como a igreja catolica construiu a civilizacao ocidental

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C O M O A I G R E J A CATÓLICA t CONSTRUIU ’* A CIVILIZAÇÃO - 5?K!$ 1 OCIDENTAL b 'S f^QUADRANTI

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C O M O A

I G R E J A

C A T Ó L I C A

t CONSTRU IU

’* A CIVILIZAÇÃO - 5?K!$

1 OCIDENTAL

b ' S f^Q UADRANTI

Se perguntarm os a um estudante universitário o que salx* (lo contributo d.i Igreja Católica para a sociedade, a sua res|X>sta tal­vez se resuma a uma iwlavra: "opressão", |x>r exem plo, ou “«>!*· tu ran tism o". No entanto, essa palavra deveria ser "civilização“

( ) autor destas páginas. Thomas W íxkIs, doutorado |X*la Uni­versidade d e Columbia, mostra com o toda a C iv iliz ad o (X iden- tal nasceu e se desenvolveu a|X)iada nos valores e ensinam entos da Igreja Católica. Em concreto explica, entre muitas outras u h ·

• Por que o milagre da ciência m oderna e d e um a filosofta que levou a razão à sua plenitude só puderam nascer solwe o solo da m entalidade católica;

• Com o a Igreja criou um a instituição que m udou o m undo: a Universidade;

• Com o ela nos deu um a arquitetura e um as anes plásticas de lx»leza incom parável;

• Com o os filósofos escolásticos desenvolveram os conceitos básicos da econom ia nwxlerna, que trouxe para o O cidente unta riqueza sem precedentes;

• Com o o nosso Direito, garantia da liberdade e da justiça, nasceu em am pla medida d o Direito canônico;

• Com o a Igreja criou praticam ente todas as instituições de assistência que conhecem os, dos hospitais ò previdência;

• Com o hum anizou a vida, ao insistir durante séculos nos d i­reitos universais do ser hum ano - tanto dos cristtos com o dos pa* gAos - e na sacralidade d e cada pessoa.

Num m om ento em que se propaga um a imagem da Igreja com o inimiga dos progressos da ciência e da técnica, e da lilx‘r· dade do pensam ento, este é um livro que desfaz preconceitos, corrige clichês e ensina inúm eras verdades teinxisam ente om iti­das no ensino colegial e universitário.

O U TR O S TITU LO S R E LAC IO N AD O S

Am o r e ( asam i n to , de Cormac Burke

D l l s IM QUESIÔtS,de André Frossard

í RAZOAVtt ( MH?,do Alfonso Aguiló

A FRAUIM OA VlMCI, de Mark Shea e Edward Sri

H a UM (X :IK ) MUNOO, de André Frossard

liJltIA t PfUdlCA,do losé Miguel Ibartez Langlois

HlSlrtKIA OA k'.KElA {10 VOLUMES),de Daniel-Rops

PlSSAK PCW CDMA I'VCH'KIA,do Enrique Monasterio

I’SKOIOCIA AHtKTA,

do johannes Batista Torelló

COMO A IGREJA CATÓLICA CONSTRUIU A CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL

THOMAS E. WOODS JR.

COMO A IGREJA CATÓLICA

CONSTRUIU A CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL

T rad u çã o dc É lc io C arillo

Revisão dc

E m é rico da G am a

f l QUADRANTE

São Paulo 2008

w ~T ftu lo orig inal

H ow the Catholic C hurch B uilt Western Civilization

C opyright O 2008 T hom as E. W oods, Jr., e R cgnery P ub lish ing Inc.

I lu stração da cap a fo m cc id a p o r R cgnery P ub lish ing Inc.

D ados In te rn a c io n a is d c C a ta logação n a P u b licação (C IP) (C âm ara B rasile ira d o Livro, SP, B rasil)

W oods J r., T h o m as E.C om o a Igreja C ató lica c o n s tru iu a c iv ilização O ciden tal /

T h o m as E. W oods Jr.; tra d u ç ã o d e É lc io Carillo; rev isão dc E m érico d a G am a. - S ão P aulo : Q u ad ran te . 2008

Título origina): H ow the Catholic Church Built Western Civiliza· lion

ISBN: 978-85-7465-125-5.

1. C ivilização O cidental 2. Cristianism o e cu ltura 3. Igreja cató­lica · H istórica 4. Igreja Católica ' Influência 1. T ítulo

08-10818____________________________________________ CDD-282.09

ín d ic e p a r a c a tá lo g o s is te m á tic o :I. Igreja C atólica : Influência na Civilização Ocidental : H istória

282.09

T odos os d ire ito s reservados a QUADRANTE, S ociedade d e P ublicações C u ltu ra is

R ua Ipcro ig . 604 - Tel.: 3873-2270 - Fax: 3673-0750 CEP 05016-000 - S5o P aulo - SP

vvw vv.quadrante.com .br / in fo@ quadran tc .com .b r

A IGREJA INDISPENSÁVELI.

P h ilip Jen k in s , rcn o m ad o p ro fesso r d e h is tó ria e e s tudos relig iosos d a Pennsylvania S ta te U niversily, c h am o u a o an ti- -cato lic ism o "o ú ltim o p reco n ce ito aceitável nos E stad o s Uni* dos". É difícil c o n te s ta r esse ju ízo : nos nossos m eios d e c o m u ­nicação c n a nossa c u ltu ra p o pu lar, pouca co isa é inadm issível qu an d o se t ra ta d e rid ic u la r iz a r ou de sa tir iz a r a Igivja. Os m eus alu n o s, q u a n d o têm a lgum a no ção a respe ito dela , só sa ­bem m en c io n a r a su a p re ten sa “co rru p ção " , so b re a q ua l ouv i­ram in te rm in áv e is h is tó ria s d e d u v idosa c red ib ilid ad e d o s seus pro fesso res d o e n s in o m édio.

A q u es tão é que. n o am b ie n te cu ltu ra l d a a tua lid ad e , é fácil esq u ecer - ou não to m a r c o n h ec im en to seq u e r - tu d o aquilo que a nossa civ ilização deve à Igreja C ató lica . M uitos reco n h e ­cem q u e ela in fluenc iou , sem dúv ida, a m úsica , a a r te c a a r ­q u ite tu ra , m as n ão vão a lém d isso . Para o nosso e s tu d a n te do en sino m édio , a h is tó ria d o ca to lic ism o pode s e r re su m id a em três palavras: igno rânc ia , rep ressão c e s tagnação ; n inguém fez o m en o r e sfo rço p o r m o stra r-lh e q u e a c iv ilização ociden tal deve à ig re ja o sis tem a u n iv ers itá rio , as c iências, o s h osp ita is c a p rev idência , o d ire ito in te rn ac io n a l, in ú m ero s p rin c íp io s b á ­sicos d o sis tem a ju ríd ico , e tc. etc. O p ro p ó sito de ste livro é p rec isam en te m o s tra r e ssa s in fluênc ias decisivas, m o s tra r que devem os m u ito m ais à Igreja C ató lica d o que a m a io r parte d a s pessoas - in c lu ídos o s ca tó licos - co stu m a im ag inar. P o r­que, p a ra se rm os exatos, foi e la q u e constru iu a c iv ilização o c i­dental.

C o m o n em é p rec iso d izer, o O c iden te n ão d eriva a p en as

6 THOMAS K. WOODS JR.

d o cato lic ism o ; n inguém pode n eg a r a im p o rtân c ia da an tiga G récia c dc R om a, ou d as d iversas tr ib o s germ ân icas que su c e ­d eram ao Im pério R om ano d o O cidcnie . c o m o e lem en io s fo r­m ad o res da nossa civ ilização . E a ig reja nn o só náo repud iou n e n h u m a dessas trad ições, co m o na rea lidade ap ren d eu e a b ­sorveu de la s o m e lh o r q u e lin h am p a ra oferecer.

N enhum ca tó lico sé rio p re ten d e su s te n ta r q u e os ec lesiásti­cos ten h am ace r ta d o em todas as dcc isôcs que to m aram . C re­m os que a Igreja m an te rá a integridade da fé a té o fim d o s te m ­pos, n âo que cad a um a d a s ações d c to d o s os pap as e bispos que já houve esle ja ac im a d c q u a lq u e r cen su ra . Pelo c o n trá rio , d is tin g u im o s c la ram en te e n tre a santidade da Igreja, en q u an to in stitu ição g u iad a pelo E sp írito S an to , e a n a tu reza inevitavel­m en te p ecad o ra d o s h o m en s que a in teg ram , in c lu ídos o s que a tu a m em n o m e dela.

M as es tu d o s recen tes tém su b m e tid o a rev isão u m a sé rie de ep isód ios h is tó ricos trad ic io n a lm en te c itad o s co m o ev idências da in iq ü id ad e d o s ec lesiásticos, c a co n c lu são a q u e chegam depõe cm favor d a Igreja . H oje sab em o s, p o r exem plo , q u e a Inqu isiçáo n áo foi nem dc longe tâo d u ra co m o se costum ava re tra tá -la e q u e o n ú m ero d c pessoas levadas aos seus tr ib u ­na is foi m u ito m en o r - cm v árias o rd en s d e m ag n itu d e!1 - do que se a f im iav a an te rio rm en te . E is to nâo é n e n h u m a a legação nossa, m as co n c lu são c la ram en te exprussa nos m elho res e m ais recen tes e s tu d o s2.

De q u a lq u e r m odo. com exceção dos estu d io so s d a E u ro p a m edieval, a m aio ria d as pessoas ac red ita que o s m il a n o s a n te ­rio res à R enascença foram um período d e ig n o rân c ia e de re ­p re ssão in telectual, em que nâo havia um d eb a te vigoroso de idéias nem um in te rcâm b io in te lectual cria tivo , e em q u e se exigia im placave lm en te u m a es trita su b m issão aos dogm as. A inda hoje c o m in u a a haver au to re s que rep e tem essas a f irm a ­ções. N um a d a s m in h as pesqu isas, dep a re i com um livro de C h ris to p h c r K night c R obert Lom as in titu lad o Second Messialt

(1) Isto é. no número dc zeros depois dus algarismos sígnificaiivos. Con· crciamcntc, n4o foram milhAes, como Sn vc/es sc d»*. mas centenas (N. do K.).

(2) Vcja-sc. por exemplo. Henry Kamen, The S/wiisJt inquisition: A fiisto·

I. A tGRtUA IKDISPHNSAVMl. 7

[“O seg u n d o M essias”], cm q u e sc tra ç a um q u a d ro d a Idade M édia que n ão p oderia e s ta r m ais longe d a rea lidade , m as que o pú b lico cm geral "engole*' sem h esita r, p o r força d o p reco n ­ceito c d a ig n o rân c ia re in an tes . P odem os ler a li. p o r exem plo: “O estab e lec im en to d a e ra c ris ta ro rnan i/.ada m arcou o c o m e­ço d a Idade d a s T revas, esse p e río d o d a h is tó ria o c iden ta l em que sc a p ag a ram to d as a s luzes d o c o n h ec im en to e a su p e rs ti­ção su b s titu iu o saber. Esse perío d o d u ro u a té q u e o p o d e r d a Igreja C ató lica foi m in ad o pela R eform a" V E tam bém : "Des· prezou-se tu d o o q u e e ra bo m c v erd ad e iro e igno raram -se to ­dos os ram o s d o c o n h ec im en to h u m a n o cm nom e d e Je su s C risto” ■*.

Hoje em d ia . é difícil e n c o n tra r um ú n ico h is to r ia d o r c a p a / dc ler sem e lh an te s co m en tá r io s sem rir . E ssas a firm açõ es co n ­trad izem fro n ta lm en lc m u ito s an o s d e pesqu isa sé ria , e no e n ­tan to os seu s au to re s - q u e não são histor iado res d c p ro fissão - icpc tem com in te ira d esp reo cu p ação esses velhos c g asto s cha- vóes. Deve s e r fru s tra n te lec io n a r h is tó ria m edieval! P o r m ais que se trab a lh e c se pu b liq u em evidênc ias em c o n trá rio , quase lodo o m u n d o co n tin u a a ac re d ita r f irm em en te que a Idade M édia foi u m p e ríodo in te lec tua l e c u ltu ra lm en te vazio e q u e a Igreja n âo legou ao O ciden te sen ão m étodos de to r tu ra e re ­pressão.

O q u e K night e L om as n ão m en cio n am c que. d u ra n te essa "Idade d a s T revas", a Igreja desenvolveu o sis tem a un iv e rs itá ­rio eu ropeu , a u tên tico d o m d a civ ilização o c iden ta l ao m undo. M uitos h is to riad o re s sc m arav ilh am d ian te da a m p la liberdade e a u to n o m ia com q u e sc d eb a tiam a s q u estõ es n aq u elas u n i­versidades. E foi a exa ltação d a razão h u m a n a e d a s su as ca ­pac idades, o c o m p ro m isso com um deb a te rigo roso c rac iona l, a p ro m o ção d a pesqu isa in telectual e d o in te rcâm b io en tre os estu d an te s dessas u n iversidades p a tro c in ad as pela Igreja - foi isso que fo rneceu a s b ases p a ra a R evolução C ientífica.

N os ú ltim o s c in q u en ta anos, p ra ticam en te to d o s os h is to r ia ­do res da c iên c ia - en tre e les A listair C. C rom bic. David Lind-

(3) Cluisiopljci Knighi c Roben Lunuis. Stctuid Messinh, Kmr Winds fiev». G loucotcr. M aüachusçu>, 2001. pá#. 70.

(4) ChriMophcr Kmphl c Robert Lomas. Secotul Messiah. pá*. 71.

THOM AS H. WOODS JR.

bcrg, E dw ard G ran i. S tan ley Jak i, T hom as G oldstcin c Jo h n L. H eilbron - cheg a ram à co n c lu são de que a p ró p ria Revolução C ien tílica se deveu à Igreja. E a co n trib u ição ca tó lica p a ra a c iênc ia n ão se lim itou à s idéias - inc lu ídas as teo lógicas - que to m a ra m possível o m étodo cientifico; m u ito s dos p rin c ip a is inovadores c ien tíficos fo ram sacerdo tes, co m o N icolau S leno , um lu te ran o converso q u e se to rnou sace rd o te ca tó lico c é co n ­sid erad o o pai d a geologia, ou A thanasius K ircher, pai da e g ip ­tologia, ou a in d a R ogério B oscovich, co n sid e rad o freq ü en te ­m en te o pai d a teo ria a tô m ica m oderna . A p rim eira pessoa a m ed ir a taxa d e ace le ração de um co rp o em qu ed a livre foi a in ­d a o u tro sacerdo te , o pe. G iam b attis ta Riccioli. E os je su íta s d o m in a ram a tal po n to o e s tu d o dos te ire m o to s q u e a sism o lo ­g ia ficou co nhec ida co m o “a c iência jesuítica**.

E isso n ão c tudo . Poucos conhecem a s co n trib u içõ es da Igreja no c am p o da a stro n o m ia , a p esa r d e cerca d e tr in ta e c in co c ra te ra s d a Lua te rem sido desco b e rta s p o r c ien tis ta s c m a tem ático s je su íta s , d o s q u a is receberam o nom e. Jo h n L. H eilbron . d a U niversidade da C alifórnia em Berkeley, c o m e n ­tou que "d u ran te m a is d e se is sécu los - desde a recu p eração dos an tigos co n h ec im en to s astro n ô m ico s d u ra n te a Idade M é­d ia a té o llu m in ism o a Igreja C atólica R om ana deu m ais a ju d a finance ira e su p o rte social ao e s tu d o d a a s tro n o m ia do q u e q u a lq u e r o u tra in stitu ição e. p rovavelm ente , m ais d o que todas a s o u tra s ju n ta s " 5. M esm o assim , o v erdade iro papel da Igreja n o desenvo lv im en to d a c iênc ia c o n tin u a a s e r a té hoje um dos tem as m ais com p le tam en te s ilenc iados pela h is to rio ­grafia m oderna .

E m bora a im p o rtân c ia da trad ição m onástica seja reco n h e ­c id a em m a io r ou m e n o r g rau nos livros de H istó ria - to d o o m u n d o sab e que. no resca ldo d a qu ed a d e R om a, o s m onges p reservaram a h e ran ça lite rá ria do m u n d o an tigo , p a ra não d i­zer a p ró p ria cap ac id ad e de le r e escrever o le ito r de sco b rirá nesta ob ra que a su a c o n trib u ição foi, na rea lidade , m u ito m aio r. P ra ticam en te n ão há ao longo d a Idade M édia n enhum e m p reen d im en to sign ificativo p a ra o p ro g resso d a civilização

(5) John l. Heilbron, The Stm in the Church: Cathedrals as Solar Observa· lories. Harvard University P ro* . Cambridge. IV99. pig· 5.

I. A IORKJA INDISPENSAVKI. 9

cm q u e a in te rvenção dos m onges n ão fosse decisiva. O s m o n ­ges p ro p o rc io n a ram "a to d a a E u ro p a [...] um a rede de indús- trias-m odelo . c e n tro s d e c riação d e gad o , cen tro s d e pesquisa , fervor e sp iritu a l, a a rlc d e v iver f...], a p red isposição p a ra a açáo social, ou seja . u m a civ ilização avançada , q u e e m e r­giu d as vagas caó tica s d a b a rb á rie c ircu n d an te . S âo Bento, o m ais im p o rtan te a rq u ite to d o m o n aca to oc iden ta l, foi. sem d ú ­vida a lgum a, o pai d a E u ropa . E o s b ened itinos, seus filhos, fo ram o s pa is d a c iv ilização eu ro p é ia "6.

O desenvo lv im en to d o co n ce ito d e D ireito In te rnac iona l é no rm a lm en te a tr ib u íd o ao s p en sad o res e teó ricos d o d ire ito dos sécu los XVII e XVIII. Na rea lidade , po rém , en co n tram o s pela p rim e ira vez esse co n ce ito ju r íd ico n as un iversidades es­p an h o las d o sécu lo XVI, e foi F rancisco d e V itória, u m sace r­d o te e teó logo ca tó lico e p ro fesso r u n ivers itá rio , quem m ere­ceu o títu lo d e pai d o d ire ito in te rn ac io n a l. Em face dos m aus- •tra tos inflig idos pelos esp an h ó is ao s ind ígenas d o Novo M un­do . V itória e o u tro s filósofos e teó logos com eça ram a esp ecu ­lar acerca d o s d ire ito s h u m an o s fu n d am en ta is c d e co m o deve­riam se r a s re lações en tre a s nações. E fo ram esses pensadores que d e ram o rigem à ideia d o d ire ito in te rn ac io n a l tal com o hoje o concebem os.

Aliás, to d o o d ire ito oc iden ta l é u m a g ran d e dád iva d a Ig re ­ja. O d ire ito c an ô n ico foi o p rim eiro sis tem a legal m o d e rn o a ex istir na E u ro p a , d em o n s tran d o q u e e ra possível c o m p ila r um co rpo d e leis c o e ren te a p a i t i r d a b a ra fu n d a de esta tu to s , t r a ­d ições, co stu m es locais e tc. q u e ca rac te rizav a tan to a Igreja com o o E stad o m edievais. De a c o rd o com H aro ld B erm an, “a Igreja foi a p rim e ira a en s in a r a o hom em oc iden ta l o que é um sis tem a legal m oderno . Foi a p rim eira a m o s tra r q u e co s tu ­m es, es ta tu to s , dec isões ju d ic ia is c d o u tr in a s co n flitan tes p o ­dem s e r conc iliados p o r m eio de aná lise e s ín te se "7.

A p ró p ria idéia de que o s e r h u m a n o tem d ire ito s bem defi­n idos nüo se deve a Jo h n Locke e T h o m as Jefferson - com o inu itos p o d eriam p e n sa r m as ao d ire ito canôn ico . E m uitos

(6) Róginaid Grégoire. Léo Moulin c Raymond Otirscl, The Monastic Realm. Rizzoli, New York. 1985. pây. 277.

(7) Harold J. Berman. The Interaction o f Ijiw oui! Religion. Abingdon Prv». Nashville. Tennessee. 1974, pAg. 59.

10 THOMAS £. WOODS JR

ou tro s princ íp ios legais im p o rtan te s d o nosso d ire ito tam bém sc devem à in fluência d a Igreja, g raças ao em p en h o m ilenar dos eclesiásticos em su b s titu ir as p rovas em ju ízo baseadas cm superstições - com o o o rd á lio que ca rac te rizavam o ordena* m en to legal germ ânico , p o r p ro ced im en to s b aseados na razáo c cm conce ito s legais e labo rados.

De aco rd o com a h is tó ria econôm ica trad ic iona l, a eco n o ­m ia m o d ern a te ria s ido c riad a p o r A dam S m ith e o u tro s teó ri­co s d o sécu lo XVJU. E stu d o s m ais recentes, no e n tan to , vem en fa tizan d o a im po rtân c ia d o pen sam en to econôm ico d o s ú lti­m os esco lásticos, particu la rm en te dos teó logos esp an h ó is dos sécu los XV e XVI. Tem -se chegado a lé a d esig n ar esses pensa­do res - assim o faz o g ran d e eco n o m ista d o sécu lo XX Joscph S ch u m p e te r - com o os fu n d ad o res da m o d ern a econom ia c ie n ­tífica.

A m a io r p arte d as pessoas tem u m a vaga no çào d as ob ras ass is tcnc ia is d a Igreja C ató lica , m as m u itas vezes nào sabe co m o foi ú n ica a sua açâo nesse cam po. O m u n d o an tig o for­nece-nos a lguns exem plos d e libera lidade p a ra com o s pobres, m as tra tava-se d e um a libera lidade que p rocu rava fam a e reco­n h ec im en to p a ra o d o ad o r, ten dendo a se r in d iscrim in ad a e nào d irig ida espec ificam en te àqueles que passavam necessida­de. O s pobres e ram com excessiva freqüênc ia tra ta d o s com d esprezo , e a sim p les idéia de a ju d a r os necessitados sem ne­n h u m a expectativa d e rec ip roc idade ou de g a n h o pessoal e ra a lhe ia à m en ta lidade d a época. M esm o W illiam Leckv, um h is­to riad o r d o sécu lo XIX sem p re hostil à Igreja, chegou a ad m i­ti r que a dedicação ao s pob res - tan to no seu esp írito com o nos seu s objetivos - co n stitu iu a lgo novo no m u n d o ociden tal e rep resen tou um avanço su rp reen d en te com re laçáo ao s p a ­d rõ es da an tig ü id ad e clássica.

Hm todas essas á rea s , a Igreja im p rim iu u m a m arca inde lé ­vel n o p ró p rio co ração d a civ ilização eu ropé ia . Um recen te li- v ro de h is tó ria d a Igreja C atólica tem po r títu lo T rium ph [“Triunfo"): é um títu lo ex trem am en te a p ro p ria d o p a ra re su ­m ir o p ercu rso de u m a in stilu içáo que tem no seu haver tan to s

1. A IGRHJA INDiSPI:.NSÃVUL I I

h om ens c m u lheres h eró icos c tan ta s realizações históricas. Até ago ra , e n co n tram o s re la tivam en te poucas d essas in fo rm a­ções n o s livros de tex to q u e a m aio ria dos e s tu d an te s tem dc es tu d a r no en s in o m édio e su p erio r.

A igreja C ató lica con fig u ro u a civ ilização cm q u e vivem os e o nosso perfil h u m a n o d c m u itas m an eiras a lém d as que c o s tu ­m am os te r p resen tes. P or isso in sis tim os em q u e cia foi o co n s­tru to r indispensável d a c iv ilização oc iden ta l. N áo só trab a lh o u para reverte r aspec tos m o ra lm en te rep u g n an te s do m u n d o a n ­tigo - co m o o in fan tic íd io c o s co m b ales de g lad iado res m as restau ro u e prom oveu a c iv ilização depo is d a qu ed a de Rom a. T udo com eçou pela edu cação d o s bá rb a ro s , e é neles q u e nos de tem os ao in ic ia rm o s e ste livro.

UMA LUZ NAS TREVASI I .

"IDADE DAS TRHVAS"

A expressão “Idade d a s trevas“ chegou a s e r ap licada a todo o m ilên io q u e tran sco rreu c m rc o fim d a A ntigü idade c o Re­nasc im en to . N o en tan to , tem cresc ido m u ito o reconhec im en to d as realizações d a a lta Idade M édia, en tre os sécu los Vi e X, e. cm conseqüência - com o co m en ta David K now lcs os h is to ­r iado res têm em p u rrad o ca d a vez m ais p a ra trá s essa duv idosa d is tinção , exc lu indo dela o s sécu los VH1, IX e X.

Q uan to ao s sécu los VI e VII. po rém , restam poucas dúvidas d c que foram m arcados p o r um re trocesso cu ltu ra l e in te lec­tual. co m o sc pode o bservar n a ed ucação , na p ro d u ção lite rá ria c em o u tro s âm b ito s sem elhan tes. T erá s ido cu lp a da Igreja? Já h á décadas, o h is to riad o r Will D urant. um agnóstico , defendeu a Igreja d essa acusação , a tr ib u in d o a cau sa d o declfnio. n âo a ela - que fez dc tu d o p ara im pedi-lo m as às invasões b á rb a ­ra s do fim d a A ntigüidade. "A princ ipa l cau sa d o re trocesso cu ltu ra ! - explica D urant - nâo foi o c r is tian ism o , m as a inva­são bá rb a ra ; nâo a religião, m as a guerra . O s aluv iões h u m a ­n os a rru in a ra m ou em p o b receram c idades, m osteiro s, b ib lio te ­cas. escolas, c to rn a ram im possível a vida dos e s tu d an te s e dos cien tis tas . M as a m in a talvez fosse m u ito m a io r se a Igreja nâo tivesse m an tid o u m a certa o rdem cm u m a civ ilização q u e sc d esin teg raxa“ ·.

(I) Will Durant. Canar and Cftrísr. MJF Uookv S eu York, 1950. pág. 79.

II. UMA LUZ NAS TREVAS 13

P or volta dos fins d o sécu lo II. a b a lb ú rd ia dc ir ib o s g erm â­n icas que sc deslocavam d a E u ro p a ccn tra l p a ra o O cidente , no q u e sc c h am o u a V alkerw andenm g - a “m ig ração dos po ­vos" com eçou a p re ss io n a r a s fro n te ira s ro m an as no R eno c no D anúbio. N os séculos segu in tes, co m o o s genera is rom anos se dedicavam a fazer c d esfazer im peradores , ao invés dc p ro ­tegerem a s fron te iras, os b á rb a ro s co m eçaram a in filtrar-se a través d o s vazios ab e rto s n as d efesas d o Im pério . E ssas inva­sões ap re ssa ram o co lapso de R om a e puseram a Igreja d ian te dc um desafio sem p iveedentes.

O im pacto d a s incu rsões b á rb a ra s so b re o Im pério R om ano variou d c a c o rd o co m cad a trib o g erm ân ica . Os godos, q u e t i ­nham s id o au to rizad o s a estabe lecer-se d en tro d as fron te iras do Im pério cm 376. m as se revo lta ram co n tra a s au to rid ad es im peria is em 378. n ão e ram hostis ao s rom anos, an te s resp e i­tavam c ad m irav am R om a c a c u ltu ra clássica: A larico. o gene­ral godo q u e viria a saq u ea r R om a em 410. d epo is d e to m ar A tenas, dcd icou -sc a e x p lo ra r a fam osa cidade , a ad m ira r os seus m o n u m en to s, a a ss is tir ao tea tro e a o u v ir a le itu ra d o 77· ntett, d e P la tão 2. Já o s vândalos n u triam u m a in im izade im p la­cável p o r tu d o o que n ào fosse germ ân ico : saq u earam a c idade dc R om a cm m eados d o sécu lo V c d ep o is co n q u is ta ram o norte d a África, in s tau ran d o ali u m a a u tên tica po lítica d c ge­nocídio.

O u an d o a d iv isão d o Jm pério R om ano d o O cidente em um a co lcha d c re ta lh o s dc re inos b á rb a ro s passou a se r um fato c o n su m ad o c a o rdem política quase d esapareceu , bispos, ta cc rd o tc s c relig iosos iançaram -sc a res tab e lecer so b re a s m i­n as os a licerces d a civilização. O hom em que co n sid e ram o s o "pai d a E uropa", C arlos M agno, em b o ra n ão estivesse com ple­tam en te livre d c resqu íc io s b á rb a ro s , eslava a o m enos iào p e r­su ad id o d a beleza, verdade c su p e rio rid ad e d a relig ião cató lica que fez to d o o possível p ara co n s tru ir sob re ela a nova E uropa p ós-im pcrial.

(2) Hcnri DanicIRnpv A Igrejti dos tempos bárbaros, irad dc K m írkn da Gama. cm História da Igreja de Cristo, vol. 2. Ouadrantc. Sòo Punto. 1991, pág 6*

14 THOMAS t . WOODS JR.

A CONVKRSAO DOS PRIMKIROS BÁRBAROS

Os “b árbaros" que to m aram o Im pério e ram povos ru ra is ovi nôm ades. d c língua g erm ân ica , sem lite ra tu ra e scrita c com p ouca o rg an ização política a fo ra a lealdade a um chcfc. De aco rd o com a lg u m as teo ria s e tim ológicas, ro m an o s e gregos, ao ouvirem as línguas desses povos, só en ten d iam "bar Ixir /xir*. e po r isso os ap e lid a ram de barbari. Na su a m aio ria , e ram tam bém guerre iro s , e a su a fe rocidade chocava o s ro m a ­nos já c ris tian izados. No d ize r d c C h ris to p h e r D aw son, “a Igre­ja teve que incum bir-sc d a ta re fa de in tro d u z ir a lei d o E van­ge lho c a é lica d o S erm ão d a M o n tanha en tre povos que co n si­deravam o hom ic íd io co m o a m ais ho n ro sa d a s o cu p açõ es e a vingança co m o sin ô n im o d c justiça**.

Q uando o s visigodos saq u ea ram R om a. cm 410. S áo Jerôn i- m o. que se en co n trav a em B elém , m an ifestou -se p ro fu n d a m e n ­te tris te e chocado: "Um terrível ru m o r chega do O cidente. R om a está cercad a . Os c id ad ão s salvam a vida a tro co d c ou ro . m as. d ep o is de espoliados, voltam a s e r sitiados c perdem a vida d epo is d e terem p e rd id o as riquezas. N ào consigo c o n ti­n u ar. o s so luços in te rro m p em o m eu d ita d o [ao am an u en se que cscrevc a carta ]. Foi to m ad a a C idade q u e tom ou o m u n d o in te iro !"J E S an to O ricncio , b ispo de Auch, escreveu na p r i­m eira d écada d o sécu lo V so b re a invasão d a G ália pelos fra n ­cos: "Vede co m o a m orte se ab a teu d e rep en te sobro o m u n d o in te iro , q u a n ta s pessoas fo ram ce ifadas pela violência d a g u e r­ra. Nem a s d en sas c selvagens flo restas, nem as a lias m o n ta ­nhas, nem os rio s q u e sc lançam im pe tu o sam en te pelas c o r­redeiras. nem as fo rta lezas n as rem o tas a ltu ra s , nem a s c id a ­des pro teg idas pelas suas m ura lhas , nem os con fin s d o m ar. nem a iristc so lidão d o deserto , nem o s bu raco s ab e rto s no chão . nem as cav e rn as sob os íng rem es rochedos consegu iram escap a r ao s a taq u es b á rb a ro s* 4.

Os francos q u e se in sta la ram na G ália (a a tua l F rança) e ram o m ais n u m ero so desses povos. Ao c o n trá rio d a m aio r

(3) Jocclvn N. Hillg.irtli. ed.. Chriiltaniiv and Paganisin 350· 750: Tlte Cmi- vtnion <>t Western /üirope, Univemilv of Pcnnsvlvania Prvj». Philaddphia. 1986. j** 69.

(4) Jocdyn N. Hilljwiih. cd.. Otnsiieinuv and Pa&tnisni 350-750, p,1g. 70.

II. UMA I.IJZ NAS TREVAS 15

parte d a s trib o s v izinhas, nào sc tin h am co n vertido ao a r ia n is ­m o - a h eresia q u e n c g a \a a d iv indade de C risto , reduz indo-o a um ’'e sp ir ito su p erio r" ou "p rim e ira c r ia tu ra ” de Deus e po r isso p arec iam m ais inclinados a receb e r a fé. Alem d isso , os ga lo -rom anos c ris tão s a in d a co n stitu íam a im ensa m aioria d os seu s súd ito s. Assim , q u a n d o Clóvis (cerca d e 466-511) se to rn o u rei d o s francos, cm 481. os b ispos gauleses v is lu m b ra­ram a su a opo rtu n id ad e . S ào R cm ígio. b isp o d e Reim s, escre ­veu um a c a n a de co n g ra tu laçõ es ao novo rei. lem brando-lhe com o seria benéfico se co lab o rasse c cooperasse com o ep is­copado: “M anifesta d eferência para co m os teu s b ispos, reco r­rendo sem p re a e les em busca d c conselho . E, s c estiveres em h arm o n ia com eles. a lu a te rra p rosperará" . E fetivam ente, sob o seu re inado , o s gau leses foram e q u ip a rad o s aos seus c o n ­qu is tad o re s g erm ân ico s q u a n to a d ire ito s e deveres, a o c o n trá ­rio d o que acon teceu nos d em a is re in o s bárbaros .

A lguns h is to riado res co n jec tu ra ram q u e o ca sam en to de Clóvis com a bela, p iedosa c ca tó lica C lotildc te ria sido in sp i­rad o c a rra n ja d o pelos b ispos, v isando co n v erte r à fé o seu ró- gio esposo. E m b o ra a s co nsiderações po líticas tivessem c e r ta ­m en te desem p en h ad o o seu papel, Clóvis p arece te r lido um a conversão g enu ína , m otivado pelo q u e ouviu so b re a vida de C risto; con ta-se que. q u a n d o lhe re la ta ram a crucifixão , teria exclam ado: “Ah. se eu tivesse e s tad o ali com os m eus francos!" T ardou u n s (rês a q u a tro anos. inas fina lm en te recebeu o b a ­tism o. provavelm ente em 496. S eg u n d o S ào G rcgório de Tours, o b ispo S ào R cm ígio lcr-Jhc-ia d ito an te s d c batizá-lo : “Abaixa a cabcça , 6 sicàm brio! A dora o q u e q u e im aste e q ue im a o que adoraste".

Ainda haviam de p assa r o u tro s q u a tro cen to s an o s a té que Iodos o s povos b á rb a ro s d a E u ro p a O cidental se convertessem , m as e ra um in ic io ausp ic io so . S an to Avito. um destacad o b is­po gaulês, rcconheccu a im p o rtân c ia d a conversão d c Clóvis qu an d o lhe d isse: "G raças a ti. e s te c a n to d o m u n d o resp lande­ce com g ran d e fu lgor c a luz d e u m a nova e stre la c in tila no O cidente. Ao esco lheres p ara li m esm o, esco lheste p a ra todos. A lua fé é a nossa vitória!"

C om o o s povos b á rb a ro s sc iden tificavam fo rtem en te com os seus reis. cm geral bastava que o m o n a rca sc convertesse para q u e lodo o povo o seguisse. Esse processo , no en tan to ,

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nem sem pre sc im plan tava facilm ente nem era hom ogêneo; nos sécu los seguinte*, os sacerdo tes cató licos francos ce leb ra ­vam a m issa p ara os seus. m as co n tin u av am a o fe recer tam ­bém sacrifíc ios ao s an tigos deuses d a n a tu reza... Não bastava, pois, converte r nom ina lm en te o s bárbaros: a ig reja teve que co n tin u a r a guiá-los. tan to para g a ra n tir q u e a conversão sc conso lidasse co m o pnra a sseg u ra r q u e a fé co m eçasse a trans* form ar-lhes o m odo de vida e as institu ições.

A linhagem dos re is m erovingios, à qual pertenc ia Clóvis. perdeu o seu v igor ao longo dos sécu los VI e VII. E ram gover· n an ies incom peten tes c. a lém d isso , lu tavam ferozm ente en tre si; não e ra incorm im que que im assem vivos o s m em bros d c fa­m ílias rivais. N o tran sco rre r d a s su as lu las pelo poder, m u itas vezes conced iam ao s a ris to c ra ta s francos poder e te rritó rio s em tro ca d e apoio , c em conseqüência en fraquec iam -se cada vez m ais. O h is to riad o r N orm an C an to r chegou a descrevê-los na su a ú ltim a fase com o um co n ju n to d e m u lheres, c rian ças e débe is m enlais.

Infelizm ente, a d egenerescência dos m erovingios afetou tam bém a Igreja. N o século VII. os sacerd o tes francos, in fecta­d o s pela dep ravação c im ora lidade , fo ram c a in d o n u m a s itu a ­ç ão cada vez m ais desesperado ra . O estad o d o ep iscopado não e ra m u ito m elhor, pois os hom ens com petiam en tre si p a ra a s ­su m ir o co n tro le d o s b ispados, que p a ra e les rep resen tavam u n icam en te po d e r secu la r e riqueza. A Igreja franca só seria re fo rm ada p o r m issionário s irlandeses e nnglo-saxôes. que po r sua vez tin h am recebido a fé ca tó lica do con tinen te .

A pesar de tudo . no século VIII o Papado re c o n e u ao s fra n ­cos em busca d e pro teção e d e um a aliança q u e perm itisse re s­ta u ra r a civilização c ris tã . A Igreja tin h a d esfru tad o d c um re ­lac ionam en to especial com os ú ltim os im p erad o res rom anos e, a p ó s o co lapso d o Im pério R om ano d o O cidente, m antivera esse bom re lac io n am en to com a ú n ica rem in iscênc ia d a a u to ­r id ad e “rom ana", q u e passara a se r o im p e rad o r do O rien te , cm C onstan tinop la . Mas. no sécu lo VII. o Im pério d o O rien te - q ue nu n ca chegou a se r co n q u is tad o pelos bá rb a ro s germ âni- cos - v inha lu tan d o pela su a p ró p ria sobrevivência co n tra os á rab es e os persas, e deixara de po d e r o ferecer à Igreja um a p ro teção eficaz; p io r a inda , o s basileus b izan tin o s julgavam -se no dever d e in te rv ir constan tem en te na vida d a Igreja em área s

II. UMA LUZ NAS TREVAS 17

que estavam c la ram en te lo ra d a com pctcnc ia d o E stado. As­sim . a lguns eclesiásticos a ch a ram que tin h a chegado o m o­m ento dc p ro c u ra r a ju d a cm o u tro lugar.

A RENASCENÇA CAROLÍNGIA

A Igreja tom ou e n tã o a im p o rtan te d ecisão dc afasta r-se d os im peradores d c C onstan tinop la e p ro c u ra r a p ro teção e cooperação dos francos, que, a in d a sem i-bárbaros . se haviam convertido ao ca to lic ism o No sécu lo VIII, a Igreja abençoou a transfe rênc ia o ficial d o poder d a d in as tia m erovíngia para a tam ília caro líng ia: a fam ília d e C arlos M artel - que, cm 732, havia in fligido a fam osa d e rro ta aos m u çu lm an o s cm T ours - e dc C arlos o G rande, ou C arlos M agno, q u e viria a to m ar-se o pai da E uropa.

Os caro líng ios tin h am sab ido beneficiar-se d o declín io dos m erovíngios. A vocando p a ra si o po sto h e red itá rio de prefeito do pa lác io - um carg o sem elhan te ao dc p rim e iro m in is tro e d em onstrando-se m u ito m ais hábeis e co m p eten tes que os p ró ­prios reis. v inham reso lvendo cada vez m ais os assu n to s o rd i­nário s d e governo, a tal po n to que. cm m eados d o sécu lo VIII. já na posse d o p oder exercido pelos reis, p ro cu ra ram a lcan çar o titu lo co rresponden te . Pepino o Breve, o p re fe ito d o palácio cm 751» escreveu ao p apa Z acarias I perg u n tan d o -lh e se e ra bom q u e u m hom em sem p o d e r fosse c h am ad o rei, e um ho ­m em com po d e r estivesse privado desse títu lo . E n tendendo m uito bem a o n d e Pepino qu e ria chegar, o papa respondeu-lhe que a s itu ação que descrev ia nâo e ra boa e que o s nom es das co isas deveriam co rre sp o n d e r à realidade. Desse m odo, fazen­do uso d a sua reconhecida au to rid ad e e sp iritua l, deu a sua bênção à m ud an ça de d in astia no re in o dos francos. O ú ltim o rei m crovfngio rc tirou -se s ilenc iosam en te para um m osteiro .

Foi ass im q u e a Igreja facilitou a transferênc ia pacífica do p oder d o s d ecrép ito s m erovíngios p a ra as m ãos dos caro lín ­gios, com o s quais, nos an o s seguin tes, os eclesiásticos viriam a tra b a lh a r tâo in tim am en te p ara a re s tau ração d a vida civili­zada. Sob a in fluencia d a Igreja, esse povo b á rb a ro convcr- teu-se em c o n s tru to r da c ivilização. Carlos M agno (rei 768- -8M ). talvez o m a io r de todos os francos, personificou esse

18 THOMAS H WOODS JR.

ideal. (Com a s anexações te rr ito r ia is q u e fez, o re ino franco es* tendeu-sc d a assim ch am ad a M arca E spanho la , a leste, a través da F rança dos tem pos m odernos, a té ao no rte d a Itá lia , ã S u í­ça e a g ran d e p a n e da A lem anha). E m b o ra n áo soubesse es­c rever - a in d a q u e um a lenda popu lar, c la ram en te apócrifa , o ap re sen te co rrig in d o trad u çõ es bíb licas no ú ltim o a n o d a sua vida fom en tou v igo rosam en te a ed u cação e as a rtes , so lic i­tan d o ao s b ispos que o rgan izassem escolas a o red o r d a s su as ca ted ra is . C om o explica o h is to riad o r Jo scp h Lynch, "a e scrita , as cóp ias d e livros, o s trab a lh o s artís tico s c a rq u ite tô n ico s e o pen sam en to d o s hom ens ed u cad o s n as esco las d a s ca ted ra is ou m o n ásticas in cen tivaram u m a m ud an ça na qua lid ad e e na in ten sid ad e d a vida in te le c tu a l" \

O re su ltado desse estim u lo á ed u cação e à s a rte s é co n h ec i­d o co m o R enascença C aro líng ia , e estendeu -se d o re in ad o de C arlos M agno ao de seu filho, Luis. o P iedoso (rei 814-840). Talvez a figura in telectual cen tra l d a R enascença C aro líng ia te· n h a s ido Alcuino (cerca d e 735*804). um anglo-saxão ed u cad o em York po r um p u p ilo d e Beüa o Venerável, o g ran d e sa n to e h is to riad o r eclesiástico , um a d a s m aio res in te ligênc ias d o seu tem po . A lcuino e ra o d ire to r d a esco la d a ca ted ra l d e York, e m ais ta rd e to m o u -se ab ad e d o m oste iro d e S ào M a n in h o de T ours. Além d e d o m in a r u m a g ran d e variedade de assun tos , tam bém se destacava co m o p ro fesso r d e la tim , ten d o a ssim ila ­d o as bem -suced idas técn icas dos seus predecesso res ir lan d e­ses e anglo-saxões. E n s in a r ao povo ge rm ân ico um latim g ra ­m atica lm en te co rre to - h ab ilid ad e difícil d e a d q u ir ir d u ra n te o s instáveis sécu los VI e VII - foi um e lem en to essencial da R enascença C arolíngia.

O co n h ec im en to d o la tim to m o u possível o e s tu d o tan to d o s P ad res d a Igreja la tinos co m o do m u n d o d a an tig ü id ad e clássica . Com efeito , as m ais an tigas có p ia s d a l i te ra tu ra ro ­m ana que ch eg aram a té nós d a ta m d o sécu lo IX. p e ríodo cm que os es tud iosos caro líng ios resg a ta ram essas o b ra s do e sq u e ­cim en to . “As pessoas nem sem p re são consc ien tes - escreveu K cnncth C lark - de que existem ap en as três ou q u a tro m anus-

(5)» Joseph H I.vtkH. The Mediexvl Churçfi: A Brief Historv. Longman, Lon­don. 1992. pág. 09.

ti. IMA LVZ NAS TRKVAS 19

cn to s dos an tig o s au to re s la tinos: to d o o nosso co n h ec im en to iIa lite ra tu ra an tig a sc deve ao tra b a lh o dc com pilação e trans· «Tição in ic iado d u ra n te o re in ad o de C arlos M agno, c é p o r í».sí» q u e q u ase todos o s lex los c lássicos q u e tin h am sobrevivi» <(n a te o sécu lo VIII co n tin u am vivos a iualm cntc"* .

A edu cação caro lfng ia in sp irou -sc nos m odelos d a an tiga Roma. nos q u a is sc d esco b riram a s se te a r te s liberais: o qua- th tv tum d a a s tro n o m ia , m úsica , a ritm é tica e geom etria , c o iri· vuitit da lógica, g ram ática c re tórica· D ada a especial ut^géneia em fom en ta r a cd u cação lite rá ria , o quadrivitin i foi m u itas ve­n s ab o rd ad o su p crfic ia lm cn te n o s p rim eiro s an o s d esse refio- icvcim enlo d a in strução . M as foi esse o te rren o sob re o qual viria a c o n stru ir-se o fu tu ro prog resso in telectual.

O u tm re su ltad o su b stan c ia i d a R enascença C aro líng ia foi a inovação na e scrita , q u e ficou co n h ec id a c o m o a “m in ú scu la carolíngia". A n terio rm en te , o iso lam en to geográfico havia con- liib u id o p a ra a pro life ração d e esc rita s p o r to d a a E uropa oc i­dental. o q u e to m av a difícil le r e co m p reen d e r u m tex to 7. T an ­to m ais que , a lem de n ão haver m inúscu las , tam b ém n ão havia p o n tuação nem sc deixavam espaços em b ran co en tre as p a ­lavras*.

Hrcdegiso (?*S34). o su cesso r dc A lcuino co m o abade de S ão M ortinho, desem p en h o u um papel cap ita l n o desenvolv im ento t- n;t d ifu são d a m inúscu la caro líng ia . com o que a E uropa O cidental passou a d isp o r d e tex tos q u e pod iam sc r lidos e e s ­crito s com relativa facilidade. As ic tras m inúscu las , m ais o s es-

y____V (6) Kcnoeth Clark, CivllizflüOii: A /V w w / Wr»»\ Harpcr Pcrennial. New

Yf*rk, 1969, pAg. 18.(7) Joscph H. I.ynch. T/te M rdtewl Chiirrh, pâg. 95.(#) David Kmnvlcs escrcve que foi Akuíno quem “inuistiu na necessidade

ilr boas cópias dc todos <*s m e lho r» modelos no campo dos livros-tcxlo. mon- itindo ele próprio excelentes scríf/torio cm muito« lugares*. Conferiu 'u m novo Impulso e uma nova técnica à cópia de m anuxn tos. que prosseguiu sem dc· itum euto em muitos mosteiros, dc modo mais metrSdico c com mais amplo al- c»ncc do que antes; c ie\v um instrumento de gnindc poder na assim chama· d« minü<>e«t;i carolfngia. que. na verdade, deve nuuto Ji escviUi da Irlanda c do noile dii Úmbria. Com Alcuino comcçnu a grande cm das cópias dos manus· irltos latinos, patristteos e clássicos, c esse gradual nctimulo de Iívrt»s escritos com mais clarrzn (c corrcv&o) foi de um valor inestimável auando, dois sícu- lm mms tarde. chegou o renascimento mais amplo" (David Kmnvlcs. The fax* im m n 4»/ M edirwl Thotifihl. 1“ cd.. Longman. lx>ndon, I9S8. pág. 69).

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paços en tre as p alav ras c o u tra s m ed idas d e s tin ad as a a u m e n ­ta r a leg ib ilidade, ace le ra ram tan to a le itu ra co m o a escrita . D izem do is e s tu d io so s m od ern o s q u e passou a haver " in su p e­rável g raça c c la reza , c c r tam cn lc decisivos p a ra a sob rev ivên ­cia d a l ite ra tu ra c lássica , q u e pòdc a ssim p lasm ar-sc n u m a fo r­m a q u e iodos pod iam le r com fac ilidade c prazer"*. "N ào have­ria exagero - cscrcvc Ph ilippc W olíf - cm rc lac io n a r essa in o ­vação com a invenção d a p ró p ria im prensa , c o m o do is p assos decisivos p a ra o p rog resso d c u m a civ ilização basead a n a p a la ­vra c sc r ita "1®. A m inúscu la caro líng ia - desenvolv ida pelos m onges - foi, pois, c ruc ia l p a ra a d ifu são d a c u ltu ra na civ ili­zação oc idental.

Os h is to riad o res d a m ú sica fa lam com frequênc ia d a d e sa ­fo r tu n ad a “ân s ia d e p rcsiíg ío” q u e leva m u ito s co m p o sito res a q u e re r im ita r o s gên ios c o s p rodíg ios. F enóm eno s im ila r sc deu no c am p o d a s le tras d u ra n te a R cnasccnça C aro líng ia . E in h a rd , o b ióg rafo d c C arlo s M agno, m o ldou c la ram en te o seu trab a lh o pela Vida dos Césares, d c S uc tôn io , cheg an d o m esm o a p lag ia r p arág rafo s in te iro s dn o b ra do an tig o ro m a ­no. M as de q u e o u tro m odo p oderia d c . um b á rb a ro , a lcan ça r a e legância c a m es tria d c u m a civ ilização tão rica c com ple ta?

M as os ca tó licos d a época d c C arlos M agno, ap e sa r d as su as n o tó ria s ca rênc ias , asp irav am ao n asc im en to dc um a civi­lização m u iio m a io r q u e as d a G récia c d a R om a an tigas , p o r ­que , co m o d iz ia A lcuino, eles possu iam um v a lo r q u e o s a n ti­gos n ào possu íam : a fé ca tó lica . M odclaram -se co n fo rm e a a n ­tiga A tenas, m as estavam convencidos d e q u e se riam m aio res qu e A tenas, po is possu íam u m a péro la de g ra n d e p reço que nào eslava a o a lcan ce d o s seu s predecesso res gregos, ap e sa r dc to d o s o s seus êx itos. O e n tu s ia sm o d e A lcuino e ra lào g ra n ­de q u e o levou a escrever a C arlos M agno, em le rm o s ex trav a ­gan tes . so b re o s cu m cs d a c iv ilização q u e ele achava possível ating ir:

(9) Leighton Durham RcynokU c Nigel C. Wilson. Scnbei and Scholars: A Guide to th< Transmission o f C n tk and /.aim Ijteralitn . ¥ cd.. Clarendon Press. Oxford. 1991. p4|t. 95.

(I0> Philippc Wolff. The Awakeniitf· of Europe. IXth-XHrh Ceitluries. Pen- guin Books, Nov York. IV68. pág. 57.

II. UMA LUZ NAS TREVAS 21

MSc m u ito s sc de ixarem c o n tag ia r p o r essa a sp iração , cria r-sc -á n a F rança u m a nova A tenas, u n ia A tenas m ais re finada q u e a an tig a , p o rq u e , eno b rec id a pelos en s in am en ­to s dc C risto , su p e ra rá toda a sab ed o ria d a A cadem ia. Os an tig o s tiveram po r m estre s a p en as a s d isc ip linas d e P la­tão . que. in sp irad as n as sete a r te s liberais, a in d a b rilham com esp lendor: m as os nossos e s ta rã o d o tad o s tam b ém dos se te d o n s d o E sp irito S an to c su p e ra rã o em b rilh o toda a d ig n id ad e da sab ed o ria secu la r” 11.

0 esp írito d a R enascença C aro líng ia n u n ca a rre feceu , a p e ­s a r d o s te rríve is go lpes in fligidos pelos invaso res vikings, m a­g iares c m u çu lm an o s nos sécu los IX c X. M esm o nos d ias m ais teneb rosos d essa s invasões, o esp írito de e s tu d o p e rm an e ­ceu sem p re vivo nos m o ste iro s c ass im to m o u possível o seu p leno ren asc im en to em tem p o s m ais calm os.

A LENTA RECONQUISTA DO CONHECIMENTO

D epois d a m o rte d e C arlos M agno, a in ic ia tiva d a d ifu são do co n h ec im en to reca iu cad a vez m ais so b re a Igreja. Diversos concílios locais c lam aram pela a b e r tu ra d e esco las, co m o o c o r­reu nu m s ín o d o na B avária (798) ou nos conc ílio s de C hálons (813) c Aix ( 8 I6 ) ,J. O am igo dc A lcuíno, Teodulfo . b ispo dc O rlcans c ab ad e dc Fleury, tam b ém incitou a ex p an d ir a ed u ­cação: “N as a ld e ias e c idades, os sace rd o te s devem a b r ir esco ­las. Sc a lgum d o s fiéis lhes c o n fia r o s seu s filhos para q u e a p ren d am le tras, n ào devem recusar-se a in s tru ir esses pupilos com ab so lu ta c la reza , u san d o de toda a ca rid ad e [...}. D esem ­pen h a rão essa ta re fa sem p ed ir n en h u m pag am en to c. sc rece ­berem a lgum a co isa , que sejam a p en as p equenos p resen tes o ferecidos pelos p a is‘*,j.

C om o e d u cad o ra d a E uropa , a Igreja foi a ú n ica lu/. que sobreviveu às c o n s tan te s invasões b á rb a ra s d o s sécu los IV c V

{II) Philippe Wolfí. Jlte A uvkaung o) Kumpc. pá*. 77.(12) Philippe WolfT, flie Awaltening o/ lítirvi*. pigs. 48-49.(13) David Knoxvlcs. Tire Hvoftition of Medieval Tttouglu, pág. 66.

22 THOMAS E. WOOOS JR

c, nos sécu los IX c X. às m ais d ev astad o ras o n d as d c a taques, de sta vez d o s vikings, m ag iares c m uçu lm anos, com o d issem os acim a. (P ara sc le r um a ideia d o q u e foram es ta s invasões, te ­nha-se cm c o n ta q u e um d o s m ais co n hcc idos g u e rre iro s vi- kings e ra c h a m a d o T horfin Q ucbra-c rân ios). A visão c e rte ira e a d e te rm in ação d o s b ispos, m onges, pad res , es tu d io so s c a d m i­n is trad o re s civis ca tó licos sa lvaram a E u ro p a d e um segundo co la p so 14. T udo isso sc deveu às sem en tes d a in s tru ç ã o p la n ta ­das po r A lcuíno. C om o escreveu um e ru d ito , “hav ia a p en as u m a trad ição disponível: a q u e p rov inha d a s esco las fo m en ta ­das p o r A lcuíno“ 15.

Após o d ec lín io d o Im pério caro líng io . seg u n d o o h is to ria ­d o r C h ris io p h c r D aw son. o s m onges in ic ia ram a rc cu p en içào do saber:

M0 s g ran d es m oste iro s , e sp ec ia lm en te o s d o sul d a Ale­m an h a — S a in t Gall. R cichcnau e T cgcrnsec foram as ú n ica s ilhas rem an escen te s d a vida in telectual no m eio do refluxo d o b a rb a r ism o que. m ais u m a vez, am eaçava su b ­m erg ir a C ris tandade . P orque, em b o ra a v ida m onástica pareça à p rim e ira v ista u m a in stitu ição po u co ap ia p a ra re ­s is tir à d e s tru ição m a teria l d c u m a época d c g u e rra s e sem lei. d em o n s tro u p o ssu ir um ex trao rd in á rio p o d e r d c re c u ­peração"

Esse po d e r d c recu p e ração d o s m o ste iro s m an ifeslou -sc na rap idez e in ten sid ad e com q u e tra b a lh a ra m p a ra re p a ra r a d e ­vastação d as invasões e o co lap so político.

"N oventa e nove dc cad a ccm m oste iro s pod iam se r q u e im ad o s e o s seus m onges a ssa ssin ad o s ou expulsos, m as b astava que íicassc um ún ico sobrev ivente p ara q u e sc reco n s tru ísse toda a trad ição ; e o s lugares a rra sad o s não ta rdavam a se r repovoados p o r novos m onges, q u e rctom a-

(U> Philippe Wtilff. 77»r Aivakening o f Htimpe, pájjv 153 c scgs-(15) Andrexv Fleming West. A kuin and ilu Ri*e o f lhe Chntiian Schools,

Charle« Scnbncr» Sons. New York. 1892. páy. 179.( J6>*ChnMophcr Dawson. ReligUm and t/te Rite of VVesíent Cfiífiir*. Image

Book*. New York. 1991 (1930). pág. 66.

II. UMA LU7. NAS TREVAS 23

vam a trad ição in te rro m p id a . segu indo a s m esm as regras, c an tan d o a m esm a litu rg ia , lendo o s m esm os livros c lendo os m esm os p en sam en to s q u e o s seus p redecessores. Foi a s ­sim que a vida m on ástica c a c u ltu ra m onaca l re to m a ra m na ópoca d c S ão D unstan à Ing la te rra e à N orm and ia . v in­do s d e F ieury c G hcn t. d epo is d c m ais d c um sécu lo dc co m ple ta destru ição ; d a i resu ltou que , um sécu lo m ais ta r ­de. o s m o ste iro s n o rm an d o s c ing leses sc co n tavam nova­m en te en tre os líderes d a c u ltu ra o c id e n ta l" 17.

E sta p reserv ação d a h e ran ça clássica o c iden ta l c d a s ideali­zações d a R enascença C aro líng ia n âo foi co isa sim ples. H ordas dc invasores saq u ea ram m u ita s vezes os m oste iro s c in cen d ia ­ram b ib lio tecas, cu jo s vo lum es e ram m ais prec io sos p a ra a co ­m u n id ad e in telectual d aq u e le tem p o d o q u e podem im ag in a r os le ito res m odernos, tão a c o s tu m ad o s a o fe rta s b a ra ta s c ab u n d an te s d c livros. D aw son tem toda a razão cm d ize r que fo ram os m onges q u e p reservaram d a ex tinção a luz d o co n h e ­cim en to .

U m a d a s lu m in á ria s d o p r im e iro e s tág io d a reco n q u ista foi G crb crto dc A urillac, q u e m ais ta rd e sc to m a r ia o p ap a Silves- trv I I (999-1003). K ra sem d úv ida o hom em m a is cu lto d a E u ­ropa na su a época , tcndo-sc to m a d o fam oso pela v astidão dos seus co n h ec im en to s, que ab ran g iam a s tro n o m ia , lite ra tu ra la ti­na, m atem á tica , m úsica, filosofia e teologia. A su a fom e de m an u sc rito s an tig o s evoca-nos o en tu s ia sm o d o sécu lo XV, q u a n d o a Igreja ofe rec ia reco m p en sas aos h u m a n is ta s q u e re­cu p erassem tex tos an tigos.

A p a r tir d o s an o s 970, G erb erto d irig iu a esco la ep iscopal de R eim s - o n d e e s tu d a ra lógica av an çad a c pôde dedicar-se in te iram en te ao e stu d o e ao ensino . "A fé faz viver o ju s to - d i­zia ~. m a s é bom ad ic io n ar-lh e a c iên c ia "1*. Pôs m u ita ênfase n o cu ltivo d a cap ac id ad e dc rac ioc ín io , q u e n ão cm vão foi d ad a ao ho m em p o r Deus: "A d iv in d ad e concedeu um g rande

(17) Christopher Dawson. Rí Iíríoh and i/k o f Western Cid/uor; grifo

(18) Hcnn Danicl-Rops. A Igfrja dos tentptix bárbaros, pág. 54tf.

24 THOMAS E. WOODS JR.

dom aos hom ens, concedendo-lhes a fé c, ao m esm o tem po , I n ão lhes n egando o co n h ec im en to - escreveu A queles q u e I n ão o po ssu em sã o ch am ad o s to los“ w.

Em 997. o im p e rad o r a lem ão O tto II! escreveu-lhe im plo- ran d o a su a a ju d a . D esejando a rd en tem en te a sabedoria , reco r- , reu ao fu tu ro papa: “Sou um ig n o ran te - confessou e a m i­n h a ed u cação foi e n o rm em en te negligenciada. Vem e a juda-m e. Corrige o q u e este ja e rra d o c dá-m e co n se lh o s p a ra q u e gover­ne o im pério com re tidão . Despe-m e d a m in h a g ro sse ria saxò- n ica e fom en ta a s co isas que herdei dos m eus a n tep assad o s gregos. Explica-m e o livro d e a ritm é tica que m e enviaste**. G er- b e rto aced eu a leg rem en te ao pedido d o rei. “S en d o g rego p o r n asc im en to c ro m an o pelo im p é rio - a ssegu rou -lhe p odes p e ­d ir p o r d ire ito de h e ran ça os teso u ro s d o s g regos c a sab ed o ria d o s rom anos. N 5o é v erdade q u e h á neles a lgo d e divino?***0

A d ed icação de G crb c ilo ao en s in o e a in fluênc ia que exer­ceu nos p ro fesso res e p en sad o res po ste rio re s fo ram em b le m á ­ticas na ivcu p c raçào d e um sécu lo d e invasões d a E u ro p a , u m a re cu p e raçáo que te ria s ido im possível sem a in sp iração d a Igreja.

O trab a lh o c a s in tenções d a Igreja v iriam a traze r os seus m aio res fru to s no desenvo lv im en to d o sis tem a u n ivers itá rio , c o m o verem os d aq u i a pouco; m as a n te s an a lisem o s a s se m e n ­tes d a in s tru ção p lan tad as pelos m osteiro s.

(19) Philippe Wolff. 7'he AwukcnhiR o f E um /x. pág. I{53.(20) Philippe Wolff. TJte o f EmíO/x, págs. 177-17#.

