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Compilação de Paulo Victorino Traduzido da Wlkiipedia em francês, inglês, espanhol e italiano,
com apoio de várias outras fontes
“Ora (direis) ouvir estrelas”
E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".
--- Olavo Bilac (1865-1918) –
Vincent Willem van Gogh nasceu em Zundert (Holanda) em 30 de março
de 1853 e faleceu Auvers-sur-Oise (França) em 29 de julho de 1890, aos 37
anos de idade. Pintou apenas nos seus últimos 10 anos de vida, e ainda assim
conseguiu produzir ao menos 900 obras, afora as que possam ter sido perdidas
ou destruídas. Foi, com Paul Gauguin, um dos primeiros Pós-Impressionistas,
desenvolvendo uma pintura inquieta e febril, carregada de cores fortes, que
viriam, em seguida, inspirar o surgimento do Fauvismo.
A propósito, não se confunda o Pós-Impressionismo com o Neo-
Impressionismo, pois são coisas diferentes. O primeiro se distingue pelo
exagero da cor e desaguou na pintura fauve; o segundo se destaca pela
separação, também exagerada, dos pontos coloridos que compõe a pintura,
tornando-se uma caricatura do impressionismo, e teve curta duração.
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A fonte primária mais abrangente para a compreensão de Vincent Van
Gogh como artista é a coleção de cartas entre ele e seu irmão mais novo, o
negociante de arte Theo van Gogh, que forneceu apoio financeiro e emocional
para Vincent durante toda vida do artista. A maior parte do que sabemos sobre
o pensamento de van Gogh e suas teorias está em mais de 600 cartas que
Vincent escreveu ao irmão, sendo que apenas 40 respostas de Theo foram
preservadas. É natural que Theo guardasse as cartas recebidas, mas não tinha
cópia das enviadas, enquanto que Vincent não se preocupava em manter
arquivos de correspondência.
O período mais nebuloso de Vincent foi o de sua permanência em Paris,
onde vivia o irmão Theo, negociante de artes, pois, estando próximos um do
outro (moravam no mesmo apartamento em Montmartre), não houve troca de
correspondência, mas só conversação. E palavras, leva-as o vento...
Também são uma fonte preciosa de informações as cartas trocadas com o
pintor e desenhista holandês Anthon Gerard Alexander van Rappard (1858-
1892), cinco anos mais novo que Vincent, que fora discípulo de Laweence Alma-
Tadema e que tornou-se não apenas amigo mas também mentor de Van Gogh.
O artista manteve ainda correspondência regular com o pós-impressionista
e escritor francês Émile Bernard (1868-1941), 15 anos mais jovem que ele, seu
amigo e confidente, e com a própria irmã Wilhelmina Jacoba van Gogh.
- 003 -
Theo, Wilhelmina e Gauguin, correspondentes de Vincent Van Gogh
Costuma-se ter Van Gogh como um louco solitário internado em um
sanatório, preenchendo seu vazio com pinturas. Nada disso: Vincent era um
intelectual, leitor voraz e estudioso, não só da vida de outros artistas, como da
cultura geral. Suas rigorosas representações celestes são baseadas na
Astronomie Populaire (1880) de Camille Frammarion e ele se instruía também
com leituras de Shakespeare, Victor Hugo, Charles Dickens e Émile Zola, entre
outros. Amava a noite, como diz em carta à irmã Wil: “Às vezes parece-me
que a noite é mais colorida do que o dia.” E buscava, na leitura do céu, os
detalhes mais insignificantes, como escreve ao irmão Theo: “Algumas estrelas
são amarelo limão, outras têm um brilho rosáceo, outras um verde ou azul
de miosótis.”
Esse é Vincent Van Gogh, para quem o enigma indecifrável das estrelas
tornou-se uma das origens de seus conflitos existenciais. Ao “ouvir as
estrelas”, o artista prosseguia numa intensa busca da verdade, sonhando em
ser normal como todos. Mas, se fosse normal, seria o gênio que reverenciamos?
Por certo que não.
- 004 –
“De minha parte, eu não sei nada com tanta certeza,
mas a visão das estrelas me faz sonhar”
(Vincent Van Gogh)
- 005 –
O pastor zeloso e as ovelhas rebeldes
“Deus pede estrita conta de meu tempo,
É forçoso do tempo já dar conta;
Mas, como darei em tempo tanta conta,
Eu que gastei sem conta tanto tempo?”
-- Laurindo Rabelo (1826-1864) --
Entre a cruz e a caldeirinha, levando consigo a sina da contradição, numa
luta perpétua entre o bem e o mal, insatisfeito consigo e, por isso mesmo,
buscando o melhor para si e para a humanidade, Van Gogh atravessou o grande
deserto da vida, não na contemplação, mas na vida intensa e frenética, como
um enviado divino perseguindo uma missão que nem ele próprio conseguia
identificar qual era, mas que buscava, a todo tempo, com determinação.
Vincent Willem van Gogh, filho de um humilde pastor protestante, nasceu
em 1853 na pequena vila de Zundert, próxima a Bruxelas, na região de Flandres
e a 400 quilômetros de Paris, recebendo o mesmo nome de seu irmão natimorto
um ano atrás. Quatro anos depois, nascia seu outro irmão Theo, cuja vida
estaria, para todo o sempre, ligada a ele, numa perfeita simbiose em que Theo
era o cérebro e Vincent a alma. Junto a eles, viriam ainda mais quatro irmãos:
Cornelius Vincent, Elisabetha Huberta, Anna Cornelia e Wilhelmina Jacoba.
Já na infância, teve uma vida descontínua e irregular, sendo sequentemente
internado em várias escolas, primeiro em Zevenbergen (1864), onde aprendeu
francês e alemão. Depois (1866), em Tilburg, onde ficou até os 15 anos,
abandonando de vez os estudos e tornando-se um autodidata pelo resto da vida.
E foi como autodidata que se tornou um intelectual.
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Desde a adolescência, mostrou-se de um caráter difícil e temperamento
forte, abandonando os estudos para trabalhar em uma empresa de Bruxelas
especializada no comércio de arte, da qual seu tio Vincent era sócio e, quatro
anos depois, era transferido para a sucursal de Londres, onde, para o bem ou
para o mal, encontrou seu primeiro e platônico amor. Ela era Eugênia, filha de
Úrsula Louer, dona da pensão e, por estar já comprometida, ela o rechaçou,
levando-o ao isolamento, imerso em livros religiosos e perdendo o interesse pelo
seu trabalho.
Levando em conta a longa dedicação à empresa, em 1875 a firma o
promoveu e ele foi transferido a Paris, cidade das artes, pela qual sentiu um
fervor quase religioso e, ao entrar numa sala de exposição de desenhos do pintor
realista Jean-François Millet, no Hotel Drouot, veio-lhe à mente o episódio
bíblico do Monte Sinai: “Tira dos pés as tuas sandálias, porque o lugar onde
estás é santo.”
Ruth e Boaz descansando na colheita (cena bíblica),
1850-53, Jean-François Millet
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Vincent poderia ter passado o resto de seus dias como vendedor de arte,
mas, a partir de um certo momento, começou a interferir nos negócios,
interpondo seus gostos pessoais em detrimento dos interesses da companhia,
que o despediu. A sina, que não era a dele, deslocou-se por consequência ao
seu irmão Theo, que assumiu o posto, no qual permaneceu até o fim da vida. Se
Vincent permanecesse marchand, nunca teria sido o pintor que foi; de outro lado,
a dedicação de seu irmão Theo ao trabalho, rendeu os dividendos que lhe
permitiram concretizar os sonhos de Van Gogh, sustentando-o com uma pensão
até a morte. As peças se ajustaram, cada uma em seu lugar.
Vincent regressou à Inglaterra, sem rumo nem prumo, permanecendo ali por
dois anos, imerso em um fanatismo religioso, com a leitura da bíblia e de livros
como “A imitação de Cristo”, do monge Tomás de Kempis.(1379-1471).
Passou a exercer atividades religiosas e foi enviado a Isleworth, 15 quilômetros
ao sudoeste de Londres, como auxiliar de um pastor metodista, subindo
acidentalmente ao púlpito para fazer sermões e, agora, entusiasmado, escreve
ao irmão Theo: “Quanto estava ao púlpito, me sentia como alguém que sai
de uma cova escura para a plena luz, e é maravilhoso saber que, doravante,
pregarei o Evangelho a todo o mundo.”
Instável por temperamento, passou uns seis meses trabalhando em uma
livraria de Dordrecht e depois, mudou-se para Amsterdã (100 km ao norte),
querendo formar-se teólogo, mas foi rejeitado pela escola metodista, por não
saber latim e grego, além de sua dificuldade de comunicação e também por
querer impor suas próprias ideias, trombando com o espírito de corpo vigente
em um sistema religioso.
Ou porque lhe reconhecessem o fervor religioso ou, o mais certo, para se
livrar dele, enviaram-no como missionário às minas de Brinage (região de
Mons, na Bélgica) onde realizou, por quase dois anos, um trabalho
evangelizador entre os rudes mineiros, mas, com métodos pouco ortodoxos, e,
ao invés de compaixão, o que conseguia era passar aos neófitos um sentimento
de medo. Seus superiores, então, enviaram-no a Cuesmes, outra região
mineradora, onde as condições de trabalho eram degradantes, o que ao invés
de trazer-lhe paz, aumentou seu conflito interior.
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Finalmente, orientado por seu irmão Theo, de quem já vinha recebendo uma
pensão, desistiu da vida religiosa, decidindo dar um giro de 180 graus em sua
trajetória e passando a dedicar-se única e tão somente à pintura. Era o caminho
que Deus e o destino tinham preparado para ele.
De resto, foi um alívio para os mineiros, que eram convertidos pela força,
mais que pelos argumentos. Foi um alívio também para a família, que via em sua
dedicação à pintura um caminho para domar a própria rebeldia. E um alívio para
a instituição religiosa que o acolhera, para a qual levava mais conflitos que
soluções e que, nos últimos tempos, o havia desautorizado na pregação do
evangelho e até cortado os próprios soldos.
Naquele momento, saia de cena o zeloso o pastor e surgia, em seu lugar,
o ávido pintor, a transportar para as telas, de forma intensa e aparentemente
desorganizada, a inquietude que lhe ia à alma.
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Os comedores de batatas
“Tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo
real de que o homem só comemora e ama o que lhe é
aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que
nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a
destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as
batatas.”
-- Machado de Assis, “Quincas Borba” –
A energia não brota das águas paradas de um lago, mas da força quase
indomável das cachoeiras que, represadas e bem aplicadas, podem iluminar
uma cidade, mas se mal aplicadas, destruí-la. E Vincent, com muita energia e
pouco tino, era uma força difícil de se administrar.
Pois aconteceu (ou teria acontecido, pelo que se conta a boca pequena),
que Vincent, ao início da carreira artística, vinha seguidamente atormentando o
irmão Theo, reclamando e insistindo para que seus trabalhos fossem melhor
divulgados piorando quando soube que seu amigo e mentor Anthon Gerard
Alexander van Rappard (1858-1892) havia inscrito uma obra no Salon de Paris.
Vincent exigia do irmão que o fizesse também como um trabalho seu.
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Então, por volta de 1885, Theo teria pedido a Vincent que lhe mandasse o
melhor de seus trabalhos, o que pôs o pintor em pânico, pois tudo o que
produzira naqueles anos (e não fora pouco), se resumia a esboços ou a trabalhos
sem condições de enfrentar a crítica dos salões.
Por esta época, Vincent frequentava uma família de humildes camponeses,
de hábitos rudes mas de franca hospitalidade, ainda em sua fase Realista, e,
então, veio a ideia de reproduzi-los à mesa, surgindo o famoso quadro “Os
comedores de batatas”, que é uma de suas melhores obras, mas que na
época, foi rejeitado por todos e, é claro, nem sequer foi submetido à crítica dos
curadores do Salon.
“Os comedores de batatas” (1885) de Van Gogh
Compare com “Ecce Homo”, de Hieronymus Bosch (1450-1516)
Esta visão esquizofrênica da vida, considerando real tudo aquilo que vinha
de sua imaginação, trazia seguidos problemas a ele e aos seus mais próximos
parentes e amigos, com os quais vivia em constantes conflitos.
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Por exemplo, em abril de 1881, Vincent faz uma visita ao irmão e, por estar
próximo, visita também seu primo, o pintor Anton Rudolf Mauve (1838-1888),
cuja irmã, Cornelia Adriana acabara de enviuvar e, sem pestanejar, manifesta
a ela seu amor, propondo-lhe casamento, no que foi rispidamente rejeitado, seja
pelo inusitado da proposta, seja pelo momento inoportuno em que ela acontecia.
A partir de então, passou a enviar seguidas cartas à suposta amada e, meses
depois, fez-se presente, novamente, para repetir, de viva vós, a mesma proposta
de casamento, forçando a intervenção familiar para demovê-lo do propósito. O
clima esquentou e o assédio cessou, senão por vontade própria, ao menos pelo
amor à própria segurança.
