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62 n° 27 - septembre 2006 LATITUDES tena de maçons, na acta da funda- ção da cidade de Huambo, depois Nova Lisboa. Quando tentei ligar os dois nomes e inquiri pela relação entre eles, houve alguém que os desligasse logo. Deixou de haver relação. No entanto o escritor Castro Soromenho era filho desse gover- nador Castro Soromenho que tinha ido para Moçambique aos dezoito anos (amargurado porque a família se recusou a que frequentasse o curso de Direito), que passou a Angola num tempo em que uns quantos enriqueceram tanto e voltou para Portugal onde morreu na miséria. Fernando Mourão revela que a obra Aventura e Morte no Sertão foi escrita a pedido do editor para pagar as despesas feitas com a doença e o funeral do pai do escri- tor. Castro Soromenho, o fumador a quem eu dei um cigarro, tinha cinquenta e quatro anos e andava a tirar um curso de sociologia na Sorbonne com Georges Balandier. Até ao fim da vida, que ocorreu quatro anos depois, escreveria ainda um romance imerecido, A Chaga, publicado postu- mamente. Castro Soromenho nasceu em Moçambique em 1910, fez a instrução primária e a secundária em Portugal, aos quinze anos foi para Angola onde frequentou o Curso da Escola Superior Artur de Paiva, onde teve como professor Gastão de Sousa Dias, autor imprescindível no conhecimento da histó- ria colonial. Aos dezassete anos, Castro Soromenho arran- jou emprego na Diamang (Companhia dos Diaman- tes de Angola) como angariador de mão de obra e, quando atingiu a hospital, está proibido de fumar, seu garoto!”. É um pouco tarde para iludir o vocabulário. O embaixador desesperado era Câmara Pires, ines- quecível revolucionário português, filho e neto de angolanos, natural de Luanda, cabelo branco, incon- fundível elegância, que falava com enlevo e elevação da revolução republicana de Lisboa em que parti- cipara na juventude, da luta contra os monárquicos ressentidos agrupa- dos por Paiva Couceiro e era um assumido embaixador dos movi- mentos de libertação em Paris com o apoio de Paulo Jorge Teixeira, activista da Casa dos Estudantes do Império. O envenenador era eu e o fuma- dor era Castro Soromenho. Na cidade onde medrei - para usar uma expressão dele - havia uma rua com o nome de Artur Ernesto de Castro Soromenho, antigo governador do Congo, Huíla, Bié, Moxico, Lunda. Mas é também a segunda assinatura, depois da de Norton de Matos, entre uma trin- “D á cá um cigarro!”, disse ele em voz baixa. Estávamos sentados na cama de Emanuel, sobrinho do embaixador, que servia de sofá durante o dia. Estendi-lhe o pacote de “gauloises” e, com duas panca- das secas com os dedos, a ponta do cigarro elevou-se no quadrado de prata rasgada. Ele estendeu a mão muito branca, tirou o cigarro que enfiou logo nos lábios finos e apon- tou o queixo ossudo para mim. Acendi-lhe o cigarro. Ele aspirou o fumo com prazer, olhou a ponta incandescente e deixou sair uma baforada longa e lenta, como no tempo em que fumava da mutopa. O grito veio da porta da sala: «Estás a envenenar o velho?!» - era a voz do embaixador. Ao grito, Mercedes, Manuela, Alfredo, Artur, Morais, olharam para mim. O “velho” mirrado chupava o cigarro, indiferente à conversa, com um sorriso divertido, olhos piscos atrás das lentes grossas que lhe escon- diam o rosto esguio. “Saiu agora do Companheiro de Caminho: Castro Soromenho António Faria* Peinture de Sonia Prieto

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Page 1: Companheiro de Caminho: Castro Soromenho · dos por Paiva Couceiro e era um assumido embaixador dos movi-mentos de libertação em Paris com o apoio de Paulo Jorge Teixeira, activista

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tena de maçons, na acta da funda-ção da cidade de Huambo, depoisNova Lisboa. Quando tentei ligar osdois nomes e inquiri pela relaçãoentre eles, houve alguém que osdesligasse logo. Deixou de haverrelação. No entanto o escritor CastroSoromenho era filho desse gover-nador Castro Soromenho que tinhaido para Moçambique aos dezoitoanos (amargurado porque a famíliase recusou a que frequentasse ocurso de Direito), que passou aAngola num tempo em que unsquantos enriqueceram tanto evoltou para Portugal onde morreuna miséria. Fernando Mourão revelaque a obra Aventura e Morte noSertão foi escrita a pedido do editorpara pagar as despesas feitas com adoença e o funeral do pai do escri-tor.