COMO OS M ONGES SALVARAM A CIVILIZAÇÃO

I I I .

Os m onges d e sem p en h a ram um papel cruc ia ! n o desenvo l­v im ento da civ ilização oc iden ta l. À ju lg a r pelas p rá tica s dc a s ­cese a q u e se d ed icavam , d ific ilm en te se p oderia im ag in a r o en o rm e im p ac to q u e viriam a p ro v o ca r n o m u n d o cM crior. M as esse falo h is tó rico su rp reen d e m enos q u an d o nos lem b ra ­m os d a s pa lav ras de C risto: Procurai prim eiro o reino dos céus

tu d o o m a is vos será dado p o r acréscim o. Essa é, cm p oucas palavras, a h is tó ria d o s m onges.

ÍNÍCIOS DO MONAOtISMO

As fo rm as m ais an tig a s d a v ida m on ástica su rgem já n o sé ­cu lo I I I 1. E nco n tram o -la s em S áo Paulo dc T cbas c no m ais p o p u la rm en te co n h ec id o S an to A ntáo d o Egito (tam bém co ­n h ec ido p o r S an to A ntáo d o deserto ), que viveu en tre o s m ea ­

(1) Philip Hughes. A History o f iIk Church, vol. I. cd. rev.. Shecd and Ward, tendon , 1948, pig». 139-139. Forum prenunciadas, segundo atguns his· tori*KÍotvk. pela* “virgen»“. mulheres que. desde os p ri menus (empo* do cris­tianismo. renunciavam ao casamento e se dedicavam bo cuidado dos pobres c

26 THOMAS U WOODS JR.

do s d o sécu lo III c os d o IV. c se fez e rem ita , re tiran d o -sc para o s d eserto s d o F.gito em bu sca da su a p erfe ição esp iritu a l pes­soal; o q u e n ão im ped iu q u e o seu g ra n d e exem plo tivesse le­vado m ilhares a ju n ta r-se a ele. j

A v ida d o s e rem ita s tin h a p o r ca rac te rís tica q u e se re tira* , vam para um lu g a r rem o to e so litá rio , a fim d e p o d e rem re - j n u n c ia r à s co isas m u n d a n a s e co n cen tra r-se in ten sam en te na su a vida esp iritua l. V iviam so z in h o s ou cm g ru p o s dc d o is o ti | três, h ab itav am cm cavernas ou em cab a n a s s im ples, e su s te n ­tavam -se com o que pudessem p ro d u z ir nos seus pequenos] c am pos o u co m trab a lh o s co m o o fab rico m an u a l d e cestos. A , a u sênc ia d c u m a a u to r id ad e q u e d irig isse o seu reg im e e sp ir i­tual levou a lg u n s deles a o b se rv a r p rá tica s esp iritu a is c p en i­tenc ia is pouco com uns. De a c o rd o com Philip H ughes, um c o m p eten te h is to riad o r d a Igreja, “havia e rem ita s q u e m al co ­m iam ou d o rm iam , c o u tro s q u e p e rm an ec iam im óveis p o r sc- m an as a fio o u sc fechavam em tu m b a s e lá p e rm an ec iam d u ­ra n te anos. recebendo a p en as um m ín im o d c co m id a através de fendas n a parede"

O m o n aq u ism o cenob itico - m onges q u e p assa ram a viver ju n to s n u m m oste iro co m o qual es tam o s m ais fam ilia riza ­dos. desenvolveu-se cm p a rte co m o u m a reação c o n tra a v ida d os e rem itas c cm reco n h ec im en to d e q u e os h o m en s devem v iver cm com un idade . Essa foi u posição d c S ào B asílio o G rande, q u e desem p en h o u um papel im p o rta n te no desenvolv i­m en to d o m o n aq u ism o o r ien ta l. N ão ob stan te , a v ida e rem itica nu n ca d esap areceu co m p le tam en te ; m il an o s d ep o is d e S ào P aulo de T ebas. um erem ita Foi e le ito papa. com o nom e dc C elestino V.

O m o n aq u ism o o rien ta i in fluenc iou o O cidente de m u ita s m aneiras: a trav és d as viagens de S an to A ianásio , p o r exem plo, e d o s e scrito s d e Jo âo C assiano - um ho m em d o O cidente que conhec ia bem as p rá tica s o rien ta is . M as o m o n aq u ism o oc i­d en ta l deve m u ito m ais a um dos seus p ró p rio s m onges: S ão B ento de Nhirsia. S ào B ento e s tab e leceu doze p eq u en as c o ­m u n id ad es d e m onges cm S ubíaco , a tr in ta e o ito rniJhas de Rom a, c depois, c in q u en ta m ilhas ao sul. foi fu n d a r M onte

(2)/&«/.. pá*. 140.

III. COMO OS MONCldS SALVARAM A CIV1LIZAÇÀO 27

« itssino, o g ran d e m o ste iro peio q u a l é lem brado . Foi aqui, í -I volta d o a n o 529, q u e co m p ô s a fam osa Regra de S ão líín io , cu ja excelência se re llc te no falo d c te r s id o u n iversa l­m ente a d o lad a em io d a a F .uropa O cidental nos sécu los p o ste ­riores.

A m od e ração d essa Regra, a ss im co m o a sua e s tru tu ra c o rdem , facilitou a su a d ifu são pela E u ropa . C o n tra riam en te

m oste iro s irlandeses, que e ram co n hec idos pe las su a s seve­ras privações (m as que, a p e sa r d isso , a tra íra m um considerável núm ero de hom ens), os m o ste iro s ben ed itin o s assegu ravam nos seus m onges a lim en tação e d escan so ad eq u ad o s, a in d a que d u ran te o s tem p o s p en iten c ia is o reg im e pudesse to m ar-se m ais au ste ro . O m onge b en ed itin o típ ico vivia n u m nível m a te ­rial com parável a o d o s cam p o n eses ita lian o s d a época.

C ada m o ste iro ben ed itin o e ra ind ep en d en te de todos o s o u ­tros c lin h a um a b ad e que cu idava d o s a ssu n to s da casa e da lx>a o rdem . A n terio rm en te , os m onges tin h am a lib erd ad e de p e ram b u la r de um lugar p a ra o u tro , m as S ão B ento concebeu tim e stilo d c v ida m on ástico em que cad a um p erm anec ia fixo no seu p ró p rio m o s te iro 3.

S ão B en to tam b ém e lim inou d a ex istênc ia d o m onge q u a l­q u e r vestígio d o seu passad o no m undo , q u e r tivesse s ido de g rande r iqueza ou d e sc rv idào e m iséria , po rq u e iodos eram iguais cm C rislo . O a b ad e ben ed itin o “n ão deve la /.er d is tin ção en tre a s pessoas d o m o ste iro [...]. U m hom em livre n ão deve se r p re fe rido a o u tro nasc ido em serv idão , a m enos q u e haja a lgum a cau sa razoável. Porque, se jam os escravos ou livres, so ­m os to d o s um cm C risto [...]. D eus n ão faz acepção d e pes­soas".

Ao re tira r-se para um m osteiro , o m onge p ro p u n h a -se cu lti­var u m a v ida esp iritu a l m ais d isc ip lin ad a e d ed icad a a iraba- Ihar pela su a sa lvação n u m a m b ien te e so b um reg im e que fa­vorecesse esse p ro p ó sito . A in ten ção dos m onges não e ra levar a cab o g ran d es façan h as cm benefício d a c iv ilização eu ropé ia .

(3) No inicio do vjculo X. com o cMabclecintcnio do mosteim dc Cluny, imikkIu iíu -sc um ccrto grau dc centralização na tmdiçâo beneditina. O abade dc Cluny possuía autoridade »obre todos os mosteiros afiliados àquela casa. de>ignando priores para dirigir as atividades cotidianas de cada um.

28 THOMAS E. WOODS JR

em b o ra tivesse ch eg ad o u m m o m en to em q u e viriam a ab ra ç a r o trab a lh o p ara o qual o s tem pos pareciam cham á-los.

D uran te um período d e g ran d e tu rbu lênc ia , a trad ição be­n ed itina m anteve-se in tac ta c a s su a s casas p e rm an eceram com o oásis de o rdem e d e paz. Pode-se d izer d e M onte C as­s ino. a easa-m üe dos beneditinos, q u e a su a p ró p ria h is tó ria re ­fletiu essa perm anência . S aq u ead a pelos b á rb a ro s lom bardos cm 589, d es tru íd a pelos sa rracen o s cm 884. a rra sad a p o r um te rrem o to cm 1349, p ilhada pelas tro p as francesas em 1779 e a rra sa d a pelas b o m b as d a S egunda G u erra M undial cm 1944, M onte C assino recusou -se a desaparecer, po is d e cad a um a d essas vezes os seus m onges to m aram a reconstru í-lo '1.

As sim ples esta tís tica s d ific ilm en te podem fazer ju s tiç a às realizações bened itinas , m as a verdade é que, nos com eços do sécu lo XIV, a O rdem já p ro p o rc io n ara à Igreja 24 papas. 200 cardea is . 7.000 arceb ispos. 1.000 b ispos e 1.500 san to s ca n o ­n izados; e. cm com eços d o sécu lo XIV. te ria c o n tad o 37.000 m osteiros, n ú m ero talvez exagerado. E a su a in fluência n âo se deu som en te d en tro d a Igreja; o seu ideal m o nástico fo» tâo exa ltado cm toda a sociedade que chegou a s e r perfilhado por p e rto d e vinte im peradores, dez im pera trizes , q u a ren ta e sete re is c c in q ü en ta ra in h a s5. G rande p arte d o s m ais poderosos d a E uropa aco lheram -se, pois, à vida hum ilde c ao regim e esp iri­tual d a O rdem bened itina , co m o tin h a aco n tec ido en tre o s b á r­b a ro s com figuras com o C arlom ano dos francos c R ochis dos lo m b ard o s6.

AS ARTliS PRÁTICAS

E m b o ra as pessoas in stru íd as pensem que toda a co n trib u i­ção d o s m oste iro s m edievais p a ra a c iv ilização ocidental se c ir-

(4) Will Duiam, The A& o f Faith. MJF Books. New York. 1950. pdg. 519.(5) C. Cyprian Alston, "The Benedictine Order", cm Charles G. Heber-

mann. Kdvvard A. Pacc. Condi B. Pallen. Thomas J. Shahan c John i. Wynne, cd».. Catholic liiicyclupedia. The Kttcytlopcdia Press. 1913. Os aritgos podcm scr encontrados cm iranK riyio cm hltp://occ-calholk.com.

(6) Alexander Clarencc Flick. The Rise o f the Mediewl Church. Bun Frank­lin. N’ew York. 1909, pig. 216.

Ill COMO OS MOKGKS SALVARAM A CIVILIZAÇÃO 29

cunscrevcu á busca da cm d iç ã o c da cu ltu ra , náo se deve p as­sa r p o r a lto o im pu lso que d eram òs ch am ad as a rte s prá ticas. A ag ricu ltu ra é um exem plo particu la rm en te significativo. No in i­cio do sécu lo XX. H enry Goodell, p residen te do que en tão e ra o M assachuse tts A gricultural College, exaltou "o trab a lh o d a q u e ­les g ran d es velhos m onges ao longo dc 1500 anos. E les salva­ram a a g ricu ltu ra q u an d o n inguém m ais poderia fa /ê-lo . P ra ti­caram -n a no con tex to dc u m a nova form a dc vida c dc novas condições, q u an d o n inguém m ais ousava em p reen d ê -la ''7.

É expressivo o te stem u n h o d c o u tro especialista : “Devem os aos m onges a recu p eração agríco la d c g rande p arte da E u ro ­pa". O u tro ac re scen ta a inda : "Em q u a lq u e r lugar cm que esti­veram , co nverte ram te rra brav ia cm cam p o s cu ltivados: dedi- ca ram -sc ã c riação de gado c à ag ricu ltu ra , trab a lh a ram com as su as p ró p ria s m ãos. d ren a ram p ân tan o s c d e sm a ia ram flo­restas. Por e les a A lem anha to m o u -se um pais fértil". O u tro h is to riad o r ap o n ta que "todos os m oste iro s b ened itinos eram um a esco la d c ag ricu ltu ra para toda a reg ião na qual estavam situ ad o s"4. N o século XIX. o po lítico c h is to riad o r francês F rançois G uizo t, q u e não tin h a especial s im p atia pela Igreja C atólica, observou: “Os m onges b ened itinos foram o s ag ricu l­to res d a E uropa : tran sfo rm aram -n a em te rra s dc cu ltivo cm larga escala , asso c ian d o ag ricu ltu ra e oração'*’ .

O trab a lh o m anual, cspcc ia lm cn tc exigido peia R egra dc São Bento, desem p en h o u um papel cen tra l na vida m onástica . A inda que a Regra fosse conhcc ida pela su a m oderação e pela aversão a p en itênc ias exageradas, o s m onges ab raçavam com gosto as ta re fas m ais d ifíceis c m enos a traen te s , po rque as en ­caravam com o can a is d a g raça c o p o rtu n id ad es de m o rtifica r a carnc : isso c ra bem ev idente no trab a lh o d e m o n d a r e p rep a ra r a te rra . A respe ito dos pân tanos, p w dom inava a idéia d e que não tin h am n enhum valor e eram focos de pestilência. M as os m onges a ssu m iram o desafio que rep resen tava represá-los c

(7) Mcnrv II. Goodcll. T h e Influence ol the Monks in Agriculture". d is­curso pronunciado diante do Massachusetts Slate Board of Agriculture. 23.08.1901. cm The Goodell Papers. Univci>ii> ol Massachusetts. AmhcrM.

(8) Alexander Clarcncc Flick. The Rise of tfte Mediewt Church, pág. 223.(9) Cfr. John Henry Newman. Essay> ami Sketches. «»I. 3. Charles Frede­

rick llairold . ed.. Longmans. Green and Co.. New York. IV48. pigs. 26**-265.

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drená-los, c cm pouco tem po conseguiram tran sfo rm ar o que a te en tâo c ra u m a fonte dc doenças c im undície em fértil terra cu ltiv ad a ,0.

M ontalem bcrt, o g rande h is to riad o r dos m onges do século XIX. rendcu-lhcs hom enagem pelo g rande trab a lh o agrícola q ue em preenderam . "É im possível esquecer - escreveu - com o soubernm ap rove ita r ião vastas te rras incu ltas e desab itadas (um q u in to dc todo o te rritó rio d a Ing laterra), cobertas dc flo­restas e cercadas dc p ân tan o s”. E ssas eram . co in efeito, as ca ­rac te rís ticas da m aio r parte d as te rra s que os m onges ocupa* vam. em parle po r serem lugares m ais re tirados c inacessíveis - o que favorecia a vida em solidfio e em p arte po r se rem te r­ras que os doadores leigos lhes o fereciam m ais fac ilm en te“ . Ao desm aiarem as florestas para destiná-las ao cu ltivo e habitação , tinham o cu idado de p lan ta r árvores e dc conservar as m atas, d en tro do possível

Um exem plo p a r ticu la rm en te vivo da sa lu ta r influência dos m onges no seu en to rn o físico é o que nos d ão os p ân tanos de S ou tham pton . na Ing laterra . Um especialista dcscrcve com o e ra essa rcg iào n o século VII. an te s da fundação da ab ad ia de Thom cy:

"Nâo passava dc um enorm e pântano . Os charcos, no século VII. eram provavelm ente parecidos com as florestas da desem bocadura do M ississipi ou a s m arism as d as C aro- linas: um lab irin to dc e rran te s córregos negros; g randes la­goas, a to leiros subm ersos a cada m aré d a prim avera; en o r­m es extensões d e juncos, ca rriços e sam am baias; g randes b osques d e salgueiros, am ie iro s e á lam os cinzentos; flores­tas dc abetos e carvalhos, freixos e álam os, aveleiras c tei­xos, que cm o u tro tem po haviam crescido naquele solo b a i­xo e fétido, agora eram engolidas len tam en te pela tu rfa flu­tuan te . que vagarosam ente devorava tudo , em bora tudo conservasse. Árvores de rru b ad as pelas inundações e tor-

(10) Henrv tf. Goodcll. "The Influente of the Monks in Agriculture'. pá£.Il

<IJ) Ibid.. pAg. 6(12) Chorle* Monialcmbcrt. 77« Monks of due West: from St. Benedict to

St. Bernard, vol. 5, Nimmo, Londrc.v 1896. pág. 20£.

III COMO OS MONGES SALVARAM A CIVILIZAÇÃO 31

m ontas flutuavam c sc acum ulavam , rep resando as águas sob re o icrrcno . C órregos desno rteados nas florestas m u d a ­vam de leito, m istu ran d o lim o c a reia com o solo negro da tu rfa. A n a tu reza , aban d o n ad a ao seu p róp rio cu rso , co rria cada vez m ais p ara um a selvagem desordem c caos, a té tran sfo rm ar todo o cha rco cm um lúgubre pântano*'

Cinco séculos depois, foi assim que W iliiam dc M almes- bury (ccrca dc 1096-1143) descreveu essa região:

"É um a réplica d o paraíso , onde parecem rcflctir-sc a delicadeza c a pureza do céu. N o m eio das lagoas, cr- guenvsc bosques de árvores que parecem to ca r as estre las com as su as a ltas c esbeltas frondes; o o lh a r fascinado va­gueia sobre o m ar dc ervas verdejantes, os pés pisam as am plas p radarias sem e n co n tra r obstácu los no seu cam i­nho. Até o nde a vista alcança, nenhum palm o de te rra está p o r cu ltivar. Aqui o solo é escondido pelas árvores fru tífe­ras; acolá, pelas v inhas estend idas sob re o chão ou puxadas p ara o a lto sob re caram anchões. N atureza c a rte rivalizam , u m a su p rin d o tudo o que a ou tra csqueccu de p roduzir. Ó p ro funda c am ável solidão! Foste d ad a po r Deus aos m o n ­ges, p ara que a su a vida m ortal pudesse aproxim á-los d ia ­r iam en te do céuM u .

Aonde q u e r que tenham ido. os m onges in troduz iram p lan ­tações, indústrias ou m étodos dc produção dcsconhccidos do povo. Aqui in troduz iam a c riação dc gado c dc cavalos, ali a e labo ração da ccrveja, a c riação dc abe lhas ou a p rodução dc frutas. Na Suécia, o com ércio dc ccrca is deve a su a existência aos m onges; cm Parm a. a p rodução do queijo: na Irlanda, a pesca do sa lm ão e. cm m uitos lugares, as v inhas de a lta qua li­dade. O s m onges represavam as águas das nascentes a fim de d istribu í-las cm tem pos de seca. Foram os m onges dos m ostei­ros dc Saint L aurent c Saint M artin que, observando as águas

Jt3 ) llcnry H. Goodvfl. 'The Influcncc of lhe Monk.s in Agncultuiv*. pAg$.

(M) thid . . pág. S.

32 THOMAS E. WOODS JR

d as fontes espaiharcm -sc inu tilm en te pelos p rad o s dc Saint G a v a is e Bcllcvillc. as c a n a li/a ram para Paris. Na Lom bardia. os cam poneses ap renderam dos m onges a irrigação , o que con ­tribu iu poderosam en te para to rn a r a reg ião tão fam osa cm toda a E uropa pela su a fertilidade e rique/.a. O s m onges foram os prim eiros a trab a lh a r na m elhoria d a s raça s d o gado. cm vez dc as de ixar evolu ir ao a c a s o 15.

Em inúm eros casos, o bom exem plo d o s m onges serviu dc in sp iração a m uitos, cspccialm entc incen tivando-os a respe ita r c h o n ra r o traba lho m anual cm geral c a ag ricu ltu ra em parti* cu lar. ”A ag ricu ltu ra tinha en trad o em decadência - d iz urn estud ioso O que o u tro ra tinham sido cam p o s férteis, estava agora coberto de charcos e os hom ens que deveriam te r cul- tivado a te rra rejeitavam o a rad o com o algo degradante". Mas qu an d o o s m onges em erg iram d as su as celas para cavar valas e a ra r os cam pos, “esse em penho teve um efeito m ágico. Os cam poncscs re to m aram a um a ativ idade nobre, m as despreza· cia- **.

O papa S ão G regório M agno (590*604) con ta-nos um a reve­ladora história sob re o ab ad e Equitius, um m issionário do sé- cu to VI dc notável e loqüência. O uando um enviado pontifício foi ao m osteiro procurá-lo , d irig iu-se im ed ia tam en te jxo scripto­rium - a sala d estinada à cóp ia dos textos - , e sperando encon­trá-lo en tre os copistas. M as não estava lá. Os calig rafos lim ita- ran v se a dizer: “E stá lá cm baixo, no vale. co rtan d o o feno“ ,I.

Os m onges tam bém foram pioneiros na p rodução d o vinho, que utilizavam tan to para a celeb ração da S an ta M issa com o p a ia o consum o o rd inário , expressam ente p e rm itido pela Re­gra dc Sào Bento. Pode-se a tr ib u ir a descoberta do ch am p an h e a Dom Perignon. um m onge da abad ia dc S ão Pedro, cm Haut* villicrs-no-M arne. E ncarregado cm 1688 de cu id a r da adega da abad ia , esse m onge descobriu o cham p an h e m istu ran d o d iver­sos tipos de vinho. 0 p rinc ip io fundam en ta l que ele estabeleceu con tinua a n o rtea r a té hoje a produção desse e sp u m a n te 1*. Tal-

(15) Ibiâ.. p6g». 8-9.(16) Ibid.. pig. 10.(17) Charles Momalembcrt. Vic Mi»tks o f the 1 Veit, vol 5. pàgv 198-9.(18) John H O'Connor. Monauicii'tt and Civilimuott. PJ . Kcnncdv ti

Sons. New York. 1921. pàgs. 35-6.

Ill COMO OS MONGES SALVARAM A CIVILIZAÇÃO 33

vez nào lâo g lam ourosas com o algum as con tribu ições in telec­tuais dos m onges, essas ta re fas c ilic ia is foram quase tâo im- po rtan les com o a s que co n trib u íram para a con stru ção c p re ­servação da civilização d o O cidente, n u m a época de tum u lto c d esesperança generalizados.

Os m onges tam bém d eram um c o n trib u to im p o rtan te à tec ­nologia m edieval. Os cistcrcienses - um a O rdem beneditina re­form ada. estabelecida em Citeaux em 1098 - e ram m uito co­nhecidos pela sua sofisticação tecnológica; qu a lq u er avanço ob tido difundia-se rap idam en te g raças à vasta rede de co m u n i­cação que ligava os d iversos m osteiros: é p o r isso que en co n ­tram os sistem as h idráu licos m u ito sim ilares em m osteiro s s i­tuados a g rande d is tânc ia u n s dos ou tros, a té m esm o a m ilh a ­res d e m ilh a s**. HEsses m osteiros - escreve um h is to riad o r - eram v e rdade iram en te as u n id ad es fabris m ais p rodutivas dc todas as que haviam existido a té e n táo na E uropa c talvez no m undo" w.

A com un idade m onástica cisterciense tin h a gera lm en te as suas p ró p rias fábricas p ara a p ro d u ção d e energ ia hidráu lica , que lhes servia p ara m o er o trigo, p en e ira r a farinha, lavar a roupa c tra ta r o co u ro , ‘. Sc o m un d o da an tigü idade clássica náo adotou a m ecanização p ara fins industria is em grau sign i­ficativo. já o m u n d o m edieval o fez cm larga escala, com o sc vê p o r um re la tó rio d o m osteiro c isterciense de C laraval, d a ta ­do do século XH. que descreve o m odo co m o nele sc usava a energia h idráu lica:

“E n tran d o po r baixo d o m uro ex te rio r d a abad ia , que.com o um porte iro , lhe d á passagem , inic ia lm ente o arro iolança-se de m odo im petuoso no m oinho , contorcendo-se

(19) Jcan G impd. 77« Medieval Machiite: The hidiunrial Rexxjítuum ttf lhe Mtddle Agey. Ilolt. Kinchart, and Winslon. Nc\v York. 1976, pág. 5.

(20) Kandall Collm*. Weberiatt S/xtologtcal Tfteory. Cambridgc University Press, Cambridgc. 1986. págs. 53-4.

(21) Como aponta Jcan Gimpçl no scii livro The Mediewl Machitte. um re­latório do sícuk» XII sobre a u tilizado da energia hidráulica no mosteiro dc Claruval, na França, poderia ter sido escrito 742 vc/cs, já que, naquela época, era o número dc mosteiro* cistercicnses que existiam na Europa. O m o ­mo nível dc conquistas tecnológicas podia obvcrvar-sc praticamcnie cm iodos H o (Kandall Collins. Webcnan Sociologica! Jheory. págs. 53 4).

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cm um m ovim ento revolto, p rim eiro par« m oer o trigo sob o peso das pedi«is, depois p ara ag ita r a fina peneira que se­para a farinha d o farelo. Depois dc a lcan ça r a con stru ção seguin te , enche os tanques e en trega-se às cham as, que o aquecem para p rep a ra r a cerveja ou o licor d o s m onges, qu an d o as v inhas recom pensam o d u ro trab a lh o dos vini· cu lto res com u m a co lhe ita pobre. M as o a rro io a in d a nào conclu iu a sua tarefa. C onvocam -no o s lavadores, postados pe rto d o m o inho . N o m oinho , ocupara-sc cm p rep a ra r a li­m en to para a irm andade; agora cu ida-lhes d a roupa. N un­c a se esquiva nem sc recusa a fa/v» q u a lq u e r co isa que lhe seja pedida. Levanta c deixa c a ir um a um os pesados p i­lões. os g randes m arte lo s de m adeira , pou p an d o assim aos m onges g randes fadigas... Q uan tos cavalos nâo ca iriam es­gotados. q u an to s hom ens nào ficariam com os b raços ex te ­nuados. se esse g racioso rio , ao qual devem os roupas e co ­m ida. nâo trab a lh asse po r nós!

“Depois dc fazer g ira r o eixo a u m a velocidade m u ito superio r à que qu a lq u er roda <5 capaz d e se m over, d e sap a ­rece em um frenesi dc espum a; <5 com o se ele p ró p rio se deixasse t r i tu ra r pelo m oinho . Em seguida, en tra no c u r tu ­m e. onde sc m ostra a in d a m ais ap licado c diligen te no p re ­paro do co u ro para o calçado dos m onges; depois, divide-se em um a m tih idào d e pequenos veios c prossegue o seu c u r­so para c u m p rir os deveres que lhe são confiados, sem pre a tcn lo a todos os traba lhos que requerem a su a p artic ip a­ção . sejam eles qua is forem - coz inhar, peneirar, g irar, m oer. regar ou lavar sem se recu sa r rnrnca a co lab o ra r cm q u a lq u e r tarefa. F inalm ente, carrega para fora os resí­duos. de ixando tu d o im acu lad o "” .

A perícia d o s m onges ia d as inovações de g ran d e valor p rá ­tico às cu riosidades in teressan tes. No início d o século XI. po r exem plo, um m onge ch am ad o E ilm er voou m ais de 180 m e­tro s com um planador, rea lizando um a façanha que seria re-

(2^) Cilado cm David U icklum t. "Monastic Waiçnwlls". Socicty for ihc PrtHcciion of Ancicni Buildings, n. 8. I.ondon, vd.. pág. 6: cimdo ein Gimpel, págs. 5-6.

III. COMO OS MONGES SALVAKAM A CIVILIZAÇÃO 35

cordada d u ran te os trê s sécu los seg u in te s15. Houve tam bém en tre o s m onges co nsum ados fab rican tes d e relógios. O p ri­m eiro relógio d e que lem os notíc ia foi co n stru íd o pelo fu turo papa S ilvestre II para a c idade germ ân ica de M agdeburgo. po r volta d o ano 996. P osterio rm en te , o u tro s m onges foram aper- le içoando essa técn ica. P eter Lightfoot. um m onge dc G laston­bury. co n stru iu no século XIV um dos m ais an tigos relógios que chegaram a té nós c que agora sc en con tra , em excelentes condições, no M useu d c Ciência de Londres.

R ichard dc W allingford, um ab ad e do século XIV, d a a b a ­d ia bened itina d c S a in t A lbans (e um dos precu rso res d a trigo­nom etria no O cidente), é fam oso pelo re lóg io astronôm ico que pro jetou para o seu m osteiro . Diz-se que, pelo m enos nos do is séculos seguin tes, náo apareceu o u tro relógio que sc igualasse a esse cm sofisticação tecnológica; e ra u m a m aravilha para a sua época. N âo sobreviveu m u ito tem po: talvez tenha desapa­recido en tre os ob jetos dos m osteiro s confiscados po r H enri­que VIII. M as a s n o ta s deixadas pelo ab ad e perm itiram fazer um m odelo e um a rép lica desse relógio cm escala real. Além de m arca r o tem po, conseguia prever com p recisão os eclipses lunares.

OS MONGES COMO CONSULTORES TÉCNICOS

Os c istercienscs tam bém e ram conhecidos pela su a perícia cm m etalurg ia . “N a sua ráp id a expansão pela E uropa - escre ­ve Jean G im pcl o s c istercienscs v ieram a d esem p en h a r um papel sign ificativo na d ifu são d e novas técnicas, po rque o alto nível da su a tecnologia agríco la se equ iparava à sua tecnologia

(23) Stanley L. Jaki, “.Medieval Creativity in Ctcncc and Technology', cm Patterns and Principles and Other Essays. Bym Mawr. Pasadena. Intercollegiate Studies tnMiuiic, 1995. pAg. 81: cfr. Lynn White Jr.. "Kilmer of Malmesbury, an Eleventh-Century Aviator: A Case Study of Technological Innovation. Iu Context and Tradition". Technology and Culture 2 (1961), págs. 97-111.

S&ulox maÍN tarde, o pe. Francesco Lana-Ter/i - nâo um monge. mas um padre jcsufta - estudou de um modo mais sistemático o tcma do vôo. ganhan­do a honra de sor chamado o pai da aviaçüo. O seu livro Prodmtno alia Arte Maestro, de 1670. foi o primeiro a descrever a geometria c a fisica dc u n u ac- lonave (Joseph Mac Donnell. Jesuit Geometers. St. Louis. Institute of Jesuit Sources, 1989. págs. 21-22).

industrial. Todos os m osteiros possuíam a sua fábrica - fre­quen tem en te táo espaçosa com o a igreja c a pouca d istância dela com diversas m áquinas no subso lo m ovidas a energ ia hidráulica**24. De vez em quando, o s m onges recebiam em doa­ção m inas de ferro, quase sem pre ju n tam en te com os fornos necessários para ex tra ir o m etal; ou tras vezes, eles próprios | com pravam as m inas e os fom os. Em bora precisassem do fer­ro para u so próprio , houve um m om ento cm que os m osteiros c islercicnses estiveram em condições de oferecer os seus exce­dentes para venda: com efeito, da m etade do século XIII a té o século XVII, os c istcrcienses foram os líderes cm produção de ferro na regiào francesa da C ham pagne. S em pre em penhados em m elho rar a eficiência dos seus m osteiros, usavam a escória 1 d as suas fornalhas com o fertilizante, pois pela sua alta c o n - , contração de fosfato eram especialm ente ú teis para essa finali­d a d e ” .

Esses avanços eram parte de um fenôm eno m ais am plo de conquistas tecnológicas. O bserva G im pel que "a Idade Média in troduziu a m ecanização na Europa em um a escala que ne­nhum a civilização havia conhecido até então"**. E os m onges, segundo o u tro estudo, foram "os hábeis consultores técnicos não rem unerados do terceiro m undo daqueles tem pos - isto é, da Europa após as invasões b árb aras”27. E prossegue:

MCom efeito, qu e r na m ineração do sal. do chum bo, do fen o , do alum ín io ou da cal. qu e r na m etalurg ia , na ex tra ­ção do m árm ore, na cu telaria , na v idraria ou na forjaria, não havia nenhum a atividade em que os m onges não de­m onstrassem a sua cria tiv idade e um fértil esp írito de pes­quisa. Desenvolveram c ap rim oraram o seu irab a lh o até a l­cançarem a perfeição, e o seu know -how v iria a espalhar-se po r toda a E uropa“2*.

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(24) Jean Gimpel. The Mediewl Macftine, pág. 67.(25) Ibid.. pág. 68.(26) Ibid., pág I.(27), Ríginald Gréyoiiv, Ltto Moulin v Raymond OurM*l. The Monostic

Reat»), pág. 271.(28) Ibid., pág. 275.

Ill COMO OS MONGES SALVARAM A CIV1I.IZAÇÀO 37

Os arqueólogos a in d a continuam a pesquisar o a lcance da perícia c engenhosidade tecnológica dos m onges. Em fins da década dc 1990, o arquoólogo-m ctalurgisia G erry McDonnell, da U niversidade de Bindforf, encon trou nas proxim idades da abadia de Rievaulx, cm N orth Y orkshire, Inglaterra, evidências de um grau de sofisticação tecnológica que apontava para as grandes m áquinas da revolução industria) d o século XV1IÍ. (A abad ia dc Rievaulx foi um dos m osteiros que o rei H enrique VIII m andou fechar po r volta de 1530). E xplorando as ru ínas de Rievaulx c Laskill, M cDonnell descobriu a ccrca de q ua tro m ilhas d o m osteiro um forno constru ído pelos m onges para ex trair ferro do m inério.

O tipo de forno que existia no século XVI progred iu re la ti­vam ente pouco em com paração com os seus antecessores e e ra notavelm ente ineficiente para os pad rões m odernos. A escória ou su b produ to desses fom os continha um a concen tração sign i­ficativa de ferro, já que não sc conseguia a ting ir tem pera tu ras su ficien tem ente a ltas para ex tra ir todo o ferro d o m inério. Mas a escória que McDonnell descobriu cm Laskill con tinha um a baixa q uan tidade dc ferro, sem elhante à escória hoje p roduzi­da po r um m oderno alto-forno.

McDonnell ach a que os m onges estiveram perto dc cons­tru ir fom os para um a p rodução dc ferro fundido em larga es­cala - tal com o aconteceria na e ra industria l c que o forno de Laskill foi o pro tó tipo desses fom os. "Um dos pontos-chave íoi que os c istcrcienscs tinham todos os anos encon tro s regula­res de abades, e isso pcrm itia-lhcs com partilhar os avanços tec­nológicos que sc a lcançavam em qualquer parte da Europa - disse d c - . A disso lução dos m osteiros rom peu essa rede de transferência de tecnologia“. Os m onges “tinham capacidade para fab ricar altos-fom os que não produzissem nada além dc ferro fundido. Estavam em condições de fazê-lo cm larga esca­la, m as, ao su p rim ir os m osteiros da Inglaterra, H enrique VIII quebrou esse potencial“**. N ão fosse pela cobiça do rei em apossar-se dos bens da Igreja, os m onges te riam chegado aos um brais d a e ra industrial, com a sua explosão dc riqueza, po-

(29) David Derbyshire, “Henrv 'Stamped Out (rniuslriat Revolution“ . Tele- umph, 21.06.2002. cd. britânica; cfr. Uimbém “HenrvV Big MisJake". Oisctnxr, lev 1999.

p u laçáo c expectativa dc vida. Hm vez disso, esse avanço lev« que esperar m ais dc do is séculos c meio.

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OBRAS DE CARlDADli

Em o u tro capítulo, verem os com m ais detalhe quais foram as ob ras assistcnciais da Igreja. Por agora, lim item o-nos a m encionar que a Regra beneditina exortava os m onges a sc r esm oleres c a cu ltivar a hosp italidade. Dc acordo com essa Re­gra, com o vim os, todos o s que chegavam deviam sc r recebidos com o se fossem Cristo. Os m osteiros davarn hospedagem gra­tu ita , p roporcionavam um lugar dc descanso calm o e seguro a v iajantes estrangeiros, peregrinos c pobres. Um antigo h isto ria ­d o r da abadia no rm anda dc Bcc cscrcvcu: "Perguntem com o espanhóis, burgúndios ou q u a isquer ou tro s v iajantes têm sido recebidos em Bec. R esponderão que as po rtas do m osteiro es­tão sem pre ab ertas a todos c que a todos se oferece páo g ra tu i­tam en te” ̂ E ra cm obediência ao esp írito dc C risto que davam ab rigo c conforto a qualquer forasteiro.

Os m onges e ram igualm ente conhecidos pelo em penho com que saíam em busca dos infelizes que. perd idos ou isola­d os q uando caía a noite, necessitavam dc um abrigo. Em Au- brac. po r exem plo, onde tinham fundado um albergue no m eio d as m on tanhas do Rouergue, cm fins do século XVI, um sino especial tocava todas as noites para ch am ar qua lquer viandan­te que se tivesse extrav iado ou fosse su rp reend ido pela intim i­d an te escuridão da floresta. Era um sino conhecido pelo povo com o “o sino dos c a m in h an te s '', '.

T am bém não era in frequente que os m onges que viviam ju n to do m ar m ontassem dispositivos p ara av isar os m arinhe i­ro s dos obstácu los perigosos, ou que o s m osteiros próxim os ti­vessem provisões reservadas p ara aco lher os náufragos. Diz-se que a c idade dc C openhague deveu a sua origem a um m ostei­ro estabelecido pelo seu fundador, o bispo Absalon, para so­c o rre r os náufragos. Em A rbroath, na Escócia, os m onges fixa-

(3Q) Charles Montalcmbcrt, The Monks o f the Wesi. vol. 5. p igv 89-90.

(31) Ibid.. pág. 227.225.

III COMO OS -MÖNCHS SALVARAM A CIVILIZAÇÃO 39

ram um sino flu tuan te num a rocha traiçoeira , m u ito conheci­da na costa dc F orfarshirc. Hm dctcrm inada.s fases d a m aré. a rocha quase não se via. escondida pelas águas, c m uitos m ari­nheiros sc apavoravam , tem erosos de chocar-se con tra e la. As ondas fa /iam so a r o s in o c os m arinheiros sc acautelavam para fug ir do perigo. Alé hoje. a rocha é conhecida com o a “Rocha do SinoMM. Estes exem plos são um a pequena am ostra da p reocupação dos m onges pelas pessoas que viviam nas re ­dondezas. Acrescente-se a isso o co n tribu to que deram para a construção ou reparação de pontes, es tradas c o u tros e lem en­tos da in fraestru lu ra medieval.

O traba lho m onástico com que estam os m ais fam iliariza­dos é a cópia dc m anuscritos, tan to sagrados com o profanos. Era um a ocupação considerada especialm ente honrosa para os que a realizavam . Um p rio r cartuxo escreveu: "O d iligente tra ­balho exigido po r esta tarefa deve se r um as das principais ocu ­pações dos cartuxos na sua c lausu ra Pode-se d izer que, cm certo sentido, é um trab a lh o im ortal, que nunca passa c perm anece para sem pre; um trab a lh o que. po r assim dizer, nâo é trabalho; um a tarefa que se destaca por c im a de todas os o u tra s com o a m ais ap rop riada para a educação religiosa dos hom ens"13.

A PAl-AVRA ESCRITA

A honrosa tarefa dos copistas e ra difícil c exigente. Em um m anuscrito m onástico, lem os estas palavras: “Q uem não sabe escrever pensa que não é um trabalho; m as a verdade é que. em bora sc susten te a pena só com três dedos, lodo o corpo sc cansa". Os m onges tinham dc trab a lh a r freqüentem ente no m eio d o frio m ais co rtan te . Ao conclu ir um a cópia que fez do com en tário de São Jcrôn im o ao Livro dc Daniel, um copista m onástico pedia a nossa sim patia : "Rogo aos leitores que fize­rem uso deste traba lho que tenham po r bem nâo se esquece­rem daquele que o copiou: e ra um pobre irm ão cham ado Luis que, en q uan to transcrev ia este volum e traz ido de um pa ís es-

(32) Ibid.. págs. 227-28.<33) Juhn B. O'Connor, Monasticum and CtviUyittoti. pág. 118.

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trangciro , sup o rto u o frio c foi o b rigado a te rm in a r dc no ite o que não conseguiu escrever ã luz do dia. M as Tu. S enhor, sc· rás a plena recom pensa do seu esforço“ M.

No século VI, um sen ad o r ro m an o já re tirad o d a vida pú ­blica, que sc cham ava C assiodoro. teve um p rim eiro v islum bre d o papel cu ltu ra l que os m osteiro s v iriam a d esem penhar. Em m eados desse século, fundou o m osteiro dc V ivarium no sul da Itália, do tando-o dc u m a refinada b ib lioteca - a bem dizer, a ún ica b iblioteca desse período d c que hoje sc tem no tic ia - c insistiu n a im p o rtân c ia dc co p ia r m anuscrito s. Parece que al­guns im portan tes m anuscrito s cris tãos desse m osteiro sc en ­con tram hoje n a Biblioteca L aterancnsc, à d isposição dos p a ­p a s” .

Surp reenden tem en te , não é a V ivarium . m as a o u tra s b i­b liotecas m onásticas e scriptoria, que devem os a m aio r p arte da lite ra tu ra la tina an tiga que chegou a té nós. Nos casos em que não foram conservadas c tran sc rita s pelos m onges, essas ob ras sobreviveram g raças às b ib lio tecas c esco las associadas às g randes ca ted ra is m edievais36. A p a r d as suas p róp rias co n tri­bu ições orig inais, a igreja cm pcnhou-sc cm p reservar livros c d ocum en tos que foram dc sem inal im port& ncia p a ra salvar a civilização antiga.

D escrevendo o acervo da su a b ib lio teca cm York, o g rande A lcuino referiu-se a ob ras dc A ristóteles, C ícero. Lucano. Plí­nio. E stácio , Pom pcu Trogo c Virgílio. Na sua co rrespondên­cia. c ita a inda ou tro s au to res clássicos, com o Ovídio, H orácio e T crênc io37. E não estava sozinho na su a fam iliaridade com os escrito res an tigos e no ap reço p o r eles. Lupo (cerca dc 805- -862), o abade d e Fcrrières, c ita Cícero, H orácio. M arcião. Suc tôn io c Virgílio. Abbon d e Flcury (cerca dc 950-1004), que foi abade do m osteiro dc Fleury, d em onstra e s ta r particu la r­m ente fam iliarizado com H orácio, Salusltano , T crênc io e V ir­gílio. D csidério - tido com o o m a io r dos abades dc M onte Cas­sino. depois do p róp rio Bento, c que. cm 1086, veio a tor-

(34) C harlo Momalembert, The Monks o f the West, vol. 5. págs. 151-2.(35) Lcighlun D. Reynolds c Nigel C. Wilson, Scribes and Scholars, pig.

(36) ibid., p igs. 81-82.(37) Charles Monialembcrt. The Monks o f the West. vol. 5. pig. 145.

III. COMO OS MONGES SALVARAM A CIVILIZAÇÃO 41

nar-sc o papa V ítor 111 - superv isionou a tran scrição de H orá- c io c dc Sêncca, ass im corno a d o De naiura deorum , d c Cíce­ro, c dos Fastos dc Ovídio**. O scu am igo, o a rceb ispo Alfano, que tam bém tin h a sido m onge em M onic Cassino, m anejava com sim ila r fluência as ob ras dos escrito res an tigos, c citava freqüen tem en te Apolônio. A ristóteles, C ícero, Platão. V arrão e V irgílio, a lém d e im ita r O vídio e H orácio nos seus versos. S an ­to Anselmo, enq u an to foi abade dc Bcc, recom endou aos seus a lunos a le itu ra d c V irgílio e o u tro s escrito res clássicos, em bo­ra os aconse lhasse a p assar po r a lto trechos m ora lm en te cen ­su ráveis39.

O g rande G crbcrto dc A urillac não sc lim itou a en sin ar ló­gica; tam bém analisava com os seus a iunos passagens de Ho­rácio, Juvenal. Lucano, Pérsio, T erêncio, Estácio e Virgílio; sa ­bem os dc con ferências sob re a u to re s c lássicos que pronunciou em lugares com o Sain t A lban's c P aderbom . Conscrva-se de S anto H ildeberto um exercício esco la r que com pôs ju n tan d o excertos de C ícero, H orácio, Juvenal, Pérsio , Sêneca, T crèncio c ou tros: o cardeal John H enry N ew m an - o g rande converso d o anglican ism o d o século XIX c ta len toso h is to riad o r - d á a en ten d e r que S an to H ildeberto conhec ia H orácio praticam en te dc c o r40. O certo é que a Igreja ap reciou , p reservou , estudou c

(38) tbid., pág. 146; Raymund Webster. 'P ope Victor III'. cm Caihotic Eit- cyclopedia.

(39) Charies M onulembcrt, Tlte Mottks o f the West. vol. 5. pág. 146. Sobre lodo este lema. veja-se também John Hcnrv Newman. Essavs and Skeíches. w l. 3, págs. 320-21.

(40) John Hcnry Newman. Essays úitd Sketche.%, vol. 3. págs. 316*17.Ao longo da história do monaquísmo. encontramos abundantes evidências

da devoção dos monge* pelos livros. São Benedito Biscop. por exemplo, que fundou o mosteiro dc Wearmouth. na Inglaterra, chegou a viajar attf os luga­res mais remotos com o propósito de encontrar volumes para a sua biblioteca monástica: embarcou cinco vezes com essa finalidade, e de cada vex trouxe uma carga considerável (Charles Monialemberi. Tfte Monks o f the West. vol. S. pág. 139). Lupo pediu a um amigo abade que lhe permitisse copiar A vida dos Césares, dc Suct6nk>. c implorou a outro que lhe conseguisse A conspiração dc Catilina e a Guerra jugttniita, de Salústio. além do Vemucs, de Cícero, e de qualquer outro volume que fosse de interesse. Pediu a outro amigo que lhe emprestasse a Retórica dc Cíccm c solkitou ao papa uma cópia das Institiitio· nes. dc Quintiliano, c de outros textos.

• Gcrbcrto tinha igual entusiasmo pelos livros c oíerrccu sc para ajudar ou· Iro abade a term inar algumas cópias incompletas dc Ciccro e do filósofo Dc· móstenes e a tentar localizar os manuscritos do Verrines c do Dc Repubtica. de

ensinou as ob ras dos an tigos, que dc o u tro m odo sc teriam perd id o 4·.

Além da cu idadosa conservação dc ob ras do m undo clás* sico c dos Padres da Igreja, um as c o u tras prim ord ia is para a civilização ocidental, os m onges realizaram o u tro traba lho dc incom ensurável im portânc ia com a su a habilidade de copistas: a p reservação d a B íb lia42. Sem a sua dedicação a essa tarefa e a s num erosas cópias que produziram , não sc sabe com o o tex­to sag rado teria podido sobreviver aos a taques dos bárbaros. E ra freqüente em belezarem os Evangelhos com p rim orosas ilum inuras artísticas, com o nos fam osos Evangelhos dc L indau e L indisfam c - ob ras dc a rte c de fé.

42 THOMAS E. WOODS JR.

CENTROS DE EDUCAÇÀO

M as os m onges fizeram m ais do que sim plesm ente p reser­var as capacidade de ler c escrever. Até m esm o um histo riado r sem qua lquer sim patia pela educação m onástica reconheceu: “Os m onges estu d a ram os poem as dos poe tas pagãos c os es·

Ckero (John Henry Newman. Essays and Sketches, vol. 3. pág. 321). Sabemos que SSo Maycul de Cluny apreciava tanto a leitura que sempre tinha um Iívto enire as máos quando viajava a cavalo. Também Halinard. que era abade dc Sâo Benigno dc Dijon ante* dc sc tom ar arcebispo de Lyon. cultivava os mes­mos gostos c fola-nos com orgulho do seu interesse pelos filósofos da Antigul· dade (Charles Montalcmbcrt. The Monks o f the Wto/, \*ol. 5, pág. 143).

"Sem estudo c sem livros', di/.ia um monge de Muri, "a vida dc um mon­ge nâo é nada'. Sâo Hugo dc Lincoln, quando era prior dc Witham, a primeira casa cartuxa da Inglaterra, leve palavras parecidas: "Os nossos livros s4o o nosso deleite e a nossa riqueza cm tempos dc paz. as nossas armas dc ataque e defesa cm tempos dc guerra, o nosso alimento quando passamos fome c o nosso remédio quando estamos doentes' {Ibid., pág. 142).

(41) No século XI. Monte Cassino experimentou uma revivescência cultu­ral que foi qualificada como 'o mais espetacular evento singular na história do conhecimento latino do século X I' (Leighton D. Reynolds c Nigd C. Wilson. Scribes and Scholars, pág. 109). Além desse transbordar dc empenho artístico c intelectual, Monte Cassino renovou o interesse pelos textos da antigüidade clássica: 'D e um só golpe, recuperou um grande número dc textos que. dc ou­tra forma, sc teriam perdido para sempre. A esse único mosteiru devemos a prvscrvaçSo dos Anais t das Histórias de Tácito, do Asno Duxmdo dc Apuleio, dos Diálogos de Séncca. do tie língua latina de Vurrüo. do De aquis dc Fmnti* no, c de trinta linhas raras da sexta Sdlim dc Juvenal, que rtòo foram encon­tradas cm nenhum outro manuscrito' (ibid., págs. 109· 10).

(42) John B. O'Connor. Monasticism and Civilization, pág. I IS.

III. COMO OS MONGES SALVARAM A CIVILIZAÇÃO 43

critos dos h istoriadores c dos filósofos. Os m osteiros e as esco ­las m onásticas tom aram -se. não apenas cen tros florescentes dc vida religiosa, m as tam bém dc ensino“0 . O u tro cron ista nâo s im patizan te escreveu: "Os m onges nâo apenas fundaram esco­las e foram professores, m as tam bém lançaram as bases das fu turas universidades. E ram os pensadores e filósofos d a épo­ca. e m o ldaram o pensam ento político e religioso. A eles sc de­veu. tan to coletiva com o ind ividualm ente, que o pensam en to e a civilização d o m undo an tigo passassem para a Idade M édia e para o período m oderno '’*'.

Em m aio r ou m enor escala, ao longo dos séculos, os m on­ges sem pre foram professores. Sâo Jo ão C risóstom o conta-nos que. já na su a época (347-407), as fam ílias de Antioquia costu ­m avam con fia r a educação dos seus filhos aos m onges. Sâo Bento in stru iu o s filhos dos nobres rom anos43. S ão Bonifácio criou um a escola em cada m osteiro que fundou na A lem anha, c, na Ing laterra , S an to A gostinho de C an tuária c os seus m on­ges ab riam escolas onde q u e r que se fixassem 46. A tribui-se a São Patríc io o estím ulo aos estudos na Irlanda e o fa to dc os m osteiros irlandeses se terem convertido cm im portan tes cen ­tros de ensino , p roporc ionando instrução tan to a m onges com o a leigos47.

E ra norm al os m onges com plem entarem a sua educação freqüentando u m a ou m ais das escolas m onásticas estabeleci­das. Abbon dc Flcury. sendo já m estre das discip linas ensina­das cm sua p róp ria casa , foi e s tu d a r Filosofia c A stronom ia em Paris c R hcim s, c ouvim os h istó rias sim ilares sob re o a rce­bispo R ábano dc M ogúncia, São W olfgang e G crberto (papa Silvestre II)4*.

(43) Adolf von Hamack, citado cm John B. O’Connor. Monasticisnt and Ci­vilization, pág. 90.

(44) Alexander Chrcncc Flick, The Rise o f lhe Medieval Chuirh. págs. 222-23.

(45) Ibid.. pág. 116.(46) G. Cyprian Alston. "The Bcncdictinc Order", cm Catholic Encychpe·

(/17) Thomas Cahill, How lhe Irish Saved Ctvili&tion. Doublcdav. New York. 1995. pág*. 150 c 158.

(48) Ibid.. págs. 317-9

É verdade que a m aio r p arte da educação m in istrada aos que n ão iam p ro fessar votos m onásticos sc deu cm ou tros lu ­gares, com o as escolas das ca ted ra is fundadas sob o im pério dc Carlos M agno. Mas. m esm o que a co n tribu ição dos m ostei- ros tivesse sido apenas a de en sin ar os seus m onges a ler c es­crever, não teria sido um feito desprezível. Q uando os gregos m icênicos sofreram um a ca tástro fe no século XII a.C. - um a invasão dos dórios, segundo alguns h istoriadores o resu ltado foram os três sécu los dc com pleto analfabetism o conhecidos com o a E ra N egra da Grécia: a escrita sim plesm ente desapare­ceu no m eio do caos e da desordem . M as o em penho com que os m onges fom entaram a escríta e a educação evitou que a te r­rível destru ição que sc abateu sob re os gregos m icênicos viesse a repetir-se na E uropa após a queda do Im pério Rom ano. Des­ta vez. g raças aos m onges, o cultivo d o esp írito pela le itu ra c pela escrita sobreviveu à catástro fe política e social.

C ertos m osteiros ficaram tam bém conhecidos pela sua p ro ­ficiência cm d e te rm inados ram os pariicu la res do conhecim en­to. Assim, po r exem plo, o s m onges d e São Benigno (em Dijon) davam conferências sobre m edicina; o m osteiro dc Sain t Gall tin h a um a escola de p in tu ra c gravura; e certo s m osteiros ale­m ães davam palestras em grego, hebreu c á ra b e 49.

44 THOMAS E. WOODS JR.

E ste ap anhado da con tribu ição dos m onges m ai a rra n h a a superfíc ie de um tem a im enso. Q uando C om te dc M ontalcm - bert escreveu, nas décadas dc 1860 c 1870, um a h istória dos m onges ocidentais em seis volum es, lam entou a sua incapaci­dade de oferecer algo m ais que um esboço sum ário dc grandes Hguras c g randes obras, c rem etia co n tin u am en te os seus leito­res para as referências nas no tas dc pé dc página.

C om o acabam os dc ver, a co n tribu ição m onástica para a civilização ocidental foi im ensa. Os m onges en sin aram as téc­nicas da m etalurgia, in troduz iram novos plan tios, cop iaram textos an tigos, preservaram a educação , foram pioneiros cm tecnologia, inventaram o cham panhe!, m udaram a paisagem européia , a cud iram aos viajantes, resgataram extrav iados c

(49) Ibid.. pág. 319.

Ml. COMO OS MONGES SALVARAM A CIVILIZAÇÃO 45

náufragos. Q uem m ais na história da civilização ocidental pode o s ten ta r um tal elenco de realizações?

Vejam os agora com o a Igreja, que deu ao O cidente os seus m onges, tam bém criou a Universidade.

A IGREJA E A UNIVERSIDADEIV .

UMA INSTITUIÇÃO ÚNICA NA HISTÓRIA

E m bora m uitos colegiais dc hoje nâo sejam capa7.cs dc s i­tu a r cronologicam ente a Idade M édia, es tão convencidos dc que foi um período dc ignorância, superstição c repressão in te­lectual. N ada m ais longe d a verdade, pois é â Idade M édia que devem os a m aio r - e inigualável - con tribu ição intelectual da civilização ocidental para o m undo: o sistem a universitário .

A U niversidade foi um fenôm eno com ple tam en te novo na h istória da E uropa. N ada de parecido ex istira na G récia ou na Rom a a n tig a s1. A institu ição que conhecem os a tualm ente, c o m J as su as Faculdades, cursos, exam es c títu los, assim com o a d is­tinção en tre estudos secundário s e superiores, chegaram -nos d ire tam en te do m undo m edieval. A Igreja desenvolveu o siste­m a universitário porque, com palavra» do h is to riado r Lovvrie Dalv, e ra Na ún ica institu ição na Europa que m anifestava um interesse consisten te pela preservação e cultivo do saber"

Nâo podem os estabelecer com precisão as d a ta s em que as universidades su rg iram , cm Paris c Bolonha. O xford e Cam - bridgc, visto que tiveram os seus p rim órdios nas escolas das ca ted ra is e nas posteriores reuniões inform ais de professores e alunos. M as podem os d i /c r com segurança que com eçaram a g a n h a r form a na segunda m etade do século XII.

(1) Cír. Charles Homer Ha&kins. Tlte Kise o{ U tintrsilia . Comcll Univx-r· Mty Press. Ithaca. J9S7 [\92 l\. pàg. V, id.. Tttt Renaissattn the Twdfth Cen· tury. Mtyidian, CIcvcland. 1957 [1927], pág. 369: Ixivvric J· Òaly. The Atediewl (Jniversiiy, 1200-1400, Shcvd and Ward. New York. 1961, píigv 213-4.

(2) l-ownt· J. Dalv. Tlte Mtdieval Umversity. pág. 4.

IV A 1GRKJA K A UNIVERSIDADE 47

Para identificarm os de te rm inada escola medieval com o uni· versidade. devem os a le n ta r para a lgum as características. Uma universidade possu ía um núcleo de textos obrigatório , com b a ­se nos quais os professores fa /iam as su as preleçóes e. ao m es­m o tem po, expunham idéias próprias. Caracterizava-se tam bém por es tabelecer cu rrícu lo s acadêm icos bem definidos, que d u ra ­vam um núm ero dc anos m ais ou m enos fixo, assim com o po r co n ferir dip lom as. A concessão do títu lo de "m estre’' perm itia a quem o recebesse o acesso ao grêm io dos docentes, tal com o um artesão elevado a m estre e ra adm itido no grêm io d a sua profissão. E m bora m u itas vezes a s un iversidades tivessem de b a ta lhar ju n to d as au to ridades ex ternas pela sua au tonom ia, geralm ente conseguiam -na. assim com o o seu reconhecim ento legal com o co rpo rações5.

O Papado desem penhou um papel cap ita l na fundação e in ­centivo das un iversidades. Nos tem pos da Reform a, havia o i­ten ta e um a universidades. T rin ta e três delas possu íam esta tu ­to pontifício: qu inze esta tu to real ou im perial; vinte gozavam dc am bos, c treze não tinham nenhum a c redenc ia l4. Havia consenso cm que um a universidade não podia conceder d iplo­m as sem a aprovação d o papa. do rei ou d o im perador. O papa inocêncio IV concedeu ofic ia lm ente esse privilégio à Uni­versidade dc O xford em 12S4. Com o o Pontífice (de fato) c o Im perador (em teoria) possu íam au to ridade sob re toda a Cris­tandade. e ra a eles que a universidade costum ciram cn tc tinha dc reco rre r para o b te r o d ire ito de em itir diplom as. Uma vez ob tido o reconhecim en to de um a ou ou tra dessas au toridades, os d ip lom as universitários eram respeitados po r toda a C ris­tandade. Já os d ip lom as conferidos apenas com a aprovação dc m onarcas nacionais eram considerados válidos un icam ente no re ino no qual eram em itid o s5.

Em cc ilo s casos, com o o das Universidades dc B olonha, Oxford c Paris, o títu lo dc m estre dava a quem o possuía o d i­reito de lecionar em qua lquer lugar do m undo: e ra o ius ubique

(3) Richard C. DaJcs. The hueilecttial Ltfe <>f Woiertt Etirvpe w lhe Mtdtile A*c>. Únivcrsily Press of America. Washington. DC, 1980. páji. 208.

(4) “Univci^ilici*. cm Cathotic Hncyclttpedút. As universidades quv care- uatri dc cstaiuios haviam-sc consiilubio c&pomancamcntc ex amsttelttdme.

(5) Ibid.

48 THOMAS E. WOODS JR

docendi. Vemo-lo pela p rim eira vez em um docum cn lo do papa G regório IX. da tad o de 1233. relativo à U niversidade de Tou- louse. c que se to m o u um m odelo para o futuro. Em fins do século XIII. o tu s ubique docendi tom ou-se **0 se lo ju ríd ico d is­tintivo da Universidade"*. T eoricam ente, esses p rofessores po­d iam d a r au las em qualquer cen tro un iversitário da E uropa O cidental, m as, na prática, cada in stitu ição preferia exam inar o cand ida to an tes dc adm iti-lo7. De qu a lq u er m odo. esse privi­légio concedido pelos papas con tribu iu sign ificativam ente para a d issem inação do conhecim ento c para a form ação do concei­to dc um a com un idade académ ica in ternacional.

CIDADE E TOCA

A p artic ipação dos papas no sistem a un iversitário es ten ­deu-se a m u ito s ou lro s assuntos.

Um o lh a r dc relance sob re a história da universidade m e­dieval revela que não eram incom uns os conflitos en tre a u n i­versidade c o povo ou o governo local. Os hab itan tes da cidade nu triam com freqüência sen tim en tos am bivalen tes cm relação aos estudan tes universitários; po r um lado, a universidade era um presente para os com ercian tes locais c p ara a a tiv idade econôm ica em geral, u n a vez que os es tudan tes traziam d i­nheiro para gastar; m as por o u tro lado. esses es tudan tes po­diam se r irresponsáveis e indisciplinados. Com o explicava um com en taris ta m oderno , os hab itan tes das c idades cm que sc s i­tuavam as un iversidades m edievais am avam o d inheiro , m as od iavam os estudan tes. Como resu ltado , ouvia-se m uitas vezes o s e s tu d an tes c o s seus professores queixarem -se de que eram " tratados com abuso pelos cidadãos locais, com dureza pela polícia, desatendidos nas suas dem andas legais e lud ibriados no preço dos aluguéis, alim entos e livros"*.

No m eio dessa a tm osfera tensa, a Igreja rodeou os estudan-

(6) Gordon Lcff, Paris and Oxford (/niwrsilies in the Thirteenth end Four­teenth Ceniuries: /trt Institutional and Intellectual History, John Wiley urtd Son*. New York, 1968, pág. 18.

(7) Lowric J. Dalv. The Mediewl Untwrsjiy. pág. 167.(8) Joseph II. Lynch, The Medtewl Church, pág. 250.

