pesquisadores mais

expoentes. A introdução do trabalho de campo em investigações de cunho antropológico

representou uma transformação paradigmática para a disciplina, que agregou em

seu método uma outra disciplina, a Etnografia. Com ela, a Antropologia do final do

século XIX e início do século XX teve um ganho significativo, pois aprofundou sua

visão do objeto ao qual se dedicava, chegando ao aspecto cultural como aquele que

deveria ser privilegiado em suas pesquisas.

1.1.2. A Observação Participante e o Funcionalismo Britânico

Em Argonauts of Wertern Pacific, sua obra mais significativa, Malinowski abre

o texto com uma espécie de manual de seu método de pesquisa de campo, que ficou

conhecido como “observação participante”. Nele, o autor ressalta a importância de

uma vivência isolada e prolongada do pesquisador com a população a ser estudada,

pois só com base na observação e descrição minuciosa de aspectos sociais como

relações de parentesco, economia, religiosidade e, principalmente, dos fatos mais

ordinários da rotina diária da população, que ele chamou de “imponderáveis da vida

real”, seria possível atingir o nível de generalização necessário para a compreensão

das funções de cada uma das partes que compõe uma cultura (elementos materiais,

relações sociais, expressões simbólicas, aspectos jurídicos, econômicos, mágico-

15

religiosos, ação e representação), e a interdependência que lhe confere totalidade.

Esse é um conceito chave para a compreensão do chamado “funcionalismo

estrutural” ou ainda “funcionalismo britânico”, formulação teórica até certo ponto

derivada desse método de pesquisa. Nela, ao tomar-se um segmento concreto da

vida social e, na medida em que esse segmento representa uma instituição nessa

sociedade e é decorrente de necessidades culturais e biológicas básicas, pode-se

compreendê-lo como um “fato social total”1, ou seja, uma síntese dos múltiplos aspectos

da vida social. Daí decorre a razão de focalizarem-se as monografias etnográficas em

temas específicos que refletiriam a totalidade da cultura. Ainda mais porque, nesse

momento, a pesquisa antropológica estava voltada essencialmente para as então

chamadas sociedades primitivas, ou seja, sociedades estranhas ao ocidente, que viviam

em certo grau de isolamento e equilíbrio e, por isso, apresentariam com clareza a

determinação da ordem social pelas funções sociais.

Em muitas dessas sociedades primitivas, a pesquisa etnográfica era justificada

pela necessidade de preservação de tal ordem que, por motivos diversos, incluindo o

colonialismo, poderia estar ameaçada. Mais uma vez a utilização de recursos

tecnológicos de produção de imagens (sobretudo a fotografia) é empregado como forma

de documentar culturas ameaçadas de extinção. Além do retrato verbal (descrição)

que faz parte do trabalho etnográfico, a fotografia figura

como um recurso para tipificar a estrutura social e,

principalmente, a cultura material.

1 O conceito de “fatosocial total” foidesenvolvido porMarcel Mauss eutilizado porMalinowski.

16

Ainda que tenha representado um avanço metodológico para a pesquisa

antropológica, a observação participante não abandonou seu caráter empírico positivo

e, nesse sentido, a influência de Émille Durkheim sobre o funcionalismo é providencial.

Segundo o autor, a manutenção da ordem social estaria em instâncias exógenas, não-

evolutivas e autônomas em relação ao indivíduo. Com isso, etnógrafos ainda puristas

defendiam a preservação social desses povos primitivos pela proteção de suas

instituições.

Ao longo da segunda década do século XIX, Durkheim dedica-se à elaboração

e legitimação da Sociologia como disciplina científica autônoma, independente de outras

áreas do conhecimento, principalmente, distanciando-a da Filosofia. Para tanto, uma

de suas primeiras empreitadas é a definição do objeto próprio de investigação desse

ramo de estudo: os fenômenos sociais. Para o autor, eles possuem uma realidade sui

generis, baseadas na sua exterioridade e, portanto, necessitariam de um método

particular de análise.

Entre as distinções estabelecidas para a definição do objeto de investigação

sociológico, a fundamental seria entre indivíduo e sociedade. Isso ocorre porque o

primeiro seria uma instância de atuação de forças da segunda, que se caracteriza

como manifestações coletivas que configuram uma coerção externa. Mesmo quando,

encaradas como hábitos, deixam de ser sentidas como imposições, não derivariam de

inclinações internas individuais, mas, sim, de tendências coletivas. Assim, crenças,

propensões, práticas de grupo tomadas coletivamente constituem os fatos sociais,

forma mais acabada da sua definição do objeto científico da Sociologia.

17

Segundo essa teoria, os fenômenos sociais deveriam ser tratados como coisas,

por causa da sua exterioridade e modo coercitivo de emanação e não como conceitos,

modo como a Filosofia trabalharia com a mesma ordem de fenômenos. O autor

considera que essa área teria um modo de raciocínio dedutivo baseado em a priori ou

nas prenoções e alerta para o erro de tomá-las como objetos. Para ele, a Sociologia é

uma forma de raciocínio indutivo, baseado em estudos concretos de regras de conduta.

As primeiras reflexões de Durkheim sobre a relação entre indivíduos e a

coletividade estão em Da Divisão do Trabalho Social. Nessa obra, elabora os conceitos

de solidariedade mecânica e orgânica. Basicamente, solidariedade mecânica é aquela

predominante nas sociedades chamadas arcaicas e tem, na semelhança entre os

indivíduos, uma de suas principais características. Tal semelhança é determinada pela

alta difusão da consciência coletiva. Já a solidariedade orgânica é aquela predominante

em sociedades modernas e industriais, nas quais está presente a divisão do trabalho

e, em decorrência desse fato, a consciência coletiva influencia com menor intensidade

seus indivíduos.

A partir de uma análise mais detalhada sobre consciência coletiva, Durkheim

chega à idéia de que indivíduos são determinados pela coletividade social. Essa

formulação está presente em toda a sua obra e, para justificá-la, ele supõe que a

solidariedade mecânica seja anterior à solidariedade orgânica, não se podendo, então,

explicar os fenômenos da diferenciação social e da solidariedade orgânica pelos

indivíduos.

18

Em suas “Regras Relativas à Observação dos Fatos Sociais” (1995), faz a

postulação das regras de objetividade que deveriam nortear a pesquisa científica em

Sociologia, que, sucintamente, seriam três: 1) a necessidade de afastar

sistematicamente todas as prenoções (1995: 27); 2) nunca tomar por objeto de

pesquisa senão um grupo de fenômenos previamente definidos por certos caracteres

exteriores que lhe são comuns, e compreender na mesma pesquisa todos aqueles que

correspondem a esta definição (1995: 30-31); 3) a exploração de uma ordem qualquer

de fatos sociais deve se esforçar por considerá-los naquele aspecto em que se

apresentam isolados de suas manifestações individuais (1995: 39).

Essas elaborações, surgidas no final do século XIX, inspiram profundamente a

Antropologia britânica funcionalista, nascente no início do século XX. Nelas, e na

definição do objeto sociológico durkheimiano, estão embutidos os fundamentos da

pesquisa etnográfica inaugurada por Malinowski e pela prática da “observação

participante”, que inclui não só a observação dos fatos, mas também a identificação

das instituições e suas funções sociais.

Há, contudo, uma profunda influência da filosofia positivista nessa antropologia

emergente no início do século XX, que declaradamente foi utilizada por Durkheim,

como demonstram suas referências a autores como Comte e Spencer. Segundo

princípios positivistas, a experiência sensível é a principal fonte de conhecimento e,

por isso, o empirismo torna-se modelo para produção científica. A ciência seria o único

conhecimento válido, descartando-se o idealismo. Qualquer tipo de indagação humana

deveria ser submetida ao método científico positivista, que além da atividade empírica,

19

considera importante a descrição de fatos para a verificação de regularidades e

comprovação de leis. Estas, por sua vez, permitiriam a previsão dos próprios fatos

analisados.

1.1.2. O Culturalismo e a Escola Americana

A antropologia nascente em finais do século XIX nos Estados Unidos teve em

Franz Boas um de seus precursores e mais representativos pesquisadores. Formado

em Física na Europa, passa a interessar-se por novos ramos das Ciências Naturais,

dentre eles a Geografia, e por estudos antropobiológicos que já se afastavam das

premissas racistas do evolucionismo.

Nessa época, a Alemanha, seu país de origem, já apresentava um ambiente hostil

entre grupos étnico-culturais, sobretudo em relação a judeus que se destacavam no

cenário acadêmico. Esse fator, agregado às suas novas áreas de interesse científico,

despertou-lhe a atenção para a possibilidade de seguir sua carreira em algum país onde

encontrasse maior liberdade de trabalho. Ele e muitos outros estudiosos de sua geração

sentiram essa necessidade, e o destino escolhido por Boas foi os Estados Unidos. Mas

antes de consolidar-se nesse novo país, a circunstância de mudança levou Boas a, talvez,

aquela que foi a vivência mais marcante de sua carreira intelectual. Em 1883, faz uma

expedição na Terra de Baffin, ao norte do Canadá, para pesquisar os Inuit (vulgarmente

chamados de esquimós), tendo a primeira experiência metodológica na pesquisa de

campo etnográfica, que passaria a ser priorizada em seus estudos posteriores.

20

A tradição de pesquisa de campo inaugurada por Boas priorizava o estudo de

aspectos delimitados e fragmentados ante a complexidade do objeto cultura, que não

permitiria um levantamento histórico completo e, portanto, concentrava-se nas fases

mais recentes. O caráter diacrônico é um dos eixos desse modelo de trabalho, que

deveria se concentrar em temas restritos relativos ao povo estudado, por meio da

análise, principalmente, de elementos como a influência do meio físico-geográfico, os

contatos culturais e a cultura material, pois segundo o próprio Boas:

O material para a reconstrução da cultura é sempre mais fragmentárioporque os mais amplos e mais importantes aspectos de cultura nãodeixam traços na terra; linguagem, organização social, religião – emresumo, tudo o que não é material – desaparecem com a vida de cadageração (BOAS apud MELLO, 1940:231-232).

Essas determinações metodológicas produziram uma gama muito extensa de

pesquisas de campo com os mais variados temas, resultando em vastíssimo material

coletado e, conseqüentemente, contribuiu para a consolidação dessa etapa de trabalho

nos estudos etnográficos. Ao mesmo tempo, as experiências etnográficas trouxeram-

lhe outras convicções acerca da relação de influência entre o meio ambiente natural e as

sociedades humanas. Afastando-se de pressupostos do determinismo ecológico, Boas

passa a defender que apenas muito parcialmente haveria uma relação de determinação

direta entre meio e sociedade, pois que essa ligação é “mediatizada pela civilização, pela

história e pela língua” (LABURTHE-TOLRA, 1997:60), sem que isso represente a perda

completa de seu foco naturalista sobre os fenômenos sociais, pois para ele a Antropologia

deveria seguir o modelo e manter contato com as ciências da natureza.

21

1.1.3. A imagem técnica como objetivação dos sentidos

Como ciências empíricas e positivas emergentes no final do século XIX, a

Antropologia e o método etnográfico, na valorização da investigação por via da

experiência sensível e passível de verificação, vão fazer dos órgãos dos sentidos

instrumentos científicos privilegiados na realização das pesquisas de campo em

sociedades, culturas ou grupos específicos tomados como objeto. Atendendo a premissa

da necessidade de verificação e confirmação de qualquer verdade suposta; ou mesmo

na comprovação ou refutação de generalizações, hipóteses e teorizações, como prevê

o empirismo moderno iniciado com Locke, os sentidos tornam-se o método dessa

evidência sensível. Nesse âmbito, a visão parece destacar-se em relação aos demais

sentidos, ainda que se admita o caráter limitado dos instrumentos humanos.

A partir da segunda metade do século XIX ocorreu a emergência de uma noção

de objetividade moderna, cujo cerne pode ser encontrado na distinção defendida pelo

Romantismo entre Ciência e Literatura. Até então, o conhecimento produzido era

feito sem esse tipo de fragmentação, como no caso de autores como Buffon em sua

História Natural. Tais premissas foram-se refinando, dando origem a uma objetividade

que pode ser pensada como “(...) uma ética do autocontrole, como conseqüência da

recusa em cair na tentação de intervir entre a natureza e a representação almejada

pelos cientistas e pesquisadores” (VIEIRA, 2003:319).

Principalmente as ciências físicas e naturais procuram formas de objetivar os

sentidos por meio de aparatos mecânicos que os substituíssem de maneira mais precisa.

22

Assim, aderem aos então recém-surgidos meios técnicos de produção de imagens,

como forma de objetivarem a investigação científica que era mediada pela faculdade

dos sentidos humanos. Naquele período, ainda se supunha a total imparcialidade dessas

espécies de imagens e, numa época em que o ato de ver confundia-se com o conhecer,

sua utilização parecia significar a superação da subjetividade do observador humano.

Destacam-se como precursores, nesse aspecto, os trabalhos de Étiene-Jules Marey

acerca do registro de imagens em movimento, especialmente destinadas aos estudos

de anatomia humana.

A imagem técnica foi, durante certo tempo, compreendida como a possibilidade

de fixar imagens em movimento e representá-las sem nenhuma mediação baseada

nos sentidos e sensações humanas, sendo, assim, também considerada como evidência

inconteste de uma realidade sensível. A objetivação dos sentidos acaba por representar

o distanciamento entre observador e objeto de investigação, posição defendida pelo

positivismo. Auguste Comte, em seu Curso de Filosofia Positiva, chamava a atenção

para o fato de que o estudo das paixões humanas – referindo-se à moral – deveria ser

feito por um observador exterior. Ainda que as paixões não residissem nos órgãos

perceptivos, a observação tornar-se-ia incompatível com um observador que é

também o observado em um estado de paixão muito pronunciado.

Esse distanciamento marca boa parte do trabalho científico e filosófico ocidental

moderno, consagrado pelas regras metodológicas que determinam como deve ser a

observação científica, ainda hoje, bastante presentes. Mas a relação entre sujeito e

objeto caminhou agregando valores como a sobreposição do primeiro pelo segundo e

23

o isolamento estanque das diversas ciências e seus objetos que, para além de uma

orientação metodológica, constituiu uma opção epistemológica de produção de

conhecimento.

O pensador Edgar Morin relaciona essa orientação ao estabelecimento de novos

paradigmas na passagem para o período Moderno. Ele demonstra como os paradigmas

renascentistas, que romperam com os determinismos medievais, foram sendo

conduzidos por um caminho de profunda especialização, duradouro até nossos dias, e

que estabeleceu uma profunda cisão entre a produção de conhecimento científico e a

humanista. Segundo o autor, a cultura humanista seria aquela “animada pela

necessidade de esclarecer a condição e a conduta humanas” (MORIN, 2005:83) e a

cultura científica baseada “em uma separação inicial entre juízo de valor e apreciações

da realidade” (2005:84).