Castro Soromenho, o fumador aquem eu dei um cigarro, tinhacinquenta e quatro anos e andava atirar um curso de sociologia naSorbonne com Georges Balandier.Até ao fim da vida, que ocorreu

quatro anos depois,escreveria ainda umromance imerecido, AChaga, publicado postu-mamente.

Castro Soromenhonasceu em Moçambiqueem 1910, fez a instruçãoprimária e a secundáriaem Portugal, aos quinzeanos foi para Angolaonde frequentou o Cursoda Escola Superior Arturde Paiva, onde teve comoprofessor Gastão de SousaDias, autor imprescindívelno conhecimento da histó-ria colonial.

Aos dezassete anos,Castro Soromenho arran-jou emprego na Diamang(Companhia dos Diaman-tes de Angola) comoangariador de mão deobra e, quando atingiu a

hospital, está proibido de fumar,seu garoto!”. É um pouco tarde parailudir o vocabulário. O embaixadordesesperado era Câmara Pires, ines-quecível revolucionário português,filho e neto de angolanos, naturalde Luanda, cabelo branco, incon-fundível elegância, que falava comenlevo e elevação da revoluçãorepublicana de Lisboa em que parti-cipara na juventude, da luta contraos monárquicos ressentidos agrupa-dos por Paiva Couceiro e era umassumido embaixador dos movi-mentos de libertação em Paris como apoio de Paulo Jorge Teixeira,activista da Casa dos Estudantes doImpério.

O envenenador era eu e o fuma-dor era Castro Soromenho.

Na cidade onde medrei - parausar uma expressão dele - haviauma rua com o nome de ArturErnesto de Castro Soromenho,antigo governador do Congo, Huíla,Bié, Moxico, Lunda. Mas é tambéma segunda assinatura, depois da deNorton de Matos, entre uma trin-

“D á cá um cigarro!”, disseele em voz baixa.Estávamos sentados na

cama de Emanuel, sobrinho doembaixador, que servia de sofádurante o dia. Estendi-lhe o pacotede “gauloises” e, com duas panca-das secas com os dedos, a ponta docigarro elevou-se no quadrado deprata rasgada. Ele estendeu a mãomuito branca, tirou o cigarro queenfiou logo nos lábios finos e apon-tou o queixo ossudo para mim.Acendi-lhe o cigarro. Ele aspirou ofumo com prazer, olhou a pontaincandescente e deixou sair umabaforada longa e lenta, como notempo em que fumava da mutopa.

O grito veio da porta da sala:«Estás a envenenar o velho?!» - era avoz do embaixador. Ao grito,Mercedes, Manuela, Alfredo, Artur,Morais, olharam para mim. O“velho” mirrado chupava o cigarro,indiferente à conversa, com umsorriso divertido, olhos piscos atrásdas lentes grossas que lhe escon-diam o rosto esguio. “Saiu agora do

Companheiro de Caminho: Castro Soromenho

António Faria*

Peinture de Sonia Prieto

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maioridade, tornou-se funcionárioda administração colonial.Condenado a tal futuro - comobranco administrativo seria JoaquimAmérico (Terra Morta) ou AntónioAlves (Viragem), um usurpadorobstinado, um falhado, um carce-reiro entre degradados - começou aescrever o que ouviu ou viu nassuas deambulações, histórias ehistória da Terra Negra.

Ao contrário do que aconteciacom a maior parte dos colonos,Castro Soromenho lia, estudava.Afinal as suas raízes não estavamno passado mas na meta que procu-rava alcançar. Nada tinha aver coma dimensão católica da política colo-nial incentivada pelo fracasso dasmissões laicas civilizadoras que M.Borges Grainha impulsionou notempo da República. A ignorânciaera inquietante.

