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1 “Comportamento político das classes trabalhadoras em ascensão: lulismo, ideologia e padrões eleitorais” Introdução Nos últimos dez anos, período que compreende as presidências de Lula da Silva e Dilma Rousseff (2003-2014), as classes populares brasileiras participaram de um processo de mobilidade econômica em massa. Além da redução do número de pessoas consideradas miseráveis, desencadeada principalmente por conta da adoção do Programa Bolsa Família (PBF) pelo governo federal, houve um aumento dos níveis de renda e consumo de cerca de 52 milhões de trabalhadores pobres em decorrência, principalmente, dos aumentos do salário mínimo acima da inflação e da criação de milhões de empregos com carteira assinada, o que fez com estes últimos passassem a ser considerados pelas agências de mercado como uma “nova classe C” 1 , tendo em vista a divisão da população em faixas de renda “A”, “B”, “C”, “D” e “E” 2 : (Gráfico 1) 1 Aqui “classe” significa segmento ou faixa de renda e não possui nenhuma relação com um conceito 2 O Critério de Classificação Econômica do Brasil (CCEB), elaborado pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas (ABEP), busca estimar o poder de compra das pessoas com base em seus níveis de renda familiares considerando uma família de quatro pessoas. Assim, integrariam os segmentos “E” e “D” as famílias com renda média mensal de R$ 776,00, o “C” aquelas com renda entre R$ 1.147,00 e R$ 1.685,00; e os segmentos “B” e “A” as famílias que somam, respectivamente, uma renda de R$2.654,00 e de 9.263,00, Já a Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo federal realiza uma classificação destas faixas de renda tendo em vista os ganhos mensais dos indivíduos. Assim, as pessoas que se localizam nas faixas de renda “E” e “D” contariam com uma renda mensal de R$ 81,00 reais a R$ 291,00, aqueles situados na faixa “C”, de R$ 291,00 a R$ 1019,00, e os indivíduos classificados como “B” e “A” aufeririam rendimentos acima de R$ 1.019. Cf.: http://www.sae.gov.br/site/?p=17711

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  1  

“Comportamento político das classes trabalhadoras em ascensão: lulismo,

ideologia e padrões eleitorais”

Introdução

Nos últimos dez anos, período que compreende as presidências de Lula da

Silva e Dilma Rousseff (2003-2014), as classes populares brasileiras participaram de

um processo de mobilidade econômica em massa. Além da redução do número de

pessoas consideradas miseráveis, desencadeada principalmente por conta da adoção

do Programa Bolsa Família (PBF) pelo governo federal, houve um aumento dos

níveis de renda e consumo de cerca de 52 milhões de trabalhadores pobres em

decorrência, principalmente, dos aumentos do salário mínimo acima da inflação e da

criação de milhões de empregos com carteira assinada, o que fez com estes últimos

passassem a ser considerados pelas agências de mercado como uma “nova classe C”1,

tendo em vista a divisão da população em faixas de renda “A”, “B”, “C”, “D” e “E”2:

(Gráfico 1)

                                                                                                               1  Aqui “classe” significa segmento ou faixa de renda e não possui nenhuma relação com um conceito 2  O Critério de Classificação Econômica do Brasil (CCEB), elaborado pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas (ABEP), busca estimar o poder de compra das pessoas com base em seus níveis de renda familiares considerando uma família de quatro pessoas. Assim, integrariam os segmentos “E” e “D” as famílias com renda média mensal de R$ 776,00, o “C” aquelas com renda entre R$ 1.147,00 e R$ 1.685,00; e os segmentos “B” e “A” as famílias que somam, respectivamente, uma renda de R$2.654,00 e de 9.263,00, Já a Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo federal realiza uma classificação destas faixas de renda tendo em vista os ganhos mensais dos indivíduos. Assim, as pessoas que se localizam nas faixas de renda “E” e “D” contariam com uma renda mensal de R$ 81,00 reais a R$ 291,00, aqueles situados na faixa “C”, de R$ 291,00 a R$ 1019,00, e os indivíduos classificados como “B” e “A” aufeririam rendimentos acima de R$ 1.019. Cf.: http://www.sae.gov.br/site/?p=17711  

  2  

Esta melhora dos níveis de renda e consumo muito provavelmente contribuiu

para que a maior parte das classes populares, especialmente os setores mais

empobrecidos, entre os quais se encontram os beneficiários do PBF, votassem de

forma decisiva pela reeleição de Lula em 2006 (Hunter; Power, 2007; Zucco, 2010) e

de sua sucessora, Dilma Rousseff em 2010 (Peixoto; Rennó, 2011; Singer, 2012).

Para além disso, de acordo com o cientista político André Singer a população mais

pobre do país não só teria sido leal a Lula em 2006 e em 2010 nas urnas, mas aderido

ideologicamente ao lulismo.

O lulismo seria um movimento político em que o então presidente Lula

realizaria uma arbitragem do conflito social e político combinando medidas que ao

mesmo tempo beneficiariam os mais pobres, por meio de políticas de transferência de

renda, e o grande capital, por meio da manutenção de políticas econômicas ortodoxas,

modus operandi que teria sido herdado por Dilma Rousseff. Ideologicamente, o

lulismo promoveria mudanças sociais sem romper com a ordem social-econômica

vigente, o que coincidiria com a ideologia de mudança dentro da ordem dos setores

mais empobrecidos do país chamados por Singer de “subproletariado” 3 . Tal

coincidência ideológica teria feito com que a adesão à figura de Lula fosse mais forte

do que uma simples aprovação do governo de turno, desencadeando um

realinhamento eleitoral, isto é, uma mudança de padrão eleitoral em que o

subproletariado, que desde 1989 votava em sua maioria em candidatos à presidente

mais conservadores, teria passado a votar em Lula e nos candidatos por ele apoiados,

e a maior parte das classes médias e altas teria passado a votar de forma sistemática

na oposição.

