como analisar a canção popular.américo saraiva

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  • 8/6/2019 Como analisar a cano popular.Amrico Saraiva

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    COMO ANALISAR A CANO POPULAR?Jos Amrico Bezerra Saraiva

    Se diz a palo secoo cante sem guitarra;

    o cante sem; o cante;o cante sem mais nada;

    se diz a palo secoa esse cante despido:ao cante que se cantasob o silncio a pino.

    (Joo Cabral de Melo Neto)

    1. IntroduoTencionamos neste artigo fazer uma breve incurso nos estudos realizados acerca do

    gnero cano, mais especificamente acerca da chamada cano popular brasileira, gneroeste cujas caractersticas se foram erigindo ao longo do sculo XX. Fundamentamo-nos, paraeste desiderato, primordialmente na contribuio de Tatit1, que, alm de fornecer-nos umaeficiente abordagem para o estudo da cano, partindo de concepes semiticas de linhagreimasiana, de cunho imanentista, portanto, no descura do contexto scio-histrico no qualeste gnero se constituiu, tal como vem sendo praticado atualmente.

    Este autor procede a uma leitura da cano popular brasileira descrevendo os trsmodelos que, a seu ver, caracterizam o processo de composio de canes no Brasil:figurativizao, tematizao e passionalizao.

    Aps descrever a conformao destes trs modelos, seguindo os passos de Tatit,faremos uma rpida anlise de trs canes de Chico Buarque de Holanda, para exemplificarcada um deles. As trs canes so: Com acar, com afeto, Cotidiano e Sem acar. A nossover, elas constituem um feliz exemplo para o que se pretende aqui, mormente por elasguardarem uma relao de intertextualidade e interdiscursividade entre si.

    2. A constituio do gnerocano2.1. O discurso ltero-musical enquanto prtica intersemitica

    Maingueneau (1984: 160) adverte-nos que as diversas prticas semiticas seencontram sob um conjunto de coeres scio-historicamente determinado e que a noo decompetncia discursiva aplica-se atividade pela qual se constroem unidades discursivas,intra ou intersemiticas, em que se evidencia o recurso a um mesmo sistema semntico.Assim, o princpio da competncia discursiva deve ser estendido ao fazer enunciativo detodos que participam da mesma prtica discursiva, dispondo do mesmo quadro de regras, no-

    1 Luiz Tatit professor de lingstica na Universidade Estadual de So Paulo e tambm msico, tendo lanadotrs discos. Tem trabalhado com o gnero cano e vem forjando, nas duas ltimas dcadas, uma abordagemterica visando ao exame da cano em sua dimenso intersemitica, como gnero sincrtico em que secompatibilizam, fundamentalmente, melodia e letra.

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    somente aos enunciadores lingsticos, mas tambm a pintores, arquitetos, msicos etc. Osistema de restries de uma prtica discursiva no se limita, portanto, ao mbito do verbal.

    Como diz Costa (2001), comentando Maingueneau (1984), os diversos suportessemiticos no so independentes uns dos outros, estando submetidos s mesmas injuneshistricas, s mesmas restries temticas etc, o que se demonstra facilmente quando seobserva que os movimentos estticos (romantismo, realismo etc) quase sempre atravessam

    diversos domnios semiticos (literatura, pintura, msica, arquitetura etc.) (p. 125).Costa (2001: 125) advoga que uma prtica discursiva deve estender seu modo defuncionar (investimentos lingsticos, cenogrficos e ticos (de ethos) que realiza; alteridadesque mobiliza; regras de tematizao e estruturao que submete e a que se submete etc.) adiversas outras modalidades semiticas. Segundo o autor, a preferncia mesma por uma ououtra modalidade j decorre do prprio modo de funcionar da prtica discursiva. Acrescente-se que, para o autor, no se deve desprezar o movimento interdiscursivo entre as diversasprticas semiticas, posto que no se trata apenas da aplicao de um quadro semntico geralregrando as produes semiticas no-verbais. H, efetivamente, uma rede contnua deinterpretaes, mesmo que assimtricas, entre o verbal e as demais modalidades semiticas.Em palavras suas, o verbal, quando no faz parte diretamente, guia e organiza outros tipos de

    produo semitica. Estes ltimos impregnam constantemente o verbal trazendo para odiscurso imagens, representaes, valores de seu universo sem jamais se confundir com ele.H assim uma relao dialgica entre as diversas semiticas resultante do trao simblicocomum que as une. (p. 126)

    pgina 128, Costa (2001) menciona em que planos se podem dar as relaesintersemiticas na prtica discursiva da cano, a saber:

    1. no plano da prpria materialidade literomusical (linguagem verbal + linguagemmusical);

    2. no plano da evocao de movimentos somticos por parte da melodia, quepodem tambm ser aludidos na letra (linguagem musical + linguagemcenogrfica (+ linguagem verbal));

    3. no plano da figurao, no interior da letra, de um percurso descritivo maneirade uma pintura (linguagem verbal + linguagem pictrica);

    4. no plano do registro escrito para distribuio comercial (encarte ou capado disco), ela pode aparecer acompanhada de ilustraes, fotos ou pinturas,e/ou ter sua configurao escrita estilizada (linguagem verbal escrita +linguagem pictrica); etc.

    Pelo exposto, v-se que a prtica discursiva do cancionista2 se d no encontro dediversas modalidades semiticas, dentre as quais, se destacam duas, pelos menos: a verbal e amusical. Cumpre ento perguntar como o gnero cano deve ser estudado, se se deve

    contemplar sua dimenso verbal, visto que a letra de msica costuma circular como textoescrito, independente do acompanhamento musical, ou se primazia deve ser dada suadimenso musical. Ou seja, o gnero em tela deve figurar como literatura ou msica?

