comunicação e expressão - matematicando · a lebre e a tartaruga e “um amigo na hora da...

17
Capítulo 2 Professor: Edson Comunicação e Expressão

Upload: ngotram

Post on 10-Nov-2018

226 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

Comunicação e Expressão

Page 2: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

COMO INTERPRETAMOS UM TEXTO

Caro aluno,

Como tem sido as suas leituras? Você lê com frequência? Quando lê, você

consegue entender claramente o que o texto quer dizer?

Uma das maiores dificuldades encontradas pelos alunos, em relação ao

aprendizado de um conteúdo, é a deficiência na leitura e compreensão do sentido

dessa leitura. Isto quer dizer que muitos não conseguem entender o que leem ou

apenas reproduzem, com as mesmas palavras, o que está escrito na superfície

textual, ou seja, naquilo que está escrito ”literalmente” ou mostrado. Abaixo segue

uma crônica de Ignácio de L. Brandão, publicada no jornal O Estado de São Paulo.

Leia-a atentamente, para entender o que acabamos de falar:

Para quem não dorme de touca

Na infância, ele era diferente. Acreditava nos outros, acreditava nas coisas. Quando alguém dizia: - Por que não vai ver se estou na esquina? Ele corria até a esquina, olhava, esperava um pouco, reconfirmava e voltava:

- Não tem ninguém na esquina. - Quer dizer que voltei. - Por que não me avisou que voltou? - Voltei por outro caminho. - Que outro caminho? - O caminho das pedras. Não conhece o caminho das pedras? - Não. - Então não vai ser nada na vida. Outra vez, numa discussão, alguém foi imperioso: - Quer saber? Vá plantar batatas.

Ele correu no armazém, comprou um quilo de batatas e foi até o quintal, plantou tudo. Não é que as batatas germinaram! Houve também aquele dia em que um amigo convidou:

- Vamos matar o bicho? - Onde o bicho está? - Ali no bar. - Que bicho? É perigoso? Me dê um minuto, passo em casa, pego a espingarda do meu pai ... - Espingarda? Venha com a sede. - Não estou com sede. - Matar o bicho, meu caro, é beber uma pinga.

Page 3: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

Em outra ocasião, um primo perguntou: - Você fez alguma coisa para a Mercedes? - Não. Por quê? - Ela passou por mim, está com a cara amarrada.

- Amarrada com barbante, com corda, com arame? Por que uma pessoa amarra a cara da outra? - Nada, esquece! Você ficou com a cara de mamão macho, me deixou com cara de tacho. É um cara-de-pau e ainda fica aí me olhando com a mesma cara. Outra vez, uma menina, que ele queria namorar, se encheu: - Pára! Não me amole! Por que não vai pentear macaco? Naquela tarde ele foi surpreendido no minizoológico do bairro, com um pente na mão e tentando agarrar um macaco, a quem procurava seduzir com bananas. Uma noite combinaram de jogar baralho e um dos parceiros propôs:

- Vai ser a dinheiro ou a leite de pato? - Leite de pato, propuseram os jogadores. Ele se levantou: - Então, esperem um pouco. Trouxe dinheiro, mas não leito e de pato. Vou providenciar. - E onde vai buscar leite de pato?

- A Mirela, ali da esquina, tem um galinheiro enorme, está cheio de patos. Vou ver o que arranjo. Voltou meia hora depois: - Não vou poder jogar. Os patos, me disse a Mirela, não estão dando leite faz uma semana. Riram e mandaram ele sentar e jogar. Em certo momento, um jogador se irritou, porque o adversário, apesar de ingênuo e inocente, tinha muita sorte. - Vou parar. Você está jogando com cartas marcadas. - Claro que tem marca! É Copag, a melhor fábrica de baralhos. Boa marca, não conheço outra. - Está me fazendo de bobo, mas aí tem dente de coelho. - Juro que não! Por que haveria de ter dente de coelho? Quem tirou o dente do coelho? - Além do mais, você mente com quantos dentes tem na boca. A gente precisa ficar de orelha em pé. - Não estou fazendo nada. Estou na minha, com meu joguinho, vocês é que implicam. - Desculpa de mau jogador. - Não devo nada a ninguém aqui. - Deve os olhos da cara. - Devo? Não comprei os meus olhos. Nasceram comigo. Só se meus pais compraram e não pagaram. Todos provocaram, pagavam para ver. - Não venha com conversa mole, pensa que dormimos de botina? - Não penso nada. Aliás, nunca vi nenhum de vocês de botina. - Melhor enrolar a língua, se não se enrosca todo. - Não venha nos fazer a boca doce, que bem te conhecemos! As conversas eram sempre assim. Pelo menos foram até meus 20 anos, quando deixei a cidade. A essa altura, vocês podem estar pensando que ele era sonso, imbecilizado. Garanto que não. Tanto que, hoje, é um empresário bem-sucedido,