Superado o inusitado e constrangedor episódio familiar, seu primo Anton,
que pintava aquarelas, aconselhou Vincent a experimentar essa técnica,
surgindo, então, algumas telas de Van Gogh, como “Os pobres e o dinheiro”
(1882), reproduzida abaixo, pintada em um tom escuro, pouco comum dos
trabalhos em aquarela, o que se deu pela utilização de técnica mista, com
aplicação também de giz preto ou carvão. Van Gogh desistiu rapidamente da
aquarela e voltou ao óleo, que foi a técnica preferida em toda sua obra.
Após o “affair” desastroso envolvendo a prima, a vida amorosa de Vincent
tomou novo rumo. Seja por ter sido rechaçado no episódio anterior, seja por se
guiar mais pelo impulso que pela reflexão, o pintor retirou das ruas e acolheu em
sua casa a prostituta e alcoólatra Clasina María Hoornik (Sien), grávida e com
uma filha, vivendo com ela em Haia, entre 1881 e 1883, a qual lhe serviu de
modelo para uma série de retratos, alguns dos quais envolvendo também a filha..
Depois, Sien voltou para a vida das ruas, deixando Van Gogh inconsolado, mas
trazendo paz à família, que, desde o início, a repelira.
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“Sorrow (Tristeza), um nu com Clasina
Finda a conturbada relação, Vincent mudou-se para Drente, ao norte da
Holanda, onde ficou apenas três meses, mas ainda a tempo de pintar algumas
paisagens a óleo. Estava feliz com a pintura, mas se sentia perseguido pelo
sentimento de solidão, o que o fez retornar à casa paterna, agora em Nuenem,
120 quilômetros ao sul de Amsterdã, para onde seu pai havia se mudado. O
retorno tranquilizou a família, que lhe proporcionou acomodações e um espaço
para montar seu estúdio. Para completar, aconteceu de receber a visita de seu
amigo, o pintor Anthon van Rappard, de Bruxelas, a quem acolheu, e, juntos,
percorreram a região, pintando uma série de telas tendo como tema os tecelões
e suas máquinas rudimentares. (Abaixo, uma dessas pinturas, ainda sem rumo)
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No outono de 1884, um novo amor, com outra oposição familiar e nova
desilusão. Agora, o alvo era a filha de um vizinho, Margot Begemann, dez anos
mais velha que ele, e que o acompanhava em suas incursões de pintura pelo
campo. Até chegaram a pensar em casamento, encontrando forte reação das
duas famílias. Os acontecimentos se precipitam quando, em 26 de março de
1885, morre o pai de Van Gogh, abrindo disputas familiares pela herança e
Vincent, desgostoso, vai morar em um espaço que lhe ofereceu o sacristão da
igreja católica, gerando nova briga com a própria família, que era de tradição
protestante.
Se, de um lado, seu irmão Theo procurou incentivar a divulgação de “Os
comedores de batatas”, fazendo impressões em litografia e vendendo-as a
preços acessíveis, por outro, Vincent abriu nova frente de conflito com Anthon
Van Rappard, que se sentiu desgastado por não ter sido informado da morte do
pai de Van Gogh: “Então, pensavas que eu tinha tão pouco apreço a teu pai
e à tua família, a ponto de me ignorar em notícia tão importante para mim?”
Mas a morte do pai pesou a Vincent que, em sua memória (o pai era pastor)
pintou “Natureza morta com Bíblia”, seis meses após o falecimento e antes de
mudar-se para Amberes. A Bíblia representa o símbolo da casa paterna e toda
educação religiosa proporcionada pelo pai. Na composição, Van Gogh coloca
também a vela, tradicional símbolo religioso para cristãos e judeus, procurando
estabelecer uma relação de conjunto.
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Amberes, a nova morada de Vincent, ficava no extremo norte da Bélgica,
longe do convívio familiar e lá o pintor montou uma pequena oficina cujo aluguel
era pago por seu irmão Theo. Atraído, como os artistas da época, pela pintura
japonesa do período Edo, comprou algumas xilografias e, paralelamente,
passou a copiar esculturas expostas na Real Academia da cidade.
Foi lá, também, que descobriu algumas pinturas de Peter Paul Rubens, com
seu vibrante colorido, as quais viriam a influir, futuramente, em sua concepção
das cores.
Com sua personalidade instável, logo cansou-se de Amberes e, de
surpresa, apareceu em Paris, na casa de seu irmão Theo, que, mais uma vez,
o acolheu com alegria, mas também com desespero, pois o relacionamento entre
ambos era difícil.
Poucos conheciam Vincent como seu irmão Theo. Desde as aventuras de
Vincent como missionário, Theo vinha lhe dando suporte financeiro, e esse
suporte se seguiu, como uma indispensável mesada, até o fim da vida de
Vincent. Theo possuía uma personalidade estável, um emprego fixo e bem
remunerado, enquanto Vincent vivia o momento e mudava de humor e de
comportamento a toda hora. Sem Theo, Vincent não sobreviveria e, na
contrapartida, Theo tinha pelo irmão uma afinidade profunda, compreendendo-o
e dando-lhe apoio moral e financeiro. Ambos se completavam, numa perfeita
mas não muito fácil harmonia, com um Vincent sempre inflexível e um Theo
sempre disposto a ceder.
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Ninguém é solitário em Paris
“Quando a gente acorda de bom humor
é sinal que a gente está em Paris.”
-- Murilo Mendes (1901-1975) --
A presença de Van Gogh em Paris foi decisiva para balizar seu futuro, porque
o pintor teve contato efetivo com a febre do Impressionismo, encantando-se
com a liberdade proporcionada pelo novo estilo, e aderiu para sempre a ele,
abandonando de vez o realismo, em favor de uma paleta mais luminosa, que ele,
pessoalmente, incrementou com uma visão cromática vibrante, a qual o levaria,
assim como ao seu parceiro Paul Gauguin e outros vanguardistas, a uma nova
manifestação artística que se convencionou chamar de Pós-Impressionismo,
um elemento importante de ligação entre o impressionismo e o Fauvismo
revelado no início do Século XX.
Instalado na comuna de Montmartre, centro de concentração de
restaurantes, cafés, cabarés, e local preferido dos artistas, Vincent teve a grande
chance de se relacionar com os mais importantes pintores, como Émile Bernard
(1848-1941) e Toulouse-Lautrec (1864-1901), que se tornaram amigos íntimos;
Paul Gauguin (1848-1902), com quem mais tarde manteria um estúdio bem ao
sul da França; e também Georges Pierre Seurat, Paul Signac, Armand
Guillaumin, Camille Pissarro e Paul Cézanne, entre outros tantos mais.
Foi lá que ele tomou contato, de forma definitiva, com as estampas
japonesas que tanto influenciaram aos impressionistas, numa “contaminação”
que recebeu o nome de “japonismo”. Entre os trabalhos de Van Gogh nessa
época estão “Ameixeira em Flor” e “Ponte sob a chuva”, obras pintadas sob
a influência das estampas do pintor e gravador japonês Hiroshige (1797-1858).
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Sobre as estampas japonesas, Van Gogh escreveu: “Parabenizo aos
japoneses por sua incrível claridade que se revela em todos os seus
trabalhos. São persistentes, pacientes, não se cansam dos detalhes e seu
estilo é tão regular quanto a respiração. São capazes de fazer uma figura
em traços seguros, aparentando uma facilidade que não é tanta quanto se
imagina, mas que parece ser tão fácil como desabotoar um colete.”
Utagawa Hiroshige 歌川 広重 Japanese, 1797-1858
Van Gogh, “Ameixeira em Flor”
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O japonismo “contaminou” não só os pincéis de Van Gogh como os de todos
aqueles inovadores de Montmartre, que utilizaram com avidez as cores
complementares, abrindo uma nova fase na arte europeia, como nunca se havia
imaginado, criando uma paleta mais luminosa, característica fundamental do
impressionismo.
Entusiasmado com o clima artístico intenso que se desenvolvia em Paris,
Vincent conseguiu a ajuda de Toulouse Lautrec para a renovação de sua
própria pintura, seja quanto a iluminação e a variedade cromática, como também
no estudo psicológico mais aprofundado dos retratos. Imerso no ambiente, pode
apreciar os trabalhos realizados por Gauguin na viagem que este fez a Martinica.
Com todos esses novos conhecimentos, proporcionados por seu contato
com as estampas japonesas e no convívio com os pintores de Montmartre, em
fevereiro de 1887, Van Gogh pintou “Mulher no café de Tambourin”, abaixo
reproduzida, onde já se nota maior apuro nos traços quando à avaliação
psicológica da personagem.
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Note-se que o pintor já se livrara de vez da influência do realismo em que
estava imerso e sua pintura ganha nova vida, com aplicação da luz e do
contraste complementar, contrapondo as três cores básicas (amarelo, vermelho
e azul) com a mistura formada por outras cores adjacentes, como o amarelo-
violeta e o azul-laranja, a que se junta um cinza, agora quase imperceptível. Essa
concepção na distribuição de cores viria a ser exemplificada com “Os
Quatro Girassóis”, onde se observa o forte contraste entre o amarelo berrante
do primeiro plano e o azul intenso do fundo.
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Para uma personalidade inquieta e instável como a de Van Gogh, a
temporada em Paris chegaria, um dia, ao fim, mas antes de terminar essa etapa
parisiense, ele realizou três retratos do marchand Julien Tanguy, sendo que um
deles, que vai reproduzido abaixo, se tornou antológico.
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O personagem focalizado, Julien François Tanguy, (1825-1894), mais
conhecido pelos artistas como “Pai Tangui”, era marchand e colecionador de
arte, tornando-se um patrono dos impressionistas, ao usar sua loja da rua
Clauzel para expor e vender obras dessa nova safra de pintores, ajudando-os a
superar dificuldades financeiras e servindo de importante elo entre os novos
artistas e os velhos colecionadores.
Entre seus amigos e clientes, além de Van Gogh, podem-se citar Paul
Gauguin, Paul Cézanne, Georges Seurat, Camille Pissaro, Claude Monet,
Pierre-Auguste Renoir, Armand Guillaumin, Toulouse Lautrec, e Victor
Alfred Paul Vignon.
Este retrato é considerado sua obra mais representativa no período em que
viveu em Paris. Com uma apresentação frontal (Van Gogh detestava o perfil),
é uma imagem de estrutura simples, contrastando com o fundo que,
significativamente, foi ornamentado com estampas japonesas, estabelecendo
uma clara relação entre o impressionismo e o japonismo então vigente.
Nesta altura, Van Gogh já estava inquieto e, ainda que incipiente do estilo
impressionista, sentia a necessidade de ir além do que já havia visto, estudado,
aprendido e aplicado, como se a própria novidade se houvesse esgotado em
suas possibilidades, na ânsia do pintor em seguir a patamares cada vez mais
altos.
Neste momento, não só sua insatisfação quanto à vida, mas também sua
doença, começavam a se manifestar. Uma e outra, a aspiração nunca satisfeita,
e a doença, que se agravaria, com o tempo, em crises cada vez mais agudas,
viriam a balizar seu comportamento e sua arte.
Paris se esgotara, em suas aspirações cada vez mais longínquas, e era o
momento de partir para novas experiências, já que a vida é curta e para ele, seria
mais curta ainda do que até ele poderia imaginar.
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Abrindo os olhos para o universo
“Eu acordo toda manhã. Abro os olhos e penso:
lá vamos nós de novo.” -- Andy Warhol --
Em 21 de fevereiro de 1888, Van Gogh chega a Arles, 750 quilômetros ao
sul de Paris, onde se instala no Hotel-Restaurante Carrel, pagando cinco
francos diários, mais do que podia, e ainda com o inconveniente de não ter
espaço para montar seu estúdio.
Em Arles, compulsivamente, pinta tudo o que vê e, já com ideias próprias,
não necessita mais recorrer à inspiração das estampas japonesas, como
reconhece em carta dirigida à sua irmã Wilhelmina Jacoba:
“Aqui, não me faz falta em nada a arte japonesa, porque me imagino
como se estivesse no Japão e nada mais necessito do que abrir os olhos e
ver a paisagem que tenho diante de mim.”
Com efeito, seus primeiros quadros em Arles tinham uma visão pessoal do
japonismo, como “Horto em flor com vista de Arles” e “Pessegueiro em flor”.
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Incansavelmente, e numa sequência vertiginosa, pinta a natureza ao seu
redor, com os campos de trigo, os pântanos do delta de Ródano, o canal do sul
de Arles e tudo mais que aparece à sua frente. Do mais trivial, o artista consegue
fazer uma obra valorosa. Vem desse momento a utilização de um novo estilo
que o caracterizou, com pinceladas ondulantes ou em círculos, e a utilização do
amarelo, verde e azul intensos.
Em 24 de maio, três meses após sua chegada a Arles, ocorre a peregrinação
tradicional de ciganos de toda Europa a Saintes-Maries-de-la-Mer, 30
quilômetros ao sul de Arles, na região de Côte d'Azur.
Vincent não perde tempo, vai até lá, realizando novos trabalhos, dentre os
quais se destaca “Barcos de pesca em Saintes-Maries”, reproduzido abaixo.