Atualmente, essa cisão tem sido encarada como um elemento de crise,

principalmente, para a reflexão na cultura humanista, que também trilhou um caminho

ordenado pela fragmentação e especialização do saber que pautam a cientificidade. O

caráter reflexivo e a complexidade do conhecimento ficam, então, comprometidos

nesse panorama, ainda mais no que diz respeito às chamadas Ciências Humanas, já

que estas tentam congregar regras de análise objetiva que em muito limitam a

compreensão da totalidade de seus objetos.

As Ciências Sociais também se apropriaram de meios tecnológicos de obtenção

de imagens, talvez na tentativa de tornar seu objeto menos fugidio, mais isolável e em

condições que atendessem os preceitos científicos do século XIX. As Ciências Sociais

24

são nascentes no período, englobam a Antropologia, a Sociologia e a Psicologia e têm

em seus pesquisadores2 a realização de grandes esforços para delimitar e definir seus

objetos próprios de investigação, e assim legitimá-las como ciência.

O advento da fotografia no século XIX incita um longo debate sobre a produção

de imagens aparentemente sem a interferência subjetiva de um autor, isto é,

supostamente possibilitada pelos recursos tecnológicos de captação de imagens. Como

resultado da objetividade da Física e da Matemática, esse aparato teria sido o resultado

da busca pela visão perfeita, sem as distorções e influências provocadas pela mente.

Baseada nesse pressuposto, a Antropologia utiliza tais recursos calcada no positivismo

científico. Entre o fim do século XIX e o início do século XX, justificava-se o uso dessas

tecnologias para registrar sociedades e culturas em processos de desaparecimento,

pois se considerava que o emprego desses instrumentos pudesse produzir um registro

objetivo e isento de valores sobre as sociedades analisadas, ou seja, um material

essencialmente documental, que serviria como um registro que viria a substituir a

realidade um dia existente.

O uso da fotografia pelas ciências, como no caso da Antropologia, estimulou,

naquele momento, um debate sobre o meio mais apropriado para a investigação

científica: o relato escrito ou o registro técnico de imagens? Muitos pesquisadores

apresentaram-se a favor do uso da fotografia, baseados nos

pressupostos brevemente expostos anteriormente, e

propunham com esse emprego a criação de uma disciplina

ou área específica de estudo, a Antropologia Visual.

2 Procuramos demonstraresse aspecto, brevemente,com os casos de ÉmileDurkheim e Franz Boas, entreoutros que poderiam serconsiderados em áreascientíficas diversas.

25

Passado esse primeiro momento, houve a mudança do ideário acerca da

neutralidade da imagem produzida por vias tecnológicas. Isso ocorreu, dentre outros

fatores, pela consideração da fotografia e do cinema como formas de expressão

artísticas e, ainda, pela sua utilização nos meios de comunicação. Assim como um

texto verbal está cheio de intencionalidade, mesmo que tenha a intenção de ser neutro

e científico, os usos histórico-sociais das imagens técnicas demonstram o quanto elas

constituem uma nova linguagem, repleta de possibilidades sígnicas. A compreensão

da mensagem visual é posta, atualmente, em um patamar muito além da mera

representação da realidade, ou seja, de seu referente. Seus significados são construídos

por uma sintaxe própria e elementos como formatos e suportes também passam a

ser considerados no processo de significação.

Algo fundamental não foi percebido, a princípio, pelos antropólogos e etnógrafos

do século XIX, que levavam para campo câmeras fotográficas e retornavam repletos

de imagens. Na realidade, eles estavam constituindo um novo objeto científico, de

natureza diversa do fenômeno social, pois a imagem é uma representação e, por vezes,

até mesmo uma construção discursiva do fenômeno, o que muda fundamentalmente

seus pressupostos de análise. Mas durante muito tempo, pesquisadores acreditaram

serem essas imagens provas e índices da realidade sócio cultural com a qual se

deparavam e conviviam durante a etapa de pesquisa de campo, apoiando suas

asserções teóricas naquilo que estaria expresso de maneira irrefutável em fotografias

e películas cinematográficas.

26

Considerando esses fatos, podemos classificar a Etnografia como método

empírico e com forte influência do positivismo. Porém, para se completar como ciência,

ela necessita compartilhar seus dados com outros métodos, não apenas investigativos,

mas analíticos. É nesse ponto que a Etnologia e a Antropologia se desenvolvem por

um viés mais filosófico/epistemológico. Elas são etapas de teorizações e generalizações,

possuem características racionalistas que não necessariamente divergem da etapa

anterior. Também podemos considerá-las de acordo com o paradigma cartesiano,

que determina a produção científica e filosófica do ocidente, segundo as formulações a

respeito da produção de conhecimento propostas por Edgar Morin.

Com o objetivo de constituir uma Sociologia do Conhecimento como “ciência das idéias”,

Morin busca identificar e desmembrar os sistemas pelos quais as idéias são organizadas,

chegando à linguagem(ns), racionalidade e lógica como os principais. Porém, há um elemento

ainda mais determinante nessa dinâmica, denominado “paradigma” pelo autor.

A noção de paradigma é construída como categoria epistemológica em função

de uma ciência das idéias ainda mais profunda e complexa. “Paradigmatologia” seria

essa ciência, voltada não apenas para os aspectos lógicos da noosfera (instância de

produção e organização das idéias), mas também para os “pré-lógicos” e “pré-

lingüísticos”, suficiente para compreender a organização do cognitivo, do noológico,

do cultural e do social. Todas as idéias, discursos, teorias, ideologias, comportamentos

teriam como eixo gerativo, como ponto de partida e chegada, os paradigmas vigentes,

decorrentes de conjunções sócio-históricas e estruturais. A compreensão desse

conceito faz-se mais clara com a proposição da análise do “grande paradigma do

27

Ocidente”, que seria o pensamento cartesiano, responsável pela relação lógica de

disjunção verificável entre os princípios de organização de diversas áreas como ciência,

política, economia, sociedade, etc., e, por fim, afetaria e determinaria a vida cotidiana.

O paradigma cartesiano está no cerne do problema de como a reflexão científica

e filosófica encara a relação sujeito-objeto, pois ao mesmo tempo em que faz do homem

um objeto de ciência entre outros e cada vez menor diante do universo, também o

coloca como controlador de um instrumento (a própria ciência) com poder de dominar,

e mesmo arrasar, esse universo.

As chamadas ciências clássicas estariam imersas em outros paradigmas

correlatos à disjunção, como a exclusão e a simplificação, o que dificulta o

desenvolvimento de uma racionalidade capaz de superar um sistema formal e limitante

de pensamento. A própria racionalidade científica tradicional instalou uma crise,

quando constatou a contradição dentro de seus esquemas de conhecimento, mas ainda

parece estar longe de superar essa espécie de impasse, o que demandaria uma

revolução paradigmática. Por isso, Morin constata que a aceitação da própria noção

de paradigma como ele a desenvolve, já seria um passo no sentido de superar o

paradigma clássico e partir para a constituição de um paradigma de complexidade,

necessário à própria Paradigmatologia (que se propõe como ciência do conhecimento

complexo).

Ao levar a câmera para o campo, o etnógrafo está partindo do pressuposto de

fragmentação do cartesianismo, deslocando e distanciando o objeto antropológico

clássico, pois está construindo uma representação dele mediada pela câmera, que

28

carrega não mais os limites e imperfeições dos sentidos humanos, mas os limites e

parcialidades da programação inerente a ela. Essa proposição foi desenvolvida pelo

filósofo Vilém Flusser, ao considerar o estado de cientificidade da fotografia em

decorrência da linearidade histórica tendo, no desenvolvimento da escrita linear, a

possibilidade de um pensamento conceitual capaz de fabricar aparelhos com

determinada programação, dentro do âmbito da matriz lógica que o gerou. No caso da

câmera fotográfica, a programação estava destinada a originar imagens técnicas e

mágicas, porém análogas ao conceito de cientificidade que as criou. Trata-se da

fotografia como empreendimento científico, que reflete os conceitos científicos que a

produziram no funcionamento da câmera, impregnando as imagens técnicas de

paradigmas de tal cientificidade. Mas, anterior à matriz científica, o empreendimento

fotográfico derivaria da matriz imagética do mundo mágico e arcaico tradicional, que

coexistiria com o mundo da linearidade histórica. A cientificidade possibilitou à imagem

técnica a condição de índice de uma realidade ora existente, e esse foi o aspecto que

despertou o interesse de cientistas, entre eles os antropólogos, em empregá-la em

suas pesquisas, diferenciando-a das imagens tradicionais. Entretanto, para o autor, a

imagem técnica não se definiria pela indicialidade assumida, mas pelo que

ontologicamente as cria. Fotografias seriam conceitos codificados em “estados de coisas”

e, por isso, podemos supor que, em trabalhos etnográficos, temos os conceitos do

fotógrafo/etnógrafo codificados e traduzindo o mundo visível.

29

Se a introdução do método etnográfico entre os séculos XIX e XX representou

uma mudança essencial para a pesquisa e reflexão antropológica, a segunda metade

do século XX desencadeou um processo de revisão dos pressupostos e pretensões da

Etnografia. Teorias como o Interpretativismo, proposto pelo antropólogo Clifford

Geertz, surgem como uma forma de reflexão sobre as possibilidades da disciplina,

num contexto mais contemporâneo. Essas teorias foram analisadas por James Clifford,

que toma como objeto os próprios antropólogos e seu trabalho.

Segundo o autor, não podemos mais pensar na Etnografia como um método

realista de totalização, mas sim como a possibilidade de produção de conhecimento

por meio de um envolvimento intersubjetivo e intercultural. Uma crise teria se

instalado gradativamente em torno de uma suposta “autoridade etnográfica”.

Teríamos, entre vários fatores, o deslocamento da autoridade científica exclusivamente

ocidental, quando obras de pesquisadores de outros eixos começaram a fazer eco nos

meios intelectuais; a redistribuição do poder colonial após a década de 1950 e a mudança

de posição das sociedades dominadas que até então eram um objeto privilegiado do

olhar antropológico vigente; e ainda a disseminação dos meios de comunicação de

massa que tornaram o contato entre as culturas ainda mais evidente, o que influenciou

aquelas cujo grau de isolamento era interessante para a pesquisa.

Analisando a configuração da observação participante e seu papel para a

Etnografia, Clifford vai considerar essa prática pelo valor da experiência vivenciada

pelo pesquisador, isto é, este seria o elemento que conferiria autoridade ao trabalho.

A isso chamou de “autoridade experiencial”. A experiência do etnógrafo foi de difícil

1.2. O método etnográfico como diálogo

30

questionamento em seu primeiro momento, já que havia a crença na possibilidade de

agregar toda a objetividade determinada pela ideologia científica da época (sobretudo

positivista) aos experimentos dessa natureza. Porém, trata-se de um objeto não tão

passível de controle e isolamento como no caso das ciências naturais.

O contato do antropólogo com uma sociedade ou grupo distinto do seu, implica

uma experiência que envolve sensibilidade, afinidade emocional, intuição, enfim,

elementos subjetivos demais para serem controlados pela lógica da racionalidade,

ainda que se tenha tentado objetivá-los pela orientação positivista que legitimava as

experiências apreendidas pelos órgãos dos sentidos. No caso da Etnografia, a

observação é participativa, pois, segundo o autor, seu resultado vai ser a “criação da

experiência” com base na subjetividade do pesquisador.

Dessa forma, o caráter de autoridade da experiência precisa ser relativizado e,

para isso, a teoria interpretativista de Geertz pode ser utilizada para enriquecer esse

debate. Inspirado nas idéias de Paul Ricoeur, para quem “um mundo não pode ser

apreendido diretamente; ele é sempre inferido a partir de suas partes, e as partes

devem ser separadas conceitualmente e perceptualmente do fluxo da experiência”

(CLIFFORD, 2002:40), Geertz entende a cultura como um conjunto de textos que

forma um sistema simbólico, cabendo ao pesquisador ler, interpretar e traduzir esses

escritos para chegar à compreensão dos fenômenos sociais e de seus significados. Assim,

para esse antropólogo, a Etnografia é um exercício de “interpretação das culturas”.

Voltando à relação com a autoridade experiencial, o próprio processo de pesquisa

deve ser compreendido como um texto à parte da realidade pesquisada, já que esta é

31

apenas evocada em representações e interpretações originadas de uma filtragem da

experiência vivida.

Clifford ainda identifica uma outra tendência emergente na Etnografia

contemporânea, denominada “pós-interpretativismo”. Segundo ele, trabalhos calcados

na autoridade da experiência e da interpretação estariam dando lugar a “paradigmas

discursivos de diálogo e polifonia” (2002: 43). Cita, como exemplos, pesquisas como

a de Vincent Crapanzano para apresentar uma estratégia discursiva em que o texto

etnográfico é construído na forma de diálogo entre indivíduos. Geralmente, esses

personagens são o próprio antropólogo e a figura clássica do informante, aquele

indivíduo do grupo estudado que acompanha mais de perto o trabalho do pesquisador,

muitas vezes, servindo-lhe de intérprete, tanto no aspecto lingüístico como no cultural.

Para Clifford, privilegiar uma Etnografia dialógica seria transformar a postura do

pesquisador como autoridade em uma de negociador de visões compartilhadas de

realidade. Assim, para além de estratégias metodológicas, a etnografia necessitaria

recorrer a recursos de linguagem apropriados, que a afastassem de uma estrutura

monológica e autoritária de reflexão, pois ela é uma atividade perpassada de

subjetividades. Seguindo esse percurso, o autor chega até mesmo a supor a

configuração de uma “linguagem etnográfica” e, recorrendo a Bakhtin, concebe-a,

semelhante a todas as linguagens, como uma “concreta concepção heteroglota do

mundo” (BAKHTIN apud CLIFFORD, 2002: 44).

Nessa nova perspectiva, na qual a Etnografia surge como projeto intercultural,

devemos considerar a existência de mais de um sistema produzindo sentido no

32

processo em questão. Podemos identidicar diversos deles no fazer etnográfico, sendo

os mais explícitos a cultura do pesquisador e a do pesquisado, que poderão ser

desdobrados em outros. Mas o que faz esse procedimento científico ser

verdadeiramente intercultural é a relação comunicativa que se estabelece na filtragem

e tradução efetuadas pelas partes envolvidas, que vão gerar novas informações pelo

contato entre sistemas distintos.

Segundo o semioticista Iuri Lótman, os sistemas culturais apresentam lógicas de

ordenação e codificação próprios, mas também decorrentes de contaminações de outros,

coexistentes num espaço semiótico que ele denominou Semiosfera. De acordo com as

situações, esses sistemas – que também podem ser compreendidos como linguagens – são

postos em contato, estabelecendo relações comunicativas em que, não necessariamente, a

mensagem emitida por um dado sistema é univocamente recebida e codificada pelo outro.

Baseado em uma lógica particular, o sistema receptor codifica a mensagem, ao passo que

também sofre uma reordenação que produzirá uma informação nova.

