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Compilação de Paulo Victorino Traduzido da Wlkiipedia em francês, inglês, espanhol e italiano, com apoio de várias outras fontes Ora (direis) ouvir estrelasE eu vos direi: “Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas". --- Olavo Bilac (1865-1918) Vincent Willem van Gogh nasceu em Zundert (Holanda) em 30 de março de 1853 e faleceu Auvers-sur-Oise (França) em 29 de julho de 1890, aos 37 anos de idade. Pintou apenas nos seus últimos 10 anos de vida, e ainda assim conseguiu produzir ao menos 900 obras, afora as que possam ter sido perdidas ou destruídas. Foi, com Paul Gauguin, um dos primeiros Pós-Impressionistas, desenvolvendo uma pintura inquieta e febril, carregada de cores fortes, que viriam, em seguida, inspirar o surgimento do Fauvismo. A propósito, não se confunda o Pós-Impressionismo com o Neo- Impressionismo, pois são coisas diferentes. O primeiro se distingue pelo exagero da cor e desaguou na pintura fauve; o segundo se destaca pela separação, também exagerada, dos pontos coloridos que compõe a pintura, tornando-se uma caricatura do impressionismo, e teve curta duração.

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Compilação de Paulo Victorino Traduzido da Wlkiipedia em francês, inglês, espanhol e italiano,

com apoio de várias outras fontes

“Ora (direis) ouvir estrelas”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!

Pois só quem ama pode ter ouvido

Capaz de ouvir e de entender estrelas".

--- Olavo Bilac (1865-1918) –

Vincent Willem van Gogh nasceu em Zundert (Holanda) em 30 de março

de 1853 e faleceu Auvers-sur-Oise (França) em 29 de julho de 1890, aos 37

anos de idade. Pintou apenas nos seus últimos 10 anos de vida, e ainda assim

conseguiu produzir ao menos 900 obras, afora as que possam ter sido perdidas

ou destruídas. Foi, com Paul Gauguin, um dos primeiros Pós-Impressionistas,

desenvolvendo uma pintura inquieta e febril, carregada de cores fortes, que

viriam, em seguida, inspirar o surgimento do Fauvismo.

A propósito, não se confunda o Pós-Impressionismo com o Neo-

Impressionismo, pois são coisas diferentes. O primeiro se distingue pelo

exagero da cor e desaguou na pintura fauve; o segundo se destaca pela

separação, também exagerada, dos pontos coloridos que compõe a pintura,

tornando-se uma caricatura do impressionismo, e teve curta duração.

- 002 -

A fonte primária mais abrangente para a compreensão de Vincent Van

Gogh como artista é a coleção de cartas entre ele e seu irmão mais novo, o

negociante de arte Theo van Gogh, que forneceu apoio financeiro e emocional

para Vincent durante toda vida do artista. A maior parte do que sabemos sobre

o pensamento de van Gogh e suas teorias está em mais de 600 cartas que

Vincent escreveu ao irmão, sendo que apenas 40 respostas de Theo foram

preservadas. É natural que Theo guardasse as cartas recebidas, mas não tinha

cópia das enviadas, enquanto que Vincent não se preocupava em manter

arquivos de correspondência.

O período mais nebuloso de Vincent foi o de sua permanência em Paris,

onde vivia o irmão Theo, negociante de artes, pois, estando próximos um do

outro (moravam no mesmo apartamento em Montmartre), não houve troca de

correspondência, mas só conversação. E palavras, leva-as o vento...

Também são uma fonte preciosa de informações as cartas trocadas com o

pintor e desenhista holandês Anthon Gerard Alexander van Rappard (1858-

1892), cinco anos mais novo que Vincent, que fora discípulo de Laweence Alma-

Tadema e que tornou-se não apenas amigo mas também mentor de Van Gogh.

O artista manteve ainda correspondência regular com o pós-impressionista

e escritor francês Émile Bernard (1868-1941), 15 anos mais jovem que ele, seu

amigo e confidente, e com a própria irmã Wilhelmina Jacoba van Gogh.

- 003 -

Theo, Wilhelmina e Gauguin, correspondentes de Vincent Van Gogh

Costuma-se ter Van Gogh como um louco solitário internado em um

sanatório, preenchendo seu vazio com pinturas. Nada disso: Vincent era um

intelectual, leitor voraz e estudioso, não só da vida de outros artistas, como da

cultura geral. Suas rigorosas representações celestes são baseadas na

Astronomie Populaire (1880) de Camille Frammarion e ele se instruía também

com leituras de Shakespeare, Victor Hugo, Charles Dickens e Émile Zola, entre

outros. Amava a noite, como diz em carta à irmã Wil: “Às vezes parece-me

que a noite é mais colorida do que o dia.” E buscava, na leitura do céu, os

detalhes mais insignificantes, como escreve ao irmão Theo: “Algumas estrelas

são amarelo limão, outras têm um brilho rosáceo, outras um verde ou azul

de miosótis.”

Esse é Vincent Van Gogh, para quem o enigma indecifrável das estrelas

tornou-se uma das origens de seus conflitos existenciais. Ao “ouvir as

estrelas”, o artista prosseguia numa intensa busca da verdade, sonhando em

ser normal como todos. Mas, se fosse normal, seria o gênio que reverenciamos?

Por certo que não.

- 004 –

“De minha parte, eu não sei nada com tanta certeza,

mas a visão das estrelas me faz sonhar”

(Vincent Van Gogh)

- 005 –

O pastor zeloso e as ovelhas rebeldes

“Deus pede estrita conta de meu tempo,

É forçoso do tempo já dar conta;

Mas, como darei em tempo tanta conta,

Eu que gastei sem conta tanto tempo?”

-- Laurindo Rabelo (1826-1864) --

Entre a cruz e a caldeirinha, levando consigo a sina da contradição, numa

luta perpétua entre o bem e o mal, insatisfeito consigo e, por isso mesmo,

buscando o melhor para si e para a humanidade, Van Gogh atravessou o grande

deserto da vida, não na contemplação, mas na vida intensa e frenética, como

um enviado divino perseguindo uma missão que nem ele próprio conseguia

identificar qual era, mas que buscava, a todo tempo, com determinação.

Vincent Willem van Gogh, filho de um humilde pastor protestante, nasceu

em 1853 na pequena vila de Zundert, próxima a Bruxelas, na região de Flandres

e a 400 quilômetros de Paris, recebendo o mesmo nome de seu irmão natimorto

um ano atrás. Quatro anos depois, nascia seu outro irmão Theo, cuja vida

estaria, para todo o sempre, ligada a ele, numa perfeita simbiose em que Theo

era o cérebro e Vincent a alma. Junto a eles, viriam ainda mais quatro irmãos:

Cornelius Vincent, Elisabetha Huberta, Anna Cornelia e Wilhelmina Jacoba.

Já na infância, teve uma vida descontínua e irregular, sendo sequentemente

internado em várias escolas, primeiro em Zevenbergen (1864), onde aprendeu

francês e alemão. Depois (1866), em Tilburg, onde ficou até os 15 anos,

abandonando de vez os estudos e tornando-se um autodidata pelo resto da vida.

E foi como autodidata que se tornou um intelectual.

- 006 -

Desde a adolescência, mostrou-se de um caráter difícil e temperamento

forte, abandonando os estudos para trabalhar em uma empresa de Bruxelas

especializada no comércio de arte, da qual seu tio Vincent era sócio e, quatro

anos depois, era transferido para a sucursal de Londres, onde, para o bem ou

para o mal, encontrou seu primeiro e platônico amor. Ela era Eugênia, filha de

Úrsula Louer, dona da pensão e, por estar já comprometida, ela o rechaçou,

levando-o ao isolamento, imerso em livros religiosos e perdendo o interesse pelo

seu trabalho.

Levando em conta a longa dedicação à empresa, em 1875 a firma o

promoveu e ele foi transferido a Paris, cidade das artes, pela qual sentiu um

fervor quase religioso e, ao entrar numa sala de exposição de desenhos do pintor

realista Jean-François Millet, no Hotel Drouot, veio-lhe à mente o episódio

bíblico do Monte Sinai: “Tira dos pés as tuas sandálias, porque o lugar onde

estás é santo.”

Ruth e Boaz descansando na colheita (cena bíblica),

1850-53, Jean-François Millet

- 007 -

Vincent poderia ter passado o resto de seus dias como vendedor de arte,

mas, a partir de um certo momento, começou a interferir nos negócios,

interpondo seus gostos pessoais em detrimento dos interesses da companhia,

que o despediu. A sina, que não era a dele, deslocou-se por consequência ao

seu irmão Theo, que assumiu o posto, no qual permaneceu até o fim da vida. Se

Vincent permanecesse marchand, nunca teria sido o pintor que foi; de outro lado,

a dedicação de seu irmão Theo ao trabalho, rendeu os dividendos que lhe

permitiram concretizar os sonhos de Van Gogh, sustentando-o com uma pensão

até a morte. As peças se ajustaram, cada uma em seu lugar.

Vincent regressou à Inglaterra, sem rumo nem prumo, permanecendo ali por

dois anos, imerso em um fanatismo religioso, com a leitura da bíblia e de livros

como “A imitação de Cristo”, do monge Tomás de Kempis.(1379-1471).

Passou a exercer atividades religiosas e foi enviado a Isleworth, 15 quilômetros

ao sudoeste de Londres, como auxiliar de um pastor metodista, subindo

acidentalmente ao púlpito para fazer sermões e, agora, entusiasmado, escreve

ao irmão Theo: “Quanto estava ao púlpito, me sentia como alguém que sai

de uma cova escura para a plena luz, e é maravilhoso saber que, doravante,

pregarei o Evangelho a todo o mundo.”

Instável por temperamento, passou uns seis meses trabalhando em uma

livraria de Dordrecht e depois, mudou-se para Amsterdã (100 km ao norte),

querendo formar-se teólogo, mas foi rejeitado pela escola metodista, por não

saber latim e grego, além de sua dificuldade de comunicação e também por

querer impor suas próprias ideias, trombando com o espírito de corpo vigente

em um sistema religioso.

Ou porque lhe reconhecessem o fervor religioso ou, o mais certo, para se

livrar dele, enviaram-no como missionário às minas de Brinage (região de

Mons, na Bélgica) onde realizou, por quase dois anos, um trabalho

evangelizador entre os rudes mineiros, mas, com métodos pouco ortodoxos, e,

ao invés de compaixão, o que conseguia era passar aos neófitos um sentimento

de medo. Seus superiores, então, enviaram-no a Cuesmes, outra região

mineradora, onde as condições de trabalho eram degradantes, o que ao invés

de trazer-lhe paz, aumentou seu conflito interior.

- 008 -

Finalmente, orientado por seu irmão Theo, de quem já vinha recebendo uma

pensão, desistiu da vida religiosa, decidindo dar um giro de 180 graus em sua

trajetória e passando a dedicar-se única e tão somente à pintura. Era o caminho

que Deus e o destino tinham preparado para ele.

De resto, foi um alívio para os mineiros, que eram convertidos pela força,

mais que pelos argumentos. Foi um alívio também para a família, que via em sua

dedicação à pintura um caminho para domar a própria rebeldia. E um alívio para

a instituição religiosa que o acolhera, para a qual levava mais conflitos que

soluções e que, nos últimos tempos, o havia desautorizado na pregação do

evangelho e até cortado os próprios soldos.

Naquele momento, saia de cena o zeloso o pastor e surgia, em seu lugar,

o ávido pintor, a transportar para as telas, de forma intensa e aparentemente

desorganizada, a inquietude que lhe ia à alma.

- 009 –

Os comedores de batatas

“Tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo

real de que o homem só comemora e ama o que lhe é

aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que

nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a

destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as

batatas.”

-- Machado de Assis, “Quincas Borba” –

A energia não brota das águas paradas de um lago, mas da força quase

indomável das cachoeiras que, represadas e bem aplicadas, podem iluminar

uma cidade, mas se mal aplicadas, destruí-la. E Vincent, com muita energia e

pouco tino, era uma força difícil de se administrar.

Pois aconteceu (ou teria acontecido, pelo que se conta a boca pequena),

que Vincent, ao início da carreira artística, vinha seguidamente atormentando o

irmão Theo, reclamando e insistindo para que seus trabalhos fossem melhor

divulgados piorando quando soube que seu amigo e mentor Anthon Gerard

Alexander van Rappard (1858-1892) havia inscrito uma obra no Salon de Paris.

Vincent exigia do irmão que o fizesse também como um trabalho seu.

- 010 -

Então, por volta de 1885, Theo teria pedido a Vincent que lhe mandasse o

melhor de seus trabalhos, o que pôs o pintor em pânico, pois tudo o que

produzira naqueles anos (e não fora pouco), se resumia a esboços ou a trabalhos

sem condições de enfrentar a crítica dos salões.

Por esta época, Vincent frequentava uma família de humildes camponeses,

de hábitos rudes mas de franca hospitalidade, ainda em sua fase Realista, e,

então, veio a ideia de reproduzi-los à mesa, surgindo o famoso quadro “Os

comedores de batatas”, que é uma de suas melhores obras, mas que na

época, foi rejeitado por todos e, é claro, nem sequer foi submetido à crítica dos

curadores do Salon.

“Os comedores de batatas” (1885) de Van Gogh

Compare com “Ecce Homo”, de Hieronymus Bosch (1450-1516)

Esta visão esquizofrênica da vida, considerando real tudo aquilo que vinha

de sua imaginação, trazia seguidos problemas a ele e aos seus mais próximos

parentes e amigos, com os quais vivia em constantes conflitos.