O subproletariado dependeria da arbitragem lulista pois teria poucas

possibilidades de se auto-organizar para demandar melhores condições materiais, ao

contrário do proletariado, que contaria com acesso a empregos com carteira assinada e

sindicatos. Desse modo, a formação de uma “nova classe C”, ocasionada,

principalmente, pelo crescimento de empregos com carteira assinada e pelos

aumentos do salário mínimo de trabalhadores pobres que ganham entre 1,5 e dois

salários-mínimos e que se concentram nos setores de serviços, comércio e construção

civil (Pochmann, 2012), poderia então sinalizar, segundo argumenta Singer, a

                                                                                                               3 A ideia de que o subproletariado se orientaria ideologicamente com base na fórmula “mudança dentro da ordem” foi proposta por Singer a partir de uma reunião de diversas pesquisas de opinião. Cf. Singer, 2000

  3  

formação de uma nova classe trabalhadora ou de um novo proletariado4. No entanto,

se a sociedade brasileira estaria polarizada entre subproletários lulistas e classes

médias e altas anti-lulistas, como as pessoas que vem passando a fazer parte da faixa

“C” de rendimentos, as quais, nos termos de Singer, poderiam vir a constituir uma

nova classe trabalhadora, se comportariam em relação ao lulismo e ao PT? Levando

em consideração que este segmento da população já soma 52 milhões de brasileiros e

está em contínua expansão, como é possível verificar no gráfico 1, tal indagação não é

trivial. Assim, procurarei fornecer aqui elementos que possam auxiliar na formulação

de hipóteses a esse respeito com base em alguns dos principais resultados de uma

etnografia política realizada entre os anos 2011 e 2013 na periferia de São Paulo5, os

quais serão expostos a seguir.

O abandono do projeto do trabalhador e o declínio do petismo

Para compreender as percepções sobre o lulismo e sobre o PT dos

trabalhadores em processo de ascensão social residentes na cidade de São Paulo, é

necessário voltar à época de fundação desta agremiação. Foi justamente na capital

paulista, mais especificamente no Colégio Sion, em 1980, que foi criado oficialmente

o Partido dos Trabalhadores. Fruto de uma combinação explosiva entre o novo

sindicalismo, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica e

inúmeros movimentos populares que passaram a atuar de forma mais ostensiva no

período de abertura do regime militar (Sader, 1988; Kowarick, 2000), o aparecimento

do partido foi encarado como um fenômeno inovador na política brasileira

(Menguello, 1989; Keck, 2010).

A ideologia do PT, o “petismo” (Samuels, 2004), compreendida como uma

forma de fazer, pensar e viver a política, se apoiava, na esfera da ação, na defesa de

                                                                                                               4 A ideia da formação de uma nova classe trabalhadora é polêmica e foi discutida em uma série de trabalhos acadêmicos como os de Jessé Souza (2010), Ruy Braga (2012) e Márcio Pochmann (2012). 5 A pesquisa foi realizada no subdistrito da Brasilândia, localizado na extrema periferia da Zona Noroeste da cidade de São Paulo, entre os anos de 2011 e 2013, com a ajuda de três informantes locais. Foram realizadas duas séries de entrevistas em profundidade com 17 trabalhadores que haviam passado a integrar, de forma aproximada, a faixa “C” de rendimentos, levando em consideração os critérios de renda adotados pelo economista Marcelo Neri (2008), os quais se aproximam daqueles indicados na nota 2. Os conteúdos destas entrevistas foram complementados por dados etnográficos coletados em festas públicas e privadas, cultos religiosos e eventos políticos realizados no subdistrito e também por informações oriundas de uma pesquisa documental que reuniu dezenas de publicações sobre a região cedidas por duas ONGs, o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC) e a Associação Cantareira.

  4  

três pilares principais: mobilização popular, transparência e ética, e implementação de

políticas voltadas para as classes populares (Baiocchi et al., 2012). Inicialmente o

petismo ganhou mais simpatizantes nas classes médias intelectualizadas e

progressistas e entre grupos de trabalhadores que moravam em bairros próximos às

cidades do ABC, região onde ocorreram as famosas greves do final dos anos 1970

(Frizzo, 2013), e, com o tempo, espalhou-se pouco a pouco para outros bairros de

periferia por meio de padres e freiras que atuavam nas CEBs e de militantes de

movimentos sociais e/ou do próprio partido.

É possível dizer que, entre os trabalhadores moradores de bairros de periferia,

o “petismo” foi a face política do que o sociólogo Gabriel Feltran (2011) chamou de

“projeto do trabalhador”. Segundo Feltran, este consistia em um projeto de ascensão

social via participação em movimentos sociais, autoconstrução da moradia e trabalho

fabril. A adesão a este projeto por vários moradores de bairros de periferia de grandes

cidades, vindos em sua maior parte de regiões empobrecidas do país, foi possível

durante as décadas de 1970 e 1980 por conta de uma conjuntura política e econômica

específica, que combinava abertura política, e portanto maiores possibilidades de

organização sindical e protesto social, e uma oferta razoável de empregos na indústria

que garantia as condições materiais para que muitos homens pudessem sustentar

sozinhos suas famílias, como pude constatar em minha pesquisa.