Page 4: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

fabrica lençóis, fronhas e edredons, é dono de uma marca bem conhecida, a Bem Querer & Bem-Estar. Não sei se um de vocês já comprou. Se não, recomendo. Claro, recomendo a quem não dorme de touca, quem não tem conversa mole para boi dormir, quem não dorme no ponto, quem não dorme na portaria, para aqueles que não dormem sobre louros. Enfim, para quem não dorme com um olho aberto e o outro fechado. (BRANDÃO, Ignácio de Loyola. O Estado de São Paulo, 8 jul. 2005. Caderno 2, p. D14.)

Observamos que nessa crônica, o sujeito destacado pelo narrador somente

entendia as orações de forma literal, ou seja, ele não conseguia entender a

intenção proposta pelas pessoas, quando diziam algo. Você já vivenciou esse fato?

Essa história parece ser até ridícula; aparentemente nenhuma pessoa faria

isso, pois dentro da ação comunicativa, o indivíduo consegue entender que essas

expressões são formas de dizer, ou seja, elas são expressões populares, usadas

como figuras de linguagem para dizer algo com outro sentido.

Infelizmente, essa situação é muito comum durante o ato da leitura, porque,

muitas vezes, o leitor não consegue entender a intenção do autor. Ele começa a

pensar e a dizer algo que não está no texto.

Você já leu um texto, fez uma interpretação e quando foi ver a sua

interpretação não era a ideia central do texto? Por que será que isso ocorre?

Porque muitas vezes nós queremos entender o texto de forma literal, ou

então isolamos palavras ou frases e fazemos nossa análise sem olhar o todo.

Devemos entender que a totalidade de sentido de um texto não está somente

naquilo que está escrito, conhecido como superfície textual (o que é mostrado), mas

também está nos aspectos considerados não ditos.

No texto, podemos dizer que existem dois planos: aquilo que está mostrado

mediante as letras, palavras, figuras e gestos; e aquilo que está implícito, oculto,

ou seja, aquilo que está além dessas letras, palavras, figuras e gestos. É o que

acontece na crônica. Quando foi dito “Vai ver se eu estou na esquina” a pessoa não

Talvez, você esteja se perguntando: “Como assim?”

Page 5: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

queria que o sujeito que recebeu essa informação fosse até à esquina a fim de

verificar essa informação, porque não haveria necessidade, uma vez que ela já

estava bem à sua frente. Na realidade, por meio desses dizeres, o desejo dessa

pessoa é que o outro parasse de perturbá-la.

No entanto, deverá surgir uma nova pergunta: “Será que eu tenho essas

mesmas atitudes em relação à interpretação dos textos?”

Infelizmente, muitos ainda têm. Quer fazer um teste? Leia a seguir a fábula

de Millôr Fernandes:

A RAPOSA E AS UVAS De repente a raposa, esfomeada e gulosa, fome de quatro dias e gula de todos os tempos, saiu do areal do deserto e caiu na sombra deliciosa do parreiral que descia por um precipício a perder de vista. Olhou e viu, além de tudo, à altura de um salto, cachos de uvas maravilhosos, uvas grandes, tentadoras. Armou o salto, retesou o corpo, saltou, o focinho passou a um palmo das uvas. Caiu, tentou de novo, não conseguiu. Descansou, encolheu mais o corpo, deu tudo o que tinha, não conseguiu nem roçar as uvas gordas e redondas. Desistiu, dizendo entre dentes, com raiva: “Ah, também, não tem importância. Estão muito verdes.” E foi descendo, com cuidado, quando viu à sua frente uma pedra enorme. Com esforço empurrou a pedra até o local em que estavam os cachos de uva, trepou na pedra, perigosamente, pois o terreno era irregular e havia risco de despencar, esticou a pata e... Conseguiu! Com avidez colocou na boca quase o cacho inteiro. E cuspiu. Realmente as uvas estavam muito verdes! MORAL: A frustração é uma forma de julgamento tão boa como qualquer outra.