Saiu de Angola ao fim de dezanos de permanência consecutiva enunca mais voltou. Ao chegar aLisboa em 1937, Castro Soromenhojá tinha feito jornalismo em Luandae publicado o seu opúsculo delendas africanas. Em Lisboa, oEstado Novo incentivava a LegiãoPortuguesa, criada no ano anterior,com vertentes pro-militares e a suarede especial de informadores polí-ticos para controle das actividadescívicas.

Ainda em 1937 Castro Soromenhofoi como correspondente do sema-nário Humanidade para o Rio deJaneiro, donde regressou no anoseguinte como jornalista profissio-nal. Nos círculos jornalísticos e lite-rários da capital portuguesa encon-trou como companheiros, quasetodos mais velhos e desenraizados,agrupados em torno de um ideárioanarco-sindicalista, Ferreira deCastro, Julião Quintinha, que publi-cou Africa Misteriosa e uma biogra-fia de Mouzinho de Albuquerque.

Porque a República só existiupor assegurar o lugar político dePortugal face às colónias africanase o Estado Novo instaurou a ideiade império colonial depois de o reide Itália se tornar imperador daEtiópia (1936), com Benito Mussolinia assumir a pasta de Ministro deÁfrica, o meio literário portuguêsnão era indiferente aos problemas

coloniais. Havia escritoresque enfrentavam a ignorân-cia, a iliteracia, o fracassoinevitável, escrevendoromances com temas colo-niais. Houve, pode dizer-se, uma tentativa para criaruma tradição literária nessecampo.

Eram romances queresultavam de uma vivên-cia circunstâncial, o quenão aconteceu com CastroSoromenho. Ele tinha a suaexperiência de administra-tivo mas tinha também ousobretudo a experiênciadramática do pai, íntima,comprometida, muito maiselevada, forte e determi-nante, de alto funcionárioque o Estado Novodestruiu.

A partir de 1939 come-çou a colaborar com OMundo Português, Revistade Cultura e Propaganda, de Arte eLiteratura Coloniais, lançada em 26de Janeiro de 1934 pelo Secretariadode Propaganda Nacional e pelaAgência Geral das Colónias. Osobjectivos pedagógicos das publi-cações do Estado Novo implicavama tradução dos artigos em francês einglês para difusão no estrangeiro.

Durante a Guerra Civil deEspanha, durante a 2ª GuerraMundial, viveram-se em Portugalsituações muito controversas. Porpudor é preferível ter em atençãouma descrição de Lisboa feita porAntoine de Saint Exupéry, que assis-tiu a uma das maiores operações depropaganda organizadas peloEstado Novo em Lisboa, junto aorio Tejo, a Exposição do MundoPortuguês: “Sentia pesar sobreLisboa a noite da Europa habitadapor grupos errantes de bombardei-ros, como se de longe tivessem fare-jado este tesouro. Mas Portugalignorava o apetite do monstro.Recusava acreditar nos maus sinais.Ousariam esmagá-lo por causa doculto da arte? Portugal tinha expostotodas as suas maravilhas. Ousariamesmagá-lo por causa das suas mara-vilhas? Portugal mostrava os seusgrandes homens. Em vez de umexército, em vez de canhões, contra

a ferocidade do invasor tinhaerguido todas as sentinelas depedra: poetas, viajantes, conquista-dores. Em vez de exércitos e decanhões todo o passado de Portugalbarrava o caminho. Ousariamesmagá-lo por causa da herança deum passado grandioso?”

A Agência Geral das Colóniaspremiou sucessivamente Nhari(1939), Homens sem Caminho(1942), Rajada (1943). Isso nãoevitou a que a sua perspectiva polí-tica fosse amadurecendo no sentidoinverso da propaganda e dos inte-resses do Estado Novo, que santifi-cava como raízes da identidadenacional a talassocracia de pédescalço designada Império ColonialPortuguês.

A amizade com escritores dogrupo da revista Presença, entre osquais Adolfo Casais Monteiro, aquem dedicará Terra Morta, foiimportante para um autodidata,embora austero e sedento de apuroformal.

Castro Soromenho não era umhomem de sociedade, nem lhe agra-davam os grupos literários, comoressalta da sequência da sua obra,com um percurso único na litera-tura portuguesa. Pouco ou nada tema ver com o ideário republicano,

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da exacta degradaçãotrágica e da mediocri-dade, nunca antesconseguida pelo escri-tor.