Assim, um mecanismo comunicativo não tem como única função a transmissão

e a compreensão idênticas de uma mensagem, sem qualquer interferência. Ao

contrário, esse seria somente um nível mínimo do processo, que apresenta

potencialidade para funcionar como uma espécie de “consciência criadora” capaz de

transformar a mensagem inicial em uma nova. Mas isso só é possível na medida em

que os sistemas não sejam totalmente traduzíveis de maneira unívoca, pois é na

complexificação desse processo de tradução que surgem as possibilidades de

elaborações adaptativas que acrescentarão valor à mensagem.

33

Portanto, segundo o referido autor, a geração de informação processa-se de forma

mais refinada e enriquecida em ambientes de tensão e complexidade entre sistemas

distintos. Para visualizar melhor essa relação, Lótman menciona o caso de adaptações

de obras literárias para o cinema. Trata-se de sistemas semióticos diversamente

estruturados que, quando colocados em contato, estabelecem relações adaptativas e de

equivalência, mas sem redundarem em uma tradução coincidente. Ao contrário,

produzirão um texto repleto de informações novas. É o que acontece quando, por

exemplo, narrações são transformadas em diálogos cênicos e descrições viram cenários.

Tal relação comunicativa intersistêmica assume o caráter de trocas que só

ocorrem por meio de um mecanismo bilingüe de tradução chamado fronteira, com

características de permeabilidade, mas também de seletividade. A fronteira atua

como um filtro, controlando a penetração de elementos externos que poderão ser

readaptados ou que produzirão uma reordenação lógica no sistema receptor. Ou seja,

a informação exterior é filtrada para ser “semiotizada” internamente por um outro

sistema. Parece haver dois níveis para esse processo de troca: aquele em que elementos

estruturantes do sistema alheio, como códigos, por exemplo, são incorporados e geram

uma reordenação intrasistêmica, e aquele em que a própria mensagem do sistema

exterior é recodificada. Assim, ao mesmo tempo que a fronteira opera a união de

esferas semióticas, ela também distingue, pela sua contraposição, as especificidades

das partes envolvidas, delimitando seus espaços e possibilidades.

Percebemos então que, nessa relação comuncativa, sempre há dois ou mais

sistemas envolvidos e, de sua interação, teremos pelo menos uma dupla codificação.

34

Esse é o princípio para a produção do que Lótman chamou de “texto”, que seria mais

um mecanismo de articulação e diálogo intersistêmico. Sendo assim, para que uma

mensagem seja também considerada como texto, ela necessita ser codificada no mínimo

duas vezes, e isso nada mais é que um processo de trocas que produzirá informação

nova, ordenada segundo o rearranjo dos sistemas envolvidos. Os textos são também

as formas mínimas de emanação dos sistemas culturais e, a partir de sua

materialidade, podemos tentar decifrar o processo de codificação dessas esferas

produtoras de sentido.

Refletir sobre essas interações possibilita a expansão de nossa compreensão

sobre o que seria a proposta de uma Etnografia intercultural e intersubjetiva, que

constituiria até mesmo uma linguagem etnográfica, como avaliou Clifford.

Interculturalidade e intersubjetividade, pensadas segundo a perspectiva semiótica

abordada anteriormente, podem ser entendidas como características imanentes do

método etnográfico, se este for compreendido como uma relação comunicativa

intersistêmica.

A reflexão produzida com base no método etnográfico pode ser encarada como

um texto decorrente de relações intersistêmicas que surgem dos parâmetros da

cientificidade ocidental (um sistema), da cultura vivencial do pesquisador e do

pesquisado (outros dois sistemas). Ainda que o etnográfo tente seguir todas as noções

de objetividade e neutralidade indicadas para o fazer científico, não há como ele se

desprender de todo um “sistema-mundo” que lhe é particular. Já temos aí duas

filtragens, que estão de certa forma conjugadas, na medida em que, como expressou

35

Morin, existe um paradigma de cientificidade cartesiana que perpassa também as

esferas sociais. A essa etapa, associa-se o contato com uma cultura exógena, pensada

inicialmente como objeto de observação científica, mas que numa dinâmica de posições

cambiáveis, característica da relação comunicativa, interage como mais um sistema,

ou por vezes como texto (essa alternância de posições é prevista por Lótman) na

contaminação e reordenação do sistema etnográfico.

Ao selecionar o que e como observar, o pesquisador passa por processos de

trocas informacionais, absorvendo códigos que podem ser interpretados e traduzidos

pelo seu próprio sistema, mesmo os originados pela reordenação sofrida nesse contato

com outros sistemas. Portanto, entendemos que a Etnografia traz em si não apenas

reflexões sobre o sistema estudado, mas também acerca do sistema (ou sistemas) no

qual o pesquisador está inserido. Mas, ainda assim, essa espécie de contaminação do

sistema cultural do pesquisador pelo do pesquisado (e o inverso também acontece)

não ocorre de maneira totalmente intencional e controlada e, assim, a reflexão

etnográfica não fica imune a uma visão de mundo compartilhada entre sistemas

distintos.

A introdução da fotografia na pesquisa etnográfica acaba tornando ainda mais

complexa essa relação, e vimos que o processo comunicativo apresenta maiores

possibilidades informacionais quanto mais complexos e intraduzíveis univocamente

forem os sistemas envolvidos. Estabelece-se aí uma relação de equivalência ao nível

anterior, em que os sistemas pesquisador/pesquisado correspondem ao de

observador/observado. Ambos podem ser também entendidos no patamar de sujeito

36

do conhecimento/objeto do conhecimento, mas, em razão do dinamismo do processo,

essas posições, como já explicitamos, são alternantes. A fotografia também pode

assumir a função de sistema e de texto. Tomada como sistema, ela irá reordenar o

método etnográfico como abordagem e adequação científica comum a várias disciplinas,

com base na estruturalidade da imagem. Como texto, ela será um elemento que nos

ajudará a decifrar os sistemas que a produziram, incluindo a Etnografia. Em nosso

caso de análise, buscaremos demonstrar melhor essas relações.

Néstor Garcia Canclini também demonstra, em recentes artigos, que uma das

questões emergentes nos debates pós-modernos acerca da revisão da atividade

etnográfica é a consideração das estratégias e possibilidades de linguagens encontradas

em diferentes trabalhos etnográficos. Ou seja, atualmente, a Etnografia e a

Antropologia deparam-se com problemas de linguagem e comunicação.

Até mesmo a prática de pesquisa de campo foi avaliada, pois se questionou de

que valeria uma suposta experiência empírica que conferiria autoridade ao pesquisador

para falar do grupo estudado, se o seu trabalho resultasse numa construção alicerçada

em dispositivos lingüísticos e textuais, muitas vezes, baseados em orientações

institucionais do meio acadêmico. Esse é outro ponto relevante apontado por Canclini,

que assim como Clifford, toma os próprios antropólogos como objetos para repensar

as disciplinas. Ele nos aponta a existência de uma certa “autoridade epistemológica”

que estabeleceria não apenas questões diretamente envolvidas com as necessidades

científicas e metodológicas do olhar do pesquisador, mas que também definiria o que

olhar e como olhar. Assim, o objeto da Etnografia e da Antropologia iria se delimitar

37

também por meio de determinações históricas e sociais, inclusive de seus produtores.

Ao realizar o seu trabalho, o antropólogo precisa reconhecer, além do seu lugar de

fala, a quem ele fala.

Com tudo isso, Canclini considera a escrita, e, portanto, a linguagem, um

problema central e indispensável para revisar e “problematizar as condições de

produção e comunicação do trabalho etnográfico” (2005:140). Tais questões tornam-

se evidentes também em razão da identificação da necessidade de considerarem-se a

Antropologia e a Etnografia como empreendimentos interculturais e intersubjetivos.

Isso ocorre por fatores diversos, como as próprias características do trabalho de campo

defendidas por Clifford e pelas novas possibilidades interculturais oferecidas pelas

tecnologias da comunicação, que estabelecem relações mais fluidas e complexas entre

grupos sociais distintos. Assim, o autor compreende que o “campo” de investigação

empírica do antropólogo está longe da idéia romântica de um grupo isolado em que o

etnógrafo pesquisa a totalidade cultural e social. Porém, não pretende desvalorizar a

coleta de dados em campo; ao contrário, defende a necessidade de obtê-los em estudos

localizados e com informantes de primeira mão. Sobre isso, salienta:

As discussões teóricas e a crítica aos textos antropológicos servem paranos tornar mais conscientes de que os dados não estão no campo,esperando-nos, e são resultado de processos sociais, institucionais ediscursivos de construção; mas o trabalho teórico não pode substituir oesforço para obtê-los (CANCLINI, 2005:141).

38

1.2.1. Visualidade e produção de conhecimento

Como as discussões antropológicas e etnográficas contemporâneas se voltaram

para questões de linguagem e comunicação, não podemos ignorar a utilização de

recursos imagéticos nas pesquisas dessa natureza. Assim, ampliamos a discussão das

estratégias discursivas para além do texto verbal escrito, já legitimado como linguagem

própria do conhecimento científico, para a produção e utilização de imagens como

outra possibilidade de produção de conhecimento e de reflexão científica nas Ciências

Sociais, sobretudo dentro de um panorama com preocupações recorrentes, como

interculturalidade e intersubjetividade.

A imagem talvez constitua uma linguagem até mesmo mais adequada para

transmitir esses elementos, tendo em vista possibilidades sígnicas mais amplas que

fogem de uma certa objetividade e linearidade da escrita verbal, geralmente limitantes

para o objeto das Ciências Humanas. Para tanto, principalmente as disciplinas em

questão precisam tomar as próprias imagens produzidas sobre seus objetos

(sociedades, aspectos culturais) como objetos em sua totalidade e não apenas utilizá-

las como mais um recurso documental acessório, semelhante às gravações de áudio e

diários de campo. Percebemos que a linguagem visual, muitas vezes, ainda é

considerada pela Antropologia apenas sob o aspecto do referente da imagem e, dessa

forma, não há muito acréscimo na possibilidade de compreensão do objeto

representado, pois ele continua sendo o fenômeno social. Extrapolar esse entendimento

é perceber que a própria representação constitui um objeto fenomênico.

39

Por outro lado, não é muito divergente a utilização de imagens feitas pelos

meios de comunicação, mas, sem dúvida, estes e a Antropologia possuem finalidades

de naturezas distintas. A função referencial é muito presente na comunicação,

principalmente no jornalismo que, ao inserir a imagem no contexto da mensagem, faz

dela um pretenso elemento de objetividade. A imagem, associada ao texto verbal,

confere autenticidade e legitima o discurso midiático, pois em torno dela paira ainda o

status de prova irrefutável, real e concreta, mesmo que essa interpretação seja

questionável.

Portanto, buscamos refletir, neste trabalho, sobre a Etnografia associada à

visualidade como mediadores do conhecimento em Antropologia e Comunicação. Para

tanto, tomaremos como estudo de caso o uso da fotografia pelo fotógrafo e etnógrafo

Pierre Verger, por identificarmos em seu trabalho aspectos plurais na utilização do

recurso imagético, começando pelo seu trabalho etnográfico.

A obra do referido autor, começando pelo seu trabalho etnográfico, será

analisada por meio da observação em busca de caracteres comuns que nos permitam

discriminar e, possivelmente, categorizar as imagens em relação à etnografia e à

comunicação. Isso será feito sem perder de vista o reconhecimento contemporâneo

da parcialidade do conhecimento, obtido por intermédio de representações, pois ele

só se torna possível pelas mediações (FERRARA, 2002). Como foi exposto

anteriormente, nosso interesse é compreender o que há de fenomênico na

representação imagética produzida e utilizada em pesquisas sociais, visando a verificar

em que medida as imagens podem agregar conhecimento à Antropologia.

40

Uma imagem fotográfica é um sistema de representação e de significação que

veicula uma informação visual gerada, pretensamente, para ser um registro da

aparência visível do mundo, mesmo com a impossibilidade de deixar de ser uma

construção sígnica. O sistema representacional da fotografia pode desempenhar várias

funções em diversas áreas do conhecimento humano. No caso dos estudos acadêmicos,

principalmente nas Ciências Sociais, ele coexiste com outros sistemas de significação,

sobretudo com o verbal escrito.

Essa área de estudo parece compreender o signo fotográfico essencialmente

no seu aspecto referencial, encarando-o como um documento supostamente neutro.

Isso ocorre porque a Antropologia, ao trabalhar com o material fotográfico, apóia-se

basicamente no grau de indexicalidade existente entre o signo fotográfico e o objeto

representado. Trata-se de uma interpretação que prevê uma correspondência

inequívoca entre imagem e fenômeno, que serviria para a pesquisa etnográfica e para

a reflexão antropológica no sentido de substituir o objeto de investigação, que deixaria

de ser o fenômeno social in loco para ser a imagem dele produzida.

Percebemos um altíssimo grau de objetividade atribuído à imagem, mas,

felizmente, não é apenas isso que podemos verificar nessas práticas de pesquisa e

reflexão, ainda que parte delas privilegiem o referencial das imagens que abordam,

deixando de lado aspectos de construção sígnica que certamente interferem nos

interpretantes produzidos.

Porém, as Ciências Sociais já não são tão ingênuas a ponto de afirmar,

sequer, a imparcialidade de seu modo de expressão mais clássico, os textos

41

verbais3 e, portanto, também avançam na compreensão dos usos e produtos de outras

linguagens utilizadas no fazer científico. Isso acontece porque a imagem fotográfica,

apesar dos argumentos que defendem sua indicialidade, pode assumir a dominância

de outras formas de relação existentes entre o signo e o objeto, sem a supressão do

caráter indicial.

A análise feita por Etienne Samain sobre a obra Balinese Character de

Gregory Batson e Margaret Mead faz apontamentos sobre a necessidade de

condução na compreensão de imagens em trabalhos etnográficos por meio da

linguagem verbal. Balinese Character é um trabalho emblemático para a

Antropologia Visual. Trata-se de um livro composto principalmente por montagens

de fotogramas sobre determinados temas da cultura balinesa, acompanhados de

textos referentes às imagens, resultado de cerca de três anos de pesquisa de campo

em comunidades de Bali. A partir da composição de pranchas verbo-visuais, os

autores procuram representar o ethos balinês, conceito desenvolvido pelos autores

e que se refere a “um comportamento estandartizado, culturalmente

estereotipado” (SAMAIN, 2000:67). Porém, Samain ressalta o caráter polissêmico

da imagem, o que a torna um objeto amplo de possibilidades. Faz isso por meio de

um exercício de compreensão das imagens sem o apoio dos textos que as

acompanham, chegando, obviamente, em outros

significados, demonstrando a relatividade da validade

de encarar-se uma imagem fotográfica estritamente

pelo seu caráter indicial.

3 Acerca desse debate relativoà Antropologia, são bastanteválidas as proposições dopesquisador James Clifford aoquestionar uma supostaautoridade etnográficaconstruída ao longo doséculo XX.

42

No caso da fotografia produzida em pesquisas etnográficas e que se colocam

como parte integrante destas, há a preocupação com a criação de imagens

predominantemente indiciais, ou seja, que se atêm à a representação do fenômeno

com o mínimo de interferência possível. Mas esse controle é bastante vulnerável, e

elementos icônicos e simbólicos perpassam a construção imagética. Com isso, trazem

novas informações, extrapolando aquele referencial social que configura um objeto

etnográfico.