Fonte: (FERNANDES, Millôr. Fábulas Fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1991)

Se alguém lhe perguntasse “o que você

entendeu do texto?”, o que diria? Tente

formular, em sua mente, a interpretação do

texto. Talvez, tenha conseguido formular a

seguinte interpretação:

Essa fábula narra a história de uma raposa,

que não comia já há quatro dias e que,

portanto, estava com muita fome. Ela saiu do

areal do deserto e foi a um parreiral que descia

por um precipício. Ela olhou e viu que os

cachos de uvas eram grandes e maravilhosos.

Page 6: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

A raposa tentou pegá-los por diversas vezes, mas como não conseguiu, desistiu,

dizendo que as uvas estavam muito verdes. Quando estava indo embora, se

deparou com uma pedra enorme. Com muito esforço empurrou a pedra até o local

em que estavam os cachos de uva, trepou na pedra e conseguiu pegá-lo. Colocou o

cacho inteiro na boca e o cuspiu imediatamente, por que as uvas estavam muito

verdes.

Se essa foi a sua interpretação, ela foi apenas uma reprodução do que está

na superfície do texto, ou seja, ela é muito parecida com o sujeito da crônica que

entendia tudo literalmente. Ao contar essa fábula, a intenção é muito maior do que

apenas narrar a história de uma raposa que estava com fome.

Então, qual seria a possibilidade de interpretação? Tente enxergar outros

significados que estão além das palavras. Por exemplo:

Observe que essas questões estão nos fazendo olhar não apenas para

aquilo que está dito, mas buscarmos significados que estão além do texto. Isso

deve ocorrer na interpretação de todo texto.

O que é uma fábula?

Qual a relação da fábula com a moral?

Page 7: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

Ao analisar a fábula “A Raposa e as Uvas”, devemos primeiramente ter o

conhecimento de que uma fábula é uma narrativa figurada, na qual as personagens

são geralmente animais que possuem características humanas.

Pode ser escrita em prosa ou em verso e é sustentada sempre por uma lição

de moral, constatada na conclusão da história. Ela é muito utilizada com fins

educacionais. Muitos provérbios ou ditos populares vieram da moral contida nesta

narrativa alegórica, como por exemplo: “A pressa é inimiga da perfeição” na fábula

A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade”

em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que alguém redige uma fábula ele

deve ter em mente um ensinamento. Além disso, observamos que na fábula a

raposa não tem procedimentos próprios de um animal, mas de ser humano, pois ela

falou, empurrou a pedra, armou toda uma estratégia para pegar as uvas etc.

Diante disso, uma vez que a fábula sempre procura trazer um ensinamento,

devemos analisar a relação que existe entre a narrativa e a moral. Num primeiro

momento, o texto parece ter um caráter

ingênuo, de uma narrativa aparentemente

infantil, conforme apontamos naquela

interpretação literal. Contudo, quando

observamos alguns elementos textuais que

estão presentes na fábula, ampliamos a

nossa leitura. Logo no início da narrativa é

colocada não uma necessidade fisiológica (a

fome da raposa), mas uma questão comportamental (a gula da personagem), dado

importante para reforçar a conclusão. Além

disso, aparecem várias tentativas do animal

em obter o objeto de desejo que alimentaria

sua gula, mesmo depois de vários fracassos.

Só então a raposa emite um juízo “Ah,

também não tem importância. Estão muito

verdes.” (É bom ressaltar que esse

enunciado é precedido das expressões

“entre dentes, com raiva”, que evidenciam as condições da raposa no momento em

que diz).

Page 8: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

A partir daí, novos dizeres se apresentam no texto em virtude da intenção de

sentido. Ao se deparar com uma enorme pedra, a raposa é reanimada e tenta

novamente atingir seu objetivo, ignorando o que havia afirmado anteriormente,

premida pelas circunstâncias. Isso, aparentemente, comprova que as palavras da

personagem eram apenas tidas como desculpas por não ter conseguido a fruta

para saciar sua gula. Contudo, a raposa consegue, com muito esforço, o que

pretendia - apanhar as uvas - mas, ao contrário do que desejava, as uvas estavam

realmente verdes, expelindo-as de sua boca de tal forma que não as consumisse.