- 011 -

Por exemplo, em abril de 1881, Vincent faz uma visita ao irmão e, por estar

próximo, visita também seu primo, o pintor Anton Rudolf Mauve (1838-1888),

cuja irmã, Cornelia Adriana acabara de enviuvar e, sem pestanejar, manifesta

a ela seu amor, propondo-lhe casamento, no que foi rispidamente rejeitado, seja

pelo inusitado da proposta, seja pelo momento inoportuno em que ela acontecia.

A partir de então, passou a enviar seguidas cartas à suposta amada e, meses

depois, fez-se presente, novamente, para repetir, de viva vós, a mesma proposta

de casamento, forçando a intervenção familiar para demovê-lo do propósito. O

clima esquentou e o assédio cessou, senão por vontade própria, ao menos pelo

amor à própria segurança.

Superado o inusitado e constrangedor episódio familiar, seu primo Anton,

que pintava aquarelas, aconselhou Vincent a experimentar essa técnica,

surgindo, então, algumas telas de Van Gogh, como “Os pobres e o dinheiro”

(1882), reproduzida abaixo, pintada em um tom escuro, pouco comum dos

trabalhos em aquarela, o que se deu pela utilização de técnica mista, com

aplicação também de giz preto ou carvão. Van Gogh desistiu rapidamente da

aquarela e voltou ao óleo, que foi a técnica preferida em toda sua obra.

Após o “affair” desastroso envolvendo a prima, a vida amorosa de Vincent

tomou novo rumo. Seja por ter sido rechaçado no episódio anterior, seja por se

guiar mais pelo impulso que pela reflexão, o pintor retirou das ruas e acolheu em

sua casa a prostituta e alcoólatra Clasina María Hoornik (Sien), grávida e com

uma filha, vivendo com ela em Haia, entre 1881 e 1883, a qual lhe serviu de

modelo para uma série de retratos, alguns dos quais envolvendo também a filha..

Depois, Sien voltou para a vida das ruas, deixando Van Gogh inconsolado, mas

trazendo paz à família, que, desde o início, a repelira.

- 012 -

“Sorrow (Tristeza), um nu com Clasina

Finda a conturbada relação, Vincent mudou-se para Drente, ao norte da

Holanda, onde ficou apenas três meses, mas ainda a tempo de pintar algumas

paisagens a óleo. Estava feliz com a pintura, mas se sentia perseguido pelo

sentimento de solidão, o que o fez retornar à casa paterna, agora em Nuenem,

120 quilômetros ao sul de Amsterdã, para onde seu pai havia se mudado. O

retorno tranquilizou a família, que lhe proporcionou acomodações e um espaço

para montar seu estúdio. Para completar, aconteceu de receber a visita de seu

amigo, o pintor Anthon van Rappard, de Bruxelas, a quem acolheu, e, juntos,

percorreram a região, pintando uma série de telas tendo como tema os tecelões

e suas máquinas rudimentares. (Abaixo, uma dessas pinturas, ainda sem rumo)

- 013 -

No outono de 1884, um novo amor, com outra oposição familiar e nova

desilusão. Agora, o alvo era a filha de um vizinho, Margot Begemann, dez anos

mais velha que ele, e que o acompanhava em suas incursões de pintura pelo

campo. Até chegaram a pensar em casamento, encontrando forte reação das

duas famílias. Os acontecimentos se precipitam quando, em 26 de março de

1885, morre o pai de Van Gogh, abrindo disputas familiares pela herança e

Vincent, desgostoso, vai morar em um espaço que lhe ofereceu o sacristão da

igreja católica, gerando nova briga com a própria família, que era de tradição

protestante.

Se, de um lado, seu irmão Theo procurou incentivar a divulgação de “Os

comedores de batatas”, fazendo impressões em litografia e vendendo-as a

preços acessíveis, por outro, Vincent abriu nova frente de conflito com Anthon

Van Rappard, que se sentiu desgastado por não ter sido informado da morte do

pai de Van Gogh: “Então, pensavas que eu tinha tão pouco apreço a teu pai

e à tua família, a ponto de me ignorar em notícia tão importante para mim?”

Mas a morte do pai pesou a Vincent que, em sua memória (o pai era pastor)

pintou “Natureza morta com Bíblia”, seis meses após o falecimento e antes de

mudar-se para Amberes. A Bíblia representa o símbolo da casa paterna e toda

educação religiosa proporcionada pelo pai. Na composição, Van Gogh coloca

também a vela, tradicional símbolo religioso para cristãos e judeus, procurando

estabelecer uma relação de conjunto.

- 014 -

Amberes, a nova morada de Vincent, ficava no extremo norte da Bélgica,

longe do convívio familiar e lá o pintor montou uma pequena oficina cujo aluguel

era pago por seu irmão Theo. Atraído, como os artistas da época, pela pintura

japonesa do período Edo, comprou algumas xilografias e, paralelamente,

passou a copiar esculturas expostas na Real Academia da cidade.

Foi lá, também, que descobriu algumas pinturas de Peter Paul Rubens, com

seu vibrante colorido, as quais viriam a influir, futuramente, em sua concepção

das cores.

Com sua personalidade instável, logo cansou-se de Amberes e, de

surpresa, apareceu em Paris, na casa de seu irmão Theo, que, mais uma vez,

o acolheu com alegria, mas também com desespero, pois o relacionamento entre

ambos era difícil.

Poucos conheciam Vincent como seu irmão Theo. Desde as aventuras de

Vincent como missionário, Theo vinha lhe dando suporte financeiro, e esse

suporte se seguiu, como uma indispensável mesada, até o fim da vida de

Vincent. Theo possuía uma personalidade estável, um emprego fixo e bem

remunerado, enquanto Vincent vivia o momento e mudava de humor e de

comportamento a toda hora. Sem Theo, Vincent não sobreviveria e, na

contrapartida, Theo tinha pelo irmão uma afinidade profunda, compreendendo-o

e dando-lhe apoio moral e financeiro. Ambos se completavam, numa perfeita

mas não muito fácil harmonia, com um Vincent sempre inflexível e um Theo

sempre disposto a ceder.

- 015 –

Ninguém é solitário em Paris

“Quando a gente acorda de bom humor

é sinal que a gente está em Paris.”

-- Murilo Mendes (1901-1975) --

A presença de Van Gogh em Paris foi decisiva para balizar seu futuro, porque

o pintor teve contato efetivo com a febre do Impressionismo, encantando-se

com a liberdade proporcionada pelo novo estilo, e aderiu para sempre a ele,

abandonando de vez o realismo, em favor de uma paleta mais luminosa, que ele,

pessoalmente, incrementou com uma visão cromática vibrante, a qual o levaria,

assim como ao seu parceiro Paul Gauguin e outros vanguardistas, a uma nova

manifestação artística que se convencionou chamar de Pós-Impressionismo,

um elemento importante de ligação entre o impressionismo e o Fauvismo

revelado no início do Século XX.

Instalado na comuna de Montmartre, centro de concentração de

restaurantes, cafés, cabarés, e local preferido dos artistas, Vincent teve a grande

chance de se relacionar com os mais importantes pintores, como Émile Bernard

(1848-1941) e Toulouse-Lautrec (1864-1901), que se tornaram amigos íntimos;

Paul Gauguin (1848-1902), com quem mais tarde manteria um estúdio bem ao

sul da França; e também Georges Pierre Seurat, Paul Signac, Armand

Guillaumin, Camille Pissarro e Paul Cézanne, entre outros tantos mais.

Foi lá que ele tomou contato, de forma definitiva, com as estampas

japonesas que tanto influenciaram aos impressionistas, numa “contaminação”

que recebeu o nome de “japonismo”. Entre os trabalhos de Van Gogh nessa

época estão “Ameixeira em Flor” e “Ponte sob a chuva”, obras pintadas sob

a influência das estampas do pintor e gravador japonês Hiroshige (1797-1858).

- 016 -

Sobre as estampas japonesas, Van Gogh escreveu: “Parabenizo aos

japoneses por sua incrível claridade que se revela em todos os seus

trabalhos. São persistentes, pacientes, não se cansam dos detalhes e seu

estilo é tão regular quanto a respiração. São capazes de fazer uma figura

em traços seguros, aparentando uma facilidade que não é tanta quanto se

imagina, mas que parece ser tão fácil como desabotoar um colete.”

Utagawa Hiroshige 歌川 広重 Japanese, 1797-1858

Van Gogh, “Ameixeira em Flor”

- 017 -

Ainda Van Gogh e o japonismo – “Ponte sob a chuva”

- 018 -

O japonismo “contaminou” não só os pincéis de Van Gogh como os de todos

aqueles inovadores de Montmartre, que utilizaram com avidez as cores

complementares, abrindo uma nova fase na arte europeia, como nunca se havia

imaginado, criando uma paleta mais luminosa, característica fundamental do

impressionismo.

Entusiasmado com o clima artístico intenso que se desenvolvia em Paris,

Vincent conseguiu a ajuda de Toulouse Lautrec para a renovação de sua

própria pintura, seja quanto a iluminação e a variedade cromática, como também

no estudo psicológico mais aprofundado dos retratos. Imerso no ambiente, pode

apreciar os trabalhos realizados por Gauguin na viagem que este fez a Martinica.

Com todos esses novos conhecimentos, proporcionados por seu contato

com as estampas japonesas e no convívio com os pintores de Montmartre, em

fevereiro de 1887, Van Gogh pintou “Mulher no café de Tambourin”, abaixo

reproduzida, onde já se nota maior apuro nos traços quando à avaliação

psicológica da personagem.

- 019 -

Note-se que o pintor já se livrara de vez da influência do realismo em que

estava imerso e sua pintura ganha nova vida, com aplicação da luz e do

contraste complementar, contrapondo as três cores básicas (amarelo, vermelho

e azul) com a mistura formada por outras cores adjacentes, como o amarelo-

violeta e o azul-laranja, a que se junta um cinza, agora quase imperceptível. Essa

concepção na distribuição de cores viria a ser exemplificada com “Os

Quatro Girassóis”, onde se observa o forte contraste entre o amarelo berrante

do primeiro plano e o azul intenso do fundo.

- 020 -

Para uma personalidade inquieta e instável como a de Van Gogh, a

temporada em Paris chegaria, um dia, ao fim, mas antes de terminar essa etapa

parisiense, ele realizou três retratos do marchand Julien Tanguy, sendo que um

deles, que vai reproduzido abaixo, se tornou antológico.

- 021 -

O personagem focalizado, Julien François Tanguy, (1825-1894), mais

conhecido pelos artistas como “Pai Tangui”, era marchand e colecionador de

arte, tornando-se um patrono dos impressionistas, ao usar sua loja da rua

Clauzel para expor e vender obras dessa nova safra de pintores, ajudando-os a

superar dificuldades financeiras e servindo de importante elo entre os novos

artistas e os velhos colecionadores.

Entre seus amigos e clientes, além de Van Gogh, podem-se citar Paul

Gauguin, Paul Cézanne, Georges Seurat, Camille Pissaro, Claude Monet,

Pierre-Auguste Renoir, Armand Guillaumin, Toulouse Lautrec, e Victor

Alfred Paul Vignon.

Este retrato é considerado sua obra mais representativa no período em que

viveu em Paris. Com uma apresentação frontal (Van Gogh detestava o perfil),

é uma imagem de estrutura simples, contrastando com o fundo que,

significativamente, foi ornamentado com estampas japonesas, estabelecendo

uma clara relação entre o impressionismo e o japonismo então vigente.

Nesta altura, Van Gogh já estava inquieto e, ainda que incipiente do estilo

impressionista, sentia a necessidade de ir além do que já havia visto, estudado,

aprendido e aplicado, como se a própria novidade se houvesse esgotado em

suas possibilidades, na ânsia do pintor em seguir a patamares cada vez mais

altos.

Neste momento, não só sua insatisfação quanto à vida, mas também sua

doença, começavam a se manifestar. Uma e outra, a aspiração nunca satisfeita,

e a doença, que se agravaria, com o tempo, em crises cada vez mais agudas,

viriam a balizar seu comportamento e sua arte.

Paris se esgotara, em suas aspirações cada vez mais longínquas, e era o

momento de partir para novas experiências, já que a vida é curta e para ele, seria

mais curta ainda do que até ele poderia imaginar.

- 022 –

- 023 –

Abrindo os olhos para o universo

“Eu acordo toda manhã. Abro os olhos e penso:

lá vamos nós de novo.” -- Andy Warhol --

Em 21 de fevereiro de 1888, Van Gogh chega a Arles, 750 quilômetros ao

sul de Paris, onde se instala no Hotel-Restaurante Carrel, pagando cinco

francos diários, mais do que podia, e ainda com o inconveniente de não ter

espaço para montar seu estúdio.

Em Arles, compulsivamente, pinta tudo o que vê e, já com ideias próprias,

não necessita mais recorrer à inspiração das estampas japonesas, como

reconhece em carta dirigida à sua irmã Wilhelmina Jacoba:

“Aqui, não me faz falta em nada a arte japonesa, porque me imagino

como se estivesse no Japão e nada mais necessito do que abrir os olhos e

ver a paisagem que tenho diante de mim.”

Com efeito, seus primeiros quadros em Arles tinham uma visão pessoal do

japonismo, como “Horto em flor com vista de Arles” e “Pessegueiro em flor”.

- 024 -

“Horto em flor com vista de Arles”

“Pessegueiro em flor”

- 025 -

Incansavelmente, e numa sequência vertiginosa, pinta a natureza ao seu

redor, com os campos de trigo, os pântanos do delta de Ródano, o canal do sul

de Arles e tudo mais que aparece à sua frente. Do mais trivial, o artista consegue

fazer uma obra valorosa. Vem desse momento a utilização de um novo estilo

que o caracterizou, com pinceladas ondulantes ou em círculos, e a utilização do

amarelo, verde e azul intensos.