Van Gogh observa: “Passei uma semana em Saintes-Maries. Nessa praia
de areia havia pequenas barcas verdes, vermelhas e azuis, de formas e
cores tão belas que levavam a pensar em flores, não em embarcações. E
elas eram tão pequenas que nem iam a mar alto e só se lançavam às águas
quando não havia vento e as águas estavam tranquilas, voltando
rapidamente quando o vendo começava a soprar com força.”
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Em outro momento, escreve: “Ontem, ao entardecer, eu estava em uma
charneca [vegetação rala entre pedras] perto da qual crescem, no alto,
pequenas árvores ao lado de ruina; no vale havia um cenário com campos
de trigo. Era romântico, não podia ser mais, como um quadro de Monticelli
[paisagista, 1824-1884]. O sol derramava seus raios amarelos sobre os
arbustos e o solo, literalmente, se transformava em uma chuva dourada.”
Esta cena foi reproduzida em um quadro, que se acreditava apócrifo, mas
que, em 9 de setembro de 2013 foi oficialmente confirmado pelo Museu de Van
Gogh como original do pintor.
A par das paisagens, era intenção de Van Gogh pintar retratos, mas como
suas reações eram, por vezes, irracionais e incompreendidas, tinha dificuldade
em encontrar modelos, sobretudo mulheres, que temiam sua presença. Por fim,
uma jovem simples e corajosa, concordou em posar, resultando no quadro “La
Mousmé, sentada em uma cadeira de vime”, pretendendo representar uma
japonesa, ainda que o rosto era tipicamente ocidental.
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Com homens, era mais fácil a aproximação, e o pagamento se fazia,
frequentemente, em troca de uns tragos no boteco mais próximo. E foi a partir
daí de surgiram obras como “O camponês”, ”Retrato de Patience Escalier”, “O
filho do carteiro” (abaixo), “O lugar-tenente Millet” e “O cartero Roulin”.
Estabeleceu, assim, novas amizades, como aquela com a família do
carteiro Joseph Rolin, sua esposa Augustine e seus três filhos, Marcelle,
Armand e Camille, frequentemente retratados por Vincent. Em julho, visitou o
pintor belga Eugène Boch (1855-1941), que posou para o quadro intitulado “O
poeta”, em que Van Gogh pretendeu retratar o lado romântico do personagem
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No mais, Van Gogh passou todo o verão pintando paisagens ao ar livre e,
para harmonizar a composição, colocava ao fundo algum elemento
arquitetônico, como torres de igrejas, chaminés, casas e povoados, à altura da
linha do horizonte, privilegiando o primeiro plano com a vegetação dos campos.
Assim aconteceu, por exemplo, com “Vista de Arles” (abaixo), “A colheita”
(abaixo) e “A vinha verde”.
“Vista de Arles” – A cidade é apenas insinuada no terceiro plano
“A colheita” – Plantas, casas e a cidade bem ao fundo
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Era uma vez uma casa amarela...
“Era uma casa / Muito engraçada / Não tinha teto
/ Não tinha nada / Ninguém podia / Entrar nela,
não / Porque na casa / Não tinha chão.”
– Vinícius de Moraes --
Van Gogh sonhava em criar um estúdio coletivo, trazendo artistas de Paris
para formar uma comunidade em Arles e para isso alugou, em maio de 1888, a
célebre “Casa Amarela”, assim conhecida por ter sua fachada pintada nessa
cor. Era só o primeiro andar, o suficiente para seu projeto.
O prédio de dois pavimentos ficava em Place Lamartine, ao norte da
cidade. Mais uma vez, o socorro vem de seu irmão Theo, que lhe envia trezentos
francos para acondicionar e mobiliar na casa, mas, ao invés de uma comunidade
de artistas, o único que acolheu o seu projeto foi Paul Gauguín (1848-1903),
com uma personalidade tão difícil quanto à de Van Gogh, criando-se um
ambiente favorável a tempestades, com direito a raios e trovões. Buscando
ajudar, o próprio Theo convidou vários artistas, como Georges Seurat Paul
Signac e Émile Bernard, mas nenhum deles se atreveu sair de Paris para ir a
um lugar tão distante.
Gauguin vivia, naquela época, em Pont Aven, na Bretanha, ao noroeste da
França, cheio de dúvidas, sentindo-se incompreendido, e também sonhava com
a fundação de um núcleo de pintores, só que seu projeto visava a ilha da
Martinica, onde só não se fixara por falta de dinheiro. Theo procurava convencê-
lo a se instalar em Arles, mas como Theo era também o marchand de Gauguin,
este achou que seu interesse era puramente de ordem econômica e não prática,
como desabafou em carta ao colega Émile Bernard, em outubro de 1888: “Por
mais que eu aprecie Theo, não creio que ele queira me ajudar apenas por
meus belos olhos. Com seu caráter frio de holandês, por certo estudou o
terreno e está a armar alguma coisa, que não sei bem o que é.”
- 030 –
Gauguin, por essa época, devia a Deus e a todo o mundo e Theo lhe fez a
oferta irrecusável de pagar essas dívidas e custear a viagem a Arles e eis que,
em 23 de outubro de 1888, Gauguin viaja a Arles, juntando-se a Vincent, que
até já havia decorado um quarto na Casa Amarela para abrigar o novo parceiro.
Em agosto de 1888, Van Gogh pinta o primeiro dos quadros tendo como
tema os girassóis que o tornaram famoso (Um desses girassóis, leiloado pela
Sotheby’s em 2015, alcançou mais de 65 milhões de dólares!). O primeiro da
série é “Vaso com 12 girassóis” e não é nem realista nem impressionista,
antes, segue o estilo do Simbolismo. Com efeito, a meticulosidade das flores
contrasta com a situação caótica das folhas. A aplicação pastosa das cores, com
fundo azul claro e o forte amarelo do primeiro plano traz um significado maior e
expõe a imaginação do artista, como grande expressividade e quase que um
delírio de sentimentos, simbolizados nas flores.
- 031 -
Durante todo o mês de agosto, Van Gogh pintou quatro telas temáticas, a
primeira com 12 girassóis e as outras três, respectivamente com cinco, doze e
quinze flores.
Gauguin chega a Arles e, de início, se estabelece uma parceria proveitosa,
percorrendo a cidade e pintando as mesmas cenas que Vincent, mas com visões
diferentes, conforme o estilo de cada um. Também se pintaram mutuamente,
com Gauguin retratando Van Gogh e vice-versa.
Sendo duas personalidades fortes, desajustadas e incompatíveis, os
choques se tornariam inevitáveis, tanto mais que ambos entremeavam seu
trabalho com intensas bebedeiras, quando perdiam por completo o pouco senso
que lhes restava. E foi em 23 de dezembro de 1888, antevéspera do Natal, que
tiveram uma altercação mais forte, resultando no conhecido episódio da orelha
cortada, até hoje não suficientemente esclarecido. Em suas memórias, Gauguin
assinala que Vincent o teria ameaçado com uma navalha, mas que acabou
mutilando a si mesmo, cortando o lóbulo e não a orelha completa. Gauguin fugiu
da cidade na mesma noite e a polícia, no dia seguinte, invadiu a Casa Amarela,
onde encontrou Vincent inconsciente, sendo levado ao Hospital Hôtel-Dieu,
mais tarde pintado por ele (pgs. 126 e 127).
A fuga de Gauguin, que sumiu por uns tempos e reapareceu mais tarde
em Paris, coloca-o entre os suspeitos do crime cometido. Os dois nunca
mais viriam a se encontrar, mas, ainda assim, trocaram algumas cartas, já com
a amizade congelada e sem a cumplicidade dos tempos anteriores. Terminava
aí o sonho de Vincent em transformar o ateliê numa casa de artistas.
- 032 -
Interrogado pela polícia, Gauguin declarou que a orelha cortada seria fruto
de uma auto-lesão. Outra hipótese levantada é que Vincent se achava
desgostoso com a notícia de que seu irmão Theo ia se casar. Nada se conseguiu
apurar a respeito, havendo apenas algumas referências nas memórias de
Gauguin, publicadas em 1903, quando Van Gogh já era morto.
Dos estudos que se realizaram mais tarde, e afastando as lendas que se
formaram em torno do assunto, críticos concluíram que, de fato, foi Gauguin,
mestre em esgrima, quem teria cortado a orelha de Vincent, fugindo de
Arles na mesma noite, para nunca mais voltar. Entre um e outro, estabeleceu-
se um pacto de silêncio, com Gauguin iludindo o inquérito policial e Van Gogh
silenciando para proteger o amigo, com o qual mantinha uma dependência
neurótica, para não dizer psicopata.
Van Gogh se restabelece, volta à Casa Amarela e, até orgulhoso pelo
acontecimento que o pôs em evidência, pinta dois quadros, em que a orelha
cortada aparece no lado direito e não esquerdo, o que leva a crer que a pintura
aconteceu diante de um espelho.
Fecha-se o ciclo e, semanas após o episódio da orelha cortada, Van Gogh
começa a manifestar sintomas de desajuste mental, que o levaria à sua fase
mais aguda e, paradoxalmente, mais proveitosa, de sua vida artística, juntando
momentos de desequilíbrio com a inspiração renovadora que o levou à pintura
de seus melhores quadros. É assim que o mundo gira.
À esquerda, “Auto retrato com orelha cortada e cachimbo” O incidente foi
com a orelha esquerda, mas aqui é pintado como se fora a orelha direita,
o que indica que o quadro se fez diante do espelho. À direita, o Dr.
Gachet, médico e amigo, que cuidou de Van Gogh até sua morte
- 033 –
E a noite encheu-se de estrelas
“E tu, que invejavas as estrelas,
Sonhavas, ao vê-las, ser astro no céu.”
-- Carlos Alberto Braga (Braguinha) --
O episódio da orelha cortada se deu na antevéspera do Natal de 1888 e,
em janeiro do 1889, Vincent saia do hospital, de volta à Casa Amarela, mas, a
partir daí, sua vida nunca mais seria a mesma. Primeiro, vieram os sintomas de
mania persecutória, quando ele imaginava que alguém o queria envenenar,
entrando em cena, para aplaca-lo, o Dr. Félix Rey (1867-1932).
Rey era então um jovem de 23 anos, especialista em tuberculose, mas um
expert em outras áreas, havendo já recebido uma medalha oficial por seu
trabalho no combate a uma epidemia de cólera. Sua atenção sensibilizou Van
Gogh, que o presenteou com um retrato que o médico, entretanto, desdenhou e,
segundo a lenda, teria usado para tapar um buraco no galinheiro.
- 034 –
Em março, vizinhos preocupados dão queixa à polícia e Van Gogh é levado
de volta ao Hospital Hôtel-Dieu de Arles. Em 17 de abril de 1889, em Amsterdã,
Theo se casa com Johanna Bonger e, a partir daí, Vincent entra em crise e, em
8 de maio de 1889, voluntariamente, se interna no Sanatório (outrora
monastério) de Saint-Paul-de-Mausole, em Saint-Rémy-de-Provence, a 30
quilômetros de Arles.
Joana Bonger, esposa de Theo,
e o filho Vincent Willem (1890)
No local, ele dispunha de um ateliê e pintava incessantemente, mas sua
pintura, desde “Lírios”, feita uma semana após a internação, ganha uma nova
paleta, de cores fortes e formas retorcidas. Era um novo Van Gogh, libertando
seus sentimentos mais profundos e dando início ao que se convencionou chamar
de Pós-Impressionismo. Entre esses quadros está a sua visão de “Pietà”.
- 035 -
“Pietà” de Vincent Van Gogh
Mesmo quando não podia passear pelos arredores (o que exigia a
segurança de um acompanhante), pintava no estúdio, de memória. Eram
pinheiros, ciprestes e oliveiras, com seus troncos sinuosos. Parte dessas
árvores podia ser encontrada nas próprias terras do sanatório, outras tinham de
ser buscadas nos arredores, sempre com um acompanhante.
- 037 -
Note-se que, nem Van Gogh, nem os outros impressionistas se
interessavam por temas religiosos, mas ele sentiu a necessidade de inspiração
em pintores clássicos, para interpretá-los à sua maneira e, assim, pediu ao irmão
Theo que lhe mandasse estampas litografadas, fazendo, por elas, a releitura de
grandes obras clássicas, como a “Pietà” inspirada em Delacroix, e
“Ressurreição de Lázaro, inspirada em Rembrandt. Já com Jean-Françoir
Millet, ele fez a releitura de “A vigília” (La Veillée).
“La Veilée” de Millet
“La Veilée” de Van Gogh
- 038 -
E eis que, entre frequentes crises e alucinações, surge sua obra prima, “A
Noite Estrelada” (em holandês, De sterrennacht e em inglês, The starry
night) uma das mais conhecidas pinturas de Van Gogh, que se encontra hoje
em exposição permanente no MoMA-Museu de Arte Moderna de Nova York..
Mais tarde, o próprio Van Gogh fez uma reprodução do mesmo tema em
desenho singular, usando um “cálamo” espécie de estilete feito de bambu ou
junco, usado na antiguidade para gravar em argila, papiro ou pergaminho.
.