As hipóteses levantadas até agora acerca dos usos da fotografia pelas Ciências

Sociais e a relevância de uma compreensão semiótica de tais práticas serão esclarecidas

com a análise do caso proposto.

43

Capítulo II

Pierre Verger e o ofício fotográfico/etnográfico

44

Pierre Verger é um nome reconhecido na antropologia brasileira e mundial,

além de ser também um fotógrafo consagrado. Sua obra destaca-se principalmente

pelo emprego da fotografia em trabalhos etnográficos. Nesse caso, o recurso citado

figurou de maneira inovadora para sua época4, por representar mais que um elemento

ilustrativo das observações de campo. Durante muito tempo, a fotografia foi sua

principal estratégia metodológica, e a publicação de obras essencialmente fotográficas,

como Dieux d´Afrique (1954) e Notes sur le culte des orisa et vodun (1957),

demonstram que o autor fez da fotografia, linguagem e método privilegiados para a

produção de conhecimento, pois esses são mais que livros de fotografia, são também

reflexões de pesquisa baseadas em um percurso visual. Nas obras citadas, são nítidas

algumas tendências do autor em privilegiar elementos referenciais na construção da

mensagem visual, tentando assim atingir um certo grau de objetividade válido para

a pesquisa científica.

Mas, se ainda hoje, há discordâncias acerca da compreensão de imagens em

Antropologia, isso era mais evidente entre as décadas de 1950 e 1960. Tanto foi

assim que Verger só teve seu trabalho como pesquisador e antropólogo legitimado

cientificamente com a elaboração e publicação de trabalhos em moldes acadêmicos,

como Flux e Reflux de la Traite des Nègres, entre le Golfe de Benin et Bahia de

Todos dos Santos, du Dix-septième au Dix-neuvième

Siècles, com o qual recebe, em 1966, o título de doutor

pela Sorbonne na Faculté des Lettres et Sciences

Humanines de l´Université de Paris, mesmo sem ter

4 Pierre Verger trabalhouintensamente comopesquisador em campo até ofinal da década de 1970,quando passa a dedicar-semais a congressos, exposiçõese publicações.

45

passado pelos ciclos anteriores de formação. Esse e outros trabalhos do gênero

cumpriam as exigências institucionais dos órgãos5 que financiaram anos de suas

pesquisas sobre o intercâmbio entre a religião e a cultura iorubá no Brasil e na África.

Outro lado significativo de sua obra fotográfica provém do fotojornalismo,

atividade desenvolvida por Verger para alguns dos mais importantes veículos de

comunicação impressa do mundo na época, como Paris Soir, Daily Mirror e Life. No

Brasil, trabalhou para a revista “O Cruzeiro”, entre as décadas de 1940 e 1950,

atividade que lhe proporcionou a oportunidade de conhecer e registrar diferentes

traços e expressões da cultura popular brasileira e latino-americana. Esse foi um dos

períodos mais criativos e importantes em experimentações no fotojornalismo

brasileiro. Na época, a revista O Cruzeiro passou por uma reformulação influenciada

por publicações americanas e européias do mesmo gênero, entre as quais estão as

revistas Life, Time e Paris Match. É o momento em que também a profissão de

fotojornalista sai de uma posição secundária para um posto glamouroso e essencial

na imprensa da época. A fotografia passa a ser, em muitos casos, o elemento principal

das matérias publicadas e, como decorrência, eram escritas pelos próprios fotógrafos.

A imagem fotográfica adquire a função de conferir credibilidade e realismo à

reportagem, mas fica evidente que esta mesma imagem prestava-se à construção

da notícia com interesses midiáticos. Tanto é assim que

uma variedade muito maior de temas passaram a ser

abordados na mídia impressa a partir da introdução do

recurso fotográfico, que se torna, nesse contexto, mais

5 Verger teve, em períodosalternados, financiamento doInstitut Français d´AfriqueNoire – IFAN, e da ÉcolePratique dês Hautes Étudesde Paris – EPHE, além deocupar cargos no CentreNational de la RechercheScientifique – CNRS.

46

comercial. Por meio da imagem, revistas e jornais conseguem produzir efeitos

dificilmente atingíveis apenas com o texto verbal, como surpresa, arrebatamento,

indignação e outras emoções. Existem casos conhecidos, nos quais ocorreram apelos

exagerados ao sentimentalismo e até mesmo fraudes, a partir da intervenção do

fotógrafo na cena retratada. É nesse panorama que, em 1946, Pierre Verger inicia

sua carreira de fotojornalista para a revista O Cruzeiro. Porém, mesmo em sua

produção jornalística, é possível reconhecer características que orientam sua produção

em função de outros parâmetros de produção sígnicas.

Por todos esses aspectos, a obra do fotógrafo e etnógrafo Pierre Verger

apresenta-se como um campo bastante fértil para análise. Atualmente, sua

notoriedade decorre não apenas da sua produção científica tradicional, mas

principalmente do material fotográfico que produziu ao longo de parte de sua vida,

por meio do qual foi aprimorando a idéia da utilização da imagem como instrumento,

estratégia metodológica, objeto e linguagem de investigação antropológica. Além do

mais, sua obra não está apenas localizada dentro do debate voltado estritamente

para a Antropologia. Até hoje, ela é tema e repercute nos domínios da arte e

comunicação, o que demonstra seu potencial para uma reflexão aprofundada sobre

as estratégias de produção de conhecimento presentes na imagem.

Dada a pluralidade de sua obra, que congrega grande diversidade de temas,

locais e maneiras de representar pela fotografia, neste trabalho, a análise será

direcionada para a discriminação de dominantes encontradas em determinados

conjuntos de imagens. Mas antes, faremos algumas considerações acerca da utilização

da fotografia como instrumento científico.

47

A possibilidade de captar imagens com base em um processo físico-químico,

como tornou viável, no século XIX, a invenção e o aperfeiçoamento da câmera e dos

suportes fotográficos, gerou grandes expectativas e especulações acerca de seu

emprego, principalmente em relação ao impacto que poderia provocar na produção

artística a partir de então. Por outro lado, a difusão da fotografia na sociedade coincide

com o momento de formação de parâmetros positivistas na ciência, inclusive nas

humanidades. Os esforços de muitos pesquisadores da época, no sentido de legitimar

um novo domínio científico relativo ao homem e à sociedade, basearam-se nessas

premissas, e determinaram suas propostas epistemológicas.

Não é possível esquecer que o advento da fotografia no século XIX é também

o resultado das condições sócio-históricas da época. Para o positivismo científico, os

sentidos humanos, em especial a visão, representavam o modo de verificação das

evidências sensíveis do mundo numa perspectiva em que o empirismo é o método

fundamental para a investigação científica. Porém, ainda assim, o pesquisador poderia

fazer alguma observação equivocada em decorrência da falibilidade de sua condição

humana, vulnerável a paixões e subjetividades. Assim, a busca por formas de objetivar

os sentidos produzindo instrumentos que, de certa forma, substituíssem ou

complementassem a observação humana, tornou-se também um empreendimento

científico.

Segundo o filósofo Vilém Flusser, a fotografia foi o primeiro tipo de imagem

técnica produzida pela humanidade, e isso significa que, além de ser produzida por

aparelhos, estes aparelhos são produtos de um texto científico (FLUSSER, 1998: 33).

2.1. A fotografia vai a campo

48

Esse aspecto delineia sua historicidade e vai ser determinante nas suas formas de

interpretação. A fotografia deve ser então compreendida como decorrência daquilo

que produziu o próprio aparelho e do qual provém suas potencialidades, emanentes

na imagem. Portanto, as imagens realizadas serão análogas ao princípio de

cientificidade que as gerou, e ao mesmo tempo, capazes de acionar conteúdos mágicos

das imagens tradicionais por não serem destituídas de valor simbólico.

Mas, num primeiro momento, a matriz científica geradora do processo

fotográfico impregnou a compreensão das imagens produzidas com uma grande carga

de objetividade. Elas foram muitas vezes encaradas não como representações do

mundo, mas como janelas (Idem:34) para esse mundo, e desse modo, seus significados

pareciam inequívocos. Com isso, ela obteve status de prova de evidências sensíveis,

mais confiáveis e imparciais que as impressões de um observador humano. A câmera

fotográfica foi considerada um aparelho capaz de estabelecer um elo sem

intermediários entre a imagem e seu significado e, nesse aspecto, isso representava

a imagem refletindo a realidade.

Inicialmente, a técnica fotográfica demandava longos tempos de exposição

para a fixação da imagem sobre o suporte, restringindo a obtenção de imagens a

partir de elementos mais estáticos. A fotografia de pessoas limitava-se aos retratos

e cenas posadas, ainda assim, com certa dificuldade em manter os modelos numa

mesma posição, sem qualquer movimento, durante o tempo necessário. Os suportes

geralmente eram preparados manualmente e exigiam sua revelação logo após a

exposição, o que obrigava o fotógrafo a carregar um verdadeiro laboratório para

onde quer que fosse fazer a imagem.

49

O avanço da técnica tornou a fotografia mais ágil. Novos aparelhos, formatos

menores e películas mais sensíveis, que exigiam menos tempo de exposição,

permitiram a abordagem de uma variedade bem maior de temas, não mais restritos

às cenas ou elementos imóveis. Isso acontece principalmente a partir do início do

século XX, e possibilitou aos pesquisadores, inclusive àqueles já dedicados às

investigações sociais, sua utilização como recurso metodológico de observação e

obtenção de dados. A partir de então, a fotografia também vai assumir um papel

muito importante como recurso jornalístico. Essas utilizações irão, portanto, ressaltar

seu caráter de registro e de documentação.

A revisão desses aspectos situam novamente o debate acerca daquilo que a

princípio fundamentou o emprego de fotografias na pesquisa científica, em especial

na etnografia. Elas foram consideradas para várias funções, todas apoiadas na certeza

de sua auto-referencialidade. Alguns antropólogos visualizaram no recurso fotográfico,

e também no cinematográfico, a possibilidade de documentação e, talvez, preservação

de traços culturais de grupos que estivessem passando por processos de trocas e

assimilações interculturais considerados pelos pesquisadores como ameaçadores de

uma ordem original que, naquele momento, eram seus objetos privilegiados. A tradição

etnográfica do início do século XX estava ainda baseada na idéia de que um certo

grau de isolamento era favorável para que a observação empírica pudesse revelar, a

partir das funções sociais verificadas, sua totalidade. Muitas vezes, a atenção do

observador voltava-se para objetos, gestos, rituais e toda ordem de materialidade

verificada como recurso para a compreensão de seus significados na totalidade do

50

grupo. Dessa forma, o registro fotográfico seria uma ferramenta útil na tentativa de

preservar aspectos culturais tangíveis, pois era considerado um dos meios mais

imparciais da época para a obtenção de dados.

Isso demonstra que a utilização do recurso fotográfico pela ciência baseava-

se na função referencial da linguagem. A função referencial é centrada no referente,

isto é, no objeto fora da representação a que uma mensagem se refere. Dentre todas

as funções definidas por Jakobson, a referencial é aquela mais verificada em textos

científicos e jornalísticos, por estar baseada numa linguagem convencional em relação

às regras dos códigos e, portanto, intencional na produção de mensagens menos

ambíguas. Esse tipo de linguagem é impessoal, objetiva e descritiva, verificada

principalmente pelo discurso em terceira pessoa. Esses são recursos utilizados para

que a mensagem cumpra o papel de aquisição de conhecimento sobre o referente

pelo receptor.

Sobre a utilização científica e jornalística da fotografia, também é possível

compreendê-la como um signo predominantemente indicial, segundo as proposições

da teoria semiótica desenvolvida por Charles Sanders Peirce. O entendimento do

elemento dominante em um signo começa pela sua compreensão como fenômeno

que, para o autor, representa qualquer possibilidade existente na mente, sem se

preocupar se aquilo corresponde a uma suposta realidade ou não e, portanto, qualquer

dado da experiência pode ser entendido como fenômeno. O autor denominou esse

estudo como Fenomenologia, buscando detectar as características constantes em

qualquer fenômeno. Para tal, recorre-se a três faculdades que, sinteticamente, são:

51

em primeiro lugar, ver sem interpretação; em segundo, perceber algum aspecto

específico de seu objeto de estudo sob seus disfarces, focar a atenção; e, por último,

generalizar. É preciso observar fixamente o fenômeno, verificar suas particularidades

para, só então, uma vez identificado o que ele tem em comum com outros fenômenos

semelhantes, generalizar.

Assim, Peirce elaborou categorias gerais para a classificação das experiências:

Primeiridade, Secundidade e Terceiridade. Buscou o que nelas existia de essencial e

universal, observando como entravam em contato com a consciência. Não se trata

aqui de uma consciência exclusivamente racional, mas também de uma consciência

em estado bruto, voltada para uma apreensão primeira dos fenômenos.

O princípio ontológico da primeiridade é o acaso. Um instante único, que

proporciona à consciência uma qualidade de sentimento inédito e irrecuperável.

Imediato em relação ao fluxo de tempo e também não-mediado. A primeiridade

abre possibilidade para a experimentação de um fenômeno não necessariamente

real, mas apenas possível e imaginável. A arte se utiliza dessa propriedade para

transmitir esse sentimento que, em essência, não pode ser traduzido.

A primeiridade deve ser compreendida como uma espécie de componente da

secundidade, pois a qualidade de sentimento que lhe é característico necessita estar

materializada para existir e ser cognoscível. A qualidade é, portanto, uma parte do

fenômeno, que se dá por completo pela consciência de reação que temos a ele. É uma

relação de dualidade. A primeiridade pode ser compreendida como a experiência

interna e una, mas que só se realiza por completo quando se torna externa, ou seja,

52

quando se percebe que o fenômeno é um outro em relação ao eu. Portanto, a

secundidade está no plano do real, do pensável, do sensível e se verifica pela alteridade.

Seu princípio ontológico é a existência. É uma relação de negação e resistência ao

primeiro, estabelecendo uma bipolaridade em relação à apreensão da experiência.

Ao puro sentir da primeiridade, sucede-se essa consciência de reação, que nega a

qualidade de sentimento, mas ainda apresenta apenas uma possibilidade de

experiência.

Para dissolução dessa espécie de impasse, a experiência necessita ser pensada

dentro de um fluxo temporal, objetivo, que mediatiza o sentimento e sua reação.

Entramos aí no domínio próprio do pensamento, em que o signo parece se completar,

produzindo um interpretante e assim fechando uma cadeia de produção de sentido.

Assim, tem-se que o signo seja uma qualidade (primeiro), o objeto uma existência

(segundo) e o interpretante uma síntese (terceiro). Estes três (signo, objeto e

interpretante) são os elementos fundamentais do processo de síntese intelectual,

em que um signo é traduzido e se torna outro signo, e representa o que Peirce chamou

de proceso de semiose, entrando aí no domínio da terceiridade. Com capacidades de

produção simbólicas, o homem apreende o mundo por meio de signos, por meio de

representações.