Nesse ponto, o texto amplia os horizontes do significado, determinando a

moral, cujo sentido está em confirmar a questão comportamental e não a

necessidade fisiológica. As uvas já se mostravam verdes e a raposa já havia

percebido, tanto que já o havia declarado anteriormente, mas o estado de gula era

tal, que se sobrepôs à razão. Somente no momento em que provou as uvas e

houve a confirmação do que já sabia é que veio a

consciência de não poder desfrutar daquela fruta,

daí, então, ocorre a frustração.

É claro que para fazer essa leitura e

interpretação, é necessário que o leitor comece a

perceber que aquilo que é visível num texto não é a

única leitura, mas a partir desses aspectos visíveis

associados a outros aspectos que já fazem parte da

vivência do leitor, essa leitura será ampliada.

Portanto, para compreender o que está além daquilo

que é visível, precisamos ativar o que chamamos de

conhecimento de mundo.

Mas, o que é esse conhecimento de mundo?

Page 9: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

Durante a nossa vida, nós adquirimos vários tipos de conhecimentos que

ficam arquivados em nossa memória. Por isso, é fundamental que um indivíduo

tenha acesso à cultura, faça diversas leituras, ouça música, veja filmes, pois quanto

maior for a sua experiência, maior será o seu conhecimento.

Ao fazermos uma leitura ou uma interpretação de texto, nós ativamos esse

conhecimento de mundo, para estabelecer sentido ao texto. Por isso, a leitura é

uma atividade na qual se leva em conta as experiências e os conhecimentos do

leitor.

Koch e Elias (2007, 11) dizem que “a leitura de um texto exige do leitor bem

mais que o conhecimento do código linguístico, uma vez que o texto não é simples

produto da codificação de um emissor a ser decodificado por um receptor passivo.”

Isso quer dizer que quando lemos algo, não basta apenas conhecermos as

letras ou identificarmos as imagens, pois isso

caracterizaria uma leitura ingênua. Durante o

ato da leitura, não somos simples leitores num

estado de passividade, apenas recebendo

informação, mas, devemos ser pessoas ativas

nessa leitura, buscando preencher as

lacunas que o texto tem e procurando

descobrir a intenção que está por trás dessa “superfície

textual”. Essa ação é o que chamamos de

posicionamento crítico. Segundo os Parâmetros

Curriculares Nacionais

A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem etc. Não se trata de extrair informação, decodificando letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência. É o uso desses procedimentos que possibilita controlar o que vai sendo lido, permitindo tomar decisões diante de dificuldades

Page 10: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

de compreensão, avançar na busca de esclarecimentos, validar no texto suposições feitas. (BRASIL. PCNS: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental. Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998, pp. 69-70.)

Portanto, o nosso desafio é fazê-lo perceber que há níveis de leitura e

entendimento de um texto. Muitas vezes, uma pessoa fica somente no primeiro

nível, o da superfície do texto, sendo que o sentido do texto vai muito além. Para

ajudar ainda mais no entendimento desse sentido, é necessário saber, também,

que tudo é construído dentro de um aspecto ideológico.

Quando Millôr Fernandes escreveu a fábula “A Raposa e as Uvas” procurou,

conforme analisamos, trazer como ensinamento a repreensão à gula. Para isso, ele

parte do princípio que a gula é algo condenado socialmente, uma vez que ela

pertence aos sete pecados capitais. Dessa forma, essa fábula confirma os valores

sociais, mostrando a gula de forma depreciativa, passível de um julgamento.

Agora, suponhamos que uma empresa de alimentos fosse fazer uma propaganda.

Você acha que ela seria a favor ou contra a gula? Pegue como exemplo alguns

comerciais de alimentos, principalmente quando se trata de algum chocolate: neles,

normalmente, aparece uma criança toda lambuzada, pois ela come o doce com

tanto prazer, que acaba se sujando toda.

Agora me responda: a empresa que faz a propaganda tem a mesma visão

de gula presente na fábula ou uma visão contrária? Por que isso ocorre?

Percebemos que é uma visão contrária, pois o objetivo dessa empresa é

fazer que o leitor consuma o maior número possível de produtos, para que ela

obtenha lucros. Portanto, a gula não seria vista como algo maléfico, mas benéfico.