- 039 –
As crises de insanidade foram se tornando cada vez mais frequentes, com
arrebatamentos desesperados e alucinações, até que, em 27 de julho de 1890,
aos 37 anos, saiu sozinho pelos arredores do hospital, para caçar gralhas que
destruíam as plantações e, por acidente ou propositalmente, disparou contra si
mesmo, num tiro fatal que o levou à morte, nos braços do irmão Theo, em 27 de
julho de 1890, sendo sepultado no Cemitério de Auvers-Oise. (pg. 150 e 151)
Abalado com a morte do irmão, logo em seguida, Theo viu agravado um
problema renal crônico, internando-se em uma clínica em Utrecht (Holanda),
onde também viria a falecer, em 25 de janeiro de 1891, seis meses após a morte
de Vincent. No ano de 1914, o corpo de Theo foi exumado e sepultado junto ao
de seu irmão em Auvers-Oise. Neste mesmo ano, a esposa de Theo consentiu
na divulgação das cartas trocadas entre Theo e Vincent, permitindo a
composição da biografia do atribulado gênio da pintura.
- 040 –
O céu repleto de estrelas ganhou mais duas, de irmãos quem muito pouco
estiveram juntos, fisicamente, mas que eram almas gêmeas e dependentes entre
si. Vincent sempre dependeu do irmão para se manter financeiramente e
sustentar sua compulsão pela pintura, mas, do outro lado, Theo era
psicologicamente dependente de Vincent. Como irmãos corsos, um não se
despregava do outro e a morte de Vincent decretou o fim da vida de Theo. Este
conseguiu amealhar uma vida financeiramente estável, aquele deixou um legado
à posteridade composto de mais de 800 quadros, disputados avidamente nos
leilões, por valores que Van Gogh jamais sonhara ter em vida.
A propósito, há uma lenda segundo a qual Van Gogh só conseguiu vender
um quadro, “A vinha vermelha e os seus vindimadores no Outono”,
comprado por Anne Boch, irmã do pintor belga Eugene Boch. Ao descrever o
quadro ao irmão, Vincent disse que o tinha feito após a chuva, com o Pôr-do-
Sol, pintando o chão de violeta e as folhas das parreiras de vermelho "como
vinho". O toque esverdeado e quase imperceptível no céu foi usado para
contrastar com os tons de vermelho quente que dominam a composição.
De fato, este foi o único quadro que Van Gogh conseguiu vender, sob
registro, no mercado oficial, mas não necessariamente foi o único
negociado. Naquela época, o material de pintura (telas, tintas pincéis e tudo o
mais) era caríssimo e a mesada que o pintor recebia do irmão não era suficiente
para sustentar sua compulsão pela pintura. Assim, o mais provável é que
Vincent, tal como o faziam outros artistas, tenha entregue algumas telas a
marchands, em troca dos apetrechos de que necessitava para prosseguir em
sua obra. Não se tratava de venda, mas de escambo, mas, evidentemente, esses
negociantes transformaram tais quadros em dinheiro, para se ressarcir. Ninguém
o saberá ao certo, mas é bem provável que isso tenha acontecido.
Por outro lado, no início da carreira, seu tio, que era marchand, lhe
encomendou uma dúzia de paisagens de Amsterdã e pagou por elas. Ao fim, o
Dr. Gachet aceitava quadros em pagamento de sua estada no sanatório de
Auvers-sur Oise. Tudo isso deve ser contado como venda legítima.
- 041 -
Post-Scriptum – O misterioso doutor Gachet
Paul-Ferdinand Gachet, nascido em 30 de julho de 1828 e falecido 9 de
janeiro de 1909, era 25 anos mais velho que Van Gogh e foi o responsável pelo
tratamento do artista durante sua internação em Auvers-sur-Oise, última etapa
de sua vida, tão conturbada como as etapas anteriores.
De grande sensibilidade, ele se transformava, nas horas vagas, em um
pintor amador, assinando suas obras como Paul van Ryssel e, paralelamente,
dava apoio aos incipientes artistas, adeptos do impressionismo, tornando-se
amigo e clínico de artistas como Pissarro, Renoir, Manet, Cézanne e Norbert
Goeneutte, entre outros, colecionando obras desses artistas que, em
contrapartida, fizeram retratos do médico e de sua família.
Entre quadros de sua lavra, é famoso aquele em que ele retrata Vincent
Van Gogh em seu leito de morte (reproduzido abaixo).
- 042 –
Nasceu e cresceu na cidade de Lille, 220 quilômetros ao norte de Paris, mas
teve de mudar-se para Mechelen, na Bélgica, acompanhando seu pai, que fora
promovido a gerente da empresa em que trabalhava e que tinha sido deslocado
para a citada Mechelen.
Mais tarde, voltou à França para cursar medicina na Universidade de Paris,
estagiando em hospitais psiquiátricos e fez doutorado defendendo a tese “Étude
sur la Mélancolie” (Éditeur du Montpellier Médecal). Era também amigo do
químico suíço Henri Nestlé, criador do leite em pó, cujo produto Gachet
receitava a seus clientes mirins. Próximo ao mundo artístico, Gachet curou
Pierre-Auguste Renoir de uma pneumonia e deu assistência a Edouard Manet,
quando este teve de amputar a perna esquerda, para estancar uma gangrena,
morrendo dias após, por complicações derivadas da operação.
Quando a perturbação de Vincent se agravou, foi o irmão Theo que cuidou
de sua transferência do sanatório em Saint-Rémy-de-Provence (vizinho a
Arles) para o sanatório de Auvers-sur-Oise, próximo a Paris, seja por conhecer
a capacidade do dr. Gachet, seja para estar mais perto do irmão.
Gachet caricaturado por Charles Lucien Léandre (1862–1934
- 043 -
O mais conhecido retrato do Dr. Gachet, feito por
Van Gogh em 1890, durante sua internação na clínica
Como médico, ele foi bastante criticado no que diz respeito ao tratamento de
Van Gogh, dado que sua doença, ao invés de ser debelada, evoluiu
gradativamente para pior até o gesto tresloucado do suicídio. A seu favor,
ocorrem os fatos de que a psiquiatria não estava, à época, suficientemente
evoluída e Van Gogh era refratário ao tratamento, tabagista e alcoólatra, e
apresentando sintomas para os quais não se conhecia uma terapia efetiva.
- 045 –
Como se fôra uma sina, Van Gogh se afeiçoava rapidamente com as
pessoas de seu convívio e sentia profundamente a separação, quando esta,
inevitavelmente acontecia. Exemplos disso foram o seu afastamento da família
do carteiro Rolin, em Arles, quando este foi removido para outra cidade. O
mesmo ocorreu quando precisou se afastar da pensão onde morava, com cuja
família estabeleceu um relacionamento neurótico. E o mesmo se repetia agora,
com relação ao dr. Gachet e sua família, quando surgiram boatos de que ele
deveria deixar a clínica de ouvers-sur-Oise e mudar-se para outra cidade. Este
fato, aliado ao anunciado casamento do irmão Theo, agravaram as condições de
saúde de Vincent, precipitando os acontecimentos.
Dr. Gachet e seu cachimbo, em desenho de Van Gogh
- 046 –
Em 3 de maio de 1890, Van Gogh escreve ao irmão:
“Encontrei no Dr. Gachet um amigo... e algo como um novo irmão,
tão parecidos que somos, ele e eu, tanto física como moralmente.
Não obstante, ele é um tanto estranho no comportamento e bastante
nervoso no relacionamento...”
Curiosamente, Vincent transfere ao médico a responsabilidade pelo
relacionamento conturbado entre os dois, sem se dar pela conta de que ele é
que era o paciente desajustado a ser colocado nos padrões de normalidade.
Marguerite Gauchet no jardim
Registre-se uma atenção especial de Van Gogh para a filha do médico,
Marguerite, por ele retratada por ele com uma atenção especial, buscando fixar
na tela os traços psicológicos e as emoções, mais que uma simples reprodução
fotográfica, conforme revela ao irmão Theo:
“O que mais me apaixona é o retrato vivo, o retrato moderno. Não
busco fazê-lo como uma semelhança fotográfica, mas pela
expressão pura de nossas paixões, utilizando os melhores recursos
e a própria alma na aplicação das cores.”
No mais, Gauchet devia ser viúvo, pois não existem registros de sua
mulher, mas apenas da filha.
- 050 –
- 1882 -
“Vista do mar em Scheveningen”
Óleo sobre cartão –
34,5 x 51 cm
Ao perder seu ardor missionário, Van Gogh deixou o presbitério de Etten e
partiu para Haia, em 1882, onde passou a visitar o marido de uma prima, Anton
Mauve, pintor realista holandês e um dos principais membros da Escola de Haia,
que o orientou na pintura a óleo e aquarela, assim como emprestou-lhe dinheiro
para montar um estúdio. Seu tio Cornelis, negociante de arte, fez uma
encomenda de doze ilustrações a tinta, com paisagens da cidade, as quais o
sobrinho concluiu logo após chegar a Haia, completando-o com mais sete outros
trabalhos de desenho.
O quadro “Vista do mar em Scheveningen” é sua primeira experiência
séria na pintura a óleo, ainda usando o cartão como suporte e seguindo seu
“feeling” para a pintura ao ar livre. Vincent fazia frequentes incursões a
Scheveningen, uma aldeia de pescadores a três quilômetros de Haia, e foi
lá que ele fez sua estreia como pintor.
Vincent estava, então, com 27 anos e já havia tido experiências com desenho
e com aquarela, mas esta era sua primeira tentativa séria com o óleo. Nota-se,
a primeira vista, o grande observador que ele era, e a expressividade da pintura
é tanto maior pelo fato de o artista estar diante do objeto reproduzido, seguindo
a tendência ar-livrista dos impressionistas, contemporâneos seus. Vincent,
porém, nesse momento, e por algum tempo, continuaria no Realismo.
Sua abordagem é forte e corajosa. Longe de procurar novos ângulos, dividiu
a pintura em espaços horizontais, delineando areia, água e céu, numa
aplicação generosa dos pigmentos, e nenhum detalhe escapa à sua rigorosa
observação do cenário. Lá estão a praia inóspita, o mar espumante, o céu escuro
e ameaçador, anunciando a aproximação de uma tempestade, com um barco
indeciso à beira da praia e vários personagens espalhados no primeiro plano.
A natureza, por sua vez, colaborou com a obra, pois os ventos levantaram
uma quantidade apreciável de areia, que se misturou às tintas da tela. Mais
tarde, parte dessa areia foi raspada, mas alguns grãos ainda podem ser
encontrados na tela. (Texto traduzido do Museu Van Gogh)
- 052 –
- 1883 -
“Entre as dunas”
Óleo sobre papel, colado a um painel
33,5 x 45,5 cm
Loosduinen, um subúrbio de Haia, fica quatro milhas ao sul da cidade.
Local solitário, varrido pelo vento, era popular entre os artistas da Escola de
Haia e Anton Mauve, mentor e parente de Vincent, chegou a ter um estúdio lá
por vários anos. O acesso era fácil, por via férrea, e não havia um artista em Haia
que não tivesse, ao menos uma vez, viajado até a vila.
Não há provas quanto à data real em que este quadro foi pintado, mas, em
5 de setembro de 1883, Vincent envia uma carta ao seu irmão Theo,
anunciando sua visita àquele local para pintar, então, estima-se que a tela data
daquela época. Os vanguardistas de primeira linha davam muito valor à
impressão do momento e, no outono, a paisagem se reveste de cores fortes,
próprias para aumentar a carga emocional da pintura.
Vincent ainda não se atrevia a usar a tela diretamente e, também neste caso,
a pintura a óleo foi aplicada a um cartão, mais tarde colado a um painel de
madeira. Pintor por compulsão, acredita-se que ele tenha feito, nesse ano de
1883, cerca de 70 pinturas, das quais somente 25 sobreviveram.
Foto recente de uma igreja em Loosduinen
- 054 –
- 1885 -
“A velha estação de Eindhoven”
Óleo sobre tela
Eindhoven é uma cidade holandesa localizada na província de Brabante do
Norte, no sul dos Países Baixos, originalmente na confluência dos rios Dommel
e Gender.
Esta obra ainda faz parte do período Realista de Van Gogh, e se enquadra
na denominada “pintura negra”, caracterizada pela reprodução de cenas do
cotidiano de camponeses e tecelões.
É, por enquanto, um artista testando a si mesmo, fixando seus reais limites
para depois ultrapassá-los em direção ao infinito.
A propósito, a expressão eind hoven, em holandês, diz respeito a um tribunal
de última instância (eind = final + hoven = tribunal)
- 056 –
- 1885 -
“Respigadeira (Respigadora)”
Carvão vegetal e têmpera s/ pergaminho
52,5 x 43,5 cm
A colheita se dá a toque de caixa, o mais rápido possível, para colocar o
produto no mercado fazendo “caixa” para cobrir empréstimos e outras despesas
da plantação e, nessa corrida, uma parte da ceifa fica perdida nos campos. A
função da respigadeiras (ou respigadoras) é fazer um “pente fino”, recolhendo
os resíduos que ficaram para traz. Como a mão de obra era aviltada, esse
trabalho de limpeza sempre rendia um lucro extra aos plantadores.