A lógica triádica proposta por Peirce na Fenomenologia é transposta para as

formas de representação e interpretação dos fenômenos elaboradas pela Semiótica.

Segundo o autor, todo fenômeno se apresenta à mente humana na forma de signo. O

signo congrega os princípios fundamentais das categorias fenomenológicas

53

(primeiridade, secundidade e terceiridade) e, dependendo de sua natureza, apresenta

a dominância de uma delas, podendo ser predominantemente icônicos, indiciais ou

simbólicos. O que determinará essa dominância será a relação estabelecida entre o

signo e seu objeto (mais especificamente, com seu objeto dinâmico). Esses dois são

elementos geralmente distintos, porém o objeto pode ser encarado como algo que

determina o signo ou, por outra, o signo já é a representação do objeto, mas

correspondendo a apenas uma parte ou aspecto dele (SANTAELLA, 1995: 49).

Signos icônicos serão aqueles em que o objeto é apenas uma possibilidade, e

virá a existir quando houver a geração de um interpretante que passará a funcionar

com objeto. Ou seja, o signo estabelecerá uma relação com o objeto por uma hipotética

relação de similaridade. O signo indicial será aquele mais conectado ao objeto, que

nesse caso é um existente e, portanto, o signo será afetado por ele, estabelecendo

entre ambos uma correspondência mais direta. Sua função é apontar para o objeto,

chamando a atenção do intérprete ou receptor. O símbolo será um tipo de signo que

ressaltará os atributos generalizantes do objeto, processo que já ocorre no nível do

interpretante, e é necessariamente diverso de seu objeto, representando uma lei,

convenção ou hábito.

Essas são apenas relações fundamentais da classificação proposta por Peirce

para a compreensão da natureza dos signos, e possuem uma série de variantes

previstas pelo próprio autor, que serão tateadas conforme se mostrarem necessárias

para as análises seguintes. De início, é preciso destacar o caráter indicial atribuído à

fotografia, a partir do qual é possível justificar sua utilização na pesquisa científica,

colocando-a como evidência objetiva do mundo.

54

O processo físico-químico que dá origem à fotografia já poderia ser tomado

para a consideração desta imagem como índice de uma realidade ora existente. Isso

ocorre porque ela é decorrência da manifestação da luz reagindo sobre um suporte

sensível que, a partir de gradações de tons, registra a aparência dessa luz refletida.

Esse já seria um incontestável objeto na determinação do signo, como existente do

qual ele decorre. Mas também podemos considerar a aparência da luz registrada, ou

seja, a cena que dará origem à imagem pensada como objeto, e assim verifica-se aí

outra relação de determinação. Aquilo que aparece representado em tonalidades

gris, tamanho reduzido e limitado por margens é considerado como evidência e

registro da realidade.

Em pesquisas científicas, como no caso da etnografia, a fotografia foi empregada

intencionalmente para privilegiar o vínculo com seu objeto e, assim, tornar-se um

documento indicial do objeto. Dessa forma, ela pôde ser interpretada pelo viés da

objetividade e neutralidade atribuídas ao ofício científico, utilizadas como elementos

confiáveis e até mesmo mais estáveis dentro desse tipo de pesquisa. Fica evidente

que essa utilização estava pautada nos parâmetros de uma objetividade positivista

que orientou o surgimento das Ciências Sociais como um todo e, também, de modo

específico, o surgimento do trabalho de campo em antropologia com a proposição da

metodologia conhecida por Observação Participante que, por sua vez, estava

relacionada ao Funcionalismo Britânico, e também aos estudos relativos aos aspectos

materiais da cultura previstos pelo Culturalismo norte-americano.

55

O primeiro foco de análise sobre o material fotográfico de Pierre Verger vai

justamente procurar demonstrar como elementos compositivos da imagem

referendam uma produção direcionada pelos parâmetros de cientificidade já

abordados. Não por acaso, esse aspecto é revelado em seu material mais sistematizado,

decorrente dos anos de pesquisas realizadas em regiões da África Ocidental e no

Brasil, sobretudo na Bahia, onde ele traça um percurso discursivo de descrição e

comparação entre a cultura e a religiosidade de ambos os lugares, buscando assim

comprovar e atingir o consenso acerca das influências e semelhanças verificadas.

Vale, a princípio, ressaltar algumas condições técnicas em que suas imagens

foram produzidas. Seu trabalho fotográfico mais significativo, durante as décadas de

1940 e 1950, foi produzido com câmeras de tipo reflex, como a sua Rolleiflex, utilizando

originais negativos em preto e branco e no formato 6X6 cm. Sempre trabalhou com

as condições de luminosidade oferecidas pelo ambiente e, até mesmo por isso, optava

pelas películas mais sensíveis à luz que tinha a disposição. A objetiva usada era de

tipo normal, ou seja, a mais próxima da perspectiva do olho humano. A revelação e

ampliação do material eram feitas geralmente pelo próprio fotógrafo que, sobretudo

na África, não encontrava os recursos ideais para o trabalho. Em campo, era comum

ampliar as imagens usando a luz do dia e um aparelho fotográfico de fole, com o qual

era possível ampliar e passar a imagem do negativo para o positivo sobre o papel. O

resultado técnico e estético, se questionável a olhares mais minuciosos, parecia

satisfazer as intenções do autor.

56

Desde 1936, Verger tem fotografias publicadas sobre diferentes temas e

lugares em coletânias de imagens e textos partilhados com outros autores. Em 1954,

publicou sua primeira obra exclusiva, entitulada Dieux d’Afrique: culte des orishas

et vodouns à l’ancienne Côte des Esclaves, en Afrique, et à Bahia, la Baie de tous les

Saints au Brésil, com prefácio de Théodore Monod e Roger Bastide. Nela, fica evidente

seu tema privilegiado de pesquisa, bem como sua opção metodológica. O livro é uma

espécie de compilação das imagens (160 na edição original), em que aparecem as

representações das divindades cultuadas no condomblé no Brasil e na África, sendo,

portanto, uma obra eminentemente fotográfica, mas que lança mão de algumas

legendas resumidas, datas e localizações. O argumento principal é a comparação,

principalmente por semelhança, entre as representações dos orixás, a partir do

enfoque em ornamentos, instrumentos rituais, gestos e toda sorte de elementos

utilizados para descrever suas particularidades. Essa perspectiva é reafirmada com

a publicação em 1957 de Notes sur le culte des orisa et voduns: à Bahia la Baie de

tous les Saints, au Brésil, et à l’ancienne Côte des Esclaves, en Afrique, também

com prefácio de Théodore Monod, que continua mantendo uma estrutura de

comparação entre as imagens (159 na edição original), mas que traz outros materiais

recolhidos por Verger em campo, baseados nos textos das tradições orais dos dois

locais, como lendas e cânticos.

No tocante a sua produção científica e opção metodológica pela fotografia como

instrumento de pesquisa, as obras mencionadas têm importância ímpar. Mas ainda

outras imagens publicadas mais recentemente em coletânias organizadas por terceiros

57

após a morte do autor em 1996, e parte de seu acervo já disponibilizado pela fundação

que leva seu nome, serão válidas para a verificação de nossas hipóteses.

A abordagem partirá do pressuposto de que toda imagem fotográfica é

decorrente de escolhas e seleções parciais de seu produtor, ainda que este pretenda

obter um registro neutro e isento de intencionalidade, apoiado no alto grau de

indicialidade que as imagens desta natureza podem adquirir, bem como das

possibilidades programáticas da técnica empregada para obtê-las. Assim, mesmo ao

fotografar fenômenos sociais tão distantes de sua esfera cultural, o pesquisador ou

fotógrafo estará construindo uma visualidade baseada em seus códigos e sistemas

culturais e, por isso, passarão a adquirir significados que extrapolam a pretensa

neutralidade e imparcialidade científica. Ou seja, verificamos a existência de uma

estrutura que, por vezes, direcionará a leitura do fenômeno e a produção da imagem,

com base naquilo que o observador já possui estruturado como código, num processo

de tradução intersemiótica que produzirá conhecimento também sobre o próprio

observador. Em outros casos, arranjos sígnicos mais sofisticados produzirão

mensagens de maior valor comunicativo, por estabelecer, pela própria composição

da imagem, uma relação mais dialogal entre observador e observado.

A noção da existência de traços dominantes que ressaltam determinados

valores na mensagem foi elaborada pela teoria formalista russa e retomada pelo

lingüista Roman Jakobson em seus estudos literários. Apesar da ênfase dada pelo

autor à linguagem verbal, ele próprio afirma que o conceito é pertinente também

para a compreensão de qualquer outra linguagem ou sistema de signos

58

(JAKOBSON, 1971: 119), pois permite avaliar as funções de linguagem que lhe são

predominantes. Segundo Jakobson,

Pode-se definir o dominante como sendo o centro de enfoque deum trabalho artísitico: ele regulamenta, determina e transformaos seus outros componentes. O dominante garante a integridadeda estrutura. É ele que torna específico o trabalho (JAKOBSON,

1983: 485).

E completa:

Ele é em si um sistema de valores: e como em todo sistema devalores ele detém uma hierarquia própria na qual existem valoressuperiores e inferiores e um valor primeiro entre todos, o dominante

[...] (JAKOBSON, 1983: 486).

A teoria das funções da linguagem desenvolvida por Roman Jakobson parte

do pressuposto que todo ato de comunicação é composto por seis elementos: emissor,

receptor, referente, canal, código e mensagem. No processo construtivo de uma

mensagem, um desses fatores é posto em destaque, o que não exclui a presença dos

demais, e é a identificação do elemento predominante que determinará qual função

de linguagem é a dominante na mensagem. Respectivamente aos elementos da

comunicação, as funções da linguagem são: emotiva, conativa, referencial, fática,

metalingüística e poética.

Com base nessas concepções, o trabalho de análise será pautado pela busca

das dominantes reconhecidas em conjuntos de imagens da obra de Pierre Verger. A

59

definição desses conjuntos será determinada ainda pela identificação dos sistemas

envolvidos na produção das imagens que constituem “textos da cultura”. Como visto

no capítulo anterior, os sistemas culturais, quando entram em contato e estabelecem

trocas, são produtores de informação e significado; e os textos produzidos nessa

dinâmica são as formas mínimas de emanação dos sistemas. Portanto, a partir dessas

unidades, poderemos decodificar as mensagens e identificar seus dominantes, bem

como os significados produzidos.

Considerando a extensão e as particularidades de seu trabalho de pesquisa

realizado com o intuito de correlacionar aspectos culturais e religiosos entre o Brasil

e a África, este material fotográfico produzido será tomado como primeiro caso de

análise, denominado “A fotografia como registro comparativo”. Nesse material, será

verificada a existência de intenções claras de registro, documentação, descrição e

comparação dos fenômenos sociais, tomados como interessantes para a elaboração

de um discurso que, se ainda não era eminentemente científico6, já apresentava traços

que o direcionava para este objetivo.

Outro conjunto de imagens, já não

exclusivamente relacionadas ao seu trabalho

eminentemente etnográfico, vai demonstrar uma

formatação visual muito direcionada pela estética

clássica do ocidente, operando com códigos como

ortogonalidade, simetria e proporcionalidade. Essa

seção, denominada “A fotografia como ordem

6 Em diversas ocasiões PierreVerger afirmou que sua principalatividade era a fotografia, e mesmocom ela não teria objetivoscientíficos. A função de etnógrafoe os trabalhos daí decorrentesteriam sido realizados para ocumprimento de suas obrigaçõescom as instituições que lheforneciam bolsas de estudos. Massua própria trajetória de vidaacabou o contradizendo, pois apósa década de 1970, Verger assumefunções acadêmicas institucionaise dedica-se a estudos delingüística e etnobotânica,abandonando a atividade defotógrafo.

60

ocidental”, visa avaliar as conseqüências desses elementos na composição da

mensagem e a sua atuação como mediadores na produção de sentido.

Por fim, o terceiro grupo de imagens selecionadas são aquelas que estão numa

posição fronteiriça entre a busca pela objetividade científica e uma maior exploração

dos recursos visuais para a produção de conhecimento. São “fotografias que ensinam

a ver”, pois já apresentam influências que ampliam sua compreensão para além do

objeto referecial, ainda que tenham sido produzidas com a mesma intenção das

anteriores, e demonstram mais claramente como os elementos de composição da

imagem atuam como mediadores para a produção de sentido.

A seleção proposta não tem a intenção de esgotar as possibilidades analíticas

acerca de uma obra tão vasta e diversificada como é a do autor tomado aqui como

objeto de investigação. Ela apenas segue uma orientação que visa compreender o tipo

de informação gerada na imagem e seus graus de comunicabilidade com base nos

sistemas envolvidos na sua produção. Assim, foi possível discriminar as imagens a

partir de blocos determinados pelas dominantes encontrados, ressaltando que a ênfase

dada à função que predomina em cada grupo não exclui a presença de outros traços

compositivos que igualmente podem ser reconhecidos, ainda que estejam sob influência

direta do dominante.

61

Ao longo de seu trabalho de pesquisa empírica, Verger registrou, por meio da

fotografia, aspectos considerados significativos para a compreensão de seu objeto de

investigação. Muitos deles são representados da mesma forma, ou seja, abordados

comparativamente por semelhança, e baseiam-se também na idéia de uma possível

representação neutra e imparcial sobre o objeto com base na obtenção de imagens

técnicas.

Em sua obra, verificamos a recorrência de fotografias retratando as mesmas

cerimônias, vestimentas, transes, objetos e papéis sociais, compondo um percurso

comparativo entre o Brasil e a África. Disso decorre também um discurso descritivo

que, a partir do aspecto enfocado, tenta demonstrar as correspondências culturais

nos lugares pesquisados, chegando a suas funções na totalidade social. Vimos que

esta é uma orientação teórica do funcionalismo britânico, que entende a tomada de

um segmento social e suas funções como síntese de sua totalidade. Para alcançar esse

objetivo, ela apóia-se numa metodologia de trabalho de campo denominada

“Observação Participante”, baseada no trabalho minucioso de observação e coleta de

dados. A descrição representa, nesse contexto, um esforço para registrar aspectos

culturais relevantes. A utilização do recurso fotográfico em campo teve, em muitos

casos, essa mesma intenção, como demonstram as imagens selecionadas a seguir.

Dentro de um universo muito significativo de sua produção fotográfica, elas sugerem

a dominância da função referencial da linguagem, em composições sígnicas

pretensamente indiciais.

2.2. A fotografia como registro comparativo

62

Na função referencial, o código fica em segundo plano na mensagem, em

proveito do referente envolvido na sua produção. Verificado na imagem, isso se

configura numa representação que explora poucos recursos plásticos e estéticos

pertinentes à visualidade.

Fig. 1 - Tambores na África. Fonte: “Oolhar viajante de Pierre Verger”.

Fig. 2 - Tambores no Brasil. Fonte:“Oolhar viajante de Pierre Verger”.