    2 A noo de cancionista, cunhada por Tatit, reflete bem o fazer semitico que envolve o objeto semiticosincrtico, que a cano. Para ele, o cancionista aquele que, na juno da seqncia meldica com as

    unidades lingsticas, ponto nevrlgico de tensividade (...), tem sempre um gesto oral elegante, no sentido deaparar as arestas e eliminar os resduos que poderiam quebrar a naturalidade da cano. Seu recurso maior oprocesso entoativo que estende a fala ao canto. Ou, numa orientao mais rigorosa, que produz a fala no canto(1996: 9).

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    2.2. A cano entre a msica e a literatura

    Sendo a cano uma pea verbo-musical breve, portanto, um gnero hbrido, decarter intersemitico, pois nela se compatibilizam dois tipos de linguagens, a verbal e amusical (ritmo e melodia)3, ela se encontra sob o domnio de duas prticas semiticas que oraa acediam ora a rejeitam. Trata-se do fenmeno que Costa (2002) chama de anexao

    excludente.Sem pretender discutir a complexa questo da dicotomia popular/erudito, Costa

    (2002) salienta as propriedades que aproximam a msica erudita do registro formal da escrita,delimitando um terreno no qual a cano parece se mover, mais prxima que se encontra dafala. Assim, a msica erudita se distancia da cano porque, enquanto aquela, de uma maneirageral, tem maior apego partitura, tem maior fixidez e separa o verbal do musical, esta temmenor apego s formalizaes, tem menor fixidez e no separa o verbal do musical.

    Muitos dos enunciadores que se colocam no campo da produo musical eruditareconhecem o carter musical da cano, muito embora o faam como se estivessemalargando o campo do propriamente musical. Neste momento, encampam a cano comomsica. No entanto, o msico erudito que se dedica a fazer canes tratado com certopreconceito por muitos dos membros desta comunidade discursiva, como se estivesseprofanando uma prtica semitica considerada nobre com sua atitude hertica. Da a razo dese falar de anexao excludente. Por outro lado, muitos cancionistas procuram respaldarmusicalmente seu trabalho aproximando-se de msicos eruditos. Tem-se neste caso umaprtica semitica nutrindo outra e vice-versa, intercmbio comum na cano popularbrasileira.

    Mas o que freqente mesmo a forte demarcao entre a prtica semitica domsico erudito e a do cancionista. A tal ponto isto se verifica que Tatit (1996), ao descrever adico de Tom Jobim, aponta-o como um dos poucos bons cancionistas compositores quetinha formao erudita, na histria da cano brasileira. Jobim e apenas Jobim pode serconsiderado compositor-cancionista de altssima envergadura apesar de ter adquiridoformao musical4. (Tatit, 1996: 160) No ver do autor, as duas prticas semitica chegammesmo a se incompatibilizarem:

    Tudo ocorre como se o convvio com a msica erudita, ou mesmo com a popular instrumental,apresentasse desafios bem distantes do universo criativo da cano, com as questes sonorassaltando frente da relao texto/melodia e a instrumentao ofuscando a importncia da voz. O

    fato que pouqussimos compositores do primeiro time da cano popular brasileira alfabetizaram-se musicalmente. (Tatit, 1996: 160)

    Para Tatit, ao contrrio do que se d com Tom Jobim, os grandes cancionistas-compositores desconhecem a teoria e a notao musical. Tom Jobim qualifica-se comocancionista-compositor, porque no seu fazer enunciativo toda a percia de msico erudito colocada a servio da cano, ao invs de representar um entrave5.

    A mesma anexao excludente se evidencia no que concerne s relaes entre acano e a literatura. A influncia da voz que fala na voz que canta, responsvel pelo efeitoenunciativo sempre renovado a cada execuo de uma cano (Tatit, 1994, 1996 e 1997),

    3 Assim que vem a cano tanto Costa (2002) quanto Tatit (1996).4 uma afirmao forte a de Tatit, pois sabemos que outros nomes que conjugaram as duas competnciaspontuaram a histria da msica popular brasileira. Citem-se, por exemplo, Edu Lobo e Francis Hime.5 Acerca deste assunto, interessante aludir atitude de Itamar Assuno, cancionista que fez parte da vanguarda

    paulista da dcada de 1980, numa entrevista concedida ao programa Provocaes, da Rede Cultura de Televiso.Ao ser provocado pelo entrevistador que se referiu ao seu analfabetismo tcnico-musical, ele entoa uma desuas canes e diz que, se tivesse tido uma formao musical erudita, no teria sido capaz de compor aquelacano.

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    alm de contribuir para a distino entre cano e msica erudita, aproxima a cano dodiscurso literrio, na exata proporo em que a palavra ganha relevo.