Como nenhum outroescritor português, CastroSoromenho pressentiu ofim histérico ou o aban-dono cobarde dos ho-mens de armas, numtempo em que aindaeram heróis com direitoa estátua, a insegurançae o medo perante umarealidade tão vividacomo ignorada. Viragemcontém o testemunhodesse modo de estarnoutro mundo.

O colonialismo por-tuguês era medíocrecomo a luta que susci-tara para o derrubar erafalha de força própria.Sobrevivia dos apoiosque podia obter emfunção de proximidadespolíticas e culturais

estranhas. Foi erigida à imagem esemelhança do poder colonizador.Essa força imitativa dos coloniza-dos, com os seus estreitos horizon-tes, já estava nos romances dele,por mais que o próprio autor serecusasse a admitir.

Castro Soromenho era brancoou, como então se denominavamos argelinos brancos em França,com o inevitável galicismo, um“pied-noir”. Nada nem ninguém lhedava o direito ao desejo de procu-rar um espaço geográfico que sóterá existido na infância, ondevoltou uma vez para despertar e sairpara cumprir o seu destino, talcomo nos seus romances.

Manuel Lima, que se afastoucedo da luta armada (foi o primeirocomandante em chefe das forçasarmadas de libertação nacional)para enveredar pela vida acadé-mica, disse-o na sua tese de douto-ramento, em Lausanne, vinte anosdepois, quando lembrou “o sofri-mento moral do autor de Viragemnão foi menor por escrever numalíngua de valor internacional muitorestrito, sofrendo por isso de isola-mento mau grado os esforços da

dispersos sobre os viajantes portu-gueses do século XVIII e XIX, sobre-tudo Gamito, Henrique de Carvalho,que chegaram à mussunda doMuatiânvua, no coração de África.

Além dos contos e romances deua sua própria versão dos relatos dosviajantes e aspectos etnográficos. Asua grande obra na ficção éViragem, da qual existe traduçãofrancesa; constitui um apuramentode Terra Morta, sem os pormeno-res descritivos, de rara visualidade,síntese e beleza. É aqui que asdisputas internas no universo civili-zado dos brancos não passa dumaatracção sexual entre um adminis-trativo e uma mulher branca inadap-tada, ex-corista em Lisboa, casadacom o chefe de posto ausente pordoença, necessária à consumaçãodo poder como usurpação dumespaço físico, solitário, brutal,nauseante.

Também as disputas no mundodos colonizados não passam do inte-resse pelas galinhas, pela mulher,pelo lugar do vizinho. A usurpação,o sentido bíblico do ciúme do reiDavid pelo general hitita Uria, porcausa de Betsabé, é posta ao nível

entre a saudade e o fracasso de umarevolução inconsequente. A expe-riência e a idade afastaram-no dairritante ignorância dos filhos-famíliae pedantes, literatos e artistas plásti-cos mais voltados para o que ouviamdizer em França. Castro Soromenhonão conhecia Paris e vivia em Lisboacom o sentido em África, a extensãoda Europa ignorada.

Tinha todas as razões para serum homem doente. Quis ser jorna-lista por amor à verdade íntima eacabava por escrever fantasiasfundadas nas lendas que ouviradesde criança. Eram muitas frustra-ções acumuladas. A necessidade deescrever iluminou-lhe o itinerário.

Em 1960, numa entrevista publi-cada por Fernando Mourão emLisboa, Castro Soromenho disse quenão andou na Lunda a recolhermaterial. Mas vinte anos antes dedi-dou Os Mistérios da Terra aos seuscompanheiros de posto no Cuangoque o acompanharam nessas pesqui-sas sobre ritos iniciáticos da Lunda.

Ouvi-o discutir amigavelmenteem Paris com Alfredo Margaridosobre questões etnográficas e histó-ricas, que ele escrevera em artigos

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editora Gallimard que tentou revelá-lo ao público francês”, porque a suaescrita mobilizava os espíritos emtorno dos ideais libertários. Mascomo Castro Soromenho era “pied-noir”, era português e o nome dePortugal evocava-lhes a imagem deum país colonialista, fascista e dita-torial, mantinham-no de lado. A máconsciência dos franceses face àssuas colónias acentuava o apoio aessa “negritude” fictícia.