Em 24 de maio, três meses após sua chegada a Arles, ocorre a peregrinação

tradicional de ciganos de toda Europa a Saintes-Maries-de-la-Mer, 30

quilômetros ao sul de Arles, na região de Côte d'Azur.

Vincent não perde tempo, vai até lá, realizando novos trabalhos, dentre os

quais se destaca “Barcos de pesca em Saintes-Maries”, reproduzido abaixo.

Van Gogh observa: “Passei uma semana em Saintes-Maries. Nessa praia

de areia havia pequenas barcas verdes, vermelhas e azuis, de formas e

cores tão belas que levavam a pensar em flores, não em embarcações. E

elas eram tão pequenas que nem iam a mar alto e só se lançavam às águas

quando não havia vento e as águas estavam tranquilas, voltando

rapidamente quando o vendo começava a soprar com força.”

- 026 -

Em outro momento, escreve: “Ontem, ao entardecer, eu estava em uma

charneca [vegetação rala entre pedras] perto da qual crescem, no alto,

pequenas árvores ao lado de ruina; no vale havia um cenário com campos

de trigo. Era romântico, não podia ser mais, como um quadro de Monticelli

[paisagista, 1824-1884]. O sol derramava seus raios amarelos sobre os

arbustos e o solo, literalmente, se transformava em uma chuva dourada.”

Esta cena foi reproduzida em um quadro, que se acreditava apócrifo, mas

que, em 9 de setembro de 2013 foi oficialmente confirmado pelo Museu de Van

Gogh como original do pintor.

A par das paisagens, era intenção de Van Gogh pintar retratos, mas como

suas reações eram, por vezes, irracionais e incompreendidas, tinha dificuldade

em encontrar modelos, sobretudo mulheres, que temiam sua presença. Por fim,

uma jovem simples e corajosa, concordou em posar, resultando no quadro “La

Mousmé, sentada em uma cadeira de vime”, pretendendo representar uma

japonesa, ainda que o rosto era tipicamente ocidental.

- 027 -

Com homens, era mais fácil a aproximação, e o pagamento se fazia,

frequentemente, em troca de uns tragos no boteco mais próximo. E foi a partir

daí de surgiram obras como “O camponês”, ”Retrato de Patience Escalier”, “O

filho do carteiro” (abaixo), “O lugar-tenente Millet” e “O cartero Roulin”.

Estabeleceu, assim, novas amizades, como aquela com a família do

carteiro Joseph Rolin, sua esposa Augustine e seus três filhos, Marcelle,

Armand e Camille, frequentemente retratados por Vincent. Em julho, visitou o

pintor belga Eugène Boch (1855-1941), que posou para o quadro intitulado “O

poeta”, em que Van Gogh pretendeu retratar o lado romântico do personagem

- 028 -

No mais, Van Gogh passou todo o verão pintando paisagens ao ar livre e,

para harmonizar a composição, colocava ao fundo algum elemento

arquitetônico, como torres de igrejas, chaminés, casas e povoados, à altura da

linha do horizonte, privilegiando o primeiro plano com a vegetação dos campos.

Assim aconteceu, por exemplo, com “Vista de Arles” (abaixo), “A colheita”

(abaixo) e “A vinha verde”.

“Vista de Arles” – A cidade é apenas insinuada no terceiro plano

“A colheita” – Plantas, casas e a cidade bem ao fundo

- 029 –

Era uma vez uma casa amarela...

“Era uma casa / Muito engraçada / Não tinha teto

/ Não tinha nada / Ninguém podia / Entrar nela,

não / Porque na casa / Não tinha chão.”

– Vinícius de Moraes --

Van Gogh sonhava em criar um estúdio coletivo, trazendo artistas de Paris

para formar uma comunidade em Arles e para isso alugou, em maio de 1888, a

célebre “Casa Amarela”, assim conhecida por ter sua fachada pintada nessa

cor. Era só o primeiro andar, o suficiente para seu projeto.

O prédio de dois pavimentos ficava em Place Lamartine, ao norte da

cidade. Mais uma vez, o socorro vem de seu irmão Theo, que lhe envia trezentos

francos para acondicionar e mobiliar na casa, mas, ao invés de uma comunidade

de artistas, o único que acolheu o seu projeto foi Paul Gauguín (1848-1903),

com uma personalidade tão difícil quanto à de Van Gogh, criando-se um

ambiente favorável a tempestades, com direito a raios e trovões. Buscando

ajudar, o próprio Theo convidou vários artistas, como Georges Seurat Paul

Signac e Émile Bernard, mas nenhum deles se atreveu sair de Paris para ir a

um lugar tão distante.

Gauguin vivia, naquela época, em Pont Aven, na Bretanha, ao noroeste da

França, cheio de dúvidas, sentindo-se incompreendido, e também sonhava com

a fundação de um núcleo de pintores, só que seu projeto visava a ilha da

Martinica, onde só não se fixara por falta de dinheiro. Theo procurava convencê-

lo a se instalar em Arles, mas como Theo era também o marchand de Gauguin,

este achou que seu interesse era puramente de ordem econômica e não prática,

como desabafou em carta ao colega Émile Bernard, em outubro de 1888: “Por

mais que eu aprecie Theo, não creio que ele queira me ajudar apenas por

meus belos olhos. Com seu caráter frio de holandês, por certo estudou o

terreno e está a armar alguma coisa, que não sei bem o que é.”

- 030 –

Gauguin, por essa época, devia a Deus e a todo o mundo e Theo lhe fez a

oferta irrecusável de pagar essas dívidas e custear a viagem a Arles e eis que,

em 23 de outubro de 1888, Gauguin viaja a Arles, juntando-se a Vincent, que

até já havia decorado um quarto na Casa Amarela para abrigar o novo parceiro.

Em agosto de 1888, Van Gogh pinta o primeiro dos quadros tendo como

tema os girassóis que o tornaram famoso (Um desses girassóis, leiloado pela

Sotheby’s em 2015, alcançou mais de 65 milhões de dólares!). O primeiro da

série é “Vaso com 12 girassóis” e não é nem realista nem impressionista,

antes, segue o estilo do Simbolismo. Com efeito, a meticulosidade das flores

contrasta com a situação caótica das folhas. A aplicação pastosa das cores, com

fundo azul claro e o forte amarelo do primeiro plano traz um significado maior e

expõe a imaginação do artista, como grande expressividade e quase que um

delírio de sentimentos, simbolizados nas flores.

- 031 -

Durante todo o mês de agosto, Van Gogh pintou quatro telas temáticas, a

primeira com 12 girassóis e as outras três, respectivamente com cinco, doze e

quinze flores.

Gauguin chega a Arles e, de início, se estabelece uma parceria proveitosa,

percorrendo a cidade e pintando as mesmas cenas que Vincent, mas com visões

diferentes, conforme o estilo de cada um. Também se pintaram mutuamente,

com Gauguin retratando Van Gogh e vice-versa.

Sendo duas personalidades fortes, desajustadas e incompatíveis, os

choques se tornariam inevitáveis, tanto mais que ambos entremeavam seu

trabalho com intensas bebedeiras, quando perdiam por completo o pouco senso

que lhes restava. E foi em 23 de dezembro de 1888, antevéspera do Natal, que

tiveram uma altercação mais forte, resultando no conhecido episódio da orelha

cortada, até hoje não suficientemente esclarecido. Em suas memórias, Gauguin

assinala que Vincent o teria ameaçado com uma navalha, mas que acabou

mutilando a si mesmo, cortando o lóbulo e não a orelha completa. Gauguin fugiu

da cidade na mesma noite e a polícia, no dia seguinte, invadiu a Casa Amarela,

onde encontrou Vincent inconsciente, sendo levado ao Hospital Hôtel-Dieu,

mais tarde pintado por ele (pgs. 126 e 127).

A fuga de Gauguin, que sumiu por uns tempos e reapareceu mais tarde

em Paris, coloca-o entre os suspeitos do crime cometido. Os dois nunca

mais viriam a se encontrar, mas, ainda assim, trocaram algumas cartas, já com

a amizade congelada e sem a cumplicidade dos tempos anteriores. Terminava

aí o sonho de Vincent em transformar o ateliê numa casa de artistas.

- 032 -

Interrogado pela polícia, Gauguin declarou que a orelha cortada seria fruto

de uma auto-lesão. Outra hipótese levantada é que Vincent se achava

desgostoso com a notícia de que seu irmão Theo ia se casar. Nada se conseguiu

apurar a respeito, havendo apenas algumas referências nas memórias de

Gauguin, publicadas em 1903, quando Van Gogh já era morto.

Dos estudos que se realizaram mais tarde, e afastando as lendas que se

formaram em torno do assunto, críticos concluíram que, de fato, foi Gauguin,

mestre em esgrima, quem teria cortado a orelha de Vincent, fugindo de

Arles na mesma noite, para nunca mais voltar. Entre um e outro, estabeleceu-

se um pacto de silêncio, com Gauguin iludindo o inquérito policial e Van Gogh

silenciando para proteger o amigo, com o qual mantinha uma dependência

neurótica, para não dizer psicopata.

Van Gogh se restabelece, volta à Casa Amarela e, até orgulhoso pelo

acontecimento que o pôs em evidência, pinta dois quadros, em que a orelha

cortada aparece no lado direito e não esquerdo, o que leva a crer que a pintura

aconteceu diante de um espelho.

Fecha-se o ciclo e, semanas após o episódio da orelha cortada, Van Gogh

começa a manifestar sintomas de desajuste mental, que o levaria à sua fase

mais aguda e, paradoxalmente, mais proveitosa, de sua vida artística, juntando

momentos de desequilíbrio com a inspiração renovadora que o levou à pintura

de seus melhores quadros. É assim que o mundo gira.

À esquerda, “Auto retrato com orelha cortada e cachimbo” O incidente foi

com a orelha esquerda, mas aqui é pintado como se fora a orelha direita,

o que indica que o quadro se fez diante do espelho. À direita, o Dr.

Gachet, médico e amigo, que cuidou de Van Gogh até sua morte

- 033 –

E a noite encheu-se de estrelas

“E tu, que invejavas as estrelas,

Sonhavas, ao vê-las, ser astro no céu.”

-- Carlos Alberto Braga (Braguinha) --

O episódio da orelha cortada se deu na antevéspera do Natal de 1888 e,

em janeiro do 1889, Vincent saia do hospital, de volta à Casa Amarela, mas, a

partir daí, sua vida nunca mais seria a mesma. Primeiro, vieram os sintomas de

mania persecutória, quando ele imaginava que alguém o queria envenenar,

entrando em cena, para aplaca-lo, o Dr. Félix Rey (1867-1932).

Rey era então um jovem de 23 anos, especialista em tuberculose, mas um

expert em outras áreas, havendo já recebido uma medalha oficial por seu

trabalho no combate a uma epidemia de cólera. Sua atenção sensibilizou Van

Gogh, que o presenteou com um retrato que o médico, entretanto, desdenhou e,

segundo a lenda, teria usado para tapar um buraco no galinheiro.

- 034 –

Em março, vizinhos preocupados dão queixa à polícia e Van Gogh é levado

de volta ao Hospital Hôtel-Dieu de Arles. Em 17 de abril de 1889, em Amsterdã,

Theo se casa com Johanna Bonger e, a partir daí, Vincent entra em crise e, em

8 de maio de 1889, voluntariamente, se interna no Sanatório (outrora

monastério) de Saint-Paul-de-Mausole, em Saint-Rémy-de-Provence, a 30

quilômetros de Arles.

Joana Bonger, esposa de Theo,

e o filho Vincent Willem (1890)

No local, ele dispunha de um ateliê e pintava incessantemente, mas sua

pintura, desde “Lírios”, feita uma semana após a internação, ganha uma nova

paleta, de cores fortes e formas retorcidas. Era um novo Van Gogh, libertando

seus sentimentos mais profundos e dando início ao que se convencionou chamar

de Pós-Impressionismo. Entre esses quadros está a sua visão de “Pietà”.

- 035 -

“Pietà” de Vincent Van Gogh

Mesmo quando não podia passear pelos arredores (o que exigia a

segurança de um acompanhante), pintava no estúdio, de memória. Eram

pinheiros, ciprestes e oliveiras, com seus troncos sinuosos. Parte dessas

árvores podia ser encontrada nas próprias terras do sanatório, outras tinham de

ser buscadas nos arredores, sempre com um acompanhante.

- 036 –

Van Gogh, “Oliveiras”

Van Gogh, “Campo de trigo com ciprestes”

- 037 -

Note-se que, nem Van Gogh, nem os outros impressionistas se

interessavam por temas religiosos, mas ele sentiu a necessidade de inspiração

em pintores clássicos, para interpretá-los à sua maneira e, assim, pediu ao irmão

Theo que lhe mandasse estampas litografadas, fazendo, por elas, a releitura de

grandes obras clássicas, como a “Pietà” inspirada em Delacroix, e

“Ressurreição de Lázaro, inspirada em Rembrandt. Já com Jean-Françoir

Millet, ele fez a releitura de “A vigília” (La Veillée).

“La Veilée” de Millet

“La Veilée” de Van Gogh

- 038 -

E eis que, entre frequentes crises e alucinações, surge sua obra prima, “A

Noite Estrelada” (em holandês, De sterrennacht e em inglês, The starry

night) uma das mais conhecidas pinturas de Van Gogh, que se encontra hoje

em exposição permanente no MoMA-Museu de Arte Moderna de Nova York..

Mais tarde, o próprio Van Gogh fez uma reprodução do mesmo tema em

desenho singular, usando um “cálamo” espécie de estilete feito de bambu ou

junco, usado na antiguidade para gravar em argila, papiro ou pergaminho.