    Outro fator que aproxima estas duas modalidades semiticas o fato de a cano teruma dimenso escrita inquestionvel, mesmo que prescindvel, como bem frisa Costa (2002).Da o ser a cano, mais especificamente a letra da cano, tomada como objeto de anlise dedisciplinas como a literatura, que procura examinar/avaliar os recursos da criao potica na

    cano (mtrica, rima, estrofao, distribuio do texto no espao, sentido figurado etc.)Esta aproximao esteve bem presente na obra de alguns cancionistas. Tatit (1996)aponta os nomes de Catulo da Paixo Cearense e Cndido das Neves como legtimosrepresentantes do que ele denomina semi-eruditismo na cano popular, uma fase em que oscancionistas buscavam respaldar seus textos aproximando-os do registro literrio. Propsitomalogrado este, conforme deixa ver o autor na passagem infra:

    Desejosos de serem reconhecidos como talentos que ultrapassam a simples esfera popular, osartistas semi-eruditos carregam suas obras com indcios de outro registro causando impresso demaior sofisticao. Entretanto, no convivendo realmente com as questes e as preocupaes quemovem a atividade erudita da poca, pautam seu trabalho por produes obsoletas, como se a arteculta fosse uma arte maneira dos clssicos consagrados. No consideram, enfim, a evoluo, quer

    na faixa erudita quer na popular. Pensam em uma escala quantitativa que vai do espontneo aosmais altos emblemas de depurao clssica onde somente os verdadeiros artistas podem chegar.

    Resultado: linguagem empolada e melodias que lembram reas europias do sculo XIX, ainda quesimplificadas e reduzidas no tamanho. (Tatit, 1996: 32)

    No obstante estes flertes entre as duas prticas discursivas serem constantes nahistria da cano popular brasileira, um casamento efetivo no aconteceu. A anexaocontinua a ser excludente. Basta vermos o preconceito que um Vincius de Moraes sofreuquando ingressou no campo da composio de canes ou ver setores da comunidade literriatratarem como sub-literatura o que se faz no terreno da cano6.

    2.3. A cano como gnero: um objeto semitico sincrtico

    Para Tatit (1996), na juno tensiva da seqncia meldica com as unidadeslingsticas que o cancionista constitui-se como um malabarista. O cancionista se prope acompatibilizar essas duas linguagens, aparando as arestas e eliminando os resduos quepoderiam comprometer a naturalidade da cano. Seu gesto enunciativo estende a fala aocanto e busca equilibrar a fala produzida no canto com o canto produzido na fala.

    na tenso entre a melodia e a letra, entre a linearidade contnua daquela e a

    linearidade articulada desta, que o projeto enunciativo do cancionista se perfaz. O fluxocontnuo da melodia se compatibiliza imediatamente com as vogais da linguagem verbal esofre o atrito das consoantes, que recortam a sonoridade. Uma fora de continuidadecontrape-se, assim, a uma fora de segmentao (em fonemas, palavras, frases, narrativas, eoutras dimenses intelectivas), fundando um princpio geral de tensividade. (Tatit, 1996: 10)

    Por conta desta tenso, que Tatit advoga a centralidade da melodia na configuraoda cano enquanto gnero, em detrimento das outras categorias musicais. Para ele, a melodiaentoativa o tesouro do cancionista na cano, e as tenses de cada contorno meldico ou de

    6 conhecida a polmica que se instaurou entre o acadmico e poeta, de extrao erudita, Bruno Tolentino, e o

    cancionista Caetano Veloso, em que aquele, incomodado pelo respaldo literrio que a obra deste estavaassumindo, afirmou que letra de msica no literatura. Esquivando-nos desta intrincada questo, que nopretendemos discutir, o caso serve como exemplo da anexao excludente, em que se incorpora a produo dealguns cancionistas, colocando-a na periferia do campo literrio, para depois expuls-la de l.

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    seu encadeamento peridico so mais importantes que as tenses harmnicas que mergulhamas canes no sistema tonal (Tatit, 1996: 9).

    Na juno entre melodia e letra surge um gnero de natureza sincrtica, em que semantm uma tenso equilibrada entre o verbal e o musical, no sendo a canoexclusivamente nenhum deles. Os efeitos de sentido produzidos pela cano so sui generis.Nela, tudo se passa como se o texto coletivizasse uma vivncia, o tratamento potico

    imprimisse originalidade, e o resgate da experincia, este, s fosse possvel com a melodia.Admitido o papel central da melodia, ao lado da letra, ambos em permanente tensoentre si, como elementos centrais da cano, pode-se dizer que a funo do cancionistaconsiste exatamente em disfarar esta tenso, conferindo uma naturalidade entoativa canoa partir da elaborao de um projeto enunciativo que busque compatibilizar essas duas forasantitticas 7 . Assim, para o cancionista, compor uma cano procurar uma dicoconvincente, eliminar a fronteira entre o falar e o cantar, tornar continuidade edescontinuidade um s projeto de sentido. O cancionista decompe a continuidade meldicana descontinuidade articulada do texto e recompe o texto com a entoao. Compatibiliza astendncias contrrias com seu gesto oral elegante. (Tatit, 1996: 11)

    2.4. A construo do sentido na cano popular

    Os efeitos de sentido na cano popular so gestados, fundamentalmente, no ncleotensivo entre melodia e letra. Para a anlise da cano, aconselhvel ao analista no perderde vista algumas particularidades deste gnero. Abaixo segue uma breve exposio depropriedades que servem para distinguir a fala da cano e que findam por caracterizar estaem oposio quela.

    2.4.1. Interinidade oral

    Na fala, produzem-se substncias sonoras (ou matria) para veicular um contedoque, na realidade, s se torna inteligvel num plano categorial e abstrato, onde se verificamoposies e interaes sintxicas entre unidades de diversas dimenses (fonolgicas,morfolgicas, frasal e discursiva)8, sem um vnculo mais duradouro com o suporte material.Este funciona como mera via de acesso ao contedo.

    A fala se particulariza pelo encontro da estabilidade (gramatical) lingstica com ainstabilidade (musical) entoativa, independentemente do contedo carreado. Na cano, este

    expediente aciona nossa ampla experincia com a linguagem oral e provoca um efeitoinevitvel de realidade enunciativa, causando a sensao de que algum est falandoalguma coisa aqui e agora9.

