como hitler pôde acontecer

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Novembro 2003 Como Hitler pôde acontecer? O homem responsável pelo pior genocídio da história - quase 12 milhões em pouco mais de 12 anos - permanece um mistério. Somente agora, quase 60 anos após sua morte, novas pesquisas e documentos inéditos começam a trazer explicações consistentes. O que afinal se

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Matéria da super - Cômo Hitler pôde acontecer

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Novembro2003Como Hitler pde acontecer?O homem responsvel pelo pior genocdio da histria - quase 12 milhes em pouco mais de 12 anos - permanece um mistrio. Somente agora, quase 60 anos aps sua morte, novas pesquisas e documentos inditos comeam a trazer explicaes consistentes. O que afinal se passava na cabea de Hitler e dos alemes que o seguiram?

por Rafael Kenski

Eliminar o pas, nada menos que isso, era o objetivo do Exrcito alemo ao entrar na Unio Sovitica em 1941. Soldados procuravam lderes polticos e autoridades judaicas e os matavam na exata hora e local em que fossem descobertos. A ordem seguinte foi a de levar para campos de concentrao e exterminar todos os judeus e comunistas encontrados pela Rssia. Pouco tempo depois, a mesma diretiva passou a valer para todos os judeus da Europa. Milhes deles principalmente mulheres e crianas encontraram seu fim em cmaras de gs.

Em linhas gerais, a histria de como ocorreu o maior genocdio da histria bastante conhecida. Mas mesmo os estudiosos no assunto gaguejam ao tentar explicar por que Adolf Hitler, o homem por trs de toda essa tragdia, tinha objetivos to vis e como pde levar uma nao inteira junto com ele.

A pergunta que aparece na capa desta edio da Super revira a cabea dos pesquisadores desde antes de Hitler se matar no bunker de Berlim, em 1945. Nos ltimos dez anos, pesquisadores abordaram o problema de vrias formas e trouxeram novas respostas para essa pergunta. Em alguns pontos, destrincharam tudo o que j foi escrito sobre ele nos ltimos 60 anos e escolheram os caminhos mais lgicos e provveis. Em outros, desencavaram novos documentos aos quais at ento ningum havia dado importncia. Para completar, comearam a vir a pblico, a partir da dcada de 90, informaes guardadas confidencialmente nos arquivos das repblicas do Leste Europeu, da Rssia e dos Estados Unidos. Agora que essas pastas foram abertas, no acredito que venhamos a encontrar novas colees de documentos a respeito do governo de Hitler, a no ser por um incrvel golpe de sorte, afirma o historiador Christopher Browning, da Universidade da Carolina do Norte, Estados Unidos. O que voc vai ler a seguir um retrato das teses mais relevantes que emergem da interpretao desse material. No se espante se considerar que muitas das suas perguntas continuam sem resposta. bem possvel que o terror promovido por Hitler nunca possa ser explicado na totalidade.A ORIGEMH dois aspectos assustadores que logo vm cabea de quem tenta estudar a origem de Hitler. O primeiro como algum que foi um completo fracasso at os 30 anos de idade pode ter ascendido at se tornar um homem com poder para matar milhes e deixar a Europa em runas. O segundo descobrir qual a origem de tanto dio. Hitler era obcecado pelo anti-semitismo. A questo saber por qu, afirma Browning. A tarefa se torna especialmente complicada porque Hitler eliminou vrios dos documentos que poderiam jogar alguma luz sobre o assunto. Segundo William Patrick Hitler filho do meio-irmo do ditador seu meio-tio teria lhe dito: Ningum deve saber de onde venho.

A histria comea antes mesmo do nascimento de Hitler, com a teoria de que ele prprio poderia ter sangue judeu. Seu av paterno desconhecido. Segundo Hans Frank, o advogado do Partido Nazista que investigou a histria em 1930, Maria Schicklgruber, av de Hitler, trabalhava como empregada domstica na casa de uma famlia judia na poca em que ficou grvida do pai do ditador em 1937. A histria oficial diz que o av de Hitler era Johann Georg Hiedler, um dono de moinho com quem Maria se casaria cinco anos depois. Mas Frank teria descoberto um detalhe estranho: os patres judeus pagaram uma penso alimentcia criana at ela completar 14 anos e trocaram cartas com Maria nas quais indicam que o responsvel pela gravidez era o filho mais novo da famlia. Hitler, ao receber o relatrio de Frank, teria lhe fornecido outra explicao: seu pai era filho de Georg Hiedler, mas sua av fez a famlia judia acreditar que era responsvel pela gravidez, s para obter a penso. Em outras palavras: o lder nazista preferiu acusar sua av de chantagem sexual a admitir que pudesse ter sangue judeu.