.

- 039 –

As crises de insanidade foram se tornando cada vez mais frequentes, com

arrebatamentos desesperados e alucinações, até que, em 27 de julho de 1890,

aos 37 anos, saiu sozinho pelos arredores do hospital, para caçar gralhas que

destruíam as plantações e, por acidente ou propositalmente, disparou contra si

mesmo, num tiro fatal que o levou à morte, nos braços do irmão Theo, em 27 de

julho de 1890, sendo sepultado no Cemitério de Auvers-Oise. (pg. 150 e 151)

Abalado com a morte do irmão, logo em seguida, Theo viu agravado um

problema renal crônico, internando-se em uma clínica em Utrecht (Holanda),

onde também viria a falecer, em 25 de janeiro de 1891, seis meses após a morte

de Vincent. No ano de 1914, o corpo de Theo foi exumado e sepultado junto ao

de seu irmão em Auvers-Oise. Neste mesmo ano, a esposa de Theo consentiu

na divulgação das cartas trocadas entre Theo e Vincent, permitindo a

composição da biografia do atribulado gênio da pintura.

- 040 –

O céu repleto de estrelas ganhou mais duas, de irmãos quem muito pouco

estiveram juntos, fisicamente, mas que eram almas gêmeas e dependentes entre

si. Vincent sempre dependeu do irmão para se manter financeiramente e

sustentar sua compulsão pela pintura, mas, do outro lado, Theo era

psicologicamente dependente de Vincent. Como irmãos corsos, um não se

despregava do outro e a morte de Vincent decretou o fim da vida de Theo. Este

conseguiu amealhar uma vida financeiramente estável, aquele deixou um legado

à posteridade composto de mais de 800 quadros, disputados avidamente nos

leilões, por valores que Van Gogh jamais sonhara ter em vida.

A propósito, há uma lenda segundo a qual Van Gogh só conseguiu vender

um quadro, “A vinha vermelha e os seus vindimadores no Outono”,

comprado por Anne Boch, irmã do pintor belga Eugene Boch. Ao descrever o

quadro ao irmão, Vincent disse que o tinha feito após a chuva, com o Pôr-do-

Sol, pintando o chão de violeta e as folhas das parreiras de vermelho "como

vinho". O toque esverdeado e quase imperceptível no céu foi usado para

contrastar com os tons de vermelho quente que dominam a composição.

De fato, este foi o único quadro que Van Gogh conseguiu vender, sob

registro, no mercado oficial, mas não necessariamente foi o único

negociado. Naquela época, o material de pintura (telas, tintas pincéis e tudo o

mais) era caríssimo e a mesada que o pintor recebia do irmão não era suficiente

para sustentar sua compulsão pela pintura. Assim, o mais provável é que

Vincent, tal como o faziam outros artistas, tenha entregue algumas telas a

marchands, em troca dos apetrechos de que necessitava para prosseguir em

sua obra. Não se tratava de venda, mas de escambo, mas, evidentemente, esses

negociantes transformaram tais quadros em dinheiro, para se ressarcir. Ninguém

o saberá ao certo, mas é bem provável que isso tenha acontecido.

Por outro lado, no início da carreira, seu tio, que era marchand, lhe

encomendou uma dúzia de paisagens de Amsterdã e pagou por elas. Ao fim, o

Dr. Gachet aceitava quadros em pagamento de sua estada no sanatório de

Auvers-sur Oise. Tudo isso deve ser contado como venda legítima.

- 041 -

Post-Scriptum – O misterioso doutor Gachet

Paul-Ferdinand Gachet, nascido em 30 de julho de 1828 e falecido 9 de

janeiro de 1909, era 25 anos mais velho que Van Gogh e foi o responsável pelo

tratamento do artista durante sua internação em Auvers-sur-Oise, última etapa

de sua vida, tão conturbada como as etapas anteriores.

De grande sensibilidade, ele se transformava, nas horas vagas, em um

pintor amador, assinando suas obras como Paul van Ryssel e, paralelamente,

dava apoio aos incipientes artistas, adeptos do impressionismo, tornando-se

amigo e clínico de artistas como Pissarro, Renoir, Manet, Cézanne e Norbert

Goeneutte, entre outros, colecionando obras desses artistas que, em

contrapartida, fizeram retratos do médico e de sua família.

Entre quadros de sua lavra, é famoso aquele em que ele retrata Vincent

Van Gogh em seu leito de morte (reproduzido abaixo).

- 042 –

Nasceu e cresceu na cidade de Lille, 220 quilômetros ao norte de Paris, mas

teve de mudar-se para Mechelen, na Bélgica, acompanhando seu pai, que fora

promovido a gerente da empresa em que trabalhava e que tinha sido deslocado

para a citada Mechelen.

Mais tarde, voltou à França para cursar medicina na Universidade de Paris,

estagiando em hospitais psiquiátricos e fez doutorado defendendo a tese “Étude

sur la Mélancolie” (Éditeur du Montpellier Médecal). Era também amigo do

químico suíço Henri Nestlé, criador do leite em pó, cujo produto Gachet

receitava a seus clientes mirins. Próximo ao mundo artístico, Gachet curou

Pierre-Auguste Renoir de uma pneumonia e deu assistência a Edouard Manet,

quando este teve de amputar a perna esquerda, para estancar uma gangrena,

morrendo dias após, por complicações derivadas da operação.

Quando a perturbação de Vincent se agravou, foi o irmão Theo que cuidou

de sua transferência do sanatório em Saint-Rémy-de-Provence (vizinho a

Arles) para o sanatório de Auvers-sur-Oise, próximo a Paris, seja por conhecer

a capacidade do dr. Gachet, seja para estar mais perto do irmão.

Gachet caricaturado por Charles Lucien Léandre (1862–1934

- 043 -

O mais conhecido retrato do Dr. Gachet, feito por

Van Gogh em 1890, durante sua internação na clínica

Como médico, ele foi bastante criticado no que diz respeito ao tratamento de

Van Gogh, dado que sua doença, ao invés de ser debelada, evoluiu

gradativamente para pior até o gesto tresloucado do suicídio. A seu favor,

ocorrem os fatos de que a psiquiatria não estava, à época, suficientemente

evoluída e Van Gogh era refratário ao tratamento, tabagista e alcoólatra, e

apresentando sintomas para os quais não se conhecia uma terapia efetiva.

- 044 –

Van Gogh - Marguerite (filha de Gauchet) ao piano

- 045 –

Como se fôra uma sina, Van Gogh se afeiçoava rapidamente com as

pessoas de seu convívio e sentia profundamente a separação, quando esta,

inevitavelmente acontecia. Exemplos disso foram o seu afastamento da família

do carteiro Rolin, em Arles, quando este foi removido para outra cidade. O

mesmo ocorreu quando precisou se afastar da pensão onde morava, com cuja

família estabeleceu um relacionamento neurótico. E o mesmo se repetia agora,

com relação ao dr. Gachet e sua família, quando surgiram boatos de que ele

deveria deixar a clínica de ouvers-sur-Oise e mudar-se para outra cidade. Este

fato, aliado ao anunciado casamento do irmão Theo, agravaram as condições de

saúde de Vincent, precipitando os acontecimentos.

Dr. Gachet e seu cachimbo, em desenho de Van Gogh

- 046 –

Em 3 de maio de 1890, Van Gogh escreve ao irmão:

“Encontrei no Dr. Gachet um amigo... e algo como um novo irmão,

tão parecidos que somos, ele e eu, tanto física como moralmente.

Não obstante, ele é um tanto estranho no comportamento e bastante

nervoso no relacionamento...”

Curiosamente, Vincent transfere ao médico a responsabilidade pelo

relacionamento conturbado entre os dois, sem se dar pela conta de que ele é

que era o paciente desajustado a ser colocado nos padrões de normalidade.

Marguerite Gauchet no jardim

Registre-se uma atenção especial de Van Gogh para a filha do médico,

Marguerite, por ele retratada por ele com uma atenção especial, buscando fixar

na tela os traços psicológicos e as emoções, mais que uma simples reprodução

fotográfica, conforme revela ao irmão Theo:

“O que mais me apaixona é o retrato vivo, o retrato moderno. Não

busco fazê-lo como uma semelhança fotográfica, mas pela

expressão pura de nossas paixões, utilizando os melhores recursos

e a própria alma na aplicação das cores.”

No mais, Gauchet devia ser viúvo, pois não existem registros de sua

mulher, mas apenas da filha.

- 047 –

Marguerite Gauchet no jardim

Mademoiselle Gachet em seu jardim de Auvers-sur-Oise, 1890

- 048 –

Paul Cézanne, pintou

“A casa do doutor Gachet em Auvers”

(1872-1873) Musée d’Orsay

- 049 –

CRONOLOGIA

ILUSTRADA

- 050 –

- 1882 -

“Vista do mar em Scheveningen”

Óleo sobre cartão –

34,5 x 51 cm

Ao perder seu ardor missionário, Van Gogh deixou o presbitério de Etten e

partiu para Haia, em 1882, onde passou a visitar o marido de uma prima, Anton

Mauve, pintor realista holandês e um dos principais membros da Escola de Haia,

que o orientou na pintura a óleo e aquarela, assim como emprestou-lhe dinheiro

para montar um estúdio. Seu tio Cornelis, negociante de arte, fez uma

encomenda de doze ilustrações a tinta, com paisagens da cidade, as quais o

sobrinho concluiu logo após chegar a Haia, completando-o com mais sete outros

trabalhos de desenho.

O quadro “Vista do mar em Scheveningen” é sua primeira experiência

séria na pintura a óleo, ainda usando o cartão como suporte e seguindo seu

“feeling” para a pintura ao ar livre. Vincent fazia frequentes incursões a

Scheveningen, uma aldeia de pescadores a três quilômetros de Haia, e foi

lá que ele fez sua estreia como pintor.

Vincent estava, então, com 27 anos e já havia tido experiências com desenho

e com aquarela, mas esta era sua primeira tentativa séria com o óleo. Nota-se,

a primeira vista, o grande observador que ele era, e a expressividade da pintura

é tanto maior pelo fato de o artista estar diante do objeto reproduzido, seguindo

a tendência ar-livrista dos impressionistas, contemporâneos seus. Vincent,

porém, nesse momento, e por algum tempo, continuaria no Realismo.

Sua abordagem é forte e corajosa. Longe de procurar novos ângulos, dividiu

a pintura em espaços horizontais, delineando areia, água e céu, numa

aplicação generosa dos pigmentos, e nenhum detalhe escapa à sua rigorosa

observação do cenário. Lá estão a praia inóspita, o mar espumante, o céu escuro

e ameaçador, anunciando a aproximação de uma tempestade, com um barco

indeciso à beira da praia e vários personagens espalhados no primeiro plano.

A natureza, por sua vez, colaborou com a obra, pois os ventos levantaram

uma quantidade apreciável de areia, que se misturou às tintas da tela. Mais

tarde, parte dessa areia foi raspada, mas alguns grãos ainda podem ser

encontrados na tela. (Texto traduzido do Museu Van Gogh)

- 051 –

- 052 –

- 1883 -

“Entre as dunas”

Óleo sobre papel, colado a um painel

33,5 x 45,5 cm

Loosduinen, um subúrbio de Haia, fica quatro milhas ao sul da cidade.

Local solitário, varrido pelo vento, era popular entre os artistas da Escola de

Haia e Anton Mauve, mentor e parente de Vincent, chegou a ter um estúdio lá

por vários anos. O acesso era fácil, por via férrea, e não havia um artista em Haia

que não tivesse, ao menos uma vez, viajado até a vila.

Não há provas quanto à data real em que este quadro foi pintado, mas, em

5 de setembro de 1883, Vincent envia uma carta ao seu irmão Theo,

anunciando sua visita àquele local para pintar, então, estima-se que a tela data

daquela época. Os vanguardistas de primeira linha davam muito valor à

impressão do momento e, no outono, a paisagem se reveste de cores fortes,

próprias para aumentar a carga emocional da pintura.

Vincent ainda não se atrevia a usar a tela diretamente e, também neste caso,

a pintura a óleo foi aplicada a um cartão, mais tarde colado a um painel de

madeira. Pintor por compulsão, acredita-se que ele tenha feito, nesse ano de

1883, cerca de 70 pinturas, das quais somente 25 sobreviveram.

Foto recente de uma igreja em Loosduinen

- 053 –

- 054 –

- 1885 -

“A velha estação de Eindhoven”

Óleo sobre tela

Eindhoven é uma cidade holandesa localizada na província de Brabante do

Norte, no sul dos Países Baixos, originalmente na confluência dos rios Dommel

e Gender.

Esta obra ainda faz parte do período Realista de Van Gogh, e se enquadra

na denominada “pintura negra”, caracterizada pela reprodução de cenas do

cotidiano de camponeses e tecelões.

É, por enquanto, um artista testando a si mesmo, fixando seus reais limites

para depois ultrapassá-los em direção ao infinito.

A propósito, a expressão eind hoven, em holandês, diz respeito a um tribunal

de última instância (eind = final + hoven = tribunal)

- 055 –

- 056 –

- 1885 -

“Respigadeira (Respigadora)”

Carvão vegetal e têmpera s/ pergaminho

52,5 x 43,5 cm

A colheita se dá a toque de caixa, o mais rápido possível, para colocar o

produto no mercado fazendo “caixa” para cobrir empréstimos e outras despesas

da plantação e, nessa corrida, uma parte da ceifa fica perdida nos campos. A

função da respigadeiras (ou respigadoras) é fazer um “pente fino”, recolhendo

os resíduos que ficaram para traz. Como a mão de obra era aviltada, esse

trabalho de limpeza sempre rendia um lucro extra aos plantadores.