    A presena deste efeito na cano popular, variando em sua intensidade, confere aessa modalidade genrica um alto grau de aproximao com as prticas naturais. A prpriaeficcia da cano vincula-se diretamente ao xito da apreenso simultnea do modo deproduo da linguagem oral em seu interior. Em outros termos, o ouvinte cr, a cada execuo

    7 Na realidade, o projeto enunciativo geral do compositor pode ser aprimorado ou modificado pelo cantor e,normalmente, modalizado e explicitado pelo arranjador, que so, neste sentido, tambm cancionistas, noentender de Tatit (1996).8 Estas consideraes tm como base a noo de valor enquanto diferena, ligada tradio saussuriana. No sedeve, no entanto, achar que se postula assim uma noo de lngua nos moldes do estruturalismo ortodoxo. Ovalor enquanto diferena nasce das relaes no e entre discursos.9 Da emerge o que Tatit (1987) chama de eficcia e encanto da cano.

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    da cano, na verdade enunciativa dela, cr que o que est sendo dito est sendo dito comverdadeiro envolvimento do enunciador.

    2.4.2. Perenidade esttica

    Neste ponto, mais uma vez se evidendia a tenso entre o verbal e o musical nacano. Enquanto na linguagem oral a sonoridade se apresenta interina, at certo pontoinstvel, na cano, ela visa perenizao, como si acontecer com uma obra de naturezaesttica. Essa tenso se deve ao fato de uma linguagem privilegiar a continuidade e a outra adescontinuidade, mesmo que articulada. por esta razo que Tatit (1997: 89) diz que aforma fonolgica da expresso lingstica e mesmo as leis elementares de ordenao entoativa(baseada nas variaes da ascendncia e da descendncia) nunca foram suficientes nemadequadas estabilizao do componente meldico da cano.

    Para Tatit (1997), a msica que fornece, atravs das leis de recorrncia, dealternncia e de gradao, entre outras, os recursos necessrios para a estabilizao sonora na

    cano. A perenidade esttica assim alcanada por meio da estabilizao das alturas, dasunidades rtmicas, dos contornos monofnicos e polifnicos, da base harmnica, ou seja, doselementos no pertinentes nas manifestaes da linguagem oral.

    A instabilidade oral e a perenidade esttica parecem ser, a princpio, excludentes. Noentanto, a cano se caracteriza exatamente por harmonizar estas duas tendncias num projetoenunciativo, em que o compositor-cancionista visa a construir um dado efeito de sentido.Acompanhemos o que diz a respeito o prprio Tatit:

    Mantendo aspectos do modo de produo oral, com seus efeitos de naturalidade e presentificaoenunciativa, e assimilando, simultaneamente, as formas de conservao sonora da linguagemmusical, a cano desempenha um papel cultural privilegiado na medida em que promove

    continuamente a perenizao do instante enunciativo. Ela necessita das duas instncias deapreenso para constituir o seu sentido.Ora, a musicalizao da fala corresponde a um processo de ritualizao de uma sonoridade

    que, a princpio, teria funo totalmente passageira. Ao adquirir leis prprias de funcionamento, quese manifestam sobretudo na ordenao meldica, a cano impe uma desacelerao smanifestaes lingstico-entoativas retirando um pouco da sua interveno ligeira e descontnua.

    No mesmo ato, deposita, ao lado das oposies intelectivas, as emoes contnuas que s a melodiapor trazer. (Tatit, 997: 89-90)

    Na verdade, a est o desafio do cancionista, compatibilizar estas duas tendnciascontrrias, equilibrando a instabilidade sonora da fala, responsvel pelo frescor enunciativo

    presente em toda e qualquer cano, e a estabilidade rtmico-meldica, que pereniza a canoe a torna memorizvel, com o objetivo de produzir certos efeitos de sentido.

    2.4.3. Andamento: som e rudo

    Tatit (1997) seleciona a categoria do andamento como parmetro temporal deanlise da cano. V na tenso entre acelerao e desacelerao valores que se correlacionam continuidade prpria do som e descontinuidade caracterizante do rudo.

    Assim que a opo pela melodia lenta denuncia um compromisso com a

    continuidade, o processo, o percurso, pois aumentando-se a durao entre os elementosmusicais maior salincia dada s etapas intermedirias e aos detalhes de conduo meldica.Na melodia lenta, a alternncia tonal no campo de tessitura se destaca tanto mais quanto

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    maior for o investimento na durao. Na medida em que a desacelerao implica durao, d-se um compromisso com o preenchimento dos espaos agudos e graves, configurandodestaque especial ao perfil do traado meldico.

    Da opo pela melodia veloz, decorre uma maior proximidade dos elementosmusicais, o que acaba por colocar em evidncia os contrastes e as similaridades. Neste caso,

    j no h investimento na durao, nas etapas intermedirias, mas na transio, na passagem

    de uma etapa a outra.A partir destes parmetros, do andamento (acelerao/desacelerao), da durao eda oscilao na tessitura tonal, Tatit (1997) sugere critrios para o exame da melodia, dosquais nos ocuparemos na prxima seco.

    3. Critrios para o exame da melodiaTatit (1994, 1996 e 1997) fala de trs critrios para o exame da cano:

    figurativizao, tematizao e passionalizao.