Agora, leia o poema a seguir:

Aspecto Ideológico? O que é isto?

Page 11: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

A gula

Sorvo delícias em prazeres

que mal mastigo...

Compenso-me em torrões

mascavados de deleite

Repasto-me em trouxas

douradas de ovos moles

Degusto ostras

ovadas de luar

e empanturro-me

em iguarias às quais

não ofereço resistência

E confesso-me pecadora

e escrava desta gula,

que leva à mesa,

o banquete que me sacia,

meu regozijo e conforto,

prova das minhas fraquezas.

Maria Fernanda Reis Esteves (http://www.luso-poemas.net)

Nesse poema, como é vista a gula? É vista como algo aceito ou condenado

pelo eu-lírico, ou seja, por aquele que está dizendo o poema? O que o faz ter esse

posicionamento?

Ao analisarmos o poema, vemos uma pessoa que se declara pecadora e

escrava da gula. Embora consciente de que a gula é algo condenado socialmente,

ela sente prazer no que faz. E parece não ligar por estar transgredindo os valores

sociais. Ela sabe que a gula é uma fraqueza dela, todavia, ela se sente confortável.

Essa consciência e esse conforto vêm marcados no poema pelos verbos

“sorvo”, “repasto”, “degusto” e “empanturro”, pois estão todos ligados a ação de

Page 12: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

saborear algo. Esse posicionamento se mostra diferente da fábula e da empresa de

alimentos.

Então, o que nos leva a ter essas três visões diferenciadas da gula? São os

chamados pressupostos ideológicos de cada sujeito constituído no texto. Dessa

forma, cabe-nos ver um pouco sobre a questão da ideologia e a linguagem.

Segundo Marilena Chauí (O que é ideologia, p. 113),

“a ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas e de regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar o que devem valorizar e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer.”

Leia novamente essa definição e pense no que Marilena Chauí quer dizer.

Esse é um bom teste para ver o seu nível de leitura.

Se você for a um dicionário ou a um livro de filosofia, verá outras definições

de ideologia, todavia, essa definição dada por Chauí está bem apropriada ao que

estamos falando.

Um indivíduo, durante a sua formação vai adquirindo valores sociais, regras

de conduta que vão direcionar a sua vida. Ele buscará interpretar os fatos e se

expressar de acordo com essas ideias.

Por exemplo, se um indivíduo é de uma família em que certas palavras não

podem ser ditas porque são proibidas, esse indivíduo sempre as verá dessa forma,

por isso, procurará evitá-las.

Isso é o que ocorre nos textos, cuja temática é sobre a gula. O modo de ver

a gula e falar dela dependerá dessa questão de valores.

Esses valores, essas regras e normas são o que formam a ideologia,

portanto, o seu significado está ligado a um conjunto de ideias, de pensamentos,

das experiências de vida de um indivíduo e é por meio desta ideologia que o

indivídio interpreta seu mundo, os textos que lê e as informações que recebe por

meio de suas ações e linguagem.

Todavia, muitas vezes, a ideologia é utilizada dentro de um aspecto negativo,

porque ela pode ser usada como uma forma de mascarar a verdade. Por exemplo,

quando o patrão diz aos empregados que quanto mais eles produzirem, mais

Page 13: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

pessoas dignas e de sucesso serão; na realidade, esse patrão está se utilizando

dos aspectos ideológicos nessa fala, pois, o que de fato deseja é a grande

produção para um maior faturamento. Na sua fala há uma intenção implícita que

não é condizente com o que ele está transmitindo. Isso é muito comum na

propaganda. Com o propósito de

vender um produto, a empresa

mostra todas as qualificações desse

produto, nos passando a ideia de que

ele é importantíssimo para o

consumidor e nós somos persuadidos

de tal forma que queremos adquiri-lo.

Veja esta propaganda antiga.

Em meados do século XX, a

enceradeira surgiu como uma

inovação tecnológica importante para

a dona de casa, pois muitas mulheres

enceravam a sua casa com um

escovão ou de joelho com um pano

na mão. Procure observar essa

propaganda e veja como ela procura

vender o produto “enceradeira”.

Se você nunca passou uma enceradeira, pergunte para sua mãe se era

dessa forma que ela encerava a casa: salto, cabelo escovado, saia e blusa, como

se fosse uma princesa. Tenho certeza de que não era assim.