No entanto, a adoção de políticas voltadas para a abertura do mercado brasileiro

a partir do início da década de 1990 prejudicou vários setores da indústria nacional

resultando em altas taxas de desemprego, especialmente nas regiões metropolitanas

(Diniz; Boschi, 2004). Desempregados, ou trabalhando em condições extremamente

precárias, os moradores de bairros periferia passaram a buscar a resolução de seus

problemas de forma estritamente individual por meio de diversas “saídas de

emergência” (Cabanes et al., 2011), recorrendo, por exemplo, aos laços familiares e à

ajuda de igrejas evangélicas, e não mais à organização coletiva, como ocorria no

período anterior. Esta situação, agravada por fatores como o crescimento do tráfico de

drogas e da criminalidade nas periferias das grandes cidades, fomentou um refluxo

dos movimentos populares e da militância política de base, o que fez com que a

adesão ao projeto do trabalhador fosse ficando cada vez mais insustentável até se

tornar praticamente residual (Feltran, 2011).

O resultado político do abandono do “projeto do trabalhador” se refletiu no

declínio progressivo do petismo entre as classes trabalhadoras a partir da metade da

  5  

década de 1990 em diante. Tal declínio foi reforçado pelas mudanças internas do PT

no que tange à profissionalização dos quadros partidários e na diminuição do espaço

para a militância de base (Secco, 2011), as quais contribuíram para o que o partido

passasse a se voltar mais para seus objetivos eleitorais imediatos, moderando

progressivamente seu discurso e apoiando-se cada vez mais em máquinas eleitorais,

financiamentos de grandes empresas e alianças com partidos mais conservadores, em

detrimento de seus vínculos, cada vez mais fracos, com militantes políticos ligados

aos movimentos populares.

A perda de uma das bandeiras do petismo, a mobilização popular, foi um golpe

duro para muitos militantes, porém, quando o partido finalmente conseguiu emplacar

Lula como presidente do país, veio o golpe fatal em 2005: as denúncias de corrupção

do partido veiculadas pela mídia como o “escândalo do mensalão”. A dimensão

alcançada pelo escândalo fez com que o petismo, ao perder outra de suas principais

bandeiras, a ética e a transparência, se tornasse vazio de sentido. Assim, a única coisa

que passou a diferenciar o PT dos demais partidos passou a ser então a

implementação de políticas voltadas para as classes populares, as quais passaram a

agir, em sua maioria, de forma bastante pragmática e desencantada em relação à

política. Esta descaracterização da ideologia do partido, e, portanto, do próprio

partido, impactou de forma ainda mais negativa vários militantes e simpatizantes mais

antigos do PT, os quais se afastaram do partido, como o fez Juçara Zottis, militante

política do PT desde os 14 anos, ou até mesmo passaram a votar em outros

candidatos, caso de Raimundo6, metalúrgico que passou a antipatizar com o PT após

as denúncias de corrupção:

“Eu sempre fui militante do Partido dos Trabalhadores, uma época muito forte mesmo né, partidária mesmo, ia para as reuniões de diretório...Ultimamente, uns oito, dez anos para cá...senti muitos desencantamentos com o Partido dos Trabalhadores também. Eu ainda acredito que dentro do partido tem coisas boas que ainda vale a pena preservar né, então eu tento me ligar dentro do partido a alguns parlamentares ou pessoas (com as quais) eu tenho mais afinidade nas questões éticas e que ainda não tem no vale tudo como jeito de se ganhar uma eleição, então eu sou ainda nesse sentido. (...) Eu vejo assim também, a questão do nível dos debates políticos, muito frágeis, muito frágeis eu acho também essas disputas políticas que existem. Essa é uma das coisas que meu levou a não ser mais aquela militante, assídua, de reuniões do partido, é porque eu não aguento mais esse tipo de papo, você vai lá, e é aquela mesma...você vê que a coisa não avança. Você vai numa reunião dessas é mais para você entender porque o fulano está com o ciclano, porque que o ciclano agora está com o beltrano, entender esses conchavos políticos que não faz o meu jeito. Então o debate, a qualidade do

                                                                                                               6  Os nomes das pessoas que foram entrevistadas na pesquisa foram modificados para resguardar sua privacidade, com exceção do de Juçara Zottis que é figura pública da Associação Cantareira e concedeu a entrevista nesta condição.  