63

O esforço comparativo verificado nos exemplos anteriores intenciona construir

uma espécie de ligação extensiva entre aspectos culturais semelhantes. Sob o ponto

de vista diacrônico, indicada na antropologia americana, a brasileira seria extensão

Fig. 3 - Estátuas Salvador/ Brasil. Fonte:“O olhar vianjante de Pierre Verger”.

Fig. 4 - Estátuas Nigéria. Fonte: “O olharvianjante de Pierre Verger”.

64

da africana. Verger busca essa correspondência, além de delimitar aspectos culturais,

focalizar contatos sociais e a cultura material. Essas são determinações metodológicas

também presentes tradição etnográfica americana que, por isso, pressupõe

comparações entre grupos.

Em diversas publicações, Verger priorizou a fotografia como meio de expressão

do conhecimento gerado por suas pesquisas. As imagens que tentam generalizar

aspectos da vida social e cultural representada são consideradas, ainda que sem

intenção declarada, argumentos válidos de proposições teóricas derivadas de tradições

científicas ainda vigentes no período relativo à sua produção, destacadamente o

funcionalismo e o culturalismo. As imagens selecionadas são apenas exemplos diante

da diversidade de aspectos descritos e comparados por Verger em suas fotografias

sobre a cultura e a religiosidade iorubá no Brasil e na África.

65

A observação do material fotográfico de Pierre Verger também indica a

composição de uma representação imagética na qual encontramos tensões entre as

características do objeto fotografado e os elementos de linguagem utilizados para a

construção dessa representação. Em uma parte considerável de sua obra, as

fotografias apresentam alguns traços representativos de uma formatação cartesiana,

própria da tradição cultural ocidental. Na maioria das vezes, elas seguem uma

composição de proporções favorecidas pelo formato do tipo de negativo utilizado por

Verger (6X6 cm) em sua câmera Rolleiflex. Assim, operando constantemente com

códigos visuais como ortogonalidade, proporcionalidade e simetria, temos a construção

de uma imagem organizada segundo critérios de uma visualidade correlata aos

paradigmas tradicionais do ocidente, que visa atingir ideais de harmonia e equilíbrio

na composição para alcançar o objetivo de transmissão da mensagem.

Esses códigos contrastam significativamente com os fenômenos sociais

representados nas imagens, que partem de outras lógicas culturais, muitas vezes

difusas e assimétricas para o padrão ocidental. Temos aí um processo de tradução

intersemiótica, ou como propôs Geertz, a interpretação da cultura pelo olhar

formatado do homem ocidental, do observador científico. Essa constatação torna-se

até mesmo curiosa quando nos defrontamos com os depoimentos de Verger, em que

ele afirma ter optado por fotografar culturas e sociedades distantes da sua, pela

necessidade que sentia de se libertar e escapar de seu meio, a França do início do

século XX, fugindo das regras de conduta que não o tornavam feliz (VERGER, 1982).

2.3. A fotografia como ordem ocidental

66

Fig. 5- CapoeiraSalvador/ Brasil.Fonte: “Saída deIaô”.

Fig. 6- DiagramaCapoeira Salvador/ Brasil.Fonte: “Saída de Iaô”.

Sob determinado ponto de vista, podemos perceber nas fotografias de Verger

a construção de um regime de visibilidade que parte de pressupostos esquemáticos

que são parâmetros culturais convencionais no ocidente. Em seu trabalho fotográfico,

67

há traços que indicam uma leitura do fenômeno contaminada pela estética lançada

pelo humanismo renascentista e também pelos próprios parâmetros de objetividade

positiva que ainda norteavam a Antropologia de sua época. Mesmo sem uma formação

institucional formal, ele se expressa por meio dos códigos que estruturam a linguagem

acadêmico/científica e a estética ocidental. Esses códigos acabam por gerar uma

representação visual baseada num paradigma de racionalidade subjacente ao seu

modo de ver. Nesse sentido, o olhar do observador é aquele que procura traduzir

aquilo que vê em função daquilo que já possui estruturado como código. Como nos

demonstrou Morin, o chamado paradigma cartesiano do ocidente extrapola limites

específicos e perpassa o cotidiano em instâncias sociais, e será perceptível, nesse

caso, na construção da representação do objeto. Assim, temos um modo de compor a

imagem onde o plano comunicativo coincide com determinados parâmetros científicos

do ocidente, como a fragmentação do objeto, redundando em discursos muito

semelhantes. Mais uma vez, temos a confluência de parâmetros científicos e estéticos

refletindo o olhar do observador, criando um esquema de visualidade que permite,

de certa forma, hierarquizar a imagem. Isso é decorrente de arranjos compositivos

que irão ressaltar determinados aspectos do objeto ou, até mesmo, moldá-lo, com o

intuito de direcionar a sua produção de significado.

Uma estrutura esquemática pertinente direciona a leitura da imagem enquadrando-

a naquilo que a faz compreensível para o observador, ou seja, ele traduz o que vê com base

nos elementos que já possui estruturado como código e dentro das possibilidades de

mediação cultural privilegiadas pela própria programação do recurso fotográfico.

68

Percebemos esse aspecto nas imagens analisadas a seguir. A composição

destaca o elemento principal por meio de um esquema triangular e esquematiza a

área pelo recurso típico da estética ocidental de divisão proporcional tripla. Essa

montagem, a um só tempo técnica e cultural, privilegia a compreensão do fenômeno

pelo observador do que revela aspectos representativos sobre o objeto.

Fig. 7- Capoeira Salavador/Brasil Fonte: “O olhar viajantede Pierre Verger”.

Fig.8- Diagrama CapoeiraSalavador/ Brasil Fonte: “Oolhar viajante de Pierre Verger”.

69

Em mais um caso, a imagem da prática da capoeira evidencia uma tensão

existente entre a representação e o objeto. O olhar clássico do observador Pierre

Verger consegue formatar, num esquema estático, esse misto de jogo e dança repleto

de movimentos oblíquos. Percebemos isso pela divisão ortogonal da imagem, com

uma certa predominância das linhas verticais, além da composição central. Essa

cena é representada em uma série de fotogramas, em que é possível reconhecer a

recorrência dos mesmos elementos de composição. E, ainda em outra cena sobre o

mesmo tema, podemos encontrar esses mesmos traços compositivos.

Os aspectos apontados até agora trazem marcas reconhecíveis na análise da

visualidade dessas imagens, pautadas pelo reconhecimento mais imediato de formas

e conceitos relativos a uma matriz operante, decorrente dos parâmetros técnicos,

científicos e conceituais do ocidente. Nessa perspectiva, a imagem foi encarada pela

etnografia e pela antropologia como um recurso declaradamente objetivo e

documental, representando um instrumento para a etapa de captação de dados em

campo. Mas também é possível notar que, mesmo quando há uma intenção de enfocar

o objeto, outros sistemas podem interferir na produção do significado da imagem.

Por isso, é necessário avaliar e reconhecer os elementos que fazem a mediação entre

o objeto e a representação produzida a partir dele.

A validade do recurso visual torna-se mais questionável no momento de

generalizar e expressar conclusões científicas, tendo em vista a natureza polifônica

deste signo, mesmo quando ele é produzido declaradamente com esta intenção. Talvez

por isso, encontramos, na maioria dos casos, monografias etnográficas em que as

70

imagens têm uma função secundária, quase sempre ilustrando o que já foi descrito

ou apontado verbalmente.

Mesmo afirmando algumas vezes não possuir uma pretensão científica

explícita, Verger tinha a intenção de transmitir de forma clara e sem distorções os

aspectos étnicos iorubás, objeto que lhe era particularmente caro, já que ele próprio

tornou-se adepto da religião que pesquisava. Ainda assim, essa parte de seu trabalho

se configura com base na interação entre sistemas culturais muito próximos,

decorrentes de uma matriz de cientificidade ocidental, gerando uma produção que

pode ser considerada de pouca complexidade informacional. Chegamos a essa

possibilidade a partir da observação dos sistemas envolvidos nesse fazer. Entre

métodos, ferramentas, códigos e objetivos envolvidos, há um eixo baseado na

racionalidade cartesiana. Assim, apesar de não possuir uma formação acadêmica

tradicional, podemos identificar preceitos da cientificidade positivista ao propor

comparações e trajetórias lineares de abordagem dos fenômenos sociais, sobretudo

quando prioriza o elemento referencial para a obtenção de um material documental.

Aliado a esse aspecto, a tecnicidade e os elementos programáticos da câmera

fotográfica também irão impor alguns parâmetros a serem seguidos. Por fim, a esses

sistemas, é possível agregar a visualidade estruturada em códigos consagrados pela

estética clássica ocidental, como proporcionalidade, ortogonalidade e simetria.

Como já sugerimos anteriormente, percebemos uma mesma matriz para os

sistemas que figurariam como mais emergentes na obra etnográfica visual de

PierreVerger, e seria a matriz da lógica cartesiana do ocidente. Assim, a reflexão

71

decorrente de sua pesquisa empírica e visual assemelha-se muito a de outras

etnografias da época, permeadas pelos mesmos princípios.

Todavia, a análise da obra etnográfica visual de Pierre Verger oferece ainda

um outro vetor de análise, no qual é possível delinear uma possível tensão estabelecida

entre os códigos relacionados ao paradigma cartesiano e o próprio objeto, que parece

não se deixar apreender unicamente por esse padrão representativo, mesmo que

ele ainda prevaleça. É o que será visto no próximo conjunto de imagens.

72

A imagem a seguir está presente na edição original de “Dieux d’Afrique” e

também em uma edição brasileira entitulada “Orixás: os deuses iorubás na África e

no Novo Mundo”, acompanhada da seguinte legenda: “Uma iaô de Exu na Bahia”

(VERGER, 1997:84). Segundo explicações do próprio Verger e de outros pesquisadores

sobre o candomblé, Exu é uma divindade que corresponde ao mensageiro dos orixás,

sincretizada com o diabo, o que lhe conferiria uma aparência desagradável e violenta.

O contraste entre luz e sombra é marcante na imagem, pois apenas o seu

primeiro plano é iluminado, ficando todo o fundo em completa penumbra. No centro,

aparece uma mulher representando Exu, quase que emoldurada nas laterais por

elementos verticais de difícil definição exata7, mas que reforçam sua postura vertical

Fig.9 - Exu - Bahia/Brasil. Fonte: “Orixás”.

2.4. A fotografia que ensina a ver

73

e ereta. A figura está quase de perfil, tendo a fronte e parte da lateral do corpo

iluminada por uma luz muito definida, que vai ressaltar sua expressão facial, os

ornamentos utilizados e o gesto do braço direito que segura o instrumento que

simboliza a divindade. A luz valoriza a caracterização em detalhes, que vão desde a

fileira de búzios presentes no gorro, ressaltados pelo contraste claro-escuro, os colares

e cabaças que se estendem pelo tronco, até as pregas da saia acrescidas de adereços

em formato fálico. Também se evidencia a face franzida (tanto pela posição em relação

à luz do sol, como pela aparência e características do Exu) e o tronco aprumado, além

do porrete, instrumento em evidencia que está numa composição triangular e contínua

com o braço flexionado. Percebe-se, então, que o destaque desses elementos, a partir

da utilização de recursos fotográficos básicos como o contraste da luz, a centralização

e a verticalidade da figura, criam um percurso sobre a divindade representada que

vai além do descritivo e sinalizam para uma composição visual que já apresenta outras

possibilidades interpretativas, dissociadas de traços extremos de indicialidade e

referencialidade.

Nessa representação do Exu, a luz funciona como o principal elemento de

composição e produção de significado na imagem. Além de ressaltar os aspectos

característicos da divindade, ela gera uma sensação de

simbiose entre os acessórios materiais e a pessoa,

recriando, pela imagem, a prática de personificação dos

deuses pelos praticantes da religião. Essa imagem,

portanto, não constitui apenas o registro da caracterização

7Em consulta ao acervodigital da Fundação PierreVerger foram enontradasoutras fotografias damesma cena, em planosmais abertos, nas quais épossível verificar que apessoa está no limiteexterno da porta de uma

casa de pau-a-pique.

74

da divindade, mas expressa sua forma de culto, pois o recurso visual mencionado

produziu, como efeito de sentido, a fusão entre o plano mundano e o divino. A luz

estabeleceu uma relação icônica com o objeto representado, pois conferiu ao signo

uma qualidade de sentimento.

Mas ainda existem traços correlativos às abordagens feitas nas seções

anteriores. Percebemos que o braço cria um prolongamento com o instrumento que

simboliza a divindade numa composição triangular e central na imagem, como é típico

da representação visual clássica do ocidente. A própria centralidade e verticalidade

da figura principal insinuam a presença do paradigma cartesiano como um dos

elementos que determinará a composição da imagem. Esses elementos formais são

acionados na tentativa de produzir imagens em que o equilíbrio e a clareza da

composição conduzem para a compreensão inequívoca do objeto e, portanto,

intencionam a construção de um signo predominantemente indicial.

A tensão estabelecida entre a luz e a representação ortogonal, que

intenciona enquadrar o objeto segundo um determinado padrão representativo, dota

a imagem fotográfica de uma maior complexidade comunicativa, visto que já indica a

sua possibilidade construtiva. A presença de determinados traços icônicos que

mantém uma relação de similaridade com o objeto representado abre uma

possibilidade interpretativa que viabiliza o estabelecimento de associações que vão

muito além do mero reconhecimento de um referente ou de um código já conhecido.

Mais do que isso, a imagem em questão parece indiciar o próprio procedimento

construtivo da representação fotográfica.

75

Fig. 10 - Diagrama Exu - Bahia/Brasil.Fonte: “Orixás”..

Isso porque, dificilmente, a imagem fotográfica poderá ser caracterizada como

um índice genuíno, pois seus elementos compositivos também podem ser considerados

potenciais qualidades, já que a apreensão do signo passa primeiramente por eles. Por

mais que as fotos observadas até aqui se destaquem pelo aspecto indicial e simbólico,

em virtude da forte alusão ao referente e aos códigos já consagrados pelo ocidente,

ainda é preciso considerar que, segundo Peirce, todo símbolo, assim como o índice,

possuem um ícone embutido. Para o autor, tal como o índice, um ícone nada afirma

acerca do objeto, todavia, a sua presença num índice e num símbolo propicia o

reconhecimento de uma qualidade representativa, sem a qual, a relação entre signo e

objeto não se estabelece (PEIRCE, 1990:69). Nesse caso, o que propicia a compulsão

ao objeto da experiência é um aspecto presente na materialidade sígnica que indica

76

uma possibilidade representativa que, necessariamente, não precisa coincidir tal qual

com o objeto.

Com relação à imagem observada, nota-se que, a despeito da predominância

do símbolo construído pela verticalidade, é possível apreender traços icônicos que

não apenas fazem remissão ao objeto representado, mas que possibilitam o seu

conhecimento sob uma outra perspectiva, mediante determinadas qualidades

representativas materializadas pela luz.