Apesar do alvoroo que a histria causou ao vir a pblico em 1953, no existe nenhum documento que a comprove. difcil que algum dia ela se confirme: a regio da ustria onde esses fatos teriam ocorrido foi totalmente destruda pela guerra, talvez por ordem do prprio Hitler. Essa histria no comprovada foi usada como pedra angular para explicar a origem do anti-semitismo de Hitler, afirma o jornalista americano Ron Rosenbaum, autor do livro Para Entender Hitler, uma anlise das diversas teorias j feitas sobre o ditador. Muitos propuseram que o dio contra os judeus fosse a forma de eliminar de dentro de si mesmo a dvida sobre suas origens, mas essa permanece como apenas uma das muitas possveis explicaes para a obsesso do ditador.

H quem ressalte, por exemplo, o trauma que Hitler teria sofrido aos 18 anos, em 1907, quando Klara, sua me, morreu de cncer. O jovem Adolf teria culpado o mdico da famlia, um judeu, e tentado anos depois eliminar o que chamava de cncer do sionismo. Outros atribuem o anti-semitismo aos eventos ocorridos meses depois em Viena, quando Hitler foi rejeitado pela Academia de Artes Grficas. Ele, um aspirante a pintor sem nenhuma instruo formal em arte, teria ficado revoltado contra os judeus que trabalhavam no setor artstico da cidade. H at a histria, defendida pelo caador de nazistas criminosos de guerra Simon Wiesenthal, de que a demncia de Hitler tivesse origem em uma suposta sfilis, contrada de uma prostituta judia durante seus anos na capital austraca.

Nenhum terreno rendeu tantas explicaes para o dio de Hitler quanto sua sexualidade. Todos os tipos de deturpaes e orientaes sexuais j foram atribudos ao Fhrer lder em alemo sem que ningum saiba ao certo qual era o problema. raro encontrar um pesquisador de Hitler que no faa do segredo sexual uma varivel oculta da psique de Hitler, afirma Ron Rosenbaum. A acusao mais recente a de que Hitler foi um homossexual. Muita gente j suspeitava, mas a hiptese s se tornou sria em 2001, com a publicao de O Segredo de Hitler, do historiador alemo Lothar Machtan. Segundo o livro, Hitler circulava por pontos de encontro de homossexuais em Viena. Anos depois, teria sido visto tendo relaes com um de seus colegas nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Para Machtan, o dio contra judeus comeou como uma reao aos ataques que a imprensa judaica de Viena deu a um caso de homossexualismo ocorrido na cidade. Hitler, um protetor dos gays? No. Seu governo, segundo Machtan, manteve a perseguio aos homossexuais que j acontecia na Alemanha, mesmo que o ditador nunca tivesse se pronunciado contra eles.

Antes das revelaes de Machtan, as dvidas quanto sexualidade de Hitler giravam em torno de um possvel caso de monorquidia a idia de que ele teria um s testculo. Segundo o relatrio da autpsia do corpo carbonizado de Hitler feita pelos soviticos, havia apenas um desses rgos entre os restos encontrados. Mesmo que um mdico que analisou Hitler quando criana tivesse afirmado que os genitais dele eram normais, no faltou quem tentasse entender as implicaes desse suposto problema. Nos anos 60, vrios historiadores afirmaram que isso o teria levado hiperatividade, inadequao social, tendncias a exagerar, mentir e fantasiar. Houve at quem fizesse a conexo com outro mistrio: sua relao com a sobrinha Geli Raubal, filha de uma meia-irm de Hitler (o ditador teve cinco irmos e dois meios-irmos). Ela morava no apartamento de Hitler em Munique, onde foi encontrada morta em 1931, enquanto o lder nazista estava viajando. A verso oficial que ela se matou, mas a causa da morte objeto de disputa. H quem diga que foi Hitler quem a assassinou porque ela pretendia fugir com um amante (em algumas verses, judeu). Outros acham que a deformao sexual o tinha afetado de tal maneira que, incapaz de ter relaes sexuais normais, ele forava a sobrinha a uma srie de perverses (envolvendo at fezes e prticas masoquistas) que culminaram com o suicdio da moa.

Todas as teorias tm um grande grau de especulao. As evidncias para qualquer psicanlise de Hitler so muito fracas e acho que nunca conseguiremos explic-lo por essa via, diz Browning. Mesmo que fosse possvel achar a origem de seu anti-semitismo, ela no explicaria como ele conseguiu levar um pas inteiro a acompanh-lo nessa sanha sanguinria. A questo principal no a base da obsesso particular de Hitler. O problema histrico. A fixao de Hitler s se tornou importante porque ele teve uma carreira poltica, diz Browning.A FORMAOO dio de Hitler contra os judeus, apesar de mais radical que a mdia, no era nada de novo nem de estranho na Europa daquela poca. Hitler assimilou o clima poltico da ustria e comeou a culpar vrios elementos, particularmente os judeus, pela sua prpria frustrao. Aps ir para a Primeira Guerra, ele comeou a achar que poderia ter um papel poltico, afirma o historiador Richard Breitman, da Universidade Americana, em Wa-shington, Estados Unidos.