IV. A ICRKJA E A UNIVKRSIDADK 49

tcs un iversitários dc um a p ro teção especial, concedendo-lhos o cham ado faneficio do clero. Os clérigos gox-avam na Europa m edieval de um es ta tu to especial: m altra tá-los e ra um crim e ex trao rd inariam en te grave; tinham o d ire ito dc que as suas causas fossem ju lgadas po r um tribunal eclesiástico, c não pelo civil. Os e stu d an tes universitários, com o a lu a is ou potenciais cand idatos ao e stado clerical, p assaram tam bém a gozar des­ses privilégios. Os governantes civis tam bém lhes estenderam m uitas vezes un ia p ro teção sim ilar, cm 1200, Filipe Augusto da F rança concedeu c confirm ou esses privilégios aos e s tu d an ­tes da U niversidade de Paris, perm itindo-lhes te r a s suas cau ­sas ju lgadas p o r um tribunal especial, que certam en te lhes se ­ria m ais sim pático do q u e os trib u n a is da c id ad e4.

Os papas in terv ieram em defesa d a un iversidade cm num e­rosas ocasiões. E m 1220. o papa H onório Hl (12)6*1227) pôs- -sc do lado dos p rofessores de Bolonha, que p ro testavam con­tra as violações das suas liberdades. Q uando o chance le r dc Pa­ris insistiu cm que sc ju rasse lealdade à sua pessoa, o papa Ino- cêncio III (1198-1216) interveio. Em 1231, peran te a in trom is­são d as au to ridades d iocesanas locais na au tonom ia institucio­nal da un iversidade, o papa G rcgório IX lançou a bula Parens sc ien lian tm . cm favor dos m estres dc Paris. Nesse docum ento , concedeu efetivam ente à Universidade dc Paris o d ire ito à a u to ­nom ia dc governo, com a qual podia e lab o ra r as suas próprias regras a respeito dos cu rsos e pesquisas; c subm eteu-a d ire ta ­m ente à ju risd ição pontifícia, em ancipando-a da in terferência d iocesana. "Com esse d ocum en to - escreve um histo riado r a U niversidade dc Paris ating iu a m aioridade c en trou na história do d ire ito com o u m a co rpo ração in telectual plenam ente fo rm a­da, destinada ao p reparo c aperfeiçoam ento acadêm icos“ 10.

Foi a in d a nesse m esm o docum en to que o papa procurou /c ia r pela ju stiça c concórd ia no am biente un iversitário , m e­d ian te a concessão de um privilégio conhecido com o cessatio -

(9) Lowric J. Dalv. The Mediewl Uuiversitv. págs. 163-4.(10) Ibid.. pig. 22. O Papado, escreve Cobban, 'deve *cr comkJenulo a

principal influencia responsável pela liberdade de que go/ava a giiilda (jsm t. o corpo acadtmico nrgunizado) de Paris' (Abn B. Cobban, The Medtewl Uni· wrsittes: Their Development and Or%a>i\paliou, Methuen & Co.. Londres. 1975. pigs. 82-3).

50 THOMAS K. WOODS JR

o dire ito de os alunos en tra rem cm greve, se fossem tra tados de m odo abusivo. Consideravam*sc ju sta causa para a greve os preços extorsivos fixados para o alojam ento, a in juria ou m uti­lação dc um estudante sem que houvesse um a satisfação ade· quada den tro do prazo de qu inze dias, bem com o a prisão ile* gal de um estudan te“ 11.

T om ou-sc com um que as universidades rem etessem as suas queixas ao P ap a1*. Em várias ocasiões. os pontífices intervie­ram para ob rigar as autoridades un iversitárias a pagar aos pro· fessores os seus salários; assim o fizeram Bonifácio VIM, Cle­m ente V, C lem ente VI e G rcgório IX ,J. Nâo é dc adm irar, pois, que um historiador tenha declarado que “o m ais sólido c con­fiável p ro teto r [das universidades) foi o Papa de Roma. Foi ele quem lhes concedeu, aum entou e protegeu um esta tu to privile­g iado em um m undo dc freqüentes conflitos dc ju risd ições"1''.

No seu estágio inicial, a universidade carccia dc edifícios ou dc um cam pus pitfprio. Consistia cm um corpo dc profes­sores e alunos, nâo em um loca) específico. As au las eram m i­n istradas cm catedrais ou cm salas privadas. Nâo havia biblio­tecas. e teria sido difícil adqu irir significativas coleções dc li­vros. m esm o que a s universidades possuíssem instalações pró­prias. Os livros abso lu tam ente necessários aos estudantes eram em geral alugados, em vez de com prados.

Ao que parece, m uitos estudantes un iversitários medievais provinham dc fam ílias de poucas posses. A m aior p a n e dos es­tudan tes de artes (em sentido am plo) tinha en tre catorze e vin­te anos de idade. M uitos m atriculavam -se na universidade com o objetivo dc se prepararem para um a profissão, c po r isso nâo é de surpreender que o curso m ais freqüentado fosse o dc Di­reito. Havia tam bém frades en tre os estudantes: eram hom ens que desejavam sim plesm ente am pliar os seus conhecim entos ou contavam com o patrocínio dc um superio r eclesiástico15.

(11) Lowric J. Paly. The iW in « / Umwrsity. pág 168.(12) “UnivcrMlrcs*. cm Catholic i-jtcycltipedia. Alan B. Cohhan. Th* \1edie·

vai Universities, pág. 57.(13) ."UnivcrsiiKV. cm Catholic Hncychpedia.(14) Lowric J Daly. The AMieva! í/m tm ifv, pig. 202.(15) Gordon IxH, Paris and Oxford Vniventttes in the Thirteenth and Four·

teenth Cenlurio. pág 10.

IV. A IGREJA F. A UNIVKRS1DADK 51

O que é que se estudava nessas instituições? Começava-se pelas sele artes liberais, para os principiantes, c prosseguia-se com o direilo civil e canônico, a (ilosoíia natural, a m edicina c a teologia. Q uando as universidades ganharam form a no sécu­lo X ll. foram as felizes beneficiárias dos frutos daquilo que a l­guns historiadores denom inaram “a R enascença do século X ll“ 16. Os in tensos esforços de tradução perm itiram recuperar m uitas das ob ras do m undo an tigo - sobre a geom etria eucli­d iana. a lógica, a m etafísica, a filosofia natural e a é lica aristo- telicas bem com o as obras de m edicina de Galeno. Tam bém os estudos ju rídicos com eçaram a florescer, particu larm ente cm Bolonha, q uando foi descoberto o Digesto, coleção das de­cisões dos ju risconsultos rom anos m ais célebres, transfo rm a­das em lei e in tegradas no Corpus juris civilis pelo im perador Justin iano no século VI. c que está na base dc todos os códi­gos civis m odernos.

VIDA ACADÊMICA

A distinção que hoje fazem os en tre os estudos de g radua­ção c os de pós-graduaçâo seguia m ais ou m enos os padrões de hoje. E. tam bém com o hoje. algum as universidades eram especialm ente conhecidas pelo seu alto nível em determ inadas áreas: assim . Bolonha tornou-se fam osa pelo seu cu rso de d i­reito e Paris pelos de teologia c de artes.

O graduando ou artista (isto é. o estudante das artes libe­rais). assistia a conferências, participava dos debates que even­tualm ente sc organizavam nas au las c assistia aos que eram entabulados por outros. As preleções versavam geralm ente so­bre textos im portan tes, m uitas vezes dos clássicos da Antigüi­dade. Além dos com entários sobre esses textos, os professores passaram a inclu ir gradualm ente um a série dc questões que deviam ser resolvidas pelo recurso ao pensam ento lógico. Com o tem po, a análise dessas questões substitu iu basicam ente os com entários dc textos. Esta foi a origem do m étodo escolástico

(16) O estudo clássico è dç Charlo. Homcr Mastins. Tlte Henatssanct (>f thf Twrlfth Century: vep-sc lambtím id., Tht Ris* of Utmvrstties, pAps. 4-5.

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dc a rgum en tação po r m eio da d iscussão dc a rgum en tos con ­trapostos. ta! com o a encon tram os na S u m m a theologiae d c S âo T om ás dc Aquino.

O m estre designava a lunos p ara do lcndcrcm aspectos con» trá río s dc um a questão . G uando acabava a in te ração en tre as | partes, cabia ao p ro fesso r "definir“ ou resolver a questão. Para : o b te r o dip lom a d e bacharel em artes, o a lu n o devia resolver sa tisfa to riam en te um a questão p eran te os exam inadores, de­pois dc provar, n a tu ra lm en te , q u e possu ía a p reparação ade­q u ad a e que estava a p to para s e r avaliado. Essa ênfase na a rg u ­m entação m eticulosa, na exploração de um "caso" (um cxcm -[ pio) pela d iscussão dc cada um dos seus aspectos com arg u ­m entos racionais, soa com o o oposto daqu ilo que sc costum a a ssoc ia r à vida in te lectual d o hom em m edieval. Mas e ra assim q ue funcionava o processo para a ob tenção de um diplom a.

Um a ve/, que o exam inando d irim ia sa tisfa to riam en te a questão , cra-lhe con ferido o d ip lom a de bacharel em artes. O processo levara no rm alm en te q u a tro ou cinco anos. C hegado a este ponto , o e s tu d an te podia s im plesm ente d a r po r te rm inada a su a form ação , com o fax hoje cm d ia a m a io r parte dos ba· charéis. c sa ir em busca dc um trab a lh o rem unerado (até m es­m o com o p ro fesso r nalgum a d as cscolas m enores da Kuropa). ou dec id ir c o n tin u a r o s seus estudos c o b te r um d ip lom a dc pós-graduação , o que lhe conferiria o títu lo dc m estre e o d i­re ito de lecionar cm um a un iv ers id ad e ,7.

(17) Par.i fazer uma idéia da vasttdAo dos conhecimentos que sc exigiam para obter o título de mcsirc. vejamos o quo d i/ um historiador moderno a respeito do» textos com que o mc&trando devia estar familiarizado: "Depois do bacharelado e antes dc requerer a licença para lecionar, o estudante devia ter •aprendido em Paris ou cm outra universidade» as seguintes obias arisiotéli- cas: Física. Da geração e da corrtipçâo, Do céu e o Parva naturalia: especial­mente. <» tratados de Aristóteles Da sensação e do setisnvl. Do sono e da vtgf· tia. Da memória e reminiscência. Da longevidade e bnrvidudc da %’ida. Também devia ter estudado (ou ter planos dc fa/è-lo) Da metafísica, além dc ter assisti­do a conferências sohrc os livro« matemáticos. (O historiador) Rashdall. falan­do do currículo de Oxford, dá a seguinte lista de obras que deviam scr lidas pelo estudante no período entre a conclusio do bacharelado e u iniciação no mcMrodo: livros sobre as artes liberais: cm gramática. Prisciano; em retórica, a Retórica de Aristóteles (três períodos) ou Tópicos (livro IV'). dc Boécio. ou a Ntnv Rrlónca. dc Cícero, ou Metamorfose, de Ovídio, ou Poetria Vir^ilir, em ló­gica. De tmerftntarione. de Aristóteles, (três trimcstirs). ou Tópicos (livro* t-Ilt), dc Boécio. ou Analíticos Anteriores, ou Tópicos, de Aristóteles: em arit-

IV. A IGREJA E A UNIVERSIDADE 53

É difícil d e te rm in a r o in tervalo dc tem po exato que co stu ­m ava tran sco rre r en tre a o b tenção da licenciatu ra e a do m es­trado . m as um a estim ativa razoável é que oscilava en tre seis m eses c três anos. Sabe*se dc um can d ida to que, certam en te po r te r lido todos o s livros requeridos, recebeu os do is dip lo­m as cm um m esm o dia**.

C on tra riando a im pressão geral de que as pesquisas e s ta ­vam im pregnadas de p ressuposto s teológicos, os estud iosos m edievais tin h am um g rande respeito pela au tonom ia de tudo qu an to se referisse à filosofia natural, um ram o que sc o cu p a ­va de e s tu d a r o func ionam en to do m undo físico c, p a rticu la r­m ente, a s m udanças e o m ovim ento nesse m undo. P rocu rando explicações n a tu ra is para os fenôm enos da natureza, esses pes­qu isado res m an tin h am os seus estudos à m argem da teologia. Com o escreve Hdward G rani em l)eus e a razão na Idade Mé­dia, "cxigia-sc dos filósofos n a tu ra is d as faculdades dc artes que sc abstivessem dc in tro d u z ir teologia e tem as de fé na filo­sofia natural" ^

Esse respeito pela au tonom ia da filosofia n a tu ra l, em rela­ção à teologia, tam bém sc observava en tre o s teólogos que es­creviam sob re c iências físicas. Um irm ão dom in icano pediu a Alberto M agno, o m estre de Sào T om ás dc Aquino, que escre ­vesse um livro de física que os pudesse a ju d ar a en ten d e r as

nnMka c cm música. Bobeio; cm geometria. Euclidcs. Alhaccn <hj a Penpectiva dc Vitílio; cm astronomia, Thetmca Plamrtantni (dois trimc>ires) ou o Alma^es- lo dc Ptolomcu. Em filosofia natural: Física, ou Do CVii (ir ts trimestres), ou Da> Prtfprietlades dos f-lentenlus. ou Meteoros, ou Dos Vegetais e Piam as. ou Da Alma, ou Dos Animai* ou algum do Dc Par\<a Namralia: cm filosofia moral, a l-.itca ou a Poiiiica dc Aristóteles (trvs trimestres), c cm mciafískra a Metafísica (dois trimestres, ou ir ís sc o candidato ainda nâo tivesse "defendido' o caso* (Lowrie J. Dalv. The Medieval Universtty, pág. 132-3).

A cerimônia pela qual sc conferia o grau cra muilo variável; cada uniwnu- dade tinha os seus usos. Na de Paris, rcveslia-sc do caráter dc uma cerimónia eclesiástica. O licenciando ajoelhava-se. na igreja de Sainte Gcncviève. diante do vicc-chancclcr que lhe di/ia: “Eu. peta autoridade a mim conferida pelos Apóstolos Pedro c Paulo, confiro-te a licença paia cn>inai. ler [as lições magix- (raisj. disputar c determinar (dar a solução de questóes discutidas), além de c^erccr outros atos escolásticos c magisteriais. tanto na faculdade dc artes de Paris como em todas as paites. cm nome do Pai c do Filho e do Espírito San­to AnK-m" (ibid.. pá#. 135).

(IS) Ihid. pág. 136<19) Edward Grani, God and Heason m lhe Mtddle Afies. Cambridgc Uni·

vcroiy Press. Cambridgc. 2001. pág. IW.

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obras dc física d c Aristóteles. Tem endo que esperassem um tra ­balho en trem eado de idéias teológicas. A lberto M agno rejeitou an tec ipadam en te a idéia, esclarecendo que a s idéias teológicas pertenciam aos tra tad o s de teologia, e n ão ao s dc física.

O estudo d a lógica na Idade Média fom ece-nos m ais um testem unho do com prom isso com o pensam en to racional nessa época. "Através dos sólidos cu rsos de lógica - escreve G rani os es tudan tes m edievais eram instru ídos acerca das su tilezas da linguagem e das a rm ad ilhas d a a rgum en tação . Dai o grande peso que se dava & im portânc ia e utilidade d a razão na educa­ção universitária". Edith Sylla, u m a especialista em filosofia natural, lógica e teologia dos séculos XIII c XIV, escreve que deveríam os “m aravilhar-nos com o nível de so fisticação lógica que com certeza a ting iram os un iversitário s d e Oxford do sécu­lo XIV"».

N aturalm ente , os m estres guiavam -se po r Aristóteles, um genio d a lógica, m as tam bém co m punham os seus próprios textos de lógica. Q uem escreveu o m ais fam oso deles? Um fu­tu ro papa. Pedro d e E spanha (João XXI), na década dc 1230. Por cen tenas de anos, a sua Sunm utlae logicalcs serviu dc tex- to-base, c lá pelo século XVII já tinha a ting ido 166 edições.

A IDADE DA ESCOI-ASTICA

Se a Idade M édia tivesse sido realm ente um período em que as questOos eram resolvidas pelo m ero recu rso aos a rg u ­m entos de au to ridade , esse rigo r no e s tu d o d a lógica form al nào faria sentido. O em penho com que se m in istrava essa d is­ciplina revela, pelo contrário , um a c iv ili/ação que alm ejava com preender e persuadir. Para esse fim, os professores p rocu ­ravam alunos capa/.es de de tec ta r as falácias lógicas e dc for­m u lar argum en tos log icam ente sólidos. Foi a idade da Escolás­tica.

É difícil chegar a um a defin ição da E scolástica que se pos­sa ap licar a todos os pensadores a quem tem sido a tribu ída essa designação. Por um lado, o term o foi a trib u íd o às ob ras

(20) Ibid., pág. M6.

IV A IGKKJA H A UNIVHRSII)AI)!:. 55

erud itas produz idas nas escolas, isto é. nas un iversidades da Europa. Por o u tro . p resta-se m enos a descrever o cottieúdo do pensam ento dos au to res dessas ob ras do que a iden tificar o método que usavam . G eralm ente, a Escolástica estava ligada ao uso da razão com o ferram en ta indispensável para os e s tu ­dos teológicos e filosóficos e p ara a d ia lé tica - con fron to dc proposições opostas, seguido da so lução dn questão em debate pelo recu rso à razão c à au to rid ad e e com o m étodo d c tra ta r assun tos dc interesse intelectual. Com o am adurec im en to d es­sa trad ição , tornou-sc com um que o s tra tados esco lásticos se ­guissem um a pau la fixa: enunc iado de u m a questão , exposição dos argum en tos de am bos os lados, m anifestação do ponto de vista do au to r e resposta às objeções.

Talvez o p rim eiro dos escolásticos ten h a sido Santo Attse/· m o de Cantuàría (1033-1109). o abade do m osteiro dc Bec c depois arceb ispo de C anterbury que. ao con trá rio dos dem ais, não ocupou nenhum cargo de docência , m as com partilhou com eles do em penho em u sa r d a razào para an a lisa r questões filosóficas e teológicas. Por cxcniplo, o seu Cur Deus honio exam ina dc um pon to de vista racional p o r que e ra convenien­te e adequado que Deus se fizesse hom em .

Nos círcu los filosóficos, no en tan to . S anto A nselm o é bem m ais conhecido pela su a prova racional da existência de Deus - o ch am ad o a rgum en to ontológico que intrigou e estim ulou m esm o aqueles que dele discordavam . Para Anselmo, a ex istên­cia de Deus e ra um a conseqüência lógica d a próp ria definição de Deus. Tal com o um bom conhecim en to e p rofunda com ­preensão da idéia de “nove” im plica que a sua raiz q u ad rada é "três”, assim lam bém a p rofunda com preensão d a idéia de Deus im plica que esse se r deve ex istir n cccssariam cn tc^,.

Anselm o postu lou com o defin ição inicial d e Deus "aquilo em relação ao qual nada m aio r se pode conceber" (para sirnpli* ficar, m odificarem os essa form ulação para “o m aio r s e r conce-

bívcD . O m aio r ser concebível deve possu ir todas as pcrfci* çôcs; caso contrário , não seria o m aio r scr concebível. O ra. a existência é um a perfeição, afirm ava Anselmo, porque é m elhor ex istir do que não existir. S uponham os que Deus existisse ape­nas na m ente d a s pessoas, m as não na realidade. Isso significa* ria ad m itir que o m aio r se r concebível existe un icam ente com o um a idéia nas nossas m entes c não tem existência no m undo ex tra-m ental (o m undo fora das nossas m entes). Nesse caso, náo poderia sc r o m aio r sc r concebível, um a ve/, que poderia* m os conceber o u tro m aior: um que existisse nas nossas m entes e tam bém na realidade. Assim, a próp ria noção d e Mo m aior ser concebível·’ im plica im ediatam ente a existência de tal scr, por* que. sem existência no m undo real, não seria o m aio r sc r con* cebível.

A prova dc Anselmo não convenceu m uitos dos filósofos posteriores, inclu indo São T om ás de Aquino - em bora um a m inoria tenha insistido em que Anselm o eslava certo m as. ao longo dos cinco séculos seguin tes c a té m ais além , a g rande m aioria dos filósofos viu-se com pelida a levar em conta o ra ­ciocínio do san to . M uito m ais significativo que as secu lares re* vcrberaçòcs desse argum en to é. no en tan to , o com prom isso com o uso da razão que os escolásticos posteriores assum iram de m odo ainda m ais efetivo.

O u tro dos prim eiros escolásticos im portan tes foi Pedro Abe­lardo (1079-1142). um m estre m u ito ad m irad o que lecionou du ran te dez anos na escola da catedral dc Paris. Em Sic et non ("Sim e não”, cerca de 1120), Abelardo elaborou um a lista dc aparen tes contrad ições, c itando passagens dos prim eiros Pa­dres d a Igreja c da própria Bíblia. Q ualquer que fosse a so lu­ção p ara cada caso, cab ia à razão hum ana - c m ais concreta* m ente aos d iscípulos dc Abelardo - resolver essas d ificuldades in telectuais. O prólogo dc S ic et non con tém um belo testem u­nh o da im portância da atividade intelectual c do zelo com que devia sc r realizada:

"Apresento aqui um a coleção dc afirm ações dos S antos Padres pela ordem em que delas m e lem brei. As d iscrepân- cias que esses textos parecem co n te r levantam certas ques­tões que devem con stitu ir um desafio para que os m eus jo ­

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IV. A IGRKJA F. A UNIVHRSIDADF. 57

vens leitores concentrem lodo o seu /e lo cm estabelecer a verdade e. assim ag indo, cresçam cm perspicácia. Com o já foi detinido. a prim eira lon te dc sabedoria é a inquirição constan te c profunda. O m ais brilhan te dos filósofos. Aris­tóteles. encorajou os seus a lunos a assu m ir essa tarefa com todo o peso da sua cu riosidade [...). Disse cie: «É tolice que alguém faça afirm ações ro tundas sobre estes assuntos, se nào lhes dedicou m uito tem po. É p rática m uito útil ques­tio n a r iodos os detalhes». Ao levantarm os questões, com e­çam os a pesqu isa r e, pela pesquisa, a ting im os a verdade, com o disse Aquele que é a p rópria Verdade: Buscai e acha- reis; Ixitei e abrir-se-vos-á. E le dem onstrou-nos isso pelo seu próp rio exem plo m oral, q uando foi enconlrado , aos do/.c anos de idade, sentado no m eio dos doutores. ouvindo-os e fazendo-lhes perguntas. Aquele que é a p rópria Luz, a plena e perfeita sabedoria dc Deus, quis, pelas suas perguntas, d a r exem plo aos seus d iscípu los an tes de to rnar-se m odelo de m estres com as suas pregações. Portanto, q u ando cito passagens d as Escritu ras, é para estim u lar c inc ita r os m eus le itores a pesquisar, den tro da verdade c da m aior au to rid ad e dessas passagens, com a m aio r seriedade que essa pesquisa possa tc r” ,J.

E m bora o seu traba lho sob re a T rindade lhe tenha acar­re tado um a censu ra eclesiástica, Abelardo estava em grande sin tonia com a vitalidade intelectual do seu tem po e partilhava com ela da confiança na capacidade da razáo que Deus conce­deu ao hom em . E ra elo um filho fiel da Igreja e o seu trabalho sem pre sc o rien tou para a construção e fortalecim ento do grande edifício da verdade susten tada pela Igreja. Disse certa vez que náo “desejava se r um filósofo, se isso significasse rebe­lar-se co n tra o Apóstolo Paulo, nem um Aristóteles, sc isso sig­nificasse separar-se de C risto“21. Os hereges - disse tam bém - u saram argum en tos da razâo p ara a taca r a fé c. por isso m es­

(22) Citado cm Kdwarü Grani, God and Rtasott in ríte Middlc Arcs. págs. 60-61.

(23) David C. Lindbcrg. 77«· Rr^mninKS o f lVeuent ScKttce. Univcrulv of Chicago Prcv*. Chkago. 1992. pág. 196.

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mo. c ra m uito conveniente c ap ro p riad o que os fiéis da Igi^eja fizessem uso d a razão para defender a fé24.

Em bora tenha feito levantar algum as sobrancelhas na sua época, o uso que fez da razão p ara refle tir sob re os assun tos teológicos viria a se r assum ido p o r escolásticos posterio res, cu lm inando, no século seguinte, em S ão T om ás de Aquino. Nota-se c laram en te a sua influência em Pedro íjombardo (1100- -l 160). que deve te r sido seu aluno.

Arcebispo de Paris du ran te um breve período. Pedro Lonv bardo escreveu as Sentenças, um a ob ra que se tom ou tim texto básico para os a lunos dc teologia dos cinco séculos seguintes. O livro é u m a exposição sistem ática d a fé cató lica, cm que sc abo rdam num erosos assuntos, desde o s a trib u to s divinos até qucstôcs com o o pecado, a g raça, a Encarnação , a R edenção, as virtudes, os sacram en tos c os novíssim os (m orte , ju ízo céu c inferno). De m odo significativo, p rocura co m b in ar a confiança na au to ridade com a disposição de em pregar a razão na expia- nação dos tem as teológicos25.

O m aio r dos escolásticos e, na realidade, um a das m aiores inteligências d c todos os tem pos foi Sào Totnás de A quino (1225-1274). A sua im ensa ob ra . a Su m m a theologiae, levantou e respondeu a m ilhares de questões em teologia c filosofia, que vão d a teologia dos sacram en tos até ã guerra ju sta ou à ques­tão de saber sc todos os vícios deveriam se r considerados c ri­m es (São T om ás disse que não). M ostrou que A ristóteles - tido po r ele e po r m uitos dos seus contem porâneos com o o p on to alto d o pensam ento profano - podia se r facilm ente harm on iza­d o com os ensinam en tos d a Igreja.

Os escolásticos d iscu tiram m uitos lem as significativos, m as, nos casos de Anselm o e T om ás de Aquino, p refiro co n cen tra r aqui o foco na existência de Deus, talvez p o r se r o exem plo clássico do uso da razão cm defesa da fé. (A ex istência de Deus pertence àquela categoria de conhecim entos que São T om ás considerava poderem ser ating idos tan to po r m eio da razão

(24) Sobre Abelardo como fiel lilho da Igrcjn e nào um raciotialiMa do si· culo J4VJ11 iranslocado para o XIII. vejo se David Knowles. The tim huian o f Medieva! Thought. págs. 111 c scgv

(25) l.owric J. Daly. The Mahevul Utihmttiy. pág. 105.

IV. A ICRKJA H A UNIVKRSIDADK 59

com o d a revelação divina). Já vim os o a rgum en to de S anto Anselmo; São T om ás, p o r sua vez, desenvolveu na Surti tua theo­logiae cinco vias para d em o n stra r a existência dc Deus, e des· creveu-as a inda m ais am p lam en te na Stinittia contra gentiles. Paia se le r algum a idéia do c a rá te r c da profundidade da sua argum en tação neste ponto , deve-se ver com o abo rda a questão pelo ângulo do que é conhecido tecn icam ente com o o a rgum en­to da causalidade eficiente, e tom ando por em préstim o um pe­daço d o argum en to sobre a contingência e a necessidade2*.

Entenderem os m elhor a visâo de S ão T om ás sc com eçar­mos com um a experiência im aginária da nossa vida corrcn lc . S uponham os que eu queira c o m p ra r m eio qu ilo de peito de peru em um a m ercearia. Ao chegar lá. sou inform ado de que tenho de pegar um a senha an tes dc poder fazer o m eu pedido. No en tan to , ju stam en te qu an d o estou a pon to de pegar essa senha, dizem -m e que tenho dc pegar ou tra senha para poder pegar a senha an te rio r. E que. ju stam en te q u ando estou para pegar esta ú ltim a, devo pegar a inda ou tra . Deste m odo, tenho dc pegar um a senha, para pegar u m a senha, p ara pegar um a senha, a fim dc p oder fazer o m eu pedido no balcão d a m er­cearia.

S uponham os ainda que a série dc senhas requeridas é infi­nita, isto é. que de cada vez que pego um a senha descubro que existe um a senha a n te rio r e devo tê-la em m eu p oder an tes de pegar a seguinte. Nessas condições, nunca chegarei ao balcão. Por todo o sem pre, daqui a té o final dos tem pos, estarei co r­rendo a trá s dc senhas.

Mas sc eu vir alguém que vem saindo da m ercearia com m eio quilo de rosbife com prado no balcão, saberei in stan ta ­neam ente que, na realidade, a série dc senhas não po<le co n ti­nu a r para sem pre, porque nesse caso ninguém poderia jam ais se r a tend ido ao balcão. Portan to , a série tem de ser finita.

E ste exem plo pode parecer m u ito d is tan te d a questão da existência de Deus, m as nâo o é; a prova de São T om ás é dc certo m odo análoga a am bos. C om eça pela idéia de que todo o efeito requer um a causa e dc que nada do que existe no m u n ­

(26) Vcja-se o cxccicniv artigo tie James A. Sadowsky. “Can There Be anI:.ik11cvs Rcgrcu of Causes?“, cm Brian Davies, ed., Philosophy of Rtltgion: A (htide and Attlhttlogy. Oxford University Press. Ncvv York, 2000. pig. 239-42.

60 THOMAS E. WOODS JR

d o físico é causa d a su a própria existência: c o cham ado p r in ­cip io da razão suficiente. Q uando vem os um a mesa. po r exem ­plo. sabem os perfeitam ente que ela não apareceu espon tanea­m ente. Deve a sua existência a algo mais: a um constru to r e a um a m atéria-prim a an te rio rm en te existente.

Uma coisa A deve a sua existência a a lgum a causa B. Mas B. p o r sua vez. nào é um ser que exista po r si mesm o, c tem tam bém necessidade dc un ia causa C. Mas agora C precisa igualm ente dc u m a causa D para existir. Tal com o no exem plo da m ercearia , deparam os com as d ificu ldades levantadas po r um a série infinita. E se tiverm os um a série infinita, na qual cada causa requeira ela própria um a causa, en tão nada poderia jantais ter chegado à existência.

S ão T om ás explica que leni de haver, c in conseqüência, um a Causa sem causa - um a causa que cm si m esm a não ne­cessite dc causa, e que, p o r conseguinte, dê início à seqüência de causas. E sta prim eira causa - d iz S ão Tom ás - é Deus. Deus é um ser que existe p o r si m esm o, cu ja existência é p a n e da sua p rópria essência. N enhum se r hum ano deve ex istir neces­sariam ente; houve um tem po an te s dc cada um de nós te r vin­do à existência, c o m undo co n tin u ará a existir depois dc cada um dc nós te r m orrido . A existência náo é parte d a essência dc nenhum se r hum ano. Mas com Deus é diferente: Ele não pode não existir. E não depende dc n ada an te rio r a si m esm o para explicar a sua existência.

UM “RIO DE CIÊNCIA"

Este tipo de rigo r filosófico caracterizou a vida intelectual das prim eiras universidades. N ão c dc e stra n h a r que os papas e o u tros hom ens da Igreja situassem as un iversidades en tre as grandes jó ias da civilização cristã. E ra com um ouvir d c sc iw c r a U niversidade de Paris com o a “nova Atenas"*7 - um a designa­ção que evoca as am bições dc A lcuíno quando, vários séculos an tes, no período caio líng io , se propunha estabelecer um a no­

(27) Hcnn Dantcl-Rops, A iRrrjti das catedrais e das cnizadas. tnid. dc Emanco da Cama, cm llb tdna dia Igrtja de Cristo, vol. 3. Quadrante. S io Pau­lo. 1993. pig. 348.

IV A IGREJA E A UNIVERSIDADE 61

va A lcnas no reino dos francos. O papa Inocencio IV (1243- •1254) descreveu as universidades com o "rios de ciência cuja água fertiliza o so lo da Igreja universal“, c o papa Alexandre IV (1254· 1261) cham ou-as “lâm padas que ilum inam a casa dc Deus". E é a o apoio dad o pelos papas que sc devem o c res­cim en to e o êxito d o sistem a universitário . “G raças a essas in· tervenções pontifíc ias - escreve o h isto riado r H cnri Daniel* -Rops o ensino superio r foi capaz de expandir-se. A Igreja foi sem dúvida a m atriz de onde saiu a Universidade, o n inho de onde ela levantou vôo"1*.

É um fato com provado que um a d as m ais im portan tes con ­tribu ições m edievais para a ciência m oderna foi a liberdade dc pesquisa no m undo universitário , onde os acadêm icos podiam d eba te r c d iscu tir as p roposições apo iados na certeza da u tili­d ade da razão hum ana. C on tra riam en te ao re tra to grosseira­m ente inexato que sc tem feito d a Idade M édia, a vida intclcc- tual medieval p restou con tribu ições indispensáveis ix civiliza­ção ocidental. "Os m estres da Idade M édia - concluiu David Lindberg cm The Begitmings o f Western Science (1992) - cria* ram u m a am pla trad ição intelectual, sem a qual o subseqüente progresso na filosofia natural te ria sido inconcebível" **.

C hrisiophcr Dawson, um dos grandes historiadores do sé­culo XX. observou que. desde os tem pos das prim eiras un iver­sidades, “os m ais a ltos estudos eram dom inados pela técnica da discussão lógica: a quesito c o debate público, que tão am ­plam ente de te rm inaram a fortna da filosofia medieval, so b re tu ­do nos seus principais expoentes. «N ada pode sc r perfeitam en­te conhecido - disse R oberto dc S o rbonnc - se não tiver sido m astigado pelos den tes do debate , e a tendência a subm eter Iodas as questões, da m ais óbvia à m ais abstrusa, a esse pro­cesso de m astigação não só estim ulava a perspicácia c a exati­dão do pensam en to com o. acim a dc tudo. desenvolvia o esp íri­to critico e a dúvida m etódica a que a cu ltu ra e a ciência oc i­dentais tan to devem »">0.

(28) Ibid.. pig. 345.(29) David C. Lindberg. Ttte Beginnings o f Western Science. pAg. 363.(30) Christopher Dawson. Religion and rite Rise o f Western Culture, pdgs

1901.

THOMAS K. WOODS JR

O historiador da ciência Edw ard G rant concorda com esscj juízo:

"O que foi que tom ou possível à civilização ocidental desenvolver a ciência c as c iências sociais de um m odo q u e ( nenhum a ou tra civilização havia conseguido a tê en tào? \ Estou convencido de que a resposta está no p en e tran te e j profundam ente arra igado esp irito dc pesquisa que teve iní- < cio nu Idade M edia com o conseqüência natu ral d a ê n la se l posta na razão. Com exceção das verdades reveladas, a ra-1 zào e ra en tron izada nas universidades m edievais com o ár-1 b ilro decisivo para a m aio r parte dos debates e controvér-1 sias intelectuais. Os estudantes, im ersos em um am biente), un iversitário , consideravam m uito natural em pregar a ra-1 zào para pesquisar as áreas do conhecim ento que nào ha- f viam sido exploradas an teriorm ente, assim com o d iscu tir I possibilidades que an tes nào haviam s ido consideradas se- I r iam en te"31. ]

A criação da Universidade, o com prom isso com a razão e com a argum en tação racional e o ab rangente esp írito de pcs-l qu isa que caracterizou a vida intelectual m edieval rep resen ta- . ram "um dom da Idade M édia latina ao m undo m oderno [...]. : a inda que nunca se venha a reconhecê-lo. Talvez esse d o m f conserve para sem pre a condição de segredo m ais bem guarda· d o que a civilização ocidental teve du ran te os qu a tro sécu los 'l passados“" . Foi um dom da civilização cujo cen tro e ra a Igrc*| ja Católica. j

(31) Eduard Grani. GoJ and Heaion in lite Middle Ages. pág. 356.(32) Ibid.. pá*. 364.

A IGREJA E A CIÊNCIAV .

Terá sido apenas coincidência que a ciência m oderna sc de­senvolvesse cm um am bien te cm am pla m edida católico, ou houve algum a coisa no próprio catolicism o que possibilitou o *eu progresso? O sim ples fato de levantarm os esta questão já significa transg red ir as fron teiras d a op in ião em voga. No en ­tanto, são cada vez em m aio r núm ero os estudiosos que a le­vantam , c as suas respostas podem surpreender-nos.

Nào ó um assun to secundário. Na m entalidade popular, a nlcgada hostilidade da Igreja C atólica para com a ciência tal-

: vez constitua o seu principal ponto fraco. O caso Galilcu, na versão d e tu rpada com a qual a m aio r parte das pessoas está fam iliarizada, é largam ente responsável pela crença tão d ifun­dida de que a Igreja obstru iu o avanço da pesquisa científica. Porém, ainda que esse caso lenha sido bem m enos ru im do que as pessoas pensam , o cardeal John Hcnry Ncwm an, famo- to converso do anglicanism o do século XIX, achou revelador que seja esse p raticam ente o ún ico exem plo que sem pre acode 6 m ente das pessoas quando sc pensa na relação en tre a Igreja c a ciência.

GAt.tt.HU

A controvérsia d e Galilcu cen trou-se em torno do trabalho do astrónom o polonês Nicolau C opém ico (1473-1543). Alguns estudiosos m odernos de Copém ico a firm am que era padre, ma* nào existe nenhum a evidência d ire ta de que tivesse c h e ­gado a receber as o rdens m aiores, em bora tivesse sido nom ea­do cônego do cab ido dc Fraucnburg no final da década de

64 THOMAS K WOODS JK

1490. Fosse qual fosse o seu estado clerical, porém , o certo é que nasceu c se criou cm um a fam ília pro fundam en te religio· sa. na qual todos pertenciam à O rdem Terceira de S âo D om in­gos, a associação dc fiéis vinculada à O rdem que estendera aos leigos a o p o rtun idade dc partic ip a r da esp iritua lidade c da trad ição d o m in ican as1.

Com o cien tista . C opérnico e ra um a figura de renom e nos m eios eclesiásticos, tendo sido consu ltado pelo V Concílio dc Latráo <1512*1517) sobre a reform a do calendário. A pedido dos am igos, de colegas acadêm icos c de vários prelados, que o instavam a pub licar o seu trabalho , C opérnico acabou po r ce­d er e publicou Seis U vros sobre as Revoluções das órb itas Ceies- les, que dedicou ao papa Paulo III. em 1543. Antes ainda, em 1531. linha red ig ido para os am igos um sum ário do seu sistem a heliocêntrico que viria a a tra ir as atenções a té d o papa C lem en-. te VI!; este convidaria o hum an ista e advogado Jo h an n Alberfl W idm anstadt a d a r um a conferência pública no V aticano sobral o tem a. ficando m uito bem im pressionado com o que ou v iu 2.

No seu trabalho . C opérnico conservou m uito da astronom ia convencional da sua época, a qual sc devia quase por com pleto a A ristóteles c, acim a de tudo. a Ptolom eu (87-150 d.C.), um b rilhan te astrônom o grego para quem o universo e ra geocên­trico. A astronom ia copcm icana partilhou com a dos seus p re-| cursores gregos a lguns aspectos, tais com o a perfeita esferici* dado dos corpos celcstcs. as ó rb itas c ircu lares e a velocidade constan te dos planetas. M as in troduziu um a diferença signifi­cativa ao s itu a r o Sol. ao invés da T erra, no cen tro do sistem a; no seu m odelo, a Terra c os o u tros planetas m oviam -sc em lo m o do Sol.

Apesar do feroz ataque dos pro testan tes, que viam no siste­ma copem icano um a frontal oposição à Sagrada Escritu ra , esse sistem a náo foi ob jeto dc um a censura católica form al até que surgiu o caso Galileit.

Galilcu Galilei (1564-1642), além dos seus traba lhos no cam po da física, fc/. com o seu telescópio algum as observações

(1)C fr. por exemplo J.CI. Hagen, “Nicolaus Copcrnicus“. cm Calhutic F.ncyotopedia.

(2) Jcromc J. LangfonJ OP. Calilto. Science and lhe Chttnh. D oclíc. New Yori. 1966. pág. 35.

V. A IGRÍ11A E A CIÊNCIA 65

astronôm icas im portan tes que con tribu íram para ab a la r o sis· lem a ptolom aico. O bservou m on tanhas na lua, com o que der- ruhava a velha certeza de que os corpos celestes eram perfeita­m ente esféricos. D escobriu as q u a tro luas que o rb itam cm to r­no dc Júp ite r, d em onstrando não só a presença de fenôm enos celestes que P tolom cu e o s an tecessores nâo haviam percebido, mas tam bém que um planeia, m ovendo-se na sua ó rb ita , nâo deixa para irás os seus satélites. (Um dos argum en tos co n trá ­rios ao m ovim ento d a T e n u era o dc que a Lua seria deixada para trás). A descoberta das fases de Vénus foi ou tra peça de evidência cm favor do sistem a copcm icano .

Inicialm ente. Galilcu c a su a ob ra foram bem acolh idos c festejados po r em inentes eclesiásticos. Em fins dc 1610. o pc. Cristóvão Clavius* com unicava p o r carta a Galileu que os seus am igos astrônom os jesu ítas haviam confirm ado as suas desco­bertas. Q uando foi a Rom a no an o seguinte, o astrônom o foi saudado com en tusiasm o tan to pelos religiosos com o po r per­sonalidades leigas. Escreveu a um am igo: “Tenho sido recebido c favorecido po r m uitos cardea is ilustres, p relados c príncipes desta cidade". O papa Paulo V conccdcu-lhc um a longa au ­diência c os jesu ítas do Colégio R om ano o rgan izaram um dia de atividades em hom enagem às suas descobertas.

Galileu estava encantado: p eran te um a audiência de ca r­deais. m atem áticos e líderes civis, a lguns alunos dos pes. Gricn- Ixrrgcr* c Clavius d isco rre ram sobre as descobertas do astrô n o ­mo. T udo parecia favorecc-lo. Q uando, cm 1612. publicou o seu História e demonstrações em to m o das m anchas solares e dos setts acidentes, cm que pela prim eira vez aderia publica·

(3) O pc. Cristóvão Clavius (1538-1612), um dos grandes matemáticos do *cu tempo, havia chefiado a comissáo cncanrgada dc elaborar o calendário gregoriano, que entrou cm vigor cm 1582, eliminando as imprvcisòcs que afe­tavam o amigo calendário juliano. Os seus cálculos cm rclaçào à duração do d it· i solar e ao número dc dias necessários para manter o calendário ajustado ao ano solar - sallar noventa c sete dias a cada quatrocentos ano> - foram dc lal prccisâo que alo hoje os estudiosos náo sabem como conseguiu rca)i?á-los Uh . Joscph Ê. MacDonnclt. Jesiiit Gtonielery. pág. 19).

(4) O pc. CrisUtpfi Gnenberxer (1531-1636), que comprovou pessoalmente a descoberta das luas dc Júpiter por Galileu. cra um compctcntc astrónomo, in* w ntor da montagem equatorial, que fazia girar um tclescApio sobre um eixo paralelo ao da Terra. Também contribuiu paia o desenvolvimento do telescó­pio dc rvfraçâo que sc utiliza hoje cm dia (ibtd, ).

66 THOMAS E. WOODS JR

m enlc ao sistem a copem icano , um a das m u itas c en tusiásticas ca rta s dc congratu lação que rcccbcu veio dc ninguém m enos I que o cardeal M affco B arbcrini, fu turo papa U rbano VHP. i

A Igreja nào fa /ia ob jeção ao uso do sistem a copem icano! com o um modeto teórico, com o u m a hipótese cuja verdade l i · ' lera! nào tinha sido com provada*, pois efetivam ente explicava os fenôm enos celestes de m aneira m ais elegante e precisa que o sistem a piolem aico. Pensava-sc que nào havia nenhum ma) em apresen tá-lo e usá-lo com o um sislcm a hipotético.

G alileu. porém , acreditava que o sistem a copem icano era literalm ente verdadeiro, e nào um a sim ples hipó tese que for· neccsse previsões precisas, m as nào d ispunha de evidências adequadas que respaldassem a sua crença. Assim, po r exem­plo, argum entava que o m ovim ento das m arés constitu ía um a prova do m ovim ento da T erra , a rgum en to que hoje. curiosa-1 m ente, os c ien tis tas consideram ridículo. N ão era capa/, dc responder à ob jeção dos gcoccntristas - que v inha de Aristóte· les - de que. sc a Terra sc m ovia, en tão deveria se r possível observar um a m udança de paralaxe q uando observássem os as estrelas, coisa que não aco n tec ia7. No en tan to , ap esa r da falta de provas estritam en te científicas. Galileu insistiu na verdade literal do sistem a copem icano e recusou-se a ace ita r um com -| prom isso pelo qual o copem ican ism o deveria se r ensinado com o hipótese a ié que pudesse apoiar-se em evidências con ­clusivas. Q uando foi m ais longe a in d a c sugeriu que, pelo con· trário , eram os versículos da S agrada Escritu ra que deviam ser

(5) Cfr. Jerome J. Longford. Ca/i/to, Sciencs and lhe Church, págs. 45 a 52.)(6) Ê precisamente o que era na época. A rotação da terra e o hcliocen»^

insm o só vieram a ser compiovados experimentalmente em /55 /. com o p£n* i dulo que Leon Foucault pendurou do ápice do domo do Panteão dc Paris (N. do E.).

(7) Parafaxc é o deslocamento aparente que se deveria observar na posição de umas estrela.* cm relaçAo às outras por causa da mudança de posição do observador. O argumento di/. que. se a Terra sc move cm tomo do Sol. as es­trelas (nâo os planeias) deveriam aparecer cm posições diferentes ao longo do ano. à medida que o nosso ponto de observação delas mudasse com o dcNloCft» mento da Terra, c isso nâo acontece. Na realidade, até a época de Galileu n io sc podia observar nenhuma mudança de paralaxe porque os instrumento« de que se «dispunha - ou o olho humano - nAo eram piecisos o suiicicntc: além disso, a distância das estrelas íixas mais próximas é enorme, de maneira que a paralaxe é extremamente pequena (N. do E.).

V. A IGRKJA K A CIÊNCIA 67

rcin terprelados, passou a sc r visto com o alguém que usu rpara .1 au to ridade dos teólogos.

Jerom e Langford, um dos m ais jud iciosos estud iosos m o­dernos deste assunto , fom ece-nos um sum ário m u ito útil da posição dc Galilcu:

"Galilcu estava convencido de possu ir a verdade, m as não tinha provas objetivas sufic ien tes para convencer os hom ens de m ente aberta . É um a com pleta in justiça a fir­m ar. com o fazem alguns historiadores, que ninguém ouvia os seus argum en tos e que nunca teve um a oportun idade. Os astrônom os jesu ítas tinham confirm ado as suas desco­b ertas c esperavam ansiosam en te p o r provas ulteriores pa­ra poderem a b a n d o n a r o sistem a de Tycho* c passarem a ap o iar com segurança o copcrn ican ism o. M uitos eclesiásti­cos in fluentes acred itavam que Galilcu devia e s ta r certo, m as tinham de e sp erar po r m ais provas".

"Como é evidente, não é in te iram ente co rre to p in ta r Galilcu com o um a vítim a inocente do preconceito e da ignorância do m undo", acrescenta Langford. "Parle d a cu lpa dos aconteci­m entos subseqüentes deve scr a tribu ída ao próprio Galileu, que recusou qualquer ressalva e, sem pravas suficientes, fez derivar o debate para o te rreno próp rio dos teólogos"’ .

Foi. portan to , a insistência de Galilcu sobre a verdade lite* ial do copcrn ican ism o que causou a d ificuldade, um a vez que, aparen tem ente , o m odelo heliocêntrico parecia con trad izer certas passagens d a Escritu ra . A Igreja, sensível às acusações pro testan tes de que os cató licos não faziam m uito caso d a Bí­blia. hesitou cm aco lher a sugestão de que sc pusesse de lado o sen tido literal da E scritu ra - que. às vezes, parecia im plicar rui ausência de m ovim ento d a Terra - para acom odar um a l e o

(8) Tvcho Brahc (1546-1601) propôs um sistema astronômico que se situa­va mais ou menos cnlrc o gcoccnirismo plolomnico c o hchoccntnsmo copcr* m uno. Nesse sistema, todos os planeias, com exceção da Terra, giravam cm lomo do Sol. mas o Sol girava cm lomo dü Terra, que permanecia csiacioná·

(9) Cfr. Jerome J. Langford. Galileo. Science and the Church, págs. 68-69.

68 THOMAS E. WOODS JR

ria científica sem p ro v as10. M esm o assim , aqui a Igreja nSo foi inflexível. Com o com en tou na época o célebre cardeal Roberi» B elarm ino.

“Sc houvesse um a verdadeira prova de que o Sol é o ccn iro d o universo, de que a Tenra está no terceiro céu c de que o Sol nüo g ira cm to m o da T erra, m as a Terra em to m o do Sol. en tào deveríam os ag ir com g rande circunspc· çâo ao explicar passagens da E scritu ra que parecem en si­n a r o con trá rio , c ad m itir que nüo as havíam os en tendido, cm vez de dec la ra r com o falsa um a op in ião que sc prova verdadeira. M as eu m esm o nâo devo a c red ita r que existam ta is provas enq u an to nâo m e sejam mostradas**11.

A ab ertu ra de princíp io do cardeal B elarm ino a novas in ter­pretações da E scritu ra à luz dos acréscim os feitos ao universo do conhecim ento h u m ano nâo e ra nada de novo. S an to Alberto M agno era do m esm o parecer: “Acontece com freqüência"·, es­creveu certa vez. "que surge algum a questão sob re a le rra , o céu ou o u tro s elem entos deste m undo, a respeito da qual um nâo -c iistáo possui conhecim en tos derivados dos m ais acuradoÉ raciocín ios ou observações. N este caso. deve-se ev itar c u íd ad o j sam ente . po rque seria m u ito desonroso c prejudicial para a féJ que um cristão, ao falar dessas m atérias de acordo com o que] pensa que dizem as S agradas Escritu ras, seja ouvido p o r um nüo-crcnte a d izer tais tolices que esse nào-crcn te - p e n e b e n d d que o o u tro está tüo a fastado d a realidade com o o leste o está d o oeste - quase nüo conseguisse co n te r o riso**'*. Tam bém Sáo Tom ás de Aquino advertiu sob re as conseqüências de sc querer su s ten ta r um a d e te rm inada in te rp re tação da S agrada Escritu ra a respeito da qual tivessem su rg ido sérios m otivos para pensar que nüo e ra correta :

V. A IGREJA £ A CIÊNCIA 69

“Prim eiro, é p reciso c rc r que a verdade da E scritu ra é inviolável. Segundo, qu an d o há diferen tes m aneiras de ex­plicar um texto da E scritu ra , nenhum a d as in terpretações particu lares deve se r su sten tad a com tan ta rigidez que, sc argum en tos convincentes m ostrarem que é falsa, alguém ouse insistir cm que. m esm o assim , esse a inda é o sen tido co rre to do texto. Caso con trá rio , os nào-crcn tcs despreza* rào a S agrada E scritu ra c o cam inho d a fé sc fechará para cIcs’'**.

Em 1616, depois de te r ensinado pública e insisten tem ente a teoria copem icana , Galileu foi av isado pelas au to ridades da Igreja de que devia p a ra r de susten tá-la com o verdade, em bora losse livre p ara ap resen tá-la com o hipótese. Galileu concordou c prosseguiu com o s seus trabalhos.

Em 1624, fez ou tra viagem a Rom a. onde foi novam ente re- ccbido com g rande en tusiasm o e p rocu rado por in fluentes ca r­deais desejosos de d iscu tir com ele questões científicas. O papa Urbano VIU deu-lhe m uitos presen tes valiosos e em itiu um breve de recom endação ao grâo-duque da T oscana cm que o reconhecia com o um hom em “cuja fam a brilha no céu c sc es- ,wlha po r todo o m undo". C om entou com ele, em particu lar, que a Igreja nâo tinha declarado herético o copcm ican ism o e que nunca o faria.

No en tan to , o Diálogo sobre os (b is gratiiles sistem as do m undo, que Galileu publicou cm 1632 c fora escrito a pedido do papa. ignorou a in strução de que o copcm ican ism o devia »cr tra tado com o hipótese c nâo com o verdade e s tabe lec idaN. Para sua infelicidade, cm 1633 o astrónom o foi declarado sus­peito de heresia c p ro ib ido de pub licar escritos sobre o tem a. Continuou a p ro d u zir ou tras obras, aliás a inda m elhores e mais im portan tes, particu la rm en te o s seus Discursos e dem onstra­ções m atem áticas em to m o de duas novas ciências (1635). Mas

(13) Cit. por l-xlward Ciant. ‘Scicncc and Thcology in thc Middlc Agc\ . cm üavid C. Lindbcrg c Ronald L. Numbcry « lv . Cod atui Salurc: Histórica! / v*m (ui lhe Encoiinier Betwreii Chrisiianity and ScktK t. Univcrsiiy o í Cali· Inmia Prcvs. BcrkcWv. 1986. pág. 63.

(14) Anos mais lardc. o pc. Gricmbcrgcr comcniou que. se Galileu tivcfec lrolado a» suas concInsAcs como hipóteses, poderia ler cscrilu quafquvr coisa que qiiisCNNC (cfr. Joscph MacDonncll. Jesuh Ctom curs. Apêndice I. 6*7).

70 THOMAS E. WOODS JR

essa censura insensata m anchou po r m uiio tem po a reputação da igreja.

É im portante, porém , não exagerar o que aconteceu. Como) explica J.I.. Hcilbron:

'O s contem porâneos bem inform ados foram da opinião dc que a alusão à heresia no caso dc Galileu ou CopcrnicqJ não tinha nenhum alcance geral ou teológico. Em 1642, Gassendi observou que a decisão dos cardeais, em bora im ­portan te para os fiéis, não leve a categoria de um artigo de fé; em 1651, Ríccioli afirm ou que o helioccntrism o não era um a heresia; cm 1675, Mengoli declarou que as interpreta· çôcs da Escritura só podem obrigar os católicos sc lorcnil aprovadas em um concílio geral·, c cm 167$, Baldigi&ni acrescentou que não havia ninguém que não soubesse dis-

j

O certo é que os c ientistas católicos, m uitos deles jesu ítasi ou m em bros de ou tras O rdens religiosas, continuaram a fazer j as suas pesquisas sem nenhum tipo de entraves, cu idando ape-j nas dc tra ta r com o hipótese o m ovim ento da terra, com o uliás] já o tinha recom endado o decreto da Santa Sé de 1616. Um de· ereto de 1633, pouco posterior ao processo, excluiu das discusd; sões académ icas qualquer m enção ao m ovim ento da terra; no i en tan to , cien tistas com o o pe. Rogério Boscovich continuavam a u sar nas suas ob ras a idéia de um a terra em m ovimento, e por isso os historiadores especulam que sc tratava apenas dc um reforço da censura original c era “dirigido a Galileu Galilci pessoalm ente", não aos c ientistas católicos com o um to d o 16.

Dc qualquer modo, a condenação dc Galileu, m esm o que enquadrada no seu contexto. Ião d istante da colocação exage- rada e sensacionalista da mídia, criou em baraços à Igreja c deu origem ao m ito de que ela seria hostil à c iênc ia17.

(15) J.L. Hcilbron. 77tc Stm hi lit* Church. pág. 203·(16) Zdcnck Kopal. T h e Contribution of Boscovich to Astronomy and

Geodesy*, cm Lancelot Law Whyte, cd.. Roger Joseph Boscovich. S, J., F. R.S., 1711.1787, Fordham University Press, New York. I96t. pig. 175.

(17) Pam uma narrativa mais comptcta da vida dc Galileu e uma análise mais detalhada da comienaç&o. pode-se ver Jorge Pimcntcl Cintra. Galtku, 2*. c d , Quadrante. Sâo Paulo. 1995 (N. do E.).

V. A IGREJA E A CIÊNCIA 71

DHUS 'DISPÔS TODAS AS COISAS COM MEDIDA. OUANT1DADE K PESO*

A p artir da obra d c P íc itc Duhcm. nos com eços do século XX, os historiadores da ciência Icndcm cada ve/. m ais a desta­car o papel crucial da Igreja no desenvolvim ento d a ciência. Infelizmente, m uito pouco desse trabalho académ ico tem pene­irado na consciência popular. Aliás, essas falsas im agens popu­lares nào sào incom uns; a m aior parte das pessoas, por exem ­plo, ainda acredita que a Revoluçào Industrial reduziu d rasti­cam ente o padrão dc vida dos trabalhadores, quando, na reali­dade. o pad rão médio dc vida se elevou Do m esm o modo, o verdadeiro papel da Igreja no desenvolvim ento da ciência mo* derna continua a ser um a espécie de segredo para o público em gera).

O pe. Stanley Jaki é um historiador da ciência - com d ou­torados cm teologia c cm física c prêm ios in ternacionais cu ­jos profundos conhecim entos ajudaram a d a r ao catolicism o c à Escolástica o seu devido valor cm rclaçào ao desenvolvim en­to da ciência ocidental. M uitos dos seus livros an teciparam a provocativa afirm açáo dc que, longe de obstruírem o progres­so da ciência, as idéias cristàs contribu íram para torná-lo pos­sível.

Jaki dá grande im portância ao íato dc que a trad ição crístà - desde a sua pré-história no Antigo Testam ento e através de toda a Idade Média, com o tam bém depois - concebe Deus - e. por extensão, a criação - com o um a realidade racional c orde­nada. Ao longo de toda a Bíblia, a regularidade dos fenôm enos naturais é descrita com o reflexo da bondade, beleza e ordem dc Deus. Por isso. sc Deus “im pôs um a ordem às m agníficas obras da sua sabedoria", é un icam ente porque Ele existe de eternidade em eternidade (S ir 42. 21). "O m undo. - escreve Jaki. condensando o testem unho do Antigo Testam ento - com o obra artesanal que é dc um a Pessoa sum am ente racional, está d o ta ­do dc ordem e propósito".

Essa ordem é evidente em tudo o que nos cerca. “A regula*

(18) Ver Thoma* K. Woods. Jr.. The Church attd the Merkel: A Catholic De fettie o f the Frre txonotm·. Lexington Books, lanham . Marvbnd, 2005. pá#*. 16974.

72 THOMAS H. WOODS JR.

rídadc das estações, a tra je tória infalível das estrelas, a harm o­nia dos planetas, o m ovim ento d as forças da natureza segundo ordenam en tos fixos tudo isso sâo resu ltados do Único cm quem sc pode con fia r incondicionalm ente'*. B isso m esm o que d iz Jerem ias q uando cita a recorren te fidelidade das colheitas com o prova da bondade d c Deus. c quando traça o paralelo “en tre o am o r sem falhas dc Yavé c a ordem eterna pela qual estabelece o cu rso d as estre las c das m arés"

Jaki cham a a nossa atenção para o livro da Sabedoria <11, 20). onde se d iz que Deus dispôs todas as coisas com medida, quantidade e peso30. Esse versículo, de aco rdo com Jaki. náo apenas deu suporte aos cristãos que defenderam a racionalida­de do universo nos fins da A ntigüidade, com o tam bém incenti­vou os cristãos que viveram um m ilênio m ais tarde. nos com e­ços da ciência m oderna, a investir em pesquisas quantita tivas com o cam inho para en tender o universo.

Isto pode parecer tão óbvio que desperte pouco interesse. M as a idéia dc um universo racional c o rdenado - enorme* m ente fccunda c na realidade indispensável para o progresso d a ciência - escapou a civilizações in teiras. Uma das teses cen­tra is dc Jaki é a d c que nâo foi um a co incidência que o nasci­m ento da ciência, com o um cam po dc esforço intelectual per­m anente . tivesse ocorrido cm um m eio católico. C citas idéias c ristãs fundam entais - sugere ele - foram indispensáveis ao surg im ento do pensam ento científico. As cu ltu ras nâo-cristàs nâo possuíam as m esm as ferram entas filosóficas c. pelo con­trário . tinham estru tu ra s conceituais que dificultavam o desen­volvim ento da ciência.

Em Science and Creation. Jaki exam ina à luz dessa tese sete grandes cu ltu ras - a árabe, a babilónica, a chinesa, a egípcia, a

(19) Stanley L. Jaki, Science and Creation: Front F.iental Cycle* to an Oscil­lating, Universe, Scottish Academic Press, Edinburgh, 1986. pág. ISO, O mesmo autor acrescenta: "O vinculo que há entre a racionalidade do Criador c a cons­tância da nalureza merece ser notado porque ó aí que sc encontram os tome· ços da idéia dc que a nature/a i autônoma e tem leis prriprias" {ibid.). Cfr. também Sal 8. 4; 19. 3-7: 104. 9: 148, 3.6 c Jcr 5. 24; 31-35.

(20) David Lindbcrg cita diversas ocaxiAes em que Santo Agostinho sc rr*fere a Ase versículo: ver DuvkI C. l.indbcrg, 'O n the Applicability of M.iihema· tics to Nature: Roger Bacon and his Predecessors'. British Journal for the His* lory o f Science 15 (1982). 7.

V. A IGREJA E A CIÊNCIA 73

grega, a hindu c a m aia - c conclui que cm todas cias a c iên­cia sofreu um "aborto espon tâneo”. A razão d isso é que, por carecerem da crcnça em um C riador transcendente que dotou a sua c riação dc leis físicas consistentes, essas cu ltu ras conce­beram o universo dc m odo panteísta , com o um gigantesco o r­ganism o dom inado por um pan teão de divindades e destinado a um ciclo sem fim de nascim ento, m orte c renascim ento. Isso lom ou impossível o desenvolvim ento da ciênc ia21.