Observe que a propaganda quer vender a ideia de que quem comprasse a

Enceradeira Arno Super iria ter prazer em fazer a faxina de casa e nem sentiria

cansaço. Todavia, essa ideia não é verdadeira. Portanto, a empresa se apropriou

dos aspectos ideológicos para camuflar a verdade.

Dessa forma, a realidade é distorcida a partir de um conjunto de

representações pelo qual os homens se utilizam para explicar e compreender sua

própria vida individual e social. Isso ocorre com todos os indivíduos, porque nós

somos governados por uma ordem social.

Page 14: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

A ideologia, portanto, é um sinal de significação que está presente em

qualquer tipo de mensagem, pois, em toda mensagem sempre há por trás uma

intenção que normalmente não é claramente dita.

Desta forma podemos afirmar que todos nós deixamos nossa marca de visão

de mundo, dos nossos valores e crenças, e de INTENÇÃO, ou seja, de nossa

ideologia, no uso que fazemos da linguagem, pois nós recorremos a ela para

expressar nossos sentimentos, opiniões e desejos. E é por meio da linguagem que

interpretamos a realidade que nos cerca.

Porém, essa interpretação não é totalmente livre, pois ela é construída

historicamente a partir de uma série de aspectos ideológicos que todos nós temos,

mesmo sem nos darmos conta de sua existência.

Tomem como exemplo textos que valorizam a imagem da mulher como a

dona de casa perfeita, por exemplo, recorrem a um vocabulário que traduz as

características vistas como positivas, tais como, a mulher é a rainha do lar, o anjo

do lar, a mãe exemplar, a esposa perfeita, a santa senhora. Tais expressões eram

muito utilizadas nas propagandas das décadas de 40, 50 e 60. Elas funcionavam

para encobrir, na realidade, a verdadeira trabalhadora do lar, a qual deveria

manusear todos os eletrodomésticos para manter sua casa permanentemente limpa

para seu esposo.

Para entendermos ainda melhor os conceitos que estamos trabalhando, no

quadro a seguir, encontramos três músicas. Faça uma comparação entre elas e

veja qual é o perfil de juventude que encontramos nessas músicas. São os mesmos

perfis? A data da composição das músicas é importante para a concepção desses

perfis?

Toda essa questão parece ser muito complexa, pois é

muito conceitual. Então veremos a seguir como de fato a

ideologia se dá nos textos.

Page 15: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

Alegria, Alegria Caminhando contra o vento Sem lenço e sem documento No sol de quase dezembro Eu vou... O sol se reparte em crimes Espaçonaves, guerrilhas Em cardinales bonitas Eu vou... Em caras de presidentes Em grandes beijos de amor Em dentes, pernas, bandeiras Bomba e Brigitte Bardot... O sol nas bancas de revista Me enche de alegria e preguiça Quem lê tanta notícia Eu vou... Por entre fotos e nomes Os olhos cheios de cores O peito cheio de amores vãos Eu vou Por que não? Por que não? Ela pensa em casamento E eu nunca mais fui à escola Sem lenço e sem documento, Eu vou... Eu tomo uma coca-cola Ela pensa em casamento E uma canção me consola

Como Nossos Pais Não quero lhe falar, Meu grande amor, Das coisas que aprendi Nos discos... Quero lhe contar como eu vivi E tudo o que aconteceu comigo Viver é melhor que sonhar Eu sei que o amor É uma coisa boa Mas também sei Que qualquer canto É menor do que a vida De qualquer pessoa... Por isso cuidado meu bem Há perigo na esquina Eles venceram e o sinal Está fechado prá nós Que somos jovens... Para abraçar seu irmão E beijar sua menina na rua É que se fez o seu braço, O seu lábio e a sua voz... Você me pergunta Pela minha paixão Digo que estou encantada Como uma nova invenção Eu vou ficar nesta cidade Não vou voltar pro sertão Pois vejo vir vindo no vento Cheiro de nova estação Eu sei de tudo na ferida viva Do meu coração... Já faz tempo Eu vi você na rua Cabelo ao vento Gente jovem reunida Na parede da memória Essa lembrança É o quadro que dói mais...