O trabalho das respigadeiras sempre foi alvo de atenção dos pintores do
Século XIX. A versão de Van Gogh, também conhecida como “Peasant Woman
Gleaning” (Camponesa respigando) é um esboço e se fixa em uma única
mulher, num dos muitos “sketches” produzidos pelo artista, dois quais poucos
resultaram em uma obra acabada. Esta ficou também no esboço.
Outros pintores, que levaram seus trabalhos a uma tela definitiva, dão uma
visão mais ampla do campo, com várias mulheres trabalhando no mesmo
espaço, e com a paisagem ao redor. Entre eles, o quadro de Jean François-
Millet (abaixo), completado em 1857, com o título “Des glaneuses”
(Respigadeiras), com ampla visão do campo já ceifado.
- 058 –
- 1885 –
“Os comedores de batatas”
Óleo sobre tela - 82 x 114 cm
Finalmente, encontramos um Van Gogh confiante de suas possibilidades,
realizando o primeiro de seus grandes trabalhos, ainda no Realismo. Este
quadro, ele o enviou ao seu irmão, o marchant Theo Van Gogh para que fosse
inscrito no Salon de Paris, como estreia do pintor em grandes exposições, o que
afinal, acabou não acontecendo.
Desde o esboço, o artista tinha em mente transformar a obra num
espetáculo para que todos o vissem, doravante, como uma estrela emergente,
que ocuparia um destacado lugar na pintura. Vincent escolheu descrever a dura
realidade da vida rural, dando às suas figuras um ar grotesco, com mãos ósseas
e rostos deformados, comendo aquilo que eles mesmos produziram com intenso
sacrifício e que o homem da cidade compra no mercado sem se dar pela conta
do trabalho que deu para produzir o alimento.
A imagem é propositalmente escura e os rostos, significativamente
empoeirados, na cor das batatas recém-colhidas. A composição, de figuras
distorcidas, com anatomia discutível, pretendia atrair a atenção mais para a
mensagem do que para a técnica pictórica, mas foi mal compreendido pelos
críticos, interessados nos detalhes de natureza técnica.
Desdenhado pelos críticos na época em que foi enviado a Paris, “Os
Comedores de Batata” tornou-se mais tarde, e o é até os dias de hoje, uma das
mais famosas obras de Van Gogh.
Compare essa obra com as figuras de Hieronymus Bosch (1450?-1516),
em cena da Crucificação. Em Van Gogh, a deformação é produzida pelo
trabalho, no outro, pela maldade, mas em, ambos os casos, a distorção é visível.
- 060 –
- 1885 –
“Grupo de casas velhas”
Óleo sobre cartão – 35 x 25 cm
Este é um tema recorrente de Van Gogh em seu período realista. O quadro
a que nos referimos no título vai reproduzido abaixo. Uma variante sobre o
mesmo tema, pintada no mesmo ano, está reproduzida na página 061.
- 062 –
- 1886 -
“Vaso com flores”
Museu Van Gogh – Amsterdã
Este é outro tema recorrente na obra de Van Gogh e só no citado ano de
1886, ele pintou vários quadros com flores. Mais tarde, ficaria conhecido com a
série “Girassóis”, onze telas pintadas em 1887 e que encantaram os
colecionadores, agitando, após sua morte, os leilões de arte.
- 064 –
- 1886 -
“Le Moulin de la Gallette
visto da rua Girardon”
Óleo sobre tela – 38 x 46,5 cm
O nome “Moulin” (moinho) foi dado a alguns cabarés, mas este, o “Moulin
de la Gallete”, além de cabaré, tinha um moinho de verdade e se situava no
ponto mais alto de Montmartre, nos subúrbios de Paris, local de concentração
de notívagos, especialmente escritores e pintores. Neste ano, e durante sua
estada em Paris, Van Gogh fez vários quadros sobre o tema. Um deles (o do
título), vai reproduzido abaixo. Outro está na página 065.
Durante sua permanência em Paris, Vincent morou no mesmo apartamento
de seu irmão Theo, pertinho do moinho, o que facilitou a elaboração das telas e
instigou o pintor a reproduzi-lo de formas variadas.
Por outro lado, em seu contato com os impressionistas, também residentes
de Montmartre, Van Gogh começa a se desprender do Realismo, passando
para uma pintura mais clara e luminosa, como se percebe nestes dois exemplos.
- 066 –
- 1886 (circa) -
“Nu reclinado” (Nu couché)
55 x 46 cm - Óleo sobre tela
(pintado ainda em Montmartre)
Que se saiba, é o primeiro nu de Van Gogh passado para a tela. Outros
houve, mas ficaram nos esboços e a maioria se perdeu. Esta tela já revela a
influência dos jovens pintores da Vanguarda Europeia residentes em
Montmartre, com os quais o artista vinha mantendo estreito contato.
Mais tarde, Vincent tentou, sem sucesso, atrair esses pintores para a Casa
Amarela, que alugara em Arles, no sul da França, com o objetivo de fundar ali
uma comunidade artística. Só Gauguin (Eugène-Henri-Paul Gauguin, Paris, 7 de
junho de 1848 — Ilhas Marquesas, 8 de maio de 1903), ainda que relutante,
topou a parada. Aos outros, não interessava abandonar a efervescência da
capital francesa por um paraíso distante centenas de quilômetros dali.
O nu nunca foi prioridade para Van Gogh: fez vários esboços, que não
foram para as telas, preferindo fixar-se na pintura de paisagens e retratos e, em
ambos os gêneros, se revelou um gênio.
- 068 –
- 1886 -
“Japonaiserie – A árvore em floração”
Óleo sobre tela – 55 x 46 cm
Uma exposição de arte japonesa, sobretudo do período Edo, havia se
realizado em Paris, fascinando os jovens vanguardistas, pela luminosidade e
simplicidade com que os temas eram abordados, desprezando a técnica formal
para se fixar quase que exclusivamente na emoção. Aliás, essa influência foi
fundamental para o desenvolvimento do impressionismo, que se baseou nos
mesmos princípios da antiga arte oriental, até então quase que totalmente
desconhecida no ocidente. Van Gogh não viu a exposição mas, em estreito
contato com os impressionistas, deixou-se seduzir pela arte japonesa e, entre
esboços que realizou, chegou a este quadro.
A inspiração veio do artista japonês Utagawa Hiroshige (1797-1858),
também conhecido como Andō Hiroshige, adepto do “ukiyo-e” (literalmente,
"retratos do mundo flutuante"), que era um gênero de xilogravura e pintura
popular no Japão entre os séculos XVII e XIX. A gravura, impressa em branco e
preto, era posteriormente colorizada por profissionais anônimos, contratados
para essa finalidade. Colorismo era uma profissão, não reconhecida como arte.
Artista era quem fazia a xilogravura e não quem colocava cores nela.
Abaixo, o trabalho original de Hiroshige, devidamente colorizado e, na
página 069, a versão de Van Gogh. Muito parecidos, não?
- 070 –
- 1887 -
“Vegetable Gardens In Montmartre”
(Jardim de vegetais em Montmartre)
Óleo sobre tela – 120 x 96
Este também é um tema recorrente na obra de Van Gogh e o termo “jardins”
é usado de modo genérico para designar “plantações”, não necessariamente
de flores. No caso presente, trata-se de hortas ou de uma seara não específica.
Em quase todas as paisagens com plantações urbanas, o artista coloca um
moinho de vento, que não tem especificamente função de moagem, mas são
utilizados para bombear a água necessária para alimentar a plantação.
Ao contrário da França, onde os moinhos de vento eram utilizados para
irrigação, na Holanda, com terras abaixo do nível do mar, eles tinham função
inversa, bombeando a água excedente para os rios e canais que corriam vários
metros acima, evitando assim as enchentes. Van Gogh, por ser holandês, estava
bastante familiarizado com eles.
- 072 -
1887 (circa)
“Auto-retrato” Óleo sobre tela - 44 x 37,5 cm
Começa a série de auto-retratos, em que Van Gogh, com o máximo de
realismo, examina a si mesmo. Não se sabe quantos esboços teria realizado,
mas, que se conhece, são pouco mais de 20 telas efetivamente executadas.
Para se ver e auto-analisar, Vincent se postava diante de um espelho e, por
essa razão, não há auto-retratos de perfil. É de se supor, também, que, por
serem espelhadas, as imagens estão pintadas “do avesso”, o que se nota mais
claramente nos retratos após o incidente natalino, ocasião em que a orelha
cortada foi a do lado esquerdo, mas, nos dois quadros, ela aparece no lado
direito.
Neste quadro da página 073, já encontramos um Van Gogh adiante de seu
tempo, que não só aderiu ao impressionismo, como deu a este quadro um
efeito divisionista, ou pontilhista, estilo do qual nunca compartilhou. Seu salto
seria direto para o Pós-Impressionismo, caracterizado por suas cores fortes e
agressivas.
- 074 –
- 1888 -
“Auto-retrato como um artista”
Óleo sobre tela - 55,5 x 65,5 cm
Este é o último dos auto-retratos realizados em Montmartre, pouco
antes de o artista mudar-se, primeiro para a Casa Amarela de Arles, 750
quilômetros ao sul de Paris e depois para o sanatório de Sait-Remy, numa cidade
vizinha.
Arles, sul da França, distante 740 quilômetros de Paris.
Neste trabalho, Van Gogh apresentou-se como um pintor, segurando a
paleta e os pincéis atrás de seu cavalete, identificando-se como um artista
moderno, adotando um estilo novo da pintura, com cores brilhantes. A paleta
contém todas as cores complementares que ele usou no auto-retrato: vermelho
/ verde, amarelo / roxo e azul / laranja. Estes pares se acham lado a lado, de
forma ordenada: o azul de sua blusa, por exemplo, e o vermelho alaranjado de
sua barba.
A esta altura, Paris o tinha esgotado mental e fisicamente. Contou a sua
irmã Wil como ele se retratou:
"rugas na testa e ao redor da boca, rígidas como a madeira, uma
barba muito vermelha, muito desleixada e triste".
À frente de seu tempo, Van Gogh sempre sacou sobre o futuro e o futuro
chegou antecipado, deixando marcas no corpo e no espírito.
- 076 –
- 1888 -
“Pereira em flor”
Óleo sobre tela - 72 x 46 cm
“Paris c'est finite” e Van Gogh acabara de se instalar na Casa Amarela,
em Arles, no extremo sul da França, onde alimentava o sonho de reunir, em
definitivo, os melhores pintores radicados em Montmartre. Puro sonho, pois
ninguém (a não ser Gauguin) se animou a deixar a festiva Paris por uma vila
afastada, sem o contato social que a capital proporcionava.
A esta altura, Vincent já se manifestava claramente um impressionista e a
sua pintura ”Pereira em flor” era um desdobramento do japonismo que
contaminara Paris e seus vanguardistas. Arles era uma cidade desenvolvida
mas, nem de perto, podia ser comparada à agitada e promissora capital.
Enviada a Paris, esta obra foi exibida pela galeria “Theo de Boussod,
Valadon & Cie.”, empresa que negociava artes, e na qual seu irmão e outros
parentes trabalhavam.
Apesar de ter a família ligada ao negócio das artes, isso não facilitou as
coisas e as pinturas de Van Gogh continuavam sendo rejeitadas pelo mercado.
- 078 –
- 1888 –
“L’Anglois – Ponte em Arles”
Óleo sobre tela – 54,5 x 64 cm
É um tema recorrente na obra de Van Gogh, que voltaria várias outras vezes
ao mesmo assunto, fazendo a releitura deste primeiro quadro.
Van Gogh conheceu a Ponte de L’anglois quando explorava os arredores
de Arles. Ele se encantou com a leve estrutura de madeira e o seu maravilhoso
contexto cromático. A cena vista por ele remeteu-o à obra do artista japonês
Utagawa Hiroshige, chamada de A ponte Sobre o Rio Takagi (abaixo), da
qual tinha uma estampa em seus arquivos. Van Gogh nutria grande admiração
pela pintura japonesa. Ele fez quatro pinturas e quatro desenhos desta cena,
buscando reproduzi-la de ângulos diferenciados. Os personagens também
diferem.
- 079 –
“L’Anglois – Ponte em Arles” > Observe o clareamento da paleta
Outras variantes sobre o mesmo tema
- 080 –
- 1888 -
“Jardim florido em Arles”
Óleo sobre tela – 95 x 73 cm
Vincent Van Gogh sempre teve uma forte atração pelas flores e pelos seres
humanos e tanto um tema como o outro sempre dominaram suas telas. Mesmo
quando o gênero era paisagem, um e outro quase sempre estavam presentes.
O forte colorido desta tela nos encaminha para o Pós-Impressionismo no
qual Vincent, assim como seu companheiro de Arles, Gauguin, sempre foi um
incontestável mestre.
Abaixo, um campo com flores amarelas, óleo sobre tela de 1889, 34,5 x 53
cm. E, na página 081 está o jardim florido discriminado no título.
- 082 –
- 1888 -
“Starry Night over the Rhone River”
(Noite estrelada sobre o rio Rhone)
Óleo sobre tela, 75,5 x 92 cm
Na pequena vila de Arles, sem a contaminação intensa da luz parisiense,
Vincent é apresentado, com todas as honras, ao azul infinito do céu e o amarelo
candente das estrelas.