Por sua vez, o an im ism o, que caracterizou as cu ltu ras m ais prim itivas, im pediu o crescim ento da ciência po r im aginar que as co isas criadas possuíam m ente e vontade próprias - um a

1 idéia que im pedia dc pensar que elas pudessem te r um com -1 portam ento d itado po r icis, segundo padrões fixos que era pos­

sível averiguar.A dou trin a c ristã da E ncarnação opõe-se firm em ente tan to

a um com o ao o u tro desses m odos dc pensar. C risto é o m ono­genes - o "unigénito" - Filho de Deus. Sc. d en tro d a visão gre- co-rom ana do m undo, "o universo e ra o m onogenes ou o «uni­génito», em anação de um princíp io d ivino que não seria real­m ente d is tin to desse m esm o univcrsoH,í, para o cristian ism o o divino repousa estritam en te cm C risto c na Santíssim a T rinda­de, que transcende o m undo; cxclui-sc assim qualquer tipo dc im anentism o ou panteísm o, c não sc im pede os cristãos, m uito pelo contrário , de enxergarem o universo com o um reino de ordem c previsibilidade ou seja, cm ultim a anãlisc com o o dom ínio próp rio da ciência.

Jaki nào nega que essas cu ltu ras tenham alcançado notá- ' veis feitos tecnológicos, m as m ostra que não vem os su rg ir daí

nenhum tipo dc pesquisa cientifica form al e sustentável. É por isso que, cm ou tra obra rccente sobre este assunto , se pôde afirm ar que "as prim eiras inovações tecnológicas grcco-rom a-

{21) A única exceção, dcmrc as sclc mencionadas. é a maometana (árabe), que concebe uin Deus único, mas ião soberanamente livre que nâo sc subme­teria nem mesmo i s Icis da racionalidade que Ele mesmo criou. Uma vç/ que l-le poderia mudar a todo o momenio as “regras do jogo" da Criaç&o - deter­minar que o que era verdade até então deixasse de sé-lo. que o mal pa&sav-c a wr bem. etc. n&» farta sentido tentar avenguâ-Lis (N. do E.).

(22) Stanley L Jaki, 'Medieval Crealivity in Science and Technology*, cm i d , Pattenrs o f Principies and Olher Hssavs. ImercoHegiate Studics Institute. Ili vn Mawr. Pcnn\vlvania. 1995. pág. 80.

74 THOMAS E. WOODS JR.

nas. do Islã. da China Im perial, sem m encionar as realizações dos tem pos pré-históricos, nào constituem ciência e podem ser descritas m ais adequadam ente com o artesanato , savoir-faire, habilidade, tradição, tre inam ento , técnica, tecnologia, enge- nharía ou. sim plesm ente, conhecim ento"” .

A an tiga Babilônia é um exem plo ilustrativo. A cosm ogonia babilónica era sum am ente inadequada ao desenvolvim ento da ciência e. m ais a inda, chegava a desencorajá-la positivam ente. Os babilônios pensavam que a ordem natural e ra tâo funda· m entalm ente incerta que som ente um a cerim ônia anual de ex­piação seria capa/, dc prevenir o caos cósm ico. Aqui tem os um a civilização que sc deslacou peia observação do céu, coli· gindo dados astronôm icos e desenvolvendo os rud im entos da álgebra, m as da qual. pelo seu am biente esp iritual c filosófico, dificilm ente sc poderia esperar que dirigisse esses dons práti­cos para o desenvolvim ento dc a lgum a coisa que m erecesse a sério o nom e de c iênc ia14. Por contraste , é significativo que, na criação cristã, tal com o é descrita no Gênesis, o caos esteja com pletam ente sujeito à soberan ia dc Deus**.

Fatores cu ltu ra is sim ilares tenderam a in ib ir a ciência na China. Curiosam ente, foi um h istoriador m arxista, jo seph Nee- dham , quem chegou realm ente ao fundo desse malogro. Se­gundo ele. a culpa foi da estru tu ra religiosa c filosófica cm que os pensadores chineses se moviam . Os in telectuais chineses, afirm a, eram incapazes dc ace ita r a idéia dc um as leis da na­tureza. E acrescenta - para nossa surpresa , pois a observação procede de um ideólogo que teria preferido encon tra r explica· çôcs econôm icas ou m aterialistas - que essa incapacidade re­su ltou de "nunca se te r desenvolvido a concepção de um divi­no legislador celestial que tivesse im posto ordem à natureza fí­sica".

“Não é que. para os chineses, não houvesse ordem nan atureza - prossegue -*, m as, m ais exatam ente , que não ha-

(23) Rodncv Slaik. For lhe Ctorv of God. Pnnccton Univcrsitv press. Prin· ccion. 2003. pág. 125.

(24)· Paul Haffncr. Cmation and Scieurific Creativitx. Clirislcndom Pivss. P.uni Rovai. Virgínia, 1991. pág. 33.

(25) H»d.. pág 50.

V. A iGRKJA E A CIÊNCIA 75

v»a um a ordem estabelecida po r um ser racional e pessoal; po r isso. nào existia a convicção dc que uns seres racionais pessoais fossem capazes dc transpo r para as suas lingua­gens terrenas inferiores o divino código de leis decretado an tes de todos os tem pos. Os tao istas, com efeito, teriam desprezado essa idéia com o ingênua dem ais para a sutileza e com plexidade do universo, tal com o o in tu íam "2*.

Particu larm ente desafiador é o caso da an tiga Grécia, que deu passos enorm es na ap licação da razão hum ana ao estudo de diversas disciplinas. De todas as cu ltu ras an tigas analisadas por Jaki, os gregos foram os que chegaram m ais perto dc de­senvolver um a ciência de tipo m oderno, em bora tenham aca­bado po r ficar m uito aquém . Os gregos a tribu íam um propó­sito aos agentes im ateria is do cosm os m aterial (assim , por exem plo, Aristóteles explicava o m ovim ento c ircu la r dos co r­pos celestes pela “afeição'* que os “prim eiros m otores" dc cada esfera celeste - esfera da lua, esfera do sol. etc. - teriam por esse tipo dc m ovim ento). Jaki susten ta que, no que d iz respeito ao progresso da ciência, coube aos escolásticos da Idade Média levar a cabo um a au tên tica despersonalização da natureza.

G rande parte da a tenção acadêm ica m ais rcccntc tcm-sc concentrado sobre as contribu ições dos estudiosos m uçulm a­nos ã ciência, particu larm ente no cam po da m edicina c no da ótica. É sem dúvida inegável que um a parte im portan te da his­tória intelectual do O cidente se deve à d ifusão por todo o m un­do ocidental, no século XII, de traduções dos clássicos da an ti­ga G récia ( liipócra tes e Aristóteles, sobretudo) feitas po r estu ­diosos árabes. No en tan to , a verdade é que essas contribuições dos cien tistas m uçulm anos se deram apesar do Islã, m ais do que po r causa dele. Os estudiosos m uçulm anos ortodoxos rejei­taram totalm ente qualquer concepção do universo que envol­vesse leis físicas estáveis, porque a absoluta au tonom ia de Alá nào podia ser cerceada pelas leis n a tu ra is17. As leis naturais

(26) Joseph Needham. Science and Cvilitftioit in China, vol. I. Cambridge University Press, Cambridgc. 1954. pág. 581; cil. cm Rodney Siark, For the Glory o f God. pág. 151.

(27) Stanley L. Jaki. The Savior o f Science, tlcrdmans. Grand Rapids. Mi­chigan. 2000. pAgv 77-78

aparen tes nâo passariam dc m eros “hábitos", por assim dizer, dc Alá. c poderiam sc r m odificadas a qualquer m o m en to 2*.

O catolicism o adm ite a possibilidade dc m ilagres e reco- nhece o papel d o sobrenatural, m as a próp ria idéia de m ilagre já sugere que sc tra ta de algo incoinunr, atiás, só faz sen tido falar cm m ilagre cm con traste com o pano de fundo dc um m undo natu ra lm en te ordenado . M ais ainda, a linha principal do pensam ento cristáo nunca re tra tou Deus com o fundam en· ta lm entc arb itrá rio ; pelo contrário , sem pre aceitou que a n a tu ­reza opera dc acordo com padrões fixos c inteligíveis.

Isto é o que S an to Anselmo quis d izer quando falou da dis­tinção en tre o poder ordenado dc Deus (potentia ordinata) e o seu p oder abso lu to {potentia absoluta). De aco rdo com cie, um a vez que Deus nos qu is revelar algo sobre a sua natureza, sobre a ordem m oral c sob re os seus planos dc redençáo, p o r isso m esm o obrígou-sc a seguir dete rm inado com portam en to , í c podem os con fia r cm que sc m anicrá co eren te2*. Por volta · dos séculos XM1 c XIV, essa d istinção tinha criado raízes p ro -, fu n d as10; é verdade que um G uilherm e dc O ckham enfatizou a ! potentia absoluta de Deus cm um grau l io elevado que náo ajudava em nada ao desenvolvim ento da ciência, m as, via de regra, o pensam ento cristão dava por ccrta a ordem funda­m ental do universo.

Foi na realidade São T om ás dc A quino quem encontrou o ponto dc equilíb rio en tre a liberdade que Deus tem dc c ria r qualquer tipo de universo que deseje e a sua coerência no go­verno do univereo que efetivam ente criou. Com o explica Jaki, a visâo católica tom ista considerava im portan te saber que u n i­verso Deus criou a fim de ev itar elucubrações abstra tas sobre que universo deveria ter criado. A com pleta liberdade criado ra dc Deus significa que o universo nâo tinha de se r de um certo jeito; ora. é po r m eio da experiência - ingrcdicnte-chavc do m étodo científico - que chegam os a conhecer a natureza do

76 TtlOMAS K. WOODS JR

(28) Slan lo 1.. Jaki. "Myopia aboui Islam, with an cvc on Chcstcrbclloc”, cm The CheMerton He\ iew 28. invemo dc 2002. |>4g. 500.

(29) Richard C. Dales, The Intellectual Life of Western Europe in the Mtddk Ages, pig. 264.

(30) Richard C. Dale». T h e Dc-Animarion of ihv Heavens in the Middle Ages". Journal of the History o f Ideas 41 (1980). pig. 535.

V A IGREJA E A CIÊNCIA 77

universo que Deus decidiu criar. E podem os chegar a conhe­cê-lo porque é racional, previsível c inteligível

E sta abordagem evita dois possíveis erros.Em p rim eiro lugar, previne con tra as especulações sobre o

universo físico d ivorciadas da experiência em que os an tigos caíam freqüentem ente. Com isso, desfere um golpe ex trem a­m ente im portan te contra os argum en tos a priori acerca de com o o universo “tinha de" se r assim ou assado ou dc com o ''e ra conveniente" que fosse deste ou daquele jeito. Aristóteles sustentava, po r exem plo, que um objeto duas vezes m ais pesa­do que o u tro ca iria duas vezes m ais depressa, sc am bos fos­sem lançados da m esm a a ltu ra . Chegou a essa conclusão por um a sim ples indução, m as ela não é verdadeira, com o q u a l­q u er um dc nós pode com provar facilm ente. Ainda que o esta- g irita coligisse m uitos dados em píricos ao longo das su as pes­quisas. persistiu na crença de que a filosofia natural podia ba- sear-se un icam en te no traba lho da razão, desligada da pesqui­sa es tritam en te em pírica. Para ele, o universo e terno e ra um universo necessário, c os seus princíp ios físicos poderiam ser alcançados po r m eio dc um processo intelectual desvinculado da experiência w.

Em segundo lugar, im plica que o universo c riado po r Deus é inteligível e ordenado , pois, em bora Ele tenha em tese o po­der dc in stau ra r o caos em um m undo físico sem leis, isso se­ria incoerente com a ordem c a racionalidade do seu com por­tam ento. Foi precisam ente este sen tido de racionalidade c pre­visibilidade do m undo físico o que, cm prim eiro lugar, deu aos ruodem os cien tistas a confiança filosófica necessária para sc ded icarem aos estudos científicos. Com o afirm ou um estud io ­so, “foi som ente d en tro dessa m atriz conceituai que a ciência pôde nascer efetivam ente e depois crescer dc m aneira susten ­tada" M.

Esta posição, su rp reendentem ente , encontrou um apoio em Fricdcrich N ietzsche, um dos m aiores críticos do cristian ism o

(31) Cíiado cm Paul Haífrtcr, Creation and Scientific Creativity, pág. 39; ver 1,-tmMm pág. 42.(32) A.C. Crombie. M edkwl and lütrh· Modem Science, vol. 1. Doublcdav,

New Yoi*. 1959. pág. 58.(33) Paul Haffner. Creation and Scientific Creativity, pág. 40.

78 THOMAS E. WOODS JR.

d o século XIX. "E stritam ente falando - afirm a ele nâo existe um a ciência «sem nenhum tipo de pressupostos» Sem pre tem dc vir cm prim eiro lugar um a filosofia, um a «fé». para que a p artir deia a ciência possa adqu irir um a direção, um sig- nificado. um limite, um m étodo, um direito de existir Continua hoje a se r um a fé metafísica o que suslcn ia a nossa fé na ciência"*4.

O PROBLEMA DO MOMENTO INI-RCIAl.

A tese de Jaki. d c que foi a teologia cristã que susten tou a aventura científica no Ocidcnic, tam bém pode ser aplicada ao m odo com o os estudiosos ocidentais resolveram im portantes questões relativas ao m ovim ento, aos projéteis e ao impulso. Para os antigos gregos, o estado na tu ra l dc todos os corpos era o repouso. Por isso, o m ovim ento pedia um a explicação, e foi o que Aristóteles tentou fa /c r. Segundo ele, a terra, a água c o a r - três dos q ua tro e lem entos que, conform e sc dizia, com punham o m undo terrestre - tendiam naturalm ente para o cen tro da terra. O uando um objeto que e ra largado de um a ár* vorc sc precipitava no chão. esse m ovim ento devia-sc à sua na­tureza. que o fazia buscar o cen tro da terra (no que seria im ­pedido, é claro, pelo chão). Q uanto ao fogo. tendia por naturc* za a m over-se para algum ponto acim a dc nós. ainda que den­tro dos limites da região su b lunar (isto é. d a região “abaixo da luaw) J5.

Aristóteles falava de dois movim entos: o natural e o violen­to. O exem plo de m ovim ento natural e ra o das cham as que se elevam c o das pedras que caem , casos cm que o objeto cm m ovim ento procurava o seu lugar natural de repouso. O exem­plo clássico dc m ovim ento violento cra o dos projéteis, pois

(34) Cil. cm EmcM L Furtin. T h e Bible Made Mc Do ti: Christinniu. Sdvfl* cc and lhe Environment". cm J. Brian BcncMad. ed.. Hntest Furtin: Cotected Essayi. vol. 3: //unfair Rights, Virtue and the Cottmion Good: Untimely Medita· tiotis OJi Religion and Polite*. Ruwman & Littlefield, I jnliam . Maryland. 1996, pág. 122. O itálico 4 do original dc Nici/schc. Genealogia da Moral. HI. 23*24.

(35) Sobre todo o le icma. vcr Herbert Buitcrftcld. The Orients o f Modem Science. I3Û0-I800. cd. rev.. Free Press. New York. 1957. cap. I: “The Histori­cal ImportaiKC of a Theory ol Impetus'.

V. A IGREJA E A CIÊNCIA 79

con tra ria a sua tendência natural para o ccn tro da terra. Era particu larm ente difícil para Aristóteles encon tra r um a explica* çào para o m ovim ento dos projéteis. A sua teoria parecia suge­rir que o projétil deveria ca ir ao chão no instante cm que dei· xasse a m ão d a pessoa - pois esta é a sua natureza c só con· tinuaria a su b ir sc estivesse sendo em purrado po r algum a for­ça externa. Incapaz. dc resolver o im passe, Aristóteles sugeriu que, quando o projétil voava pelo ar, e ra porque havia no seu percurso um a espécie de vibrações que o em purravam .

Um elem ento essencial da transição d a física antiga para a m oderna foi a in trodução do conceito de inércia: a resistência de um objeto a a lte ra r o seu estado dc m ovimento. No século XVIII, Isaac Newton descreveria esse conceito na sua prim eira lei do m ovim ento, segundo a qual os corpos cm repouso ten ­dem a perm anecer cm repouso e os corpos em m ovim ento ten ­dem a perm anecer em m ovim ento. Mas os estudiosos m oder­nos observaram que essa idéia do m ovim ento inercial já teve precedentes m uito an tes dc Newton, na época medieval.

P articu larm ente im portan te neste sentido foi o trabalho de Jean Buridan (ca. 1295*1358), sacerdote c professor da Sorbon- nc no século XIV. Com o qualquer católico. Buridan rejeitava a idéia arisiotélica de que o universo é e terno po r si mesm o; em v e / disso, sustentava que o universo fora criado por Deus a p artir do nada. cm um m om ento determ inado . E sc o universo não era eterno, en tão o m ovim ento ccleste, cuja e ternidade A ristóteles tam bém havia susten tado , tinha que ser concebido de ou tra m aneira. Hm ou tras palavras, se os planetas tinham com eçado a ex istir em um dado m om ento do tem po, en tão o m ovim ento planetário tam bém tinha de te r com eçado cm um dado m om ento do tem po.

O que Buridan procurou descobrir foi de que m odo os co r­pos celestes, um a vez criados, puderam com eçar a mover-se e perm anecer cm m ovim ento na ausência de um a força que os continuasse a propelir. A sua resposta foi que Deus, após ter criado os corpos celestes, lhes havia conferido o m ovim ento, e que esse m ovim ento nunca se havia dissijxido porque os co r­pos celestes, m ovendo-se no espaço exterior, não encontravam a trito c. portan to , não sofriam nenhum a força con trá ria que pudesse d im inu ir a sua velocidade ou interrom per o seu movi­m ento. Aqui estão contidas em germ e as idéias de m om ento fí­

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sico c dc inércia 4*. E m bora não tenha chegado a livrar-sc in tei­ram ente dos lim ites d a física aristo télica c a sua concepção dc m om ento perm anecesse em baraçada cm alguns equívocos da Antigüidade, foi um profundo avanço teórico*7.

É im portan te te r cm m ente o contexto teológico c religioso cm que Buridan chegou a essa conclusão, já que foi pela ine­xistência desse contex to que as grandes cu ltu ras an tigas não chegaram à idéia do m om ento incrcial. Com o explicou Jaki, todas essas cu lturas, por scrcm pagãs, aganravam-sc à crença de que o universo c os seus m ovim entos eram eternos, sem co­m eço nem fim, ao passo que a crença na c riação ex nihilo, cm to m o da qual havia "um consenso bastan te generalizado na Idade M édia cristã , tom ou quase natural que surgisse no seu seio a idéia do m ovim ento incrcialMJ*. E acrescenta: “Uma vez que esse consenso am plo sc apóia no credo ou na teologia, po- dc-sc d izer que a ciência não é p ropriam ente «ocidental», m as «cristâ»,’w.

Os sucessores de Buridan não sc destacaram especialm ente pelo seu em penho cm rcconhcccr as suas dividas intelectuais. Isaac Ncwton, po r exem plo, q uando já m ais velho dcdicou um tem po considerável a ap ag ar o nom e de Descartes dos seus ca· d em os dc notas. Do m esm o modo. D escartes não revelou a d í­vida p ara com a teoria medieval do m om ento física, csscncial p ara as suas teo rias40. C opém ico m enciona a teoria do mo­m ento na sua obra, m as tam bém não cita as fontes; é bastan te provável que a tenha ap rendido na Universidade dc Cracóvia, onde faciim cnte podia ob te r cópias m anuscritas dos com entá­rios de Buridan e do seu con tinuador Nicolau dc O resm e41.

(36) Sobre Buridan c o movimento incrcial, ver Stanley' Jaki. ‘Science: Western or What?", cm id., Patrem* or Principles and Other Essa\s. págs. 169-71.

(37) A.C. Crombic. Mediex'al and Early Modern Science, vol. 2. págv 72-73. Sobre as diferenças enire o ’impulso" dc Buridan e as idOias modem&s de inércia, ver Herbert Butterfield. The Origins o f Modem Science. pág. 25.

(38) Stanley' I.. Jaki. "Science: Western o r What?“, Patterns or Principles and Other Essays, págs. 170-71.

(39) Ibid.. pág. 171.(40) Stanley L Jaki. "Medieval Crialivilv in Science and Technology-“, cm

Patterns or Principle« and Oilier Hssavs, pág. 76.(41) Ibid.. págs. 76-77.

V. A IGREJA E A CIÊNCIA 81

Seja com o For. essa percepção decisiva, resu ltado d ire to da fc católica dc Buridan. leve um profundo efeito sobre a ciência ocidental c cu lm inou na prim eira lei dc Ncwton. “Na m edida cm que a ciência 6 um estudo quantita tivo dos objetos cm m o­vim ento, c a prim eira lei de Ncwton foi a base de inúm eras o u tras leis - conclui Jaki podem os sem dúvida falar dc um a origem fundam entalm ente m edieval da ciência m oderna"42.

O u tro aspecto im portan te é que o conceito dc m om ento incrcial de B uridan e ra um a ten tativa dc descrever o m ovim en­to, tan to na terra com o nos céus, po r m eio de um sistem a m e­cânico ún ico 45. Desde a Antigüidade, tinha-se po r certo que as leis que governam o m ovim ento celeste eram fundam ental­m ente diferen tes daquelas que governam o m ovim ento te rres­tre. As cu ltu ras nâo-ocidcntais, que tendiam para o panteísm o ou encaravam os corpos celestes com o algo de certo m odo d i­vino. tam bém p ressupunham que os m ovim entos desses co r­pos celestes deviam se r explicados dc m aneira d iferen te do m ovim ento terrestre. Foi som ente com N ewton que se de­m onstrou finalm ente que um con jun to sim ples de leis podia explicar todo o m ovim ento do universo, tan to terrestre com o celeste. Mas B uridan já havia pavim entado a estrada.

A ESCOLA CATEDRAL DE CHARTRES

A escola d a catedral de Chartres, um a institu içào de ensino que alcançou a sua plena m atu ridade no século XII. representa ou tro cap itu lo im portan te na h istória intelectual do O cidente c na h istória d a ciência ocidental.

Desde o século VIII, a Igreja cm penhava-sc cm que toda a catedral tivesse anexa um a escola dc ensino m édio. Criada d en tro dessa preocupação, a escola dc C hartres deu passos im ­portan tes para a excelência no século XI. sob a d ireçáo de Fulberto (?-1028), que havia sido aluno dc G crberto de Auril- lac, o fu turo papa Silvestre II, brilhan te lum inária de fins do século X. Q uase todos os que con tribu íram substancialm ente

(42) Ihid . pág. 79.(43) A.C. Crombic. Medieval attd líarb Modem Science, vol. 2. píg. 73.

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para o desenvolvim ento da ciência nesse período estiveram , cm um m om ento ou cm ou tro , associados ou influenciados p o r C h artrcs44.

Peio seu próp rio exem plo. Fulberto transm itia um esp írito dc curiosidade intelectual c versatilidade. Eslava fam iliarizado com os m ais recentes progressos em lógica, m atem ática c as­tronom ia. e m an tinha con tac to com o ensino dos m uçulm anos da E spanha. Além de se r um m édico com petente, tam bém com pôs vários hinos. E ra um fino exem plo de e ru d ito católico: qualquer pensam ento dc m enosprezo pelas c iências seculares ou pelas ob ras dos an tigos pagáos estava m uito longe da sua m entalidade.

Podem -se c ap ta r na fachada oeste da catedral dc C hartrcs alguns traços da o rien tação da sua Escola: ali sc vêem personi­ficadas em esculturas as sete trad icionais artes liberais, cada um a delas represen tada po r um antigo mestre: Aristóteles. Boé- cio. Cícero. D onato (ou talvez Prisciano), Euclides, P tolom eu c P itágoras4'. A construção dessa fachada foi supervisionada, na década dc 1140. po r Thierry de Chartres ( tl0 5 0 ? ) . que c ra o chanceler da escola naquela época. Hom em p rofundam ente dc* d icado ao estudo das a rtes liberais. Thierry converteu C hartres na m ais p rocurada cscola dessas veneráveis disciplinas.

As suas convicções religiosas enchiam -no dc zelo pelas a r­tes liberais. Para ele. assim com o p ara a g rande m aioria dos in telectuais da Idade M édia, as d isciplinas do quadrivium - aritm ética , geom etria, m úsica c as tronom ia - convidavam os estudantes a con tem plar os padrões segundo os quais Deus o r­denou o m undo c a ap rec ia r a bela a rte da ob ra divina. E o /ri- vium - g ram ática, re tórica c lógica - perm itia que as pessoas exprim issem dc m odo convincente c inteligível essa ação da sa ­bedoria divina. Por últim o, no d izer dc um estud ioso m oderno, as a rtes liberais "revelaram ao hom em o seu lugar no universo c ensinaram -no a ap rec ia r a beleza do m undo criado"46.

(44) E. J. Oijksierhim, T)te Mechanizaiii>n o f the World Picture, trad. C. Dikshoom. Oxford University Prc*s. Londrcv. 1961. pág. 106.

(45) Thomas Goldstein. Damt o f Modem Science: Front the Ancient Cnreks to the Renatssance. New York. Da Capo Press., 1995 [19801. pig*- 71 c 74.

(46) Raymond Klibanskv. T h e School of Chartres", in Marshall Clagcli. G aino Pom. and Robert Reynolds, edv. Twelfth Century litirope and the Fottit·

V. A JGRKM fi A CIÊNCIA 83

Uma d as características cen trais d a filosofia na tu ra l do sé· culo X li é. com o vim os, que encarava a natu reza com o algo a u ­tônom o, que opera de acordo com leis fixas e d isccm iveis pela razão; e talvez tenha sido n isto que C hartres deu a sua con tri­buição m ais significativa: os que participavam dessa escola es· tavam ansiosos po r desenvolver explicações baseadas em cau ­sas n a tu ra is47. Segundo Adelardo de Bath (cerca de 1080-1142). um estudan te de C hartres, “é pela razão que som os hom ens. Assim, sc v irássem os as costas pai·» a su rp reenden te beleza ra ­ciona) do universo cm que vivemos, m ereceríam os sem dúvida se r expulsos dele, com o um hóspede que se com porta m al na casa em que foi recebido*’**. E conclui: “Nào pretendo tira r nada de Deus, porque tu d o o que existe provém dEle [...). Mas devem os d a r ouvidos aos verdadeiros horizontes do conheci­m ento hum ano, para só explicar as co isas por m eio de Deus depois que o conhecim ento racional tiver fracassado ''4’ .

Guilherme de Conques (cerca de 1090-após 1154) concorda­va com ele: “N ão considero que haja nada à m argem de Deus - escreve - . Ele é o au to r dc todas a s coisas, excetuado o mal. Mas a natureza d a qual do tou as suas c ria tu ras leva a cabo todo um plano dc operações, c essas tam bém sc dirigem à sua glória, já que foi Ele quem criou essa m esm a natu reza”5®. O que significa d izer que a e s tru tu ra d a natureza que Deus criou basta norm alm ente para ju stificar os fenôm enos que observa­mos, sem necessidade de reco rre r a explicações sobrenaturais. G uilherm e olhava com escárn io c desdém todos aqueles que m enosprezassem a pesquisa científica:

“Com o eles próprios ignoram as forças na tu ra is e dese­jam te r todos os hom ens po r com panheiros da sua igno­rância . nâo querem que ninguém as investigue, m as prefe­rem que acred item os com o se fôssem os cam poneses, e não perguntem os pelas causas [naturais] das coisas. Nós. pelo

dations o f Modem Society. University of WiMonMn Prv». Madison. 1961. págv 910.

(47) Cír. David C. t.indberg. 77ie Beginnings o f Western Science, pdg. 200.(48) Cil. cm Thomas GokLstcin. Or»»»1#* o f Modem Science, pdg. 88.(49) Cil. cm Kdwqrd Cram, Cod and Reason in the Middle Ages.(50) Thomas Goldstein, Dawn o f Modem Science, pág. 62.

84 THOMAS E. WOODS JR.

contrário , afirm am os que sc deve p rocu rar a causa dc to ­das as coisas (...]. Essas pessoas, porem . [...} se tem notícia dc alguém que pesquise, proclam am -no herege"*’.

N aturalm ente, posições com o essas levantavam suspeitas: poderiam esses filósofos católicos m an ter o seu com prom isso dc pesquisar a natureza cm term os de causas secundárias e com o realidade racional por essência, sem elim inar com pleta­m ente o sobvenaiural e o m iraculoso? No en tan to , o que esses pensadores fizeram foi precisam ente m an ter a harm onia en tre os dois aspectos.

R ejeitaram a idéia de que a investigação racional das cau ­sas poderia su p o r um a afro n ta a Deus ou que equivaleria a subo rd inar a açâo divina aos lim ites das leis n a tu ra is que fos­sem descobertas. Esses pensadores reconheciam que. de acor­do com a perspectiva acim a descrita. Deus podia certam ente te r c riado q ua lquer espécie de universo que desejasse; m as ao m esm o tem po afirm avam que. tendo c riado este cm concreto, perm itiu que operasse de aco rdo com a sua natu reza e, no r­m alm ente. nâo in terferiria na sua estru tu ra b ásica52.

Na sua discussão sobre a descrição bíblica da criação, Thicrry dc C hartres nâo adm itia nenhum a proposição que im ­plicasse que os corpos celestes tivessem algo dc divino ou fos­sem com postos dc um a m atéria im perecível, nâo su jeita às leis terrestres, ou ainda que o universo fosse cm si m esm o um grande organism o. Pelo contrário , explicou que todas as coisas “têm a Deus com o criador, porque todas estão su jeitas a m u­danças e podem perecer”. Descreveu as estre las e o firm am en­to com o com postos de água c a r, m ais do que dc um a su b stân ­cia scm i-divm a cujo com portam en to devesse scr explicado se­gundo princípios fundam entalm ente diferen tes dos que gover­nam as co isas da te r ra ” . Essa concepção foi crucial para o de­senvolvim ento da ciência.

Thom as G oldstetn. um h istoriador m oderno d a ciência, descreve a im portância fundam ental da Escola de C hartres:

(St) Davul C. Lindbcrg, TÍh Brxmnmxs n f UVifent Scioky, pág. 200.(52)* Ibid.. pág. 201.(53) Stanley L Juki. Science and Creation, págs. 220*21.

V A IGREJA E A CIÊNCIA 85

“Form ularam as prem issas filosóficas; defin iram o con ­ceito básico do cosm os a p a r tir do qual viriam a desenvol­ver-se todas as ciências p articu lares posteriores; reconstruí* ram sistem aticam ente o conhecim ento científico do pas* sado c lançaram assim um a sólida base tradicional para a fu tu ra evolução da ciência ocidental. Cada um desses pas­sos parece tâo crucial que. tom ados em conjunto , só po­dem significar um a coisa: que. cm um período dc quinze ou vinte anos, po r volta dc m eados do século XII, um pu- nhado de hom ens em penhou-se conscienciosam ente cm lançar as bases do progresso da ciência ocidental c deu to­dos os principais passos necessários para a tingi-lo"54.

G oldstein prognostica que, no fu turo "Thicnry será prova­velm ente reconhecido com o um dos verdadeiros fundadores da ciência ocidental**55.

O século em que a escola dc C hartrcs m ais se d istinguiu foi um a época dc g rande an im açáo intelectual. A m edida que os conquistadores m uçulm anos com eçaram a recuar na Espanha c foram derro tados na Sicília, im portan tes cen tros dc ensino á ra ­bes caíram nas m àos dos cristáos. M uitos textos gregos inaces· síveis du ran te séculos aos europeus, e que tinham sido vertidos para o á rab e na esteira das conquistas m uçulm anas da S íria c de Alexandria no Egito, foram agora recuperados e traduzidos para o latim . Na Itália, graças às relações com Bizâncio estabe­lecidas pelas C ruzadas, já sc podiam fazer traduções la tinas d i­re tam en te do original grego. Pois bem , en tre essas ob ras recu­peradas estavam os livros-chavc d a física dc Aristóteles, inclu in­do a Fisica, o Do céu e do m undo c o Da geração e da corrupção.

Esses textos vieram a m o stra r que havia sérias contradições en tre as verdades da fé c o m elhor da filosofia antiga. A ristóte­les tinha proposto um universo eterno, ao passo que a Igreja ensinava que Deus havia c riado o m undo cm um m om ento de­te rm inado do tem po. Além disso, a Criação dera-sc a p artir do nada, ao passo que A ristóteles negava a possibilidade do vá­cuo; c isso equivalia a negar - com o aqueles católicos do sécu-

(54) Thomas Goklsicin. Dawii o f Mtidtm Scuttce. pág. 77.{55) ibtd.. pág. S2.

86 THOMAS E. WOODS JR.

lo XIII perceberam claram ente - o poder criador dc Deus. por· que nada pode se r impossível a um Deus onipotente. K havia ainda outras afirm ações problem áticas no corpus aristoiclico | que precisariam ser enfrentadas.

Um grupo de estudiosos conhecidos com o "averroístas lati· nos" - Avcrroes fora um dos m ais famosos e respeitados co· m entadores m uçulm anos dc Aristóteles - abordou a questão 1 segundo um a ótica que tem sido freqüentem ente descrita, dc m odo impreciso, com o a doutrina da dupla verdade: um a afir­m ação falsa em teologia podia ser verdadeira cm filosofia, e vi­ce-versa. Assim, as afirm ações contrad itórias que menciona· m os (eternidade do m undo x Criação, vácuo x C riação do na­da) poderiam ser am bas verdadeiras, conform e fossem consi­deradas do ponto de vista da religião ou da filosofia.

Na verdade, porém , o que eles ensinavam era m ais sutil. Acreditavam que as afirm ações dc Aristóteles, com o a d a eter- nidade do m undo, eram o resu ltado indiscutível de um raciocí­nio correto, c que não se podia encon tra r nenhum a falha no processo lógico que conduzia a elas. Argum entavam que. com o filósofos, tinham de seguir os d itam es da razão aonde quer que estes os conduzissem ; mas, se as conclusões a que chegas­sem contradissessem a revelação, en tão nào podiam dc m odo algum se r tom adas com o verdadeiras em sentido absoluto. Afi­na). o que e ra a débil razão hum ana em contraposição à on i­potência de Deus, que a transcend ia?56

Essa solução pareceu tão instável c cheia dc dificuldades aos “conservadores" daquela época com o nos parece a nós, e isso afastou com pletam ente alguns pensadores católicos da fi­losofia. Sào Tom ás dc Aquino, que tinha um profundo respeito po r Aristóteles, tem ia que a reação conservadora aos erros dos averroístas pudesse levar a um com pleto abandono do “Filóso­fo’' (com o ele sc referia a Aristóteles). Na sua fam osa síntese, dem onstrou que a fé c a razão sào com plem entares c nào sc podem contradizer; qualquer contrad ição aparen te que sc ob­servasse era sinal dc que havia erros na com preensão ou da re­ligião ou da filosofia.

V. A IGRKJA K A CIÊNCIA 87

No entan to , nem a genialidade dc Sâo T om ás dissipou com pletam ente as apreensões que os novos textos e as respos­tas dadas por alguns estudiosos suscitavam . E foi nesse con- texto que. pouco depois da m orte de Sâo Tomás, o bispo dc Paris editou um a série dc 219 proposições condenadas - co­nhecidas h istoricam ente com o as C ondenações de 1277 - que os professores da Universidade de Paris foram proibidos de e n ­sinar: eram afirm ações dc Aristóteles ou, em alguns casos, conclusões que se podiam tira r dos seus ensinam entos, incon­ciliáveis com a visão católica de Deus e do m undo. Em bora es­sas condenações se aplicassem som ente a Paris, a sua influên­cia chegou a scr sentida na longínqua Oxford. O papa nào de­sem penhou qualquer papel nessas condenações; lim itou-se sim plesm ente a ped ir que sc investigassem as causas de toda a agitação intelectual que vinha envolvendo os m estres dc Paris (um estudioso afirm a que “a aprovação pontifícia às ações do bispo dc Paris foi m enos que en tusiástica"S7)·

Mas esse docum ento de 1277 tam bém teve um efeito positi­vo no desenvolvim ento da ciência: PiciTc Duhcm. um dos grandes historiadores da ciência do século XX, foi ao ponto de susten ta r que represen tou o com eço da ciência m oderna. O que ele e ou tros estudiosos m ais recentes com o A.C. Crom bie e Edward G rant dão a en tender é que as Condenações forçaram os pensadores a sa ir do confinam cnto intelectual que os pres­supostos aristotélicos lhes tinham im posto e a pensar o m undo físico em m oldes novos. Em bora os estudiosos discordem so­bre a influência do docum ento, iodos concordam cm que for­çou os pensadores a cm ancipãr-se d as restrições da ciência aristotélica c a considerar possibilidades que o grande filósofo nunca imaginara**.

Vejamos um exemplo. Sc Aristóteles negava, com o vimos, a

(57) Rkhard C. Dülo, The Intelleclttal Life o f Western íturope in lhe Middle Ages. pág. 254.

(58) Concordam com essa argumemaçáo A.C. Cn>mbic, Medtewl and Eath Modem Science, vol. 1. pág. 64. c vol. 2. págs. 35-36'. Kdwurd Grani. Cod and Reasrm in lhe Middle Ages. págs. 213 c scgs., c 220-1: idem. The Fonndalions o f Modertt Science in lhe Middle Ages: Their ReltRiotis. Imtitutional. and Intellec- nuil Conténs, Cambridge Univcrsity Prws. C.imbridgc. 1996. págs. 78-83 c 147- 48. Daviü C. Lindbcrg. The Benuuwigs of Western Science, pág». 238 c 365. c mais* cético. mas admite o ponto csscncia!.

THOMAS E. WOODS JR.

possibilidade do vácuo, c os pensadores da Idade Média o se­guiam habitualm ente nesse ponto, depois das C ondenações passou-se a exigir que os estudiosos adm itissem que Deus to* do-poderoso podia realm ente c ria r o vácuo. Isso abriu novas e cn tnsiasm anics possibilidades cientificas. Por certo , alguns cs- tudiosos que ató en tão pareciam ad m itir a possibilidade do vá> cuo dc um m odo m eram ente forma! - isto é. ainda que certa­m ente adm itissem que Deus fosse todo-poderoso c. portan to , podia c ria r um vácuo, geralm ente estavam persuadidos dc que na realidade nào o fizera - agora m ostravam -se in trigados c envolveram -se cm um im portan te debate científico. Deste mo­do . as C ondenações, segundo o h istoriador d a ciência R ichard Dales, “parecem te r prom ovido definitivam ente um m odo m ais livre e im aginativo de fazer c iência"49.

Isso ficou m uito claro no caso de ou tra condenação, con- c retam cnte da proposição aristotélica dc que "os m ovim entos do céu resultam dc um a aim a inlelectiva”·0. A condenação des* sa afirm ação foi dc g rande im portância, um a vez que negou que os corpos celestes possuíssem alm a c fossem dc algum a m aneira seres vivos - um a crença cosm ológica que prevalecia desde a Antigüidade. Em bora possam os encon tra r Padres da Igreja que condenavam essa idéia com o incom patível com a fé, a g rande m aioria dos pensadores c ristãos tinha-a adotado c concebia as esferas planetárias com o propelidas por substân ­cias intelectuais dc algum tipo.

Essa condenação catalisou novas abordagens sobre a ques· tão central do com portam ento dos corpos cclestes. Jean Buri- dan. seguindo as pegadas de R oberto G rosseteste. argum entou que era notável a ausência de evidências escritu rísticas a res­peito dc tais inteligências c N icolau dc O rcsm c avançou ainda m ais no com batc a essa idéia*1.

Já na época patrística, o pensam ento cristão - ainda que, norm alm ente, apenas pelas suas im plicações - deu início ã cfcs-flmmaçdo d a natureza, isto é. & rem oção d a idéia de que os

(59) Richaid C. Dales, T h e Dc-Ammation of the Heavens in ihc Middle Ages", jiig. 550.

(60) Ibid.. pdg. 546.(61) Ibid.

V. A IGREJA E A CIÊNCIA 89

corpos celestes pudessem , por si m esm os, c s ia r vivos c do tados dc inteligência, ou que não pudessem funcionar sem algum tipo dc agente espiritual. Existem afirm ações dispersas nesse sen tido cm escritos dc san tos com o Agostinho. Basílio, Gregó- rio dc Nisa, Jcrôn im o c Jo io D am asceno. Mas foi m ais tarde, quando os estudiosos com eçaram a aplicar-se de m odo mais deliberado c consisicn le ao estudo da natureza, que surgiram pensadores que concebiam conscienciosam ente o universo com o um a en tidade m ecânica c. po r extensão, inteligível às in­dagações da m ente hum ana*2. Escrcvc Dales: “Durante o sécu­lo XII, na Europa latina, os aspectos do pensam ento judeu- •cristão que enfatizavam a idéia da criação a p artir do nada c a distância en tre Deus e o m undo tiveram o efeito dc elim inar (...) todos os en tes somi-divinos do reino da natureza"*1. E. se ­gundo Stanley Jaki, “a natu reza teve que se r des-an im izada” para q u e a cicncia pudesse nascer*4.

M uito depois dc as próprias C ondenações já terem sido es­quecidas, d u ran te todo o século XVII c o princípio d a Revolu­ção C ientífica, a d iscussão provocada po r essas afirm ações an- ti-aristotélicas continuou a in fluenciar a h istória intelectual eu ­ropéia*5.

0 SACERDOTE CIENTISTA

É relativam ente sim ples m ostra r que a grande m aioria dos cientistas, com o Louis Pastcur, foi católica. No en tan to , m uito m ais revelador é o núm ero su rp reenden te de figuras da Igreja, especialm ente dc saccrdotcs, cuja ob ra científica foi m u ito ex­tensa e significativa. A insaciável curiosidade desses hom ens acerca do universo criado po r Deus c a sua dedicação à pes­quisa científica revelam - m ais do que poderia fazê-lo um a

(62) Richard C. Dales. "A Twelfth Ccnturv Concept of the Natural Order", cm Viator 9 (1978). pig. 79.

(63) Ibid . 191.(64) Paul llaffner. Creation and Scientific Crralirity. pdg. 41.(65) Edward Grant. "The Condemnation *>f 1277. Cod’s Absolute Power,

and Physical Thought in the Late Middle Ages". Viator 10 (1979), pdgv 242-44.

90 THOMAS E. WOODS JR

sim ples d iscussão teórica - que o relacionam ento en tre a Igre­ja c a ciência foi dc am izade m ais do que dc an tagonism o e desconfiança.

M crcccin scr m encionadas diversas figuras im portan tes do século X ill. Roger Bacon, um franciscano que lecionava cm Oxford, foi adm irado pelo seu trabalho no cam po d a m atem á­tica e da ótica, e é considerado um p recursor do m oderno m é­todo científico. Bacon escreveu sobre filosofia da ciência e en ­fatizou a im portância da observação c dos ensaios. No seu Opus m aius, observou: "Sem experim entos, nada pode scr ade­quadam ente conhecido. Um argum en to prova teoricam ente, m as não dá a certeza necessária para rem over toda a dúvida; nem a m ente repousará na visão clara da verdade sc não a en ­co n tra r pela via do experim ento". Do m esm o m odo, no seu O pus tertium , adverte que "o argum en to m ais forte não prova nada enquanto as conclusões não forem verificadas pela expe­riência"66.

Santo Alberto Magno (1200-1280) foi educado cm Pádua e depois ingressou na ordem dom inicana. Lecionou cm vários m osteiros an tes dc assum ir um a cátedra na U niversidade de Paris, em 1241, onde viria a ter en tre os seus a lunos ilustres ninguém m enos do que São Tom ás dc Aquino. “Perito em to­dos os ram os da ciência", diz o Dictionary o f Scientific Bio­graphy. "foi um dos m ais fam osos precursores da ciência mo­d ern a na Idade Média". C anonizado pelo papa Pio XI cm 1931, Pio XII nom eou-o, dez anos depois, pa trono dc todos os que cultivam as c iências na tu ra is47.

R cnom ado naturalista , Alberto M agno registrou um a eno r­me quantidade dc coisas sobre o m undo que o cercava. As suas obras, de um a prodigiosa vastidão, ab rangiam física, lógi­ca. m etafísica, biologia, psicologia e várias ou tras ciências pro­fanas. Tal com o Roger Bacon, sublinhava a im portância d a ob­servação d ire ta para a aquisição do conhecim ento sobre o m undo físico. Hm De Mineralibus. explicou que o objetivo da ciência natural e ra "não sim plesm ente ace ita r as afirm ações de ou tros, ou seja. o que é narrado pelas pessoas, m as investigar

(66) James J. Walsh. Tht Popes and Science, págv 292-293.(67) William A. Wallacc, OP. 'A lbcrtut Mjpnus. Saim". cm DSH. pág. 99.

V. A IGRFJA E A CIÊNCIA 91

as causas que agem por si m esm as na natu reza”6*. A sua insis· tência na observação d ire ta c a sua recusa cm acc ila r a au to ri­d ade científica da fé foram con tribu tos essenciais para a e s tru ­tu ração científica d a m ente.

Roberto Crosseteste (1168-1253). que foi chanceler dc Ox­ford e bispo de Lincoln, a m aio r diocese da Inglaterra, pa rti­lhou dessa enorm e gam a dc interesses de estudo e dc conquis­tas que caracterizou Roger Bacon c S anto A lbciio Magno. T i­nha sido influenciado pela escola dc C hartres. particu larm ente po r T hierry6*. C onsiderado um dos hom ens m ais cu ttos da Idade M édia, é conhecido com o o prim eiro hom em a deixar po r escrito o con jun to com pleto dos passos que sc devem dar para realizar um a experiência científica. Hm Robert Crosseteste and ihe Origms o f Experimental Science. A.C. Crom bic sugeriu que o século XIII já possuía os rud im entos do m étodo cien tífi­co graças, cm grande parte, a figuras com o G rosscteste. Por isso. em bora as inovações da Rcvoluçáo C ientífica do séculoXVII m ereçam as m aiores honras, já na idade Média era evi­den te a ênfase teórica na observação e na experim entação.

Mas há o u tro s nom es no cam po da ciência que. apesar dc nunca terem sido tirados da obscuridade, m crcccm ser m en­cionados. O pc. Nicolau Steno (1638*1686), p o r exem plo, um luterano que sc converteu ao catolicism o c veio a tom ar-se sa ­cerdote, foi quem “estabeleceu a m aio r parte dos princíp ios da geologia m oderna" c chegou a se r cham ado o "pai da estrati- grafia" (a ciência dos estratos ou cam adas da te rra )70. Nascido na D inam arca, viveu e viajou po r toda a Europa c exerceu a m edicina por algum tem po na co rte do grâo-duque da Tosca· na. Gozava dc excelente repu tação e realizou um trabalho c ria ­tivo em m edicina, m as foi no estudo dos fósseis c da estrati- grafia que alcançou renom e científico.

O seu trabalho iniciou-se em um contexto inusitado: a dis·

(68) James J. Walsh, The Pttprs and Science. pág. 297.(69) Richard C. Dates. T h e De-Animalton of lhe Heavens in lhe Middle

Ages*, pág. 540.(70) William B. Ashwonh Jr.. “Catholicism and EaHv Modem Science",

cm David C. Lindbcrg e Ronald L Numbers, cdv. God and Nature: Historical Ev\ays on the Encounter Bemreti Christianity and Science, pág. 146

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secção da cabeça dc um enorm e lubarâo que pesava cerca de 1270 quilos e foi encontrado por um barco dc pesca francês cm 1666. Stcno. que era conhecido pela sua grande pcricia com o dissccador. foi cham ado para realizar a dissecção.

Para os nossos propósitos, é suficiente concentrarm o-nos no fascínio que despertaram cm S tcno os dentes do tubarão. Apresentavam um a estranha sem elhança com as assim cham a­das línguas dc pedra, ou glossopetrae, cujas origens estavam en­volvidas em m istério desde os tem pos antigos: d i/ia-sc que es­sas pedras, que os m alteses extraíam da terra , possuíam pode· res curativos. T inham -sc proposto incontáveis teorias para cx- plicá-las. e no século XVI G uillaum c Rondclci sugeriu que po­dia tratar-se de dentes de tubarão, m as poucos sc im pressiona­ram com a idéia: agora. Stcno tinha a oportun idade dc com pa· ra r os dois objetos e cstabcicccr claram ente a sem elhança.

Foi um m om ento significativo na história d a cicncia, por­que apontava para um tem a m uito m aior c m ais im portante que os dentes dc tubarão c as pedras m isteriosas: a presença dc conchas c fósseis m arinhos, engastados cm rochas m uito distan tes do m ar. A questão das glossopetrae - agora quase com ccrtcxa dentes dc tubarão - suscitou o problem a m ais am ­plo da origem dos fósseis cm geral c de com o tinham chcgado ao estado em que sc encontravam . Por que essas coisas eram encontradas dentro dc rochas? Tcr-sc-iam form ado por gera­ção espontânea? Essa era um a das num erosas explicações que sc tinham proposto no passado.

Stcno considerou cicntificam cntc duvidosas essa c ou tras cxplicaçócs, além dc ofensivas à sua idéia de Deus, que nâo agiria de um m odo tâo aleatório c despropositado. Lançou-se en tão a es tudar a questão, dedicando os dois anos seguintes a escrever c com pilar aquilo que viria a se r a sua influente obra De solido ititra solichtni naturaliier contento dissertationis pro· drom us ("D iscurso prelim inar a um a dissertação sobre um cor­po sólido naturalm ente contido d en tro dc o u tro só lido”).

Nâo era um a tarefa fácil, pois exigia desbravar um territó ­rio desconhecido. Nâo existia um a ciência da geologia â qual S teno pudesse recorrer cm busca de um a m etodologia ou dc princípios fundam entais. No en tan to , foi ad ian te com ousadia c lançou um a idéia nova c revolucionária: tinha a certeza dc que as rochas, os fósseis c os estra tos geológicos contavam

V. A IGREJA E A CIÊNCIA 93

um a história sobre a história da terra e os estudos geológicos podiam ilum inar essa h is tó ria71. "Steno - escreveu o seu bió­grafo m ais recente - foi o prim eiro a afirm ar que a história do m undo podia ser reconstituída a p a rtir das rochas, e assum iu pessoalm ente a tarefa dc deslindá-la”72.

"Em últim a análise, o feito de S teno no De solido nào consistiu apenas em p ropor um a nova c co rre ia teoria so­bre os fósseis. Com o ele p róprio disse, houve escritores que, m ais de mil anos antes, tinham dito essencialm ente a m esm a coisa. Tam pouco ocorria que ele estivesse simples· m ente apresen tando um a nova c correta in terpretação dos

(71) Das muitas idéias encontradas nos seus escritos. trOs costumam ser chamadas 'o s princípios de Steno* Ê dclc o primeiro livro de que temos notí­cia acerca da sobreposiçfto. uma das chaves principais da cstratigrafia (David R. Oldroyd, Thinking Aboul the Earth: A Hislory o f Ideai in Gettbgy, Haivard University Press, Cambridgc. 1996, págs. 63-67; ver também A. Wolf. A Hislory o f Science. Technoiosy. etid Piiilosophy in lhe I6th and I7th Centuries. Gcorge Allcn ii Unvvin. Londres. 1958. págs. 359-60). A Ui da sobreposição i o primei­ro dos princípios dc Steno. Estabelece que as camadas sedimentares sâo for­madas cm scqU&ncia. de tal modo que a camada mais baixa i a mais antiga, c as camadas vão decrescendo cm idade até & mais recente, situada no topo.

Mas. como a maioria dos estratos que encontramos íoi de algum modo al­terada. distorcida ou inclinada, nem sempre i fácil reconstruir a sua história geológica, a seqüência da estratificarão. Por esse motivo. Steno introduiiu o pnncipio da horizontalidade original. A água - disse ele 6 a fonle dos sedi­mentos, seja na forma dc um rio. dc uma tempestade ou dc fenômenos simila­res: carrega-os c deposita-os em várias camadas sedimentares, lima vez que os sedimentos sc depositam numa bacia, a gravidade e as correntes dc águas ra­sas tiím sobre eles um efeito nivelador, de tal modo que as camadas sedimen­tares. como a própria água, acompanham a forma da superfície do fundo, mas sc tomam hori/onlais na pane superior. Como descobrir a seqüência sedimen­tar em rochas que náo pcrmancccram na posição original? Tendo cm conta que os gráos maiores c mais pesados naturalmente sc depositam cm primeiro lugar, seguidos pelos que vào tendo tamanhos cada ve/ menores, só precisa- mo> examinar as camadas e observar onde as particulas maiores fon>m depo- Miadas. Aí está a camada inferior da seqüência (Alan Cutler. The Seasitell on lhe Mounlaintop. Dutton. New York, 2003. págs. 109-12).

Finalmente, temos o princípio da ivnlintndade lateral: esse princípio indi­ca que. quando ambos os lados de um vale exibem rochas sedimentares. «5 por­que os dois lados estavam originalmente unidos - formavam camadas contí­nuas -, e que o vale à que sc deveu a um evento geológico posterior, por exem­plo um processo dc crosáo. Steno tambOrn apontou que. sc cm um estrato t encontrado sal marinho ou qualquer outra coisa que pertença ao mar - dentes de tubarão, por exemplo isso revela que em algum momento o mat deve ter

(72) Alan Cutler. The SeasM l on the Mawmiatnp. pág. 10.

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estratos dc rocha. O que fez foi traça r um p lano para um a abordagem científica to talm ente nova da natureza, um* pliando as fron teiras do tem po. Com o ele próp rio escreveu, «da conclusão definida que tiram os do que é observável po- dem os ex trair conclusões sobre o que é imperceptível·». Do m undo atual podem os deduzir m undos que já desaparece-- ram “” .

Com o passar dos anos, o pe. S leno viria a ser tom ado co· m o m odelo de san tidade c dc sabedoria. Em 1722. o seu sobri- nho-neto Jacob W inslow escreveu a sua biografia, que apare­ceu cm um livro cham ado Vidas de santos para cada dia do ano, na secção dedicada a prováveis fu turos santos. Winslow, um convertido do lu teran ism o ao catolicism o, atribu iu a sua conversão à in tercessão do pe. S teno. Ern 1938, um grupo dc adm iradores dinam arqueses procurou o papa Pio XI para pe­dir-lhe que o declarasse santo. C inqüenta anos m ais tarde, o papa João Paulo II bcatificou-o, louvando a sua san tidade c a sua ciência.

CONQUISTAS CIENTÍFICAS DOS JESUÍTAS

E ra na Com panhia dc Jesus, a sociedade sacerdotal funda­da no século XVI por Inácio dc Loyola, que sc encontrava o m aior núm ero dc sacerdotes católicos in teressados nas ciên­cias. Um historiador recente descreve o que o s jesu ítas realiza­ram po r volta do século XVIII:

“Contribuíram para o desenvolvim ento dos relógios dc pêndulo, dos pantógrafos, dos barôm etros, dos telescópios refletores c dos m icroscópios, c trabalharam cm cam pos científicos tão variados com o o m agnetism o, a ótica c a ele­tricidade. O bservaram , cm m uitos casos an tes de qualquer o u tro cientista, as faixas coloridas na superfície de Júpiter, a nebulosa dc A ndróm cda c os anéis de Saturno . Teoriza­

(73) Ibid.. pigv 113-14.

V. A IGREJA E A CIÊNCIA 95

ram accrca da circu lação do sangue (independentemente* de Harvcy). sobre a possibilidade teórica dc voar, sobre a m a­neira com o a lua inílui nas m arés e sobre a natureza ond u ­la tória da luz. M apas estelares do hem isfério sul. lógica sim bólica, m edidas de controle de enchentes nos rios Pó c Adigc, in trodução dos sinais m ais e m enos na m atem ática italiana - tudo isso foram realizações jesuíticas, e c ientistas influentes com o Fcrm al, Huygens, Lcibnitz e Ncwton não eram os ún icos a ter jesu ítas en tre os seus correspondentes m ais apreciados"74.

Da m esm a form a, um estudioso da prim itiva ciência da ele­tricidade considerou a C om panhia de Jesus com o a fonte "mais im portan te de contribuições para a física experim ental do século X V ir 75. "Tal elogio - escreve o u tro - só se reforça quando se estuda detalhadam ente a h istória de ou tras ciências, tais com o a ótica, em que praticam ente todos os tra tados im ­portan tes da época foram escritos por jesu ítas"76. Vários dos grandes cien tistas jesu ítas tam bém realizaram a tarefa enorm e­m ente valiosa de recolher os seus dados cm enorm es enciclo­pédias, que desem penharam um papel crucial na d ifusão da pesquisa através da com unidade acadêm ica. “Se a colaboração en tre cien tistas foi um dos frutos da Revolução C ientífica - diz o h istoriador W iiliam A shworth os jesu ítas m erecem grande parle do créd ito"77.

Os jesu ítas tiveram tam bém m uitos m atem áticos ex traord i­nários, que deram num erosas contribuições im portan tes para essa disciplina. O uando C harles Bossut, um dos p rim eiros his- lo riadores da m atem ática, com pilou um a lista dos m atem áti­cos m ais em inentes dc 900 a.C. a té 1800 d.C.. 16 das 303 pes­soas listadas eram je su íta s7*. Essa cifra - equivalente a 5% do

(74) Jonathan Wright. The Jesuits: Mission.··. Mvthu and Histories. Harper· Collins, tu n d ra . 2004. pág. 1*9.

(75) J.L. Holbron. l-Uectncity in ilte I7th and 18th Centuries: A Study of l-arlv Modem Htysics. University ní California Pre\\. Berkeley. 1979. pAg. 2.

(76) William B. Ashwonh Jr.. "Cniholicism and Karly Modem Science", a n Djvid C. Lisidbeiy c Roiuld L. Numbci*. «xis., Cod and Sature: tlinurical l^says <»t the linctninter Betxsven Chn-tianity and Science, pá«. 145.

(77) Ibid.. pàff 155.(78) Joseph K MacDonnell. Jesuit Geometers, pip. 71.

96 THOM/VS E. WOODS JR.

lotai dos m aiores m atem áticos cm um arco de 2700 anos - to r­na-se ainda mais expressiva quando recordam os que os jesuí­tas existiram apenas du ran te dois desses vinte c sete séculos!7* Acrescente-se a isso que cerca dc trin ta c cinco c rateras da lua receberam o nom e dc cientistas c m atem áticos jesuítas.

Foram eles tam bém os prim eiros a in troduzir a ciência oci­dental cm lugares tão distantes com o a China e a índia. No sé­culo XVII. introduziram particularm ente na China um enorme|í conjunto dc conhecim entos científicos c um vasto arsenal de instrum entos m entais para com preender o universo físico, in­cluída a geom etria euclidiana, que tornou com preensível o mo­vim ento dos planetas. Dc acordo com um especialista, os jesuí­tas na China:

í“Chegaram cm um a época cm que a ciência em geral, e 1

a m atem ática e a astronom ia cm particular, tinham ali um ' nível m uito baixo, se com paradas com o nascim ento da m oderna ciência na Europa. Fizeram esforços en o rm e^ para traduzir as obras ocidentais de m atem ática c dc astro­nom ia para o chinês e despertaram o interesse dos cstudio^l sos chineses po r essas ciências. Fizeram extensas observa· çòcs astronôm icas c levaram a cabo o prim eiro trabalho cartográfico m oderno na China. Tam bém aprenderam a apreciar as conquistas científicas dessa an tiqüíssim a cultu­ra c d ifundiram -nas na Europa. E foi graças à sua corres­pondência que os cientistas europeus tiveram notícia, pela prim eira vez, da ciência e da cu ltura chinesas“40. j-

As contribuições dos jesu ítas para o conhecim ento científi­co e a infra-estrutura de ou tras nações m enos desenvolvidas! não sc lim itou à Ásia, mas estendeu-se à África e às Américas Central e do Sul. A p artir do século XIX, os jesu ítas m ontaram

(79) Os jcMiílas foram Miprimkk» cm 1773 c rvMahctecklf» mais lanle. cm 1814.

(80) Agusiín L'dtas, Searching the /fanvm and the Fault: The History o f Je­suit Observatohe-i. Kluwer Academic Publishers., Dordrecht. Ncihcrtarnls. 2003, pig. 53.

V A IGRKJA F. A CIÊNCIA 97

nesses continentes observatórios destinados a estudos dc astro ­nomia. geomagnclismc). meteorologia, stsm ografia e física so­lar. Esses observatórios introduziram nesses lugares a medição acurada do tem po, perm itiram fazer previsões clim áticas (par­ticularm ente im portantes no caso de furacões c tufões) e ava­liar o risco dc terrem otos, e forneceram os prim eiros dados cartográficos41. Nas Américas Central e do Sul. os religiosos trabalharam principalm ente cm m eteorologia e sismologia, lançando os fundam entos dessas disciplinas nesses lugares*2. A cies se deve o desenvolvim ento científico dc m uitos desses paí· ses, do E quador a té o Líbano ou as Filipinas.