Hitler dizia que os anos passados na Primeira Guerra foram os melhores de sua vida. Em 1914, assim que comearam os conflitos, ele se alistou no Exrcito alemo e, apesar de trabalhar atrs das trincheiras como mensageiro, conseguiu condecoraes por bravura raras para o seu posto. Em 1918, um ataque com gs o levou, parcialmente cego, ao hospital, onde recebeu a notcia de que a guerra havia acabado. Uma revoluo havia tomado o pas no momento em que o Exrcito alemo sofria derrotas no campo de batalha. Instaurou-se a Repblica de Weimar em 1918 e se assinou um misto de armistcio e rendio que impunha duras condies Alemanha. Para Hitler, foi uma traio. Nesse momento, ele afirma ter tido a viso que o fez seguir carreira na poltica. Deveria tomar como misso vingar a Alemanha contra a punhalada nas costas que tinha tomado dos polticos, muitos deles judeus, que proclamaram a repblica. Era uma mentira bvia, mas uma mentira que Hitler usou como veculo para chegar ao poder, afirma Rosenbaum.

Ao sair do hospital, ele, ento um cabo do Exrcito alemo, foi mandado para Munique para investigar grupos extremistas. A cidade vivia em um caos, com dezenas de grupos em conflito e uma seqncia de dirigentes sendo assassinados ou depostos. Hitler comeou a divulgar seu diagnstico dos eventos nas cervejarias da cidade e fez uma descoberta, que descreveu no livro Minha Luta, de 1925: Tive a oportunidade de falar diante de uma grande audincia e o que eu sempre pressenti se confirmava: eu sabia falar. E sabia mesmo. Filiou-se ao pequeno Partido dos Trabalhadores da Alemanha (que logo mudou de nome para Partido dos Trabalhadores Nacional-Socialistas Alemes) e chegou rapidamente ao posto de porta-voz. Em pouco mais de um ano, em 1920, o nmero de membros do Partido Nazista (abreviao de nacional-socialista) passou de cerca de 60 para mais de 2 mil pessoas graas ao impacto de seus discursos (veja quadro na pgina 70). Kurt Ldecke, um de seus primeiros admiradores, descreveu em um relato que era como se ele tivesse perdido sua capacidade crtica e estivesse preso em um feitio hipntico, uma experincia que ele comparava a uma converso religiosa.

Qual era o contedo desses discursos eletrizantes? Aparentemente, nada de novo um futuro grandioso para a Alemanha, a recuperao econmica, o fim do marxismo e dos judeus. Para conseguir suporte das massas, foi menos decisiva a doutrina nazista que o estilo de articulao de medos, fobias e expectativas espalhadas pela populao. E, quando a questo era representar, Hitler era inigualvel, afirma o historiador ingls Ian Kershaw, da Universidade de Sheffield, Inglaterra. Em meio crise econmica e ao sentimento de humilhao trazidos pela derrota da Alemanha, grande parte da populao j estava disposta a aceitar as idias de Hitler ou de qualquer outro lder populista de igual calibre. Ao ouvi-lo, a converso era imediata.

A aura que foi se formando em volta do lder nazista lhe permitia ganhar votos mesmo entre o pblico pouco disposto a aceitar suas idias. Havia, desde o sculo 19, a busca quase religiosa por um lder que uniria a Alemanha e a levaria grandeza. A profecia se fortaleceu aps a derrota na guerra, principalmente entre os protestantes, bastante nacionalistas. Hitler construiu para si a imagem de ser o escolhido, no sentido bblico da palavra. A insistncia dele em um poder e um mistrio quase do outro mundo tinha um grande apelo, o que lhe deu a sensao de ser de fato o salvador, afirma o historiador Fritz Stern, da Universidade de Colmbia, Estados Unidos. Em seus discursos, no era apenas a sua vontade que o levava a querer reconstruir a Alemanha seus feitos e sua misso seriam obra da providncia divina.A ASCENSOHitler havia se tornado popular, mas para chegar ao poder era preciso muito mais astcia e, principalmente, sorte. Em meados da dcada de 20, a situao no era nada boa para os nazistas. O partido tinha se esfacelado depois de uma tentativa frustrada de golpe em 1923, que foi combatida pela polcia e deixou Hitler na priso por 13 meses. Ao ser libertado, a crise econmica e poltica tinha se acalmado e as propostas nazistas se tornariam menos atraentes populao. Eles talvez nunca tivessem deixado de ser um partido pequeno se o mundo inteiro no fosse chacoalhado pela crise econmica internacional de 1929. O modo como os nazistas exploraram o colapso financeiro e poltico que se seguiu permitiu a eles, em 1930, passar de 12 para 107 cadeiras no Parlamento alemo e se tornar o segundo maior partido da casa. Confiante no sucesso eleitoral, Hitler concorreu e perdeu ao cargo de presidente em 1932, mas no desistiu de controlar o governo. Meses depois, seu partido ganhou 43,9% dos votos e se tornou a fora poltica majoritria do pas.