Essas relações podem ser verificadas em outras imagens referentes a

divindades, como é o caso a seguir. Xangô é um dos deuses africanos mais fotografados

por Verger, reafirmando sua intenção comparativa como estratégia de pesquisa. Mas,

assim como a anterior, essas imagens não se restringem apenas à recorrência do

referente, mas destacam-se igualmente pela maneira de representá-lo. Mais uma

vez, é perceptível a composição baseada principalmente no contraste estabelecido

entre a luz e a verticalidade, emoldurada num plano médio, ressaltando possíveis

atributos do objeto.

Após iniciar sua pesquisa, Verger tornou-se também um praticante da religião,

tendo sido consagrado como filho de Xangô. Essa relação de proximidade e filiação a

uma divindade específica é uma das características do culto. Isso talvez explique, em

parte, sua especial atração pela caracterização deste deus africano.

77

Fig. 11 - Seqüência de fotos Xangô.Fonte: “O olhar viajante de Pierre verger”.

78

Xangô é considerado um dos mais poderosos deuses entre as religiões de origem

africana que o cultuam. É caracterizado pela força, agilidade, violência e justiça; e

associado as forças naturais do fogo, raio e trovão. Seu principal símbolo é um machado

duplo, chamado “oxé”, que aparece em evidência nas muitas imagens produzidas em

diferentes lugares. É possível perceber que algumas fotografias parecem ser posadas,

inclusive, porque em algumas delas, as pessoas direcionam o olhar para a câmera, o

que é incomum na maior parte da obra de Pierre Verger. Mas esse é um dado que

pode ser tomado como representativo da pretensão de registro e comparação em sua

obra. Assim, o autor usa as imagens na tentativa de construir uma espécie de ponte

entre os lugares pesquisados. Durante anos, ele realizou suas pesquisas em trânsito,

estando ora no Brasil, ora na África, e produziu um trabalho paralelo acerca da cultura

e da religiosidade iorubá presentes nas duas localidades. Temos assim um olhar

comparativo do mesmo observador sobre o mesmo objeto em locais diferentes, numa

investigação que tende a priorizar os aspectos de semelhança. Esse objetivo é

alcançado, em certa medida, pela própria similaridade na forma de representação do

objeto, que os aproxima da ordenação vertical, induzindo a mesma interpretação sobre

as diversas caracterizações.

Todavia, apesar da presença desses aspectos que ressaltam a objetividade de

sentido produzida numa representação que registra um elemento individual do

conjunto social, atributos do objeto perpassam a imagem de uma maneira similar ao

caso anterior. Nesse caso, é preciso ressaltar que, além da luz, o enquadramento

produzirá efeitos de sentido na representação. O plano americano recorrente nas

79

imagens valoriza o dorso ereto das pessoas personificadas como Xangô. O ângulo em

que as imagens foram produzidas, a partir do abdômen e até mesmo numa projeção

de baixo para cima resssaltam o carater de força e poder atribuído à divindade

representada.

Desse modo, nota-se que, nos últimos casos observados nessa seção, o traço

icônico, ainda que inserido numa ordenação em que o índice e o símbolo são dominantes,

já indica, mesmo que timidamente, a possibilidade construtiva da imagem. Nesse

aspecto, o ícone parece funcionar como uma fronteira que delimita as fotografias

observadas até agora com as que serão examinadas a seguir. Isso porque, nestas

últimas, o fotógrafo rompe com o viés indicial e simbólico em proveito de um modo de

representar no qual sobressai o traço construtivo e metafórico da imagem. Disso

resultam várias possibilidades interpretativas que elucidam não apenas as

características referentes ao objeto retratado, mas, sobretudo, à própria elaboração

da representação fotográfica, o que amplia, e muito, o caráter informacional e

comunicativo da imagem.

80

Capítulo III

A fotografia como ruptura

81

Pierre Verger alegava que o ato de fotografar era, de certa maneira, involuntário.

Segundo ele, ao fotografo não caberia a decisão de registrar um determinado fragmento

de tempo e espaço numa imagem, pois ela surgiria como uma imposição exterior da

própria imagem, numa espécie de imanência.

No capítulo anterior notamos que, muitas vezes, essa imagem obrigatória

tornava-se aquela possível de ser configurada pelos códigos de seu produtor, fazendo-

se assim compreensível para ele. No caso analisado, a percepção de elementos de

composição correlacionados ao paradigma cartesiano ocidental mostraram a tentativa

de formatar e traduzir visualmente uma ordem distinta. Desse processo, surgiram

imagens que transmitiam um elevado grau de informação sobre seu produtor,

prejudicando a representação do objeto e comprometendo seu valor comunicativo

sobre este. Com isso, foi possível perceber que a construção da imagem fotográfica

baseada na indicialidade do signo e na referencialidade da mensagem não se mostraram

como as alternativas mais plenas de possibilidades comunicativas.

Em outros casos, a idéia de emanação da imagem, de independência desta em

relação ao fotógrafo, torna-se um pouco plausível. Isso porque nem sempre é possível

controlar interferências que agregam à fotografia traços diversos daqueles relativos

à lógica de composição de seu produtor, mas que produzirão efeitos muito importantes

na compreensão da relação entre o objeto e sua representação. Entre as formas de

interferência temos elementos como luminosidade, elementos geométricos e

composição de planos adquirindo a função de qualidades sensíveis e produzindo

significados. Justamente em composições visuais menos convencionais, teremos a

82

oportunidade de encontrar informações mais refinadas e complexas, decorrentes das

seleções e arranjos de seus traços compositivos, pois é em sua materialidade que o

signo pode adquirir maior expressividade.

Neste capítulo, a descriminação dos elementos compositivos da imagem será

utilizada para demonstrar as relações apontadas. Assim, reforçamos a idéia de que,

mais que o referente, a composição concreta da imagem é fundamental para a

construção de seu significado. Uma mesma cena ou tema poderá ser representado

fotograficamente de diversas maneiras, e sua compreensão dependerá, em muitos

casos, menos da informação transmitida pelo referente, mas da ordenação das partes

que irão compor sua visualidade.

Vale ressaltar que, assim como no capítulo anterior, as análises das imagens

não esgotam todas as suas possibilidades interpretativas. Elas buscam explicar

algumas relações que afetam a compreensão do signo visual e que precisam ser

considerados numa perspectiva de utilização da imagem como mediadora do

conhecimento para as Ciências Sociais, revelando-lhe uma esfera desafiante de

apreensão sensível de significados.

83

A fotografia foi composta a partir de um plano de conjunto, que destaca a figura

humana de uma criança em corpo inteiro, trazendo a sua proporcionalidade para a

cena. Também compõem a imagem, em primeiro plano, além da criança, o muro ou

parapeito sobre o qual ela está em pé. Ao fundo, tem-se o céu aberto e rajado com

algumas nuvens, a linha do horizonte e o chão formando uma estreita faixa da imagem,

ambas muito próximas da linha formada pelo limite do parapeito; e num plano

intermediário, acima do menino e em diagonal a ele está a pipa suspensa no ar.

A imagem mostra a ação de um menino de costas, apoiado sobre um muro ou

parapeito aparentemente alto em relação ao chão, soltando uma pipa, brinquedo feito

com papel colado sobre varetas de bambu, tiras de plástico ou papel formando uma

cauda e linha.

3.1. O menino e a pipa

Fig. 12 - Cenas de rua Salvador. Fonte: “O olhar viajante de Pierre Verger”.

84

Na composição da imagem

percebe-se a existência de alguns

pontos de tensão (T), formados pela

intersecção de linhas e planos. O

primeiro deles (T1) visualiza-se

intersecção entre eixo vertical (E1),

composto pela figura do menino em

posição ereta e o braço estendido

acima da cabeça; e o horizontal (E2),

traçado pelo limite do parapeito. Eles

estão em posição perpendicular um ao

outro, e, portanto, compõem um eixo

cartesiano.

Duas linhas diagonais

concorrentes, perpendiculares,

marcadas por áreas claras da

composição, formam um segundo

ponto de tensão (T2) que produz uma

sobreposição de planos. A primeira linha (L1) é formada pela luz incidente na pilastra

do muro na base inferior esquerda da fotografia, na camisa do garoto e na pipa que

está no ar, compondo uma diagonal ascendente. A outra (L2) também se constrói

como uma linha ascendente, em decorrência do efeito criado pela gradação dos volumes

Fig. 13 - Diagramas 1 e 2 - Cenas de ruaSalvador. Fonte: “O olhar viajante dePierre Verger”.

85

das nuvens que aumentam do canto inferior direito para o superior esquerdo, ou seja,

sua construção se contrapõe à primeira. O ponto de intersecção dessas duas linhas já

cria uma junção de planos, pois elas se desenham em campos distintos da perspectiva

de profundidade. Também estabelecem uma tensão em relação ao eixo cartesiano

anterior, pois enquanto esse produz uma certa fixidez na imagem, essas linhas diagonais

ascendentes que apontam para lados opostos criam a sensação de expansão.

A separação entre dois campos distintos também é muito marcante no sentido

vertical, e produz aí não mais um ponto, mas toda uma linha de tensão (T3). A partir

do recurso de oposição claro/escuro, a fotografia traz em primeiro plano, na base,

uma área de pouca luminosidade e que ocupa apenas cerca de ¼ da imagem. Toda a

parte superior, em segundo plano e de tamanho bem maior que a anterior, apresenta

um degrade que, de baixo para cima, vai do claro para o escuro, delimitando mais

uma vez um eixo opositivo entre

esta e a base.

A área clara que domina a

extensão da imagem será

tensionada pela projeção da figura

do menino, em primeiro plano,

sobre o céu que está em segundo,

causando uma interferência

decorrente da sensação de fusão

entre os planos e do próprio

Fig. 14 - Diagramas 3 - Cenas de ruaSalvador. Fonte: “O olhar viajante dePierre Verger”.

86

contraste de luminosidade. A oposição claro/escuro verificada em campos distintos

aparece também nesse elemento, determinado pelo tom escuro da pele e pelas roupas

claras iluminadas.

A essas oposições e construções visuais ortogonais, a linha sinuosa da rabiola

da pipa situada à direita estabelecerá uma relação de assimetria, sinalizando para o

rompimento com os códigos visuais canonizados pelo ocidente. A trajetória do olhar

humano sobre a imagem plana (do conto superior esquerdo para o inferior direito, e

do inferior esquerdo para o superior direito) é forçado a desviar-se na direção da pipa

que está em suspensão no ar. A linha que prende a pipa aparece de forma muito

tênue no braço erguido do menino, assim como a sobra segurada na mão oposta. Mas

a gestualidade do braço erguido cria um prolongamento deste com a pipa. Mesmo

Fig. 15 - Diagrama 4 -Cenas de ruaSalavador. Fonte: “Oolhar viajante de PierreVerger”.

87

quase invisível, o fio pode ser pressuposto, pois sem ele o brinquedo não estaria voando.

Em conjunto com a rabiola, eles adquirem força e visibilidade na hierarquia da

composição, pois entre linhas e ângulos retos, delineiam uma circunferência que integra

e relaciona os diversos pontos de tensão da imagem.

O braço erguido da criança coincide com a mesma posição de uma das nuvens,

passando a impressão que esta se encontra ao alcance de suas mãos, reforçando a

aproximação dos planos. A linha do horizonte está bem próxima e paralela ao topo do

parapeito onde o menino apóia os pés, tendo o pé direito já direcionado para fora

desta base. Um pouco acima dessas duas linhas e também paralela a elas, percebe-se

uma fileira de nuvens que não ultrapassa a altura dos joelhos do garoto. A junção da

figura da criança em primeiro plano com o plano de fundo dominado pelo céu e sua

integração com a pipa em suspensão no ar produzem na imagem efeitos sensíveis

muito marcantes. O menino parece estar preste a alçar vôo.

As tensões sinalizadas evidenciam oposições (ortogonalXcircular, claroXescuro,

perspectivaXplanos paralelos) que irão complexar os significados produzidos pela

imagem. Ela demonstra o rompimento com estruturas convencionais, visto que não

se limita a registrar apenas a ação da criança brincando com uma pipa num dado

ambiente e contexto, mas apresenta possibilidades interpretativas e de significação

que a colocam numa esfera poética e metafórica.

Retomando as funções de linguagem definidas por Jakobson, um texto poético

é aquele em que o fator predominante é a mensagem, construída a partir da projeção

do eixo do paradigma sobre o sintagma. Enquanto no primeiro, os signos mantêm

88

entre si uma relação de equivalência, no segundo ocorre a construção de enunciados

com base na justaposição das unidades selecionadas no paradigma. Na função poética

da linguagem, ocorre a projeção do paradigma sobre o sintagma, de forma que a

elaboração da mensagem ocorre mediante o estabelecimento de equivalências entre

os diferentes signos alocados no sintagma.

Isto ocorre porque a metáfora relaciona-se à categoria da qualidade e, por isso,

seu caráter representativo envolve algo de inusitado e único, pois a “primeiridade

(...) dá à experiência sua qualidade distintiva, seu frescor, originalidade irrepetível e

liberdade (SANTAELLA, 1994:50). A representação metafórica decorre de um

paralelismo estabelecido entre duas coisas, idéias ou opiniões distintas, sendo esta

correlação materializada por uma qualidade presente no arranjo sígnico. Nesta

composição, explora-se uma qualidade representativa no signo com o intuito de

correlacioná-la a algo diverso. É este aspecto que identifica a primeiridade da metáfora,

pois sua constituição envolve, necessariamente, a associação por similaridade, em

que dois ou mais elementos, aparentemente sem relação, são postos em equivalência,

sendo este paralelo construído por um traço muito tênue presente (ou não) na

materialidade de ambos, cuja associação resultante, muitas vezes, pode causar

estranheza pelo seu ineditismo.

Por outro lado, na classificação estabelecida por Peirce, a metáfora apresenta-

se como uma primeiridade carregada de terceiridade e, por isso, seu funcionamento

lógico prevê a atuação de uma “consciência sintética, reunindo tempo, sentido de

aprendizado, pensamento” (1990: 14). Assim, o interpretante resultante dessa relação

89

sígnica implica a produção de um novo significado, por mais tênue que ele seja, mas

que completa uma tríade de produção de sentido, caracterizando a metáfora como

um hipo-ícone de terceiridade.

Uma metáfora de movimento surge a partir dos contrapontos estabelecidos

entre os diferentes traços compositivos da imagem. O referente é deslocado, e a

mensagem que surge pelas relações opositivas criadas em seu interior constroem

outro significado. É possível perceber, então, a complexidade agregada a este signo,

que apesar da indicialidade atribuída à fotografia em geral, mostra-se com aspectos

que rompem com uma idéia comum de fixidez e autoreferencialidade.

A imagem é construída a partir de diversas relações tensivas de seus elementos

de composição, verificados nos contrapontos estabelecidos entre linhas verticais,

horizontais e circulares; planos paralelos e contrastes de luminosidade. Correlacionando

todos eles, ela terá seu sentido produzido justamente no paradoxo produzido por esses

componentes, ambíguos para a geração de uma mensagem consensual unívoca, mas

valiosos para o estabelecimento de relações de equivalência entre esses traços

construtivos e os significados produzidos.