M uitos jesu ítas distinguiram -se individualm ente nas c iên­cias ao longo dos anos. O pe. Giambatlisla Riccioüi (1598- -1671), po r exemplo, destacou-se po r um núm ero enorm e de realizações, en tre as quais o fato pouco conhecido de te r sido a prim eira pessoa a dete rm inar a taxa dc acelcração dc um corpo em queda livre. Foi tam bém um astrônom o ilustre: por iniciativa sua. claborou-sc po r volta dc 1640 um a enorm e enci­clopédia dessa ciência, que veio a ser editada, graças ao apoio do pc. A thanasius Kirchcr, em 1651: intitulou-sc Almageslum novum , c foi “o resultado e o depósito de um aprendizado vigoroso c devotado". Tratou-se. verdadeiram ente, de um a rea­lização im pressionante: por m uitos anos, "nenhum astrônom o sério pôde dar-se ao luxo de ignorar o Ahnagestmu novum “. escreve um estudioso m odem o#,. Q uarenta anos m ais tarde. por exemplo, John Flamstced, Astrônom o Real da Inglaterra, bascou*sc nele nas suas fam osas conferências sobre astrono­m ia84.

Além do cnonnc volume de inform ações que contém , o Almagestum tam bém é testem unha do em penho com que os je ­suítas se afastaram das idéias astronôm icas dc Aristóteles. S us­tentavam abertam ente que a Lua era feita do m esm o m aterial que a Terra, c prestaram hom enagem aos astrónom os - alguns

(81) Ibid.. pág 147.(82) Ibid., pág. 125.(83) J.L. Hcilbion, Electricily in the !7th and IM.t Cettlunes. pig. 88.(84) ihid.

98 THOMAS K. WOODS JR

deles protestantes - cujas concepções divergiam do inodeio geocêntrico tradicional·*.

Os estudiosos tem ressaltado a agudeza com que os jesuítas perceberam a im portância que tem a precisão nas pesquisas experim entais, c Ricciolli personifica esse em penho. Com a fi­nalidade de desenvolver um pêndulo que tivesse prccisâo dc um segundo, conseguiu repetidam ente convencer nove confra­des a con ta r cerca de 87.000 oscilações ao longo de um dia in­teiro; c foi graças a esse pêndulo que conseguiu calcu lar a constantc da gravidade*6.

O pe. Francesco Maria Grimaldi (1618-1663). seu assistente nessas pesquisas, tam bém inscreveu o nom e na história da ciência. Riccioli. continuam ente surpreendido com a habilida­de do seu confrade para confeccionar c depois utilizar um a grande variedade de instrum entos de observação, insistiu com os superiores em que era abso lu tam ente essencial poder contar com ele para rem atar o Almagestum novttm . “Assim, apesar da m inha indignidade - recordaria ele m ais tarde a Divina Pro· vidência deu-m e um colaborador sem o qual nunca teria podi­

(SS) fbul.. pigs. $8-89 '(86) William B. Ashworth Jr.. 'Catholicism and Early Modem Science*^

cm David C. Lindberg e Ronald I.. Numbers, cdv. Cod and Mature: Uisumctã Essays on due Encwtnler üfíuw u Christianity and Scioice. pág. 155.

Urn cstudo rccentc descreve o procciso: "Ricciolli c (o pc. Francesco Ma­ria) Crimatdi puseram a oscilar um ptndulo romano dc medida dc 3*4". im- pulsionando-o quando começavn a parar e contando durante sets boras, aferi­das por medidas asimrtómicas, como ele oscilava 21.706 vivcv Isso chegava perto do número desejado, 24 x 60 x 60/4 ■ 21.600, mas rWk> satisíe/ Ricciolli. Tentou novamente, desta ve/ durante 24 horas c convocando nove dos wu> confrades. incluído Grimaldi; o resultado. 87.998 oscilações, contra as 86.400 desejadas. Aumentou cmào o p£ndulo par» J‘4.2" c repeliu a contagem com a mesma equipe: desta ve/, obtiveram 86.999. Par.» os confrades, os ntímcr©$ eram suficientemente próximos, mas nâo para Ricciolli. Indo na direção er­rada, diminuiu para 3‘2.67~ c. apenas com Grimaldi c um outro contador dedi­cado que aceitaram íicar cm vigília com ele, obteve, em trts noiles distintas. 3.212 oscilações no mtcrv-alo entre o cruzamento do meridiano pelas cstsvlas Spica e Aixtums, quando deveria ter encontrado 3.192. Estimou enifto que o comprimento requerido era de 33.27". que f...} aceitou sem experimentar. Foi uma boa escolha, c deu um resultado um pouco superior ao inicial: um valor de 955 cro/s’ para a aceleração da gravidade“ {J.I.. Hcilbron. Electricity in the n th and l&h Centuries, pdf;. 180). (Sabe-se atualmente que a aceleraçAr» gravi· taoonal depende da latitude e varia cntre 978 e 982 cm/s·' (N do li.)|.

V. A IGRfüA E A CIÊNCIA 99

do concluir os m eus trabalhos (experim entais!"*7. Foi Grimaldi quem m ediu a a ltitude dc diversas m ontanhas lunares bem com o a a ltu ra das nuvens terrenas; além disso, ele c Riccioli produziram um diagram a setcnográfico (d iagram a detalhado que representa a superfície lunar) notavelm ente preciso, que hoje adorna a en trada do National Air and Space M uscum. cm W ashington DCM.

Mas o lugar do pe. G rim aldi na ciência já havia sido as· segurado anteriorm ente pela sua descoberta da difraçâo da Itizi mais ainda, po r ter dado a esse fenôm eno o nom e de "difra* çâo”. (Newton, que veio a interessar-se pela ó tica em conse­qüência do trabalho do jesuíta. dcnominou*o “inllc-xão", m as foi o term o dc G rim aldi que prevaleceu)94. Em um a série de experiências, dem onstrou que a trajetória observada da luz nâo sc concilia com a idéia dc que cia sc move cm linha re ta 90; ou seja. cm determ inadas condições a luz "faz um a curva", so­fre um a difraçâo. Essa descoberta foi fundam ental para que os futuros cientistas, ansiosos por chegarem à explicação desse fenôm eno, form ulassem a teoria de que a luz ê um a onda91.

(87) J.Í.. Hcílbixm. Hiecirictly in titt Í7th and fStft Ctntuws. págs. 8 7 88(88) Brucc S. Bastuood. “Grimaldi. Francesco Maria", cm DSB. pig 542.($9) Sobre a rcbvâo entre os trabalhos dc Grimaldi e Newton. ver Ki>gcr

M. Stucwcr, "A Criticai Analvsis of Kewtons Work on DilTraciíon*. h is 61 (1970), pàgs. 188-205.

(90) Em uma dcvsas experiências, por exemplo. Grimaldi Fc/ com que um rak> dc I»/. sob r entrasse alravfe dc um pequeno oriffeio (dc 4,1 mm) em uma sala completamente »cura . A luz. que aliavcssou o orifício tomou a Forma dc um cone. Dentro desse cone de luz, a uma distância dc uni* irís metros c nteio do orifício, o cientista fixou uma haste paru que projetasse uma sontlwa na pa­rede. c descobriu que a sombra projetada era muito mais lonya do que aquela que um movimento puramente relilínco poderia permitir, portanto, a luz nâo iw p v j por um caminho cM-lusnamcntc linear (para uma bitrve discuvsin, ilustrada com diagramas, das cxpcnínciox dc Grimaldi. ver A. Wotf, A llistory o f Science, Technology, and Phihtsopfty iit the lótli and / 7//i Ceniuries. Gcorgc Allcn <« Unvvin, Londres, 1938. pág. 2^4-56.). Descobriu também o que i co­nhecido como bandas dc difraçâo. faixas coloridas que aparcccm paralelas à l>orda da sombra.

(91) A teoria da nalurcra ondulalóna da lu/·. permitiu explicar o IcnAnwno da difraçâo: se o orifício é maior que o comprimento dc onda da lu*. esta pas­sa cm liiilia reta airnvòs dele; sc £ menor, produz-se a difraç&o. As bandas dc difraçâo também ctam explicadas em lurw,a<· da natureza ondulatória da lu/: a mtcrfcrCncia das ondas de luz difralada produzia as diversas cores observadas

100 THOMAS K. WOODS JR

Um dos m aiores cicn iistas jesu ítas foi o pc. Rogério (Rudjer) Boscovich (1711-1787). a quem S ir H arold H anlcy. m em bro da prestigiosa Royal Socicty no século passado, cham ou "um a das m aiores figuras in telectuais de iodos os tem pos"91. Hom em ge­nu inam en te polifacético, era versado cm teoria a tôm ica, ótica, m atem ática c astronom ia, e foi convidado a lecionar cm diver­sas sociedades c academ ias cien tificas dc toda a Europa. Dc» m onstrou se r tam bém um exím io poeta, com pondo versos cm latim sob os ausp ícios da prestigiosa Accadcm ia dcgli Arcadi, dc Roma. Não é de ad m ira r que ten h a sido cham ado “o m aior gênio que a Iugoslávia jam ais p roduziu"’*.

A enorm e genialidade do pc. Boscovich evidenciou-se im e­d ia tam en te du ran te o tem po cm que estudou no Colégio Ro­m ano, o m ais conhccido e prestigioso colégio dos jesuítas. De­pois dc conclu ir os estudos ord inário s, foi nom eado professor de m atem ática no m esm o Colégio. Já nesse período inicial da carreira , prévio à sua ordenação com o sacerdole (1744). foi notavelm ente prolífico, tendo publicado o ito dissertações cien­tíficas an tes dc se r indicado com o professor, c m ais catorzc depois. Incluem -se en tre elas As m anchas solares (1736). O trânsito dc Mercúrio (1737), A Aurora Boreal (1738). A aplicação do telescópio aos estudos astronôm icos (1739), Os m ovim entos dos corj>os celestes em u m m eio sem resistência (1740). Oi* d i­versos efeitos da gravidade em vários pontos da terra (1741) - que preparou o traba lho sobre geodésia qtie viria a fazer - e A aberração das estrelas fixas (1742)**.

Não podia d em o rar que um hom em do seu talen to sc to r­nasse conhecido cm Roma. O papa Bcnio XIV, que ascendeu ao trono pontifício em 1740 e era um a das figuras m ais cuitas da época, um estud ioso reconhecido c um inccntivador da c iência e das letras, interessou-se especialm ente po r ele e pela sua obra. mas o seu principal p a troc inador foi o Sccrctárío dc

(92) Sir Harold Manley. "Foreword", em While, ed.. Roger Joseph Bosco­vich. 8.

(93) J<>Ncph E. MacDonncU. Jesuit Geometers, pág. 76.(94) Elisabeth Hill. "Roper Boscovich: A Biographical Essay". cm Lancelot

Law W.hyie, cd.. Rof^cr Joseph Bosco\ich, SJ. FRS. 1711-1787, Foixlham Univer­sity Press, New York, 1961. págs. 34-35: Adolf Muller. 'Ruggiero Giuscpc Bos­covich“. em Catholic Ettcyelopetlta.

V. A 1CRKJA E A CIÊNCIA 101

Estado, o cardcal Valcnti G onzaga. cu jos ancestrais provinham da m esm a cidadc dc Dubrovnik, na Croácia, que os do pc. Boscovich. O C ardcal. que nâo m edia esforços para ccrcar-sc d c estud iosos d e renom e, convidou o sacerdote p ara a s suas reuniões dom in ica is95.

Em 1742. p reocupado com o aparecim ento de rachaduras na cúpula da Basílica de São Pedro que prognosticavam um possível colapso. Bento XIV recorreu à perícia técnica d o pc. Boscovich. Este recom endou-lhe que sc c ircundasse a cúpula com cinco anéis dc aço. O relatório em que estudava teorica­m ente o problem a e chegava a essa recom endação prática ga­nhou "a repu tação dc um pequeno clássico em estab ilidade es­tru tu ra l na arquitetura"*6.

Foi tam bém Boscovich quem desenvolveu o prim eiro m éto­do geom étrico para calcu lar a ó rb ita dos planetas com base cm apenas três observações das suas posições. Além disso, a sua Teoria da Filosofia Nattiral, publicada orig inalm ente em 1758, a tra iu adm irado res desde a sua época até os d ias de hoje, pela sua am biciosa ten tativa de en tender a es tru tu ra do universo com base cm um a idéia ú n ica97. Segundo um ad m ira ­do r m oderno, foi ele quem "deu u m a expressão clássica a um a das idéias c icntificas m ais poderosas que já foram concebidas, c que nunca foi superada, qu e r pela originalidade dos funda­m entos. qu er pela clareza de expressão e precisão na sua con­cepção dc estru tu ra ; da í a sua im ensa influência"'*.

Essa influência foi realm ente im ensa: os m aiores c ien tistas europeus, particu la rm en te na Inglaterra, elogiaram repetida­m ente a Teoria c ded icaram -lhe g rande a tenção ao longo do sé­culo XIX, e o in teresse por ela reacendeu-sc na segunda meta·

(95) Elisabeth Hill. "Roger Boscovich: A Biographical Essay“, cm LaiKcloi Whyte, cd,. Rofter Joseph Bosco\ich, pág. J4.

(96) Zclijko Markovic. "Boscovic. Kudjcr J". cm DSH. pág. 326.(97) Lancelot Law Whyte, 'Boscovich Atomism*, em Lancelot Whyte, cd..

Roger Joseph Boscovich. pág. 102. (E&sa "idéia* única corresponde ao que atualmente se vem chamando "teoria do campo unificado" ou "teoria do Tu­do*. que permitiriam explicar todas as realidades do universo por uma única entidade ífsica (K. do K.)J.

(98) Lancelot Law Whyte. "Boscovich Atomism", em Lancelot Whyte, cd.. Rofpr Joscplt Boscovich. pág. 102.

102 THOMAS H. WOOOS JR.

dc do século XX*9. Um estud ioso m oderno afirm a que foi Bos­covich quem fez "a prim eira descrição coeren te dc um a teoria atôm ica", bem m ais dc um século an tes dc te r surg ido a teoria atôm ica m o d e rn a100. E um histo riado r da ciência recente ch a ­m a-o “o verdadeiro c riado r da física a tôm ica fundam enta), ta) com o a en tendem os’' 101. A crescenta a in d a que a sua con trib u i­ção original "antecipou a linha de trabalho c m uitas das carac­terísticas da física atôm ica do século XX. E não é apenas este o m érito da Teoria. Porque, tam bém qualitativam ente, previu diversos fenôm enos físicos que foram sendo observados, tais com o a penctrab ilidadc da m atéria po r partícu las em alta velo· cidade c a possibilidade de estados da m atéria dc densidade excepcionalm ente a lta ” ,M.

Não é dc estranhar, pois, que essa obra tenha sido objeto dc m uita adm iração e elogios po r parte de alguns dos grandes cien tistas da era m oderna. Faraday escreveu em 1844: "Parece que o m étodo m ais seguro é pressupor o m ínim o possível, e é po r isso que acho que os á tom os dc Boscovich levam grande vantagem sobre as noções m ais u suais”. M endcleev disse dc Boscovich que “é considerado o fundador da a tom ística m o­dern a“. Clerk Maxwell acrescentou , em 1877: "A m elhor coisa que podem os fazer é livrarm o-nos do núcleo rígido c substi­tuí-lo por um á tom o de Boscovich". Em ! 899, Kclvin com en­tou que “a represen tação dc liookc das form as de cris ta is po r pilhas de esferas, a teoria da elasticidade dos sólidos de Navicr c Poisson. o trabalho de Maxwell e C lausius cm teoria c inética dos gases f...l, tudo isso são puros c sim ples desenvolvim entos da teoria dc Boscovich". E m bora esse cien tista sab idam ente m udasse com freqüência de pontos de vista, a sua observação final, em 1905. foi esta: “A m inha teoria atual é pura c s im ­plesm ente o boscov^chianism o‘' ,0,. Em 1958, reali/.ou-sc em Belgrado um Sim pósio Internacional para com em orar os du-

(99) Ibid., páRv 103-104.(100) Joseph H. MacDonitcll. Jesuit Ocvnieten,. págs. 10-11.(101) Luncdoi Law Whyic. 'Boscovich Atomism”, cm Laiwcltx Whytc. cd-,

Roger Joseph lioscovich. pág. 105.(IÒ2) Ibid., pig. 119.(10J) Pan» v“stc c ouirtnv tcsicmunlx>s. ver ihid.. pág. 121.

V. A IGREJA E A CIÊNCIA 103

zcnios anos da publicação da Teoria: os trabalhos apresen tados inclu íram papers dc Niels B ohr e W cm er H eiscm bcrg104.

A vida do pc. Boscovich revela-nos um hom em que. perm a­necendo sem pre fiel à Igreja que am ava c à O rdem religiosa a que pertencia, tinha um a enorm e fome dc conhecer c dc aprender. Assim o m ostra um sim ples episódio: cm 1745, esse c ien tista passou o verão cm Frascati, onde os jesu ítas tinham iniciado a construção dc um a residência dc verão. Durante os trabalhos dc escavação, os constru to res acharam os restos dc um a vila do século II a.C. Isso bastou para que o pc. Bosco­vich sc tom asse um entusiástico arqueólogo, escavando e co­p iando pessoalm ente os pavim entos dc m osaico. Estava con ­vencido dc que o relógio dc sol que encontrou e ra um dos m encionados pelo an tigo a rqu ite to rom ano Vitrúvio. E ainda achou tem po para escrever do is ensaios sobre o tem a: Sobre um a antiga vila descoberta na crista do Tusculum c Sobre um antigo relógio de sol e alguns outros tesouros encontrados entre as m ín a s. As su as descobertas foram relatadas no Gioniale dei Litterati no ano seg u in te104.

O pe. Athanasius Kircher (1602-1680) asscm elhou-sc ao pc. Boscovich pelo seu interesse por u m a enorm e gam a dc assun ­tos: foi com parado a Leonardo da Vinci c h on rado com o títu ­lo dc "m estre das cem artes". Os seus trabalhos cm quím ica ajudaram a desm ascarar a alquim ia, com que sc haviam en tre ­tido perigosam ente a té cien tistas com o Isaac Newton e Robert Boyle, o pai da qu ím ica m o d e rn a 106. Km 2003, um estudioso dcscrcvcu K ircher com o "um gigante en tre os m estres do sécu­lo XVII" c “um dos ú ltim os pensadores que puderam reivindi­car, po r dire ito próprio , o dom ín io dc todos os saberes"107.

Com o se tra ta de um a figura m u ito conhecida, m encione­m os apenas um a das áreas cm que sc destacou. K ircher dei- xou-sc fascinar, por exem plo, pelo an tigo Egito, tem a cm que

(104) Joseph K. MacDonncll. Jesuit Geometers. pág. II.(105) Elisabeth Hill, 'Roger Boscovich: A Biographical Essay*, cm Lance­

lot \Vh>tc. cd.. Roger Joseph Boscovich, págs. 41-42.(106) J.R. Partington, A History o f Chemistry, vol. 2. Macmillan. Londro.

1961. págs. 328-33: Joseph E. MacDonnell. Jesuit Geometers, pág. 13.(107) Alan Culler, The Seashell on the Mountauttop. pág. 68.

104 THOMAS R. WOODS JR.

sc destacou pelos seus estudos; em um deles, dem onstrou que a língua copta era, na verdade, um vestígio do prim itivo egípcio. Foi denom inado o verdadeiro fundador d a egiptologia, sem d ú ­vida porque realizou os seus trabalhos nessa á rea an tes da des­coberta da pedra R oseta, cm 1799, que possibilitou aos estud io­sos a com preensão d o s hieróglifos egípcios. Com efeito, foi "por causa do traba lho dc K irchcr que os c ien tistas souberam o que deviam p ro cu ra r ao in te rp re ta r a pedra R ose ta" ,0<. Essa é a razáo pela qual um egiptologista m oderno concluiu que "é in­contestável o m érito dc Kirchcr: ele foi o p rim eiro a descobrir que os hieróglifos tinham valor fonético. Tanto d o ponto de vis­ta hum an ístico com o intelectual, a egiptologia pode, verdadei­ram ente. o rgulhar-se dc lé-lo po r fu n d ad o r" '09.

As contribu ições jesu íticas para a sismologia (o estudo dos terrem otos) foram tâo substanciais que a p róp ria especialidade^ tem sido designada, às vezes, com o "a ciência jesuítica". Os je ­su ítas no tab ilizaram -se nesse cam po nào só pela sua consistcn· te presença nas un iversidades cm geral c na com un idade cien­tífica cm particu lar, com o pelo desejo dc reduz ir ao m ínim o, a serviço dos seus sem elhantes, os efeitos devastadores dos te r­rem otos.

Em 1908, o pc. Frederick Louis Odenbach (1857-1933) repa­rou que o extenso sistem a dc colégios c un iversidades jesu íti­cas espalhados p o r toda a Am érica oferecia a possibilidade dc c r ia r um a rede dc estações sism ológicas. Depois dc receber a aprovação dos d ire to res das in stitu ições jesu ítas dc a ltos estu ­dos, bem com o dos provinciais d a América, com prou no ano seguin te quinze sism ógrafos c distribu iu-os pelos cen tros de ensino. Cada um a dessas estações sism ográficas co letaria d a ­dos c os enviaria à estação cen tral em Cleveland, que po r sua vez os repassaria ao International Seismological Center em E strasburgo . Assim nasccu o Jesuit Seismological Service (hoje conhecido com o Jesuit Seismological Association), descrito co­

(108) Joseph K. MacDonncll. Jesuit Geometer*, pig. 12.(199) Erik Iverson, The Myth o f Egypt and its Hieroglyphs. Princeton Uni­

versity Prcw Princeion. 1993 (Copcnhagucn. 1961). pigs. 97-98; cit. cm Jo­seph E. MacDonncll. Jesuit Geometers. p£gv 12.

V. A IGREJA E A CIÊNCIA 105

mo "a prim eira rede sism ográfica com instrum en tação un ifo r­me estabelecida em escala con tin en ta l"n0.

M as o sism ologista jesu íta m ais conhecido, c efetivam ente um dos cien tistas m ais elogiados dc todos os tem pos, foi o pc. James B. Macelwane (1833-1956), que, cm 1925. reorganizou e revigorou o Jesuii Seismological Service, in sta lando a sua e s ta ­ção cen tral na U niversidade dc S a in t Louis. B rilhante pesqui- sador, M acclw anc publicou cm 1936 a Introdução à Sismologia Teórica, p rim eiro livro-texto d a á rea na América. Foi prcsidcn> te d a Sociedade dc Sism ologia da Am érica e da U nião A m cri' cana dc Geofísica. Em 1962, esta últim a organização criou um a m edalha cm su a honra, que é concedida a té os d ias dc hoje cm reconhecim ento ao traba lho dc jovens geoffsicos dc d e s ta q u e 'n .

AS CATEDRAIS COMO OBSERVATÓRIOS ASTRONÔMICOS

No cam po d a astronom ia, o público tem às vezes a im pres­são de que os eclesiásticos só cu ltivaram táo in tensam ente essa ciência para co n firm ar as suas idéias p reconcebidas, m ais do que para seguir as evidências aonde quer que elas os levassem. Já vim os qu ão falsa é essa afirm ação , m as não custa acrescen­ta r m ais a lguns fatos para en ce rra r a questão.

Johannes Kepler (1571-1630), o g rande astrônom o cujas leis do m ovim ento dos planetas co nstitu íram um progresso c ien tífi­co tão im portan te , m anteve ao longo de toda a carre ira um a in tensa correspondência com os astrônom os jesu ítas. Quando, cm um dete rm inado m om ento da sua vida, sc encontrou cm d ificu ldades econôm icas c tam bém científicas, privado até m esm o dc um telescópio, o pc. Paulo Guldin (1577-1643) per­

(110) Agustin Uilias e William Stauder, “Jesuits in Seismology*. Jesuits in Scieitce Newsletter 13 (1997); Benjamin E. Howell Jr., An Intmduction to Sri's- mological Research: History and Development. Cambridgc University Press. Cambridgc, 1990. pig. 31*32. Para mais iniormafdes sob re os trabalhos dos je- Mjltas cm sismologia na America do Norte, vcr Agustin Udlas. Searching the Heavens and the Earth. pAgs. 103-24.

(111) Agustin Udfas c William Stauder, 'Jesuits in Seismology*. Jesuits hi Science Newsletter 13 (1997).

106 THOMAS H. WOODS JK

suadiu uni am igo seu, o pc. Nicoiau Zucchi (1566-1670). inven­to r do telescópio refletor, a enviar um desses aparelhos a Kc* pler. Este, po r sua vez, além dc escrever um a caria de agrade-^ c im ento ao pe. G uldin, incluiu posterio rm ente um a nota espe· ciai dc gratidão no final do seu livro O Sonho, publicado pos­tum am ente. Nela podem os ler:

"Ao reverendíssim o pc. Paulo Guldin. sacerdote da C om panhia dc Jesus, hom em cu lto c venerável, am ado pa­trono . É difícil en co n tra r qua lquer o u tra pessoa com quem cu preferisse d iscu tir tem as de astronom ia Um p razer a inda m aior para m im foí receber a saudaçáo dc Vossa Re­verencia. trazida pelos m em bros da sua O rdem que aqui se encontram Penso que é Vossa Reverência quem deve rcccbcr dc m im o prim eiro fru to literário da alegria que senti ao experim entar este presen te [o te lescóp io )""2.

A teoria dc K cplcr accrca da órb ita elíptica dos p lanetas ti­nha a vantagem da sim plicidade sobre as teorias concorrentes. Os m odelos dc P tolom eu (geocêntrico) c de C opém ico (helio­cêntrico). que davam po r certa a órb ita c ircu lar dos planetas» haviam in troduzido um a com plicada série dc "eqttantes", ”epi· ciclos” e “deferentes” para explicar o aparen te re trocesso no m ovim ento dos planetas. O sistem a de Tycho B rahe, que pro­punha tam bém ó rb itas circu lares, ap resen tava as m esm as com plicações. Mas Kcplcr, ao p ropor órb itas elípticas, fez com que esses modelos parecessem c laram ente grosseiros cm com ­p aração com a elegante sim plicidadc do seu sistem a.

M as esse sistem a estaria correto? O astrônom o ita liano Gio- vanni Cassini (1625-1712), a luno dos jesu ítas Ricciolli e Gri- m aldi, usou o observatório da esplêndida Basílica dc Sâo Pc· trónio. cm Bolonha, para d a r suporte ao m odelo dc Kcplcr Eis um ponto em que sc vê com o é desconhecido hoje o im por­tan te con tribu to que a Igreja proporcionou à astronom ia. Nos séculos XVII e XVIII. as catedrais dc Bolonha, Florença. Paris

(112) Joscph li. MacDonncll. Jestiit Geometers. págs. 20 c 34.(113) Para uma explicação detalhada c ilustrada do mélodo dc Cassini.

ver i.\. Hcilbron. lhe Sun in lhe Chitrch, cap. 3. cspccialmcntc pág*. 102-12.

V. A IGRHJA B A CIÊNCIA 107

c Rom a eram os m elhores observatórios so lares do m undo. Hm nenhum o u tro lugar do m undo havia instrum entos m ais preci­sos para o estudo do Sol. Cada catedral d ispunha de orifícios destinados a deixar p assar a luz so la r c dc linhas de tem po (ou linhas m erid ianas) no piso. Peia observação do cam inho traça­do pelos ra ios dc luz sobre essas linhas, aqueles pesquisadores puderam o b ter m edidas precisas do tem po e prover os equinó­cios (e tam bém puderam fazer cálculos precisos acerca da ver­dadeira da ta da Páscoa, que era a finalidade inicial desses ob* scrvatórios),M.

Cassini necessitava dc equipam entos suficientem ente preci­sos para m edir a im agem projetada do Sol com um a m argem de e rro nâo superio r a 7.5 m m (a im agem d o Sol varia de 125 a 840 m ilím etros ao longo dc um ano). Naquele tem po, a tec­nologia usada nos telescópios nâo estava suficientem ente d e ­senvolvida para fornecer essa precisão. Foi o observatório de Sáo Petrônio que tom ou possível a pesquisa de Cassini. Sc a órb ita da T erra fosse realm ente elíptica, sugeria Cassini. deve­ríam os esperar que a im agem do Sol pro jetada no piso da ca te ­dral crescesse à m edida que os do is corpos se aproxim assem - ao passar po r um dos focos da elipse - e que d im inuísse q uan ­do se afastassem , ao passar pelo o u tro fo c o " J.

Cassini conseguiu levar ad ian te a sua experiência em m ea­dos da década dc 1650-1660. jun tam en te com os seus colegas jesuítas, c pôde finalm ente con firm ar a teoria das ó rb itas elíp­ticas proposta po r K eplerll<*. Com o explicou um estudioso, "deste m odo. pelas observações feitas na igreja dc Sáo Petrô­nio. no coração dos Estados pontifícios, os jesu ítas confirm a­ram [...] a pedra angular da versão dc K cpler acerca da teoria copcm icana e destru íram definitivam ente a física celeste aris- totélica” 117.

(U 4) J.L. Ilcilbmn. Annual Imitation Ijccture to tlte Scientific htstrunteni Society, Royal institution. l.ondrcs. 06.12.1995.

(M5) William J. Broad. “How the Church Aided 'Heretical' Astronoms". cm New York Tintes. 19.10.1999.

(116) J.L. Ilcilbron. The Swt in the Church, pág. 112. Para rcferir-sc à des­coberta dc Ca-ssini, Ilcilbron utiliza o termo tòcnico mais adequado neste con­tento: "bissecção da excentricidade'. A frase refere-se simplesmente ás órbitas planetárias elípticas, que às ve/cs sâo chamadas "exciniricas".

(117) Ibiti.

108 THOMAS IL WOODS JR.

Nâo foi um progresso pequeno. Com palavras dc um astrô­nom o francês do século XVIII, Jcrom e Lalandc, o uso dos me· ridiana da catedral dc São Petrónio “m arcou época na história da renovação das ciências’*. Uma fonte dos com cços do séculoXVIII asseverou que essa realização "deveria sc r celebrada nas eras fu turas cm hom enagem à glória im ortal do esp írito huma* no. que foi capaz dc copiar na Terra, com tan ta precisão, as regras do etem o m ovim ento do Sol c das cstrc las’*,u . Ouem haveria de im aginar que as catedrais católicas ofereceriam! contribuições tão im portan tes ao progresso da ciência?

Os observatórios das catedrais continuaram a d a r substan­cial apoio ao progresso do trabalho científico. Entre 1655 c 1736. os astrônom os fizeram 4.500 observações cm São Petrô- nio. Com o transco rrer do século XVIII, as m elhorias in trodu­zidas nos instrum entos dc observação foram to m an d o as cate* drais cada vez m ais obsoletas, mas elas continuaram a sc r usa· das para m edir o tem po... c tam bém para estabelecer os horá­rios das ferrovias.

O dado que perdura, com o afirm a J.L. Heilbron da Univer­sidade dc B crkdcy. na Califórnia, é que "durante m ais dc seis séculos - desde a recuperação dos antigos conhecim entos as­tronôm icos du ran te a Idade Média até o Uuminismo - . a Igreja Católica R om ana deu m ais ajuda financeira e suporte social ao estudo da astronom ia do que qualquer ou tra instituição c. pro­vavelmente. mais do que todas as ou tras jun tas” m .

Em resum o, as contribuições da Igreja para a ciência esten* deram -se m uito além da astronom ia. Foram as idéias teológi­cas católicas que forneceram as prim eiras bases para o pro­gresso científico. Foram os pensadores medievais que assenta­ram alguns dos prim eiros princípios da ciência m oderna. E fo­ram os sacerdotes católicos, filhos leais da Igreja, que dem ons­traram dc m odo consistente tão grande interesse pelas ciências e tan tas realizações cm cam pos tão variados com o a m atem áti­ca c a geom etria, a ótica, a biologia, a astronom ia, a geologia, a sismologia, c por a í fora.

(118) Ibid., pág. 5.(119) Ibid.. pág. 3.

V A IGREJA E A CIÊNCIA 109

Q uanto disso é do conhccim cnto gera), e quan tos textos so­bre a civilização ocidental o m encionam ? Fa/.cr estas pergun­tas já é responder a elas. Contudo, graças ao excelente trab a­lho dos h istoriadores recentes da ciência, que cada ve / mais vêm reconhecendo à Igreja aquilo que lhe é devido, nenhum estudioso sério poderá jam ais repetir o desgastado m ito do an ­tagonism o en tre a religião c a ciência. Nâo foi m era coincidên­cia que a ciência m oderna tivesse surgido no am bien te católico da E uropa ocidental.

A ARTE, A ARQUITETURA E A IGREJAVI.

A herança artística do O cidente identifica*sc tão estreita­m ente com o im aginário católico que ninguém pode pretender negar a influencia da Igreja. No en tan to , tam bém aqui. a sua contribu ição foi m uito m aio r que a dc sim ples fonte de tem as para a arte ocidental.

O ÓDIO ÀS IMAGENS: ICONOCMSMO

O próprio fato dc conservarm os até hoje m uitas das nossas obras-prim as é. em si mesm o, um reflexo da m entalidade cató­lica. Os séculos VIII e IX foram testem unhas do surgim ento de um a heresia destru idora cham ada iconoclasmo. Essa heresia rejeitava a veneração dc im agens. ícones ou sím bolos religio­sos. e chegou a re je itar a rcprcscntaçiko dc C risto c dos santos cm qualquer tipo de arte. Sc houvesse m edrado, as belas p in­turas. esculturas, mosaicos, vitrais, m anuscritos com ilum inu­ras c fachadas dc catedrais, que tém deleitado c inspirado tan ­to os ocidentais com o os nào-ocidentais. nunca teriam chega­do a existir. Mas não prosperou, já que ia na contram ão do m odo católico dc com preender e ap rec ia r o m undo criado.

A íconoclastia espalhou-se m ais no Im pério bizan tino do que no Ocidente, em bora pretendesse proclam ar um a doutrina que todos os que cressem em C risto deviam aceitar. Foi intro­duzida pelo im perador b izantino Leào III o Isáuríco (basileu de 717 a 741) po r motivos que perm anecem obscuros; é provável que tenha influído nela o encontro en tre Bizáncio e o Islá. Dcs-

VI. A ARTE. A ARQUITETURA E A IGREJA U I

dc o prim eiro século dc cxístcncia do Islã, depois que os m u­çulm anos conquistaram as regiões orien tais do Im pério bizan­tino, o im perador dc C onstantinopla teve dc susten ta r um a guerra in term itente contra esse inim igo persistente c poderoso. No transco rrer dessa luta, nào podia deixar dc tom ar conheci­m ento dc m uitas idéias islâm icas, en tre elas a de que a arte nâo devia sc r dc m aneira nenhum a figurativa; assim , por exem ­plo. nâo havia nenhum a represen tação dc Maomc. E o im pera­d o r l.eào III, cm face das sucessivas vitórias dos m uçulm anos c das derro tas dos bizan tinos nos cam pos dc batalha, com eçou a pensar que a razão d isso devia esta r cm que Deus vinha punin­do os bizantinos po r fazerem íconcs, im agens dc Deus. p roibi­das tam bém pelo Antigo Testam ento.

Na época cm que sc acendeu a controvérsia iconoclasta, havia séculos que a arte cristã vinha fazendo representações de C risto c dos santos. A represen tação artística dc Cristo era rc- llexo da dou trina católica da Encarnação: com a E ncarnação dc Deus cm Jesus Cristo, o m undo m aterial havia sido elevado a um novo nível, apesar da sua corrupção pelo pecado o ri­ginal. Nâo devia sc r desprezado, nâo só porque Deus o havia criado, m as tam bém porque nele havia habitado.

Essa foi um a das razões pelas quais São João Damasceno condenou a iconoclastia. Tendo passado a m aior parte da sua vida com o monge, perto dc Jerusalém , cscrevcu en tre os anos 720 c 740 as três partes da sua Apologia contra os que atacant as imagens divinas. Como é natural, argum entava - com base cm citações bíblicas e patrísticas. assim com o no testem unho do conjunto da T radição - que Deus não sc opõe à veneração das imagens; cm conseqüência, defendia teologicam ente toda a a rte religiosa. Nos iconoclastas, detectava um a tendência ao m aniqueísm o*. e repreendia-os po r isso; "Injuriais a m atéria c dizeis que não tem valor. O m esm o fazem os m aniqueus, mas

( 1 ) 0 nianiquebmo dividia o mundo cm um reino dc maldade, o da maté- ria, c um reino dc bondade, o do espírito. Para o« maniqueus. a idéia dc que as coisas materiais pudessem comunicar bens espirituais era um completo ab­surdo. Nos séculos XII c XIII. » catarismo. uma variante do maniqueísmo. se­guiria a mesma linha de pensamento, sustentando que o sistema sacramental católico tinha que scr fraudulento, pois como podena a matéria má - em for­nia de água. óleos, p&o c vinho consagrados - comunicar graça puramente es­piritual aos que a recebessem?

112 THOMAS E. WOODS JR.

a Escritu ra divina proclam a que cia é boa, porque diz: E Deus olhou para tudo o que havia feito e viu que era ntuito bom "1.

Mas João Dam asccno tom ou o cuidado dc precisar que não "reverenciava (a m atéria) com o Deus - longe disso: com o po­deria se r Deus aquilo que veio à existência a p artir do nada?-1 Mas a m atéria, que os cristãos nâo podiam condenar com o má cm si mesm a, podia con ter algo do divino:

"Nâo venero a m atéria; venero Quem fez a m atéria c Quem , po r mim . sc lom ou m atéria [pela Encam açãoJ c aceitou hab ita r na m atéria para através dela realizar a m i­nha salvação; c não cessarei de reverenciar a m atéria atra· vés da qual se faz a m inha salvação [...]. Portanto, reveren­cio e respeito a m atéria, porque está im pregnada da graça e da energia divinas. Nâo é m atéria extrem am ente preciosa e abençoada a m adeira da cruz? Nâo é m atéria a m onta­nha augusta c santa, o lugar do Calvário? Nâo sâo m atéria a rocha que deu vida c sustento, o santo sepulcro, a fonte da ressurreição? Não sâo m atéria a tin ta c todo o livro san­to do Evangelho? Nâo é m atéria a mesa que nos sustenta, que nos oferece o pâo da vida? Nâo sâo m atéria o ouro c a prata de que estâo feitas as cruzes, os cálices c as patenas? E, acim a dc todas essas coisas, nâo são m atéria o corpo c o sangue do m eu Senhor? Por isso, ou deixam os de tra ta r tudo isto com reverência c veneração, ou nos subm etem os à trad ição da Igreja e perm itim os a veneração das imagens dc Deus e dos am igos dc Deus, santificados pelo nom e do Espírito divino c. po r conseguinte, acolhidos sob a som bra da sua graça“4.

Portanto, toda a a rte religiosa, que contribu iu tâo podero­sam ente para configurar a vida artística do Ocidente, apóia-sc cm princípios teológicos católicos. Depois dc vima série de idas

(2) Sâo Jodu Damastene, Apologia coutra OS que aiacani as imagens divi· uai, 2. 71; a trciduçAo utilizada pelo autor foi a dc Andrcxv Loulh. publicada com o Ululo Thrte Treatists on the Di\ine Images, Sl. Vladimirs Scmíitary Pro». Crcstwood. New York. 2003.

O) Ibid.', I. 16-(4) Ibid.. I. 15-17.

VI. A ARTH. A ARQUITETURA K A IOKIJA 113

c vindas, os próprios bizantinos acabaram por abandonar o iconoclasm o cm 843 c voltaram a c ria r c venerar os ícones dc Cristo c dos santos. Os fiéis alegraram -se com essa vitória c passaram a com em orar com um a celebração anual do Triunfo da Ortodoxia1 o re tom o à prática tradicional.

É difícil exagerar a im portância da oposição da Igreja ao iconoclasmo, condenado oficialm ente pelo terceiro Concílio de Nicéia, cm 787. Foram as idéias de Sào João Damasceno c dos seus seguidores que nos perm itiram usufru ir da beleza das Madontias de Rafael, da Pietà dc Michclangelo c de inúm eras ou tras obras de gênio, sem m encionar as grandiosas fachadas das catedrais da Idade Média. Com efeito, não deveríam os to­m ar com o nalural c evidente a aceitação da arte representativa religiosa; o islam ism o nunca abandonou a sua insistência na a rte nào-figurativa. e sabem os igualm ente que. no século XVI, os pro testan tes re tom aram a heresia iconoclasta, pondo-se a destru ir estátuas, altares, vitrais c inúm eros ou tros tesouros da arte ocidental. Calvino. certam ente o m ais im portante dc todos os pensadores protestantes, preferia espaços despojados para os seus serviços dc cu lto c chegou a proibir a té o uso dc ins­trum entos musicais. Nada m ais alheio ao apreço católico pelo m undo m aterial, insp irado na E ncarnação e na certeza de que os seres hum anos, com postos de m atéria e espírito, podem va­ler-se das coisas m ateriais na sua ascensão para Deus.

A CATF.DRAI.

Nào há dúvida de que a m aior contribuição católica para a ai1c. aquela que modificou indiscutível c perm anentem ente a paisagem européia, é a catedral. Um historiador da arte escre­veu rcccntcm cntc: "As catedrais medievais da Europa (...) são a m aior realização da hum anidade em lodo o panoram a da arte"*. Particularm ente fascinantes sào as catedrais góticas, cu ­

(5) "Ortodoxia’ nào designa aqui a* Igrejas Ortodoxas, pois o grande cis­ma que dividiu católico» c ortodoxo* sò w deu dois wículo* mais tarde. cm I054. mas a 'reta doutrina*.

(6) Paul Johnson. Art: A S<w lituttrv. HaipcrCollinv New Yori. 2003, pág153.

114 THOMAS K. WOOOS JR.

ja arqu ite tura sucedeu ao csliio rom ânico no scculo XJt c. par· tindo da França c da Inglaterra, sc espalhou cm m aior ou mc· no r grau pela Europa. Esses edifícios, m onum entais cm tam a­nho c espaço, caracterizaram -se pelos seus arcobotantcs, arcos ogivais, abóbadas nervuradas c um a profusão dc vitrais des­lum brantes, c o efeito com binado desses elem entos produziu um dos mais ex traordinários testem unhos da fé sobrenatural dc um a civili/.ação.

Não é po r acaso que um estudo m ais apu rado dessas cate· drais revela um a im pressionante coerência geom étrica. Essa coerência procede diretam ente dc um a corrente im portan te do pensam ento católico: Santo Agostinho m enciona repetidam en­te Sabedoria I I . 21 - aquele versículo do Antigo Testam ento segundo o qual. com o já vimos, Deus dispôs todas as coisas com medida, quantidade e peso - , c essa idéia tornou-se moeda corren te en tre a grande m aioria dos pensadores católicos do século XII. Novamente encontram os aqui a escola da catedral dc Chartres. que veio a desem penhar um papel central na construção das catedrais gó ticas7.

Q uando a arquite tura gótica evoluiu a p artir da sua prede- ccssora rom ânica, m ais e m ais pensadores católicos se foram persuadindo da ligação en tre a m atem ática - cm particular, a geom etria - e Deus. Já desde P itágoras e Platão, um a impor* tante corrente dc pensam ento na civilização ocidental identifi­cava a m atem ática com o divino. Em Chartres, explica Robert Scott, os m estres “acreditavam que a geom etria c ra um m odo dc ligar os seres hum anos a Deus, que a m atem ática cra uin veículo para revelar ã hum anidade os mais íntim os segredos do céu. Pensavam que as harm onias m usicais estavam basea­das nas m esm as proporções da ordem cósm ica, que o cosmos era um a obra dc arquite tura e que Deus c ra o seu arquiteto". Essas idéias levarani os constru tores "a conceber a arquite tura com o geom etria aplicada, a geom etria com o teologia aplicada c o projetista de um a catedral gótica com o um im itador do di< vino M estre"4. "Assim com o o grande G côm etra criou o m undo

(7) John W. Baldwin. 77>c Scholastic Culture o f the Middle A&s. 1000-1.WO. DC. >!cat,h. Lexington, Mav^chussvls. 1971. pág. 107; Ruben A. Scott. 77* Ctnhic Enterprise. University of California Prc*>, Bcii.dc>'. 2003. pAgv 124-25.

(8) Kobe 11 A. Scott. The Gothic Enterprise, pág. 125.

VI A ARTE. A ARQUITETURA E A IGREJA 115

cm ordem e harm onia - explica o professor John Baldwin tam bém o arquite to gótico, com os seus hum ildes meios, ten ta­va com por a m orada terrena de Deus dc acordo com os supre* m os princípios da proporção c da beleza"’.

Com efeito, a proporcionalidade geom étrica que encontra· mos nessas catedrais é abso lu tam ente im pressionante. Consi* derem os a catedral inglesa dc Salisbury. M edindo o cruzeiro central da catedral (onde o seu principal transepto corta o ei­xo Icsteoesie). verificam os que tem trinta t· nove po r trinla c nove pés. Essa d im ensão básica é, po r sua vez, a base dc praticam ente todas as ou tras m edidas da catedral. Por exem- pio, tan to o com prim ento com o a largui~a dc cada uni dos dez átrios da nave sáo dc dezenove pés c seis polegadas - exata­m ente a m etade do com prim ento do cruzeiro ccntral. A pró­pria nave está constitu ída po r vinte espaços idênticos, que m e­dem dezenove pés c seis polegadas quadradas, c po r outros dez espaços que medem dezenove pés c seis polegadas por trin ta c nove pés. O utros aspcctos da estru tura ofcrccem ainda mais am ostras da absoluta coerência geom étrica que perm eia toda a ca ted ra l10.

O utro exemplo im pressionante da preocupação pelas pro­porções geom étricas é a catedral dc Saint Rémi, cm Rheims. Eímbora ainda contenha elem entos do estilo rom ânico anterior c nâo seja o exem plo m ais puro de estru tura gótica, Saint Remi já m anifesta o cu idado com a geom etria c a m atem ática que constitu iu um a qualidade fascinante dessa tradição. A in­fluência dc Santo Agostinho e da sua crença no sim bolism o dos núm eros - diferente c com plem entar dessa ou tra que vi· mos, que considera a estru turação m atem ática do m undo com o rcílcxo da m ente divina - ressalta dc m odo evidente. O coro dc Saint Rémi está "entre os mais perfeitos sím bolos tri- n itários da arquite tura gótica - explica Christopher Wilson obsciva-sc com o o arquite to brinca com o núm ero três nas três janelas que ilum inam os três níveis da ábside principal; e a m ultiplicação do núm ero de assentos cm cada degrau do

(9) John W. Baldwin, 77w ScIhúlMíc Culline o f lh« Middle Ages, 1000-1300. pás-. 107.

(10) Robcrt A. Scoll. The Gothic fimerpnse. págs. 103-104.

116 THOMAS E. WOODS JR.

coro - onze - pelo núm ero dc degraus dá trin ta c trê s"" . T rin­ta e três. com o é evidente, alude à idade dc Cristo.

O desejo dc ating ir ao m esm o tem po a precisão geom étrica c um sim bolism o num érico, que contribu i significativam ente para o p razer que o visitante colhc desses enorm es edifícios, náo foi. portan to , m era coincidência. Procedia dc idéias que já se encontravam nos Padres da Igreja. S anto Agostinho, cu jo De Musica viria a tornar-se o tra tado de estética m ais influente da Idade Média, considerava a a rqu ite tu ra c a m úsica com o as a r ­tes m ais nobres, um a vez que as suas proporções m atem áticas seriam as do próprio universo e, po r essa razâo, elevariam as nossas m entes à contem plação da ordem divina

O m esm o se pode dizer das janelas c da ênfase na luz que inunda esses enorm es e m ajestosos edifícios, talvez as caracte­rísticas m ais notáveis d a catedral gótica. É razoável pensar que o arqu ite to levou cm conta o sim bolism o teológico da luz. San­to A gostinho concebia a aquisição do conhecim ento po r parte dos seres hum anos com o fru to da ilum inação divina: Deus ilu* m ina a m ente com o conhecim ento. E po r isso nüo é descabi­do pensar que os arquite tos desse tem po se tivessem inspirado na poderosa m etáfora da luz física com o m eio dc evocar a fon­te divina da qual procede todo o pensam ento h u m an o 0 .

Assim o vemos na igreja abacial dc Saint-Denis. sete m ilhas ao n o ite de Paris. Aqui não sc pode ignorar o significado reli­gioso da luz. que sc derram a através das janelas pelo coro c pela nave. Uma inscrição no pórtico explica que a luz eleva a m ente por c im a do m undo m aterial e a dirige para a verdadei­ra tuz. que é C ris to1,1. Escrcvc um estud ioso m oderno: "Quan­do os olhos dos adoradores se elevavam para o céu, podiam im aginar a graça dc Deus. á sem elhança da luz do sol. a der­ram ar as suas bênçãos c a m over os espíritos à ascensão. Os pecadores podiam ser m ovidos ao arrepend im en to c à busca da perfeição ao v islum brarem o m undo dc perfeição espiritual

(11) ChriMophcr Wilson, The Gothic Cathedral: The Architecture o f the Great Church. 1120-1530, Londres. Thames and Hudson. 1990. págs. 65-66.

(12) Ibid.. págs. 275-76.(13)· John W. Baldwin. The Scholastic Culture o f the Middle Ages. 1000·

■1300. 107-08.(14) Ibid.. pág. 108.

VI. A ARTE. A ARQUITETURA K A IGREJA 117

cm que Deus habitava: um m undo sugerido pela regularidade geom étrica das ca ted ra is" '4.

Com efeito, tudo o que se refere à catedral gótica revela a sua inspiração sobrenatural. "Enquanto as linhas p redom inan­tem ente horizontais dos tem plos greco-rom anos sim bolizavam u m a experiência religiosa d en tro dc lim ites na tu ra is - escreve Jaki - , as agulhas góticas sim bolizavam a o rien tação para o a lto dc um a visão n itidam ente sobrenatural" Um período h istórico capaz de p roduzir tão m agnificas ob ras de arquitetu- ra não pode te r sido dc com pleta estagnação c trevas, com o sc re tra ta com tan ta freqüência a Idade Mêdia. A luz que jo rra nas catedrais gó ticas sim boliza a luz do século XIII, época ca ­racterizada não só pelo fervor religioso c pelo hero ísm o dc um São Francisco de Assis, com o tam bém pelas universidades, pelo estudo c pela erudição.

Poucos são os que não se deixam conqu istar por essas o b ras dc a rquite tura . Um dos estudos m ais recentes sobre a catedral gótica deve-se a um sociólogo da Universidade dc S tanford . que sim plesm ente se apaixonou pela catedral dc Sa- lisbury, na Inglaterra, e decidiu estudar c escrever sobre esse tem a para d ifundir o conhecim ento desse tesouro que tan to o c a tiv o u '7. E m esm o um erudito hostil do século XX fala com adm iração da devoção e do traba lho paciente revelados na construção das grandes catedrais:

"Em C hartres. encontram os um a esplêndida im agem da bela devoção dos habitan tes dc um a região que erigiram um a catedral magnífica. Esse m aravilhoso edifício com e­çou a ser constru ído cm 1194 c foi term inado cm 1240. Para constru ir um edifício que em belezasse a sua cidade c satisfizesse as suas asp irações religiosas, os habitan tes de­ram o con tribu to do seu esforço e das suas posses, ano após ano. ao longo de quase m eio século. E stim ulados pc· (os seus sacerdotes, hom ens, m ulheres e crianças iam a pc-

(15) Robert A. Scott. The Gothic Enterprise, pág. 132.(16) Stanley L. Juki. "Medieval Criiilivity in Scicncc and Technology", cm

Patients or Principles and Other Essays, pág. 75.(17) O livro cm qiicMäo d o de Roben A. Scott. The Gothic Enterprise.

118 THOMAS E. WOODS JR

drciras distan tes para ex trair os blocos dc can ta ria c sc a trelavam eles m esm os a toscas carroças carregadas dos m ateria is dc construção . Dia após dia, perseveravam nesse fatigante esforço. Q uando paravam à noite, extenuados pe­lo trabalho do dia, o tem po que sobrava era dedicado a confissões e orações. O utros trabalhavam na própria ca ­tedral, em tarefas que requeriam m aio r destreza, m as fa­z iam -no com igual devoção A sua dedicação c devoção m arcaram época naquela parte da França“ ■*.

A construção da catedral gótica tem sido, às vezes, cred ita­da à m entalidade escolástica. Os escolásticos - de quem São Tom ás de Aquino foi o exem plo m ais ilustre - constru íram todo um sistem a intelectual; nào sc preocupavam apenas dc responder a esta ou àquela questão , m as dc erguer edifícios in ­teiros do pensam ento. As suas Sum m ae - nas quais explora­vam todas as questões m ais im portan tes relativas a um tem a - eram tratados sistem áticos c coeren tes em que cada conclusão particu lar se relacionava harm onicam cntc com todas as ou ­tras, tal com o os vários e lem entos que com punham a catedral gótica trabalhavam jun tos para c r ia r um a estru tu ra de ex traor­d inária coerência interna.

Erw in Panofsky acrescenta, sugestivam ente, que não sc tra ­tava dc um a coincidência c que am bos os fenôm enos - a esco­lástica e a arqu ite tu ra gótica - em ergiam de um am biente in­telectual e cultural com um . Forneceu exem plos e m ais exem ­plos dc in trigantes paralelism os en tre as S um as escolásticas e a catedral. Assim com o um tratado escolástico, ao exam inar as questões disputadas, conciliava posições conflitantes provenien­tes de fontes do tadas de igual au toridade - po r exemplo, dc dois Padres da Igreja aparen tem en te em desacordo a catedral gótica sintetizava as características das tradições arquite tôn icas precedentes, em lugar de. sim plesm ente, ad o tar um a c sup rim ir a outra**.

(ISKAlcxaiKkT Cbrcncc Flkk. The Ris* of lhe Meduiewl Church, pág. 600.(19) Erwin Panofskv. Cothic Architecture and Scholasticism, Meridian

Books. New Yi*fc, 1985 (1951), págs. 69-70.

VI. A ARTE. A ARQUITETURA E A IGRUJA 119O RENASCIMENTO

A m aio r explosão de criatividade c inovações no m undo da a rte desde a A ntigüidade teve lugar du ran te o Renascim ento dos séculos XV c XVI.

N ão é fácil encaixar esse período cm categorias nítidas. Por um lado. parece em certa m edida an unciar a chegada do m u n ­do m oderno: há um sccularism o crescente, assim com o um a enfase cada vez m aio r na vida m undana, m ais d o que no mun- do vindouro; abundam , po r exemplo, os contos im orais. Não é dc estranhar, pois, que houvesse católicos inclinados a rejei* lá-lo dc cabo a rabo. Por o u tro lado, há e lem entos suficientes para descrevê-lo com o o auge da Idade Media, m ais do que co ­m o um a ru p tu ra com o passado: os m edievais, tal com o algu- m as figuras exponenciais d o R enascim ento, tinham um pro ­fundo respeito pela herança da an tigü idade clássica, ainda que não a aceitassem de m odo tão acrítico com o o fi/.eram alguns hum anistas; e é na Idade Média que encontram os as origens das técnicas artísticas que viriam a ser aperfeiçoadas no perío­do seguinte. Além disso, o grosso da produção artística renas­centista foi de ob ras de natureza religiosa, e, se hoje as pode­m os apreciar, é graças ao patrocín io dos papas da época.

Um século an tes do que se considera norm alm ente o início do Renascim ento, o medieval Giotto d i Bondotw (1266-1337). conhecido sim plesm ente com o G iotto. já havia an tecipado m uitas das inovações técnicas c artísticas que fariam a glória da Renascença. G iotto nasceu em 1267, perto de Florença. Conta-se dele que aos de/, anos, enquanto cuidava dc ovelhas, usava um pedaço de giz para desenhar as ovelhas nas rochas. E que C im abue ficou tão im pressionado com esses desenhos que pediu ao pai do m enino perm issão para educá-lo na arte da p in tu ra . '

O próprio Giovanni Cimabue (1240-1302) foi um artista inovador: u ltrapassando o form alism o da a rte bizantina, p in ta ­va as figuras hum anas com um a tendência realista. G iotto se ­guiu essa linha, clevando-a a novos cum es, que viriam a exer­cer um a influência substancial nas subseqüentes gerações dc pintores. As técnicas que C im abue em pregou para d a r p ro fun ­didade aos seus quadros, em três dim ensões, foram da m aior im portância , com o tam bém o m odo com o individualizou as fi­

120 THOMAS E. WOODS JR.

guras hum anas, cm oposição â abordagem m ais estilizada que o precedeu, na qual os rostos dificilm cntc sc d istinguiam uns dos outros.

Pode-se d i/c r. assim , que o Renascim ento sc desenvolveu a partir da Idade Média. Mas cm áreas nâo relacionadas com a arte. foi um período dc retrocesso. O estudo da literatura in ­glesa e continental náo sentiria praticam ente nenhum a falta - com algum as honrosas exceções - sc sc removessem os séculos XV c XVI. Tam bém a vida científica dc toda a E uropa perm a- neceu em gestação: sc excetuarm os a teoria do universo dc Co- pém ico. a história d a ciência ocidental en tre 1350 c 1600 é dc relativa estagnação. E a filosofia ocidental, que havia floresci­do nos séculos XII e XIII, teve com parativam ente m uito pouco a m ostrar nesse período*0.

Poder-se-ia a té dizer que o R enascim ento foi. sob m uitos aspectos, um tem po dc irracionalism o. Por exemplo, foi nessa época que a alquim ia alcançou o seu auge, c a astrologia ga- nhou ainda m aior influência. As perseguições às bruxas, e r­roneam ente associadas à Idade Média, só sc espalharam a par­tir do final do século XV c du ran te o XVI.

Do que nâo há dúvida é de que, d u ran te o R enascim ento, im perou o esp írito sccularista. E m bora raram ente se negasse de um m odo explícito a doutrina do pecado original, com eçou a dom inar um a visâo m uito m ais inclinada a celebrar a n a tu ­reza hum ana c as suas capacidades potenciais. Com o advento d o R enascim ento, assistim os â exaltação do hom em natural, da sua dignidade e das suas capacidades, divorciadas dos efei­tos regeneradores da graça sobrenatural. As virtudes con tem ­plativas. tâo adm iradas na Idade Média, com o m anifestava a tradição m onástica, com eçaram a perder o seu lugar para as virtudes ativas com o objeto dc adm iração. Em ou tras palavras, um entendim ento sccu lar dos conceitos dc utilidade c pratici* dade - que triunfaria m ais tarde, du ran te o llum inism o - co­meçou a m enosprezar a vida dos m onges e. cm seu lugar, a glorificar a vida ativa m undana, a do hom em com um da ci­dade.

(20) James Franklin. “The Renaissance Mvth“. em Quadrant (26). nov 1982. págs. 53-54.

VI. A ARTK. A ARQUITETURA E A IGRKJA 121

O sccularism o eslcndcu-sc tam bcm à filosofia política: cm O Príncipe (1513). Maqutavel concebeu a política cm m oldes puram ente seculares, e descreveu o Estado com o um a institu i­ção m oralm ente au tónom a, isenta dos padrões dc certo c e r­rado pelos quais se costum a m edir o com portam ento dos indi­víduos.

E sse sccularism o com eçou a invadir igualm ente o m undo da arte. Passou a haver patrocinadores fora dos quadros da Igreja, c com isso os tem as artísticos com eçaram a mudar. Prosperavam agora os re tra tos, os au to-retra tos c as paisagens, todos seculares po r natureza. O propósito dc re tra ta r tâo exa­tam ente quan to possível o m undo natural - tâo evidente na a rte renascentista - deixa entrever que esse m undo, longe de sc r um m ero estágio en tre a existência tem poral e a felicidade eterna, era considerado algo bom em si m esm o c m erecia scr cuidadosam ente estudado c reproduzido.

Apesar disso, houve nesse período um enorm e volum e de obras artísticas que tinham por objeto lem as religiosos, c m u i­tas delas procediam dc hom ens cuja a rte sc inspirava p rofun­dam ente cm um a fé religiosa sincera c arraigada. Segundo Kcnncth Clark, au to r da ap laudidíssim a sêrie da BBC Civiliza­ção:

"G ucrcino passava m uitas das suas m anhás cm oraçáo; Bcrnini assistia freqüentem ente a re tiros e praticava os Exercidos Espirituais dc S anto Inácio: R ubens ia à missa todos os dias. an tes dc com eçar a trabalhar. Esse teo r dc vida não obedecia ao m edo à Inquisição, m as à singela crença de que a vida do hom em devia pautar-se pela fé que havia insp irado os grandes san tos das gerações prece­dentes. A segunda m etade do século XVI foi um período de san tidade na Igreja Católica [...), com figuras com o Santo Inácio de Lóyola, o visionário so ldado que sc tom ou psicó­logo. Náo é preciso se r católico pratican te para sen tir res­peito pelo m eio século que foi capaz de p roduzir esses grandes esp ín to s ,*, l .

(21) Kcnncth Clark. Civilisation, pâg. 186; cit. cm Joseph E. MacDonncll. Companions o f Jesuits: A Tradition Collaboration. Humanities Invjituic. Fair­field. Connecticut. 1995.

122 THOMAS E. WOODS JR.

Os papas, cm particu lar Júlio 11 c Lcâo X, foram grandes mcccnas dc m uitos desses artistas. Foi duran te o pontificado dc Júlio II, e sob o seu patrocínio, que figuras com o Bram an· te. M ichclangclo c Rafael p roduziram algum as das m ais me· moráveis obras dc arte. A Caíholic Enciclopédia aponta a im ­portância desse papa ao afirm ar que:

"Quando sc discutiu sc a Igreja devia absorver ou rejei­ta r c condenai' o progresso, se devia ou nâo associar-se ao esp írito hum anista, Jú lio II teve o m érito dc se pô r do iado d a Renascença e p reparar a plataform a para o triunfo m o­ral da Igreja. As grandes criações de Júlio II - a Catedral de Sâo Pedro dc Bram antc e o V aticano dc Rafael c Michc­langclo - sâo inseparáveis das grandes idéias de hum anis­m o c cu ltura representadas pela Igreja Católica. Aqui a arte ultrapassa-se a si própria, tom ando-se linguagem dc algo m ais alto. o sím bolo da mais nobre das harm onias jam ais realizadas pela natureza hum ana. Por decisão desse ho­m em extraordinário . Roma tornou-se. cm fins do século XVI, o lugar de encontro c o ep icen tro de tudo o que era g rande no cam po da arte c do pensam ento"” .