O estudo de Roger BastideL’Afrique dans l’oeuvre de CastroSoromenho terá valido de algumacoisa pela sua excepcionalidadeapenas em meios restritos. Para serafricano era preciso ser negro. Entreum branco revolucionário e umnegro ou mulato pedante, o «milieu»francês não hesitava.

A enfadonha ostentação emtorno da “negritude” não impediutotalmente que a obra do escritorbranco fosse apresentada. O geloanti-racista derreteu com a traduçãode Terra Morta (Camaxilo, naedição de Présence Africaine, comprefácio de Roger Bastide), mas foimarcante a “decepção” pela bran-cura epidérmica do seu autor.

E foi nessas circunstâncias queCastro Soromenho participou no 1ºCongresso Internacional dos Escritorese Artistas Negros. Castro Soromenhocompreendeu as razões dos outrose superou essas e outras decepções,terá visto nisso a reacção natural daafirmação de culturas nacionalistas,de auto-estima e amor-próprio.

A situação repetiu-se em 1962,numa outra manifestação culturaldo mundo africano, ao qual oromancista aderiu, o Congresso dosEscritores Afro-Asiáticos, que serealizou no Cairo, na África ondenasceu a cilivilização branca.

Ele foi, segundo Manuel Lima,“imperdoavelmente, o grande esque-cido”.

Castro Soromenho não deixou deconsiderar também o que lhe fizeramentão como uma injustiça e o quantoisso o magoou. Mas a sua obra literá-ria, com uma exactidão surpreen-dente, estava feita e publicada. Só aexactidão, na arte, na literatura, naciência, na política, no pensar, érevolucionária. Ele tinha chegado láantes de ter atingido os cinquenta

anos. Os que o rodeavam provavel-mente nunca teriam interesse em láchegar, como ficaria demonstradomais tarde.

O escritor perseguido no seupaís, a vegetar no exílio, ignoradoe evitado por indivíduos sinuososque afinal pouco mais tinham doque a obra dele como apoio de umacultura nacional, não lhe restavammuitas alternativas.

Castro Soromenho, além deromancista, foi um estudioso dahistória de Angola, de que resultouum conjunto de trabalhos publica-dos esparsamente. Nela se docu-mentou para cimentar as ideias queestão na base da sua construçãoromanesca.

Sentados naquela cama, na casasuper-aquecida do embaixadorCâmara Pires, na rua HippolyteMaindron, disse-lhe uma tarde quequeria realizar um filme a partir doseu romance Viragem, a sua melhorobra, mas só o podia realizarquando eu tivesse quarenta anos.Ele fitou o gaiato perante essa mira-bolante explicação, assim tão pron-tamente calendarizada. De facto!

“É um romance de grande matu-ridade. Quero ter maturidade parao poder realizar”, expliquei eu coma maior convicção. Castro Soromenhoescondeu o riso, passou a mãocondescendente pela rala cabeleirabranca e assentiu enfim com ummonossílabo.

Estava na Huíla quando soubeque Castro Soromenho morreu noBrasil em 18 de Junho de 1968.Vinha numa notícia minúscula numjornal de Luanda. Nesse tempo jáhavia voo diário para o Lubango. Ocampo de aviação já não era naMapunda mas na Mucanca, além daMachiqueira, o bairro fundado cemanos antes pelos camponesespobres da Madeira em homenagemao Machico. As notícias chegavamdevagar, mesmo as más.

Fiquei a olhar durante unsinstantes a “ponta da serra” queresguarda a cidade onde os “chico-ronhos” haviam plantado uma imita-ção do Corcovado, do Rio deJaneiro, uma figura de braços aber-tos em cimento e fui sentar-me numbanco do jardim sem memória denada.

Quando voltei para casa, emfrente do Liceu Diogo Cão, folheeios seus livros, que sempre meacompanharam e comecei a escre-ver com os olhos secos um estudosobre essa leitura. Essa reflexão,recusada depois pelos editores, inti-tulava-se Gente do Fim do Mundo.Em Torno de Viragem, apenas anun-ciava o fim, apesar do aumentoextraordinário da população branca.Pouco depois fui para Portugal,situação que se tornou definitiva. Oque era preciso dizer estava dito eescrito por Castro Soromenho.

A história passou ao lado detudo isso, ainda à espera que osportugueses recuperem o seupróprio tempo.