    A figurativizao est presente em toda cano, na medida em que lhe confere oindispensvel efeito enunciativo. Varia, no entanto, o seu grau de investimento. As canesque tendem para a figurativizao se aproximam bastante da linguagem oral cotidiana. Apreponderncia deste procedimento cria um sentimento de verdade enunciativa, que aumentaa confiana do ouvinte no cancionista e faz parecer que este no est fingindo, masvivenciando o que est dizendo. Nas palavras de Tatit (1996), este procedimento sugere aoouvinte verdadeiras cenas (ou figuras) enunciativas. Pela figurativizao, ainda, ocancionista projeta-se na obra, vinculando o contedodo texto ao momento entoativo de suaexecuo. Aqui, imperam as leis da articulao lingstica, de modo que compreendemos oque dito pelos mesmos recursos utilizados no colquio. (p. 21)

    A tematizao, por sua vez, caracteriza-se pelo investimento na segmentao, naproeminncia dos ataques consonantais, na marcao dos acentos, na recorrncia de motivosmeldicos, na acelerao e na descontinuidade. Aqui o autor est convertendo suas tensesinternas em impulsos somticos formando a subdiviso dos valores rtmicos. (Tatit, 1996: 22)

    A passionalizao se efetiva quando h investimento na continuidade meldica, noprolongamento das vogais, nas amplas oscilaes da tessitura tonal. Atravs desteprocedimento, o autor est sobredeterminando toda a cano com os estados passionaissugeridos, na maioria das vezes, pelo contedo das letras10.

    4. Melodia e letra compatibilizadas

    A importncia da necessria compatibilidade entre melodia e letra, como recursopara criar um efeito de sentido unificado, fica evidente neste comentrio extrado de Wisnik(2003). Diz ele, que, durante o Estado Novo, o Departamento de Imprensa e Propagandaincentivou sambistas a fazerem canes elogiando o trabalho para combater a malandragem.O esforo malogrou. A razo est no fato de que, embora as letras assumissem um ethoscvico, essa inteno era contraditada pelo gesto rtmico, pelas pulses sincopadas, que (...)opem um desmentido corporal ao tom hnico e propaganda trabalhista. (p. 120). Seadmitimos, ento, esta necessria compatibilidade, vamos ao como ela se processa.

    10 Como exemplo de canes em que h proeminncia da figurativizao, da tematizao e da passionalizao,citem-se, respectivamente, Sinal fechado (Paulinho da Viola),Aquarela do Brasil (Ari Barroso) eAtrs da porta(Chico Buarque).

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    Conforme foi dito, a tendncia figurativizao cria um efeito enunciativo, um valorde realidade, que presentifica o momento da enunciao, como se a experincia relatada fosseum aqui-agora. A presena da fala repercute na letra da cano e as marcas lingsticas distoso evidentes. Todos os recursos utilizados para presentificar a relao eu/tu(enunciador/enunciatrio) num aqui/agora, como vocativos, imperativos, demonstrativos etc.,servem para criar o efeito enunciativo prprio a toda cano. Em produes deste tipo, a

    melodia aproxima-se da mera entoao lingstica, criando o efeito de que, ali, se relatamacontecimentos cujas circunstncias so revividas a cada execuo11.No dizer de Tatit, a tendncia tematizao, tanto meldica quanto lingstica,

    atende s necessidades gerais de manifestao (lingstico-meldica) de uma idia. Sobre istodiz o autor:

    A qualificao de uma personagem (a baiana, a mulata, o folio, o jovem ou o prprio narrador) oude um objeto (o samba, a dana, o pas etc.) uma das principais formas de manifestao dareiterao na letra. A exaltao, a enumerao das aes de algum (O escurinho ou PedroPedreiro, p. ex.) ou a prpria construo de um tema homogneo (a rotina em Cotidiano ou Vocno entende nada ou ainda a natureza em guas de maro ou Refazenda, por ex.), funcionam muitobem como espelhamento das reincidncias meldicas. Este tipo de compatibilidade simples j

    permite a identificao de inmeras canes quase didaticamente construdas: Falsa baiana, O que que a baiana tem, Palco, Garota de Ipanema, Beleza pura etc. Reiterao da melodia e reiterao daletra correspondem tematizao. (Tatit, 1996: 23)

    A tendncia passionalizao caracteriza-se pelo investimento na continuidademeldica, no prolongamento da vogais, reflexos das tenses internas do cancionista, que,transferidas para a emisso alongada das freqncias e/ou para amplas oscilaes tonais,modalizam extensamente a cano com os estados passionais do enunciador. Se atematizao se d no nvel somtico, a passionalizao desvia o foco para a dimensopsquica. A propsito, mais uma vez deixemos a expresso com Tatit:

    A configurao de um estado passional de solido, esperana, frustrao, cime, decepo,indiferena etc., ou seja, de um estado interior, afetivo, compatibiliza-se com as tenses decorrentesda ampliao de freqncia e durao. Como se tenso psquica correspondesse uma tensoacstica e fisiolgica de sustentao de uma vogal pelo intrprete. O prolongamento das duraestorna a cano necessariamente mais lenta e adequada introspeco. Afinal, a valorizao dasvogais neutraliza parcialmente os estmulos somticos produzidos pelos ataques das consoantes. Ocorpo pode permanecer em repouso, apenas com um leve compasso garantindo a continuidademusical. Todas as canes romnticas possuem essas caractersticas prprias do processo de

    passionalizao.

    Tendo como quadro terico de base o acima apresentado, pretendemos agoraressaltar o quanto elucidativo ver a constituio da cano popular brasileira sob esta tica.Assim sendo, procederemos a seguir a um breve comentrio acerca de trs canes de ChicoBuarque, para evidenciar a pertinncia destes trs modelos de composio na anlise efetivade canes.