O m esm o sc pode dizer dc Leão X, em bora lhe tenham fal­tado o gosto impccávcl c a capacidade dc d iscernim ento dc Jú ­iio II. “De todos os lugares - escreveu um cardeal cm 1515 hom ens de letras apressam -se a aco rrc r à C idade E tcm a. sua pátria com um , protetora e m ecenas". As obras de Rafael cres­ceram ainda m ais cm excelência sob o pontificado dc Leão X. que deu continuidadc ao patrocínio do seu predecessor a esse p intor dc excepcional categoria. "Em tudo o que se referia â arte. o papa voltava-se para Rafael", observou um em baixador, cm IS IS 21. Novamente, podem os confiar no juízo de Will Du- rant, quando observa que a corte dc Lcâo X era

"o cen tro do intelecto e da sabedoria dc Roma. o lugar onde estudiosos, educadores, poetas, artistas e m úsicos

(22) Louis Cillcl. "Raphael*, cm Catfu/lic hncythpedia.(21) Kkmcns Löffler. "Pope Leo X“. cm Cnlhohc Encicbpetlva.

VI. A ARTE. A ARQUITETURA E A IGREJA 123

eram bem-vindos c hospedados, o cenário de solenes ceri­m ônias eclesiásticas, de recepções diplom áticas, dc banque­tes requintados, dc espetáculos teatrais ou m usicais, decla- m açòes poéticas e exposições de arte. Era, sem dúvida a l­gum a, a mais refinada cortc do m undo naquele tem po. O trabalho desenvolvido pelos papas, de Nicolau V ao próprio Leâo X. para m elhorar c em belezar o Vaticano, para reunir os gênios artísticos c literários c os em baixadores mais com petentes dc toda a Europa, fez da corte de Leão o zéni­te. náo da arte - porque este fora alcançado sob Jú lio li mas sim da literatura c do brilho do Renascim ento. Mesmo em term os m eram ente quantitativos, a história nunca viu nada igual no cam po da cultura, nem sequer na Atenas dc Périclcs ou na Roma de Augusto",4.

A criação renascentista preferida por nós. a Pietà de M iche­langelo. é um a ob ra im pressionantem ente tocante, im pregnada de um a profunda sensibilidade católica. Nos lem pos de Miche­langelo. a pietà, que representava a Virgem M aria com o seu divino Filho nos braços depois de crucificado, já vinha consti­tuindo um gênero artístico havia centenas de anos. Essas pri­m eiras pieíàs eram , com freqüência, desagradáveis de sc ver, com o é o caso da a Pietà Röttgen (cerca de 1300-1325), na qual um a figura dc C risto contorcida c ensangüentada está deitada no colo dc um a m áe esm agada pela aflição. Correspondiam a um período dc terríveis desastres c tragédias hum anas, que sc traduziu cm um a grande quantidade dc representações do so­frim ento na arte religiosa25, particularm ente por causa da ên ­fase que se punha na crucifixão m ais do que na ressurreição (ao contrário do que fizeram os ortodoxos c os protestantes), com o evento central do dram a da Redenção.

Mas a in tensidade desse sofrim ento é significativam ente atenuada na pfim eira e mais fam osa das duas Pietàs de M iche­langelo. C onsiderada com o a mais grandiosa das esculturas em m árm ore de todos os lempos, essa Pietà preserva a tragédia

(24) Will Durant. The RenatsMitce. MJF Hook». New York, 1953. pá«. 484.(25) Fred S. Kleiner, ChriMin J. Mamvia c Richard C. Tanscy. Cartitiers

Art Through f/w Anes. 11* ed.. vol. I. Wadwvorth. New York. 2001. págs. 526-7.

124 THOMAS E WOODS JR

daquele terrível mom ento, mas representa o rosto da m ãe dc Cristo com traços dc inegável serenidade.

Desde o século II. M aria é cham ada a "segunda Eva”, por· que, se a desobediência dc Eva levou a hum anidade á perdi* ção, a conform idade dc M aria com a vontade dc Deus, ao con­sentir cm trazer no seu seio o Homcm-Dcus, tom ou possível a redenção da hum anidade. Essa é a m ulher que vem os na es­cu ltura de M ichclangclo: tâo confiante nas prom essas dc Deus e tâo perfeitam ente conform ada com a vontade dc Deus que é capaz dc aceitar serenam ente, com esp írito dc fé c igualdade de ánim o, o terrível destino do seu divino Filho.

ARTE E CIÊNCIA

Ao avaliarm os as contribuições da Igreja para o desenvolvi­m ento da ciência m oderna, vimos brevem ente com o certas idéias teológicas e filosóficas fundam entais, derivadas do cato­licismo, se dem onstraram conaturais ao surgim ento da pesqui­sa científica. Surpreendentem ente, as nossas observações sobre a arte podem acrescen tar ainda ou tra explicação para o singu­lar êxito da ciência no Ocidente. Trata-se da descoberta dc perspectiva linear, talvez o traço m ais característico da p in tura renascentista.

Foi no O cidente que sc desenvolveu a a rte da perspectiva - a representação dc im agens cm três dim ensões cm um plano bi-dim cnsional assim com o o chiaroscuro. o uso dc luz e som bra. Essas duas características já existiam na arte da an ti­güidade clássica, m as foram os artistas ocidentais que lhes dc· ram nova vida. m ais ou m enos a p artir de 1300. Foi só através da influência ocidental que os artistas posteriores aplicaram cm todo o m undo esses princípios à sua arte trad icional20.

Em The Heritage o f C io tlos Geometry. Sam uel Edgcrton com para a a rte da perspectiva desenvolvida na pré-Renascença e na Renascença européias com a arte de ou tras civiti/açõcs. Começa por com parar duas representações de um a mosca.

(26) Samuel V. Edgcrton Jr.. The Heritage o f Ciotio'i Geonteiry: Art mtd Sctciice oti the Eve o f the Scientific Resolution, Cornell University Press, Ithaca, 1991. pág. 10.

VI. A ARTE. A AROIMTKTURA E A IGREJA 125

um a ocidental c o u tra chinesa, e m ostra que a ocidental está m uito m ais aten ta à es tru tu ra geom étrica da mosca. "No Oci­dente - escreve estam os convencidos dc que. se quiserm os en tender a es tru tu ra dc um objeto orgânico ou inorgânico, de­vemos encará-lo prim eiro com o um a nature morte (com o um a natureza m orta dc Jcan-Baptistc Chardin, por exemplo), com todas as partes que o com põem rep resentadas em conexões geom étricas estáticas c objetivas. Nessas p inturas, com o sa r­casticam ente observou A rtur Waley, «Pòncio Pilatos e um bule dc café sáo am bos m assas cilíndricas verticais». Para um chi­nês tradicional, essa abordagem é. estética c cientificam ente, absurda". O objetivo d a com paração dc Edgcrton é sublinhar que “a perspectiva geom étrica e o chiaroscuro. convenções da arte da R enascença européia, sejam ou náo esteticam ente ele· gantes. dem onstraram -se extrem am ente úteis para a ciência m oderna" É po r isso que esse au to r sugere que nào foi um a coincidência que Giotto, o precursor e na verdade o fundador da a rte renascentista, c Galileu, às vezes considerado o funda­do r da ciência m oderna, tivessem nascido am bos na Toscana e que a cidade toscana dc Florença tenha sido o berço tan to dc obras-prim as artísticas com o dos progressos científicos.

Tam bém a inclusào da perspectiva geom étrica na arte foi p roduto do am biente intelectual específico da Europa católica. Como vimos, a idéia de Deus com o gcôm etra e da geom etria com o a base sobre a qual Deus ordenou a sua criação era um a constante no m undo católico. No tem po da Renascença, expli­ca Edgcrton:

"Crescia no O cidente um a singular tradição arraigada na dou trina católica medieval: estava-se tom ando social­m ente de rigor que a «gente bem» conhecesse a geom etria euclidiana. M esmo an tes do século XII, os prim eiros Pa­dres da Igreja in tu íram que podiam descobrir na geometria euclidiana o próprio m odo dc pensar dc Deus.

"A perspectiva geom étrica linear foi rapidam ente aceita na E uropa ocidental após o século XV, porque os cristãos acreditavam que, ao contem plarem um a im agem artística

(2?) tbid. pAf 4

126 THOMAS K. WOODS JR.

assim criada, captavam um a réplica da própria estru tura essencial da realidade subjacente que Deus havia concebi­do no m om ento da criação. Por volta do século XVII, quando os «filósofos naturais» (com o Kepler, Galileu. Dcs» cartes e Newton) foram com preendendo cada vez m ais que a perspectiva linear coincide efetivam ente com o próprio processo ótico c fisiológico da visão hum ana, nâo só se m anteve o im prim atur c ristão da perspectiva, com o ela pas­sou a servir para reforçar na ciência ocidental a crescente convicção o tim ista e generalizada de que se tinha final· m ente penetrado no processo da m ente de Deus c de que o conhecim ento (e o controle) da natureza estava potencial· m ente ao alcance dc qualquer ser hum ano" u .

Foi assim que o em penho que a Igreja Católica pôs no es· tudo da geom etria euclidiana, com o chave para desvendar a m ente dc Deus e a base sobre a qual Ele ordenou o universo,' trouxe frutos im ensam ente im portan tes tan to no cam po da arte com o no da ciência. A a tração católica pela geom etria le· vou a um m odo dc re tra ta r o m undo natural que ajudou a tor· nar possível a Revolução Científica c que seria copiado pelo resto do m undo nos anos posteriores.

(28) Ibid. pá* 2S9.

VII.AS ORIGENS DO DIREITO

INTERNACIONAL

Em 1892. por ocasião dos quatroccntos anos da descoberta da América por Cristóvão Colombo, o clim a era dc cclcbração. Colombo íoi um corajoso e hábil navegador que aproxim ou dois m undos c m udou a história para sem pre. Os Cavaleiros dc Colom bo chegaram a propor a sua canonização. Um século depois, o ân im o reinante era m uito m ais som brio.

Hoje, Colombo é acusado dc lodo o género de crim es te r­ríveis, que vão da devastação am biental às a trocidades que cul­m inaram no genocídio. K irkpatrick Salc descreveu os aconteci­m entos dc 1492 com o “a conquista do paraíso", do qual povos pacíficos c am igos da natureza foram violentam ente expulsos pela avareza dos conquistadores europeus. Pôs a ênfase nos m aus-tratos infligidos pelos europeus à população indígena, particularm ente na sua utilização com o m âo de obra escrava.

O debate sobre as conseqüências desse encontro dc culturas passou a se r polêmico. Os defensores dos europeus em geral, c dc Colom bo em particular, contestaram afirm ações com o as dc Kjrkpatrik com o argum ento de que os crim es dos europeus fo­ram exagerados, dc que a m aior m ortandade en tre os nativos foi conseqüência das doenças in troduzidas pelos conquistado­res (um fato involuntário c. portanto, neu tro do ponto dc vista moral), mais do que da Exploração ou da força m ilitar, c de que as populações nativas não eram pacificas nem sc preocu­pavam com a preservação da natureza, com o sugerem os seus adm iradores de hoje cm dia. c assim por diante.

Considerem os aqui esta questão dc um ponto de vista que é freqüentem ente esquecido. Os relatos dos m aus-traios espa­

128 THOMAS E. WOODS JR

nhóis aos nativos üo Novo M undo provocaram um a crise de consciência em im portan tes setores d a populaçào espanhola no século XVI, nào apenas en tre filósofos c teólogos. Este fato indica po r si só que estam os peran te um a questão pouco usual em term os históricos. Com efeito, nenhum dado histórico per­m ite supor que Átila, o rei dos hunos. tenha tido qualquer es­crúpulo m oral nas suas conquistas, nem que os sacrifícios hu ­m anos coletivos que os astecas prom oviam e que considera·! vam tão fundam entais para a sobrevivência da sua civilização,! tenham provocado en tre eles sen tim entos de au to-crítica ou re- j flexões filosóficas que sc pudessem com parar àquelas que os \ erros dc com portam ento dos europeus provocaram en tre os teólogos da Espanha do século XVI.

Foi po r essa reflexão filosófica que os teólogos espanhóis ating iram algo m uito substancial: o nascim ento do dire ito in­ternacional m oderno. As controvérsias em torno dos nativos da América forneceram -lhes um a oportun idade p ara e lucidar os princípios gerais que os Estados estão m oralm ente obrigados a observar nas suas relações m útuas.

Até então, as leis que regiam essas relações eram vagas c nunca tinham sido articu ladas de um m odo claro. E foi a des­coberta do Novo M undo que levou a estudá-las c perfilá-las*. Os estudiosos do d ire ito in ternacional debruçam -se com fre­qüência sobre o século XVI para encon tra r as fontes dessa dis­ciplina. Aqui, novam ente, a Igreja Católica deu origem a um conceito c laram ente ocidental.

L’MA VOZ NO DESERTO

A prim eira grande reprovação dc um eclesiástico que se fez ouvir contra a política colonial espanhola deu-se em dezem bro dc 1511. na ilha de M ispanhola (atual Haiti e República Domi­nicana). Em um serm ão dram ático sobre o texlo Eu sou a voz que clama no deserto, um frade dom inicano cham ado Antonio

(I) Bcmicc Hamilton. Pitlilical Thought in Siiteenth'Century Spain. Oxford Uniwrsily Press·. Londres, 1963, pig. 98; Sost A. Kcntfndc/.-Samamarfa. Tlte Stale. War and Peace: Spanish Political Thought in the Renaissance, 1516-1559, Cambridge Univcrvty Pits*. Cambridge. 1977. pig. 60-61.

VII. AS ORIGENS DO DIREITO INTERNACIONAL 129

de M ontesinos (?-1545), falando cm nom e da pequena com uni­dade dom inicana da ilha, fez um a série de críticas c condena­ções â política espanhola para as índias. De acordo com o his­to riado r Lcwis Hunkc. o serm ão, p ronunciado na presença de im portan tes au toridades espanholas, "teve po r fim chocar e causar te rro r en tre os ouvintes". E assim deve te r ocorrido:

“Subi a este pú lp ito para desvendar os vossos pecados contra as índ ias; sou um a vo/. dc C risto clam ando no de­serto desta ilha c, p o r isso. convém que m e escuteis, não com pouca atenção, m as com todo o vosso coração c sen ­tidos; porque será a vo/. m ais es tranha que jam ais tereis ouvido, a m ais áspera, a m ais terrível c a m ais audaz que jam ais esperásseis ouvir [...]. E sta voz d iz que estais cm pecado m ortal, que viveis e m orreis nele, pela crueldade e tiran ia com que tra ta is este povo inocente. Dizei-me com que direito ou justiça m antendes estes índios em tão cruel e horrível servidão? Com que autoridade em preendestes um a detestável guerra contra este povo que habitava quie­ta e pacificam ente na sua própria terra? Por que os opri­m is e fazeis traba lhar a té à exaustão, e nâo lhes dais o suficiente para com er nem cuidais deles nas suas enferm i­dades? Pelo excesso dc trabalho que lhes im pondes, adoe­cem e m orrem , ou m elhor, vós os m atais pelo vosso desejo dc ex trair c ad qu irir ouro todos os dias. E que cuidado pondes em fazer com que sejam instruídos na religião? (...) Por acaso nâo sâo hom ens? Nâo possuem alm as racio­nais? Nâo estais obrigados a am á-los com o vos am ais a vós m esm os? (...) Estai certos dc que. em um a situação com o esta, não podeis se r salvos m ais do que os m ouros ou os tu rcos“1.

Aturdidos com essa forte adm oestação, os chefes da ilha. en tre os quais o a lm iran te Diego Colom bo, ergueram um vigo­roso e ru idoso protesto, exigindo que o pe. M ontesinos se re- ira tasse das suas assustadoras afirm ações. E os dom inicanos

(2) U w s Hankc. Tfie Spanish Struggle for Justice in the Conquest o f Ameri­ca. Little. Brown and Co.. Boston. 1965 II949J. pig. 17.

130 THOMAS E. WOODS JR

ordenaram ao pe. M ontesinos que voltasse a pregar no dom in­go seguinte e fizesse o possível para explicar o que havia d ito c tranqüilizar os ouvintes desgostosos.

Q uando chegou o m om ento da esperada retra tação . M onte­sinos utilizou com o base do seu serm ão um versículo de Jó (13. 17*18): Estou pronio para defender a m inha causa, sei cjue sou eu quem tem razAo. E com eçou a repassar todas as acusa­ções que fizera na sem ana an te rio r e a dem onstra r que nenhu­m a tinha sido sem fundam ento. C oncluiu dizendo às au to rida­des presentes que nenhum dos frades os ouviria cm confissão ! (um a vez que os oficiais espanhóis da colônia não tinham nem contrição nem qualquer propósito dc em enda) e que podiam escrever a Castela e con tar o que lhes apetecesse a quem quer que fosse*.

Q uando esses dois serm ões foram levados ao conhecim ento do rei Fernando, na Espanha, as censuras do frade tinham sido tào d istorcidas que causaram su rp resa tan to ao rei com o ao próprio provincial dom inicano. Destem idam ente, M ontesi­nos c o seu superio r em barcaram para a Espanha a fim de apresen tarem ao rei o seu lado da história. Uma ten tativa de im pedi-los de sereni recebidos falhou quando um franciscano» que fora enviado à Corte para falar contra os dom inicanos na ilha de H ispanhola. foi convencido po r M ontesinos a ab raça r a posição dos dois dom inicanos.

Em face do d ram ático testem unho a respeito da conduta dos espanhóis no Novo M undo, o rei reuniu um grupo de teó­logos e ju ris tas com a m issão dc e labo rar leis que regulassem} as relações dos oficiais espanhóis com os indígenas. Assim nasceram as Leis de Burgos (1512) c dc Valladolid (1513). Mais tarde. em 1542. com base em argum entos sem elhantes, acrescentaram -se as cham adas Novas Leis. G rande parte dessa legislação em beneficio dos nativos revelou-se desapontadora na sua ap licação e execução, particu larm ente pela grande d is­tância que separava a Coroa espanhola do cenário dos aconte­cim entos no Novo M undo. Mas esse prim eiro esforço crítico ajudou a p reparar o terreno para o trabalho m ais sistem ático

(3) Carl Watrwr. “All Mankind Is One: The Libertarian Tradition »n Six- tccnth Cenlurv Spain”, cm Journal o f Libertarian S tudio (8). verâo 1987. págs. 295-96.

VII. AS OKIGENS DO DIREITO INTERNACIONAL 131

e d u radouro de alguns dos grandes teólogos c ju ris tas do sécu­lo XVI.

FRANCISCO DE VITÓRIA

Entre os m ais ilustres desses pensadores eslava o pc. Fran­cisco de Viiôria (cerca dc 1492*1546). Com as suas críticas à política espanhola. Vitória lançou as bases da teoria m oderna do dire ito in ternacional c. por isso. chegou a scr cham ado “o pai do d ireito in ternacional"4, e cm lodo o caso é considerado o hom em que "propôs pela prim eira vez o d ire ito internacional cm lerm os m odernos"5. Apoiado po r ou tros teólogos e ju ristas, 'defendeu a dou trina de que todos os hom ens são igualm ente livres; e. com base na liberdade natural, proclam ou o direito à vida, à cu ltura c à propriedade“6. Para respaldar as suas afir­mações. recorreu tan to às Escritu ras quan to à razão; c ao fazê- •lo, “proporcionou ao m undo da sua época a p rim eira obra* •prim a do direito d as nações, tan to cm tem po dc paz com o de guerra"7. Foi um sacerdote católico, portan to , quem trouxe um a grande contribu ição para o prim eiro tra tado sobre o d i­reito das nações.

Nascido po r volta de 1483, V itória ingressara na Ordem do­m inicana em 1504. T inha freqüentado a Universidade dc Paris, onde com pletara os seus estudos em artes liberais c prossegui­ra os dc teologia. T inha lecionado em Paris a té m udar-se, cm 1523, para Valladolid. onde continuou a d a r as suas aulas de teologia, no Colégio de São Grcgórío. Três anos depois, ocupou

(4) Michael Novak. 77« Utmxnal Hunger for Uberty, Basic Books, New York. 2004, pág. 24. O título coincide* com o do livro do protestante holandês llitgo Groiius.

(5) Marcelo Sánchcz-Sorondo, "Vitoria: The Original Philosopher of Ri· Rhts". cm Kevin White, od.. Hispanic Philou>phy in the Ag/e o f Discovery, Catho­lic University of America Press. Washington, DC. 1977, pág. 66.

(6) Carl Watner, 'All Mankind I* One*, pág. 294; Walner £ citado por Ix· \vi\ llanke cm All Mankind is One. A study o f the Disputation Between Bartolo· mS de las Casas and Juan Cinjs de Septthvda in 1550 on the Intellectual and Religious Capacity o f the American Indians, Northern Illinois University Press. IX· K.ilb. Illinois. 1974. pág. 142.

(7) James Brown Scott. The Spanish Origin o f International l&w. School of Foreign Service, Georgetown University. Washington. DC. 1928, pág. 65.

132 THOMAS E. WOODS JR

a cátedra dc teologia na Universidade de Salam anca, institu i­ção no seio da qual nasceriam tan tas linhas dc pensam ento profundas cm tan tas áreas ao longo do século XVI. Em 1532. proferiu um a fam osa série de conferências que. m ais tarde. fo- ram publicadas com o Sobre os índios e a lei de guerra, que as· sentou im portan tes princípios dc dire ito internacional no con- texto da defesa dos d ireitos dos índios. O uando foi convidado a partic ipar do Concílio dc T rento, declarou que gostaria m ais dc viajar para o Novo M undo, e assim o fez cm 1546.

Mas esse grande pensador foi m ais conhecido pelos seus com entários sobre o colonialism o espanhol no Novo M undo c o valor m oral dos atos dos conquistadores. T inham os espa­nhóis dire ito a possuir tenras am ericanas cm nom e da Coroa? Ouais eram as suas obrigações cm relação aos nativos? Tais assuntos levantavam , inevitavelmente, questões m ais gerais c universais. Que conduta deviam os Estados obrigar-se a obser­var nas suas relações m útuas? Q uais as circunstâncias cm que sc podia considerar ju sta a guerra declarada po r um Estado? Tratava-se obviam ente dc questões fundam entais para a teoria do m oderno d ireito internacional.

E ra c continua a sc r um lugar com um entre os pensadores cristãos a idéia dc que o hom em goza dc um a posição única den tro da Criação. Criado por Deus à sua im agem e sem elhan­ça e do tado dc um a natureza racional, o hom em possui um a dignidade d a qual carecem todas as dem ais criaturas*. Foi com base nisso que Vitória continuou a desenvolver a idéia dc que. pela sua posição, o hom em tem o d ire ito de receber dos seres hum anos, seus sem elhantes, um tra tam en to que nenhu­ma ou tra c ria tu ra pode reivindicar.

IGUALDADE SEGUNDO A LEI NATURAL

Vitória procurou cm Sâo Tom ás dc Aqui no dois princípios im portantes: I) a lei divina, que procede da graça, nüo anula a lei hum ana natural, que procede da natureza racional; 2) nada

(£) Cfr. Marcelo Sánchcz-Sorondo, "Vnoria: The Original Philosopltcr of Right*', pág. 60.

VII. AS ORIGKNS DO DIREITO INTERNACtONAL 133

do que pertence ao hom em por natureza pode scr-lhc tirado ou concedido cm função dos seus pecados9. N enhum católico susten taria que é um crim e m enos grave m atar um a pessoa não batizada do que um a batizada. Foi isso o que Vitória quis dizer, o tra tam en to a que todo c qualquer scr hum ano tem d i­reito - por exemplo, dc não scr assassinado, expropriado dos seus bens, eic. - deriva da sua condição de hom em , não dc que seja um fie) em estado dc graça. O pc. Domingos» de Soto, colega de Vitória na Universidade dc Salam anca, explicou a qucstào em term os m uito claros: “No que concerne aos direi­tos naturais, aqueles que estão cm graça dc Deus não são nem um pouquinho m elhores que o pecador ou o pagão"10.

A p artir desses princípios tom ados dc São Tom ás, Vitória afirm ou que o hom em não podia ser privado da sua capacida­de civil po r es ta r cm pecado m ortal e que o direito dc possuir coisas para uso próprio (isto é, o dire ito á propriedade privada) pertencia a todos os hom ens, m esm o que fossem pagãos ou ti­vessem costum es considerados bárbaros. Os índios do Novo M undo eram . portan to , iguais aos espanhóis cm m atéria dc d i­reitos naturais. Possuíam as suas terras dc acordo com os mes­mos princípios pelos quais os espanhóis possuíam as de les11. Escreveu: *’A conclusão dc tudo o que precede é, pois. que os aborígenes tóm indubitavelm ente verdadeiros d ire itos sobera­nos cm m atérias públicas e privadas, tal com o os cristãos, c nem os seus príncipes nem as pessoas privadas podem espo­liá-los das suas propriedades, sob a alegação dc não scrcm ver­dadeiros proprietários" ·*.

Susten tou tam bém , tal com o os seus colegas escolásticos Domingos de Soto c Luis de Molina, que os príncipes pagãos governavam legitim am ente. Fez n o ta r que as conhecidas adver­tências da Escritu ra sobre a obediência devida às au toridades

(9) Vcnancio Cam). 'The Spanish Thcological-Juridvcal Rcnaivsartcc and the Theology of Banolomtf dc las Casas', cm Juan Friedc c Benjamin Keen, eds., Bcrtoioini de las Casas in History: Toward an Understanding of the Man and His Wo/ft. Northern Illinois University Press, DcKalb, Illinois. 1971, pigs. 251-2.

(10) Ibid.. pig. 253(11) Ibid.(12) Josi A. Fcmindc/-Samamaria, The Stale. War and Peace, pig. 79.

134 THOMAS K. WOODS JK.

civis tinham sido feitas no contexto dc um governo pagào. Sc um rei pagão não com eteu nenhum crim c - disse Vitória não pode ser deposto sim plesm ente po r ser pag ão 1'. E ra à luz desse princípio que a E uropa cristã devia m oldar as suas polí­ticas relativas ao Novo Mundo.

"Na concepção desse bem inform ado c equilibrado profes- so r dc Salam anca - escreve um adm irado r do século XX - , os Estados, independentem ente do seu tam anho e form a de go* vem », da sua religião ou da dos seus súditos, cidadãos e habi­tantes, da sua civilização avançada ou incipiente, eram iguais à face d o sistem a de leis que ele professava" u . Cada E stado t i - 1 nha os m esm os direitos que qualquer outro, e era obrigado a I respeitar os direitos dos outros. De acordo com esse pensa* j m enlo, “os longínquos principados da América eram Estados e os seus súditos gozavam dos m esm os direitos e privilégios e estavam sujeitos aos mesm os deveres dos reinos cristãos da j Espanha. França e E uropa em geral",i.

V itória pensava que os povos do Novo M undo deviam pcr-1 m itir aos m issionários católicos que pregassem o Evangelho! cm suas terras. Mas insistia taxativam ente cm que a re je ição] do Evangelho não c ra m otivo para um a guerra justa. Como ] bom tom isia, invocava Sào Tom ás dc Aquino. em cujo en ten­d er não sc devia u sar de coação para converter os pagãos à fé, j um a vez que (sào palavras dc Sào Tomás) "crer depende do querer" c. portanto, tem dc ser um a to livre**. Fora por essa | razão que, cm um caso análogo, o IV Concílio de Toledo (633) condenara a prática dc obrigar os judeus a receber o batis»

Vitória e os seus aliados defendiam , pois. que o d ire ito na­tural não existe apenas para os cristãos, m as para qualquer ser hum ano. Isto é. defendiam a existOncia de “um sistem a ético

< 1 Bcrnícc Hamilton, fWiiiCfl/ Thought in Sixteenth-Century Spain, pág.I.

(14) James Brmvn Scott, The Spanish Origin o f International Law. pág. 41.(15) ibid.. pig. 61.

thetJogiae. ll-H. q.10. a. ft.(17) Marcclo Sdnchcz-Sorondo. 'Vitoria: The Original f*hilo>ophcr of Ri­

ghts". pig. 67.

VII. AS ORIGENS DO DIREITO INTERNACIONAL 135

natural que não depende da revelação cristã nem a contradiz, m as sc susten ta po r si m esm o" '1. Afirmavam, com São Paulo, que a lei natural está inscrita no coração hum ano e que. por essa razão, existia um a base sobre a qual estabelecer regras in* lem acionais de conduta que obrigassem m oralm ente mesm o os que nunca tivessem ouvido falar do Evangelho (ou que o ti* vessem rejeitado). Consideravam tam bém que todos os hom ens possuem o senso básico do certo e do errado, resum ido nos Dez M andam entos e na regra á u re a 1* - alguns teólogos p ra ti­cam ente chegavam a identificar am bos esses sistem as com a própria lei natural de onde sc podiam deduzir as obrigações internacionais.

Alguns teólogos apontaram que a lei natural m anifesta Mo abism o existente en tre o hom em c o resto dos anim ais e do m undo criado"10, o que, po r sua vez, levava à "firme convicção de que os índios do Novo M undo, assim com o quaisquer ou· tros povos pagãos, participavam dos direitos hum anos, não se justificando o seu desrespeito por parte de qualquer civilização ou religião superior"2*.

Aos que afirm avam que os nativos do Novo M undo care­ciam dc razão ou que, pelo m enos. nâo estavam em seu perfei­to ju ízo (equivalendo a m enores dc idade) e. por isso, nâo po­diam possu ir bens. Vitória respondeu que um a deficiência de razâo cm um a parcela da população náo justificava que se subjugasse ou espoliasse essa parcela, porque a dim inuição das suas qualidades intelectuais náo anulava o seu direito â propriedade privada. “Em conclusão, possuem o direito à pro ­priedade dos bens, m as - c neste ponto Vitória hesita - se po­dem ou não d ispor desses bens é um a questão que deixo aos jurislas,,,I.

Em qualquer caso, sugeria Vitória, devíam os te r cm conta

(18) Bcmicc Hamilton. Political Thought iti Sixternth-Ceniurx Spain, pág.19.

(19) Chama·« comumcnic "ivyra áurea* Ua moral ao princípio dc “nAo la/cr ao* outros o que não querenx» que nos façam* (N. do E.).

(20) Bcmicc Hamilton. Political TIuMtnht in Sixteenlh-Ceniun Spam, pAg.21.

(21) ibid.. 24.(22) Jos«.1 A. FcmAndcz-Snniuntarfa. The Slate. War ati<J Pence, pág. 78.

136 THOMAS E. WOODS JR.

que os índios am ericanos não eram irracionais. Estavam sem dúvida algum a do tados de razão, o que é um a faculdade carac* terística da pessoa hum ana. Desenvolvendo o princípio de Aristóteles de que a natureza nada faz em vào. escreveu:

"Na verdade, nâo sâo irracionais, mas possuem o uso dn razão a seu modo. Isto é evidente, porque organizam as suas ocupações, têm cidades ordenadas, celebram casa­m entos. têm m agistrados, governantes, leis [...]. Tam bém nâo se enganam cm coisas que são evidentes para os ou ­tros. o que revela que usam da razão. Nem Deus nem a na­tureza falham em do ta r as espécies daquilo que lhes é ne­cessário. Ora. a razão é um a qualidade específica do ho­mem . e um a potência que nâo se a tualizasse seria vã”.

Nessas suas duas ú ltim as frases. V itória qu is dizer que nâo era possível adm itir que houvesse um a parte da raça hum ana privada do uso da razão, pois Deus não falharia em dotá-la do dom que confere ao hom em a sua especial dignidade en tre as c ria tu ra s21.

BARTOLOMÉ DK LAS CASAS

Ainda que Vitória tenha sido. possivelm ente, o m ais siste­m ático de todos os pensadores que estudaram essas questões no século XVI, talvez o crítico m ais conhecido d a política es­panhola tenha sido o sacerdote e bispo Bartolomé de ia s Casas (cerca de 1474-1566), que nos proporcionou toda a inform ação que possuím os sobre Antonio M ontesinos, o frade cu jo fam oso serm ão provocou toda a controvérsia. Las Casas, cuja doutrina parece te r sido m uito influenciada pelos m estres de Salam an­ca. com partilhou a posição de Vitória a respeito da capacidade de raciocínio dos indígenas.

(23) «Brian Ticmey, The Idea o f Natural Rights: Studies on Natural Rights, Natural l-aw, and Church law . / William B. Kcrdmans. Grand Ra­pids. Michigan. 2001 (1997). pigs. 269-70.

VII AS ORIGENS DO DIREITO INTERNACIONAL 137

C ontra os que pretendiam que os nativos constitu íam um exem plo daqueles que Aristóteles descrevera com o "escravos por natureza". Las Casas susten tou que os nativos estavam m uito longe do nívei dc cnvilccim cnto im plícito na conccpção d o filósofo c arm ou-sc para com batê-la. Sugeriu que os nativos fossem “(ratados com toda a suavidade, dc acordo com a d o u ­trina d c Cristo", baseando-se cm que "tem os a nosso favor o m andam ento dc Cristo: ama o próxim o com o a li m esm o [...]. Em bora [Aristóteles] fosse um grande filósofo, os seus conhc- cim cntos nào lhe valeram para encon tra r a Deus"24.

Em 1550. leve lugar um célcbrc debate en tre Las Casas c Juan Ginés dc Sepulveda, o filósofo c teólogo que defendia pu ­blicam ente o uso d a força na conquista dos nativos. Um estu ­dioso denom inou esse debate "exemplo único de um poder im ­perial que questiona abertam ente a legitim idade dos seus direi­tos c os fundam entos óticos de sua a tuação política"2*. Ambos os contendores defendiam a atividade m issionária en tre os na­tivos c desejavam ganhá-los para a Igreja, m as Las Casas insis­tia cm que esse processo devia o co rre r pacificam cntc. Sepúlvc- da. po r sua ve/., nüo afirm ava que os espanhóis tivessem o d i­reito dc conquistar os povos nativos sim plesm ente po r serem pagàos. m as argum entava que o baixo nível de civilização e os costum es bárbaros desses povos eram um obstácu lo para a sua conversão e que. portan to , e ra necessário algum tipo dc tutela para que sc pudesse levar a cabo com succsso o processo dc evangelização. T inha plena consciência dc que podia scr acon­selhável nào aplicar um a política fundam entalm ente correta, po r causa das dificuldades que encon traria à hora dc scr posta em prática. Por isso. o que o preocupava nào e ra saber sc era o po rtuna a guerra contra os índios, m as a questão m ais básica dc saber sc ela sc justificava m oralm ente.

Las Casas, pelo contrário , estava abso lu tam ente convcncido de que, na prática, (ais guerras seriam desastrosas para todos os povos envolvidos e prejudiciais à difusão do Evangelho. Q ualquer especulação acadêm ica c fria sobre o tem a parccia-

(24) Eduardo Andujar, "Bartotami dc Las Casas and Juan Gints dc Sepul­veda: Moral Tlicology versus Political Philosophy*, cm Kevin While, cd.. His· panic Philosophy in the Age o f Otsetnxry, p igv 76·$.

(25) Ibid.. 87.

138 THOMAS E. WOODS JR.

•Ihc “irresponsável, frívola c chocante"2*. Dada a fragilidade da natureza hum ana, considerava que legitim ar o uso da força contra os nativos seria a b r ir a porta a um a sucessão dc conse­qüências negativas, c sustentava, po rtan to , que o u so de qual· quer form a dc coerção c ra m oralm ente inaceitável. Excluía a coerção tan to para com pelir à fé com o para ten ta r c ria r um am biente pacífico cm to m o do trabalho dos m issionários, coi­sa que Sepúlveda teria adm itido.

Vitória, por sua vez, achava legítim o o uso da força contra os nativos cm alguns casos, com o po r exem plo para livrá-los dc algum as práticas bárbaras da sua própria cu ltu ra27. Para Las Casas, essa concessão não levava cm conta as paixões c a cobiça dos hom ens, que por essa brecha certam ente sc senti­riam autorizados a em preender um a guerra potencialm ente sem lim ites, c nesse sen tido acusou Sepúlveda de "causar es­cândalo e encorajar hom ens dc tendências violentas”28. Pensa· va que a infinidade de efeitos negativos das guerras, previstos ou não, pesava m uito m ais do que o efeito positivo dc a judar as tribos oprim idas pelos seus vizinhos; aliás, esse é um ponto que os m odernos críticos das intervenções m ilitares a titulo hum anitário continuam a subscrever nos nossos d ias* .

“Para pô r um fim a toda a violência contra os índ ios - es­creve um historiador atual Las Casas linha de m ostra r que, por um a razão ou p o r ou tra , toda a guerra con tra eles e ra in­ju sta”. Por isso, desenvolveu um im enso esforço para desfazer todo c qualquer argum ento que. em bora lim itasse a guerra , pu­desse no en tan to deixá-la em aberto com o um a opção líc ita10. Além disso, estava convencido de que tais m edidas "pacificado­ras" prejudicariam certam ente o esforço m issionário, um a vez que a presença dc hom ens arm ados, p o r m ais lim itada que fos-

(26) Rafael Alvira arxl Alfredo Cruz. T lic Controversy Between Las Casas and Sepúlveda ai Valladolid", em Kevin White, ed.. Hispanic Phihsopfty m the Age o f Discovery, pá*. 93.

(27) Concrctamcme os sacrifícios humanos que alguns dos povos america­nos praticavam numa escala assustadora, c que hormri/aram profundamente os espanhóis (N. do E.).

(28) Rafael Alvira and Alfredo Crux. T h e Controversy Between Las Casat and Sepulveda at Valladolid*, pág. 93.

(29) Ibid.. pág. 95.(30) Ibid.. págs. 92-93.

VII. AS ORIGENS DO DIREITO INTERNACIONAL 139

sc, p red isporia o ân im o c a m ente dos nativos con tra qualquer m em bro do contingente invasor, incluídos os m issionários3’. Os m issionários realizariam um bom trabalho só "com pala­vras am áveis e divinas, c com exem plos e obras de vidas san- tas"u . Estava convencido de que os nativos poderiam fazer parte da civilização c ristã através de um esforço persistente e sincero, c dc que a escravatura ou ou tras coerções eram nâo só injustas, m as contraproducentes. Só um a in teração pacífica po­deria assegurar a sinceridade dc coração daqueles que optas­sem p o r converter-se.

E ntre escrever, p regar e prom over agitações políticas. Las Casas dedicou m eio século a trab a lh ar cm benefício dos nati­vos, p rocurando refo rm ar o tra tam en to que recebiam c lu tan­do con tra o abusivo sistem a da encontienda. Foi aqui que iden­tificou um a im portan te fonte dc injustiça na conduta dos espa­nhóis no Novo M undo. Jurid icam ente, encomendero era um hom em a quem sc "confiava" (encomendaba) um grupo de ín ­dios para que os protegesse c provesse à sua educação religio­sa. Em con trapartida, os nativos confiados a ele deviam pa­gar-lhe um tributo. A encontienda nâo supunha originalm ente um a outorga de soberania política sobre os nativos, m as, na prática, e ra o que acontecia freqüentem ente, c o tribu to era cobrado m uitas vezes cm form a de trabalhos forçados. Tcn- do-lhc sido atribu ída, certa feita, um a encontienda, o próprio Las Casas conheceu em prim eira m ão os abusos c injustiças do sistem a, c trabalhou para pór-lhe um ponto final, se bem que com pouco sucesso. Em 1564, refletindo sobre as suas dé­cadas dc trabalho com o defensor dos indígenas, escreveu no seu testam ento:

"Na sua bondade c clem ência, Deus dignou-sc cscolhcr- -mc com o seu m inistro , em bora indigno, para defender to ­dos aqueles povos indígenas, possuidores de reinos c ter­ras, contra as injustiças c injúrias nunca an tes vistas ou ouvidas, com ctidas pelos nossos espanhóis [...], c para lhes

(31) Eduardo Andüjar, 'Bartolomé dc Las Ca*as and Juan Ginés dc Scpúl* vvda’. pág. 84.

(32) VcnaiKio Carro. T h e Spanish Thcological-Juridical Renaissance and the Theology of Bartolomé dc Ias Ca-sa-s", pág. 275.

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restitu ir a prim itiva liberdade, da qual foram in justam ente privados Trabalhei na Corte dos reis dc Castela desde 1514, indo c vindo m uitas vezes das índ ias para Castela c dc Castela para as Índias, po r cerca de cinqüenta anos. só po r Deus c pela com paixão dc ver pcrcccr tais m ultidões dc hom ens racionais, serviçais, hum ildes, scrcs hum anos de g rande docilidade e sim plicidade, bem dotados para rece­ber a nossa fé católica [...] e para ser prendados com os bons costum es" w.

Hoje em dia. Las Casas é considerado quase um santo cm g rande parte da América Latina c con tinua a sc r adm irado lan to pela sua coragem com o pelo seu á rduo trabalho. A sua fé, que lhe ensinou haver um único código m oral para todos os hom ens, perm itiu-lhe ju lgar a conduta da sua própria socie­dade, o que não é pouca coisa. Os seus argum entos, escreve o professor Lewis Hanke. "deram forças a todos aqueles que, no seu tem po c nos séculos seguintes, trabalharam persuadidos dc que todas as pessoas do m undo são seres hum anos, com as ca­pacidades c as responsabilidades próprias dos hom ens"

DIREITO INTERNACIONAL VERSUS ESTADO MODERNO

Até agora falam os dos prim órd ios do direito internacional, de norm as destinadas a d iscip linar as rclaçôcs en tre os Esta· dos. Mas ficava por resolver o problem a da sua aplicação. A solução desse problem a foi deixada m ais ou m enos cm aberto pelos teólogos espanhóis*5. A resposta dc Vitória parecia vincu· lada à idéia dc guerra justa; isto é: sc um Estado violasse as norm as do d ireito internacional no seu re lacionam ento com

(33) Cit. cm Cari Warner. “All Mankind Is One”, págs. 303-4.(34) Lewis Hanke. Bartolomé de Ims Casas: An interpretation o f His Life

and Writings, Martinu:. Nijhoif. The Hague, 1951. pág. 87.(35) Gfr. Cartes C. NoreAa. ‘Francisco Suárez on Democracy and Interna­

tional Law", cm Kevin White, ed.. Hispanic Philosophy in the Age o f Discowrv, pág. 271.

VU. AS ORIGENS DO DIREITO INTERNACIONAL (4 !

o u tro Estado, cstc ú ltim o teria m otivos para em preender um a guerra ju sta contra aque le56.

Não podem os asseverar sem m ais que os teólogos espa­nhóis teriam apoiado um a institu ição análoga ã O rganização das Nações Unidas. R ecordem os qual e ra o problem a original que um sistem a dc leis in ternacionais visava solucionar. Segun­do Thom as Hobbcs, o filósofo britân ico do século XVII, sem um governo capaz de funcionar com o um árb itro com poder sobre todos os hom ens, a sociedade hum ana estaria condenada a um a situação dc caos e dc guerra civil. No seu entender, a criação dc um governo cuja função prim ária fosse m an ter a o r­dem e im por a obediência às leis seria o ún ico m ecanism o ca­paz de ev itar a insegurança e a desordem crônicas do assim cham ado estado dc natureza. Como se tem apontado, o que ele disse dos indivíduos c dos governos nacionais, poder-se-ia ap li­car igualm ente às nações en tre si; a m enos que sc estabelecesse um ente soberano que as governasse, inevitavelmente teria de dar-se en tre elas o m esm o tipo dc conflitos c desordens que existiria en tre os cidadãos na ausência dc um governo civil.

M as o estabelecim ento dc um governo, na realidade, nâo resolve o problem a descrito po r Hobbcs; sim plesm ente o tran s­fere para o u tro nível. Um governo pode im por a paz e prevenir a in justiça en tre as pessoas que lhe estão subm etidas, m as isso não im pede que exerça violência contra os governados. Seria necessária, portan to , a existência de um á rb itro que estivesse acim a tan to dos governados com o do próprio governo.

No en tan to , sc o governo possui a autoridade soberana que Hobbcs recom cnda, isso quer d izer que é ele que tem a últim a palavra sobre o alcance dos seus próprios poderes, sobre o ju s ­to c o injusto, c a té sobre a solução das disputas en tre os cida­dãos individuais e ele próprio. M esmo que Hobbcs acreditasse na dem ocracia, teria de reconhecer que um a sim ples votação é incapaz dc conter os abusos dc autoridade. Por o u tro lado. sc sc estabelecesse um poder superior ao do governo para conter os abusos dc au toridade desse m esm o governo, estaríam os apenas transferindo o problem a para um nível superior; quem contro laria essa au toridade?

(36) José A. Fcmánòcz-Santamaría. Tfte State. War and Peace, pág. 62.

142 THOMAS E. WOODS JR.

Esse é o problem a que envolvo a idéia dc um a instituição internacional com poderes coercitivos no âm bito do dire ito in* tcm acional. Os defensores dessa idéia afirm am que semelhar»· te au toridade tiraria as nações do estado de natureza hobbe- siano cm que sc encontram . No en tan to , m esm o com a cria· ção dessa au toridade, subsistiria o problem a da insegurança: que poder seria capaz dc con tro la r essa au toridade supra-na- cional?

A coercitividadc do direito in ternacional não é, pois, um as· sunto sim ples, c o estabelecim ento de um a instituição global com essa finalidade só transfere o problem a hobbcsiano, cm vez dc resolvô-lo. Não deixa dc haver o u tras opções: afinal, as nações européias conseguiram observar as regras da assim cham ada guerra civilizada du ran te os do is séculos que se se* guiram à G uerra dos T rin ta Anos (1618-1648). p o r m edo dc se­rem lançadas num ostracism o internacional.

Sejam quais forem as dificuldades práticas da capacidade de cocrçào, a idéia do dire ito internacional, nascida da d iscus­são filosófica levantada pela descoberta da América, foi extre- m am ente im portante. M ostrava que cada nação nâo é um uni­verso m oral fechado cm si m esm o, m as tem o seu com porta­m ento subm etido a princípios básicos. Por ou tras palavras, o Estado não é m oralm ente autônom o.

No princíp io do século XVI, N icolau Maquiavel prognosti­cou. no seu pequeno livro O Príncipe (1513), o advento do Estado m oderno. Para ele, o Estado era um a instituição moral· m ente au tónom a, cujo com portam ento , em benefício da sua própria preservação, nâo deveria ser julgado po r parâm etros externos, fossem eles os decretos de um Papa ou qualquer ou· tro código dc princípios m orais. Nào é de e stranhar que a Igre­ja tivesse condenado severam ente a filosofia política dc Ma­quiavel: foi precisam ente essa a visão que os grandes teólogos católicos espanhóis rejeitaram tão enfaticam ente. No en tendi­m ento deles, o E stado devia, na realidade, sc r julgado confor­me princípios externos a si próprio e não podia ag ir com base na sua conveniência ou benefício.

Em sum a. os teólogos espanhóis do século XVI subm ete­ram a um escrupuloso exam e a condu ta da sua própria civili­zação e ju lgaram -na deficiente. P ropugnaram que, cm m atéria dc direito natural, os ou tros povos do m undo eram iguais ao

VII. AS ORIGKNS DO DIREITO INTERNACIONAL 143

seu e que as com unidades dc povos pagãos tinham direito ao m esm o tra tam en to que as nações da E uropa cristã.

É necessário sub linhar com o algo m uito notável o fato de esses teólogos terem proporcionado à civilização ocidental as ferram entas filosóficas necessárias para sc ap rox im ar dos po­vos não-ocidcntais com um esp írito de igualdade. Essa im par­cialidade não brotou do contacto com as cu ltu ras indígenas am ericanas. Como explica o h isto riado r de H arvard Sam uel Eliot M orison, "os índios, m esm o os de um a m esm a região ou grupo lingüístico, nem sequer tinham um nom e com um para eles próprios. Cada tribo designava-se a si p rópria com algo parecido com o «nós, o povo», e se referia aos vizinhos com um a palavra que significava «bárbaros», «filhos dc um a cade­la» ou ou tra expressão igualm ente insu ltuosa”37.

No m eio de um chauvinism o tão estreito , não poderia en­c o n tra r terreno fértil a idéia de um ordenam ento in ternacional que estabelecesse um princípio de igualdade en tre Estados grandes c pequenos, com diversos níveis dc civilização e refi­nam ento. Coube aos teólogos espanhóis do século XVI o m éri­to dc terem insistido - com base na concepção católica da u n i­dade fundam entai d a raça hum ana - nos princípios universais que devem governar as relações en tre os Estados. Sc c ritica­mos os excessos espanhóis no Novo M undo, é porque foram os teólogos espanhóis que nos proporcionaram os instrum entos m orais para condenar esses excessos.

O rom ancista peruano M ario Vargas Llosa colocou cm um a perspectiva sem elhante a relação dos europeus com os nativos do Novo M undo:

“O padre Las Casas foi o m ais ativo, a inda que não o único, dos não-conform istas que se rebelaram contra os abusos infligidos aos índios. Esses hom ens lu taram contra o s seus com patrio tas c contra as políticas dos seus p ró ­prios países em nom e de princíp ios m orais que. para eles, estavam acim a dos princípios dc nação ou Estado. Essa a u ­todeterm inação não teria sido possível en tre os incas ou

(37) Samuel Eliot Morison. TJie Oxford llistory o f the American Peoplt, vol. I: Pnhisiory to 1789. Mcridian. New York, 1994 [>965). pàg. 40.

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em qualquer ou tra cu ltu ra pré-hispãnica. N essas culturas, assim com o cm o u tras grandes civilizações d a H istória nas­cidas fora do O cidcntc. o indivíduo não podia questionar m oralm ente o o rganism o social de que fazia parte , porque existia un icam ente com o um á tom o den tro desse organis­m o e porque, para ele. os d itam es do E stado não sc dis­sociavam da m oralidade. A p rim eira cu ltu ra a interrogar-sc c questionar-se a si m esm a, a prim eira a sep arar as massas cm seres individuais que foram ganhando gradualm ente o direito de pensar c ag ir po r si próprios, veio a convcrtcr-se, graças a essa dcsconhccida p rática cham ada liberdade, na civilização m ais poderosa do nosso m undo”1*.

N enhum a pessoa séria negará as injustiças com etidas na conquista d o Novo M undo, c já naquela época os sacerdotes as re la taram c condenaram . Mas é lógico que gostaríam os de do u rar a pílula, dc en co n tra r algum a atenuan te para a tragédia dem ográfica que sc abateu sobre os povos do Novo M undo du ­ran te a e ra dos D escobrim entos. E essa a tenuan te foi o fato de que o encon tro en tre esses povos proporcionou um a ocasião especialm ente opo rtuna para que os m oralistas discutissem c desenvolvessem os princíp ios fundam entais que devem gover­n a r o relacionam ento en tre os povos39. Como H ankc conclui accrtadam cntc , “os ideais que alguns espanhóis puseram cm prática q u ando descortinaram o Novo M undo não perderão o seu g rande brilho enquan to os hom ens acred itarem que os ou­tros povos têm o direito dc viver, que é possível en co n tra r mé­todos ju sto s para conduzir as relações en tre os povos c, essen­cialm ente, que todas as pessoas do m undo são homens**40. Es­tas são as idéias com as quais o O cidente sc identificou po r sé­culos c que nos chcgaram diretam ente através do autên tico pensam ento católico. Aqui tem os o u tro pilar da civilização oci- den tal constru ído pela Igreja.

(38) Citado em Robert C. Royal. Columbus On Trial: 1492 v. 1992. 2* cd.. Young America'* Foundation. Herndon, Virginia. 1993, págs. 23-4.

(39) Cír. C. Brown, 'O ld World v. New: Culture Shock in 1492". Peninsula [Harvard], m i. 1992. II.

(40) Lewis Hankc. The Spanish Struggle for Justice in the Conquest o f Ame­rica. pigs. 178-9.

VIII. A IGREJA E A

ECONOMIA

H abitualm ente, com eça-se a co n ta r a história do pensa­m ento econôm ico a p a rtir dc Adam Sm ith c de ou tros pensa­dores do século XVIII. Os próprios católicos, particu larm ente os hostis à econom ia dc m ercado, tam bém tendem a identifi­ca r os princípios c a visâo da econom ia m oderna com os pen­sadores do Ilum inism o. No en tan to , os m edievais c os últim os com entaristas escolásticos en tenderam c teorizaram sobre a li- YTC econom ia seguindo roteiros que sc revelaram profunda­m ente fecundos para o desenvolvim ento de um sadio pensa­m ento econôm ico no Ocidente. A econom ia m odem a constitui, portan to , o u tra á rea na qual, até há pouco, a influência católi­ca v inha sendo freqüentem ente obscurecida ou negligenciada. A verdade é que hoje com eça-sc a reconhecer os católicos co­m o os seus fundadores.

OS FUNDADORES DA CIÊNCIA ECONÔMICA

Joscph Schum peler, um dos grandes econom istas do século XX, na sua História da análise econômica (1954), prestou ho ­m enagem às m enosprezadas contribuições dos escolásticos. "Foram eles - escreveu - , m ais do que qualquer o u tro grupo.

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os que chegaram mais pe ito de ser os fundadores d a cienciaj econôm ica“ 1. Ao nom e dc Schum pctcr, poderíam os acrescentar o de ou tros estudiosos dc prestigio, com o Ravmond de Roover M arjorie Grice-Hutchinson e Alcjandro C hafucn2.

M urray N. R othbard, o u tro grande econom ista do século XX, dedicou um longo capitulo da sua aclam ada história do pensam ento econôm ico às reflexões dos escolásticos, que ai· cançaram o cum e na Escola austríaca de econom ia, um a esco-j la do pensam ento económ ico que sc desenvolveu cm fins d o j século XIX e que continua viva nos d ias atuais. (Esta Escola pode gloriar-se de um a série de brilhantes econom istas, desde Cari M enger até Eugen von Bòhm-Bawerk e Ludwig von Mi- ses. Um dos seus m em bros m ais destacados, F.A. Hayek. ga­nhou o Prêm io Nobcl dc econom ia cm 1974).

Mas an tes de exam inarm os o trabalho dos últim os cscoiái ticos, devem os considerar as contribuições, freqüentem ente Ig­noradas, de estudiosos católicos ainda m ais antigos. Jcan Bitri· dan (1300-1358), po r exemplo, que foi re ito r da Universidade de Paris, trouxe im portantes novidades à m oderna teoria mo* nctária. Em ve/, dc encarar o dinheiro com o um produlo artifi­cial, fru to da intervenção do Estado. B uridan dem onstrou quei o dinheiro surgiu livre e espontaneam ente no mercado, prim ei· ro com o um a m ercadoria útil c depois com o m eio dc trocai Por ou tras palavras, o d inheiro nào surgiu po r um decreto go·' vcm am ental. m as com o m eio dc sim plificar as trocas: tra ta ­

(1) Joseph A. Schumpctcr. History o f Economic Analysis. Oxford Univ sity Press. New York. 1954. pig. 97.

(2) Veja-se Raymond de Roover. "The Conccpi of the Just Price: Thcoiy J and Economic Policy*. Journal o f Economic History 18 (1958). pigs. 418-34, Id.. 'Business, Banking, and Economic Thought in Laic Medieval and Modern Europe', cm Julius Kir*hncr. cd., Selected Studies o f Raymond de Roover venóty of Chicago Press, Chicago. 1974. pigs. 306^5; Alcjandro A. Chafucn, Faith and IJberty: The Economic Thought o f the l/ite Scholastics, Ixxingion, Lanham, .Maivkmd. 2003; Marjorie Cricc-llutchinM>n, The School o f Salam ca: Headings in Spanish Monetary Theory, 1544-/605, Clarendon Press. Oxford, 1952: id.. Early Economic Thought in Spain. 1177-1740, George Allen A U Londres. 1978: Joseph A. Schumpctcr. History o f Economic Analysis'. Murray N. Rothbard. An Austrian Perspective on the History o f Economic Thought, vol.I: Economic Thought Before Adam Smith, Edward Elgar. Hants. England. 1995. pigs. 99-133.

va-sc de encon tra r um a ‘‘m ercadoria '' que pudesse se r desejada c adolada utilm ente po r todos3.

E ssa "m ercadoria" am plam ente desejada devia, po r conse­guinte. se r adolada an tes dc mais nada cm função du sua ca­pacidade dc satisfazer necessidades não m onetárias. Devia tam bém possuir certas características im portantes: devia scr facilm ente manuscávcl e divisível, alem dc durável, c possuir um alto valor po r unidade dc peso, dc tal m odo que um a pe­quena quantidade dela tivesse valor suficiente para facilitar p raticam ente iodas as transações. ‘‘Nesse sentido - escreve um especialista - , B uridan deu início à classificação das qualida­des m onetárias dos produtos, que viria a ser tem a do prim eiro capitulo dos m anuais sobre o dinheiro e os bancos a té o fim da e ra do padrão-ouro. na década dc 1930MJ.

Nicolau Oresme {1325-1382), bispo dc Lisieux, discípulo de Buridan, deu um a im portante contribu ição ã teoria m onetária. Polifacético experl em m atem ática, astronom ia e física, escre­veu Um tratado sobre a origem, natureza e transformações do dinheiro . que foi considerado “um m arco da ciência m onetá­ria". pois "fixou padrões que nào seriam superados cm m uitos séculos e m esm o hoje. sob certos aspectos". Tam bém foi cha­m ado "o pai e fundador da ciência m onetária"5.

Foi ele o prim eiro a afirm ar o principio que m ais tarde vi­ria a tom ar-se conhecido com o Ma lei de Grcsham". IX* acordo com ela, se duas m oedas cocxislcm na m esm a econom ia, c o governo fixa para um a e outra um valor que diverge do que poderiam alcançar no m ercado livre, a moeda que o governo supervalorizou artificialm ente levará esse m esmo governo a ti­rar dc circulação a desvalorizada. Por isso, Orcsm c sustentou que “sc o valor das m oedas fixado legalm ente difere do valor dc m ercado dos metais, a moeda subvalorizada desaparecerá

VIU. A IGRKJA G A ECONOMIA 147

(3) Murray N. Rothbard, Am Austrian Perspective on the History o f hxoiio- inic Thought, vol. I. págs. ?3*74. Ludwig von Míve». o grande <xonomista do secuk» XX. demonstrou que o dinheiro nasceu desse modo.

(4) Ibid.. pág. 74; vcja-sc também Thomas K. Wtxxls. The Church and the Maiket: A Catholic Defense <>f the Free ticottaniy. págs. 87-89. 93.

(5) JOrg Guido Hulsmann. “Nicholas Orcsnkr and lhe Fm>i MontfJ.iry Tn»· UM.·“. 09.05.2004. http^/wNw.miscs.or¥/fu!lslor>-.axpx?control«l5l6.

148 THOMAS E. WOODS JR.

totalm ente da circulação c perm anecerá com o única m oeda a que está supcrvalorizada”*.

Com efeito. é o que aconteceria hoje sc o governo declaras­se que trôs quartos de dó lar devem scr lidos com o equivalentes a um a nota de um dólar. As pessoas deixariam im ediatam ente dc u sar as no tas dc um d ó lar c quereriam fazer os seus paga­m entos com os quartos dc dó lar artificialm ente valorizados. As notas desapareceriam dc circulação.

Oresm e com preendeu tam bém os perniciosos efeitos da in­flação. Explicou que a perda dc valor da unidade m onetária decretada pelo governo não contribui para a solidez da ccono· mia. pois interfere no com ércio c provoca um a alta geral dc preços, além de enriquecer o governo à custa do povo. Sugeriu que o ideal seria que o governo nunca interferisse no sistem a m onetário7.

Os últim os escolásticos partilharam desse ponto dc vista sobre a econom ia m onetária. Observaram que houve na Espa· nha do século XVI um a clara relação de causa c efeito en tre a afluência dos m etais preciosos do Novo M undo c a forte infla­ção dc preços. E chegaram à conclusão m ais geral - po r assim dizer, a um a lei econôm ica - de que a excessiva abundância dc qualquer m ercadoria tenderia a trazer consigo um decréscim o} no seu preço. Naquilo que foi descrito po r alguns estudiosos 1 com o a prim eira form ulação da teoria quantitativa do dinhei- 1 ro. o teólogo escolástico Martin de Azpiicueta (1493-1586) es­creveu:

(6) Murray N. Rothbard. An Austrian /Voprc/n* oti iht History o f Econo* tnic Thought, vol. t. pág. 76.

O raciocínio dc Orcsmc era assim: suponhamos que as duas moeda» se* jam o ouro e a praia c que, no mercado, dc«sscÍK onças dc praia lôm o mes­mo valor que uma onça dc ouro. Suponhamos ainda que o governo cMabcleç» , uma equivalência legal dc IS para 1. dc tal modo que a.\ pcs&oas sejam força­das a tratar quinze onças dc prata c uma onça dc ouro como sc tivessem igual valor. Essa razáo. logicamente, supcrvaloriza a prata, já que. dc acordo com o valor dc mcrcado dos dois metais, dc/csscis moedas de prata cquivaJcm a unia dc ouro. Mas o governo, com a Mia razão dc IS pant I. está di/endo ao públi­co que d o . podem pagar dívidas contraídas ent moeda* dc ouro a uma razAo dc apenas quinze moedas dc prata por uma moeda dc ouro cm vez das dc/cs* seis que a avaliaçAo do mcrcado requereria. Como tcsultado. a» pcvsoas come· çaráo a fugir do ouro c a fa/cr os seus pagamento* cm praia.