Hitler comeou a pressionar o presidente eleito, Paul von Hindemburg, a lhe dar o cargo de chanceler, que lhe permitiria controlar o Poder Executivo. O presidente ignorou o pedido. Frustrado na tentativa de chegar ao poder, o partido comeou a sofrer dissidncias e obteve um nmero menor de votos nas eleies realizadas no final de 1932, marcadas depois que o chanceler dissolvera o Parlamento. Foi o momento em que os jornais conservadores comearam a comemorar o fim do Partido Nazista e, curiosamente, foi quando Hitler chegou ao poder. Mais uma vez, ele teve astcia e sorte para tirar proveito das fraquezas da repblica.

O Parlamento alemo estava em grande parte dividido entre nazistas e comunistas, uma mistura to explosiva que poderia facilmente levar a uma guerra civil. Para governar, o Executivo tinha que driblar o Parlamento por meio de decretos de emergncia e concentrar o mximo de poder em seu gabinete. Os industriais e proprietrios rurais, cansados de tanto impasse, havia muito tempo tentavam trocar a repblica por um governo autoritrio. Os chanceleres, influenciados por essa elite, bem que tentaram acabar com a democracia, mas todos caram diante de intrigas polticas ou de decises erradas. Foi quando uma parcela do poder econmico, em especial os ruralistas, comeou a achar Hitler uma boa soluo. Surgiu ento a proposta de dar ao lder nazista o cargo de chanceler, mas em um gabinete composto quase somente por conservadores. Ou seja, queriam faz-lo de fantoche, aproveitar seu apoio popular para dar base ao governo autoritrio que desejavam. Assim, em janeiro de 1933, Hitler assumiu o cargo de chanceler alemo.

Como voc deve imaginar, a deciso dos conservadores figura hoje na galeria das maiores idiotices j feitas por um grupo de polticos. Apenas um ms depois de assumir o poder, um incndio criminoso destruiu o Parlamento e deu a Hitler a chance de consolidar seu poder. Declarando o incidente como sinal de uma revolta comunista, ele ordenou a priso de milhares de marxistas e opositores polticos e obteve um decreto que suspendia todos os direitos e liberdades individuais no pas. Violncia contra opositores no era novidade para ele: o brao armado de seu partido espancava e assassinava inimigos polticos desde a poca dos discursos nas cervejarias de Munique, com a conivncia dos juzes da regio, simpatizantes do movimento nazista. Hitler desconsiderava nossa noo de moralidade. Para ele, isso era uma construo judaica. No tinha nenhum escrpulo e era contra os direitos individuais, afirma Christopher Browning.

Com dois meses de governo, toda a oposio estava morta, reduzida a organizaes clandestinas ou presa em um recm-inaugurado campo de concentrao em Dachau. O pouco que restava para consolidar seu poder veio nos anos seguintes: em 1934, com a morte do presidente Hindemburg, ele assumiu controle total sobre o Executivo. Em 1938, utilizou intrigas para afastar os comandantes conservadores do Exrcito.

Mesmo sem nunca ganhar uma eleio presidencial, Hitler obteve poder absoluto e apoio popular em pouqussimo tempo. Apesar de matar oponentes em uma escala nunca antes vista na Alemanha, Hitler estava agindo da maneira que muitos alemes esperavam de um dirigente. A classe mdia, os industriais, os proprietrios rurais saram ilesos de sua ao. E, atacando as minorias, ele conseguiu dar populao a impresso da unidade nacional com que eles tanto sonhavam. Hitler usou a propaganda de forma espetacular para unificar o pas. Havia os inimigos comuns, os judeus e os comunistas, e o alvo, o Tratado de Versalhes, que tinha imposto ao pas condies muito desconfortveis ao final da Primeira Guerra, diz Stern.O ESTILOO novo Fhrer era vegetariano. No bebia, no fumava, no tomava caf. Seguia rotinas fixas e era aficionado por arquitetura (veja quadro na pgina 65). No tinha a menor pacincia para resolver problemas administrativos. Hitler evitava situaes em que tivesse que escolher entre duas opes conflitantes. Limitava-se a aprovar ou reprovar as medidas que chegavam at ele. Aplicava administrao o princpio que dominava toda sua viso de mundo: a idia de que o mais forte deve vencer. Vrios departamentos de seu governo se sobrepunham e os choques entre eles eram constantes. A melhor maneira de fazer um projeto andar em meio s disputas (e de ganhar promoes) era obter a aprovao do Fhrer. O estilo de Hitler levava menos a um governo bem dirigido que ao oportunismo e a iniciativas arbitrrias e sem coordenao, diz Kershaw. A vantagem para Hitler que sua vontade era cumprida sem que ele se esforasse ou se envolvesse em disputas que pudessem abalar sua imagem.