Geração Coca-Cola Quando nascemos fomos programados A receber o que vocês Nos empurraram com os enlatados Dos U.S.A., de nove as seis. Desde pequenos nós comemos lixo Comercial e industrial Mas agora chegou nossa vez Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês Somos os filhos da revolução Somos burgueses sem religião Somos o futuro da nação Geração Coca-Cola Depois de 20 anos na escola Não é difícil aprender Todas as manhas do seu jogo sujo Não é assim que tem que ser Vamos fazer nosso dever de casa E aí então vocês vão ver Suas crianças derrubando reis Fazer comédia no cinema com as suas leis Somos os filhos da revolução Somos burgueses sem religião Somos o futuro da nação Geração Coca-Cola Geração Coca-Cola Geração Coca-Cola

Page 16: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

Eu vou... Por entre fotos e nomes Sem livros e sem fuzil Sem fome, sem telefone No coração do Brasil... Ela nem sabe até pensei Em cantar na televisão O sol é tão bonito Eu vou... Sem lenço, sem documento Nada no bolso ou nas mãos Eu quero seguir vivendo, amor Eu vou... Por que não? Por que não? Caetano Veloso Composição: Caetano Veloso/ 1967

Minha dor é perceber Que apesar de termos Feito tudo o que fizemos Ainda somos os mesmos E vivemos Ainda somos os mesmos E vivemos Como os nossos pais... Nossos ídolos Ainda são os mesmos E as aparências Não enganam não Você diz que depois deles Não apareceu mais ninguém Você pode até dizer Que eu tô por fora Ou então Que eu tô inventando... Mas é você Que ama o passado E que não vê É você Que ama o passado E que não vê Que o novo sempre vem... Hoje eu sei Que quem me deu a idéia De uma nova consciência E juventude Tá em casa Guardado por Deus Contando vil metal... Minha dor é perceber Que apesar de termos Feito tudo, tudo, Tudo o que fizemos Nós ainda somos Os mesmos e vivemos Ainda somos Os mesmos e vivemos Ainda somos Os mesmos e vivemos Como os nossos pais... Elis Regina Composição:Belchior1976

Geração Coca-Cola Legião Urbana Composição: Renato Russo / Fê Lemos / 1985

Page 17: Comunicação e Expressão - MATEMATICANDO · A lebre e a tartaruga e “Um amigo na hora da necessidade é um amigo de verdade” em A cigarra e as Formigas. Portanto, sempre que

Capítulo 2

Professor: Edson

Você percebeu que essas músicas foram compostas em três décadas

diferentes? A primeira em 1967, a segunda em 1976 e a terceira em 1985. Nelas,

encontramos diferenças nos perfis dos jovens que está intimamente ligada com a

ideologia dominante da época. Veja a análise!!!

Na primeira música, temos um jovem que vive a opressão sofrida nas ruas,

nos meios de comunicação, em sua cultura nativa, no seu próprio país na década

de 60. A letra denuncia o abuso de poder de forma metafórica: “caminhando contra

o vento/sem lenço e sem documento”; expressa a violência praticada pelo regime:

“sem livros e sem fuzil,/ sem fome, sem telefone, no coração do Brasil”; denuncia a

precariedade na educação brasileira proporcionada pela ditadura que queria

pessoas alienadas: “O sol nas bancas de revista /me enche de alegria e

preguiça/quem lê tanta notícia?”.

Na segunda música, a canção fala sobre o tempo e a juventude, a

maturidade e a impotência, a ilusão e a decepção, sobre ganhar e perder. Embora

as pessoas sejam tão previsíveis e as histórias, inclusive políticas, costumem

acabar praticamente sempre “em pizza”, como se costuma dizer no Brasil, o autor

nos alerta do quão é importante que façamos a nossa parte. É importante não

desistir.

Na terceira, temos uma geração marcada pelo consumismo, que procuram

para si a praticidade e os produtos importados. É uma juventude que se deixa

envolver pelo caminho mais fácil, deixando de lado ideais revolucionários.

Como se vê, as idéias produzidas num determinado tempo, numa dada

época estão sempre presentes no texto. Por isso, é preciso verificar as concepções

e fatos correntes na época e na sociedade em que o texto foi produzido, para

ajudar-nos a entender os aspectos ideológicos, ou seja, as crenças, valores e

pensamentos relacionados à época e, consequentemente, fazermos uma leitura

além da superfície de um texto.