  6  

debate político, ele é muito fragilizado, bastante, você vê lá, às vezes, o pessoal brigando por coisas muito pequenas, enquanto esquecem que tem uma região que precisa de um projeto político, de uma intervenção mais séria.” (Juçara Zottis, militante política e fundadora da Associação Cantareira7 – fala gravada em 2011) “Olha, eu votei no PT um tempão bom, depois eu mudei, eu votei no Kassab agora, mas eu votei no PT um tempão, muitos anos eu votei no PT, depois eu saí. Às vezes a gente vota muitos anos num partido depois acha que...vê que...né? Votei no Lula por muitos anos (risos), muitos anos viu? Agora mesmo quando o Kassab entrou eu votei no Kassab, votei no Serra também, Alckmin, o Geraldo, eu acho competente...Mas por que que o senhor resolveu mudar assim? 8 (pausa) É...umas coisas assim...a razão...a gente estava assistindo...foi muita corrupção, foi muita corrupção... mensalão, teve mensalão de todo o tipo né? Então foi na época do mensalão que o senhor decidiu mudar, é isso? Foi, foi” (Raimundo, 53 anos, fala gravada em 2011)

Ascensão do lulismo: insatisfação em São Paulo e redenção no Nordeste

Se o declínio da ideologia radical encampada pelo Partido dos Trabalhadores

durante os anos 1980, o petismo, poderia ser previsto pelas diferentes teorias

existentes a respeito da moderação ideológica de partidos políticos à medida que estes

se tornam mais competitivos (Kircheimmer, 1966; Katz; Mair, 1995; Panebianco,

1995 apud Floriano, 2008), o surgimento do lulismo foi completamente inesperado. A

reeleição de Lula em 2006 no segundo turno com uma boa margem de folga em

relação ao candidato da oposição, Geraldo Alckmin do PSDB, apenas um ano após a

veiculação pela mídia do escândalo do “mensalão”, surpreendeu muitos jornalistas e

analistas políticos. Como já foi apontado acima, contribuiu para tal desfecho a imensa

quantidade de votos vinda dos setores mais empobrecidos da sociedade, os quais

demonstraram sua lealdade a Lula em 2010 com a eleição de sua sucessora, Dilma

Rousseff, um quadro técnico do PT praticamente desconhecido da população e que

nunca havia disputado uma eleição.

Grande parte dos eleitores que passaram a votar em Lula em 2006, moram em

regiões empobrecidas do país, sobretudo no Nordeste brasileiro, em que o petismo

tem pouca penetração em comparação com outros locais, principalmente com São

Paulo, onde nasceu o partido. Em muitos destes lugares, por vezes chamados de

“grotões do país”, existem currais eleitorais de políticos conservadores que costumam

                                                                                                               

7 “A Associação Cantareira é uma organização não-governamental criada em 1995, a partir da necessidade de comunicação das comunidades, grupos culturais, associações, movimentos populares e organizações que lutam pela melhoria da qualidade de vida na periferia da cidade de São Paulo” Cf. http://www.cantareira.org/quem-somos

8 As falas em itálico são minhas.

  7  

atuar em partidos de direita, ou a favor destes (Power, 1997; Mainwaring;

Meneguello; Power, 2000), por meio de políticas clientelistas ou por vezes até mesmo

semelhantes ao antigo coronelismo, o que dificulta a entrada de políticos/partidos

alternativos, principalmente de esquerda, como indica o depoimento de Maria

Conceição, sergipana que migrou para a periferia de São Paulo na década de 1990:

“Por que você votou no Collor e não no Lula em 1989? Porque naquela época o Collor...naquela época eu morava em Sergipe, então eu dependia de...eu não falei para você que lá em Sergipe precisa de boiada, tem os seus bois lá? Como assim de boiada? Boiada é assim: tem dois políticos, aí, dependendo se você deve favor para um, você vai votar naquele. Então você votou no Collor por causa disso? É...mas vou falar um negócio para você, lá é mais negócio de partido9, aqui em São Paulo não tem negócio de partido da população, você vai lá e vota. Lá em Sergipe eu votava lá assim, é mais de partido, então não é que nem aqui, que você quer votar, vota em um lá, mas você pode votar em outro, entendeu? Não depende de política assim, e lá eu dependia de política. Aqui, por exemplo, esse ano eu votei na Dilma, mas eu não devo a cabeça para a Dilma e nem devo a cabeça para o...como é o outro? Votei na Dilma, não votei no outro...O Serra. Então, eu não tenho aonde devolver uma obrigação para o Serra, eu não devo a obrigação, eu fui lá e votei, está vendo. Lá em Sergipe, não, lá em Sergipe você deve uma obrigação. (...) Lá em Sergipe não se falava muito no PT, lembra? Naquela época o PT não era falado como hoje, naquela época o PT era um partido pequeno, não tinha muito PT lá” (Maria da Conceição, 43 anos, fala gravada em 2011) Mesmo com o impacto do lulismo, o PT continua tendo dificuldades em se fazer

presente nestas regiões, como apontam os resultados da pesquisa da geógrafa Sônia

Terron e do cientista político Gláucio Soares (2010):

(Gráfico 2)

                                                                                                               9 Aqui, quando a entrevistada fala em “partidos”, quer dizer “clãs” ou grupos políticos locais aos quais se deve lealdade, e não a partidos no sentido moderno do termo.

  8  

Fonte: Terron; Soares (2010)

Apesar de Lula provavelmente ter conquistado a lealdade daqueles que

habitam as regiões mais empobrecidas do país por conta dos benefícios materiais que

proporcionou a esta população por conta do PBF, tal lealdade não é revertida

automaticamente para o Partido dos Trabalhadores, tendo em vista as dificuldades

enfrentadas em atuar localmente nestes lugares. Cenário bastante diferente do da

cidade de São Paulo, onde o PT conseguiu alcançar uma penetração bastante razoável,

sendo que ainda no final da década de 1980 conseguiu eleger a prefeita Luíza

Erundina (1988-1992), uma gestão que se notabilizou pelo grau de mobilização das

classes populares e se constituiu como a expressão máxima do petismo na capital

paulista. No entanto, se o governo de Erundina, bem como sua eleição, se apoiaram

no petismo, isso não ocorreu na segunda prefeitura do partido na cidade, conquistada

por Marta Suplicy (2000-2004).