É apenas um ensaio singelo, uma estreia do tema do céu estrelado, que
revelaria, mais tarde sua obra prima numa simbiose perfeita entre o firmamento
e o artista.
Por enquanto, apenas o encantamento com o novo tema, ao qual voltaria,
em outro momento, como todo seu vigor.
O azul domina toda a tela, de cima abaixo, com uma variedade de
matizes, mas o destaque maior fica para o amarelo, luminoso e vibrante,
rasgando o azul das águas e fazendo-se presente no reflexo luminoso.
Algo para ser apreciado, algo para ser pintado. E o artista não se faz de
rogado.
Esta pintura foi exibida pela primeira vez em 1889 na exposição anual da
Sociedade de Artistas Independentes de Paris, juntamente com outra pintura
dele, com o tema “Lírios”.
A escolha deste quadro para inscrição foi feita pelo irmão Theo, à revelia do
pintor, que preferia inscrever, em seu lugar, uma pintura do jardim público de
Arles. Theo tinha um profundo conhecimento do mercado de arte, estava ligado
às preferências dos colecionadores e dos críticos e sabia, melhor que ninguém,
qual obra faria efeito positivo na exposição.
O rio Rhone, hoje mais conhecido como “Ródano”, nasce na Suíça,
atravessa todo o país, passa pelo lago de Genebra, passeia pelo sul da França,
banhando Arles e, por fim, desagua no Mar Mediterrâneo.
- 084 -
- 1888 -
“Portrait of a Young woman”
(Retrato de uma jovem)
Óleo sobre tela – 50 x 49 cm
Seguramente, nesta obra, houve uma influência, da pintura realizada pelo
artista florentino Sandro Boticelli (1445-1510), usando o mesmo tema por volta
de 1480. Van Gogh modernizou o estilo e deu seu toque pessoal.
Abaixo, o quadro de Botticelli
- 086 –
- 1888 -
Barcos na praia de “Saintes Maries”
Óleo sobre tela – 64,5 x 81 cm
Nota-se aqui uma mudança radical no estilo do artista. As cores são fortes
e descompromissadas, a pintura fica mais solta e alegre, ganhando em
expressividade. É um Van Gogh encontrando-se consigo mesmo.
Este quadro é um dos mais reproduzidos pelos fabricantes de litografias e
procurado avidamente por amantes da arte que desejam ter uma reprodução do
artista em sua parede.
Saintes-Maries-de-la-Mer é uma comuna francesa situada no delta do
Rhone (Ródano) na região Provence-Alpes-Côte d'Azur. Por área, esta é a
segunda cidade na França metropolitana, vizinha a Arles, conhecida como
estação balneária.
Construída no Século XI, a cidade ainda conserva sua forma original e estar
nela, é como voltar no tempo e na história.
Seu nome, Saintes Maries, no plural, se justifica como uma homenagem às
três Marias que aparecem juntas no episódio da Ressurreição. Abaixo, uma foto.
- 088 –
- 1888 -
“Os jardins do Mercado”
Óleo sobre tela – 72,5 x 92
O termo “jardins” aqui tem uma conotação genérica, significando plantações,
e há um sem número de quadros de Van Gogh voltando sempre ao mesmo tema.
Ainda que pintado em sua estada em Arles, o quadro fecha uma série de
experiências iniciadas em Paris, lembrando os campos provençais que eram,
para ele, um símbolo redivivo do panteísmo cósmico.
Dotado de um senso religioso profundo, o artista se afasta aqui do
cristianismo tradicional para buscar o transcendental na manifestação divina
através da natureza, da qual o homem e os demais seres vivos fazem parte.
- 090 –
- 1888 -
“O carteiro Roulin”
Óleo sobre tela – 79,5 x 63,5 cm
Van Gogh se afeiçoava muito facilmente as pessoas à sua volta, envolvendo-
se em uma relação neurótica na qual se entregava de corpo e alma e sentia
imensa dificuldade em se despregar. Assim aconteceu com a humilde família
Roulin, cujo chefe era o carteiro local, Joseph Roulin, com quem Vincent se
entusiasmou, escrevendo ao seu irmão Theo:
"Estou trabalhando agora com outro modelo, um carteiro de
uniforme azul, com detalhes em ouro, uma grande barba que nos
lembra , muito, a figura de Sócrates."
Na verdade, o singelo carteiro tinha o porte de um nobre, mas além dele, Van
Gogh pintou a família toda, incluindo mulher e filhos e se sentiu desconsolado
quando o amigo e seus familiares tiveram de mudar-se para outra localidade.
Esta série de pinturas, realizada entre 1888 e 1889, é conhecida como
“Retratos da família Roulin” e inclui sua mulher Augustine, e seus filhos
Armand, Camile e Marcelle, num total de 22 quadros. Como se sabe, o pintor
tinha um temperamento explosivo e, por medo ou ressentimento, as pessoas à
sua volta se recusavam a posar para seus retratos e, no caso da família Roulin,
houve uma interação completa, juntando a fome com a vontade de comer. Diga-
se de passagem, nenhum deles cobrou para posar .
Mais que um modelo, Roulin se tornou um bom e leal amigo, relevando os
destemperos do artista, dando-lhe suporte em sua estada em Arles. Roulin
admirava Van Gogh que, por sua vez, amava intensamente toda família do
carteiro.
- 092 -
- 1888 -
“O zuavo Millet”
Óleo sobre tela – 81 x 65 cm
“Zuavo” é a designação dada ao soldado argelino, originário de uma tribo
cabilda, pertencente a um corpo de infantaria ligeira da armada francesa, criado
na Argélia em 1831 e caracterizado por um uniforme vistoso e colorido.
Ao contrário de seus contemporâneos, Van Gogh nunca se interessou pelos
temas norte-africanos e nunca visitou a Argélia que foi, por muitas décadas, uma
colônia francesa. Este retrato tem ao menos duas versões, uma de corpo inteiro
e outra como meio-retrato.
Este é um ponto fora da curva. Van Gogh nunca havia abordado o tema
antes, nem voltou a fazê-lo depois.
- 094 –
- 1888 -
“Café Noturno em Arles”
Óleo sobre tela – 70 x 89 cm
Este quadro foi pintado em Arles em setembro de 1888, revelando o interior
de um café francês tradicional, tendo ao fundo uma cortina semi-aberta que
conduz a um espaço reservado para clientes que desejam manter sua
privacidade ou intimidade. Na parte aberta, e sem nenhuma restrição, estão
cinco clientes, um casal na mesa ao fundo, um solitário na mesa anterior e, à
frente, dois amigos conversando, todos observados por um garçom, vestindo um
simples casaco branco, sem a sofisticação dos cafés parisienses.
Também não há aquele frenesi da capital francesa e os poucos clientes que
se deixam levar pela madrugada (o relógio diz que já passa de meia-noite),
sem um programa definido que não seja passar o tempo, num local frequentado,
a rigor, por bêbados e prostitutas. A decoração é kitsch, de cores vivas e
contrastantes, o teto verde, as paredes predominantemente vermelhas, lampiões
ao teto, alimentados a gás, o piso amarelo, e, ao centro, uma mesa de bilhar,
marcando decisivamente o ambiente. Ao descrever o quadro em carta ao irmão
Theo, Vincent gracejou: “Eles me levaram tanto dinheiro que eu me vinguei,
pintando o lugar do jeito que ele é.”
Café em Paris, um lugar para “happy hour”
- 096 –
- 1888 -
“Rapaz com boné”
Óleo sobre tela – 47,5 x 39 cm
Este quadro, muito pouco divulgado, pertence ao período de Arles.
O boné era largamente utilizado na França no final do século XIX e
aparece frequentemente em retratos feitos por Van Gogh,
especialmente em garotos.
Abaixo: “O escolar” (Filho do carteiro Roulin)
- 098 –
- 1888 -
“Auto-retrato” (Self-portrait)
Óleo sobre tela – 62 x 52 cm
Desde que se instalou na Casa Amarela de Arles, no início de 1888, Van
Gogh pintou sem parar e, sempre que pode, retratou a si mesmo, buscando
refletir seu estado de espírito a cada momento, em imagens sem rebusques ou
retoques.
No momento em que terminou esta pintura, Vincent recebeu auto-retratos
de Émile Bernard e Paul Gauguin, que estavam fazendo uma série de pinturas
na Bretanha, ao noroeste da França. Em recíproca, ele despachou para lá este
auto-retrato, com a dedicatória: “Para meu amigo Paul Gauguin”.
Comentando a obra com seu irmão Theo, ele disse que o intuito era criar sua
própria imagem como se estivesse em um cárcere, manipulando as próprias
feições, mudando o contorno da jaqueta e, como ele mesmo explica, “pintando
o fundo em um pálido Veronese verde, sem sombras”.
Depois, muita coisa aconteceu. Gauguin veio morar por pouquíssimo tempo
na Casa Amarela, os dois brigaram, houve o episódio da orelha cortada, a
amizade entre Gauguin e Van Gogh se esvaiu, Gauguin, fugiu para Paris e,
desgastado, vendeu o retrato pela bagatela de 300 francos. Fim de caso.
- 100 –
- 1888 -
“Terraço de café à noite”
(Terrasse du café le soir)
Óleo sobre tela – 79 x 63 cm
Este quadro também é conhecido como “Terraço de café em frente à
praça do Fórum” (Terrasse de café sur la place du Forum) e foi realizado em
setembro de 1888, um mês bastante produtivo para Van Gogh, dois meses antes
do “episódio da orelha cortada”, que mudaria completamente sua vida.
O pintor descreve na tela um café localizado em Arles, originalmente
chamado “Terrace”. Após a popularização do quadro, o café continuou
existindo, mas mudou seu nome para “Café Van Gogh”. (Veja abaixo a pintura,
comparada com uma foto do local preservado com as mesmas características).
O céu estrelado é um ensaio para sua primeira pintura de “Starry Night”, em
que ele reflete as estrelas sobre o Rhodes (rio Ródano) e que se acha
reproduzida na página 083. A tela aqui descrita é tratada com cores quentes,
valorizando também a perspectiva, coisa incomum no artista..
Este café foi restaurado nos anos 1990, para o gáudio dos turistas que
visitam Arles, em busca de vestígios de Van Gogh. Note-se que a fachada dos
cafés daquela época jamais eram amarelas e só pareciam ser dessa cor pela
iluminação artificial. Com a luz natural do dia, eles tinham uma pintura mais
conservadora. Todavia, para agradar aos turistas, o novo proprietário, pintou a
parede realmente de amarelo, semelhante à tela de Van Gogh. Não se discute
com o cliente. O cliente sempre tem razão.
- 102 –
- 1888 -
“Sower” (O semeador)
Óleo sobre tela – 63 x 93 cm
“E o semeador saiu a semear...” O quadro a que se refere o título está
reproduzido na página 103 e o tema, para esta e outras telas, se inspira em
Jean-François Millet (1814-1875). A vida de Vincent vinha sendo um colecionar
de fracassos, desde suas primeiras experiências como missionário, até as
frustradas tentativas para vender seus quadros. Sustentado por uma mesada
que lhe era enviada fielmente por seu irmão Theo, Van Gogh se refugiou, então,
na pintura, misturada a um sentimento de religiosidade, não necessariamente
cristã, que permeou sua vida, isolando-o de tudo o mais, menos da pintura.
Com efeito, semeadura é tomada aqui como uma representação da vida
em seu melhor estilo panteísta, em simbiose com o cristianismo em que foi
educado, e que era representado pela parábola do semeador. Espalhar a
semente é então um símbolo da esperança para Vincent, porque é semeando
que se colhe.
Abaixo, uma variante, pintada no mesmo ano
- 103 –
"Eis que o semeador saiu a semear. E, ao semear, uma parte caiu à
beira do caminho; foi pisada, e as aves do céu a comeram. Outra caiu
sobre a pedra; e, tendo crescido, secou por falta de umidade. Outra
caiu no meio dos espinhos; e, estes, ao crescerem com ela, a
sufocaram. Outra, afinal, caiu em boa terra; cresceu e produziu a
cento por um" (Parábola)
- 104 –
- 1888 –
Sunset (Pôr-do-Sol)
Óleo sobre tela - 74 x 91 cm
Seguindo a mesma linha, que estabelece a relação intrínseca do homem com
a natureza, a mesma natureza que o sustenta e o conserva vivo, Van Gogh faz
mais uma representação da seara, privilegiando também o sol, como outro
elemento que representa essencial aos seres vivos. (veja o quadro na pg. 105)
Sem a semente não há plantação, sem a plantação não há o sustento
e, sem o sol, que produz a fotossíntese, não há plantas. Tudo está ligado
harmonicamente, um elemento ao outro, e esta relação entre a natureza e a vida
humana foi a ideia perseguida nestes últimos meses de sua permanência em
Arles, antes de perder totalmente o controle e ser internado em um sanatório.
O questionamento, privilegiando o panteísmo, e levantando o
questionamento com relação à sua formação religiosa, é uma tentativa de fazer
uma revisão de conceitos e entender os conflitos que o agitam, balançando entre
um extremo e outro, como se fosse o pêndulo de um relógio. O tema foi repetido
incessantemente, como nos salgueiros abaixo, pintados na mesma época.