O governo s funcionava porque havia a disposio de seguir a vontade do Fhrer. Por volta de 1939, a maioria da populao encontrava algo para admirar em Hitler, afirma Kershaw. Alm da propaganda intensa do regime, a economia alem sofreu aquecimento durante o novo governo porque o mundo inteiro j se recuperava da crise de 1929 e tambm por conta dos crescentes gastos com a indstria blica. Por fim, a conquista de territrios e o reforo do Exrcito promovidos por Hitler atraam a admirao at dos no-partidrios do governo.

A ordem internacional permanecia frgil desde 1918. Hitler se aproveitou disso com uma espantosa habilidade para o blefe. Ele tinha uma sagacidade extraordinria e brutal para explorar a fraqueza dos outros, diz Stern. Assim como tirou proveito do fim da Primeira Guerra, das fraquezas da Repblica de Weimar e do incndio no Parlamento alemo para consolidar seu poder, ele agora explorava o impasse entre as potncias europias para quebrar os termos do Tratado de Versalhes. Usando como desculpa o rearmamento promovido pela Inglaterra e pela Frana, Hitler promoveu alistamento militar para ampliar seu Exrcito uma desobedincia aos termos do tratado. Um ano depois, invadiu a Rennia, uma regio desmilitarizada na fronteira com a Frana. As demais naes, presas a disputas diplomticas, no fizeram nenhum protesto. Enquanto isso, assinou tratados de no-agresso com a Polnia e com a Unio Sovitica sabendo que uma hora precisaria romp-los. Em 1938, Hitler aproveitou crises internas na ustria e usou seus exrcitos para anex-la ao territrio alemo. Em maro de 1939, fez o mesmo com a Tchecoslovquia e com regies da Litunia. A reao da Frana e da Inglaterra s veio quando, seis meses depois, ele invadiu a Polnia.

O sonho de Hitler comeava a virar realidade. Havia aumentado o territrio alemo e agora se preparava para aplicar sua poltica racial. Desde 1935, os judeus estavam proibidos de ter casamentos e relaes sexuais com no-judeus, alm de terem negada a cidadania alem. As medidas se tornaram mais drsticas em novembro de 1938. Com a autorizao de Hitler, anti-semitas queimaram em uma s noite dezenas de sinagogas, mataram uma centena de judeus e levaram mais de 30 mil pessoas para os campos de concentrao. Apesar da violncia em enorme escala, Hitler percebeu que esse tipo de ao no era suficiente para elimin-los da Alemanha. Mesmo aps cinco anos de intensa propaganda anti-semita, a participao popular foi pequena, houve crticas contra a destruio das propriedades e at simpatia pelas vtimas, diz Richard Levy, autor de vrios estudos sobre o anti-semitismo europeu e professor da Universidade de Illinois, Estados Unidos. A confirmao veio no ano seguinte, com os protestos populares contra o programa de eutansia, uma iniciativa que matou mais de 70 mil doentes mentais e portadores de deficincias. Os dois episdios convenceram Hitler de que ele no poderia contar com a populao para aplicar suas polticas raciais. Ele percebeu que no podia depender das massas para resolver a questo judaica. Quando chegasse o momento, a soluo deveria ser encaminhada secretamente e sem a participao popular, afirma Richard Levy. Esse momento estava chegando.A QUEDAA vitria rpida sobre a Polnia e a Frana, entre 1939 e 1940, estimulou Hitler a tentar seu objetivo final: a invaso da Unio Sovitica. A operao seria diferente das que havia deflagrado at ento dessa vez, era uma guerra de extermnio. Segundo Christopher Browning, a expectativa era que os soviticos fossem derrotados em duas a quatro semanas. Hitler aprovou a eliminao total e sistemtica dos judeus russos. Browning est no centro do debate sobre quando e por que Hitler decidiu que os judeus deveriam ser exterminados. Ele afirma que a primeira idia dos nazistas era apenas expuls-los: mand-los para a Sibria, para Madagscar ou mant-los em campos de concentrao. A deciso de mat-los teria vindo com as vitrias de setembro de 1941 na campanha sovitica, quando Hitler se sentiu confiante e percebeu que podia levar a idia adiante. No foi uma hesitao moral. Ele apenas quis garantir que no iria fracassar, diz Browning.