O trabalho das respigadeiras sempre foi alvo de atenção dos pintores do

Século XIX. A versão de Van Gogh, também conhecida como “Peasant Woman

Gleaning” (Camponesa respigando) é um esboço e se fixa em uma única

mulher, num dos muitos “sketches” produzidos pelo artista, dois quais poucos

resultaram em uma obra acabada. Esta ficou também no esboço.

Outros pintores, que levaram seus trabalhos a uma tela definitiva, dão uma

visão mais ampla do campo, com várias mulheres trabalhando no mesmo

espaço, e com a paisagem ao redor. Entre eles, o quadro de Jean François-

Millet (abaixo), completado em 1857, com o título “Des glaneuses”

(Respigadeiras), com ampla visão do campo já ceifado.

- 057 –

“Respigadeira”

Esboço de Vincent Van Gogh (1885)

- 058 –

- 1885 –

“Os comedores de batatas”

Óleo sobre tela - 82 x 114 cm

Finalmente, encontramos um Van Gogh confiante de suas possibilidades,

realizando o primeiro de seus grandes trabalhos, ainda no Realismo. Este

quadro, ele o enviou ao seu irmão, o marchant Theo Van Gogh para que fosse

inscrito no Salon de Paris, como estreia do pintor em grandes exposições, o que

afinal, acabou não acontecendo.

Desde o esboço, o artista tinha em mente transformar a obra num

espetáculo para que todos o vissem, doravante, como uma estrela emergente,

que ocuparia um destacado lugar na pintura. Vincent escolheu descrever a dura

realidade da vida rural, dando às suas figuras um ar grotesco, com mãos ósseas

e rostos deformados, comendo aquilo que eles mesmos produziram com intenso

sacrifício e que o homem da cidade compra no mercado sem se dar pela conta

do trabalho que deu para produzir o alimento.

A imagem é propositalmente escura e os rostos, significativamente

empoeirados, na cor das batatas recém-colhidas. A composição, de figuras

distorcidas, com anatomia discutível, pretendia atrair a atenção mais para a

mensagem do que para a técnica pictórica, mas foi mal compreendido pelos

críticos, interessados nos detalhes de natureza técnica.

Desdenhado pelos críticos na época em que foi enviado a Paris, “Os

Comedores de Batata” tornou-se mais tarde, e o é até os dias de hoje, uma das

mais famosas obras de Van Gogh.

Compare essa obra com as figuras de Hieronymus Bosch (1450?-1516),

em cena da Crucificação. Em Van Gogh, a deformação é produzida pelo

trabalho, no outro, pela maldade, mas em, ambos os casos, a distorção é visível.

- 059 –

- 060 –

- 1885 –

“Grupo de casas velhas”

Óleo sobre cartão – 35 x 25 cm

Este é um tema recorrente de Van Gogh em seu período realista. O quadro

a que nos referimos no título vai reproduzido abaixo. Uma variante sobre o

mesmo tema, pintada no mesmo ano, está reproduzida na página 061.

- 061 –

- 062 –

- 1886 -

“Vaso com flores”

Museu Van Gogh – Amsterdã

Este é outro tema recorrente na obra de Van Gogh e só no citado ano de

1886, ele pintou vários quadros com flores. Mais tarde, ficaria conhecido com a

série “Girassóis”, onze telas pintadas em 1887 e que encantaram os

colecionadores, agitando, após sua morte, os leilões de arte.

- 063 –

- 064 –

- 1886 -

“Le Moulin de la Gallette

visto da rua Girardon”

Óleo sobre tela – 38 x 46,5 cm

O nome “Moulin” (moinho) foi dado a alguns cabarés, mas este, o “Moulin

de la Gallete”, além de cabaré, tinha um moinho de verdade e se situava no

ponto mais alto de Montmartre, nos subúrbios de Paris, local de concentração

de notívagos, especialmente escritores e pintores. Neste ano, e durante sua

estada em Paris, Van Gogh fez vários quadros sobre o tema. Um deles (o do

título), vai reproduzido abaixo. Outro está na página 065.

Durante sua permanência em Paris, Vincent morou no mesmo apartamento

de seu irmão Theo, pertinho do moinho, o que facilitou a elaboração das telas e

instigou o pintor a reproduzi-lo de formas variadas.

Por outro lado, em seu contato com os impressionistas, também residentes

de Montmartre, Van Gogh começa a se desprender do Realismo, passando

para uma pintura mais clara e luminosa, como se percebe nestes dois exemplos.

- 065 –

- 1886 -

“Le Moulin de la Gallette”

Óleo sobre tela – 46 x 38 cm

- 066 –

- 1886 (circa) -

“Nu reclinado” (Nu couché)

55 x 46 cm - Óleo sobre tela

(pintado ainda em Montmartre)

Que se saiba, é o primeiro nu de Van Gogh passado para a tela. Outros

houve, mas ficaram nos esboços e a maioria se perdeu. Esta tela já revela a

influência dos jovens pintores da Vanguarda Europeia residentes em

Montmartre, com os quais o artista vinha mantendo estreito contato.

Mais tarde, Vincent tentou, sem sucesso, atrair esses pintores para a Casa

Amarela, que alugara em Arles, no sul da França, com o objetivo de fundar ali

uma comunidade artística. Só Gauguin (Eugène-Henri-Paul Gauguin, Paris, 7 de

junho de 1848 — Ilhas Marquesas, 8 de maio de 1903), ainda que relutante,

topou a parada. Aos outros, não interessava abandonar a efervescência da

capital francesa por um paraíso distante centenas de quilômetros dali.

O nu nunca foi prioridade para Van Gogh: fez vários esboços, que não

foram para as telas, preferindo fixar-se na pintura de paisagens e retratos e, em

ambos os gêneros, se revelou um gênio.

- 067 –

- 068 –

- 1886 -

“Japonaiserie – A árvore em floração”

Óleo sobre tela – 55 x 46 cm

Uma exposição de arte japonesa, sobretudo do período Edo, havia se

realizado em Paris, fascinando os jovens vanguardistas, pela luminosidade e

simplicidade com que os temas eram abordados, desprezando a técnica formal

para se fixar quase que exclusivamente na emoção. Aliás, essa influência foi

fundamental para o desenvolvimento do impressionismo, que se baseou nos

mesmos princípios da antiga arte oriental, até então quase que totalmente

desconhecida no ocidente. Van Gogh não viu a exposição mas, em estreito

contato com os impressionistas, deixou-se seduzir pela arte japonesa e, entre

esboços que realizou, chegou a este quadro.

A inspiração veio do artista japonês Utagawa Hiroshige (1797-1858),

também conhecido como Andō Hiroshige, adepto do “ukiyo-e” (literalmente,

"retratos do mundo flutuante"), que era um gênero de xilogravura e pintura

popular no Japão entre os séculos XVII e XIX. A gravura, impressa em branco e

preto, era posteriormente colorizada por profissionais anônimos, contratados

para essa finalidade. Colorismo era uma profissão, não reconhecida como arte.

Artista era quem fazia a xilogravura e não quem colocava cores nela.

Abaixo, o trabalho original de Hiroshige, devidamente colorizado e, na

página 069, a versão de Van Gogh. Muito parecidos, não?

- 069 –

- 070 –

- 1887 -

“Vegetable Gardens In Montmartre”

(Jardim de vegetais em Montmartre)

Óleo sobre tela – 120 x 96

Este também é um tema recorrente na obra de Van Gogh e o termo “jardins”

é usado de modo genérico para designar “plantações”, não necessariamente

de flores. No caso presente, trata-se de hortas ou de uma seara não específica.

Em quase todas as paisagens com plantações urbanas, o artista coloca um

moinho de vento, que não tem especificamente função de moagem, mas são

utilizados para bombear a água necessária para alimentar a plantação.

Ao contrário da França, onde os moinhos de vento eram utilizados para

irrigação, na Holanda, com terras abaixo do nível do mar, eles tinham função

inversa, bombeando a água excedente para os rios e canais que corriam vários

metros acima, evitando assim as enchentes. Van Gogh, por ser holandês, estava

bastante familiarizado com eles.

- 071 –

- 072 -

1887 (circa)

“Auto-retrato” Óleo sobre tela - 44 x 37,5 cm

Começa a série de auto-retratos, em que Van Gogh, com o máximo de

realismo, examina a si mesmo. Não se sabe quantos esboços teria realizado,

mas, que se conhece, são pouco mais de 20 telas efetivamente executadas.

Para se ver e auto-analisar, Vincent se postava diante de um espelho e, por

essa razão, não há auto-retratos de perfil. É de se supor, também, que, por

serem espelhadas, as imagens estão pintadas “do avesso”, o que se nota mais

claramente nos retratos após o incidente natalino, ocasião em que a orelha

cortada foi a do lado esquerdo, mas, nos dois quadros, ela aparece no lado

direito.

Neste quadro da página 073, já encontramos um Van Gogh adiante de seu

tempo, que não só aderiu ao impressionismo, como deu a este quadro um

efeito divisionista, ou pontilhista, estilo do qual nunca compartilhou. Seu salto

seria direto para o Pós-Impressionismo, caracterizado por suas cores fortes e

agressivas.

- 073 –

- 074 –

- 1888 -

“Auto-retrato como um artista”

Óleo sobre tela - 55,5 x 65,5 cm

Este é o último dos auto-retratos realizados em Montmartre, pouco

antes de o artista mudar-se, primeiro para a Casa Amarela de Arles, 750

quilômetros ao sul de Paris e depois para o sanatório de Sait-Remy, numa cidade

vizinha.

Arles, sul da França, distante 740 quilômetros de Paris.

Neste trabalho, Van Gogh apresentou-se como um pintor, segurando a

paleta e os pincéis atrás de seu cavalete, identificando-se como um artista

moderno, adotando um estilo novo da pintura, com cores brilhantes. A paleta

contém todas as cores complementares que ele usou no auto-retrato: vermelho

/ verde, amarelo / roxo e azul / laranja. Estes pares se acham lado a lado, de

forma ordenada: o azul de sua blusa, por exemplo, e o vermelho alaranjado de

sua barba.

A esta altura, Paris o tinha esgotado mental e fisicamente. Contou a sua

irmã Wil como ele se retratou:

"rugas na testa e ao redor da boca, rígidas como a madeira, uma

barba muito vermelha, muito desleixada e triste".

À frente de seu tempo, Van Gogh sempre sacou sobre o futuro e o futuro

chegou antecipado, deixando marcas no corpo e no espírito.

- 075 –

- 076 –

- 1888 -

“Pereira em flor”

Óleo sobre tela - 72 x 46 cm

“Paris c'est finite” e Van Gogh acabara de se instalar na Casa Amarela,

em Arles, no extremo sul da França, onde alimentava o sonho de reunir, em

definitivo, os melhores pintores radicados em Montmartre. Puro sonho, pois

ninguém (a não ser Gauguin) se animou a deixar a festiva Paris por uma vila

afastada, sem o contato social que a capital proporcionava.

A esta altura, Vincent já se manifestava claramente um impressionista e a

sua pintura ”Pereira em flor” era um desdobramento do japonismo que

contaminara Paris e seus vanguardistas. Arles era uma cidade desenvolvida

mas, nem de perto, podia ser comparada à agitada e promissora capital.

Enviada a Paris, esta obra foi exibida pela galeria “Theo de Boussod,

Valadon & Cie.”, empresa que negociava artes, e na qual seu irmão e outros

parentes trabalhavam.

Apesar de ter a família ligada ao negócio das artes, isso não facilitou as

coisas e as pinturas de Van Gogh continuavam sendo rejeitadas pelo mercado.

- 077 –

- 078 –

- 1888 –

“L’Anglois – Ponte em Arles”

Óleo sobre tela – 54,5 x 64 cm

É um tema recorrente na obra de Van Gogh, que voltaria várias outras vezes

ao mesmo assunto, fazendo a releitura deste primeiro quadro.

Van Gogh conheceu a Ponte de L’anglois quando explorava os arredores

de Arles. Ele se encantou com a leve estrutura de madeira e o seu maravilhoso

contexto cromático. A cena vista por ele remeteu-o à obra do artista japonês

Utagawa Hiroshige, chamada de A ponte Sobre o Rio Takagi (abaixo), da

qual tinha uma estampa em seus arquivos. Van Gogh nutria grande admiração

pela pintura japonesa. Ele fez quatro pinturas e quatro desenhos desta cena,

buscando reproduzi-la de ângulos diferenciados. Os personagens também

diferem.

- 079 –

“L’Anglois – Ponte em Arles” > Observe o clareamento da paleta

Outras variantes sobre o mesmo tema

- 080 –

- 1888 -

“Jardim florido em Arles”

Óleo sobre tela – 95 x 73 cm

Vincent Van Gogh sempre teve uma forte atração pelas flores e pelos seres

humanos e tanto um tema como o outro sempre dominaram suas telas. Mesmo

quando o gênero era paisagem, um e outro quase sempre estavam presentes.

O forte colorido desta tela nos encaminha para o Pós-Impressionismo no

qual Vincent, assim como seu companheiro de Arles, Gauguin, sempre foi um

incontestável mestre.

Abaixo, um campo com flores amarelas, óleo sobre tela de 1889, 34,5 x 53

cm. E, na página 081 está o jardim florido discriminado no título.

- 081 –

- 082 –

- 1888 -

“Starry Night over the Rhone River”

(Noite estrelada sobre o rio Rhone)

Óleo sobre tela, 75,5 x 92 cm

Na pequena vila de Arles, sem a contaminação intensa da luz parisiense,

Vincent é apresentado, com todas as honras, ao azul infinito do céu e o amarelo

candente das estrelas.