Ainda que as políticas implementadas na gestão da sexóloga petista tenham

beneficiado as classes populares, estas foram realizadas sem a necessidade de

mobilização popular, o que causou algum descontentamento entre certos militantes

ligados a movimentos sociais, como Juçara Zottis. Porém, o efeito disso no eleitorado

parece ter sido pequeno, uma vez que a maior parte dos moradores dos bairros de

periferia, reconhecendo o impacto das políticas implementadas pela então prefeita,

passou a simpatizar com esta e com seu partido:

  9  

“Pra mim a maioria (dos políticos) só rouba e alguns ajuda, é o caso da Marta. A Marta eu vejo ajudando, na escola tem o leve-leite, bilhete único, ajudou bastante, salário bolsa-família10, esses negócio aí, ajudou bastante. Foi uma das prefeitas que eu vi que fez alguma coisa, porque de resto ninguém fez nada, só falam, só falam atrás de voto e não resolvem nada.” (Jadson, 21 anos, fala gravada em 2011)

O impacto destas políticas públicas fez com que passasse a existir, desde então,

uma configuração dos padrões eleitorais bastante análoga àquela do lulismo, em que

as classe médias e altas, localizadas no centro expandido da cidade, passaram a votar,

em sua grande maioria, na oposição ao PT, e os moradores dos bairro mais pobres da

periferia começaram a votar de forma mais sistemática no partido:

(Gráfico 3) 11 Eleições para prefeitura de São Paulo

2004 – 2o turno 2008 – 2o turno 2012 – 2o turno

Fonte: Folha de São Paulo

É possível verificar nos mapas acima que a despeito do escândalo do

“mensalão” ter sido veiculado pela mídia em 2005, o que causou um

descontentamento entre eleitores mais antigos do partido que prezam muito pela ética

na política, como Raimundo, o padrão eleitoral se manteve. Assim, seria possível

pensar que o declínio do petismo, apesar de ter provocado algumas defecções entre

certos e militantes e eleitores, como Juçara e Raimundo, estas teriam ocorrido em

menor escala, de modo que a maior parte do eleitorado que reside nas periferias de

São Paulo, teria, de forma análoga aos beneficiários do PBF concentrados no

Nordeste, reconhecido os benefícios materiais proporcionados pelo partido na gestão

                                                                                                               10 Jadson confunde o programa renda-mínima, implementado por Marta em São Paulo com o PBF provavelmente por ambos seguirem princípios parecidos. 11 A cor vermelha representa uma maioria de votos para o PT e a cor azul para a oposição.

  10  

de Marta, no nível municipal, e nos governos de Lula e Dilma no plano federal, com a

diferença de que, de maneira oposta ao que teria ocorrido no Nordeste, tal

reconhecimento teria fomentado vínculos mais fortes com o PT, tendo em vista sua

penetração mais antiga na cidade.

Esta explicação faria bastante sentido, no entanto, ela contém alguns possíveis

problemas importantes. O primeiro remete à votação da maior parte dos eleitores que

moram em bairros de periferia nas eleições para a prefeitura em 2004, 2008 e 2012

que sinalizaria a existência de vínculos mais fortes com o PT. Na verdade, os votos

recebidos pela agremiação em 2004 e 2008 possivelmente representaram mais uma

adesão à ex-prefeita do que uma criação de vínculos fortes com o PT, sendo que em

2012, a eleição de Fernando Haddad para a prefeitura ocorreu, principalmente, por

conta do amadorismo da candidatura de Celso Russomano (PRB)12, e da rejeição de

43% dos eleitores à José Serra do PSDB13. Isso não significa que não existam

vínculos entre os moradores de bairros de periferia e o PT, mas que estes seriam mais

fracos do que sugerem os mapas eleitorais, o que pode ser bem ilustrado pelo caso de

Tatiana, que apesar de ter se declarado petista e afirmado que o PSDB era o partido

dos ricos e que não gostava de Paulo Maluf, ambos adversários políticos do partido,

votou em Gilberto Kassab em 2008, vice de José Serra e que havia participado da

prefeitura de Maluf:

“Em 2004, a Marta disputou a reeleição no segundo turno com o Serra, você lembra em quem você votou? Eu votei na Marta. Em 2008, que foi a última eleição, no segundo turno, foi a Marta contra o Kassab, você lembra quem você votou? Kassab, porque eu achei que ele ia trazer melhorias né, mas eu fiquei meio decepcionada com ele. Na época eu votei nele porque eu pensei: “não, vamos mudar, vamos ver se ele vai fazer melhorias mesmo”. Porque ele fez uma propaganda até muito bonita né? Mas eu acho que ele deixou a desejar, eu fiquei meio revoltada assim, com essa situação das casas terem inundado, e o descaso, acho assim que é um descaso demorar com esse auxílio aluguel, demorar com lugar pra por a pessoa.” (Tatiana, 30 anos, fala gravada em 2011)

Ora se Tatiana deixou de votar em Marta Suplicy novamente em favor de

Gilberto Kassab, então filiado ao Democratas, no que foi seguida por vários

moradores de periferia fazendo com que Kassab ganhasse as eleições, apenas porque

este havia feito uma “propaganda muito bonita”, não é possível dizer que os vínculos

                                                                                                               12 Ver página 14. 13 Ver http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/63735-forte-desejo-por-mudanca-faz-rejeicao-a-serra-crescer.shtml

  11  

que possui com o PT são exatamente fortes ou ao menos análogos àqueles que

possuíam os eleitores petistas mais antigos com base em sua adesão ao petismo.