No outro lado da discusso esto aqueles que acreditam que o extermnio de judeus j estava na cabea de Hitler muito tempo antes. Para Richard Breitman, o plano teria surgido no incio de 1941, antes da invaso sovitica. Ele cita um documento do servio de inteligncia britnico de agosto de 1941, que informava que os alemes estariam matando todos os judeus que cassem em suas mos uma evidncia no s de que o extermnio pode ter comeado antes da data proposta por Browning como de que os aliados sabiam do genocdio desde o incio, mas nada fizeram a respeito.

Tanto Breitman quanto Browning afirmaram Super que, apesar de ainda discordarem em relao s datas, boa parte dessa discusso est sendo superada. Nunca teremos evidncia suficiente para precisar quando os nazistas decidiram pela soluo final o extermnio total dos judeus, afirma Breitman. Existem vrios pontos em que eles parecem chegar a um consenso. Um deles que no coube a Hitler decidir os detalhes. O lder nazista nunca foi a um campo de concentrao, no viu os judeus serem mortos e, para alguns, talvez nem tenha dado uma ordem direta para que o holocausto comeasse. Ningum nega, no entanto, que ele foi uma figura-chave no genocdio. Coube a ele expressar o desejo de ver o fim dos judeus e autorizar seus subordinados a comear a matana. A partir da, eles formaram pequenos batalhes voltados para o extermnio, que foram se juntando e ganhando fora de acordo com o que julgavam ser a vontade do Fhrer. O resultado foi uma terrvel indstria da morte com vrios escales hierrquicos. O comando cabia aos nazistas convictos. Abaixo deles, profissionais, tcnicos e burocratas que emprestavam seu conhecimento ao genocdio. Por ltimo estavam pessoas comuns, recrutadas aleatoriamente, que se viam obrigadas a matar. Foi uma novidade, um Estado moderno e industrializado usando seus recursos organizacionais e tecnolgicos para eliminar inteiramente um povo, afirma Breitman. O plano deu horrivelmente certo. Eles tiveram contratempos e precisaram improvisar, porque esse tipo de coisa nunca havia sido feito antes. terrvel pensar que o nmero de vtimas poderia ser muito maior se tudo desse certo para eles. Mas, no geral, o plano funcionou melhor do que esperavam, diz Breitman.

Como conseguiram transformar tantas pessoas em assassinos frios? No existe ainda uma resposta satisfatria para a questo. Um fato surpreendente revelado pelos arquivos soviticos que a maior parte da matana no pas foi feita por agricultores locais. Em alguns grupos de extermnio, havia dez pessoas de outras etnias para cada alemo. Os nazistas se aproveitaram de rivalidades internas em vrias regies. O cenrio agora muito mais complexo: precisamos estudar a histria das relaes entre ucranianos, poloneses, judeus e alemes em cada lugar para entender quais eram os interesses desses grupos, diz Browning.

No final de 1941, ficou claro que a guerra na Rssia no podia ser ganha. Foi quando a ambio de Hitler tornou-se mais evidente: ele dispensou os generais e assumiu o controle da guerra, recusou-se a recuar ou adotar uma postura defensiva e perdeu divises inteiras em ataques desesperados. medida que os exrcitos aliados comearam a se aproximar de Berlim, ele ordenou que as cidades alems fossem destrudas para no serem utilizadas pelos inimigos. Os estudos recentes indicam que, nessa poca, Hitler comeava a apresentar sinais de mal de Parkinson, mas continuava a governar como antes. Segundo escreveu Albert Speer, arquiteto e ministro da produo e armamento de Hitler, o ditador tentou acabar com as chances da Alemanha de sobreviver a ele. O povo alemo, aos seus olhos, teria merecido a destruio, uma vez que no foi forte o suficiente para derrotar o inimigo sovitico.

A autoridade de Hitler permaneceu absoluta at o momento em que ele se matou, em 1945, aos 56 anos. Por mais irracionais que fossem as suas ordens, sempre houve algum disposto a cumpri-las. Boas explicaes para esse fenmeno esto na centralizao do governo em sua figura e no assassinato daqueles que tentaram se opor. Mas mesmo essas razes no explicam a devoo que muitos alemes tiveram pelo Fhrer. Hitler deve ter tido um efeito carismtico estonteante em algumas pessoas, diz Fritz Stern. Eu no sei explicar. No sei quanto disso de seu magnetismo pessoal, quanto da atrao das massas pelo poder e quanto do mito que se erigiu sua volta, do personagem obscuro e fracassado que chegou ao topo do poder.