É apenas um ensaio singelo, uma estreia do tema do céu estrelado, que

revelaria, mais tarde sua obra prima numa simbiose perfeita entre o firmamento

e o artista.

Por enquanto, apenas o encantamento com o novo tema, ao qual voltaria,

em outro momento, como todo seu vigor.

O azul domina toda a tela, de cima abaixo, com uma variedade de

matizes, mas o destaque maior fica para o amarelo, luminoso e vibrante,

rasgando o azul das águas e fazendo-se presente no reflexo luminoso.

Algo para ser apreciado, algo para ser pintado. E o artista não se faz de

rogado.

Esta pintura foi exibida pela primeira vez em 1889 na exposição anual da

Sociedade de Artistas Independentes de Paris, juntamente com outra pintura

dele, com o tema “Lírios”.

A escolha deste quadro para inscrição foi feita pelo irmão Theo, à revelia do

pintor, que preferia inscrever, em seu lugar, uma pintura do jardim público de

Arles. Theo tinha um profundo conhecimento do mercado de arte, estava ligado

às preferências dos colecionadores e dos críticos e sabia, melhor que ninguém,

qual obra faria efeito positivo na exposição.

O rio Rhone, hoje mais conhecido como “Ródano”, nasce na Suíça,

atravessa todo o país, passa pelo lago de Genebra, passeia pelo sul da França,

banhando Arles e, por fim, desagua no Mar Mediterrâneo.

- 083 –

Starry Night over the Rhone River (Rio Ródano)

Trajetória do rio Rhodes (Rodano)

- 084 -

- 1888 -

“Portrait of a Young woman”

(Retrato de uma jovem)

Óleo sobre tela – 50 x 49 cm

Seguramente, nesta obra, houve uma influência, da pintura realizada pelo

artista florentino Sandro Boticelli (1445-1510), usando o mesmo tema por volta

de 1480. Van Gogh modernizou o estilo e deu seu toque pessoal.

Abaixo, o quadro de Botticelli

- 085 –

A versão de Van Gogh

- 086 –

- 1888 -

Barcos na praia de “Saintes Maries”

Óleo sobre tela – 64,5 x 81 cm

Nota-se aqui uma mudança radical no estilo do artista. As cores são fortes

e descompromissadas, a pintura fica mais solta e alegre, ganhando em

expressividade. É um Van Gogh encontrando-se consigo mesmo.

Este quadro é um dos mais reproduzidos pelos fabricantes de litografias e

procurado avidamente por amantes da arte que desejam ter uma reprodução do

artista em sua parede.

Saintes-Maries-de-la-Mer é uma comuna francesa situada no delta do

Rhone (Ródano) na região Provence-Alpes-Côte d'Azur. Por área, esta é a

segunda cidade na França metropolitana, vizinha a Arles, conhecida como

estação balneária.

Construída no Século XI, a cidade ainda conserva sua forma original e estar

nela, é como voltar no tempo e na história.

Seu nome, Saintes Maries, no plural, se justifica como uma homenagem às

três Marias que aparecem juntas no episódio da Ressurreição. Abaixo, uma foto.

- 087 –

- 088 –

- 1888 -

“Os jardins do Mercado”

Óleo sobre tela – 72,5 x 92

O termo “jardins” aqui tem uma conotação genérica, significando plantações,

e há um sem número de quadros de Van Gogh voltando sempre ao mesmo tema.

Ainda que pintado em sua estada em Arles, o quadro fecha uma série de

experiências iniciadas em Paris, lembrando os campos provençais que eram,

para ele, um símbolo redivivo do panteísmo cósmico.

Dotado de um senso religioso profundo, o artista se afasta aqui do

cristianismo tradicional para buscar o transcendental na manifestação divina

através da natureza, da qual o homem e os demais seres vivos fazem parte.

- 089 –

- 090 –

- 1888 -

“O carteiro Roulin”

Óleo sobre tela – 79,5 x 63,5 cm

Van Gogh se afeiçoava muito facilmente as pessoas à sua volta, envolvendo-

se em uma relação neurótica na qual se entregava de corpo e alma e sentia

imensa dificuldade em se despregar. Assim aconteceu com a humilde família

Roulin, cujo chefe era o carteiro local, Joseph Roulin, com quem Vincent se

entusiasmou, escrevendo ao seu irmão Theo:

"Estou trabalhando agora com outro modelo, um carteiro de

uniforme azul, com detalhes em ouro, uma grande barba que nos

lembra , muito, a figura de Sócrates."

Na verdade, o singelo carteiro tinha o porte de um nobre, mas além dele, Van

Gogh pintou a família toda, incluindo mulher e filhos e se sentiu desconsolado

quando o amigo e seus familiares tiveram de mudar-se para outra localidade.

Esta série de pinturas, realizada entre 1888 e 1889, é conhecida como

“Retratos da família Roulin” e inclui sua mulher Augustine, e seus filhos

Armand, Camile e Marcelle, num total de 22 quadros. Como se sabe, o pintor

tinha um temperamento explosivo e, por medo ou ressentimento, as pessoas à

sua volta se recusavam a posar para seus retratos e, no caso da família Roulin,

houve uma interação completa, juntando a fome com a vontade de comer. Diga-

se de passagem, nenhum deles cobrou para posar .

Mais que um modelo, Roulin se tornou um bom e leal amigo, relevando os

destemperos do artista, dando-lhe suporte em sua estada em Arles. Roulin

admirava Van Gogh que, por sua vez, amava intensamente toda família do

carteiro.

- 091 –

O carteiro Roulin

- 092 -

- 1888 -

“O zuavo Millet”

Óleo sobre tela – 81 x 65 cm

“Zuavo” é a designação dada ao soldado argelino, originário de uma tribo

cabilda, pertencente a um corpo de infantaria ligeira da armada francesa, criado

na Argélia em 1831 e caracterizado por um uniforme vistoso e colorido.

Ao contrário de seus contemporâneos, Van Gogh nunca se interessou pelos

temas norte-africanos e nunca visitou a Argélia que foi, por muitas décadas, uma

colônia francesa. Este retrato tem ao menos duas versões, uma de corpo inteiro

e outra como meio-retrato.

Este é um ponto fora da curva. Van Gogh nunca havia abordado o tema

antes, nem voltou a fazê-lo depois.

- 093 –

- 094 –

- 1888 -

“Café Noturno em Arles”

Óleo sobre tela – 70 x 89 cm

Este quadro foi pintado em Arles em setembro de 1888, revelando o interior

de um café francês tradicional, tendo ao fundo uma cortina semi-aberta que

conduz a um espaço reservado para clientes que desejam manter sua

privacidade ou intimidade. Na parte aberta, e sem nenhuma restrição, estão

cinco clientes, um casal na mesa ao fundo, um solitário na mesa anterior e, à

frente, dois amigos conversando, todos observados por um garçom, vestindo um

simples casaco branco, sem a sofisticação dos cafés parisienses.

Também não há aquele frenesi da capital francesa e os poucos clientes que

se deixam levar pela madrugada (o relógio diz que já passa de meia-noite),

sem um programa definido que não seja passar o tempo, num local frequentado,

a rigor, por bêbados e prostitutas. A decoração é kitsch, de cores vivas e

contrastantes, o teto verde, as paredes predominantemente vermelhas, lampiões

ao teto, alimentados a gás, o piso amarelo, e, ao centro, uma mesa de bilhar,

marcando decisivamente o ambiente. Ao descrever o quadro em carta ao irmão

Theo, Vincent gracejou: “Eles me levaram tanto dinheiro que eu me vinguei,

pintando o lugar do jeito que ele é.”

Café em Paris, um lugar para “happy hour”

- 095 –

Café em Arles, um local para bêbados e prostitutas

- 096 –

- 1888 -

“Rapaz com boné”

Óleo sobre tela – 47,5 x 39 cm

Este quadro, muito pouco divulgado, pertence ao período de Arles.

O boné era largamente utilizado na França no final do século XIX e

aparece frequentemente em retratos feitos por Van Gogh,

especialmente em garotos.

Abaixo: “O escolar” (Filho do carteiro Roulin)

- 097 -

“Rapaz com boné”

- 098 –

- 1888 -

“Auto-retrato” (Self-portrait)

Óleo sobre tela – 62 x 52 cm

Desde que se instalou na Casa Amarela de Arles, no início de 1888, Van

Gogh pintou sem parar e, sempre que pode, retratou a si mesmo, buscando

refletir seu estado de espírito a cada momento, em imagens sem rebusques ou

retoques.

No momento em que terminou esta pintura, Vincent recebeu auto-retratos

de Émile Bernard e Paul Gauguin, que estavam fazendo uma série de pinturas

na Bretanha, ao noroeste da França. Em recíproca, ele despachou para lá este

auto-retrato, com a dedicatória: “Para meu amigo Paul Gauguin”.

Comentando a obra com seu irmão Theo, ele disse que o intuito era criar sua

própria imagem como se estivesse em um cárcere, manipulando as próprias

feições, mudando o contorno da jaqueta e, como ele mesmo explica, “pintando

o fundo em um pálido Veronese verde, sem sombras”.

Depois, muita coisa aconteceu. Gauguin veio morar por pouquíssimo tempo

na Casa Amarela, os dois brigaram, houve o episódio da orelha cortada, a

amizade entre Gauguin e Van Gogh se esvaiu, Gauguin, fugiu para Paris e,

desgastado, vendeu o retrato pela bagatela de 300 francos. Fim de caso.

- 099 –

Neste quadro, Van Gogh se descreve como um prisioneiro

- 100 –

- 1888 -

“Terraço de café à noite”

(Terrasse du café le soir)

Óleo sobre tela – 79 x 63 cm

Este quadro também é conhecido como “Terraço de café em frente à

praça do Fórum” (Terrasse de café sur la place du Forum) e foi realizado em

setembro de 1888, um mês bastante produtivo para Van Gogh, dois meses antes

do “episódio da orelha cortada”, que mudaria completamente sua vida.

O pintor descreve na tela um café localizado em Arles, originalmente

chamado “Terrace”. Após a popularização do quadro, o café continuou

existindo, mas mudou seu nome para “Café Van Gogh”. (Veja abaixo a pintura,

comparada com uma foto do local preservado com as mesmas características).

O céu estrelado é um ensaio para sua primeira pintura de “Starry Night”, em

que ele reflete as estrelas sobre o Rhodes (rio Ródano) e que se acha

reproduzida na página 083. A tela aqui descrita é tratada com cores quentes,

valorizando também a perspectiva, coisa incomum no artista..

Este café foi restaurado nos anos 1990, para o gáudio dos turistas que

visitam Arles, em busca de vestígios de Van Gogh. Note-se que a fachada dos

cafés daquela época jamais eram amarelas e só pareciam ser dessa cor pela

iluminação artificial. Com a luz natural do dia, eles tinham uma pintura mais

conservadora. Todavia, para agradar aos turistas, o novo proprietário, pintou a

parede realmente de amarelo, semelhante à tela de Van Gogh. Não se discute

com o cliente. O cliente sempre tem razão.

- 101 –

- 102 –

- 1888 -

“Sower” (O semeador)

Óleo sobre tela – 63 x 93 cm

“E o semeador saiu a semear...” O quadro a que se refere o título está

reproduzido na página 103 e o tema, para esta e outras telas, se inspira em

Jean-François Millet (1814-1875). A vida de Vincent vinha sendo um colecionar

de fracassos, desde suas primeiras experiências como missionário, até as

frustradas tentativas para vender seus quadros. Sustentado por uma mesada

que lhe era enviada fielmente por seu irmão Theo, Van Gogh se refugiou, então,

na pintura, misturada a um sentimento de religiosidade, não necessariamente

cristã, que permeou sua vida, isolando-o de tudo o mais, menos da pintura.

Com efeito, semeadura é tomada aqui como uma representação da vida

em seu melhor estilo panteísta, em simbiose com o cristianismo em que foi

educado, e que era representado pela parábola do semeador. Espalhar a

semente é então um símbolo da esperança para Vincent, porque é semeando

que se colhe.

Abaixo, uma variante, pintada no mesmo ano

- 103 –

"Eis que o semeador saiu a semear. E, ao semear, uma parte caiu à

beira do caminho; foi pisada, e as aves do céu a comeram. Outra caiu

sobre a pedra; e, tendo crescido, secou por falta de umidade. Outra

caiu no meio dos espinhos; e, estes, ao crescerem com ela, a

sufocaram. Outra, afinal, caiu em boa terra; cresceu e produziu a

cento por um" (Parábola)

- 104 –

- 1888 –

Sunset (Pôr-do-Sol)

Óleo sobre tela - 74 x 91 cm

Seguindo a mesma linha, que estabelece a relação intrínseca do homem com

a natureza, a mesma natureza que o sustenta e o conserva vivo, Van Gogh faz

mais uma representação da seara, privilegiando também o sol, como outro

elemento que representa essencial aos seres vivos. (veja o quadro na pg. 105)

Sem a semente não há plantação, sem a plantação não há o sustento

e, sem o sol, que produz a fotossíntese, não há plantas. Tudo está ligado

harmonicamente, um elemento ao outro, e esta relação entre a natureza e a vida

humana foi a ideia perseguida nestes últimos meses de sua permanência em

Arles, antes de perder totalmente o controle e ser internado em um sanatório.

O questionamento, privilegiando o panteísmo, e levantando o

questionamento com relação à sua formação religiosa, é uma tentativa de fazer

uma revisão de conceitos e entender os conflitos que o agitam, balançando entre

um extremo e outro, como se fosse o pêndulo de um relógio. O tema foi repetido

incessantemente, como nos salgueiros abaixo, pintados na mesma época.