    11 Tatit (1997) exemplifica com as canes Conversa de botequim,Acorda, amor,Da maior importncia, Vocno soube me amar.

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    5. Anlise de trs canes de Chico Buarque de Holanda

    Para exemplificar, tomemos trs canes de Chico Buarque de Holanda12, compostasem momentos diferentes de sua carreira: Com acar, com afeto, de 1966; Cotidiano, de1971; e Sem acar, de 197513. Estas canes servem particularmente para ilustrar os efeitosde figurativizao, tematizao e passionalizao, como tendncias basilares na configurao

    de uma pea literomusical, primeiro, porque em cada uma prepondera um destes efeitos e,segundo, porque as trs canes constituem um caso de intertextualidade e interdiscursividadeno interior da obra do compositor carioca.

    A intertextualidade entre as canes fcil de ser flagrada. O ttulo de uma, Semacar (1975), retoma o ttulo de outra, Com acar, com afeto (1966), estabelecendo umarelao intertextual de carter polmico. J nos ttulos, insinua-se a temtica de ambas ascanes. Enquanto na cano de 66 tem-se um duplo sintagma preposicional separado porvrgula, cada um dos quais iniciado pela preposio de incluso, com, na de 75, h um ssintagma preposicional, este principiado pela preposio que denota excluso, sem, donde,num primeiro momento, salta vista no s a natureza intertextual das duas letras, mas seucarter polmico.

    Alm disto, de notar-se que a expectativa de simetria entre os ttulos se frustra. Noentanto, o sintagma no realizado, sem afeto, parece estar atualizado, como contedo que,desde o ttulo, d o tom da cano de 75, constituindo uma isotopia discursiva, em virtude dareiterao desta propriedade semntica ao longo do texto. Tudo se passa como se o sintagmasem afeto, faltante no ttulo da cano, a ele se incorporasse aps a leitura/audio do texto.

    A cano de 75, por sua vez, vem ligar-se, intertextualmente, de 71, sobretudo porduas razes. A primeira flagrante. Trata-se da expresso aspectual de valor freqentativotodo dia, reiterada a cada comeo de estrofe em Cotidiano e presente no princpio de Semacar, como que a marcar intencionalmente a relao entre as letras. Aqui, importa observarque, em Sem acar, no se d, ao contrrio de Cotidiano, a reiterao da expressoaspectual. Ela ocorre de forma pontual apenas no incio da letra, no s para marcar aintertextualidade, como se disse, mas, sobretudo, para sinalizar a imprevisibilidade das aesdo ele, em Sem acar, se comparada previsibilidade das aes do ela, em Cotidiano14.Neste sentido, o contraste entre o primeiro verso de cada uma das canes elucidativo.Compare-se Todo dia ela faztudo sempre igualcom Todo dia ele fazdiferente.

    A intertextualidade tambm se deixa flagrar na presena da melodia de Cotidianonos intervalos entre as estrofes de Sem acar. A flauta, que soa no incio da cano e serepete a cada intervalo de estrofe, constitui um ndice, de carter musical, da unidade temticaque une Sem acar a Cotidiano, que, marcada como est pela tendncia tematizao,conforme veremos, apresenta um motivo meldico reiterado continuamente (o mesmo que serealiza em Sem acar), com pequenos intervalos em sua tessitura tonal, o que favorece a

    acelerao e, por via de conseqncia, reverbera na dimenso somtica, desviando o foco dadimenso psquica. A presena deste motivo meldico de Cotidiano entre as estrofes de Semacar, alm de sua funo intertextual, parece servir para inserir na segunda cano a mesmasensao de rotina, ou seja, a no-rotina relatada na letra de Sem acar na verdade umaoutra forma de rotina.

    Dito isto, podemos afirmar que as trs canes tematizam o dia-a-dia de um casal,em sua rotineira reincidncia, o que parece estar mais explicitado em Cotidiano. Osenunciadores de cada um destes textos falam da relao, domstica, de trs casais, dosvalores da casa (domus em latim), e da rotina que automatiza o homem, despassionalizando-o.

    12 As letras esto em anexo, depois da bibliografia.13 A anlise das canes tem como base as seguintes gravaes: Com acar, com afeto e Sem acar, ChicoBuarque & Maria Bethnia (1975); Cotidiano, Chico ao vivo (1999).14 No toa que o enunciador de Coditiano um homem e o de Sem acar uma mulher. S este fato dariauma interessante anlise. No exploraremos, no entanto, este veio, por conta dos objetivos do presente artigo.

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    Opem-se, nestes textos, os valores da rua aos da casa. queles vm unir-se os interpretantesno-previsibilidade e paixo, a estes, os seus contraditriosprevisibilidade e no-paixo.

    A interdiscursividade advm desta temtica comum, perspectivada a partir de pontosde vista diversos. Em Cotidiano, um homem narra o tdio da rotina que vive. Em Comacar, com afeto, fala com o marido uma mulher resignada, em cujo discurso fica patente arotina qual ela se tem submetido. Em Sem acar, uma mulher queixa-se de sua rotina,

    que uma no-rotina. Enfim, estes textos dialogam dentro da obra de Chico Buarque,representando vozes que, acerca de um mesmo tema, apontam para posies enunciativasdiferentes, facilmente identificveis em nosso contexto scio-histrico.