Elementos como a postura do menino, a presença da pipa suspensa no ar, a

integração de linhas antagônicos numa composição circular e a sobreposição dos planos

de luminosidade e profundidade, funcionam como qualidades, e induzem também à

uma relação possível com o voar. Tem-se a sensação de iminência do vôo da criança.

Novamente verifica-se na metáfora a produção de uma equivalência com seu objeto,

sendo este último apenas uma possibilidade de existência. É assim que os elementos

90

apontados anteriormente induzem esta relação e até mesmo a uma associação com

idéia de liberdade.

91

A fotografia é composta em plano de conjunto onde aparecem várias pessoas

dispostas lado a lado. Elas observam a prática da capoeira realizada por duas que

estão à frente. A capoeira é uma mistura de luta, jogo e dança que comumente é

praticada por duplas no centro de uma roda formada por outras pessoas, em geral

também praticantes, que acompanham, cantando e batendo palmas, o ritmo

determinado por instrumentos musicais típicos (na fotografia em análise visualiza-se

berimbau e pandeiro, mas também é comum a utilização, além destes, de atabaque e

agogô). Ao fundo da imagem, percebe-se a presença de um telhado do lado direito, e

mastros de saveiros do centro para a esquerda, perpassando o céu que ocupa toda a

3.2. A Roda de capoeira

Fig. 16- Cenas de rua Salvador. Fonte: www.pierreverger.org.

92

parte superior da composição. Há ainda, na base da imagem, sombras de pessoas

projetadas sobre o chão.

É possível identificar nessa imagem uma composição de divisão dupla no sentido

vertical, delimitando aí novamente uma tensão (T1) que será significativa na sua

compreensão. A primeira parte, de cima para baixo, é formada pelo céu cortado de

mastros que se estendem para o bloco de pessoas em posição central na imagem

nesse sentido. Essa área ocupa cerca de 60% do espaço.

A segunda apresenta o chão e sombras humanas, preenchendo os 40%

restantes. Apesar de não ser percentualmente maior que a anterior, esta área e seus

elementos constitutivos determinam a compreensão da imagem como um todo.

Também neste caso é possível perceber a criação de oposições como elementos

de construção de sentido na

imagem. Uma delas se refere

mais uma vez ao claro-escuro,

reforçado pela presença de céu

na parte superior da imagem e

de chão em sua base. Outro

aspecto relevante é a

configuração do elemento

humano. Nota-se que as

pessoas reais então num plano

intermediário da perspectiva e Fig. 17- Diagrama 1 - Cenas de rua Salvador.Fonte: www.pierreverger.org.

T1

93

p r o p o r c i o n a l m e n t e

menores em relação às

sombras que aparecem em

primeiro plano. Até mesmo

as figuras dos capoeiras,

apesar de estarem um

plano a frente e ocuparem

o centro geométrico da

imagem, não se destacam,

pois aquele que está em pé

integra-se ao bloco de

pessoas que circunda a ação; e aquele que executa um movimento em posição

horizontal vai integrar-se ao conjunto formado pelas sombras, ou seja o bloco superior

apresenta uma característica frontal, de pouca profundidade de campo. Perspectiva

e profundidade serão elementos construídos no bloco inferior, que mais uma vez entra

em contraste com o plano anterior.

É no elemento da perspectiva criada pelo chão com sombras projetadas que o

caráter de movimento e integração entre os participantes ganha força de

representação na formação circular que coloca em conexão os dois planos. O bloco de

pessoas central torna-se o prolongamento das pessoas representadas pelas sombras,

compondo um novo plano para a imagem: o plano da roda. Além de indicar que a roda

em que se pratica a capoeira estava formada, esse prolongamento também criará

Fig. 18- Diagrama 2 - Cenas de rua Salvador.Fonte: www.pierreverger.org.

94

uma ligação entre dois campos opostos da imagem. Portanto, ao mesmo tempo em

que linhas retas estabelecem blocos com limites muito marcantes, uma integração foi

possível.

Novamente tem-se um processo de construção metafórico, em que qualidades

presentes no signo estabelecem uma relação de equivalência com características do

objeto representado. Percebe-se que nessa forma de composição visual, o objeto é

privilegiado, pois não será formatado em estruturas pouco correspondentes à sua

natureza, como no caso analisado no capítulo anterior sobre o mesmo fenômeno, a

capoeira. Nas duas imagens analisadas nesse terceiro capítulo, de muitas possíveis,

observa-se que a reordenação de alguns códigos visuais e a introdução de outros em

montagens menos convencionais agregam significado e expandem a compreensão do

objeto representado. Nesses casos, ao contrário de formatá-las de acordo com

esquemas estruturados pela estética clássica ocidental, operando com códigos como

ortogonalidade, simetria, proporção e profundidade; Verger vai introduzir outros

códigos, como circularidade, sobreposição e integração de planos, que funcionam como

qualidades na imagem para demonstrar os aspectos plurais e oblíquos do objeto

representado. Dessa forma, assim como no caso anterior, ele cria um percurso

narrativo-visual que conduz à interpretação do signo para além de seu referente.

Nota-se que, em ambas as fotografias, é possível apreender a existência de

uma mediação que se coloca entre as imagens e seus receptores. Mais uma vez, a

alusão aos estudos sobre a linguagem realizados por Jakobson torna-se indispensável.

Isso porque, nos casos estudados, a mediação é construída pela metalinguagem.

95

A função metalingüística é centrada no código, de modo que tanto um código

pode ser usado para explicitar outro código, como pode ocorrer que um mesmo código

seja utilizado para se auto-explicar. Tal como enfatiza Chalhub (1990: 52), a função

metalingüística pode ser sintetizada por uma equação: a linguagem objeto é discutida

por meio dela própria ou de um outro código. A seleção efetuada no código implica a

revisão dele próprio, o que faz com que, muitas vezes, ele não seja apenas descrito ou

explicitado, visto que o trato com o código pode levar à criação de um código

absolutamente novo. Além disso, segundo a autora, a metalinguagem pode ser ampliada

para a discussão do próprio processo construtivo da linguagem, visto que “assume,

livremente, conotações mais amplas “ aliada à noção de linguagem” (1990:49). Nesse

sentido, falar acerca da metalinguagem implica discutir os procedimentos que levam

à edificação de novas formas representativas.

É com base nesse preceito que a mediação produzida pelas imagens em questão

pode ser entendida. Em todas elas, é possível delimitar a existência de um mecanismo

construtivo que sobressai sobre todos os demais elementos presentes na mensagem,

de modo que os significados apenas são edificados por meio da apreensão da

metalinguagem presentificada no arranjo sígnico. Desse modo, ao romper com a

ortogonalidade distintiva do paradigma cartesiano, as duas últimas imagens analisadas

se voltam para o seu próprio fazer, no qual se busca estabelecer uma nova forma de

representar, o que, impreterivelmente, conduz à própria redefinição da linguagem

fotográfica. Nesse caso, pode-se dizer que a fotografia se volta para ela própria, de

forma a ressaltar a sua natureza construtiva, o que desfaz com a idéia de “registro”

96

comumente associada a ela. Sem a apreensão desse fazer, torna-se impossível

apreender a amplitude representativa dessas imagens.

É essa mediação que irá distinguir, de maneira contundente, as fotografias

estudadas neste capítulo, daquelas estudadas anteriormente.

97

Este trabalho foi destinado a avaliar as possibilidades relativas à produção de

conhecimento em Antropologia com base na mensagem visual. Como a imagem possui

diversas formas de manifestação, restringimos nossa abordagem à fotografia, por ser

um recurso há muito empregado na pesquisa etnográfica, mas que ainda gera debates

acerca de sua compreensão tanto como método de investigação e como discurso

científico.

A obra fotográfica de Pierre Verger foi escolhida por congregar a execução de

trabalhos relacionados à finalidade científica etnográfica, mas também por apresentar

uma produção permeada por outros objetivos e temas. Assim, foi possível identificar

estratégias envolvidas em diferentes projetos, e pensá-los em relação a algumas

propostas do fazer etnográfico e antropológico. Procuramos entender como traços

recorrentes na composição das imagens selecionadas tornam-se determinantes na

produção de seus significados, na compreensão do objeto representado e, sobretudo,

na sua amplitude comunicativa, superando a ortodoxia científica da primeira tradição

etnográfica. A seleção, ainda que restrita diante de uma obra tão extensa e

diversificada, teve como objetivo reconhecer constantes e variáveis representativas

na construção de uma visualidade vinculada a projetos antropológicos de produção e

interpretação de imagens.

No processo de discriminação das fotografias, pudemos verificar o grau de

comunicabilidade e complexidade da mensagem transmitida, supondo assim a

existência de uma certa categorização produzida com base nas diferentes abordagens

presentes na obra. Por meio delas, foi possível avaliar as estratégias elaboradas e que

Considerações Finais

98

tipo de conhecimento antropológico geradao e, sobretudo, o alcance comunicativo da

fotografia

Percebemos que a busca por um elevado grau de objetividade resultou em

imagens cujo intuito foi produzir apenas um registro da aparência visível do mundo.

Essa forma de representação estava ainda permeada pela noção de que a obtenção de

imagens, a partir de recursos tecnológicos, era capaz de produzir um retrato fiel e

imparcial da realidade. Por isso, temos recorrentes composições visuais em que a

valorização do referente suplanta a exploração de recursos estéticos fotográficos. Disso

decorre uma representação visual correlacionada aos pressupostos científicos que

direcionaram a produção etnográfica da primeira metade do século XX.

Na perspectiva de atingir uma compreensão consensual sobre o referente da

imagem, Verger lança mão de recursos de composição que ordenam a imagem segundo

critérios da estética e da racionalidade ocidental. Isso foi verificado em imagens em

que os traços de simetria, ortogonalidade e proporcionalidade são determinantes na

sua leitura, ainda que estes sejam elementos contrastantes com o objeto representado.

Retomando a abordagem semiótica intersistêmica elaborada por Iúri Lótman,

identificamos, nesse primeiro eixo, imagens produzidas com base em sistemas muito

próximos, por serem decorrentes de uma mesma matriz cultural. Entre eles, temos a

cientificidade almejada nesse tipo de representação, que estaria em correlação aos

elementos visuais relativos à estética clássica ocidental e à própria tecnicidade da

câmera fotográfica. A partir da relação desses sistemas, a intenção de produção de

uma mensagem inequívoca acerca do objeto representado fica comprometida, já que

99

ela sofre, em grande medida, a interferência de sistemas que lhe são opostos. Assim,

há um acréscimo de informação ao texto produzido nessa relação, mas que não se

refere propriamente ao objeto, mas sim ao seu produtor. O processo de tradução e

seleção realizado entre sistemas distintos no interior da semiosfera, nesse caso, opera

com códigos muito semelhantes e minimiza outras interferências.

Porém, a relação comunicativa estabelecida entre os sistemas culturais acontece

por um mecanismo que funciona como uma fronteira seletiva, mas também permeável.

Portanto, notamos a contaminação desse tipo de mensagem referencial por elementos

que insinuam a presença de sistemas distintos dos identificados anteriormente. É

dessa forma que a luminosidade assume um caráter central em algumas

representações, que irão valorizar características do objeto. Dessa maneira, como prevê

Lótman, o texto produzido não funciona apenas como um passivo transmissor de

sentido, mas como uma “consciência criadora”, geradora de novos significados.

Percebemos que há maiores possibilidades comunicativas em textos que

articulam sistemas menos correlatos. Nesses casos, as possibilidades de seleção e

tradução acontecem num universo com maiores chances de combinação, donde a

tensão surgida na reordenação e recodificação intersistêmica produz textos mais

refinados e complexos do ponto de vista informacional. Assim, elementos compositivos

que rompem com uma ordem convencional irão produzir uma mensagem de caráter

mais dialogal, na qual será possível reconhecer, na materialidade, a diversidade de

seus sistemas produtores. Isso foi notado nos casos em que o próprio objeto atua

entre os sistemas produtores de sentido, configurando seus traços representativos e

100

até mesmo sobressaindo-se na hierarquia da imagem. Desse processo decorre uma

representação visual com possibilidades comunicativas mais amplas e, dado seu aspecto

dialógico, mais adequada em relação a um projeto de antropologia intercultural e

intersubjetivo.

Essa perspectiva de trabalho antropológico já é defendida como alternativa

mais adequada ao seu tipo de objeto e ao conhecimento produzido nesta área. Disso

também decorrem preocupações acerca dos recursos de linguagem mais apropriados

para tornar plenas suas possibilidades de sentido. Assim, de acordo com o que foi

analisado, a possibilidade de uma teoria antropológica visual deverá estar apoiada

menos na referencialidade e indicialidade do signo do que em estruturas mais

complexas de composição e significação, pois são elas que colocariam em diálogo

observador e observado, ou como no caso aqui abordado, entre fotógrafo e fotografado,

revelando aspectos culturais de ambos numa espécie de discurso compartilhado.

101

Índice de imagens

Fig. 1 - Tambores na África. Fonte: “O olhar viajante de Pierre Verger”. pág. 62Fig. 2 - Tambores no Brasil. Fonte:“O olhar viajante de Pierre Verger”. pág. 62Fig. 3 - Estátuas Salvador/ Brasil. Fonte: “O olhar vianjante de Pierre Verger”.pág. 63Fig. 4 - Estátuas Nigéria. Fonte: “O olhar vianjante de Pierre Verger”.pág. 64Fig. 5- Capoeira Salvador/ Brasil. Fonte: “Saída de Iaô”.pág. 66Fig. 6- Diagrama Capoeira Salvador/ Brasil. Fonte: “Saída de Iaô”. pág. 66Fig. 7- Capoeira Salavador/ Brasil Fonte: “O olhar viajante de Pierre Verger”. pág. 68Fig.8- Diagrama Capoeira Salavador/ Brasil Fonte: “O olhar viajante de Pierre Verger”. pág. 68Fig 9 - Exu - Bahia/Brasil. Fonte: “Orixás”. pág. 72Fig. 10 - Diagrama Exu - Bahia/Brasil. Fonte: “Orixás” pág. 75Fig. 11 - Seqüência de fotos Xangô. Fonte: “O olhar viajante de Pierre verger”. pág. 77Fig. 12 - Cenas de rua Salvador. Fonte: “O olhar viajante de Pierre Verger”.pág. 83Fig. 13 - Diagramas 1 e 2 - Cenas de rua Salvador. Fonte: “O olhar viajante de Pierre Verger”.pág. 84Fig. 14 - Diagramas 3 - Cenas de rua Salvador. Fonte: “O olhar viajante de Pierre Verger”. pág.85Fig. 15 - Diagrama 4 - Cenas de rua Salavador. Fonte: “O olhar viajante de Pierre Verger”. pág. 86Fig. 16- Cenas de rua Salvador. Fonte: www.pierreverger.org. pág. 91Fig. 17- Diagrama 1 - Cenas de rua Salvador. Fonte: www.pierreverger.org. pág. 92Fig. 18- Diagrama 2 - Cenas de rua Salvador. Fonte: www.pierreverger.org. pág. 93

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