O segundo possível equivoco tem a ver justamente com aquilo que explicaria os

vínculos existentes com o PT e/ou com Lula. Ao contrário do que se poderia esperar,

a preferência pelo PT, e, especialmente por Lula, da maior parte dos trabalhadores em

processo de ascensão que moram na cidade muito provavelmente está menos ligada

ao reconhecimento de benefícios materiais, mas sim com uma identificação simbólica

com Lula, tendo em vista o que o ex-presidente teria feito pelos nordestinos:

“Eu prefiro o PT, eu prefiro o PT, por mais coisa errada que eles fazem, eles pensam um pouquinho nos pobres, tudo bem que quando eles pensam nos pobres, eles pensam “o voto vai primeiro”, pobre tem mais filho, tem mais gente pra votar. (Mas) eu gosto do PT não é só por isso não, é que eu brinco muito, mas é por causa da minha cidade, lá no Nordeste, o PT fez muito lá. Então, muita gente pode dizer assim “ah, o PT fez uma esmola no Nordeste”, mas se você for no Nordeste pra passar quinze dias, igual eu passei quinze dias quando eu fui buscar minhas filhas, você vai dizer “o PT é um deus grego”. Por isso que eu tiro o chapéu pro povo do Nordeste, o povo do Nordeste eles idolatram o PT, porque o que eu tenho aqui pro povo do Nordeste eu sou milionária, e eu passo o maior sufoco. (...) E por que você acha que eles fizeram e os outros não? Eu acho que por eles serem um pouco de lá, eles pensaram um pouquinho, né? Eu acho que foi por isso que eles fizeram...Eu acho que foi mais pelo presidente Lula, pela condição de vida que ele teve, eu acho que foi por isso que ele fez. O povo, todo mundo gostava dele. Eu gosto, eu gosto porque ele fez, ele fez alguma coisa pelo meu povo, não foi nem por mim, mas foi pelo meu povo.” (Tatiana, 30 anos, fala gravada em 2011)

Curiosamente, a despeito de reconhecerem as políticas da gestão de Marta

Suplicy que foram feitas em benefício das classes populares de São Paulo, como

atesta o depoimento de Jadson, o que explica a popularidade da sexóloga petista nas

classes populares, as medidas implementadas pelo governo federal como os aumentos

do salario mínimo e a criação de empregos, não foram citadas por nenhum dos

trabalhadores pobres que ascenderam recentemente entrevistados por mim que diziam

ser petistas e/ou gostarem de Lula, apesar de todos terem relatado uma melhora de

seus níveis de renda e consumo. Para os trabalhadores pobres, Lula teria ajudado de

fato aqueles que se encontram em uma situação pior do que a deles próprios, e seria

por esse motivo, que estes adeririam ao PT e/ou votariam em Lula, inclusive

Raimundo, que apesar de ter perdido a fé no Partido dos Trabalhadores, afirmou que

votaria novamente em Lula pelo que ele teria feito pelos nordestinos.

Esta vinculação dos trabalhadores que moram nas periferias de São Paulo e a

população pobre do Nordeste ocorre, em grande medida, em função do passado dos

primeiros, os quais, como Lula, vieram do Nordeste para trabalhar em São Paulo,

  12  

como é o caso de muitos trabalhadores que ascenderam recentemente, mas também se

faz presente na fala daqueles que já nasceram em São Paulo, como Caroline: “Por que eu votei no Lula? Por que eu vi que ele realmente...o Nordeste coitado do Nordeste, o Nordeste não comia, gente, era aquela pobreza danada, e aí eu votei no Lula por essa questão...comeu-se direito, pobre conseguiu comer, pelo menos o pobre estava conseguindo comer. E eu votei no Lula nos dois mandatos dele. (...) No Nordeste o Lula é considerado como um Deus, eu fui ao Nordeste o ano retrasado, e, assim, você não pode falar mal do Lula. Fiquei bem no centro ali (...) aí eu perguntei (para um homem) “como é que era aqui?”, ele pegou e falou: “aqui, moça, a gente está comendo muito bem, é o nosso Lulinha. Aqui, (com) o nosso Lulinha, a gente está conseguindo plantar mais, a gente está conseguindo sobreviver”. E começou a explicar, ele falou: “olha, faz tempo que a gente não come bem igual nós estamos comendo agora na época do Lula, com a seca e com tudo mais, mas a gente está tendo uma ajuda muito, muito boa dele”. E assim você vê que o pessoal... não pode falar mal dele lá, você arruma briga, eles enfrentam mesmo, ele pegou e falou assim: “aqui a gente glorifica o Lula, o Lula aqui para a gente é um Deus”. (Caroline, 30 anos, fala gravada em 2011)

O lulismo sob a espada de Dâmocles?