(7) Jòry Cuido Hulsmann, 'Nicholas Orrsmc and lhe First Monetary Tira-

VIU. A IGREJA E A ECONOMIA 149

“Em países onde há um a grande escassez dc dinheiro, iodas as m ercadorias disponíveis para venda, m esm o que sejam equivalentes, e até a própria m ão de obra hum ana, são oferecidas po r m enos dinheiro do que em lugares onde ele é abundante. Assim, vemos po r experiência que, na França, onde o dinheiro é m ais escasso do que na Espa­nha. o pão, o vinho, as roupas e o trabalho tem um valor m uito m enor. E, m esm o na própria Espanha, em épocas em que o dinheiro era mais escasso, as m ercadorias dispo­níveis para venda e o trabalho custavam m uito m enos do que depois da descoberta das índias, que inundou o pais d e ouro c prata. A razáo disso é que o dinheiro vale mais onde c quando é escasso do que onde e quando é abundan ­te. A observação de que, com o dizem alguns, a escassez dc dinheiro reduz o preço dos ou tros produtos, tem a sua o ri­gem na circunstância de que a excessiva valorização do d i­nheiro faz com que as ou tras coisas pareçam baratas; é com o acontece quando um hom em baixo $e coloca ao lado de ou tro m uito alto: parece m enor do que quando se colo­ca ao lado dc um hom em da sua m esm a e sta tu ra”*.

O utro trabalho im portante no cam po da teoria econôm ica foi o do cardeal Thomas de Vio. cham ado Caietano (1468- -1534), um eclesiástico ex traordinariam ente influente que. en ­tre ou tras coisas, tinha en trado em discussão com M artinho Lutero acerca da au toridade pontifícia, fazendo-o cair em con­tradição®. No seu tra tado De cambiis, dc 1499. em que procu­rou defender o com ércio exterior do ponto de vista moral. Caietano tam bém fez n o ta r que o valor do dinheiro no presente

(8) Akjandro A. Chafucn, Failh and hbcrty, pág. 62.(9) Lutero rejeitou a doulrina dc que - ao dar ao ApóMolo Pedro as cha­

ves do reino dos céus (cfr. Ml 16. 18) - Cristo tivesse investido os sucessores dc Pedro na autoridade dc ensinar c governar o mundo cristio. Mas Caietano demonstrou que. cm um versículo paralelo do Velho Testamento (Is 22, 22), ctmhém sc usou o simbolismo da chave c que a chave era efetivamente um simbolo da autoridade que seria transmitida aos sucessores.

Pai.) uma boa visão geral dessa imagem da chave na Bíblia, c particular- mente da passagem de Mt 16, 18. frequentemente contestada, veja-se Stanley !. Jaki. The Ktxs o f the Ktngdotn: A Toot's Wiintxs lo Tntth. Franciscan Herald Press. Chicago! Illinois. 1986.

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podia se r afetado pelas expectativas da situação d» m ercado no futuro: tan to pela expectativa dc acontecim entos prejudi­ciais e danosos - que podiam ir desde as fracas colheitas a té a guerra - com o pela expectativa dc m udanças no volume dc d i­nheiro cm circulação. Desse modo. escreve M urray Tothhard, "o cardeal Caiclano, um príncipe da Igreja do século XVI, pode ser considerado o fundador da teoria das expectativas na econom ia"l0.

A TEORIA 1)0 VALOR SUBJKTIVO

E ntre os mais decisivos c im portan tes princípios econôm i­cos desenvolvidos c am adurecidos com a ajuda dos ú ltim os es­colásticos c dos seus im ediatos predecessores, encontra-se a teoria do valor subjetivo. Baseados em parte nas suas próprias análises e em parte inspirados nos com entários dc S anto Agos­tinho na sua obra A cidade de Deus, esses pensadores católicos susten taram que o valor nâo deriva de fatores objetivos, com o o custo da produção ou o volume dc trabalho nela em pregada, m as da avaliação subjetiva dos indivíduos.

O frade franciscano Pierre de Jean Olivi (1248-1298) foi o p rim eiro a propor essa teoria. Sustentava que “o preço justo" dc um bem resultava da avaliação subjetiva que os indivíduos fizessem desse bem, da m edida cm que o considerassem útil e desejável para eles. Mais propriam ente, surgia da in teração en ­tre com pradores c vendedores no m ercado, m anifestada pelo p róprio a to de com prar ou abster-sc de com prar determ inada m ercadoria por determ inado p reço " . Um século c m eio mais tarde, Sâo B crnardino de Sena, um dos m aiores pensadores em m atéria econôm ica da Idade Média, adotou a teoria do va­lor subjetivo de Olivi. p raticam ente palavra po r palavra11. Q uem im aginaria que essa teoria proveio de um frade francis­cano do século XIII?

(10) Murrav N. Rnthbani. An Austrian Penprctívt on th< Hiuory o f t-xouo- mie Thtmgfrt. vol. 1. pág&.IOO-l.

O !) Ibid.. págs. 60·!.(12) Ibid.. pág. 62

VIM. A IGREJA E A ECONOMIA 151

Os últim os escolásticos adotaram tam bém essa posição. Como escreveu Luis Saravía dc la Caile, no século XVI:

“Aqueles que m edem o ju sto preço pelo trabalho , custos e riscos que corre a pessoa que com ercia ou produz um a m ercadoria, ou pelo custo do transporte c despesas dc via­gem {...], ou pelo que o fabricante tem dc pagar pela pro­dução. riscos c m âo dc obra, com etem um grande erro, e e rro ainda m aior com etem aqueles que adm item um lucro de vinte ou dez po r cento. Porque o ju sto preço tem origem na abundância ou escassez das m ercadorias, com erciantes c dinheiro c nâo nos custos, trabalho e risco. Sc tivés­sem os dc tom ar em consideração o trabalho c o risco para avaliar o ju sto preço, nenhum com erciante jam ais sofreria perdas, nem sc levaria em conta a abundância ou escassez de m ercadorias. Os preços nào sáo norm alm ente fixados com base nos custos. Por que um fardo de linho, trazido por via terrestre da Inglaterra com grande dispêndio, há de valer m ais que um transportado por m ar. com um gasto bem m enor? Por que um livro escrito a m âo há de valer m ais que um im presso, quando este últim o tem os seus custos de produção m ais bem planejados? O ju sto preço nào depende dos custos, mas de com o sc avalia geralm ente um bem ",,.

£ o cardeal jesu íta Juan de Lugo (1583-1660) corroborou essa teoria com argum entos próprios:

"Os preços nào variam de acordo com a perfeição in­trínseca c substancial dos artigos - um a vez que os ratos sáo m ais perfeitos que o milho e, m esm o assim , valem m e­nos mas em função da sua utilidade para as necessidades hum anas c. por conseguinte, em função do apreço que se tem por eles: cm um a casa. as jó ias sâo m uito m enos úteis que o milho c. m esm o assim , o seu preço é m uito mais alto. E devem os levar cm conta nâo apenas a apreciação

(13) Cil. pur Murray N. Rothbard. 'New Light on the PrchiNtorv of ihc Austrian School*, cm Edwin G. Doian. cd . The Ftmttdarioits o f Modem Au$· Irian ficottoniKs, Sbccd & Waid, Kansas City, 1976. päg. 55.

152 THOMAS E. WOODS JR.

dos hom ens prudentes, m as tam bém a dos im prudentes, caso eles sejam suficientem ente num erosos cm um lugar. É por isso que. na Etiópia, as nossas bijuterias sào trocadas equitativam ente po r ouro, porque sâo com um cnte m ais es* tim adas ali. E, en tre os japoneses, objetos antigos feitos dc ferro e cerâm ica, que nào vaiem nada para nós. alcançam um alto preço por causa da sua antigüidade. A estim a que sc tem por um bem, m esm o quando insensata, eleva-lhe o preço natural, um a ve/, que o preço deriva da estim a que suscita. O preço natural sobe pela abundância dc compra· dores e dc dinheiro, c desce pelos fatores contrários“ 14.

Lttis de Molina (1535-1600), ou tro jesuíta, declarou igual­mente:

"O ju sto preço das m ercadorias nào é fixado dc acordo com a utilidade que o hom em vê nelas, com o sc, caeleris paribits. a natureza c a necessidade dc usá*las determ inas­sem a quantia do preço Depende dc com o cada ho­mem aprecia um a m ercadoria. Isso explica por que o justo preço dc um a pérola, que só pode ser usada com o adorno, é m ais alto que o ju sto preço de um a grande quantidade dc grâos, vinho, carne, pào ou cavalos, em bora a utilidade destas coisas (que tam bém sào dc natureza m ais nobre) seja m ais prática c superior que a utilidade de um a pérola. É po r isso que podem os concluir que o ju sto preço de um a pérola depende do valor que os hom ens lhe confiram com o enfeite” 15.

Cari M engcr, cuja obra Príttcípios da economia (1871) teve um a influência lào profunda no desenvolvim ento da econom ia m oderna (e que tem sido identificado com a tradição aristotéli- co-tom ista'*), cxplicou dc um m odo m uito p rático as im plica­

(14) Cil. por Alejandro A. Chafucn. Faith and Liberty. pág&. 84-5.(15) ibid.. pág. 84.(16) 'Kmcndc-sc mclhor Carl Mengcr no contexto do nco-cscoiasticismo

ariMotélico" (Samuel Bosiaph. "The Methodenslmt", cm Peter J. Bocltkc, cd.. Tiie Elgar Companion to Austrian Economics, Edward Elgar. Cheltenham. UK, 1994, pág. 460.

VIII. A IGREJA K A ECONOMIA 153

ções do valor subjetivo. Suponham os que o tabaco deixasse re­pentinam ente dc te r qualquer utilidade para os seres hum anos; a partir desse m om ento, já ninguém m ais o desejaria ou neces­sitaria dele para coisa algum a. Im aginem os, além disso, um a m áquina que tivesse sido projetada unicam ente para o proces­sam ento do tabaco c nâo servisse para nenhum a ou ira finalida­de. Como resultado dessa m udança do gosto das pessoas - com a perda do valor-de-uso do tabaco, com o diria M cngcr o va­lor dessa m áquina cairia igualm ente para zero. Daqui sc con­clui que o valor do tabaco nào deriva dos custos da sua produ­ção. Os fatores de produção em pregados no processam ento do tabaco tém o seu próprio valor derivado do valor subjetivo que os consum idores dão ao tabaco, que é o produto final para o qual sc em pregam esses fa tores17.

A teoria do valor subjetivo, essencial para a econom ia, nào tem nada a ver com o antropoccntrism o ou o relativism o mo­ral. A econom ia lida com a realidade c com as im plicações das escolhas hum anas. Para en tender e explicar as escolhas hum a­nas. devem-se levar em conta os valores que nelas se vécm (o que não significa, naturalm ente, aprovar esses valores). No ca­so descrito por M cngcr. isso condu/.-nos m uito sim plesm ente à lógica conclusão dc que. quando as pessoas nâo dão valor a determ inado objeto, tam bém nào dào valor aos fatores especi­ficam ente destinados a produzi-lo.

Esta teoria im plica tam bém um a refutação d ire ta da teoria do valor-irabalho, hoje associada a Karl Marx. o pai do com u­nismo. Marx nâo acreditava na moral objetiva, m as acreditava que se podia a trib u ir valores objetivos aos bens econômicos. Esse valor objetivo baseava-se no núm ero de horas de trabalho em pregadas na produção de determ inado bem. Nâo é que Marx afirm asse que o valor de um produto resulta do mero trabalho despendido: nâo disse que. sc eu passasse todo o dia colando latas vazias dc cerveja um as às ou tras, o fruto desse m eu trabalho seria ipso facto valioso: as coisas só seriam con­sideradas valiosas - adm itia Marx sc os indivíduos lhes a tri­buíssem valor dc uso. Mas, um a vez que os indivíduos atribuís-

154 THOMAS K. WOODS JR.

sem valor dc uso a um bem, o valor desse bem seria dcicrmi· nado pelo núm ero de horas dc trabalho em pregadas na sua produção

Marx deduziu da sua teoria do valor-trabalho a idéia dc que. cm um a econom ia livre, os trabalhadores eram "explora­dos" porque, sendo o seu esforço a fonte de todo o valor, o» salários que recebiam nâo refletiam plenam ente esse esforço. Para ele, os lucros retidos pelo em pregador eram totalm ente im erecidos c levavam a um a injusta apropriação daquilo que, por direito , pertencia aos trabalhadores.

Está fora do nosso propósito fazer aqui um a refutação sis­tem ática de Marx. Mas, com o auxílio d as reflexões dos últi­m os escolásticos, podem os ao m enos en tender o e rro prim ário cm que incorreu a teoria do valor-trabalho1*. Marx não eslava errado ao perceber a relação que há en tre o valor dc um bem e o valor-trabalho em pregado na produção desse bem; esse* dois elem entos estão freqüentem ente relacionados. O seu erro foi te r invertido os term os da relação causal. Um bem nâo tem o seu valor derivado do trabalho nele em pregado. É o trabalho em pregado nele que tem o seu valor derivado da m aior ou me· nor estim a que os consum idores tém pelo produto final.

Vemos assim que, quando São B cm ardino de Sena e os es­colásticos do século XV! argum entaram a favor da teoria do valor subjetivo, apontavam para um conceito econôm ico cru­cial, que, im plicitam ente, antecipou c refutou um dos maionesi erros econôm icos d a época m oderna. O próprio Adam Sm ith, conhecido pela história com o o m aior defensor do livre merca· do e da liberdade económ ica, foi bastan te am bíguo na sua cx-

(18) Deixemos dc lado alguma* das dificuldades imediatas dessa icorta, por exemplo a sua incapacidade dc explicar por que as obras dc um artista so­bem de preço após a sua morte; certamente, nâo houve nenhum trabalho adi­cional que justificasse esse aumento dc preço. A teoria do trabalho é inútil para explicar este fenômeno tào comum.

(19) Para unta refutação direta dc Marx, veja-se o esquecido clissico dc Cogcn von HohnvBawcrk, Marx a »d lhe C’tose of fhs System. TF Umvin, Londres, 1898). Podc-»c cncomrar cm George Reisman (Capitalisnt. Jamcson Hooks, Ottawa. Illinois. 1996) uma rtplica ainda mais forte c essencial accrca do erro dc Marx cm nâo levar cm conta a teoria do valor subjetivo. As rcsian· tes obras indicadas nestas Notas, podemse ver aryumcntos suplementares que mostram por que as idéias dc Marx sobre a exploração do trabalho eram cs· sciKialmentc infundadas

VIII. A IGREJA K A KCONOMIA 155

posição da (coria do valor, a ponto dc le r deixado a im pressão dc que os bens tem o seu valor derivado do irabalho em prega­do na sua produção. Rothbard foi m ais longe c chcgou a suge­rir que a teoria do valor-trabalho form ulada por Sm ith no sé­culo XVIII alim entou a teoria dc Marx no século seguinte, c que a econom ia - para não dizer o m undo com o um todo - le­ria corrido m uito m elhor sorte sc o pensam ento econôm ico ti­vesse perm anecido fiel à teoria do valor exposta pelos pensado­res católicos aqui referidos. Os econom istas franceses c italia­nos, influenciados pelos escolásticos, m antiveram dc m odo ge­ral a posição correta; foram os econom istas ingleses que sc desviaram tão tragicam ente para as tinhas de pensam ento que cu lm inaram cm Marx.

CATÓLICOS E PROTESTANTES

Uma pesquisa sobre a influencia d o pensam ento católico no desenvolvim ento da ciência económ ica não pode deixar de lado as contribuições de Hmil Kauder. K audcr elaborou um a vasta obra dc conjunto, na qual procurou descobrir, en tre ou- iras coisas, por que a (correta) teoria do valor subjetivo sc de­senvolveu c floresceu en tre os pensadores católicos, franceses ou italianos, enquanto a (incorreta) teoria do valor-trabalho exerceu tan ta influência nos pensadores protestantes, sobretu­do anglo-saxòcs.

Na su a obra Uma história da teoria da utilidade marginal (1965). sugeriu que a solução para esse qucbra-cabcça podia ser encontrada na im portância que um pro testante dc inteli­gência tào excepcional com o Calvino atribu iu ao trabalho. Para Calvino, o trabalho - fosse de que natureza fosse - goza­va de um a aprovação divina c era um cam po decisivo para que o hom em pudesse d a r glória a Deus. Essa idéia levou os pensadores dos países protestantes a enfatizar o trabalho com o elem ento determ inante do valor. "Q ualquer filósofo so­cial ou econom ista exposto ao calvinism o - explicou K auder - será ten tado a d a r ao trabalho um papel de destaque na sua teoria social ou econôm ica; e nâo se pode encon tra r m elhor m odo dc exaltar o irabalho do que pela com binação do trab a­lho com a teoria do valor, tradicionalm ente a verdadeira base

156 THOMAS E. WOODS JR.

de um sistem a econôm ico. Deste modo, o valor to rna-se o va- lor-trabalho’’20.

Dc acordo com Kaudcr, observava-se essa tendência cm pensadores com o John Lockc c Adam Sm ith. que, nos seus es­critos, puseram grande ênfase no trabalho, em bora as suas con ­cepções fossem m ais propriam ente deístas cm sentido am plo do que protestantes*1. Esses pensadores absorveram as idéias cal- vinistas que dom inaram o seu m eio cu ltural. Sm ith, po r exem ­plo. sem pre sim patizou com o p resb iterian ism o (que era um calvinism o organizado), c essa sim patia bem pode explicar a ênfase que pôs no trabalho com o fator determ inante do valor” .

Os países católicos, porém , profundam ente influenciados pela linha dc pensam ento aristotélica c tom ista, não sen tiram a m esm a a tração pela teoria do valor-trabalho. Aristóteles e São Tom ás en cararam a atividade econôm ica com o m eio dc proporcionar prazer e felicidade. Dai resultava que os objetivos da econom ia eram profundam ente subjetivos, um a vez que o prazer c a felicidade nâo sâo estados quantificáveis do scr c a sua in tensidade não pode sc r m edida com precisão. A teoria do valor subjetivo scguia-sc a essa prem issa com o a noite suce­de ao dia. “Se a finalidade da econom ia é, cm certa m edida, o prazer - escreveu K audcr então, de acordo com o conceito

(20) Emil Kaudcr. A History o f Marginal Utility Theory. Princeton Univer­sity Press. Princeton. 1965. pág. 5.

(21) Lockc 6 freqüentemente mat interpretado neste ponto, pois n io 6 ver­dade que acreditasse na tcoria do valor-trabaiho. Os seus ensinamentos sobre o trabalho tinham a ver. nâo tanto com a teoria do valor-trabalho. mas com a justiça da aquisiçáo inicial cm um mundo cm que os bens ainda náo tivessem proprietários. Ixckc afirmava que. cm um estado natural, em que pouquís­simos bens sâo propriedade privada dus indivíduos. 6 Iteito que alguém recla­me como próprio um bem ou um pedaço de terra ao qual icnlta aplicado o seu trabalho - por exemplo, desmaiando um campo ou simplesmente cothen- do uma maçA dc uma árvore. O trabalho exercido sobn? um bem proporciona ao indivíduo um direito moruJ sobre esse bem. Depois que um bem se tomou propriedade privada, deixa de ser nccc&sário que a pessoa continue a apli­car-lhe trabalho para retê-lo e designá-lo como próprio. Os bens dc proprieda* dc privada sâo legitimamente propriedade dos seus donos, quer tenham sido adquiridos diretamente do "csiádo de natureza", conforme vimos, quer tenham sido adquiridos por compra ou por doaçáo de quem possuiu legitimamente o título dc .propriedade. Isto nada tem a ver com atribuir um valor aos bens com base no trabalho empregado.

(22) Emil Kaudcr. A History o f Marginal Utility Tfteoty. pígv. 5-6.

VIII. A IGREJA E A ECONOMIA 157

aristotélico da causa final, todos os princípios da economia, in­cluído o do valor, devem derivar desse objetivo. Segundo esse m odelo, o valor tem a função dc m ostrar q uan to dc prazer pode derivar dos bens econôm icos’*2*.

Logicamente, é impossível provar o acerto da explicação de Kaudcr, em bora o au to r reúna sugestivas evidências dc que os pensadores protestan tes e os católicos daquele tem po tiveram um a sensibilidade incipiente a respeito da raiz teológica dos respectivos desentendim entos sobre o valor econôm ico. De qualquer modo, perm anece o fato dc que os pensadores católi­cos, m ercê da sua específica trad ição intelectual, chegaram à conclusão correta sobre a natureza do valor, ao passo que os p ro testan tes se enganaram am plam ente.

M esmo que os pensadores católicos tivessem chegado por sim ples acaso a esses im portan tes princípios econôm icos e de· pois os tivessem visto enlanguescer sem influ ir nos seus suces­sores, já teria sido um feito. Mas a verdade 6 que essas idéias dos últim os escolásticos exerceram um a profunda influência, c tem os provas que nos perm item seguir o seu rasto ao longo dos séculos.

O p ro testan te holandês Hugo Grotius, conhecido pelas suas contribuições para a teoria do dire ito in ternacional, citou cx· p ressam ente esses pensadores no século XVII e adotou m uitos dos seus pontos dc vista econôm icos. A sua influência nesse sé­culo tam bém persistiu na obra dc influentes jesuítas, tais com o Leonardo Lcssius e Juan de Lugo24. Na Itália do século XVIII. há fortes evidências dessa influência no padre Fcrdinando Ga- liani. que é c itado po r vezes com o o in trodutor das idéias de utilidade c escassez com o fatores determ inantes do p reço14.

(23) Ibid., 9. Os grifos sáo nossos.(24) A Escolástica veio a scr desprezada tanto pelos protcsianics como pc·

los racionalistas. e é por isso que as rcfcrfrK-ias explicitas às obras dos últimos escolásticos por parte dc alguns dos seus sucessores foram fugazes. Nâo obs· tante, os historiadores do pensamento podem reconstruir a influência desses pensadores, sobretudo porque foram os próprios inimigos da Escolástica que citaram expressamente as suas obras. Vcja sc Murray N. Rothbard. ’New Light on the Prehistory of the Austrian School', págs. 65-7.

(25) Estou cm grande dívida com Murray N'. Rothbard, ‘New Light on the Prehistory of the Austrian School”, a propósito das minhas considcraçAcs so­bre a influencia posterior dos últimos escolásticos.

158 THOMAS E. WOODS JR.

(Igualm ente, Antonio Gcnovesi, um contem porâneo de Galiani, deveu m uito ao pensam ento escolástico). “0 papel central dos conceitos de utilidade, cscasse/. c valor de m crcado - cscrcvc Rothbard - espalhou-sc pela França a p artir de Galiani. até chegar ao abbé francês Êtienne Bonnot de Condillac (1714-80). cm fins do século XVIll, assim com o a um outro pensador, Anne-RoberhJacques Turgot (1727-81). [...] François Quesnay (1694-1774) c os fisiocratas franceses do século XVIII - con* siderados, m uitas vezes, com o os fundadores da ciência cco* nôm ica - foram tam bém m uito influenciados pelos escolás· ticos“26.

No seu livro Fé e Uberdade: o pensamento econômico dos ú /- tim os escolásticos (2003). Alejandro C hafuen m ostra que. ques­tão após questão, esses pensadores dos séculos XVI e XVII não apenas com preenderam c desenvolveram princípios econôm i­cos decisivos, m as tam bém defenderam os princípios da liber­dade económ ica e da econom ia de livre mercado. Dos preços e salários ao dinheiro e à teoria do valor, os últim os escolásticos an teciparam o m elhor do pensam ento econôm ico dos últim os séculos. Especialistas cm história do pensam ento econôm ico têm tido um a consciência cada vez m ais clara da contribuição proporcionada pelos últim os escolásticos à econom ia27. Por isso. é um a rem atada tolice alegar - com o fazem alguns pole- m istas - que a idéia do livre m crcado foi desenvolvida no sécu­lo XVIII po r anti-católicos fanáticos. Na época cm que foi pu­blicada a Encyclopédie francesa, violentam ente anti-católica, essas idéias já vinham sendo veiculadas havia cen tenas dc anos. c o que essa obra fez foi repetir as análises escolásticas accrca da form ação dos preços2*.

(26) Vcja-sc Murray N. Roth bard. "New Light on the Prehistory of the Austrian School“, pig. 66.

<27) Cfr. Thoma.i E. Woods. The Church and the Market: A Calhutic Defen­se o f the Free Hcononty, cm quc dcscnvolvo as contribuisAes dos ultimo* csco· listicos. .

(28) Vcja-sc Murray N. Rothbard, “New Light on the Prehistory of *hc Austrian School*, pig. 67.

COMO A CARIDADE CATÓLICA MUDOU O MUNDO

IX.

UMA ATITUDE ASSOMBROSA

Nro inicio do século IV, a fome c a doença assolavam o exército do im perador C onstantino. Pacómio, um soidado pa­gão. observava com assom bro com o m uitos dos seus com pa­nheiros rom anos ofereciam com ida c assistência aos que preci­savam dc ajuda, socorrcndo-os sem qualquer discrim inação. Cheio dc curiosidade, quis saber quem eram essas pessoas c descobriu que eram cristãos. Que tipo dc religião era aquela, adm irou-sc, que podia insp irar tais atos dc generosidade e hu­m anidade? Começou a instruir-se na fé e. an tes dc o perceber, jã eslava no cam inho da conversão1.

Esse m esm o sentim ento dc assom bro, continuaram a susci- tá-lo as obras de caridade católicas através dos tem pos. O pró­prio Voltairc, talvez o m ais prolífico propagandista anti-católi­co do século XVIII, sc m ostrou respeitosam ente adm irado com o hcróico esp írito dc sacrifício que an im ou lantos dos filhos e filhas da Igreja. "Talvez não haja nada m aior na terra - disse ele - que o sacrifício da juventude c da beleza com que belas jovens, m uitas vezes nascidas cm berço de ouro, sc dedicam a iraba lhar cm hospitais pelo alivio da m iséria hum ana, cuja vis·

(D A lun J. Schmnlt. Vnder the hiihttnce: t/o»· ChnMio»ity Tranifontud Civilizotiou. Zondcrvan, Grand Kapidv Mkhigan. 2001. pág. IJÓ.

160 THOMAS E. WOODS JR.

ta causa tan ta aversão 5 nossa sensibilidade. T âo generosa ca· ridade tem sido im itada, m as dc m odo im perfeito, po r gente afastada da religião dc Roma**2.

Exigiria volumes sem conta e labo rar um a lista com pleta das ob ras dc caridade católicas prom ovidas ao longo da histó­ria por pessoas, paróquias, dioceses, m osteiros, m issionários, frades, freiras e organizações leigas. Basta di/.cr que a caridade católica não tem paralelo com nenhum a outra, cm quantidade e variedade de boas obras, nem no alívio prestado ao sofri­m ento c m iséria hum anos. Podemos ir m ais longe c dizer que foi a Igreja Católica que inventou a caridade tal corno a conhece· m os no Ocidente.

Tào im portan te com o o puro volum e das obras dc benem e­rência ú a diferença qualitativa que distinguiu a carídadc da Igreja daquela que a havia precedido. Seria tolice negar que os grandes filósofos antigos proclam aram nobres sentim entos tra ­duzidos cm filantropia; ou que hom ens dc valor fizeram im ­portantes e substanciais contribuições em prol das suas com u­nidades. Esperava-se dos ricos que financiassem term as, edifí­cios públicos e todo o tipo dc entreten im entos populares. Plí­nio o Jovem , por exemplo, nem dc longe foi o ún ico a do ta r a sua cidade natal de um a escola e um a biblioteca.

Mão obstante, o esp írito de caridade no m undo an tigo era, em ccrto sentido, dcficicntc, sc o com pararm os com aquele que foi praticado pela Igreja. A m aior parte dos gestos de ge­nerosidade nos tem pos antigos envolvia um interesse próprio; nào eram puram ente gratuitos. Os edifícios financiados pelos ricos exibiam ostensivam ente os seus nomes. As doações eram feitas dc m odo a deixar os beneficiários em dívida para com os doadores, ou cn tào atraíam as atenções para as suas pessoas e a sua grande liberalidade. Servir dc coração alegre os neces­sitados c am pará-los sem nenhum a expectativa dc recom pensa ou reciprocidade, nào era certam ente o princípio que preva­lecia.

Cita-se p o r vezes o cstoicism o - um a an tiga escola dc pen­sam ento que rem onta m ais ou m enos ao ano 300 a.C. c que

(2) Michacl Davi«. For Aliar and Throne: "Pie Ruing in the Vendée. Rem­nant Prcvs. Si. Paul. M innnoia. 1997. pág. 13.

pcrm anccia viva nos p rim eiros séculos da cra cristã - com o um a linha pré-cristà de pensam ento que recom endava fazer o bem a o sem elhante sem esperar nada cm troca. Os estóicos ensinavam que hom em bom cra aquele que, com o cidadão do m undo, cultivava o esp írito de fraternidade para com os seus sem elhantes e. por essa razáo. parecia ser um m ensageiro da caridade. Mas tam bém ensinavam que e ra preciso sup rim ir os sen tim entos c as em oções com o coisas im próprias de um ho­mem. O hom em devia m am er-se to ta lm ente im perturbável pe­ran te quaisquer acontecim entos exteriores, m esm o os m ais trá ­gicos: devia possuir um autodom ínio tão forte que fosse capaz dc cncarar a pior catástrofe com absoluta indiferença. Esse era tam bém o esp írito com que o hom em sábio devia assistir os m enos afortunados: não im pelido pelo desejo dc com partilhar a aflição c a tristeza daqueles a quem socorria, nem estabele­cendo qualquer vínculo em ocional com eles, m as com o espíri­to de desinteresse c a ausência dc em oção próprios dc quem sim plesm ente cum pre o seu dever. Rodncv Stark d iz que a fi­losofia clássica "considerava a piedade c a com paixão com o em oções patológicas, defeitos do cará te r que os hom ens racio­nais deviam evitar. Dado que a piedade implicava p resta r um a ajuda ou alívio im erecidos, era con trá ria à justiça***. Assim se explica que o filósofo rom ano Séneca tenha podido escrever

"O sábio poderá consolar aqueles que choram , m as sem ch o ra r com eles; socorrerá o náufrago, dará hospitalidade ao proscrito e esm olas ao pobre [...], restitu irá o filho à m ãe cm prantos, salvará o cativo da arena c a té m esm o en ­te rra rá o crim inoso - m as cm toda a sua m ente c no seu sem blante estará igualm ente im perturbável. N ão sentirá com paixão. Socorrerá e fará o bem porque nasceu para a s ­sistir os seus sem elhantes, para trab a lh ar pelo bem -estar da hum anidade c para d a r a cada um a sua parte [...}. O seu rosto e a sua alm a nâo denunciarão nenhum a em oção quando o lhar para o aleijado, o esfarrapado, o encurvado c o m endigo esquelético e m acilento. Mas ajudará aqueles

IX. COMO A CARIDADE CATÓLICA MUDOU O MUNDO 161

(3) Vinccni CarroJI c David Shiílclt. Christianity a t Trial, Kncountcr Books, San Francisco. 2001, pip 142.

562 THOMAS E. WOODS JR.

que mercccm c, com o os deuses, será propício ao infeliz Só os olhos doentes sc um edcccm ao verem lágrim as

cm outros olhos4.

É verdade que, paralelam ente ao desenvolvim ento do cris­tianism o. algum as das asperezas do prim itivo estoicism o come· çaram a dissolver-se. Dificilmente sc poderáo ler as Meditações dc M arco Aurélio, o im perador rom ano do século II c filósofo estóico, sem im pressionasse com o grau dc sem elhança que há entre o pensam ento desse nobre pagão c o cristianism o; foi por isso que Sáo Justino M ártir veio a elogiar os cstóicos seus con­tem porâneos. Mas a implacável supressão da em oçáo c do sen· tim cnlo. que tan to caracterizou essa escola, já havia cob rado o seu tributo, desconhecendo a grandiosa d im ensão do sc r hum a­no. Entre os m uitos exem plos de estoicism o, ressalta o dc Ana· xágoras, um hom em que. ao ser in form ado da m orte d o seu fi­lho. sc lim itou a o bservar "Eu nunca pensei que tivesse gerado um im ortal". E espanta-nos o vazio m oral dc Stilpo. que. an te a conquista da sua cidade natal c a perda das suas filhas levadas para a escravidão ou o concubinato, proclam ou que, ao fim c ao cabo. não tinha rcuim cntc perdido nada, já que o hom em sábio transcende todas as suas circunstâncias*. Era sim ples­m ente lógico que aqueles homens, tão im perm eáveis á realida­de do mal. fossem indolentes à hora dc aliviar os seus efeitos sobre os seus sem elhantes: "Hom ens que sc recusavam a reco­nhecer a do r c a doença com o males - ano ta um observador - tam bém estavam pouco propensos a aliviá-las aos o u tros”*.

O esp írito de caridade na Igreja náo surgiu no vácuo, mas bebeu a sua inspiração nos ensinam entos de Cristo. Dou-vos um mandai/lento novo: que vos am eis uns aos outros; assim com o eu vos amei. amai-vos também uns aos outros. N isto co­nhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes am or uns

(4) William Edward Hartpolc Lccky. History v { lítiruprait Morait frttm Au­gustus lo C/urieniOKit*. vol. I. D Appjcton arid Co.. New York, 1870, págs. 199-200.

(5) Ibid.. pip. 201.(6) Ibid., pág. 202. Para uma boa discussão sobre a ausência da idéia dc

candadc criMâ no mundo onligo. ver Gerhard Uhlhorn. Christian Charily in lhe Ancient Church, Charles Scrihnci\s Sons. New York. 1883. págs. 2-44

IX. COMO A CARIDADE CATÓLICA MUDOU O MUNDO 163

aos outros (Jo 13. 34-35; cfr. Ti 4. I I ) . Sáo Paulo afirm ou que os cuidados c a caridade dos cristãos deviam scr ofcrccidos m esm o aos que nâo pcrtcnccsscm à com unidade dos fiéis, a in ­da que fossem inim igos da fé (cfr. Rom, 12. 14-20; Gál. 6. 10). Aí estava um novo ensinam ento para o m undo antigo.

Dc acordo com William Lccky, um crítico freqüentem ente severo da igreja, “nâo se pode susten ta r nem na prática, nem na teoria, nem nas instituições fundadas, nem no lugar que a cia foi a tribu ído na escala dos deveres, que a caridade ocupas­se na Antigüidade um lugar com parável àquele que atingiu no cristianism o. Quase todo o socorro era p restado pelo Estado, m uito m ais por razôcs políticas do que po r sentim entos dc be­nevolência; c o costum c de vender crianças, os inum eráveis en­jeitados. a presteza com que os pobres sc candidatavam a gla­diadores e as freqüentes vagas dc fome m ostram com o era grande a extensão dos m iseráveis que ficavam esquecidos"7.

OS POURKS E OS DOENTES

A prática de ofcreccr dádivas destinadas aos pobres desen- volvcu-se cedo na h istória da Igreja. Os fiéis co locaram as suas oferendas sobre o a h a r du ran te a m issa c. cm certos dias dc penitência, doavam um a parcela dos frutos da terra nas coletas que tinham lugar an tes da le itura da epístola. Tam bém sc fa­ziam contribuições cm d inheiro para os cofres da Igreja, assim com o coletas ex traord inárias en tre os fiéis ricos. Os primeiros cristãos, que jejuavam com frcqüéncia, doaram aos pobres o dinheiro que teriam gasto com a com ida. São Justino M ártir relata que m uitas pessoas que tinham am ado as riquezas c as coisas m ateriais antes dc sc converterem , agora sc sacrifica­vam de ân im o alegre pelos pobres*.

Poderíam os con tinuar a c ita r longam ente as boas obras da Igreja prim itiva, praticadas tan to po r hum ildes com o po r ricos.

(7) William E H. Lccky. Hislory of Humpean Morais from Augustus to Cltarleniagne. vol. I, pág. 83.

<S) John A.Kvan. "Chanty and Charities*. cm Cathofic Hncyclnpedi<t\ Char­le* Guiüaumc Adolphe Schmtdl. The Suciai Hesults of' EaHy Chnuiamtv. Sir Isa^c Piirrwn & Sons. Londrcv. 1907, pág. 251.

164 THOMAS E. WOODS JR.

Os próprios Padres da Igreja, que legaram um enorm e corpo literário c erudito à civilização ocidental, encontraram tem po para sc dedicarem pessoalm ente ao serviço dos seus sem elhan­tes. S anto Agostinho fundou um albergue para peregrinos c es· cravos cm fuga c distribu iu roupas en tre os pobres. (Avisava às pessoas que não lhe oferecessem peças dc roupa caras, porque as venderia c daria o p rodu to aos pobres9). São João Crisósto­mo fundou um a série dc hospitais em C onstan tinop la10. São Cipriano e S anto Efrém em penharam -se em prom over obras de assistência em tem pos de fome e dc epidem ias.

A Igreja prim itiva tam bém institucionalizou a a tenção às viúvas c aos órfãos, bem com o aos enferm os, especialm ente duran te as epidem ias. Por ocasião das pestes que assolaram Cartago c Alexandria no século III, os cristãos suscitaram res- peito c adm iração pela coragem com que consolavam os m ori­bundos c en terravam os m ortos, enquan to os pagãos abando· navam ao seu terrível destino até os próprios am igos·'.

No século III, São C ipriano, bispo dc Cartago. repreendeu a população pagã porque, em vez de a judar as vítim as d a praga, as saqueava. "Não dem onstrais nenhum a com paixão pelos doentes, m as tão som ente avidez c pilhagem depois que m or­rem. Aqueles que sc cncolhem dc m edo à hora de traba lhar po r piedade m ostram -se audaciosos à hora de ex trair lucros ilí­citos. Aqueles que fogem de en te rra r os m ortos m ostram -se ávidos do que eles tenham deixado“. Esse Padre da Igreja con­clam ou os cristãos a m obilizar-se para assistir os doentes e en­te rra r os m ortos. Lem brem o-nos de que se estava ainda em um a época de in term iten te perseguição aos cristãos e, po rtan ­to, o que o grande bispo pedia aos seus seguidores c ra que aju­dassem as m esm as pessoas que às vezes os perseguiam . Dizia ele: “Se só fizerm os o bem aos que nos fazem o bem, que fare­mos m ais do que fazem os pagãos c publicanos? Se som os fi-

(9) Gerhard Uhlhorn. Christian Chanty in the Ancient Church, pág. 264.(10) Cajctan Baluffi. The Charity of the Church, trad. Denis Gargan. M.H.

Gill and Son, Dublin, 1885. pág. 39; Alvin J. Schmidt. Under the Influence, pág. 157.

(11) William E ll. Lccky, History of European Morals from Augustus to Charlemagne, vol. I. pág. 87; Cajctan Bnluffi. The Chanty of the Church, págs. 14-5; Charles G.A. Schmidt. The Social Results of Early Christianity, pág. 328,

IX. COMO A CARIDADE CATÓ1JCA MUDOU O MUNDO 165

lhos dc Deus. quc faz brilhar o seu sol sobre bons c maus. c m anda a sua chuva sobre justos c injustos, provem o-lo pelos nossos atos, bendizendo aqueles quc nos am aldiçoam e fazen­do o bem aos quc nos perseguem “**.

No caso dc Alexandria, o bispo Dionísio relatou quc os pa­gãos "repeliam os quc com eçassem a ficar doentes, afasta- vam-sc deles, m esm o quc sc tra tasse dos am igos m ais queri­dos. largavam os m oribundos à beira das estradas, deixando-os insepultos quando m orriam , tra tando-os com o m ais com pleto desprezo”. Em contraste , relatou quc m uitos cristãos “nào fu­giam dc am parar-sc uns aos ou tros, visitavam os doentes sem pensar no perigo que corriam e scrvianvnos assiduam ente atra indo para si m esm os as doenças dos seus vizinhos c as­sum indo dc livre vontade as cargas dos sofrim entos daqueles quc tinham à sua volta“ 15.

S anto Efrém é lem brado pelo seu heroísm o quando a fome c a peste sc abateram sobre Edcssa. a c idadc em cujos arredo ­res vivia com o erem ita. Não apenas coordenou a coleta e dis­tribu ição dc esm olas, m as tam bém fundou hospitais, cuidou dos doentes c dos m o rto s14. O uando a fome ating iu a Arménia sob o reinado dc M axim iano, os c ristãos prestaram assistência aos pobres sem considerar a filiação religiosa. Eusébio, o his­to riado r da Igreja do século IV, conta-nos quc, com o resultado do bom exem plo dos cristãos, m uitos pagãos “sc interessaram p o r um a religião cujos discípulos e ram capazes d e um a dedi­cação tão d esin teressada"l5. Juliano, o Apóstata, que odiava o c ristianism o, lam entou a bondade dos cristãos para com os pa­gãos: “Esses ím pios galileus não alim entam apenas os seus próprios pobres, m as tam bém os nossos; dando-lhes as boas- v in d a s nos seus ágapes, atraem -nos com o sc a traem as crian­ças com um doce"16.

( 12) Gcrtiard Uhlhom. Christian Charity in the Ancient Church, págs. 187-8.

(13) Alvin J. Schmidt. Under lhe htfluettee. pág. 152.(14) Cajcian Baluffi. TJie Charily of lhe Church, págs. 42-43; ChaHcs G.A.

Schmidt. Pte Social Results <4 Eaily Christianity, págs. 255-6.(15) ChaHcs G.A. Schmídl. The Social Results of Farlv Christianity, pág.

328.(16) IhiJ.

166 THOMAS E. WOODS JR.

OS PRIMEIROS HOSPITAIS E OS CAVALEIROS DE SAO JOAO

Disculc-sc sc existiram na Grécia c cm Roma instituições sem elhantes aos nossos hospitais. M uitos h istoriadores põem- •no em dúvida, enquan to ou tros apontam algum a rara exceção aqui e acolá, m as m ais para cu idar dos soldados doentes ou fe­ridos do que da população em geral. Parece dever-se à Igreja a fundação das prim eiras instituições atendidas p o r médicos, on ­de sc faziam diagnósticos, sc prescreviam rem édios c sc conta· va com um corpo dc en ferm agem ,7.

No século IV. a Igreja com eçou a pa troc inar a fundação dc hospitais em larga escala, de tal m odo que quase todas as principais cidadcs acabaram por te r o seu. Na sua origem , es­ses hospitais tinham po r fim hospedar estrangeiros, m as de­pois passaram a cu idar dos doentes, viúvas, órfáos c pobres cm g e ra l" . Como explica G uenter Risse, os cristãos ultrapas­saram "a recíproca hospitalidade que prevalecia na an tiga Gré­cia c as obrigações fam iliares dos rom anos" para cu idarem de atender "grupos sociais m arginalizados pela pobreza, doença c idade"1*. No m esm o sentido, o historiador da m edicina Fiel- ding G arrison observa que, antes do nascim ento de Cristo, "o espírito com que sc tratava a doença c o in fortún io nâo era o dc com paixão, c cabe ao cristian ism o o crédito pela solicitude cm a tender o sofrim ento hum ano em larga escala*10.

Em um a to dc penitência cristã, um a m ulher cham ada Pa- bíola fundou o prim eiro grande hospital público em Roma; percorria as ruas cm busca dc hom ens c m ulheres pobres c enferm os necessitados dc cu idados21. São Basílio M agno, co­nhecido pelos seus contem porâneos com o o Apóstolo das Es­

(17) Alvin J. Schmidt. Under lhe Influence, págs. 153-5.(18) John A. Ryan. 'Charity ami Charities*, cm Catholic Encyclopedia·.

Gucntcr B. Ri.snc, Mending Bodies, Saving Souls: A History of Hospitals. Oxford Univcniily Press. New York. 1999. pâgv 79 c segs.

(19) Gucntcr B. Rissc. Mending Bodies. Saving Souls, pág. 73.(20) Fielding It. Garrison. An Introduction of the History of Medicine. W.B.

Saundcis. Philadelphia. 1914. pág. 118; cuado cm Alvin J. Schmidt. Under the Influence ̂pág. 131.

(21) William E H Lccky, History of European Morals from Augustus to Charlemagne, vol. 1. pág. 85.

IX. COMO A CARIDADE CATÓLICA MUDOU O MUNDO 167

molas, fundou um hospital cm Ccsaréia, no século IV. Era co­nhecido po r ab raçar os leprosos miseráveis que ali buscavam alívio, m anifestando um a tem a piedade para com esses pros­critos, sen tim ento que, m ais tarde, tom aria fam oso Sáo F ran ­cisco de Assis. Não é dc su rp reender que os m osteiros tam bém desem penhassem um papei im portan te no cu idado dos docn* tcs*J. De acordo com o m ais com pleto estudo da história dos hospitais:

"Após a queda do im pério Rom ano, os m osteiros tom a· ram -sc g radualm ente provedores dc serviços médicos orga­nizados, dos quais não sc dispôs po r vários séculos cm ne­nhum lugar da Europa. Dada a sua organização c localiza­ção. essas instituições eram virtuais oásis de ordem , pieda­de c estabilidade, que favoreciam a cura. Para p resta r esses cuidados práticos, os m osteiros to rnaram -se tam bém luga­res dc ensino m édico en tre os séculos V c X. o período clássico da assim cham ada m edicina m onástica. D urante o renascim ento carolíngio dos anos 800, os m osteiros tam ­bém despontaram com o principais centros dc estudo c transm issão dos antigos textos médicos"**.

A Regra de São Bento enfatizava a im portância de cu idar dos monges doentes, m as não há provas dc que o pai do mo· naquism o m oderno tam bém livesse atribu ído ao m osteiro a ta ­refa dc p resta r cuidados médicos à população cm gerai. Contu­do. com o cm m uitas ou tras coisas, a força das c ircunstâncias contribu iu significativam ente para a am pliação das funções c perspectivas de um m osteiro.

As ordens m ilitares, fundadas du ran te as Cruzadas, adm i­nistravam hospitais po r toda a Europa. Uma dessas ordens, a dos Cavaleiros dc Sáo João (tam bém conhecidos com o hospi- talários), germ e do que, m ais tarde, veio a tornar-se a Ordem dc Malta, deixou um a m arca particularm ente significativa na história dos hospitais europeus, sobretudo pelas inusitadas di-

(22) Roberto Margotla. The Hitforv o f Medicine, Paul Lc\vi>. cd.. Smith- mark. New York. 1996. pág. 52.

(23) Guenter B. Risse. Mending Btxlie*. Savtng Souls, pig. 95.

168 THOMAS E. WOODS JR.

m cnsões do seu edifício cm Jerusalém . Fundado cm torno dc 1080, esse hospital p rocurou atender os pobres c proporcionar um alo jam ento seguro aos peregrinos, m uito freqüentes cm Je­rusalém , particu larm ente após a vitória cristã na P rim eira Cru­zada, cm fins do século. A extensão das suas operações cresccu significativam ente depois de G odofrcdo de Bulhões, que doou à institu ição um a série dc propriedades.

O sacerdote alem ão João de W ür/bu rg ficou m uito im pres­sionado com o que viu na sua visita a esse hospital, não só pe­los cuidados que sc dispensavam aos doentes com o pelas obras dc caridade que sc levavam a cabo: "A casa - diz ele - alimen· lava tan tas pessoas, dc fora e de dentro, e dava tão grande quantidade de esm olas aos pobres, quer aos que vinham bater à sua porta, quer aos que não saíam dos seus tugúrios, que nem m esm o os adm inistradores ou os encarregados da despen­sa daquela casa eram capazes dc calcu lar o total dos gastos". Teodorico de W ür/burg. ou tro peregrino alem ão, m aravilhou- •sc de que “andando pelas dependências do hospital, não con­seguíam os de m odo algum avaliar o núm ero de pessoas que lá jaziam , pois eram m ilhares as cam as que víamos. N enhum rei ou tirano teria poder suficiente para m anter o grande núm ero dc pessoas alim entadas d iariam ente naquela c a s a '24.

Em l i 20, os hospitalários elegeram R aim undo du Puy com o adm in istrado r do hospital, substitu indo o falecido irm ão G crardo. O novo adm inistrador concentrou os seus esforços na a tenção aos doentes internados, contando , em benefício de­les. com os heróicos sacrifícios dos que trabalhavam naquela casa. Lemos cm "Como os nossos senhores os doentes devem ser recebidos e atendidos" - art. 16 do código estabelecido por Du Puy para a adm inistração do hospital - que "na m esm a obediência com que o d ire tor e a congregação do hospital ve­lam pela existência desta casa, assim seja recebido o enferm o que aqui vier: fazei com que participe do Santo Sacram ento, tendo an tes confessado os seus pecados ao sacerdote, e depois seja carregado para a cam a c nela tra tado com o se fosse o nosso S enhor“. Uma história m oderna dos hospitais refere que "o decreto dc Du Puy. m odelo tan to para os serviços dc cari-

(24) ibid., pág. 138.

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dadc com o para a incondicional devoção ao docnic, tom ou-se um m arco na história dos hospitais"2*. Diz G ucntcr Risse:

“Não surpreende que, com a nova torren te dc peregri­nos que chego» ao reino latino dc Jerusalém , os seus teste­m unhos sobre a caridade dos hospitalários dc São João se tivessem espalhado rap idam ente por ioda a Europa, incluí­da a Inglaterra. A existência dc um a ordem religiosa que m anifestava com tan to a rd o r a sua lealdade aos doentes inspirou a criação de um a rede dc instituições sim ilares, especialm ente nos portos da Itália e do sul da F rança onde os peregrinos sc concentravam para em barcar. Ao m esm o tem po, cx-intcm ados agradecidos, nobres caridosos c m o­narcas dc um can to ao outro d a E uropa faziam substan ­ciais doações de terras. Em 1131, o rei Afonso dc Aragâo legou um terço do seu reino aos hospitalários“2*.

No transco rrer do século XII, o hospital com eçou a pare- ccr-sc cada ve/, m ais com um hospital m oderno c m enos com um a hospedaria para peregrinos: a sua m issão ficou especifica* m ente definida com o a de cu idar dos doentes, m ais do que de proporcionar abrigo aos viajantes necessitados. Nesse sentido, o Hospital de São João, inicialm ente um estabelecim ento só para cristãos, com eçou a adm itir tam bém docnlcs m uçulm a­nos c judeus.

O hospital im pressionava tam bém pelo seu profissionalis­mo. organização e regim e rigoroso. Faziam -se pequenas c iru r­gias. Os doentes recebiam duas vezes ao dia a visita dc m édi­cos, além de um banho c duas refeições principais. Os funcio­nários só podiam com er depois dos pacientes. Um grupo de m ulheres estava a postos para realizar ou tras tarefas c assegu­ra r que os doentes tivessem roupa c lençóis lim pos27.

Essa sofisticada organização, coroada pelo esm ero no aten­dim ento aos enferm os, serviu de m odelo para a E uropa, onde com eçaram a surg ir cm iodos os lugares, tan to cm cidades

(25) Ibid.. pág. Ml.(26) Ibid.. págs. 141-2.(27) Ibid.. pág. 147.

170 THOMAS E. WOODS JR.

principais com o cm aldeias m odestas, instituições inspiradas no hospital dc Jerusalém . Os próprios hospitaláríos chegaram a adm in istra r no século XIII cerca de vinte hospitais e casas de leprosos

ASSISTÊNCIA EFICAZ

As ob ras de caridade católicas foram tão im pressionantes que até os próprios inim igos da Igreja, m uito a contragosto, ti­veram de reconhecê-lo. O escrito r pagão Luciano (130-200) ob­servou com espanto: “É inacreditável a determ inação com que as pessoas dessa religião se ajudam um as às ou tras nas suas necessidades. Não se poupam em nada. O seu prim eiro legisla­do r m eteu-lhes na cabeça que eles eram todos irmãos!" * Ju lia­no. o Apóstata, o im perador rom ano que. nos anos 360. fez a violenta, m as frustrada, tentativa de fa/.er o Im pério re to m ar ao seu prim itivo paganism o, adm itiu que os cristãos sc avanta­javam aos pagãos no seu devotam ento às obras dc caridade. “E nquanto os sacerdotes pagãos negligenciam os pobres - es­creveu - , os odiados galileus [isto é. os cristãos] devotam -se às obras dc caridade c, em um alarde dc falsa com paixão, intro­duzem com eficácia os seus perniciosos erros. Vede os seus banquetes de am or c as suas m esas preparadas para os indi­gentes. Tal p rática é habitual en tre eles e provoca desprezo pe­los nossos deuses“K. M artinho Lutero. o m ais inveterado ini­migo da Igreja Católica a té o fim da vida, viu-se obrigado a ad ­m itir; “Sob o Papado, o povo era ao m enos caridoso e não ha­via necessidade dc recorrer à força para ob te r esm olas. Hoje, sob o reinado do Evangelho (com isso, referia-se ao pro testan­tism o). cm vez de dar, as pessoas roubam -se um as às ou tras, e parece que ninguém julga possuir algum a coisa enquan to não sc apropria dos bens do vizinho“31.

O econom ista do século XX Sim on Pattcn observou a pro­

(28) Ihtd.. pág 149.(29).Vinccni Carroll c David Shiflcil. Cltrisiianily on Triai, pág. 143.(50) Cajcian Baluffi. The Outrily o f litt Chttrdi. pág. 16.(31) Ibid.. pág. 185.

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pósito da ação da Igreja: 'N a Idade Média, era m uito com um dar com ida c abrigo aos trabalhadores, tra ta r com caridade os desafortunados e aliviá-los das doenças, das pragas e da fome. Q uando vemos o núm ero dc hospitais c enferm arias, a m agna­n im idade dos monges c o sacrifício pessoal das freiras, náo po­dem os duvidar dc que os m arginalizados daqueles tem pos eram pelo m enos táo bem assistidos com o os dc agora" M. Fre­derick H urter, um biógrafo do papa Inoccncio 111 no século XIX, chegou a declarar: “Todas as instituições de beneficência que a raça hum ana possui hoje em d ia para m ino rar a sorte dos desafortunados, tudo o que tem sido feito para socorrer os indigentes e os aflitos nas vicissitudes das suas vidas e cm qualquer tipo dc sofrim ento, procede d ireta ou ind iretam ente da Igreja dc Roma. Ela deu o exemplo, perseverou na sua tare­fa e. com freqüência, p roporcionou os meios necessários para lcvá-la a cabo"M.

A extensão das atividades caritativas da Igreja aprecia-se às vezes com m ais c la re /a quando deixam dc existir. Na Inglater­ra do século XVI. por exemplo, o rei Henrique VIH suprim iu os m osteiros e confiscou-lhes as propriedades, d istribuindo-as a preço dc banana en tre os hom ens influentes do seu reino. O pretexto para essa m edida foi que os m osteiros sc haviam (or­nado fonte de escândalo e im oralidade, em bora restem poucas dúvidas dc que tais acusações fantasiosas náo fa/.iam mais do que dissim ular a cobiça real. As conseqüências sociais da dis- soluçáo dos m osteiros devem ter sido m uito significativas. Os Levantes do N orte dc 1536. um a rcbcliáo popular tam bém co- nhecida com o a Peregrinação da G raça, tiveram m uito a ver com a ira popular causada pelo desaparecim ento da caridade m onástica. Em um a petiçáo dirigida ao rei dois anos m ais ta r­de. observava-se:

“A experiência que tivemos com a supressão dessas ca­sas m ostra-nos claram ente que sc provocou c continuará a provocar-se neste re ino dc Vossa M ajestade um grande mal e um a grande deterioração, assim com o um grande empo-

(32) Citado cm John A. Ryan. 'Charily and Charities.“, cm Caiholtc tinrv- chptdia.

(33) Cajctan BalufJi, The Charity o f the Church, pág. 257.

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brccim cnto dc m uitos dos vossos hum ildes súditos. pois faltarão a hospitalidade e o sustento com que essas casas proporcionavam grande alívio aos pobres dc todas as re­giões próxim as dos referidos mosteiros" u .

Os m osteiros eram conhecidos por serem proprietários ge­nerosos c bondosos, pois cobravam pouco pelo arrendam ento das suas terras c estabeleciam os contratos a longo prazo. “O m osteiro cra um p roprietário que nunca m orria; os a rrenda tá ­rios tratavam com um senhorio imortal; as suas terras c casas nunca m udavam de proprietário; os que as arrendavam nâo es­tavam sujeitos a nenhum a das m uilas incertezas que afetavam os outros arrendatários',,5. Foi por isso que a dissolução dos m osteiros e a d istribuição das suas terras só pòdc significar "a ruína para dezenas dc m ilhares dc cam poneses pobres, o co­lapso das pequenas com unidades que constituíam o seu m un­do e um fu turo dc verdadeira m endicância”*.

Com a dissolução dos m osteiros, desapareceram tam bém quase por com pleto as condições favoráveis cm que os cam po­neses vinham trabalhando essas terras. Segundo um historia­dor. "os novos proprietários (lojistas, banqueiros ou nobres cm decadência) não tinham nenhum a afinidade com o m eio rural c exploraram os seus dom ínios com um espírito m eram ente m ercantil: as rendas a pagar aum entaram , as terras dc lavradio converteram -se cm pastagens c as pequenas propriedades agrí­colas foram fechadas. M ilhares dc desem pregados foram atira ­dos para as estradas. As diferenças sociais acentuaram -se e a miséria cresceu assustadoram ente ''” .

Os efeitos negativos da dissolução dos m osteiros fizeram-se

(34) Cil. cm Neil S. Rushton, "MonaMic Charitable Provision in Tudor England: Quantifying and Qualifying Poor Relief in the Early Sixteenth Cen­tury*. Continuity and Change 16 (2001). pág. 34. A tradução deste trecho de petição foi adaptada peto autor ao ingl£s moderno.

(35) William Cobbctt. A Histon of lhe Protestant Reformation in England and Ireland. TAN. Rockford. Illinois. 198« [1896). pág. 112.

(36) Philip Hughes. A Popular Htstorv of the Reformation, Hanover House, Garden City. New York, 1957, pág. 205.

(37) Henri Daniel-Rop*. A Igreja da Renascença e da Reforma: I. A refonna protestante, trad. Emérico da Gama, cm História da Igrrja de Cristo, vol. 4. Quadrante. Sáo Paulo. 1996, pág. 454.

IX COMO A CARIDADE CATÓLICA MUDOU O MUNDO 173

sentir tam bém nas obras dc assistência aos necessitados. Até há relativam ente pouco tempo, havia um consenso histórico acerca da atividade caritativa dos católicos na Inglaterra: da- va-se com o certa um a freqüente crítica protestante segundo a qual o socorro prestado aos pobres pelos m osteiros nâo teria sido quantitativam ente substancial nem qualitativam ente bené­fico, com o sustentavam os seus defensores católicos. Ao con­trário, insistia-se cm quc a caridade m onástica linha sido es­cassa c quc as exíguas quantias a ela destinadas eram distri­buídas sem critério , sem o cuidado dc d istinguir bem os verda­deiram ente ncccssitados dos im previdentes crônicos c dos m e­ram ente vadios. Com isso, estes últim os eram injustam ente prem iados e o seu núm ero tendia a multiplicar-se, cm prejuízo dos realm ente necessitados.

Nos nossos dias. os historiadores com eçaram a desfazer essa grosseira distorção, cuja origem rem onta aos fins do sé­culo XVII e com eços do século XVIII, e é conseqüência do viés p rotestante de Gilbcrt B um ct na sua História da Reforma da Igreja da Inglaterrau . De acordo com Paul Slack, um pes­quisador m oderno, "a dissolução dos m osteiros, capelas, socie­dades religiosas e fraternidades nas décadas dc 1550 e 1540 le­vou a um a drástica redução das fontes dc caridade. É verdade quc a real ajuda quc d a s prestavam aos pobres estava locali­zada geograficam ente, m as c ra m ais substancial do quc com freqüência se supõe, e a sua supressáo deixou um verdadeiro vazio“ 39.

Neil Rushton tam bém fom cce im portantes evidências dc quc os m osteiros tinham lodo o cuidado em d irig ir a sua aju­da aos verdadeiram ente necessitados. E quando nâo o faziam - cxplica B arbara Harvcy no seu estudo Vivendo e morrendo na Inglaterra, 1100-1540 o culpado nâo cra o conservadorism o ou a brandura dc coração dos monges, mas sim as restrições im postas pelos doadores quanto ao m odo dc os m osteiros fa­zerem uso das suas doações. Alguns doadores estabeleciam nos seus testam entos cm quc casos sc deviam d a r esmolas. Por

(38) Ncil S. Rushton. "Monastic Charitable Provision in Tudor England*, pig. 10.

(39) Ibid.. pág. 11.

outro lado. sc o propósito dc tais doações crn, cm parte, ali­viar o sofrim ento dos pobres, tam bém tinha cm vista chegar ao m aior núm ero possível de pessoas, a fim de o benfeito r ga­nhar o m aio r núm ero possível dc orações pelo repouso eterno da sua alm a. Em qualquer caso, com o passar do tem po, os m osteiros foram -se to m an d o m ais cautelosos em selecionar os beneficiários das suas esmolas'*0.