No h nada que permanea como um legado positivo dos anos de Hitler no poder, diz Kershaw. Apesar de ter estimulado as artes, as iniciativas foram para impor a sua noo particular de beleza, que desestimulava qualquer inovao. Seu estilo de administrao no serviu de modelo para ningum. A economia era predatria por natureza, inflada pelos gastos da guerra e dependente em grande parte do trabalho de escravos obtidos nos territrios conquistados. Seu nico legado talvez seja a lio do que no deve ser feito. Acho que a Alemanha est imunizada contra um novo Hitler. Mas a lio bastante instrutiva para muitos pases democrticos em que os movimentos de direita podem querer assumir uma forma mais autoritria, ainda que com apoio popular e econmico, diz Stern.

Existem vrias explicaes para cada detalhe da vida de Hitler e os livros que so lanados quase todo dia sobre o assunto mostram que muitas outras teorias surgiro nos prximos anos. Permanece, no entanto, a questo: Hitler pode mesmo ser explicado? H quem diga que no devemos faz-lo porque isso diminuiria a culpa de Hitler. Achar um motivo colocaria a responsabilidade do holocausto em qualquer outro fator seja ele os ancestrais do ditador, o anti-semitismo de Viena ou a desestruturao do povo alemo na poca. H tambm aqueles que acreditam que entender Hitler impossvel: alguns dos principais documentos e testemunhas foram perdidos para sempre e, alm disso, talvez no tenhamos a capacidade de compreender a dimenso das suas motivaes hediondas. Finalmente, existem aqueles que, apesar do perigo e da dificuldade de explicar o holocausto, fazem o possvel para torn-lo compreensvel. Temos que ter a esperana de que podemos aprender com isso, diz o historiador Fritz Stern, um judeu alemo que foi com 12 anos para os Estados Unidos para fugir do nazismo. difcil intelectual e emocionalmente, mas absolutamente necessrio. A emoo tambm o que nos faz persistir para encontrar essas explicaes.

Adolf, o artista

A obsesso do Fhrer por suas obrasUm orador que se contorcia no palco, cercado de bandeiras gigantescas, msicas e enormes batalhes com movimentos coreografados basta ver os comcios de Hitler para perceber que havia ali algo mais do que simples poltica. No toa que o arquiteto nazista Albert Speer, a pessoa mais prxima de Hitler durante seus anos no poder, tenha afirmado que, para entender o Fhrer, era preciso perceber que ele se via, acima de tudo, como um artista. O costume vinha do bero: Hitler estudou piano e canto quando criana e, aos 18 anos, tentou ingressar na Academia de Artes Grficas de Viena, ustria.

Foi recusado duas vezes segundo os crticos, seus trabalhos no tinham vida nem originalidade. Mesmo assim, sobreviveu por seis anos vendendo na rua suas pinturas, que continuou a fazer mesmo nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial.

Rejeitado pela academia, resolveu aplicar seu estilo na poltica. Tomou como smbolo do movimento a cruz sustica um dos sinais mais fortes e antigos da humanidade, utilizado por centenas de etnias ao redor do mundo. Participou do desenho dos uniformes, insgnias, bandeiras e prdios nazistas. Talvez o nico assunto que o obcecasse mais que o dio aos judeus fosse a arquitetura e nesse ponto seu estilo era muito particular. Considerava as artes modernas degeneradas e tentava retomar a grandiosidade que via nos estilos clssicos, com edifcios to grandiosos quanto as pirmides egpcias. Seus prdios deveriam demonstrar a superioridade que atribua ao povo alemo. Um auditrio para seus discursos abrigaria 17 vezes mais pessoas que a Baslica de So Pedro, em Roma. Projetou tambm um Arco do Triunfo 70 metros mais alto que o de Paris. Caberia a esses edifcios manter viva a imagem de Hitler: os materiais usados deveriam, milnios depois, deixar runas to impressionantes quanto as romanas. Nenhuma dessas obras monumentais saiu do papel, o que, para muitos, um sinal de que a verdadeira arte de Hitler no estava na construo, mas sim na destruio.Passos para a tragdia

A trajetria de Hitler, da infncia destruio da Europa1889 - Adolf Hitler nasce na pequena cidade de Braunau am Inn, na ustria. Seu fraco desempenho escolar o faz abandonar o colgio com 16 anos e seguir pouco depois para Viena com o intuito de estudar pintura

1914 - O incio da Primeira Guerra Mundial o impele a se alistar na infantaria alem. Mesmo condecorado duas vezes por bravura, tido como inapto para promoo por no demonstrar liderana. Acaba no hospital depois de sofrer um ataque com gs