À primeira vista seria possível imaginar que o lulismo poderia ter conquistado

uma forte adesão entre os trabalhadores em processo de ascensão de forma análoga ao

que ocorreu entre os setores mais empobrecidos da população, ainda que em virtude

de motivações diferentes das destes últimos. No entanto, tais vínculos parecem ser

razoavelmente frágeis, afinal, se para os nordestinos as políticas realizadas pelo

governo federal, como o PBF, fazem uma diferença enorme (Cohn, 2012; Rego;

Pinzani, 2013), o que faz com que estes passem a “glorificar” ou “endeusar” Lula

como afirmam Caroline e Tatiana, para os trabalhadores pobres moradores de bairros

de periferia de São Paulo as políticas do governo federal que os beneficiaram não

foram sequer relacionadas por estes à melhora de seus níveis de renda e consumo.

Além disso, ainda que os trabalhadores relatem um incremento de seus níveis

salariais, este parece fazer pouca diferença em seu dia-a-dia, uma vez que se sentem

permanentemente insatisfeitos com as más condições de vida em São Paulo, as quais

parecem permanecer praticamente inalteradas independentemente dos políticos que

são eleitos, acentuando uma descrença generalizada na possibilidade de uma alteração

mais profunda da realidade e, portanto, da política em geral:

“Eu voto porque é uma obrigação, mas não que você espera nada de ninguém, porque nunca muda nada. Aumenta o salário, aumenta também a condução, aumenta o gás, aumenta a gasolina, aumenta tudo. Não adianta, né. Pelo menos assim, se eles melhorassem ônibus, essas coisas. Nossa, meu pai do céu! Nunca melhora nada. Então a gente vota porque é obrigado. Se não tiver o voto você paga uma multa, não abre uma conta...é por isso que eu voto, mas não espero nada de ninguém. Você vê o tanto que o salário da gente sobe, o quanto o salário deles

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sobe? (…) Então, tipo assim, a gente sabe, qualquer um que você coloca lá dentro eles vão fazer o mesmo.” (Aparecida, 41 anos, fala gravada em 2013) “Mudar não vai mudar mesmo. Porque você veja bem, quando a pessoa entra lá, tem que fazer praticamente os que os outros já falaram, né, tudo combinado. Se não fez...um sozinho não pode. É que nem um passarinho quando ele tem o ninho dele, né? (Um) não deixa o outro fazer um ninho onde ele está, se os outros não concordarem, aquele passarinho não faz. É bem por aí.” (Cleuza, 58 anos, fala gravada em 2011)

Assim, se as possibilidades de mudança dentro da ordem oferecidas pelo

lulismo talvez sejam suficientes para que os setores mais empobrecidos da população,

principalmente aqueles que residem no Nordeste, continuem aderindo ao lulismo por

mais algum tempo, é mais difícil dizer o mesmo no que tange aos trabalhadores em

processo de ascensão, afinal, os ganhos materiais oferecidos pelo lulismo a estes

trabalhadores, ainda que sejam importantes, são insuficientes para minorar de forma

mais importante os problemas enfrentados por estes em seus cotidiano.

No que tange ao plano ideológico, é possível pensar que a figura de Lula, ao

criar uma ponte simbólica entre os nordestinos e os moradores das periferias de São

Paulo, e talvez também de outras metrópoles brasileiras, poderia abrir possibilidades

para unificar as classes trabalhadoras brasileiras em torno de interesses em comum,

criando um novo projeto político-ideológico que não só substituísse o combalido

petismo mas que pudesse, talvez, ser de maior alcance que este último, pois

abrangeria não só os trabalhadores organizados das regiões metropolitanas, como

ocorria com o petismo, mas também o segmento populacional que Singer chama de

subproletariado.

No entanto, até o momento presente, tal possibilidade parece ficar bloqueada

pela face conservadora do lulismo: a manutenção da ordem. Ao deixar com que a

ordem econômica permaneça praticamente intocada, o lulismo faz com que seja

difícil oferecer ganhos materiais mais significativos aos trabalhadores pobres que

ascenderam recentemente. Além disso, ao aderir à ordem política conservadora do

país sem procurar modifica-la (Nobre, 2013), o lulismo impede que o Partido dos

Trabalhadores seja uma alternativa política crível para a população, como o era no

passado, principalmente na década de 1980, época do auge do petismo. Afinal, se o

abandono do recurso à mobilização popular e a perda da bandeira da ética em virtude

do escândalo do chamado “mensalão” afastou militantes e eleitores antigos do PT, tais

fatores, somados à política contraditória de alianças do lulismo, fazem com que a

descrença na agremiação e na política em geral se torne ainda maior, dificultando

  14  

sobremaneira uma adesão mais convicta por parte do eleitorado ao partido da estrela.

Na cidade de São Paulo, por exemplo, a aliança realizada entre o Partido dos

Trabalhadores e seu adversário político histórico, Paulo Maluf (PP), nas eleições

municipais de 2012, em que Fernando Haddad foi eleito com o apoio de Lula, fez

com que Caroline, petista e fã da gestão de Erundina na prefeitura, ficasse

desapontada com o partido:

“Na época da Erundina o ensino era muito bom também, as coisas eram mais firmes. Uma vez ela visitou a escola, eu era novinha, eu acho que eu tinha uns nove, dez anos...pra mim a Erundina foi a melhor. Aí depois passou muito tempo veio aquele Pitta lá, que acabou morrendo, ladrão também, que foi coisa do Maluf, não é? (…) Se fosse ela, se fosse a Erundina (vice de Haddad), ele teria o meu voto, porque aí, se ele saísse, ficava a nossa vice Erundina. (Mas) Ela não aceitou...14 Por causa da aliança com o Maluf, não é? Eu acho que ela está certíssima. Porque o Lula devia tomar vergonha na cara dele, naquela barba dele, que não tem mais barba, tomar vergonha e não ter feito aquilo, porque ele viu o que o Maluf fez. Então eu achei a atitude dela muito boa. Mulher de opinião, pra mim, está certíssima. Só que o Lula não...mesmo assim ele quis, porque o Maluf também, lógico, o que ele está querendo é aliança com algum...ninguém está querendo, ele está correndo daqui, está correndo de lá, vamos dizer que é como se fosse um Collor, entendeu? Eu acho que ela fez certo. (…) Esses dias mesmo a minha mãe estava falando, “ah, se bobear esse Russomano acho que vai ganhar”. Porque a gente fica tão frustrada algumas vezes, igual agora com o Lula, a gente fica frustrada. Então isso vai te deixando...o povo vai ficando triste, essa é a verdade. O povo vai começar a anular, não vota, vota em branco.” (Caroline, 30 anos, fala gravada em 2012)

Celso Russomano, apesar de ter conquistado muitos votos na periferia de São

Paulo, não conseguiu ir para o segundo turno das eleições, porém, isso se deveu

menos ao mérito do PT e mais ao amadorismo da candidatura de Russomano. Ao final

de sua campanha, o ex.-malufista apresentou uma proposta esdrúxula para o

transporte urbano que fez com que suas intenções de voto despencassem rapidamente:

afirmou que em sua gestão a tarifa de ônibus seria proporcional à distância percorrida,

o que obviamente prejudicaria a população mais pobre que precisa percorrer grandes

distâncias de ônibus para chegar ao trabalho.

Se a previsão da mãe de Caroline, não se concretizou, ainda assim, Russomano,

cujo partido, é importante frisar, fazia parte na época da coalizão do governo federal,

contou com uma votação não desprezível de 1.324.021 votos, somando 21,6% das

preferências dos eleitores de São Paulo15. Este resultado, somado à plausibilidade do

pressentimento de Caroline de que o povo ficaria cada vez mais decepcionado e

começaria a anular o voto, parece ajudar a confirmar a fragilidade dos vínculos dos                                                                                                                14 Luíza Erundina recusou ser candidata à vice-prefeita na candidatura de Fernando Haddad do PT alegando discordância com a aliança realizada entre o PT e o Partido Progressista, partido do adversário histórico do petismo em São Paulo, Paulo Maluf. 15 Ver http://placar.eleicoes.uol.com.br/2012/1turno

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trabalhadores em processo de ascensão de São Paulo com PT e com o lulismo, como

aponta o depoimento de Tatiana, que, apesar de se declarar petista e gostar de Lula,

resolveu votar em branco nas eleições municipais de 2012 como forma de protesto:

“Eu votei tudo em branco, porque eu estou muito indignada com todo mundo. Eu ia votar no Tiririca, mas ele não foi candidato de novo pra deputado federal. Mas se tivesse Tiririca, eu ia votar no Tiririca, porque o Tiririca ganhou com milhões de votos e eu acho que as autoridades não entenderam ainda porque. Não é porque ele sabia tudo de política, é tipo um protesto votar no Tiririca. Ia votar nele de novo, protestar, né? (Tatiana, 30 anos, fala gravada em 2013)”

Com base no que foi exposto até aqui, a despeito das dificuldades de

generalização de uma pesquisa etnográfica e das diferenças existentes entre o

contexto da cidade de São Paulo e os de outras grandes cidades brasileiras, acredito

que seja possível realizar algumas considerações hipotéticas sobre os vínculos

existentes entre os trabalhadores que ascenderam recentemente, o lulismo e o Partido

dos Trabalhadores.

Após o declínio do petismo, o PT, apesar de ter conquistado vitórias eleitorais

importantes, talvez não esteja sendo capaz de criar vínculos mais fortes com os

trabalhadores que ascenderam recentemente, ao contrário do que ocorria no auge do

petismo, ainda que tal ideologia incidisse apenas em uma parcela dos trabalhadores da

cidade. O lulismo, ao substituir idelogicamente o petismo no partido, poderia possuir

um potencial de superar o petismo a partir da unificação dos interesses das classes

trabalhadoras com base na figura de Lula, porém, não só tal potencial parece ficar

bloqueado pela adesão do lulismo a uma ordem econômica e política conservadora,

como o enfraquecimento dos vínculos com os movimentos populares, a perda da

bandeira da ética e a realização de alianças com partidos e candidatos de direita, entre

os quais se encontram adversários históricos do petismo, como Fernando Collor, José

Sarney e Paulo Maluf, acentuam a descrença dos trabalhadores que moram nas

periferias de São Paulo com o partido e com a política em geral, tendo em vista que o

PT se coloca (ou colocava?) com a única alternativa viável à blindagem conservadora

da política nacional (Nobre, 2013), abrindo espaço para que estes passem a votar em

candidaturas de direita e/ou comecem a anular seus votos. Desse modo, tudo o mais

constante, talvez fique cada vez mais difícil dar continuidade à manutenção do

programa lulista à medida em que mais trabalhadores passem a ascender socialmente,

a despeito de tal ascensão ser fruto justamente da própria política que estes parecem

rejeitar.

  16  

Referências Bibliográficas

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