- 105 –

“Sunset” (Pôr-do-Sol)

- 106 –

- 1888 -

“Passeio em Arles”

(Memórias do Jardim em Etten)

Óleo sobre tela – 73 x 92 cm

Neste quadro, que foge ao estilo convencional de Van Gogh, o pintor apenas

esboça o cenário ao redor, fixando-se mais aos rostos, revelando o turbilhão que

lhe vai à alma. Vêm-se rostos cansados, pensativos, preocupados,

carregando todo o sentimento de seres impotentes, mas conformados em

face de problemas que não podem solucionar, por serem maior que eles.

Esta pintura, apesar da profundidade do tema, é bem colorida e leve, triste

mas não dramática, e tem sido preferida pelos colecionadores de estampas,

comercializada que é por várias empresas, e fácil de se encontrar no mercado.

Abaixo, só os rostos; na página 107, a pintura completa

- 107 –

- 108 –

-1888 -

“Retrato de Armand Roulin”

Óleo sobre tela 65 x 54 cm

Eles eram cinco: o carteiro Joseph Roulin (1841-?), a esposa, Augustine-

Alex Pellicot (1851-1930), o filho mais velho do casal, Armand (1871-1945), o

filho do meio, Camille (1877-1922), e a filha caçula, Marcelle (1888-?), retratada

pouco após o seu nascimento, com os quais o pintor mantinha uma relação

indissolúvel, com indiscutível dependência psicológica.

Van Gogh pintou ao todo 22 retratos de membros da família Roulin, uma

típica representante das famílias da classe operária francesa da segunda

metade do século XIX. Toda essa série demonstra a influência dos estudos de

van Gogh acerca da estampa japonesa. Embora tenham sido os modelos mais

requisitados pelo pintor em seu período em Arles, os membros da família jamais

cobraram pelas sessões.

Armand Roulin, o filho mais velho, nasceu em 5 de maio de 1871 em

Lambesc e morreu em 14 de novembro de 1945. Ele tinha 17 anos de idade

quando retratado por Van Gogh.

Na época em que as pinturas foram feitas (1888) Armand deixara a casa de

seus pais, trabalhando como aprendiz de ferreiro. Aqui ele aparece com “terno

de missa”, ou o que seriam suas melhores roupas: um chapéu fédora elegante,

casaco amarelo vívido, colete preto e gravata.

Armand aparece com um olhar um pouco triste, contudo, talvez nem seja

tristeza, mas tédio por ter de passar tanto tempo impassível enquanto o pintor

colhe os detalhes para reproduzi-los na tela. Mas o seu porte é o de um jovem

confiante e de personalidade.

De Armand, o pintor fez dois retratos, entre os 22 dedicados à família Roulin,

o que denota que ele, realmente, não apreciava figurar como modelo. “Mas já

que não posso fugir, Me voilà!”

- 109 –

- 110 –

- 1888-1889 -

“La berceuse” (Mme. Augustine Roulin)

ou “As mãos que embalam o berço”

Óleo sobre tela – 91 x 71,5

Trata-se da Sra. Roulin pondo Marcelle, a fiha recém-nascida, para dormir.

Toda a atenção é voltada para a mulher e o restante da cena é uma abstração,

não aparecendo nem a criança, nem a cama, que se supõe existir porque ela

segura às mãos a cordinha que balança o berço, embalando o (supostamente)

quase adormecido bebê.

Este retrato, Vincent o começou ao final de 1888 e terminou no início de

1889, quando já apresentava sinais do distúrbio mental que o levariam mais

tarde à internação, primeiro na vizinha Saint-Remy, depois ao norte de Paris, a

mais de 300 quilômetros de Arles, onde o pintor sentia uma falta imensa da

família Roulin, compensando-a, de certa maneira com a aproximação à família

do seu psiquiatra, dr. Gachet.

Em 1890, interno deste segundo asilo, Van Gogh teria recebido a notícia de

que a família Roulin se mudaria para local incerto e não sabido, enquanto corriam

também boatos de que o dr. Gachet deixaria o hospital, para ir trabalhar em outra

cidade e seu irmão Theo ia se casar. Esse tropel de eventos foram o golpe fatal

em Vincent, que atirou contra si mesmo, encerrando a carreira e a própria vida.

- 111 –

- 112 –

- 1888 -

“A Arlesiana” (cidadã de Arles)

Óleo sobre tela – 90 x 72 cm

A Arlesiana, ou o Retrato de Madame Ginoux, é uma pintura a óleo sobre

tela de 90x 72 cm, feita em 1888 pelo pintor Vincent Van Gogh, e que se encontra

no Metropolitan Museum de Nova York. A senhora Ginoux (Marie Jullian (ou

Julien)) nasceu em Arles em 8 de junho de 1848 e morreu em 2 de agosto de

1911. Casou-se com Joseph-Michel Ginoux, em 1866. O casal era

proprietário do Café de la Gare, em Arles, onde Van Gogh morou entre maio e

setembro de 1888. Com o mesmo tratamento de um desenho japonês, este

retrato é um dos mais famosos produzidos por Van Gogh, por sua força

expressiva, sua intensidade e violência de caracterização.

Tudo começou em novembro de 1888, quando a respeitável senhora posou

não apenas para Vincent mas também para Paul Gauguin, no curto período em

que compartilharam o ateliê da Casa Amarela, cuja parceria se encerrou na ante-

véspera do Natal, quando o primeiro teve a orelha cortada e o segundo fugiu de

Arles, na calada da noite.

Depois desta versão, que se acha hoje no Museu d’Orsay de Paris, Van

Gogh realizou outra tela, melhor elaborada, reproduzida na página 113,

justamente a que está no Metropolitan. Abaixo, a versão de Paul Gauguin

- 113 –

“A Arlesiana” de Van Gogh

na segunda versão

- 114 –

- 1889 -

“O homem com cachimbo”

(Auto-retrato com orelha cortada)

Óleo sobre tela – 51 x 45 cm

O episódio é bastante conhecido e mencionado em outras partes deste livro,

não precisando ser rememorado. Van Gogh fez duas versões dele, uma com o

cachimbo e outra sem ele. A orelha cortada foi a esquerda, mas como o artista

se olhou no espelho para fazer os quadros, ela aparece invertida.

- 115 –

- 1889 –

“Auto retrato com orelha enfaixada”

Óleo sobre tela – 60 x 49 cm

- 116 –

- 1889 -

“Campo com flores de íris”

Óleo sobre tela – 71 x 93 cm

Esta é uma das várias pinturas de Van Gogh sobre a flor de íris e o primeiro

quadro executado no sanatório Saint Paul-de-Mausole perto Saint-Rémy-de-

Provence, uma semana após sua internação. Estamos já em 1889 e Van Gogh

tem 36 anos. O hospital fica a 25 quilômetros de Arles.

. A região do asilo possuía muitas searas de trigo, vinhas e olivais, que

transformaram-se na principal fonte de inspiração para os quadros seguintes, os

quais marcaram nova mudança de estilo, quando as pequenas pinceladas

evoluíram para curvas espiraladas.

Em maio de 1890, Vincent deixou a clínica em Saint-Remy, vizinha a

Arles e mudou-se para Auvers-sur-Oise, vizinha a Paris, onde podia estar

próximo do irmão e receber acompanhamento médico do doutor Paul Gachet,

um especialista habituado a lidar com artistas, recomendado que foi por Camille

Pissarro. Gachet não conseguiu melhorias no estado de Vincent, mas ele foi a

inspiração para o conhecido Retrato do Doutor Gachet. Nos três meses que aí

permaneceu, Van Gogh produz cerca de oitenta pinturas, quase uma por dia..

O diabo é que Auvers, a última morada, ficava distante 780 quilômetros

de Arles e as amizades que Van Gogh fizera no sul, assim como todos os locais

que frequentara, ficaram para trás num passado que não mais poderia recuperar

e isso influiu muito em seu estado de espírito.

Van Gogh considerou esta pintura um estudo, mas seu irmão pensou o

contrário e apresentou-a como trabalho definitivo à exposição anual do Société

des Artistes Indépendants em setembro 1889, junto com “Noite estrelado

sobre o Rhone” (página 083). Comentando com Vincent, Theo declarou:

“As flores de íris são um belo estudo cheio de ar e vida."

- 117 –

“Campo com flores de íris”

(Período de Saint-Remy)

Arles e Saint-Remy, 34 km

- 118 –

- 1889 -

“Campos verdes perto de Saint-Remy”

Óleo sobre tela – 73 x 92 cm

(Período de Saint-Remy)

- 119 –

- 1889 -

“Trigo Amarelo”

Óleo sobre tela – 73 x 93 cm

(Período de Saint-Remy)

- 120 –

- 1889 -

“Oliveiras”

Óleo sobre tela – 72,5 x 92

(Período de Saint-Remy)

- 121 –

- 1889 -

“Prados”

Óleo sobre tela – 21,5 x 32,5 cm

(Período de Saint-Remy)

- 122 –

- 1889 -

“Starry Night” (Noite Estrelada)

Óleo sobre tela – 73 x 92 cm

(Período de Saint-Remy)

“Noite Estrelada” (em holandês, “De sterrennacht”) é a obra prima criada

por Van Gogh aos 37 anos, enquanto esteve em um asilo em Saint-Rémy-de-

Provence (1889-1890), achando-se atualmente na coleção permanente do

MoMA (Museu de Arte Moderna) de Nova York e, ao contrário do que se pensa,

foi pintada de memória, tendo como referências “Starry Night over Rhodes

River” (1888), um desenho a cálamo da mesma época e vários esboços que

tinha em seus arquivos.

Neste momento, Van Gogh, que de há muito deixara o Realismo, rompe

também com o Impressionismo, buscando um colorido mais expressivo que,

mais tarde seria classificado como Pós-Impressionismo, e que ele já

experimentara em algumas obras anteriores, prevalecendo duas das três cores

primárias, o azul que domina o quadro e o amarelo que rasga esse espaço.

Em tudo isso, se revela, de maneira cada vez mais contundente, a

expressão religiosa que sempre dominara o artista e que, nos últimos tempos,

vinha se transmudando do cristianismo para o panteísmo, passando a

estabelecer uma relação intrínseca entre Deus e o homem, através do universo

que o contém e que forma a amálgama entre a divindade e o humanismo.

Em meados de setembro de 1889, após uma grande crise que durou de

meados de julho até aos últimos dias de agosto, ele pensou em incluir este

"Study of the Night" no próximo lote de obras a serem enviados para seu irmão,

Theo, em Paris. A fim de reduzir os custos do transporte, ele escondeu três

outros estudos: "Papoulas”, “Night Effect” e “Nascer da Lua"., que seguiram no

malote seguinte.

Voltando a esta última versão de “Starry Night”. A parte central apresenta

a aldeia de Saint-Rémy, sob um céu enrolado, numa visão do asilo para o norte.

Os Alpilles, cadeia de montanhas que ocupa o sul da França, estão ao longe

para o lado direito e o cipreste à esquerda foi adicionado à composição.

(Texto baseado na Wikipedia e em outras fontes).

- 123 –

“Starry Night” – a pintura e o desenho a cálamo

- 124 –

- 1889 -

“Quarto de Van Gogh”

Óleo sobre tela – 56,5 x 74 cm

(Período de Saint-Remy)

O “Quarto de Van Gogh” está longe de ser a obra mais importante do

artista, mas é, com certeza a mais popular entre as suas pinturas, conhecida até

pelas pessoas menos interessadas pelas artes plásticas.

Trata-se de uma série de três pinturas e retrata o quarto onde morou em

uma pensão de Arles, a casa de Mme. Ginoux, a arlesiana da página 113. A

primeira versão foi realizada no próprio local e, as outras duas, no ano seguinte,

quando ele já se achava internado no sanatório em Saint-Remy. São

aparentemente iguais e as mudanças, podem passar despercebidas pelo

observador menos atento.

Comentando o trabalho, Vincent esclarece ao seu irmão Theo:

“Desta vez é muito simplesmente o meu quarto, aqui tem de ser só a

cor a fazer tudo; dando através da simplificação um maior estilo às

coisas, deverá sugerir a ideia de calma ou muito naturalmente de

sono. Em resumo, a presença do quadro deve acalmar a cabeça, ou

melhor, a fantasia.”

Embora buscasse a impressão de tranquilidade em seu quadro, ele reflete,

ao contrário, a tensão, a solidão e desarraigamento de Van Gogh na ocasião da

pintura. Os objetos do quarto não tem relação entre si, o piso aparenta cair para

frente, a janela está entreaberta, os quadros pendem em direção à cama, os

móveis em diagonal, tudo parece refletir o caos em que Van Gogh começara a

mergulhar em Arles e no qual já estava totalmente imerso em Saint-Remy.

Os pigmentos das tintas utilizadas na pintura foram avaliados em 2012,

concluindo-se que as paredes eram originalmente roxas mas, com o passar do

tempo, o pigmento vermelho perdeu sua cor e deixou-as azuladas. (Wikipedia)

- 125 –

“Quarto de Van Gogh” – A primeira versão

- 126 –

- 1889 -

“Enfermaria de hospital em Arles”

Óleo sobre tela – 74 x 92 cm

(Período de Saint-Remy)

Trata-se da enfermaria do hospital de Arles em que Van Gogh esteve

internado por duas vezes, após o incidente da orelha cortada, na antevéspera

de Natal de 1888. A pintura vai reproduzida abaixo.

Ele também pintou o pátio externo com os jardins e esta pintura se acha na

página 127, juntamente com uma fotografia do prédio, hoje preservado, mas,

agora, apenas para fins de turismo. Nada de doentes.