    Na cano Com acar, com afeto, evidencia-se uma forte tendncia figuratizaocomo processo constitutivo. Para constatar isto, basta ver que a melodia apresenta-se numainflexo entoativa prxima da fala, criando o sentimento de verdade enunciativa ao simulara interao direta entre enunciador e enunciatrio. Acrescente-se a isto a forte marcaoditica presente na letra a inscrever a enunciao no enunciado, ou, mais precisamente, aforjar, atravs da enunciao enunciada, o fazer enunciativo como que se realizando a cadaexecuo da cano. Assim, o enunciador projeta no enunciado as categorias da enunciao:eu/voc, que confere um tom dialogal ao discurso, por se tratar de uma relao subjetal.

    Do ponto de vista narrativo, em Com acar, com afeto, h um eu-narrador que seconstitui como manipulador de um voc e que tenta faz-lo fazer ou no-fazer algo. Ovoc um sujeito clivado por dois manipuladores diferentes, que representam valoresaxiolgicos concorrentes: os da casa e os da rua. O voc transgride os hbitos domsticos,para depois integrar-se a eles, mas em nenhum momento evidencia-se a rejeio do universoaxiolgico inicial, dos valores da casa, por parte do voc. O eu-narrador tem domnio totaldo universo do voc, mas no pode mudar-lhe a trajetria que o leva rua. O texto mostraque o eu-narrador j est, desde o incio, disposto a perdoar-lhe a transgresso, restituindo-lheos valores da casa, pois considera-o irresponsvel,feito criana.

    A cano Cotidiano, por sua vez, tende tematizao. Nela, tem-se um mesmomotivo meldico sendo reiterado ao longo da cano, pari passu isomorfia mtrica dosversos e constncia da estruturao estrfica. O ritmo clere. Evidencia-se poucaamplitude tonal na tessitura meldica. Reiteram-se tambm a expresso aspectual iterativatodo dia e a primeira estrofe no final do texto.

    Nesta letra, o enunciador projeta no enunciado as categorias do enunciado: ela,com quem no h dilogo, assunto do discurso do eu, este que se encontra objetualizadopara o ela.

    Do ponto de vista narrativo, descreve-se nesta letra um estado de coisas, em que noh transformao. Trata-se de aes pontuais envolvendo dois sujeitos que se reificam namedida em que nenhum parece estar modalizado por um querer. Na verdade, parece que onarrador se encontra modalizado pelo dever-ser o que e pelo dever-fazer o que faz,

    integrado que est em um universo axiolgico que lhe determina as aes: depois penso navida pra levar. A insatisfao do sujeito no parece ser intensa o suficiente para desencadearuma transformao, por isso parece resignar-se aos valores da casa. Os valores da rua s sorecuperveis neste texto em funo de sua relao intertextual com os outros dois.

    Sem acar, por seu turno, tende passionalizao, porque apresenta um ritmomenos clere que Cotidiano. Desenvolve-se num campo tonal de maior amplitude, cujas notasganham em durao. Exibe pausas, de durao tambm considervel, pontuando a cano 15.

    Na letra, o enunciador tambm projeta no enunciado as categorias do enunciado:ele, com quem (a exemplo de Cotidiano) no h dilogo, assunto do discurso do eu, quese encontra objetualizado para o ele.

    Nesta cano, descreve-se um estado de coisas, em que tambm no h

    transformao, como ocorre em Cotidiano. As aes descritas so pontuais e envolvem dois15 Alm disto, na gravao considerada, a passionalizao ganha reforo com o investimento dramtico daintrprete Maria Bethnia.

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    sujeitos: um reificado aos olhos do outro. Estes dois sujeitos pertencem a universosaxiolgicos conflitantes. O narrador est to modalizado pelo querer que o nvel de tensoentre os sujeitos parecem crescer, gerando um alto grau de insatisfao, que prenuncia asaturao deste estado de coisas e a ruptura subseqente. Mas o narrador no est modalizadopelo poder, por isso sofre a inconstncia do ele. O texto, ento, mais que relatar osdesencontros do casal, centra o foco no estado anmico do enunciador. Ao contrrio de

    Cotidiano, esta cano promove, assim, um estado de passionalizao tanto na melodiaquanto na letra.Como se pode ver, estas trs canes se aproximam quanto temtica, que

    perspectivam de modo diverso. Em termos mais simples e abstrato, pode-se dizer que ascanes em apreo desenvolvem distintamente a oposio fundamental integrao aos hbitos(valores) domsticos x transgresso dos hbitos (valores) domsticos. Enquanto em Comacar, com afeto, o voc percorre todos os pontos do quadrado, passando da integrao,para a no-integrao, da para a transgresso, depois para a no-transgresso, para, enfim, sereintegrar aos valores da casa, o ele, de Sem acar, permanece em estado de transgresso,e o eu-narrador de Cotidiano no sai do estado de integrao. Veja o quadrado abaixo.