Em 1971 realizei um filme possí-vel, uma curta metragem, com a MariaElisa Domingues e o AlmerindoJamba, Omala Vangalange (Odescendente de Galangue), umalenda do Planalto que CastroSoromenho lembra na MaravilhosaViagem e que também é referidapelo padre Ernesto Lecomte, entreoutros.

Pouco antes de fazer quarentaanos procurei incessantemente ocontacto dos filhos que viviam noBrasil. Expliquei a situação e passa-dos uns quatro ou cinco anos, em1986, recebi a carta esperada, comuma explicação sensibilizada pelademora. A autorização assinadapelos descendentes de CastroSoromenho (deixara três filhosmenores: Fernando Valdemar, StellaSusana e Jorge Eduardo) que tinhamconseguido juntar-se com grandedificuldade para assinar a declara-ção.

Eu estava a rodar o filme OsFlagelados do Vento Leste nasmontanhas de Cabo Verde. SantoAntão é uma ilha feita de referên-cias históricas que vêm do tempode Tordesilhas, memórias dolorosase carinho acumulado sob a formade montanhas de profunda e espan-tosa serenidade. Também ali esti-vera Agostinho Neto preso político,com residência fixa (hoje diz-seprisão domiciliária). Saí desespe-rado pelos caminhos que vão paraalém da estrada empedrada que iade Porto Novo, com a carta na mãoe os olhos presos naquela corrente

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da dignidade daquela vertente dahistória portuguesa quando isso eraimpossível?

Carlos Ervedosa, que era umangolano branco, activista da Casados Estudantes do Império, arqueó-logo, ensaísta e memorialista, feridopor ter visto fugir aqueles quedesignou por sua “tribo” e morreude amargura na terra do tetravô, emSabrosa (Vila Real de Trás osMontes), escreveu que CastroSoromenho lhe terá dito que seconsiderava um “escritor angolano”.

Manuel Lima, que é um acadé-mico português, negrotambém nascido em Angola,embora mordaz quanto aosescritores mulatos que elepróprio designa, reavivandoa linguagem colonial, por“indígenas”, por se teremcurvado para servir aberta-mente o Estado Novo, MárioAntónio Fernandes deOliveira e Geraldo BessaVictor (o primeiro era umacadémico e o segundoum reputado advogado),ambos enterrados em cemi-térios de Lisboa, é muitoclaro quanto à posição deCastro Soromenho, comquem conviveu nos anos

magros de Paris e a quem atribuiperemptoriamente uma intençãocategórica: «não tendo nunca renun-ciado à sua condição de escritorportuguês».

Escrever duas linhas sobreCastro Soromenho é um acto muitoredutor. Ele sozinho representa umaluta no âmbito da cultura anfiboló-gica onde, apesar disso, se dignificaa relação entre os povos. A únicapalavra que traduz o equilíbriopossível (estético e político) por elealcançado na sua obra tem umnome: Fraternidade.

Numa entrevista que concedeua Fernando Mourão, publicada narevista Cultura, em Lisboa, em1960, antes de partir definitivamentede Portugal, Castro Soromenho dá-lhe os traços esenciais da suabiografia e de um projecto jácumprido: “Africano nascido emMoçambique mas medrado emAngola desde mal saído do berço,a Angola devo a minha vida de

acabado com a censura e implan-tado uma democracia em Lisboa.Que interessava tudo isso aossempre alheios proto-revolucioná-rios, reviralhistas, oposicionistas eaos seus inevitáveis descendentesque ocupam as estruturas adminis-trativas e financeiras onde tudoemperra?

Tentei alguém que quisesseavançar nesse projecto, na Áfricado Sul, ainda no tempo do apar-theid, no Congo, quando falei noassunto ao embaixador ÁlvaroGuerra e até, em certo ponto,

Angola - onde era mais preocupantea guerra civil do que tudo o resto,incluindo as “amizades” oportunas,o que impôs a lei do silêncio.

Quero um dia poder cumpriressa homenagem ao trabalho doescritor, mesmo com tanto atraso.Castro Soromenho elevou a situa-ção colonial - a característica medio-cridade e arbitrariedade de compor-tamentos, disfarçados de prudênciaou dissimulação hierarquizada, quepassou despercebida ou foi omitidapelos que a viveram - ao nível dogrande romance universal, comosoube reconhecer Roger Bastide.