- 127 –

Pátio externo do hospital – a pintura de 1889 e a foto agora

- 128 -

- 1890 -

“Estrada rural à noite”

Óleo sobre tela – 91 x 71 cm

(Período de Saint-Remy)

“Estrada rural à noite” (em inglês, “Road with Cypress” e em holandês,

“Cypres bij sterrennacht” é o último quadro de Van Gogh em Saint-Remy,

pintado em maio de 1890, pouco antes de sua transferência para o sanatório de

Auvers-sur-Oise, a 40 quilômetros de Paris, onde ficaria aos cuidados do dr.

Gachet.

Pintar as sombras da noite, contrastantes com o brilho das estrelas, assim

como retratar ciprestes, tornou-se quase que uma obsessão para Vincent, que

escreve ao irmão: “Os ciprestes estão sempre ocupando meus

pensamentos e eu os acho belos, quando alinhados, parecendo mais um

monumento, como as pirâmides do Egito.” E, além de ciprestes, ele

manifestou sua intenção de pintar outras árvores. mal delineadas nas sombras

da noite.

Esta imagem, com um cipreste em destaque, o caminho estreito e as estrelas,

sugerem uma inspiração no clássico inglês “The Pilgrim's Progress”

(publicado em português como “O Peregrino”), escrito na prisão por John

Bunyan (1628–1688) e bastante divulgado entre os protestantes.

A orientação das estrelas no firmamento não é aleatória pode ter sido

influenciada por uma conjunção de corpos celestes em 20 de abril de 1890,

quando Mercúrio e Vênus estavam em 3 graus de separação e, juntos, tinham

luminescência comparável a Sirius. Observação: Van Gogh fizera 37 anos em

30 de março de 1890, seu último aniversário.

- 129 –

- 130 –

- 1890 -

“Auto-retrato”

Óleo sobre tela – 65 x 54 cm

(Período de Auvers-sur-Oise)

O artista busca retratar seu indeciso e variável estado de espírito, resultante

da própria inquietude. Este é o primeiro auto-retrato em sua última fase de vida,

quando já se achava instalado no Sanatório em Auvers-sur-Oise, próximo a

Paris, para onde havia sido transferido em maio de 1890, deixando para trás o

período curto, mas turbulento, em Arles e em Saint-Remy, no sudoeste da

França;

- 131 –

- 132 –

- 1890 -

“Campo de papoulas”

Óleo sobre tela – 73 x 93 cm

(Período de Auvers-sur-Oise)

“Auvers é maravilhoso!”, escreve Van Gogh ao irmão Theo. O artista

encanta-se com Auvers-sur-Oise, como já havia se encantado anteriormente

com Arles. Esta sua pintura, inaugurando a série de paisagens sobre a nova

morada, é um cenário de papoulas, com algumas árvores ao fundo, agora com

um maior cuidado quanto à perspectiva, criando planos bem definidos que dão

uma sensação de profundidade. Há uma intenção clara de demonstrar que

ventava naquele momento, o que se pode perceber pela inclinação das plantas

para o oeste.

Vincent permaneceu no local menos de três meses, até pôr fim à vida, mas

nesse curto período, produziu 72 pinturas, 33 desenhos e uma gravura, nos

quais representou a vila tal qual ele a via e, mais do que isso, tal qual ele

imaginava que ela poderia ser, vale dizer, um espaço rural perfeito e fértil, onde

o verde se alterna com o colorido das flores.

A composição das telas e o uso profuso da cor lembram os campos de

papoulas pintados por Claude Monet, um dos quais reproduzimos abaixo,

para comparação. Esta obra de Monet é de 1873.

- 133 –

”Campo de Papoulas” de Van Gogh

- 134 –

- 1890 -

“Mademoiselle Gachet dans son jardin”

Óleo sobre tela – 46 x 55 cm

(Período de Auvers-sur-Oise)

Tal como já o fizera em Arles com a família Roulin, agora, Van Gogh se

dedica a fotografar a família do dr. Gachet. Ao que parece, o médico era viúvo

e sua família era composto apenas por ele e sua filha. Ocupado com suas

atividades como diretor do sanatório e sendo sua principal referência no

tratamento dos doentes, Gachet não dispunha de tempo para posar, pelo que o

modelo, com frequência, era sua filha, em seus passeios pelo jardim do hospital,

local onde o médico tinha também sua residência, ou em ambientes internos,

como ao piano (quadro abaixo).

- 135 –

- 136 -

- 1890 -

“Chalés em Cordeville”

Óleo sobre tela – 72 x 91 cm

(Período de Auvers-sur-Oise)

Este quadro é bastante popular e requisitado por colecionadores de

litografias, pela imagem vívida e a beleza de sua composição.

Tecnicamente, revela um momento conturbado e tenso no estado de Van

Gogh, com uma regressão ao seu período holandês, ao início de sua carreira,

só que aqui, a releitura de sua obra se faz com a maestria de que já tem dez

anos de estrada. É uma estampa bonita e artisticamente bem elaborada, que

merece um lugar na parede da sala de qualquer amante da arte.

Veja a imagem dela abaixo e compare com as duas telas da página 137,

pintadas na mesma época, mas com um espírito mais plácido.

- 137 –

Van Gogh e duas paisagens em Auvers-sur-Oise

em outro momento e com outro estado de espírito

- 138 –

- 1890 -

“Retrato do dr. Gachet”

Óleo sobre tela – 68 x 57 cm

(Período de Auvers-sur-Oise)

Paul Ferdinand Gachet era um clínico geral, mas que ficou famoso por tratar

os insanos com humanidade, numa época em que a farmacopeia, como ironizou

um terapeuta, se reduzia a choque elétrico e suco de maracujá.

Gachet tinha um hobby, que era a pintura, gostava da arte e tinha uma

técnica bem desenvolvida, o que o aproximava dos artistas profissionais. Foi o

único médico que aceitou com prazer os quadros de Van Gogh como forma de

pagamento. Inclinado aos estudos da mente humana, sua tese de graduação em

Medicina teve como tema a "melancolia".

No olhar suspeito de Van Gogh, que era seu paciente, Gachet se tornara,

de certa forma, vítima dos próprios males que se propunha curar e Vincent disse

isso em carta ao seu irmão Theo datada de 20 de maio de 1890:

“O Dr. Gachet diz que sou excêntrico, mas quando olho para ele,

vejo-o lutando contra um problema nervoso que certamente está a

sofrer tão seriamente quanto eu. É a sua profissão de médico que o

mantém, aparentemente, em equilíbrio.”

Foi o dr. Gachet que, como artista “domingueiro”, introduziu Van Gogh na

técnica da têmpera e a primeira versão deste quadro foi realizada com essa

técnica. Usando o quadro a têmpera como referência, Vincent pintou outros dois,

em óleo sobre tela.

A primeira versão, que está reproduzida na página 138, foi leiloada pela

Christie’s de Nova York 15 de maio de 1990 pela bagatela de US$86.500

dólares, dinheiro que nem Van Gogh, nem o dr. Gachet jamais sonharam ver em

toda a vida.

Como diz o ditado, “o bom bocado não é para quem o faz, mas sim para

quem o come.” A história da arte está repleta de artistas que atravessaram a

vida driblando problemas financeiros crônicos para, depois de sua morte, os seus

trabalhos se valorizarem continuamente, sendo disputados “a tapa” nos leilões e

alcançando valores milionários.

- 139 –

Além de um protótipo a têmpera, Van Gogh fez duas

versões em óleo sobre tela. Esta é a primeira delas.

- 140 –

- 1890 -

“Paisagem próxima a Auvers”

Óleo sobre tela – 73,5 x 92 cm

(Período de Auvers-sur-Oise)

O estado clínico de Van Gogh oscilava a todo momento, passando

facilmente de um momento de calma para um período de agitação ou de

descontrole total.

Em momentos de aparente equilíbrio, lhe era permitido sair dos limites do

hospital, sempre com um acompanhante, para buscar lugares pitorescos que

pudesse reproduzir em suas telas.

Foi numa dessas ocasiões que ele pintou, com a voracidade de sempre, a

tela “Paisagem próxima a Auvers” em que o artista consegue captar um

ambiente tranquilo e até bucólico, revelando, com habilidade, a vida no campo.

No primeiro plano, o mato rasteiro; ao centro da tela, uma casa simples,

denotando tratar-se de uma roça de humilde lavrador, e uma parte da colheita

amontoada, ao lado de canteiros ainda em desenvolvimento; ao fundo, mais

plantações e árvores delimitando a propriedade; por fim, o infinito céu, permeado

de nuvens, céu que Van Gogh consegue tornar majestoso com umas poucas e

descompromissadas pinceladas.

São cenas que se tornam recorrentes nestes últimos meses do artista. Como

ele mesmo disse, Auvers é majestoso e ele, como ninguém, conseguiu capturá-

lo, com maestria, em suas telas

- 141 –

“Paisagem próxima a Auvers”

- 142 -

- 1890 -

“Igreja em Auvers”

Óleo sobre tela – 94 x 74 cm

Esta pintura foi concluída em 5 de junho de 1890, dois meses antes de sua

morte, e é representativa dos poucos meses em que Vincent passou no sanatório

dirigido pelo dr. Gachet, onde produziu seus mais bem elaborados trabalhos. É

o próprio artista que descreve o quadro:

"Resultou também em um grande quadro da igreja da aldeia, no qual

aparece o edifício violeta, em frente a um céu liso, azul profundo de

puro colorido; os vitrais em cor são como manchas de ultramarino,

o telhado é violeta e em parte laranja. No primeiro plano algo de verde

viçoso e areia em tom rosa batida pelo sol. É quase como os estudos

que fiz em Nuenen da velha torre e cemitério, só que a cor agora é

mais expressiva e rica.”

Mais do que a genialidade como pintor, a importância de Van Gogh cresce

pela influência que sua obra exerceu sobre os novos movimentos da Vanguarda

Europeia, que, por sua vez, conduziram à formação da pintura moderna. Nascido

artisticamente no Realismo, ele aderiu ao Impressionismo e rapidamente

evoluiu, com sua tendência para cores vívidas e fortes, para um estilo que ficou

conhecido mais tarde como Pós-Impressionismo. Sua compulsão para o

exagero nas cores foi inspiração para o surgimento do Fauvismo e, por fim, a

distorção em algumas de suas obras (de que é exemplo a Igreja em Auvers-sur-

Oise), foi inspiração para o Expressionismo.

Sua carreira foi curta, em torno de dez anos, mas viveu uma década a cada

ano, adiantando-se no tempo, produzindo incessantemente e, deixou um acervo

volumoso, numa variedade de formas e estilos característicos de seu

temperamento irregular. Na foto abaixo, a Igreja; na página 143, a pintura.

- 143 –

- 144 –

- 1890 -

“Camponesa com chapéu de palha”

Óleo sobre tela – 92 x 73 cm

(Período de Auvers-sur-Oise)

Desde o início de sua carreira, com “Os comedores de batatas” até suas

últimas obras, Van Gogh sempre deu atenção à dura vida do campo, retratando

rostos rudes, trabalhados pelo sol e o trabalho pesado, ou belas camponesas,

que não conseguem esconder a tristeza no olhar, pela vida que não escolheram

mas que é uma sina à qual não podem escapar.

- 145 –

- 146 –

“Casas de mineiros” (pintura) e

“Jardim atrás das casas” (desenho)

- 147 –

- 1889 -

“Menino atando feixes”

Óleo sobre tela – 44 x 32,5

Residuo do período de Saint Remy

- 148 –

- 1889 - “Pietá”

Óleo sobre tela – 73 x 60,5

Residuo do período de Saint Remy

Van Gogh baseou-se em uma litografia de pintura feita por Eugène

Delacroix. É a imagem da Virgem Maria lamentando a morte de Cristo e, embora

inspirada na estampa, nada tem a ver com ela, pois Van Gogh fez sua própria

interpretação do original, acrescentando as cores de sua própria paleta,

assinando embaixo.

- 149 –

- 1890 -

“Prisioneiros em exercício”

Óleo sobre tela – 80 x 64 cm

(Período de Auvers-sur-Oise)

Trata-se de um dos últimos trabalhos de Van Gogh, inspirado em uma

litografia de Gustave Doré.

- 150 –

- 1890 -

“Seara com gralhas”

(Um réquiem para um gênio)

Óleo sobre tela – 50,5 x 105 cm

(Período de Auvers-sur-Oise)

Este é o último quadro de Van Gogh, representando

significativamente, como um sinal fatalista do destino,

um campo pronto para a colheita e um bando de gralhas

(corvos) sobrevoando a seara, na iminência de atacar a

plantação.

Van Gogh terminou esta obra na manhã de 27 de julho

de 1890. À tarde do mesmo dia 27, pegou espingarda e foi

para o campo, a pretexto de espantar as gralhas (as

mesmas que acabara de pintar) colocando-as em fuga. Ao

invés disso, de propósito ou por acidente, atirou contra si

mesmo, morrendo dois dias após, nos braços do irmão

Theo.

Custa crer que se tratasse de morte premeditada, ao

invés de um acidente, próprio de quem não tem experiência

com armas de fogo. É precipitado concluir que, quem pintou

esta obra com ardor, iria, horas depois, pôr fim à própria

vida. Pintar o quadro racionalmente, como uma despedida,

exigiria sangue frio e racionalidade a toda prova.

Nada a ver com Van Gogh que não tinha esse sangue

frio e, menos ainda, era racional no seu comportamento.

Muito pelo contrário, sua vida era marcada por repentes de

calma ou de fúria, nada planejado, tudo aleatório.

- 151 –

O quadro completo, nas proporções originais

Detalhe: nuvens negras, anunciando a tormenta, ao lado de nuvens

brancas, lutando pelo bom tempo, contrastam com o amarelo da seara e

algumas pinceladas de verde-esperança para sinalizar o caminho.

- 152 –