- 106 –
- 1888 -
“Passeio em Arles”
(Memórias do Jardim em Etten)
Óleo sobre tela – 73 x 92 cm
Neste quadro, que foge ao estilo convencional de Van Gogh, o pintor apenas
esboça o cenário ao redor, fixando-se mais aos rostos, revelando o turbilhão que
lhe vai à alma. Vêm-se rostos cansados, pensativos, preocupados,
carregando todo o sentimento de seres impotentes, mas conformados em
face de problemas que não podem solucionar, por serem maior que eles.
Esta pintura, apesar da profundidade do tema, é bem colorida e leve, triste
mas não dramática, e tem sido preferida pelos colecionadores de estampas,
comercializada que é por várias empresas, e fácil de se encontrar no mercado.
Abaixo, só os rostos; na página 107, a pintura completa
- 108 –
-1888 -
“Retrato de Armand Roulin”
Óleo sobre tela 65 x 54 cm
Eles eram cinco: o carteiro Joseph Roulin (1841-?), a esposa, Augustine-
Alex Pellicot (1851-1930), o filho mais velho do casal, Armand (1871-1945), o
filho do meio, Camille (1877-1922), e a filha caçula, Marcelle (1888-?), retratada
pouco após o seu nascimento, com os quais o pintor mantinha uma relação
indissolúvel, com indiscutível dependência psicológica.
Van Gogh pintou ao todo 22 retratos de membros da família Roulin, uma
típica representante das famílias da classe operária francesa da segunda
metade do século XIX. Toda essa série demonstra a influência dos estudos de
van Gogh acerca da estampa japonesa. Embora tenham sido os modelos mais
requisitados pelo pintor em seu período em Arles, os membros da família jamais
cobraram pelas sessões.
Armand Roulin, o filho mais velho, nasceu em 5 de maio de 1871 em
Lambesc e morreu em 14 de novembro de 1945. Ele tinha 17 anos de idade
quando retratado por Van Gogh.
Na época em que as pinturas foram feitas (1888) Armand deixara a casa de
seus pais, trabalhando como aprendiz de ferreiro. Aqui ele aparece com “terno
de missa”, ou o que seriam suas melhores roupas: um chapéu fédora elegante,
casaco amarelo vívido, colete preto e gravata.
Armand aparece com um olhar um pouco triste, contudo, talvez nem seja
tristeza, mas tédio por ter de passar tanto tempo impassível enquanto o pintor
colhe os detalhes para reproduzi-los na tela. Mas o seu porte é o de um jovem
confiante e de personalidade.
De Armand, o pintor fez dois retratos, entre os 22 dedicados à família Roulin,
o que denota que ele, realmente, não apreciava figurar como modelo. “Mas já
que não posso fugir, Me voilà!”
- 110 –
- 1888-1889 -
“La berceuse” (Mme. Augustine Roulin)
ou “As mãos que embalam o berço”
Óleo sobre tela – 91 x 71,5
Trata-se da Sra. Roulin pondo Marcelle, a fiha recém-nascida, para dormir.
Toda a atenção é voltada para a mulher e o restante da cena é uma abstração,
não aparecendo nem a criança, nem a cama, que se supõe existir porque ela
segura às mãos a cordinha que balança o berço, embalando o (supostamente)
quase adormecido bebê.
Este retrato, Vincent o começou ao final de 1888 e terminou no início de
1889, quando já apresentava sinais do distúrbio mental que o levariam mais
tarde à internação, primeiro na vizinha Saint-Remy, depois ao norte de Paris, a
mais de 300 quilômetros de Arles, onde o pintor sentia uma falta imensa da
família Roulin, compensando-a, de certa maneira com a aproximação à família
do seu psiquiatra, dr. Gachet.
Em 1890, interno deste segundo asilo, Van Gogh teria recebido a notícia de
que a família Roulin se mudaria para local incerto e não sabido, enquanto corriam
também boatos de que o dr. Gachet deixaria o hospital, para ir trabalhar em outra
cidade e seu irmão Theo ia se casar. Esse tropel de eventos foram o golpe fatal
em Vincent, que atirou contra si mesmo, encerrando a carreira e a própria vida.
- 112 –
- 1888 -
“A Arlesiana” (cidadã de Arles)
Óleo sobre tela – 90 x 72 cm
A Arlesiana, ou o Retrato de Madame Ginoux, é uma pintura a óleo sobre
tela de 90x 72 cm, feita em 1888 pelo pintor Vincent Van Gogh, e que se encontra
no Metropolitan Museum de Nova York. A senhora Ginoux (Marie Jullian (ou
Julien)) nasceu em Arles em 8 de junho de 1848 e morreu em 2 de agosto de
1911. Casou-se com Joseph-Michel Ginoux, em 1866. O casal era
proprietário do Café de la Gare, em Arles, onde Van Gogh morou entre maio e
setembro de 1888. Com o mesmo tratamento de um desenho japonês, este
retrato é um dos mais famosos produzidos por Van Gogh, por sua força
expressiva, sua intensidade e violência de caracterização.
Tudo começou em novembro de 1888, quando a respeitável senhora posou
não apenas para Vincent mas também para Paul Gauguin, no curto período em
que compartilharam o ateliê da Casa Amarela, cuja parceria se encerrou na ante-
véspera do Natal, quando o primeiro teve a orelha cortada e o segundo fugiu de
Arles, na calada da noite.
Depois desta versão, que se acha hoje no Museu d’Orsay de Paris, Van
Gogh realizou outra tela, melhor elaborada, reproduzida na página 113,
justamente a que está no Metropolitan. Abaixo, a versão de Paul Gauguin
- 114 –
- 1889 -
“O homem com cachimbo”
(Auto-retrato com orelha cortada)
Óleo sobre tela – 51 x 45 cm
O episódio é bastante conhecido e mencionado em outras partes deste livro,
não precisando ser rememorado. Van Gogh fez duas versões dele, uma com o
cachimbo e outra sem ele. A orelha cortada foi a esquerda, mas como o artista
se olhou no espelho para fazer os quadros, ela aparece invertida.
- 116 –
- 1889 -
“Campo com flores de íris”
Óleo sobre tela – 71 x 93 cm
Esta é uma das várias pinturas de Van Gogh sobre a flor de íris e o primeiro
quadro executado no sanatório Saint Paul-de-Mausole perto Saint-Rémy-de-
Provence, uma semana após sua internação. Estamos já em 1889 e Van Gogh
tem 36 anos. O hospital fica a 25 quilômetros de Arles.
. A região do asilo possuía muitas searas de trigo, vinhas e olivais, que
transformaram-se na principal fonte de inspiração para os quadros seguintes, os
quais marcaram nova mudança de estilo, quando as pequenas pinceladas
evoluíram para curvas espiraladas.
Em maio de 1890, Vincent deixou a clínica em Saint-Remy, vizinha a
Arles e mudou-se para Auvers-sur-Oise, vizinha a Paris, onde podia estar
próximo do irmão e receber acompanhamento médico do doutor Paul Gachet,
um especialista habituado a lidar com artistas, recomendado que foi por Camille
Pissarro. Gachet não conseguiu melhorias no estado de Vincent, mas ele foi a
inspiração para o conhecido Retrato do Doutor Gachet. Nos três meses que aí
permaneceu, Van Gogh produz cerca de oitenta pinturas, quase uma por dia..
O diabo é que Auvers, a última morada, ficava distante 780 quilômetros
de Arles e as amizades que Van Gogh fizera no sul, assim como todos os locais
que frequentara, ficaram para trás num passado que não mais poderia recuperar
e isso influiu muito em seu estado de espírito.
Van Gogh considerou esta pintura um estudo, mas seu irmão pensou o
contrário e apresentou-a como trabalho definitivo à exposição anual do Société
des Artistes Indépendants em setembro 1889, junto com “Noite estrelado
sobre o Rhone” (página 083). Comentando com Vincent, Theo declarou:
“As flores de íris são um belo estudo cheio de ar e vida."
- 118 –
- 1889 -
“Campos verdes perto de Saint-Remy”
Óleo sobre tela – 73 x 92 cm
(Período de Saint-Remy)
- 122 –
- 1889 -
“Starry Night” (Noite Estrelada)
Óleo sobre tela – 73 x 92 cm
(Período de Saint-Remy)
“Noite Estrelada” (em holandês, “De sterrennacht”) é a obra prima criada
por Van Gogh aos 37 anos, enquanto esteve em um asilo em Saint-Rémy-de-
Provence (1889-1890), achando-se atualmente na coleção permanente do
MoMA (Museu de Arte Moderna) de Nova York e, ao contrário do que se pensa,
foi pintada de memória, tendo como referências “Starry Night over Rhodes
River” (1888), um desenho a cálamo da mesma época e vários esboços que
tinha em seus arquivos.
Neste momento, Van Gogh, que de há muito deixara o Realismo, rompe
também com o Impressionismo, buscando um colorido mais expressivo que,
mais tarde seria classificado como Pós-Impressionismo, e que ele já
experimentara em algumas obras anteriores, prevalecendo duas das três cores
primárias, o azul que domina o quadro e o amarelo que rasga esse espaço.
Em tudo isso, se revela, de maneira cada vez mais contundente, a
expressão religiosa que sempre dominara o artista e que, nos últimos tempos,
vinha se transmudando do cristianismo para o panteísmo, passando a
estabelecer uma relação intrínseca entre Deus e o homem, através do universo
que o contém e que forma a amálgama entre a divindade e o humanismo.
Em meados de setembro de 1889, após uma grande crise que durou de
meados de julho até aos últimos dias de agosto, ele pensou em incluir este
"Study of the Night" no próximo lote de obras a serem enviados para seu irmão,
Theo, em Paris. A fim de reduzir os custos do transporte, ele escondeu três
outros estudos: "Papoulas”, “Night Effect” e “Nascer da Lua"., que seguiram no
malote seguinte.
Voltando a esta última versão de “Starry Night”. A parte central apresenta
a aldeia de Saint-Rémy, sob um céu enrolado, numa visão do asilo para o norte.
Os Alpilles, cadeia de montanhas que ocupa o sul da França, estão ao longe
para o lado direito e o cipreste à esquerda foi adicionado à composição.
(Texto baseado na Wikipedia e em outras fontes).
- 124 –
- 1889 -
“Quarto de Van Gogh”
Óleo sobre tela – 56,5 x 74 cm
(Período de Saint-Remy)
O “Quarto de Van Gogh” está longe de ser a obra mais importante do
artista, mas é, com certeza a mais popular entre as suas pinturas, conhecida até
pelas pessoas menos interessadas pelas artes plásticas.
Trata-se de uma série de três pinturas e retrata o quarto onde morou em
uma pensão de Arles, a casa de Mme. Ginoux, a arlesiana da página 113. A
primeira versão foi realizada no próprio local e, as outras duas, no ano seguinte,
quando ele já se achava internado no sanatório em Saint-Remy. São
aparentemente iguais e as mudanças, podem passar despercebidas pelo
observador menos atento.
Comentando o trabalho, Vincent esclarece ao seu irmão Theo:
“Desta vez é muito simplesmente o meu quarto, aqui tem de ser só a
cor a fazer tudo; dando através da simplificação um maior estilo às
coisas, deverá sugerir a ideia de calma ou muito naturalmente de
sono. Em resumo, a presença do quadro deve acalmar a cabeça, ou
melhor, a fantasia.”
Embora buscasse a impressão de tranquilidade em seu quadro, ele reflete,
ao contrário, a tensão, a solidão e desarraigamento de Van Gogh na ocasião da
pintura. Os objetos do quarto não tem relação entre si, o piso aparenta cair para
frente, a janela está entreaberta, os quadros pendem em direção à cama, os
móveis em diagonal, tudo parece refletir o caos em que Van Gogh começara a
mergulhar em Arles e no qual já estava totalmente imerso em Saint-Remy.
Os pigmentos das tintas utilizadas na pintura foram avaliados em 2012,
concluindo-se que as paredes eram originalmente roxas mas, com o passar do
tempo, o pigmento vermelho perdeu sua cor e deixou-as azuladas. (Wikipedia)
- 126 –
- 1889 -
“Enfermaria de hospital em Arles”
Óleo sobre tela – 74 x 92 cm
(Período de Saint-Remy)
Trata-se da enfermaria do hospital de Arles em que Van Gogh esteve
internado por duas vezes, após o incidente da orelha cortada, na antevéspera
de Natal de 1888. A pintura vai reproduzida abaixo.
Ele também pintou o pátio externo com os jardins e esta pintura se acha na
página 127, juntamente com uma fotografia do prédio, hoje preservado, mas,
agora, apenas para fins de turismo. Nada de doentes.
- 128 -
- 1890 -
“Estrada rural à noite”
Óleo sobre tela – 91 x 71 cm
(Período de Saint-Remy)
“Estrada rural à noite” (em inglês, “Road with Cypress” e em holandês,
“Cypres bij sterrennacht” é o último quadro de Van Gogh em Saint-Remy,
pintado em maio de 1890, pouco antes de sua transferência para o sanatório de
Auvers-sur-Oise, a 40 quilômetros de Paris, onde ficaria aos cuidados do dr.