    Ou o quadrado seguinte, em que se procuram estruturar os estados tensivo-fricos dos sujeitosenvolvidos na trama narrativa.

    foria

    integrao

    disforiaeuforia

    aforia

    no-integraono-transgresso

    transgresso

    foria

    relaxamento

    disforiaeuforia

    aforia

    contenodistenso

    reteno

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    De acordo com estes dois quadrados, lcito afirmar que, enquanto o enunciador deCom acar, com afeto, passa de um estado de euforia para um estado de disforia, para depoisvoltar a um estado de euforia (relaxamento > conteno > reteno > disteno >relaxamento), o enunciador de Sem acarse encontra em estado de disforia (na tenso entre

    a conteno e a reteno) e o enunciador de Cotidiano localiza-se no binmiorelaxamento/conteno, clivado na tenso que se estabelece entre estes contraditrios.Cada uma das perspectivaes a que o tema submetido exige um tratamento

    apropriado tanto do ponto de vista da letra quanto do da melodia. Por isso, em Com acar,com afeto, em que se tem uma simulao de dilogo entre dois sujeitos, em que um tentamanipular o outro, a tendncia predominante a da figurativizao, pois o que se deveevidenciar neste caso o efeito enunciativo que d a impresso de que o discurso se faz numaqui-agora sempre renovvel a cada enunciao. Em Cotidiano, o foco a descrio, quaseque impessoal, de um estado de coisa no qual o enunciador se encontra anestesiado. Oenvolvimento do enunciador com relao ao narrado precrio. Ele narra como se falasse deum terceiro, razo da predominncia da tematizao como recurso constitutivo. J em Sem

    acar, o enunciador fortemente afetado pelo contedo narrado. O foco desloca-se para adimenso psquica e o que importa aqui o estado de alma do enunciador perante os fatosnarrados. Da o investimento na passionalizao, tanto lingstica quanto meldica.

    Para concluir, devemos dizer que a anlise a que procedemos neste artigo , pormotivos bvios, bastante lacunar. Visa to-somente a fornecer um exemplo de cada modelo deconstituio da cano, para apontar os traos gerais que situam cada pea literomusicaldentro de um destes modelos. Acreditando que os exemplos foram elucidativos, registramosaqui o convite para estarmos mais atentos cano, como uma prtica semitica de naturezasincrtica, em que se vem compatibilizadas, no mnimo, letra e melodia.

    BIBLIOGRAFIA

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    MACHADO, A. R. e BEZERRA, M. A. Gneros textuais e ensino. Rio de Janeiro:Lucerna, 2002, pp. 107-121.

    MAINGUENEAU, D. Gense du discours. Lige: Mardaga, 1984.NETO, J. C. de M. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

    TATIT, L.A cano: eficcia e encanto. So Paulo: Atual, 1987._____. Semitica da cano: melodia e letra. So Paulo: Escuta, 1994._____. O cancionista: composio de canes no Brasil. So Paulo: EDUSP, 1996._____.Musicando a semitica. So Paulo: Annablume, 1997._____. Quatro triagens e uma mistura: a cano brasileira no sculo XX. In: MATOS, C. N.,

    TRAVASSOS, E. e MEDEIROS, F. T.Ao encontro da palavra cantada: poesia, msica evoz. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001.

    WISNIK, J. M. Algumas questes de msica e poltica no Brasil. In: BOSI, Alfredo. Culturabrasileira: temas e situaes. So Paulo: tica, 2003.

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    ANEXO

    Com acar, com afeto

    Chico Buarque (1966)

    Cotidiano

    Chico Buarque (1971)

    Sem acar

    Chico Buarque (1975)Com acar, com afetoFiz seu doce prediletoPra voc parar em casa

    Qual o quCom seu terno mais bonitoVoc sai, no acreditoQuando diz que no se atrasaVoc diz que operrioVai em busca do salrioPra poder me sustentarQual o quNo caminho da oficinaH um bar em cada esquinaPra voc comemorarSei l o qu

    Sei que algum vai sentar juntoVoc vai puxar assuntoDiscutindo futebolE ficar olhando as saiasDe quem vive pelas praiasColoridas pelo solVem a noite e mais um copoSei que alegre ma non troppoVoc vai querer cantarNa caixinha um novo amigoVai bater um samba antigoPra voc rememorar

    Quando a noite enfim lhe cansaVoc vem feito crianaPra chorar o meu perdoQual o quDiz pra eu no ficar sentidaDiz que vai mudar de vidaPra agradar meu coraoE a lhe ver assim cansadoMaltrapilho e maltratadoAinda quis me aborrecerQual o quLogo vou esquentar seu pratoDou um beijo em seu retratoE abro os meus braos pra voc

    Todo dia ela faz tudo sempre igualMe sacode s seis horas da manhMe sorri um sorriso pontual

    E me beija com a boca de hortel

    Todo dia ela diz que pra eu me cuidarE essas coisas que diz toda mulherDiz que est me esperando pro jantarE me beija com a boca de caf

    Todo dia eu s penso em poder pararMeio-dia eu s penso em dizer noDepois penso na vida pra levarE me calo com a boca de feijo

    Seis da tarde como era de se esperar

    Ela pega e me espera no portoDiz que est muito louca pra beijarE me beija com a boca de paixo

    Toda noite ela diz pra eu no me afastarMeia-noite ela jura eterno amorE me aperta pra eu quase sufocarE me morde com a boca de pavor

    Todo dia ela faz tudo sempre igualMe sacode s seis horas da manhMe sorri um sorriso pontualE me beija com a boca de hortel

    Todo dia ele faz diferenteNo sei se ele volta da ruaNo sei se me traz um presente

    No se ele fica na suaTalvez ele chegue sentidoQuem sabe me cobre de beijosOu nem me desmancha o vestidoOu nem me adivinha os desejos

    Dia mpar tem chocolateDia par eu vivo de brisaDia til ele me bateDia santo ele me alisaLonge dele eu tremo de amorNa presena dele me caloEu de dia sou sua flor

    Eu de noite sou seu cavalo

    A cerveja dele sagradaA vontade dele a mais justaA minha paixo piadaSua risada me assustaSua boca um cadeadoE meu corpo uma fogueiraEnquanto ele dorme pesadoEu rolo sozinha na esteira