1918 - Ainda no Exrcito, recebe a misso de vigiar grupos extremistas em Munique e acaba se tornando o 55 integrante de um deles. Seus discursos fazem com que, cinco anos depois, o movimento passe a reunir 55 mil membros

1923 - Proclama sem sucesso uma revoluo contra o governo e acaba na priso, onde escreve seu livro Minha Luta. Cumpre apenas dez meses de recluso e reorganiza o partido, que nove anos depois se torna o maior do Parlamento

1932 - Hitler concorre presidncia, derrotado por Paul von Hindemburg e comea a perder fora poltica. Mas, dez meses depois, manobras nos bastidores foram Hindemburg a dar a ele o controle do governo, no cargo de chanceler

1933 - Um atentado incendeia o prdio do Parlamento. Hitler aproveita a oportunidade para suspender direitos civis e prender inimigos polticos. Nos meses seguintes, ganha o direito de promulgar leis e fecha todos os partidos e organizaes no-nazistas

1934 - Hindemburg morre, Hitler assume tambm o cargo de presidente e consolida de vez seu poder. Aproveita o impasse nas relaes internacionais para armar seu Exrcito, reocupar territrios perdidos durante a Primeira Guerra Mundial e anexar a ustria

1939 - Depois de invadir a Tchecoslovquia, Hitler avana sobre a Polnia e d incio Segunda Guerra Mundial. Menos de dez meses depois, Frana, Holanda, Noruega, Dinamarca, Blgica e Luxemburgo j esto sob domnio alemo

1941 - Hitler ordena o assassinato em massa de judeus e invade a Rssia. O fracasso desse ataque abre espao para a contra-ofensiva sovitica e para que britnicos, americanos e seus aliados comecem a retomar os territrios ocupados

1945 - Mesmo acuado, Hitler se recusa a colocar seu Exrcito na defensiva, tenta ataques desesperados e perde cada vez mais territrios. Com os russos nas redondezas de Berlim, suicida-se e ordena que seu corpo seja incineradoFilosofia do dio

Os pensamentos que levaram ao genocdio1 - A histria uma disputa entre raas, na qual as mais fortes tendem a derrotar as mais fracas. Assim como na evoluo das espcies, apenas as raas mais aptas sobrevivem.

2 - As grandes civilizaes da histria desapareceram porque deixaram que seu sangue se misturasse ao de outras raas. A miscigenao a causa da decadncia das culturas.

3 - Judeus so a mais inferior das raas, mas com um incrvel instinto de autopreservao. So como parasitas: usam o poder do dinheiro e do capital internacional para se espalhar pelo mundo, infectar e destruir as raas puras.

4 - O marxismo uma estratgia judaica para dominar o mundo. Com ele, os judeus destruram a Rssia e pretendem infectar outros povos, causando sua destruio. Cabe aos arianos, a raa mais superior, eliminar essa ameaa.

5 - Para se desenvolver, os alemes precisam de um grande territrio. As outras raas da Europa devem ser eliminadas para que os arianos possam prosperar sem risco de miscigenao.

6 - O Estado deve empreender essas misses, mas no de forma democrtica. preciso um lder genial, moldado para essa tarefa, que leve os alemes expanso e luta contra os judeus.O poder da palavraUm dos principais fatores para a ascenso de Hitler era a paixo de seus discursos, capaz de levar ouvintes s lgrimas. Uma amostra de sua retrica, de sua capacidade de sofismar, de costurar uma argumentao capciosa a fim de fortalecer seus pontos est no trecho abaixo, retirado de um pronunciamento de 1927, feito em Nuremberg

Se algum o chamar de imperialista, pergunte a ele: Voc no quer ser um? Se disser que no, ento nunca poder ser pai, porque aquele que tem um filho precisa se preocupar com o po de cada dia. Mas, se voc fornece o po de cada dia, ento um imperialista. O nosso objetivo deve ser formar uma semente que ir crescer constantemente, ganhando energia e fora para o grande objetivo. quele a quem os cus deram a grandeza de decidir, eles tambm deram o direito de dominar.

Para saber maisNa livrariaPara Entender HitlerRon Rosenbaum, Record, 2003

Hitler, um Perfil do PoderIan Kershaw, Jorge Zahar, 1993

O Segredo de HitlerLothar Machtan, Objetiva, 2001

O Mundo Alemo de EinsteinFritz Stern, Cia. das Letras, 2004

O Hitler da HistriaJohn Lukacs, Jorge Zahar, 1998

Mein KampfAdolf Hitler, Fredonia Classics, 2003

The Origins of the Final SolutionC. Browning e Jurgen Matthaus, Univ. of Nebraska Press, 2003