Gachet.
Pintar as sombras da noite, contrastantes com o brilho das estrelas, assim
como retratar ciprestes, tornou-se quase que uma obsessão para Vincent, que
escreve ao irmão: “Os ciprestes estão sempre ocupando meus
pensamentos e eu os acho belos, quando alinhados, parecendo mais um
monumento, como as pirâmides do Egito.” E, além de ciprestes, ele
manifestou sua intenção de pintar outras árvores. mal delineadas nas sombras
da noite.
Esta imagem, com um cipreste em destaque, o caminho estreito e as estrelas,
sugerem uma inspiração no clássico inglês “The Pilgrim's Progress”
(publicado em português como “O Peregrino”), escrito na prisão por John
Bunyan (1628–1688) e bastante divulgado entre os protestantes.
A orientação das estrelas no firmamento não é aleatória pode ter sido
influenciada por uma conjunção de corpos celestes em 20 de abril de 1890,
quando Mercúrio e Vênus estavam em 3 graus de separação e, juntos, tinham
luminescência comparável a Sirius. Observação: Van Gogh fizera 37 anos em
30 de março de 1890, seu último aniversário.
- 130 –
- 1890 -
“Auto-retrato”
Óleo sobre tela – 65 x 54 cm
(Período de Auvers-sur-Oise)
O artista busca retratar seu indeciso e variável estado de espírito, resultante
da própria inquietude. Este é o primeiro auto-retrato em sua última fase de vida,
quando já se achava instalado no Sanatório em Auvers-sur-Oise, próximo a
Paris, para onde havia sido transferido em maio de 1890, deixando para trás o
período curto, mas turbulento, em Arles e em Saint-Remy, no sudoeste da
França;
- 132 –
- 1890 -
“Campo de papoulas”
Óleo sobre tela – 73 x 93 cm
(Período de Auvers-sur-Oise)
“Auvers é maravilhoso!”, escreve Van Gogh ao irmão Theo. O artista
encanta-se com Auvers-sur-Oise, como já havia se encantado anteriormente
com Arles. Esta sua pintura, inaugurando a série de paisagens sobre a nova
morada, é um cenário de papoulas, com algumas árvores ao fundo, agora com
um maior cuidado quanto à perspectiva, criando planos bem definidos que dão
uma sensação de profundidade. Há uma intenção clara de demonstrar que
ventava naquele momento, o que se pode perceber pela inclinação das plantas
para o oeste.
Vincent permaneceu no local menos de três meses, até pôr fim à vida, mas
nesse curto período, produziu 72 pinturas, 33 desenhos e uma gravura, nos
quais representou a vila tal qual ele a via e, mais do que isso, tal qual ele
imaginava que ela poderia ser, vale dizer, um espaço rural perfeito e fértil, onde
o verde se alterna com o colorido das flores.
A composição das telas e o uso profuso da cor lembram os campos de
papoulas pintados por Claude Monet, um dos quais reproduzimos abaixo,
para comparação. Esta obra de Monet é de 1873.
- 134 –
- 1890 -
“Mademoiselle Gachet dans son jardin”
Óleo sobre tela – 46 x 55 cm
(Período de Auvers-sur-Oise)
Tal como já o fizera em Arles com a família Roulin, agora, Van Gogh se
dedica a fotografar a família do dr. Gachet. Ao que parece, o médico era viúvo
e sua família era composto apenas por ele e sua filha. Ocupado com suas
atividades como diretor do sanatório e sendo sua principal referência no
tratamento dos doentes, Gachet não dispunha de tempo para posar, pelo que o
modelo, com frequência, era sua filha, em seus passeios pelo jardim do hospital,
local onde o médico tinha também sua residência, ou em ambientes internos,
como ao piano (quadro abaixo).
- 136 -
- 1890 -
“Chalés em Cordeville”
Óleo sobre tela – 72 x 91 cm
(Período de Auvers-sur-Oise)
Este quadro é bastante popular e requisitado por colecionadores de
litografias, pela imagem vívida e a beleza de sua composição.
Tecnicamente, revela um momento conturbado e tenso no estado de Van
Gogh, com uma regressão ao seu período holandês, ao início de sua carreira,
só que aqui, a releitura de sua obra se faz com a maestria de que já tem dez
anos de estrada. É uma estampa bonita e artisticamente bem elaborada, que
merece um lugar na parede da sala de qualquer amante da arte.
Veja a imagem dela abaixo e compare com as duas telas da página 137,
pintadas na mesma época, mas com um espírito mais plácido.
- 137 –
Van Gogh e duas paisagens em Auvers-sur-Oise
em outro momento e com outro estado de espírito
- 138 –
- 1890 -
“Retrato do dr. Gachet”
Óleo sobre tela – 68 x 57 cm
(Período de Auvers-sur-Oise)
Paul Ferdinand Gachet era um clínico geral, mas que ficou famoso por tratar
os insanos com humanidade, numa época em que a farmacopeia, como ironizou
um terapeuta, se reduzia a choque elétrico e suco de maracujá.
Gachet tinha um hobby, que era a pintura, gostava da arte e tinha uma
técnica bem desenvolvida, o que o aproximava dos artistas profissionais. Foi o
único médico que aceitou com prazer os quadros de Van Gogh como forma de
pagamento. Inclinado aos estudos da mente humana, sua tese de graduação em
Medicina teve como tema a "melancolia".
No olhar suspeito de Van Gogh, que era seu paciente, Gachet se tornara,
de certa forma, vítima dos próprios males que se propunha curar e Vincent disse
isso em carta ao seu irmão Theo datada de 20 de maio de 1890:
“O Dr. Gachet diz que sou excêntrico, mas quando olho para ele,
vejo-o lutando contra um problema nervoso que certamente está a
sofrer tão seriamente quanto eu. É a sua profissão de médico que o
mantém, aparentemente, em equilíbrio.”
Foi o dr. Gachet que, como artista “domingueiro”, introduziu Van Gogh na
técnica da têmpera e a primeira versão deste quadro foi realizada com essa
técnica. Usando o quadro a têmpera como referência, Vincent pintou outros dois,
em óleo sobre tela.
A primeira versão, que está reproduzida na página 138, foi leiloada pela
Christie’s de Nova York 15 de maio de 1990 pela bagatela de US$86.500
dólares, dinheiro que nem Van Gogh, nem o dr. Gachet jamais sonharam ver em
toda a vida.
Como diz o ditado, “o bom bocado não é para quem o faz, mas sim para
quem o come.” A história da arte está repleta de artistas que atravessaram a
vida driblando problemas financeiros crônicos para, depois de sua morte, os seus
trabalhos se valorizarem continuamente, sendo disputados “a tapa” nos leilões e
alcançando valores milionários.
- 139 –
Além de um protótipo a têmpera, Van Gogh fez duas
versões em óleo sobre tela. Esta é a primeira delas.
- 140 –
- 1890 -
“Paisagem próxima a Auvers”
Óleo sobre tela – 73,5 x 92 cm
(Período de Auvers-sur-Oise)
O estado clínico de Van Gogh oscilava a todo momento, passando
facilmente de um momento de calma para um período de agitação ou de
descontrole total.
Em momentos de aparente equilíbrio, lhe era permitido sair dos limites do
hospital, sempre com um acompanhante, para buscar lugares pitorescos que
pudesse reproduzir em suas telas.
Foi numa dessas ocasiões que ele pintou, com a voracidade de sempre, a
tela “Paisagem próxima a Auvers” em que o artista consegue captar um
ambiente tranquilo e até bucólico, revelando, com habilidade, a vida no campo.
No primeiro plano, o mato rasteiro; ao centro da tela, uma casa simples,
denotando tratar-se de uma roça de humilde lavrador, e uma parte da colheita
amontoada, ao lado de canteiros ainda em desenvolvimento; ao fundo, mais
plantações e árvores delimitando a propriedade; por fim, o infinito céu, permeado
de nuvens, céu que Van Gogh consegue tornar majestoso com umas poucas e
descompromissadas pinceladas.
São cenas que se tornam recorrentes nestes últimos meses do artista. Como
ele mesmo disse, Auvers é majestoso e ele, como ninguém, conseguiu capturá-
lo, com maestria, em suas telas
- 142 -
- 1890 -
“Igreja em Auvers”
Óleo sobre tela – 94 x 74 cm
Esta pintura foi concluída em 5 de junho de 1890, dois meses antes de sua
morte, e é representativa dos poucos meses em que Vincent passou no sanatório
dirigido pelo dr. Gachet, onde produziu seus mais bem elaborados trabalhos. É
o próprio artista que descreve o quadro:
"Resultou também em um grande quadro da igreja da aldeia, no qual
aparece o edifício violeta, em frente a um céu liso, azul profundo de
puro colorido; os vitrais em cor são como manchas de ultramarino,
o telhado é violeta e em parte laranja. No primeiro plano algo de verde
viçoso e areia em tom rosa batida pelo sol. É quase como os estudos
que fiz em Nuenen da velha torre e cemitério, só que a cor agora é
mais expressiva e rica.”
Mais do que a genialidade como pintor, a importância de Van Gogh cresce
pela influência que sua obra exerceu sobre os novos movimentos da Vanguarda
Europeia, que, por sua vez, conduziram à formação da pintura moderna. Nascido
artisticamente no Realismo, ele aderiu ao Impressionismo e rapidamente
evoluiu, com sua tendência para cores vívidas e fortes, para um estilo que ficou
conhecido mais tarde como Pós-Impressionismo. Sua compulsão para o
exagero nas cores foi inspiração para o surgimento do Fauvismo e, por fim, a
distorção em algumas de suas obras (de que é exemplo a Igreja em Auvers-sur-
Oise), foi inspiração para o Expressionismo.
Sua carreira foi curta, em torno de dez anos, mas viveu uma década a cada
ano, adiantando-se no tempo, produzindo incessantemente e, deixou um acervo
volumoso, numa variedade de formas e estilos característicos de seu
temperamento irregular. Na foto abaixo, a Igreja; na página 143, a pintura.
- 144 –
- 1890 -
“Camponesa com chapéu de palha”
Óleo sobre tela – 92 x 73 cm
(Período de Auvers-sur-Oise)
Desde o início de sua carreira, com “Os comedores de batatas” até suas
últimas obras, Van Gogh sempre deu atenção à dura vida do campo, retratando
rostos rudes, trabalhados pelo sol e o trabalho pesado, ou belas camponesas,
que não conseguem esconder a tristeza no olhar, pela vida que não escolheram
mas que é uma sina à qual não podem escapar.
- 147 –
- 1889 -
“Menino atando feixes”
Óleo sobre tela – 44 x 32,5
Residuo do período de Saint Remy
- 148 –
- 1889 - “Pietá”
Óleo sobre tela – 73 x 60,5
Residuo do período de Saint Remy
Van Gogh baseou-se em uma litografia de pintura feita por Eugène
Delacroix. É a imagem da Virgem Maria lamentando a morte de Cristo e, embora
inspirada na estampa, nada tem a ver com ela, pois Van Gogh fez sua própria
interpretação do original, acrescentando as cores de sua própria paleta,
assinando embaixo.
- 149 –
- 1890 -
“Prisioneiros em exercício”
Óleo sobre tela – 80 x 64 cm
(Período de Auvers-sur-Oise)
Trata-se de um dos últimos trabalhos de Van Gogh, inspirado em uma
litografia de Gustave Doré.
- 150 –
- 1890 -
“Seara com gralhas”
(Um réquiem para um gênio)
Óleo sobre tela – 50,5 x 105 cm
(Período de Auvers-sur-Oise)
Este é o último quadro de Van Gogh, representando
significativamente, como um sinal fatalista do destino,
um campo pronto para a colheita e um bando de gralhas
(corvos) sobrevoando a seara, na iminência de atacar a
plantação.
Van Gogh terminou esta obra na manhã de 27 de julho
de 1890. À tarde do mesmo dia 27, pegou espingarda e foi
para o campo, a pretexto de espantar as gralhas (as
mesmas que acabara de pintar) colocando-as em fuga. Ao
invés disso, de propósito ou por acidente, atirou contra si
mesmo, morrendo dois dias após, nos braços do irmão
Theo.
Custa crer que se tratasse de morte premeditada, ao
invés de um acidente, próprio de quem não tem experiência
com armas de fogo. É precipitado concluir que, quem pintou
esta obra com ardor, iria, horas depois, pôr fim à própria
vida. Pintar o quadro racionalmente, como uma despedida,
exigiria sangue frio e racionalidade a toda prova.
Nada a ver com Van Gogh que não tinha esse sangue
frio e, menos ainda, era racional no seu comportamento.
Muito pelo contrário, sua vida era marcada por repentes de
calma ou de fúria, nada planejado, tudo aleatório.
- 151 –
O quadro completo, nas proporções originais
Detalhe: nuvens negras, anunciando a tormenta, ao lado de nuvens
brancas, lutando pelo bom tempo, contrastam com o amarelo da seara e
algumas pinceladas de verde-esperança para sinalizar o caminho.