Estando os portugueses desinte-ressados (ou receosos ou alheios)da colonização e da descolonizaçãograças à publicação de grandesrelambórios literários por historia-dores e cronistas catadores depormenores de secretaria, comoconvencer alguém que um escritor,esmagado na literatura portuguesa,foi o único a manter acesa a chama

de mar azul cantado em todas asmornas e catapultou a históriamarinha de Portugal para o Brasil epara o Mundo, sem pensar em nada.

O filme Viragem não foi feito.Como explicar isso sem revelar umPortugal absurdo onde a “culturaportuguesa” é administrativamentemais controlada que no tempo doEstado Novo? Adaptei também odiário do viajante, que ele adaptouao escrever a Expedição ao País doOiro Branco, para fazer emMoçambique. Inutilmente. A espe-rança não é a última coisa a morrer.

O romance Viragemtinha sido anunciado comoutro título: Desterrados.Mas esse era o nome daespantosa escultura desco-berta no interior domármore por Soares dosReis, um jovem suicida doPorto. A proximidade entreo escultor e o escritor, noponto que dá sentido àrevolta gerada no exílioíntimo, é extraordinária.

Numa carta a ManuelLima, publicada por este,datada do Havre, 16 deJunho de 1965, quandoestava de partida para aAmérica do Sul, escreveu:“a vida de exilado, paredes meiascom a miséria, não me desmorali-zam, nada de horizontes negros,mas deu-me uma lucidez por vezestão fria que me faz mal aos nervos...Por tudo e por nada a análiseimpõe-se-me. Os homens e a vidareduzidos aos seus verdadeiros limi-tes, eis o que me dá este estado delucidez. Um homem só face aoshomens e à vida. Ela mesmo a ver-se por dentro até às profundidadesdo seu ser... E ver o que a vida fazdos homens. Assim compreendo-osmelhor, mais do que nunca, sou seucompanheiro”.

Castro Soromenho voltava aoBrasil, como queria «voltar», séculoe meio atrás, o Abade Correia daSerra, que nunca lá esteve. Para osportugueses o Brasil foi, durantecinco séculos, a rota da Índia ou ocaminho dos homens sem caminho.

Anos depois, os jornais publici-taram que os militares portuguesestinham posto fim à guerra colonial,

Castro Soromenho

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escritor. Quando em 1937 abando-nei Angola, estava longe de vir aser um escritor. Interessado nojornalismo, profissão que exercilargos anos, dele me ocupei. Foiaqui em Portugal que nasceu oescritor, depois de reviver a minhavida em Angola, fazendo tábua rasade ideias feitas e dando-me contade erros de interpretação origina-dos pelo clima social vivido desdea infância numa sociedade emformação, heterogénea pela suaprópria natureza, sem outras raízesque não fossem os seus interessescircunstanciais, e sempre marginal(...) E nunca mais deixei de estar emAngola, embora habitando em Lisboaou no Rio de Janeiro, em Paris ouem Buenos Aires. Debruçado sobrea minha vida africana, servindo-meda minha profunda experiência eda experiência dos homens que melevaram a meditar sobre a sua vidae no seu destino, procurei estudá-los, situando-os na sua idade histó-rica, no condicionamento do seucampo económico-social e nosplanos das suas relações humanas.O homem em face do destino e noslimites da sua condição humana”

* * *

Da bio-bibliografia estabelecidapor Fernando Mourão, excluindotraduções e as várias re-edições dostrabalhos principais, retenham-sede Castro Soromenho as seguintesobras: Lendas Negras, Lisboa, EditorialCosmos (Cadernos Coloniais), 1936.Nhari, Porto, Civilização,1938. “Calunga,o Mar”, O Mundo Português, Revistade Cultura e Propaganda, de Arte eLiteratura Coloniais, nº 6 pp. 245-250, Lisboa, 1939. “De um diário colo-nial: o direito de posse”, ibidem,Lisboa, 1939, pp. 379-383. Imagensda Cidade de São Paulo de Luanda,Lisboa, Cosmos (Cadernos Coloniais),1939. Noite de Angústia, Porto,Civilização, 1939. “A Lunda Negra:queda do sobado de Caungula”, OMundo Portugês, Lisboa, 1940.“Mucanda”, ibidem, 1941. “MusicaNegra: instrumentos de música afri-cana”, ibidem, 1940. “Apontamentosetnográficos: lundas, sua vida,ibidem, 1941. Homens sem Caminho,Lisboa, Portugália, 1941. “Apontamentos

etnográficos: o significado dospenteados africanos”, O MundoPortuguês, Lisboa, 1942. “Origemdas tribos lunda e quioca”, ibidem,1942. “Silva Porto”, ibidem, 1942.“Singularidades do mundo afri-cano”, A Esfera, Lisboa, Junho 1942.“A árvore sagrada”, Atlântico,Lisboa, 1943. Aventura e Morte noSertão: Silva Porto e a Viagem deAngola a Moçambique, Lisboa,Livraria Clássica Editora, 1943. “Aliteratura dos exploradores portu-gueses: Lacerda e Almeida, explo-rador do Cazembe”, O MundoPortuguês,1943. “A literatura dosexploradores portugueses: SilvaPorto, descobridor do Zambeze”,ibidem, 1943. “A literatura dos explo-radores portugueses: Henrique deCarvalho, historiador do povolunda”, ibidem, 1943. “A literaturados exploradores portugueses: omajor Gamito na África Austral”,ibidem, 1943. “A literatura dosexploradores portugueses: o explo-rador Serpa Pinto”, ibidem, 1943.“A literatura dos exploradoresportugueses: Capelo e Ivens e aviagem à contracosta, ibidem, 1943.Rajada e Outras Histórias, Lisboa,Portugália, 1943. Sertanejos deAngola, Lisboa, Agência Geral dasColónias, 1943. A Expedição ao Paísdo Oiro Branco, Lisboa, LivrariaClássica Editora, 1944. “A lenda dolago carumbo”, José Osório deOliveira, Lisboa, A.G.U., 1944.Mistérios da Terra, Porto, EditoraEducação Nacional, 1944. Calenga,contos, Lisboa, Inquérito, 1945. AMaravilhosa Viagem dos ExploradoresPortugueses, ilust. Júlio Pomar,Lisboa, Editorial Terra, 1946. AMaravilhosa Viagem dos ExploradoresPortugueses, Lisboa, Arcádia, 1961.“Wenceslau de Morais”, João GasparSimões, Perspectivas da LiteraturaPortuguesa do Século XIX, Lisboa,Atica, 1948. Terra Morta, Rio deJaneiro, Casa dos Estudantes doBrasil, 1949. Samba. A voz daEstepe, Lisboa, Fomento dePublicações, 1956. Viragem, Lisboa,Ulisseia, 1957. Histórias da TerraNegra, com estudo introdutório deRoger Bastide, Lisboa, Gleba, 1960.“Portrait: Jinga, reine de Ngola etMatamba”, Présence Africaine, nº42, Paris, 1962. A Chaga, Rio de

Janeiro, Editora Civilização Brasileira,1970 (edição póstuma).

De acordo com a mesma biblio-grafia estabelecida por FernandoMourão, após o regresso de Parisao Brasil, em Dezembro de 1965parte para São Paulo. Na Faculdadede Filosofia, onde regeu “Introduçãoà Sociologia da África Negra” de 1966a 1968, Castro Soromenho elaborouos seguintes trabalhos académicos:Introdução ao estudos histórico-sociológico sobre a fundação daColónia de Angola, Centro deEstudos Africanos , USP, 1966.

Lunda, da formação do impérioàs fronteiras coloniais, C.E.A.,U.S.P., 1967. Estudo sobre a rebe-lião na Lunda nos anos 20 (a partirde um relatório inédito do pai) �

* Doutorado em Cultura Portuguesa.Investigador do Centro de Estudos deHistória Comparada (U. L.)

Résumé

Les traits les plus saillants de lavie de Castro Soromenho, écrivaind’origine mozambicaine qui sesentait avant tout inspiré par lasociété angolaise au sein de laquelleil avait obtenu un de ses premiersemplois, sont retracés avec beau-coup d’émotion et une riche docu-mentation par l’auteur. Celui-ci,grand admirateur de son œuvreromanesque, lui avait très tôtannoncé son intention d’adapter aucinéma son roman Viragem (1957),mais lorsqu’il s’est senti capable del’entreprendre, des obstacles maté-riels et bureaucratiques se sontinterposés.

67n° 27 - septembre 2006 LLAATTIITTUUDDEESS