No d eco rre r dos séculos que se seguiram à m orte de Carlos M agno (em 814). m uito da atenção aos pobres, a té en tão a cargo das igrejas paroquiais, com eçou a deslocar-se para os mosteiros. Em palavras do rei francês Luis IX, os m osteiros eram o pairim onium paupem m , o patrim ônio dos pobres, ex­pressão com que já desde o século IV sc costum ava designar Iodos os bens da Igreja, m as que era verdade particu larm ente no caso dos m osteiros. Afirma um historiador que “em todos os d istritos, tan to nas altas m ontanhas com o nos vales profun­dos, sc ergueram m osteiros cm to m o dos quais se articulava a vida religiosa das redondezas: os m osteiros m antinham esco­las, ofereciam modelos para a agricultura, indústria, piscicul­tu ra c rcflorestam cnto. albergavam o viajante, socorriam o po­bre, davam am paro aos órfãos, cuidavam dos doentes c eram o lugar dc refúgio para todos os que carregavam o fardo da m i­séria esp iritual e corporal. Durante séculos, foram os centros de toda a religião, caridade c atividade cu ltu ral"4I.

E William Lecky escreveu a este propósito: "Com o passar do tem po, a caridade assum iu m uitas formas, c todos os m os­teiros sc tom aram focos dos quais irradiava. Pela ação dos monges, os nobres scntiam -sc tocados, os pobres eram protegi­dos. os doentes atendidos, os viajantes abrigados, os cativos resgatados, as m ais rem otas esferas do sofrim ento penetradas. D urante o m ais negro período da idade Média, os m onges fun­daram um refúgio para peregrinos, cm meio aos horrores das neves a lp inas“4*. Os beneditinos, os cistcrcicnscs c os prem ons-

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(40) Barbara Harvey. Living and Dying in England. I /00- I $40: The Mo­nastic Experience. Clarendon Press. Oxford, 1993, p igv 22 c 33.

(4|) Georg Ral/.mjtcr. citado cm John A. Ryan. "Charily and Charities*. Catholic Encyclopedia.

(42) William K.H. Ixcky. History of European Morals from Augustus to Charlemagne, vol. t. pijj 89.

tratcnscs. assim com o. m ais tarde. as ordens m endicantes - franciscanos c dom inicanos - distinguiranvsc pelo z d o com que se dedicavam às ob ras dc caridade.

Sc os viajantes pobres podiam confiar na hospitalidade m o­nástica. tam bém os viajantes ricos eram bem-vindos, uns e ou· tros com o sc fossem o próprio Cristo. Mas os monges não sc lim itavam a e sp erar que os pobres os procurassem . Saíam à procura dos que viviam nas rcgiôes c ircundantes. Lanfranc. a r­cebispo de Cantuária, por exemplo, confíava ao seu esm oler (o d istribu ido r de esm olas) a responsabilidade de descobrir c so­co rre r os doentes c os pobres que viviam nas im ediações do m osteiro. Sabc-sc dc casos cm que os pobres recebiam alo ja­m ento p o r tem po indefinido*'.

Além de ajudas institucionalizadas, os m onges tam bém d a ­vam aos pobres o que lhes sobrava da sua própria com ida. Gil­berto dc Scm pringham . que fazia com que as suas sobras fos­sem bastan te substanciais, colocava-as cm um prato - cham a­va-lhe “o prato do S enhor Jesus” - c punha-o claram ente à vis­ta dos seus irm üos m onges, com o óbvio in tuito de incitá-los a em ular a sua generosidade. Tam bém era costum e, em mem ó­ria dos monges falecidos, servir a su a com ida c bebida c. ao fi­nal da refeição, distribuí-la aos pobres. Obscrvava-sc essa p rá ­tica ao longo dc pelo m enos irin ta dias c até po r um ano in te i­ro após o falecim ento do monge, e. no caso de um abade, até m esm o perpetuam en te44.

Assim com o o ataque da Coroa inglesa aos m osteiros, no século XVI, debilitou a rede de caridade que essas instituições tinham criado, tam bém o ataque da Revolução Francesa à Igreja, no século XVIII. abalou a fonte dc tan tas boas obras. O uando o governo revolucionário francês nacionalizou as pro­priedades da Igreja, em novem bro de 1789. o arcebispo de Aix- -cm -Provence advertiu que sem elhante roubo am eaçava o bem- -estar c a educação do povo francês. Tinha toda a razào: em 1847. a França contava com 47% m enos hospitais do que no ano do confisco, c. cm 1799, os 50.000 estudantes que estavam

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(43) Barbara Harvcy. Uving and Dving m ííitgland. pág. 18.(44) Ibid.. pág. 13.

176 THOMAS E. WOODS JR.

m atriculados cm universidades dez anos an tes tinham -sc redu­zido a 12.00045.

E m bora os livros-texto dc história ainda nâo o m encionem , o ccrto 6 que a Igreja C atólica revolucionou a prática das obras dc caridade, tan to no seu esp írito com o na sua aplica· çâo. Os resultados falam por si mesmos: a té entâo, nunca sc ti· nha gasto tan to em esm olas, nunca tinha havido tan tas doa­ções com fins caritativos, nunca sc tinha chegado a c ria r insti­tuições destinadas a cu idar das viúvas, dos órfãos, dos pobres c dos doentes.

(45) Michacl Davio. For Altar and Throite. pág. 11.

X. A IGREJA

E O DIREITO OCIDENTAL

Na m aioria dos países ocidentais, quando um a pessoa é condenada por assassinato c sen tenciada à m orte, mas perde a razão no intervalo en tre a sentença c a execução, é m antida viva até que recupere a saúde m ental e só en tão é executada. O motivo para essa m edida dc cxccção é totalm ente tcológica: só se um hom em estiver no seu perfeito ju ízo poderá fazer um a boa confissão, rcccbcr o perdão dos seus pecados c te r a espe­rança dc salvar a sua alm a. Casos com o esse levaram o profes­so r de dire ito H arold B crm an a observar que o m odem o sis­tem a legal ocidental "é um resíduo sccular dc atitudes c pres­supostos religiosos que, historicam ente, tiveram a sua prim eira expressão na liturgia, rituais c dou trina da Igreja c. mais tarde, nas instituições, conceitos c valores do Direito. Sc não sc com ­preendem essas raízes históricas, m uitos aspectos do Direito podem parecer desprovidos de fundam en to"1.

Os trabalhos do professor B crm an, particularm ente o seu Law and Revolulion: The Fomiation o f the Western Legal Tradi- tion, docum entaram a influencia da Igreja no desenvolvimento do dire ito no Ocidente. "Os conceitos ocidentais do direito - argum enta ele - estão nas suas origens, c. conscqücntcm cntc,

(!) Harold J. Bcrman. ta w and Revohnioti; The Fonnaiion o f the Western Legaí Tradition, Haivard Univcrsity Pn*s&, Cambridgc. 1953. pág. 166.

178 THOMAS E. WOODS JR.

na sua natureza cm íntim a relação com conceitos caractcristi- cam cntc teológicos c litúrgicos, com o são a expiação c os sa­cram entos"2.

A nossa história com eça nos p rim eiros séculos da Igreja. O m ilênio quc sc seguiu ao Edito dc Milão, prom ulgado peio im ­perador C onstantino em 313 (que estendia a tolerância ao cris­tianism o). assistiu a freqüentes conflitos dc com petência entre a Igreja c o Estado, m uitas vc7.es cm detrim ento da prim eira. É verdade quc Santo Ambrósio, o grande bispo dc M ilâo do sé­culo IV, chcgou a proclam ar quc "os palácios pcrtcnccm ao im perador, as igrejas aos sacerdotes*', e quc o papa Gclásio fi­xou a d ou trina quc m ais tarde seria designada pela fórm ula das “duas espadas”, dc acordo com a qual o m undo estava subm etido a dois poderes, um espiritual c ou tro tem poral. Na prática, porém , essa linha cra freqüentem ente ignorada c o po­d e r civil cxcrcia um a autoridade cada vez m aior sobre ques­tões sagradas.

Já cm 325, C onstantino convocava um a assem bléia quc vi­ria a sc r o Concílio dc Nicéia, o prim eiro concílio ecum énico da h istória da Igreja, a fim dc tra ta r do controvertido tem a do a rianism o, um a heresia quc negava a divindade de Cristo. Os séculos seguintes presenciaram interferências ainda m aiores dos governantes cm assuntos da Igreja. Os reis (e, m ais tarde, im peradores) dos francos designavam as pessoas quc deviam o cupar cargos na Igreja c até as instru íam em m atérias dc dou trina sagrada. O m esm o sc daria m ais tarde com os m o­narcas da F rança c da Inglaterra, assim com o com outros go­vernantes do N orte c do I.cste europeu. Em 794, o próprio Carlos M agno convocou c presidiu a um concílio da Igreja, cm Frankfurt. Durante o século XI, os reis-im peradores d as tciTas germ ânicas designavam nâo apenas os bispos, mas tam bém os papas.

Nos séculos IX c X, o problem a do controle das instituições da Igreja pelo Estado tornou-se particu larm ente agudo. O co­lapso da au toridade ccntral na Europa Ocidental d u ran te esses séculos - um a vez quc os m onarcas sc viram incapazes dc con­te r as ondas invasoras vikings, m agiares e m uçulm anas - ofe­

(2) Ibid.. pág. 195.

X. A IGREJA E O DIREITO OCIDENTAL 179

receu aos poderosos proprietários dc te rras a oportun idade dc estenderem a sua au toridade sobre igrejas, m osteiros c a té m esm o dioceses. Desse modo, os abades dos m osteiros, os pá­rocos c os próprios bispos eram indicados po r leigos, cm vez dc o serem pela Igreja.

H ildebrando. nom e com que o papa Sáo Grcgório VII era conhecido antes dc ascender ao sum o pontificado, pertencia ao seto r de reform adores radicais que procuravam nâo apenas persuadir os governantes a designar hom ens bons, mas. funda­m entalm ente, a excluir po r com pleto os leigos da provisão dos cargos na igreja. A reform a gregoriana, que com eçou várias décadas an tes desse pontificado (ao qual deve o seu nome), teve p o r origem o propósito de elevar o nível m oral do clero pela observância do celibato clerical c pela abolição da prática da sim onia (com pra e venda de cargos eclesiásticos). As difi­culdades que surg iram na consecução desse objetivo levaram o partido gregoriano a te r de en fren ta r o verdadeiro problem a: a in trom issão do poder civil na vida d a Igreja. O papa Grcgório (cria pouco sucesso no esforço po r reverter a decadência inter­na da Igreja sc lhe faltasse o poder dc nom ear os bispos, um poder que vinha sendo exercido no século XI por diversos m o­narcas europeus. Por ou tro lado. enquanto os poderes leigos continuassem a designar os párocos c os abades, só poderiam m ultiplicar-se os candidatos esp iritualm ente incapacitados para esses ofícios.

A SEPARAÇÃO ENTRE A IGREJA E O ESTADO

O papa G regório deu um passo decisivo quando definiu o rei com o um sim ples fiel, sem nenhum a funçào religiosa além das que tinha qualquer o u tro cristão. No passado, até m esmo os reform adores da Igreja haviam adm itido que, em bora fosse um erro reconhecer aos governantes civis o d ireito dc preen­cher os cargos da Igreja, o rei era um a exceção. Considerava-se que o rei era um a figura sagrada, com direitos e responsabili­dades religiosas: c havia quem fosse m ais longe e sustentasse que a sagração dc um rei cra um sacram ento (um ritual que, com o o B atism o e a Sagrada Com unhão, confcna a graça san- tificantc à alm a de quem o recebia). Porém, ao declarar o rei

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um simples íicl. que não tinha recebido as ordens sagradas, o papa negava-lhe o direito de intervir nos assuntos da Igreja. E. por extensão, negava esse m esm o d ireito ao Estado que o rei governava.

Com a reform a gregoriana, clarificaram -se. pois. os lim ites que deviam separar a Igreja c o Estado, dc m odo que a Igreja gozasse da liberdade necessária para desem penhar a sua mis­são. Pouco tem po depois, com eçaram a elaborar-se códigos, tan to no âm bito da Igreja com o no do Estado, nos quais sc es· tabeleciam e sc explicitavam os poderes e as responsabilidades dc cada um na Europa posterior a Hildcbrando. E o prim eiro corpo dc Icis sistem ático da Europa medieval, o d ireito canôni· co (isto é, o d ireito d a Igreja), lom ou-sc o m odelo dos diversos sistem as juríd icos civis que foram aparecendo nos séculos su ­cessivos.

Antes dc sc te r com pilado o d ireito canônico, en tre os sé­culos XII c XIII, nâo havia cm nenhum lugar da Europa Oci· dental qualquer sistem a dc Icis parecido com os atuais. Desde a fragm entação do Im pério Rom ano do O cidcntc com o ad ­vento dos reinos bárbaros, o d ire ito linha estado intim am ente ligado aos costum es e aos laços de sangue, e nâo cra conside· rado nem estudado independentem ente dessas realidades ou julgado ap to para estabelecer regras gerais que obrigassem as pessoas. O d ireito da Igreja tam bém havia estado nessa s itua­ção até fins do século XI. Nunca fora codificado sistem atica­m ente e estava disperso por entre as observações dos concílios ecum ênicos, dos livros penitenciais (que determ inavam peni­tências para os pecados), dos papas, dc alguns bispos, da Bí­blia e dos Padres da Igreja. Muito desse direito era de nature­za regional e, po r conseguinte, não sc aplicava ao conjunto da Cristandade.

O século XII com eçou a m udar tudo isso. O tratado-chavc do d ire ito canônico foi obra do m onge Graciano e intitulou-se Uma concordância de cá nonos discordantes (tam bém conhecido com o Decreium Gratiani ou. sim plesm ente, Decretum), redigido por volta dc 1140. É um a obra gigantesca, tan to em volume com o cm alcance, c constituiu tam bém um m arco histórico. Dc acordo com B crm an, foi “o prim eiro tra tado legal ab ran ­gente c sistem ático na história do Ocidcntc e, talvez, na histó­ria da hum anidade - se po r «abrangente» sc entende a ten tati­

X. A IGREJA E O DIREITO OCIDENTAL 181

va de aba rca r virtualm ente todo o d ireito de um sistem a dc go- vemo, c po r «sistem ático· o esforço po r apresen tar esse direito com o um corpo único, cujas partes sc relacionam en tre si dc m odo a form arem um todo"1.

Em um m undo regido pelo costum e, c não po r um conjun­to dc norm as obrigatórias, Graciano e ou tros canonistas desen­volveram critérios, baseados na razão c na consciência, desti­nados a determ inar a validade dos costum es estabelecidos c a in trodu/.ir a idéia dc um a lei natural an terior à política, com a qual lodo o costum e legítimo devia conform ar-sc. Os estudio­sos do direito canônico ensinaram ao Ocidcntc barbarizado de que m odo tom ar um a colcha dc re talhos dc costum es, esta tu ­tos legais e ou tras inúm eras fontes, c p roduzir a p artir dela um a ordem juríd ica coerente, com um a estru tura in ternam en­te consistente, cm que se resolvessem as eventuais contradi­ções anteriores. Esses estudiosos do direito "debruçaram -se so­bre um a variedade dc textos - o Antigo Testam ento, o Evange­lho, «o filósofo» Aristóteles, «o jurista* Jusliniano, os Padres da Igreja, Santo Agostinho, os Concílios da Igreja - c, valen­do-se do m étodo escolástico c da teoria da lei natural, conse­guiram cria r a p artir dessas fontes tão díspares, assim com o dos costum es existentes nas sociedades eclesiástica c civil da época, um a ciência ju ríd ica coerente e racional"4. Esse traba­lho daria im portan tes frutos nào só no cam po do d ire ito da Igreja, m as no dos sistem as legais civis, que viriam a sc r codi­ficados no rasto d a ob ra dc Graciano.

Tão im portante com o o processo de unificação foi o con­teúdo do d ireito canônico, cuja abrangência foi tão vasta que contribu iu para o desenvolvimento do d ire ito ocidental em m a­térias com o o m atrim ônio, a propriedade, a herança, as provas racionais em ju ízo 5.

Q uanto às provas em juízo, os canonistas c os ju ristas cató­licos das universidades medievais viram -se dian te dc um a si­tuação desastrosa: a té fins do século XI, os povos da Europa

(3) Ibid.. pág. M3.(4) Berman. Harold J., T h e Inilucnce of Christianity Upon the Develop­

ment of Law*, cm Oklahoma Law Review 12 (fcv. 1959). pág. 93.(5) Harold J. Berman. Faith and Order Tite Reconciliation of Law and Reli­

gion. Scholars. Press. Atlanta. 1993. pág. 44.

182 THOMAS E. WOODS JR

continuavam a viver cm um regime bárbaro, cm que "a lei que prcvalccia cra a lei da vendeta do sangue, dos julgam entos de­cididos por m eio de com bales, pelos ordálios do fogo c da água. pelo depoim ento dc testem unhas arro ladas pelo acusado cm sua defesa”*.

Sabem os o que representava na prática o julgam ento por m eio do ordáiio: cra subm eter a pessoa acusada de um crim e a provas dc fogo e água destituídas da m enor evidencia racio­nal. Os procedim entos racionais estabelecidos pela lei canôni­ca apressaram o fim desse c dc ou tros métodos igualm ente primitivos, cm que a inocência e a culpa eram determ inadas com dem asiada freqüência por meios supersticiosos.

A lei canônica sobre o m atrim ônio considerou que. para a validade dc um casam ento, era necessário o livre consentim en­to tan to do hom em com o da m ulher, c que o a to poderia ser anulado sc tivesse sido celebrado sob coação ou sc um a das partes estivesse cm erro a respeito da identidade ou de algum a condição im portante da ou tra pessoa. "Aqui estão - escreve Berman - os fundam entos não apenas do m oderno d ire ito m a­trim onial, m as tam bém dc certos elem entos básicos do m oder­no d ireito contratual, principalm ente o conceito de livre m ani­festação da vontade e dc ausência de erro. coação c fraude"7. Foi pela im plem entação desses im portantes princípios legais que sc pôde finalm ente pôr term o ã prática com um do casa­m ento dc crianças, que tinha as suas origens cm costum es bár­baros*.

E assim as práticas bárbaras foram ccdcndo o lugar aos princípios católicos, que, pela codificação e prom ulgação dc um corpo legal sistem ático, puderam introduzir-se nas práticas quotidianas dos povos europeus que haviam adotado o catoli­cismo. São esses princípios que perm anecem com o núcleo dos m odernos ordenam entos legais que regem a vida dos ociden­tais c. cada ve/, mais. dos nào ocidentais.

(6) Harold J. Berman, *The Influence of Christianity upon the Develop­ment of Law“, pág. 93.

(7) Harold J. Kerman, /ü»v and RmthititHi. pág. 228.(8) Harold J. Herman, T h e Influence of Christianity upon the Develop­

ment of Law“, pdjt. 93.

X. A IGREJA K O DIREITO OCIDENTAL 183

Q uando exam inam os as regras pelas quais o direito canôni­co procurou determ inar a crim inalidade de um ato, descobri­mos princípios legais que sc tom aram norm a cm todos os m o­dernos sistem as legais do Ocidente. Os canonistas estavam preocupados com a intencionalidade do ato. com os vários ti­pos dc intenções c com as implicações m orais das diferentes conexões causais. Com relação a este últim o ponto, considera­vam exemplos com o o que se segue. Alguém atira um a pedra para assustar determ inada pessoa. Para esquivar-se a ela, essa pessoa choca-se contra um a rocha e fere-se gravemente. Procu­ra um médico, mas este, po r negligência, causa-lhe a morte. Até que ponto quem atirou a pedra foi o causador dessa m or­te? Este era o sofisticado tipo de questões legais para as quais os canonistas procuravam respostas9.

Esses mesm os canonistas introduziram tam bém o princípio m oderno de que pode haver c ircunstâncias que atenuem ou m esm o isentem um a pessoa de responsabilidade por um cri­me. Sc essa pessoa estava fora dc si, adorm ecida, confusa ou intoxicada, nâo podia sc r responsabilizada cm juízo pelo seu ato à prim eira vista crim inoso. T ratava-se de fatores que. no entanto, só podiam escusar alguém dc responsabilidade peran­te a lei sc, com o resultado deles, o acusado nâo linha cons­ciência de que fazia um a coisa errada, e se além disso nâo ti­vesse provocado um a ou mais dessas condições, com o seria o caso dc alguém que sc em briagasse propositadam ente10.

A bem dizer, o antigo direito rom ano já linha feito a dis­tinção en tre a tos deliberados c atos acidentais, contribuindo assim para in troduzir na lei a idéia da intencionalidade. E os canonistas dos séculos XI e XII ** bem com o os seus coetâneos que edificaram os em ergentes sistem as legais dos Estados da Europa Ocidcnlal - utilizaram elem enlos desse direito, que lhes chegaram ao conhecim ento através do rccém-descobcrto código redigido sob o reinado do im perador Justiniano, no sé­culo VI. Porém, deram o seu próprio contributo, inirodu/.indo distinções im portantes que as sociedades européias, dom ina­

184 THOMAS E. WOODS JR.

das por m uitos séculos dc influência dos bárbaros, dcsconhc·

A DOUTRINA DA EXPIAÇÃO

Chegados a este ponto, devemos exam inar a obra de Santo Anselmo de Cantudria (1033-1109), porque im prim iu a clara m arca de teologia católica nas legislações civis, um a ve / quc a sua obra Cur Deus hom o teve profunda influência sobre a tra ­dição juríd ica ocidental. Nesse livro, Anselmo propós-sc dc* m onstrar, com base na razão hum ana, po r quc era convcnien* te quc Deus sc fizesse hom em na pessoa dc Jesus C risto c por quc a crucifixão de Cristo - cm vez dc qualquer ou tro meio - foi indispensável à redenção da hum anidade, após a queda c a expulsão dc Adão e Eva do paraíso. Especificam ente, o au to r quis dar resposta a um a objeção bastante natural: Por quc Deus m uito sim plesm ente não perdoou a raça hum ana pelo pecado original? Por quc não reabriu as portas do céu aos des· ccndcntcs dc Adão po r m eio de um a sim ples declaração de perdão, por um a to gratu ito d a graça? Por quc, cm ou tras pa­lavras, a crucifixão foi ncccssária?"

A resposta de Anselmo foi a que expomos sucin tam ente a seguir11. Deus criou originalm ente o hom em para quc pudesse gozar da felicidade eterna. O homem, de certo modo. frustrou essa intenção dc Deus ao rcbclar-sc contra E\e, in troduzindo o pecado no mundo. Para que sc satisfizessem as exigências da justiça, o hom em devia ser punido pelo seu pecado. Mas a sua ofensa a Deus. sum a bondade, cra tão grande que nenhum a punição que o hom em pudesse sofrer seria capa/, dc oferecer a Deus um a com pensação adequada. Q ualquer punição que so­fresse teria dc ser tão severa que acabaria por anu la r a sua própria felicidade eterna: e com o o plano de Deus paro o ho­mem cra acim a de tudo conceder-lhe a felicidade eterna, essa punição frustraria novam ente a intenção de Deus.

(11) Cft ibid., pág. 179.(12) Uma condensação pode »cr encontrada em llarokl J. Bcrman. f/tw

and Hewtmion. págs. 177 c sega.

X. A IGREJA E O DIREITO OCIDENTAL 185

Eis por que - cm facc da necessidade de reparação devida a Deus c a incapacidade do scr hum ano dc poder ofcrccê-la - o único cam inho para expiar o pecado original era por m eio da m ediação dc um Dcus-Homcm: só o próprio Deus, assum indo a condição dc homem, podia oferecer um a reparação condigna cm nom e c no lugar do hom em . Foi assim que Santo Anscfmo justificou racionalm ente a necessidade da m orte expiatória de Jesus Cristo.

Pois bem, o d ireito penal surgiu na civilização ocidental no seio dc um am biente profundam ente influenciado por essa ex­plicação dc Santo Anselmo sobre a doutrina da expiação. Essa explicação apoiava-se fundam entalm ente na idéia dc que a vio­lação da lei cra um a ofensa contra a justiça c contra a ordem moral do universo: que essa violação requeria um a punição que reparasse a ordem moral, c que a punição deveria ade- quar-se à natureza c ã extensão da violação.

Efetivam ente, com a passagem do tempo, tom ou-se com um pensar que a explicação de Santo Anselmo sobre a reparação do pecado original sc aplicava não som ente a Adão c Eva, mas igualm ente a lodo aquele com cicssc um crim e no reino tem po­ral: tendo violado a justiça em si (cm abstrato], a pessoa devia subm eter-se a algum a punição, a fim dc que a justiça fosse restabelecida. Em grande parte, o crim e tom ou-se "desperso­nalizado'’. na m edida em que as ações crim inosas com eçaram a scr encaradas m enos com o ofensas a pessoas concretas c mais com o violações ao princípio abstra to da ju stiç a11.

Os delitos, portanto, devem scr rem ediados por penas pro­porcionadas aos males causados. E o d ireito dc propriedade, quando violado, deve scr restabelecido po r quem o violou. Esses princípios e sim ilares ficaram tão profundam ente im ­

(13) r.Nsa linha dc pensamento, embora nos seja familiar, contém o perigo potencial dc que o direito penal, na sua ânsia de reparar a justiça em abstrato por meio dc uma puniçAo rctributiva, degenere a tí o ponto de olhar apenas para o castigo, abandonando qualquer propósito dc restituição, de um tipo ou de outio. É por isso que. hoje cm dia. nos encontramos com a perversa situa- ç io dc que um criminoso v-iolento. em vez de ao menos tentar indenizar de al­gum modo a sua vltitna ou os seus herdeiros, ó ele próprio sustentado petos impostos pagos peta vítima e seus familiam. Portanto, a insistCnçia em que o criminoso ofendeu a justiça em si mesma c. por isso. mcrccc punição, deve es­tar completamente subordinada ao senso anterior dc que o criminoso ofendeu a sua vítima, c que deve indenizar qualquer pessoa que tenha prejudicado.

186 THOMAS E. WOODS JR.

pregnados na consciência - e, naturalm ente nos valores sagra­dos - da sociedade ocidental, que nos é difícil im aginar um or- denam ento legal fundado cm outros princípios c valores14.

AS ORIGENS DOS DIREITOS NATURAIS

A influência da Igreja nos sistem as legais c no pensam ento juríd ico d o O cidcntc estendeu-se tam bém à concepção do dire i­to natural.

Por m uito tem po, os estudiosos pensaram que a idéia dos d ireitos na tu ra is - com o direitos m orais universais possuídos p o r todos os indivíduos - surgiu mais ou m enos espontanea­m ente no século XVII. G raças ao trabalho dc Brian Tiem cy, um a d as m aiores au toridades m undiais sobre o pensam ento medieval, essa tese não poderá con tinuar a sustentar-se. Q uan­do os filósofos do século XVII form ularam as suas teorias so­bre os d ireitos naturais, o que fizeram foi constru ir sobre um a trad ição que já vinha dos m estres católicos do século X II,5. Antes do trabalho dc Tiem cy. eram m uito poucos, m esm o en­tre os professores, os que sabiam que a idéia dos direitos n a tu ­rais sc achava nos com entários ao Decretam, o fam oso com ­pêndio da lei canônica da Igreja Católica e laborado po r Gra- ciano, com o vimos atrás. Foi com esses estudiosos, conhecidos com o dccrctistas, que a tradição realm ente começou.

O século XII m anifestou um grande interesse c preocupa­ção pelos d ire itos de ccrtas instituições e dc certas classes dc pessoas. A partir da controvérsia das investiduras, no século XI, em que reis c papas sc envolveram cm acesos debates so­bre os seus respectivos direitos, travou-se um a d iscussão que, dois séculos depois, ainda estava bastante viva, com o sc vê pela guerra de panfletos que irrom peu en tre os partidários do

(14) Harold J. Bcrman. Ia w and Revolution, pàgv 194-5.(15) Brian Tierney. The Idea of Natural Rights: Studies on Natural Rights,

Natural Ijiw, and Church txiw, vcja-sc tambim Annabel S. Brett. Uherty. Right and Nature: Individual Rights in Later Scholastic Thought, Cambridge Univer­sity Press. Cambridge. 1997: Charles J. Reid. Jr.. T h e Canonislk Contribution to the Wfcstcm Rights Tradition: An Historical Inquiry*, cm Boston College IM\v Revirw 33 (1991). pâgs. 37-92; Kenneth Pennington. "The History of Rights in Western Thought", cm Emory Law Journal 47 (1998). pigs. 237-52.

X. A IGREJA E O DIREITO OCIDENTAL 187

papa Bonifácio VIII c os do rei Filipe o Belo, da França, na se­minal batalha en tre a Igreja e o Estado. Por ou tro lado, as re­lações en tre os senhores e os vassalos da Europa feudal Iradu· ziam-sc cm um feixe dc direitos e obrigações recíprocos. E os m unicípios c as cidades - que, com a renovação da vida u rb a­na no século XI, com eçaram a pontilhar a paisagem européia - insistiam nos seus d ireitos cm face das dem ais autoridades po­líticas16.

A bem dizer, todos esses em bates nâo giravam cm tom o do que poderíam os cham ar propriam ente d ire itos nalurais, visto que envolviam d ireitos dc grupos particulares, m ais do que d ireitos inerentes, por natureza, a todos os seres hum a­nos. Mas foi nesse contexto que os canonistas e ou tros pensa­dores juríd icos do século Xi! com eçaram a afirm ar o conceito de direitos, do qual vieram a ex trair o vocabulário c o corpo de dou trina que hoje associam os às m odernas teorias do direi­to natural. Isso aconteceu do m odo que relatam os a seguir.

As diversas fontes que eram ciladas nos prim eiros capítu> los do Decretum dc G raciano faziam freqüentes referências ao term o iu s naturale ou lei natural. Essas fontes, no en tan to , de­finiam esse term o dc form as m uito diferentes, que às vezes pareciam contradizer-se um as às outras. Os com entaristas ti­veram, pois. de procu rar elucidar os diversos significados que a expressão podia ter. De acordo com Ticmey:

"O ponto im portan te para nós é que. ao explicarem os vários sentidos possíveis do term o ius naturale, os ju ristas descobriram um novo significado, que nào estava realm en­te presente nos textos antigos. Lendo-os com a m ente for­m ada na sua nova cu ltura, mais personatista e baseada em direitos, esses ju ris tas chegaram a um a nova definição. Aqui c acolá, esses textos definiam po r vezes o d ireito na­tural em um sentido subjetivo, com o poder, força, capaci­dade ou faculdade inerentes à pessoa hum ana [...]. Assim que sc captou esse sentido, foi fácil chegar às norm as de conduta prescritas pela Ici natural ou <Ls· licitas reivindica-

(16) Brian Ticnwry. "The Idea of Natural Rights: Origins and Persistence“, cm Northwestern University Journal o f International Human Rights 2 (abr 2004). pág. S.

188 THOMAS E. WOODS JR.

çôes e poderes inerentes aos indivíduos que hoje cham am os direitos naturais" 17.

Os canonistas, argum enta Tiemcy. "com eçaram a ver que um adequado conceito dc justiça natural devia incluir o con­ceito dc direitos individuais”

Nâo tardaram a identificar exemplos específicos dc direitos naturais. Um deles foi o dc a pessoa com parecer peran te um tribunal para sc defender das acusações que pesassem sobre ele. Os ju ris tas medievais negaram que esse direito fosse um a m era concessão do governo aos cidadãos, c insistiram cm que se tratava dc um direito natural dc todos os indivíduos, deriva­do da lei m oral universal. Pouco a pouco, foi assim ganhando peso a idéia dc que os indivíduos possuíam certos poderes sub· jctivos ou d ireitos naturais, pelo sim ples fato de serem hum a· nos. Nenhum povem ante os podia limitar.

No período com preendido en tre 1150 c 1300 - diz o histo­riador Kcnncth Pcnnington "foram definidos os direitos dc propriedade, de legítima defesa, do m atrim ônio e dc processo civil com base na lei natural c nâo na lei positiva, assim com o os direitos dos nào cristãos. E ao situarem esses c ou tros dire i­tos justam ente dentro da estru tu ra da lei natural, os ju ristas puderam susten ta r - e assim o fizeram efetivam ente - que ne­nhum príncipe hum ano podia suprim i-los ou restringi-los. O príncipe nào tinha ju rísdiçào sobre os direitos baseados na lei natural; conscqücntcm cntc, esses direitos eram inalienáveis1' 10. Todos esses princípios parecem -nos conquistas dos tempos modernos, m as a verdade é que chegaram até nós graças aos pensadores católicos medievais, que, tam bém neste caso, esta- bclcccram os fundam entos da civilização ocidental tal com o a conhecemos.

O papa Inocente IV debruçou-se sobre a questão dc saber se os direitos fundam entais - concrctam enie cm relação à pro­priedade c à legitim idade dos governos - pertenciam unica­

(17) Brian Tierney, "The Idea oí Natural Rights: Origins and Persistence*, pág. 6. Grifos homos.

(18) Ibid.(19) Kenneth Pennington. “The H.Mory of Rights in Western Thought*.

X. A IGREJA E O DIREITO OCIDENTAL 189

m ente aos cristãos ou cabiam cm justiça a todos os homens. Naquele tem po, determ inados círculos manifestavam um a opi­nião exageradam ente pró-papista, já que o Papa, com o repre- sen tan te dc Deus na terra, era senhor do m undo in te iro c, por essa razão, o d ireito dc propriedade e o da autoridade legítima só podiam sc r rcivindicados pelos que reconhecessem a au to ri­dade pontifícia. Inocêncio IV rejeitou essa posição c afirm ou que "a posse, a propriedade c a ju risd ição podem pertencer li· citam cntc aos infiéis porque essas coisas não foram feitas apenas para os fiéis, m as para todas as cria turas racionais”20. Esse texto seria citado com grande repercussão pelos posterio­res teóricos do direito.

A linguagem e a filosofia dos direitos continuaram a desen- volver-sc com o passar do tempo. Particularm ente significativo foi o debate ocorrido no início do século XIV em tom o dos franciscanos, um a ordem dc frades m endicantes, fundada no início do século XiH, que sc afastava dos bens terrenos c ab ra­çava um a vida dc pobreza. Com a m orte dc São Francisco, cm 1226, c a contínua expansão da sua ordem , alguns eram favo­ráveis a m oderar a tradicional insistência na pobreza absoluta, m uitas vezes considerada pouco razoável para um a ordem tão grande c espalhada. A ala extrem ista desses frades, conhecidos com o '‘espirituais**, rejeitou qualquer tipo de concessão, insis­tindo Cm que as suas vidas dc abso lu ta pobreza eram réplicas fiéis da vida dc Cristo c dos Apóstolos, c. por conseguinte, a mais alta e perfeita form a dc vida cristã. Porém, aquilo que co­meçou com o um a controvérsia sobre a pobreza dc Cristo c dos Apóstolos - sc ela chcgara ou não a repudiar qualquer gênero dc propriedade - evoluiu para um im portante c fecundo deba­te sobre a natureza da propriedade, c suscitou cm tom o dela um a das questões centrais que dom inariam os tra tados dos teóricos do direito no século XV!!*’.

Mas o que realm ente consolidou a tradição dos direitos n a ­turais no Ocidente foi a descoberta européia da América e as questões que os teólogos escolásticos espanhóis levantaram

(20) Brían Ticmcy. "The Idca of Natural Kighis: Origins and Pcrsislcncc'.pág 7.

(21) Ibid.. pág. 8.

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acerca dos d ireitos dos habitantes dessas novas terras, um a his- tória que já expusem os atrás. (Esses teólogos c itaram freqüen­tem ente a declaração dc Inocéncio IV acim a transcrita). Ao de· senvolverem a idéia de que os nativos da América possuíam di­reitos naturais que os europeus tinham a obrigação dc respei­tar. esses teólogos do século XVI lançaram os fundam entos doutrinários de um a tradição que vinha das obras dos canonis- tas do século XII.

Resum am os. Foi no d ireito canônico da Igreja que o Oci­dente viu o prim eiro exemplo dc um sistem a legal m oderno, à luz do qual ganhou form a a m oderna tradiçáo legal do Ocidcn· te. Dc igual modo, a lei penal ocidental foi p rofundam ente in­fluenciada, náo só pelos princípios legais da lei canônica, mas tam bém pelas idéias teológicas, particularm ente pela doutrina da reparação desenvolvida por Santo Anselmo. E, por últim o, a p rópria idéia dos direitos naturais, que du ran te m uito tem po se considerou te r surgido e alcançado a sua plena form ulação por obra dos pensadores liberais dos séculos XVH e XVIII, teve a sua origem no trabalho dos canonistas, papas, profes­sores universitários e filósofos católicos. Q uanto m ais os estu­diosos pesquisam o direito ocidental, mais nítida sc apresenta a m arca que a Igreja Católica im prim iu á nossa civilização c m ais nos convencem os dc que foi ela a sua arquiteta.

A IGREJA E A MORAL NO OCIDENTEXI.

MORAL CATÓLICA E MORAIS NÂOCATÔL1CAS

Nâo é dc surpreender quc os padròcs m orais do Ocidente (cnham sido decisivam ente configurados pela Igreja Católica. Muilos dos mais im portantes princípios da tradição moral oci­dental derivam da idéia nitidam ente católica da sacralidade da vida hum ana, do valor único dc cada pessoa, cm virtude da sua alm a im ortal. Essa idéia nâo sc encontrava cm lugar ne­nhum do m undo antigo, nem na Grécia nem em Roma. Com efeito, o pobre, o fraco ou o doente eram norm alm ente tra ta ­dos com desprezo c. às vezes, até m esm o com pletam ente aban­donados, com o já vimos a propósito das obras de caridade em ­preendidas no seio da Igreja.

Platão, por exemplo, disse quc um pobre homem cuja doen­ça o tom asse incapaz de con tinuar a traba lhar devia ser aban ­donado à m orte. Scncca escreveu: "Nós afogam os as crianças quc nascem débeis c ano rm ais"1. M uitas m eninas sadias (incô­m odas cm sociedades patriarcais) eram sim plesm ente abando­nadas, o quc fez com quc a população m asculina do antigo m undo rom ano ultrapassasse a feminina em cerca dc trin ta por cen to 1. A Igreja nunca aceitou sem elhante com portam ento.

Vemos o com prom isso da Igreja com a natureza sagrada

()} Alvin J. Schmidt, Utuler lhe hífluenct. pdgv 129 c 153.(2) Vinccnt Carmll e Dnvid ShiflcU. Chrisiianiiy o»r Trial, pág. 7.

192 THOMAS E. WOODS JR.

da vida hum ana na condenação do suicídio, prática que tinha defensores no m undo antigo. Aristóteles criticou o suicídio, mas. entre os antigos, ou tros - particularm ente os cstóicos - eram -lhe favoráveis, com o m eio aceitável dc escapar ao sofri­m ento físico ou psíquico. Um bom núm ero dc cstóicos famo­sos com eteu suicídio. Que m elhor prova dc desapego do m un­do poderia haver do que ser a própria pessoa a determ inar o m om ento da partida?

Em A Cidade de Deus. Santo Agostinho condenou os ele­m entos da Antigüidade pagá que encaravam o suicídio com o um ato nobre:

"Grandeza dc espírito náo é o term o correto para desig­nar alguém que sc m ata por lhe ler faltado coragem para enfren tar o sofrim ento ou as injustiças dos outros. Na ver­dade. rcvcla-sc fraqueza cm um a m ente que náo pode su­po rta r a opressão física ou a opiniáo estúpida da plebe. Nós atribuím os m uito justam ente grandeza de espírito a quem tem a fortaleza dc enfren tar um a vida de m iséria cm vez dc fugir dela, c de desprezar os juízos dos hom ens [...] antepondo-lhes a pura luz dc um a boa consciência'**.

0 próprio exemplo dc Cristo - continuava Agostinho - pro í­be tal com portam ento. C risto podia te r induzido os seus segui­dores ao suicídio, para escaparem dos castigos dos seus perse­guidores, m as nào o fez. “Sc Ele nâo lhes aconselhou esse ca* minho para abandonar esta vida - raciocinava Agostinho em bora lhes tivesse prom etido um a m orada eterna depois que partissem , é claro que esse m eio náo é perm itido àqueles que adoram o único Deus verdadeiro''·1.

Sáo Tom ás dc Aquino tam bém abordou a questão do suicí­dio no tra tado sobre a justiça da sua Sunittta theologiae. Dois dos seus três principais argum entos contra o suicídio baseiam- •se na razáo, independentem ente da rcvclaçào divina, m as con­cluem com um raciocínio estritam ente católico:

(3) Santo Agostinho. A Cidade de Dem, I. 22.(4) Ibid.

XI. A IGREJA E A MORAL NO OCIDENTE 193

**A vida é um presente oferecido por Deus ao hom em c só Ele tem o poder dc dá-la ou tirá-la. Portanto, quem tira a sua própria vida peca contra Deus. assim com o aquele que m ata o servo de o u tra pessoa pcca contra o senhor a quem esse servo pertencia, ou assim com o peca aquele que usurpa o poder dc ju lgar cm um a m atéria que não é da sua jurisdição. A Deus pertence ju lgar da m orte c da vida. com o di/, o Dcutcronóm io 32, 39: Eu faço morrer e faço vi·

Em bora talvez não seja fácil medi-lo, pode-se a firm ar que a aversão ao suicídio infundida pela Igreja teve extraordinário eco en tre os seus fiéis. No início do século XX. um estudioso sublinhava a diferença gritante que existia na Suíça entre a taxa de suicídios ocorridos nos cantões católicos e a que sc ve­rificava nos cantões protestantes, assim com o o baixíssimo ín­dice de suicídios observado na profundam ente católica Irlanda, (erra dc tan tas tragédias c infortúnios*.

Foram tam bém os ensinam entos dc Cristo proclam ados pela Igreja que ajudaram a abolir os com bates dc gladiadores, em que os hom ens lutavam entre si até à m orte com o forma dc entretenim ento. Essa banalização da vida hum ana não po­deria te r sido mais oposta à doutrina católica sobre a dignida­de c valor da vida hum ana. No seu Vida quotidiana na Roma Antiga, Jcrom c Carcopino diz c laram ente que "as carnificinas na arena foram banidas po r ordem dos im peradores cristãos". Assim aconteceu efetivam ente cm fins do século IV na metade ocidental do Im pério Romano, c no início do V na metade oriental. Lccky situou esse progresso na sua perspectiva histó­rica: "Houve poucas reform as tão im portantes na história m o­ral da hum anidade com o a supressão dos espetáculos de gla­diadores, um feito que deve ser a tribu ído quase exclusivamen­te à Igreja Católica"7.

(5) Stunnut thcohxiac, 11-11. q. 64. art.5.<6) James J. Walsh. The World's Debt to lhe Catoitc Church. The Stratford

C.. Boston. 1924. pág. 227.(7) Para ambas as c itação, vcr Alvin J. Schmidt. Under the Influence, pág.

63.

O DUELO

A Igreja foi igualm ente inimiga da prática do duelo, tão es- palhada. Aqueles que apoiavam essa prática alegavam que, com a sua institucionalização, m ediante códigos dc honra que fixassem o m odo dc rcalizar-sc c a presença dc testem unhas, se desencorajava a violência. Isso era m elhor, diziam , d o que as incessantes rixas sangrentas que duravam até ã m adrugada, com absoluto desprezo pela vida hum ana. Como só os utopis- tas acrcditavam que a violência podia scr totalm ente e rrad ica­da, era m elhor canalizá-la po r vias socialm ente m enos pertur· badoras. Esses eram os argum entos com que se justificavam os duelos.

Mas nem com essas m edidas deixava de haver algo dc re­pugnante cm que os hom ens sc servissem de espadas c pistolas para vingar a sua honra, c daí que a Igreja aplicassc sançòcs contra os que sc envolviam nessa prática. O Concílio de Trcnto (1545*1563), que tra tou principalm ente da reform a eclesiástica c dos pontos dc doutrina que a reform a pro testan te contestava, expulsou da Igreja os que sc batiam em duelo, excluindo-os dos sacram entos e pro ib indo que tivessem funerais católicos. O papa Bento XIV reafirm ou essas penas cm m eados do sécu­lo XVIII c o papa Pio IX deixou claro que elas se estendiam igualm ente às testem unhas c aos cúm plices.

O papa Leão XIII tom ou a insistir nessa oposição da Igre­ja. em um a época cm que as leis civis se m ostravam indiferen­tes a essa prática. R esum indo os princípios religiosos cm que sc baseara du ran te séculos a condenação católica ao duelo, afirm ou:

"A lei divina, que é conhecida tan to pela luz da razão com o pelo que a Sagrada Escritura nos revela, proíbe ex­pressa c term inantem ente que - fora dos casos dc proteção da ordem pública - alguém m ate ou fira ou tro hom em , a m enos que seja com pelido a fazê-lo cm legitima defesa. Além disso, tcnha-sc presente que aqueles que provocam um com bale privado ou o aceitam quando desafiados, p ro­curam deliberada c desnecessariam ente tira r a vida a um adversário ou pelo m enos feri-lo. Por o u tro iado. a lei divi­na proibe quem quer que seja de a rriscar a vida im pruden-

194 THOMAS E. WOODS JR

tcm cntc, cxpondo-se a um grave c evidente perigo, quando a tan to nào o obrigam o dever ou a caridade. Existem na própria natureza do duelo um a tem eridade com pletam ente cega c um desprezo pela vida. Portanto, nâo pode restar nenhum a dúvida na m ente daqueles que se envolvem em um duelo, de que am bos assum em individualm ente um a dupla culpa: a de destru ir o o u tro c a de pô r deliberada­m ente cm risco a sua própria vidaM.

As ra/Ôes alegadas pelos que se balem em duelo para d iri­m ir as suas contendas sâo - escreveu o papa - ridiculam ente inadequadas. No fundo, baseiam -se no sim ples desejo de vin­gança: "Na verdade, é o desejo dc desforra que impele os ho­m ens passionais c arrogantes a exigir satisfações''. E acrescen­tou: “Deus m anda a todos os hom ens que sc am em uns aos ou ­tros com am or fraternal c proibe-os de jam ais u sar dc violência seja com quem for; condena a vingança com o um pecado m or­tal e reserva para Si o d ireito à expiação. Se as pessoas fossem capazes de dom inar a sua paixão e de subm eter-se a Deus, se­ria m ais fácil abandonar o m onstruoso costum e do duelo"*.

XI. A IGREJA E A MORAL NO OCIDENTE 195

O TEMA DA GUERRA JUSTA

O utro cam po cm que a Igreja Católica forjou as concepções m orais do Ocidente foi o da guerra justa. O m undo da an tigüi­dade clássica tinha debatido esse tem a. m as fizera-o a propósi­to dc determ inadas guerras, sem chegar a e laborar um a teoria com pleta sobre o tem a. "Nem em Platão nem em Aristóteles - assegura Em esl Fortin - encontram os nada que se com pare à fam osa quaestio [questão] «Sobre a guerra» na Sutum a theolo­giae dc São Tom ás de Aquino".

É verdade que Cícero antecipou algo parecido com um a teoria sobre a guerra ju sta ao ana lisa r os conflitos bélicos na história de Roma. Mas os Padres da Igreja, que herdaram a sua ideia, deram -lhe um a extensão m uito mais am biciosa, as- sum indo-a com o ferram enta dc avaliação m oral. Fortin acres-

(8) txào XIII. Pastoralis Ofítcit. 1891. págs. 2-4.

196 THOMAS E. WOODS JR

ccnta que “devem os reconhecer que os teólogos cristãos deram ao problem a da guerra um a urgência m uito m aior do que ti· nha tido para alguns filósofos da an tigüidade clássica1*, p rinci­palm ente à vista "da força dos ensinam entos bíblicos a respei­to da sacralidade da vida”*.

A prim eira abordagem do tem a da guerra c dos critérios m orais necessários para que possa scr considerada justa, é a que encontram os nos escritos de Santo Agostinho. Para ele. um a guerra Msó sc justifica pela injustiça dc um agressor, c que essa injustiça constitua fonte de sofrim ento para algum hom em bom. sendo por isso um a injustiça hum ana". Em bora não o dissesse expressam ente, parece tam bém que dava por certo que um exército beligerante devia poupar da violência a população civil. Com isso. m ais a advertência que fazia de que um a guer­ra não podia te r por m otivo o esp írito de desforra, que não po- dia ser em preendida com base em m eras paixões hum anas, in­sistia nas disposições in ternas dos com batentes, que deviam re­frear o uso indiscrim inado da fo rça10.

São Tom ás dc Aquino tam bém tra tou do tem a dc forma m emorável, m encionando três condições que deviam concorrer cum ulativam ente para que um a guerra pudesse vestir o m anto da justiça:

"Para que um a guerra seja justa, são necessárias três coisas.

"Em prim eiro lugar, deve sc r o soberano quem . pela sua au toridade, o rdene um a guerra, pois declará-la não é com petência dc um indivíduo privado.

"Em segundo lugar, requer-sc um a causa justa , ou seja. que aqueles que são atacados o m ereçam por terem com e­tido algum a falta. Por isso, d iz Agostinho: «Costuma-sc cham ar guerra justa àquela cm que um a nação ou um Es­tado devam scr punidos por rccusar-sc a castigar os erros

(9) E m o i L. Fortin, 'Christianity and the Just War Theory", cm J. Brian BcncMad. cd.. Fortin: Collected Essays, vol. 3: Human Rights. Vtnite. and the Common Good: Unlimeh· Meditations on Religion and Politics. Rouan&Lit- tlcfkid. Lahham. Maryland, 1996, pdgs 285*6.

(10) John Langan. T h e Elements of St. Augustine's Just War Theory’. Journal of Religious F.thia 12 (prim. 1984). pàg. 32.

XI. A IGREJA E A MORAL NO OCIDENTE 197

com ctidos pelos seus súditos ou a restitu ir o que foi injus­tam ente roubado·.

"Em terceiro lugar. é necessário que os beligerantes te­nham um a intenção reta, isto é. que tenham em vista pro­m over o bem ou ev itar o mal [...]. Porque pode acontecer que, sendo legítima a autoridade dc quem declara a guerra c ju sta tam bém a causa, nâo obstante, seja ilícita pela má intenção. Por isso. A gostinho d iz que «são, em justiça, con­denáveis na guerra a paixão por infligir danos, a cruel sede d c vingança, um ânim o implacável c inexorável, a febre dc revolta, a am bição de dom inar c ou tras coisas sem elhan­tes»“ ".

Essa trad ição continuou a evoluir nos fins da Idade Média e d u ran te o período m oderno, especialm ente com o trabalho dos escolásticos espanhóis do século XVI. Francisco dc Vitória, que, com o vimos, desem penhou um papel prim ordial na for­m ulação dos rud im entos do d ireito internacional, tam bém sc dedicou ã questão da guerra justa . Em De iure belli. identificou três regras principais da guerra, tal com o explicam os h istoria­dores católicos Thom as A. M assaro c Thom as A. Shannon:

“Prim eira regra: Partindo da base dc que um príncipe tem autoridade para em preender um a guerra, deve an tes de tudo nâo ficar à procura dc ocasiões c causas para dc- clará-ia, mas. sc possível, viver cm paz com todos os ho­mens, com o nos recom enda São Paulo.

“Segunda regra: Q uando rebenta um a guerra po r um a causa justa , nâo deve scr em preendida para destru ir o povo con tra o qual é dirigida, mas som ente para o b te r os d ire i­tos e a defesa do próprio país c para que, com o tempo, dessa guerra possam advir a paz e a segurança.

“Terceira regra: Q uando sc vence um a guerra, a vitória deve se r utilizada com m oderação c hum ildade cristã, c o (soberano] vencedor deve com preender que está sentado com o juiz en tre dois Estados, o que foi injustiçado c o que com ctcu a injustiça. Por isso, deve agir com o juiz e nâo

(H ) Swnma ihettlogute. IWI. q. 40. a. ). Referirteia* inferna* omitidas.

198 THOMAS E. WOODS JR.

com o acusador, a fim dc que. pelo ju ízo que em ila. o injus­tiçado possa ob ter satisfação c, ev itando tan to q uan to pos* sívei a calam idade c o in fortún io para o Estado ofensor, os indivíduos ofensores sejam castigados dentro dos limites da l e r 11.

Em term os parecidos, o pc. Francisco Suárcz resum iu as· sim as condições dc um a guerra justa:

“Para que se possa considerar ju sta um a guerra, devem observar-se certas condições, que podem ser enunciadas cm très itens. Prim eiro, deve ser declarada po r um governo legítimo. Segundo, a sua causa deve ju sta e correta. Tercei· ro. devem ser usados m étodos justos, isto é, que dem ons· trem eqüidade, tan to no com eço da guerra, com o no seu decurso e na vitória A conclusão gera! é que, em bora a guerra cm si m esm a não seja um mal, deve se r incluída, pelas m uitas calam idades que acarreta , en tre os em preen­d im entos que. com freqüência, se levam a cabo incorreta· mente. Por conseguinte, é preciso que concorram m uitas circunstâncias para considerá-la honesta” 1*.

O Príncipe, de Maquiavcl. era um a análise política m era­m ente la ica14. A visão que oferece sobre a relação en tre a m o­ral e o E stado - c que ainda hoje influi no pensam ento político ocidental - a juda-nos a perceber o significado e a im portância da teoria da guerra justa . Por esse esquem a, o E stado não po­d ia se r ju lgado po r nada nem por ninguém , c não tinha que p restar contas a nenhum a au toridade m ais alta: nem o Papa nem qualquer código m oral podiam ju lgar o com portam ento do Estado. Uma das razões pelas quais Maquiavcl ofendia tan· to o catolicism o cra a noção dc que o próprio Estado - c não apenas os indivíduos - está sujeito às norm as morais. Como expressou um escritor, a política tom ou-se para Maquiavcl

(12) Thomas A. Mawaru c Thomas A. Shannon. Catholic Perspectifs on Peace and War, Rovvan& Littlefield, lanham. Maryland, 2003. pig. 17.

(13) Ibid.. pág. 18.(14) Vcp-sc Roland 11. Bainton, Christian Altitudes Tov.'ard H'or and Peace.

Abingdon Pré», New York. 1960. págs. 123 26.

XI. A IGREJA E A MORAL NO OCIDENTE 199

“um jogo, com o o xadrez, e a e lim inação de um peão político, m esm o quc esse peâo consistisse em cinqüenta mil hom ens, nâo devia preocupar m ais quc com er um a peça de m arfim do tabu le iro"IS.

Foi precisam ente para com bater esse tipo dc pensam ento quc com eçou por desenvolver-se a trad ição da guerra ju sta c, particu larm ente, as contribuições dos escolásticos do século XVI. De acordo com a Igreja Católica, ninguém - nem m esm o o Estado - está isento das exigências da m oral. Nos séculos subseqüentes, a teoria da guerra ju sta dem onstrou-se um a fer­ram enta indispensável de reflexão m oral; c os filósofos quc. nos dias dc hoje, trabalham nessa linha, partem desses princí­pios trad icionais para fazer face aos desafios específicos do sé­culo XXI.

CASTIDADE E DIGNIDADE DA MULIIER

As fontes m ais an tigas revelam -nos quc a m oral sexual sc tinha degradado em extrem o na época cm que a Igreja surgiu na H istória. Como escreveu o satírico Juvenal, a prom iscuida­de generalizada levara os rom anos a perder a deusa Castidade. Ovídio observou que. no seu tem po, as práticas sexuais sc ti­nham rebaixado a um nível especialm ente perverso, c a té m es­m o sádico. Podem-se encon tra r testem unhos sim ilares em Ca- tulo. M arciào c Suetônio acerca do estado da fidelidade conju­gal e da im oralidade sexual nos tem pos dc Cristo. C ésar Au­gusto tentou pô r cobro a essa situação com m edidas legais, m as a lei raram ente consegue reform ar um povo quc já tenha sucum bido ao fascínio dos prazeres im ediatos. No com eço do século II. Tácito afirm ava que um a m ulher casta cra um fenô­m eno r a ro ,f\

A Igreja ensinou que as relações íntim as só sáo lícitas entre m arido c m ulher. O próprio Edw ard Gibbon, que culpava o cristian ism o pela queda do Im pério Rom ano, foi obrigado a adm itir: “Os cristãos restauraram a dignidade do m atrim ônio".

(15) Ibtd.. pág. 126.(16) Alvin J. Schmidt. Utider lhe Inftttence. págs. SO-2.

200 THOMAS E. WOODS JR.

Galeno, o m édico grego do século 11. im pressionou-se tan to com a retidão do com portam cnto sexual dos cristãos, que os descreveu com o “tão ad ian tados cm autodisciplina c no inten* so desejo dc ating ir a excelência m oral, que cm nada são infe- riores aos verdadeiros filósofos"17.

Para a Igreja, o adultério não sc lim itava à infidelidade da esposa, com o sc costum ava considerar no m undo antigo, m as estendia-se tam bém â infidelidade do m arido. A influência que ela exerceu neste dom ínio foi dc grande im portância histórica, c não adm ira que Edw ard W csicrm arck, um cxcclcnte historia· do r da instituição do m atrim ônio, tenha cred itado à influência cristã a equalização do pecado dc adultério '*.

Esses princípios cxplicam cm parte p o r que as m ulheres constituíam tâo grande parcela da população cristã dos prim ei­ros séculos da Igreja. As m ulheres cristãs eram tâo num erosas que os rom anos chegaram a desprezar o cristian ism o po r con­siderá-lo um a religião para m ulheres.

A a tração que a fé exercia sobre as m ulheres provinha em boa m edida dc que a Igreja santificava o m atrim ônio - elevado po r ela à categoria dc sacram ento - c proibia o divórcio (o que, na realidade, significava que nenhum hom em podia aban ­d o n a r sem m ais nem m enos a esposa para casar-se com outra mulher).

Foi tam bém graças ao catolicism o que as m ulheres a lcan­çaram autonom ia:

"As m ulheres encontraram proteção nos ensinam entos da Igreja - escrevc o filósofo Robert Phillips - . c foi-lhes perm itido form ar com unidades religiosas do tadas de gover­no próprio, algo inusitado cm qualquer cu ltu ra do m undo antigo [...] Basta repassar o catálogo dos santos, rep leto dc m ulheres. Em que lugar do m undo, a nâo se r no cato lic is­mo, as m ulheres podiam d irig ir as suas próprias cscolas. conventos colégios, hosp ita is e orfanatos?"1’

(17) Ibid.. pág. 84.(18) Ibid.(19) Roben Phillips, l a u Thtttxs Fini. Roman CathoJk: Book*. Fort Col-

lins. Colorado. 2004. pág. 104.

XI. A IGREJA E A MORAL NO OCIDENTE 201

A VIDA VIRTUOSA

Um aspccto da an tiga filosofia grega que constitu iu um a ponte para o pensam ento católico foi a afirm ação dc que exis* le um gênero dc vida que convém ao chim panzé, c o u tro que convém ao scr hum ano. Dotado dc razão, o sc r hum ano não está condcnado a ag ir p o r m ero instinto. É capa/, dc reflexão m orai, um a faculdade que nem os m ais evoluídos espécim es do reino anim al possuem . Se falha no exercício dessa faculda­de, jam ais poderá viver à a ltu ra da sua natureza. Sc não dá prioridade às operações da inteligência, sc não subm ete a sua conduta a um ju ízo m oral sério, com o sc poderá dizer que é um scr hum ano? Sc o princípio que rege a vida dc um hom em é fazer tudo o que lhe traga um p razer im ediato, esse hom em , cm certo sentido, nâo difere de um anim al.

A Igreja ensina que um a vida verdadeiram ente d igna do scr hum ano requer a ajuda da graça divina. M esmo os pagãos ro­m anos sc apercebiam dc certo m odo da condição degradada do hom em : “Que coisa desprezível é o hom em , sc não conse­gue clevar-sc acim a da condição hum ana!", escreveu Sôncca. A graça dc Deus podia ajudá-lo a conseguir essa superação. Essa é a finalidade com que a Igreja nos propõe o exem plo dos san ­tos: dem onstram scr possível a um hom em alcançar um a vida dc virtudes heróicas quando sc deixa d im inuir p ara que Cristo possa crescer nclc.

A Igreja ensina que um a vida boa nâo é sim plesm ente aquela cm que as ações externas estão acim a dc qualquer cen­sura. C risto insiste em que nâo basta não m atar ou não comc- te r adu ltério; nâo sc deve apenas preservar o corpo desses c ri­mes; a p róp ria alm a deve proteger-se da inclinação a praticá- -los. Nâo devem os apenas nâo roubar nada do nosso vizinho, m as tam bém nâo adm itir pensam entos dc inveja sobre o que ele possui. E em bora nos seja perm itido, evidentem ente, od iar o que é m au - o pecado ou Satanás tem os de a fasta r qual­quer tipo de ira c ódio. que só corroem a alma. Devemos evitar não apenas com eter adultério , m as tam bém cnireter-nos com pensam entos im puros, para assim não transfo rm ar um scr hu ­m ano em m ero objeto. Uma pessoa que deseje viver um a vida boa nâo deve converter os seus sem elhantes em um a coisa.

C ostum a-sc dizer que é difícil fazer bem algum a coisa, que

é difícil viver com o um scr hum ano m ais do que com o um anim al. Requcr-sc seriedade moral e autodisciplina. É célebre a afirm ação de Sócrates quando di/, que o conhecim ento é vir* tudc, que conhecer o bcm é fazer o bom. Aristóteles e São Paulo sabiam m ais que isso, pois todos nos lem bram os de m o­m entos da nossa vida em que. conhecendo perfeitam ente o que era bom, não o fizemos e. do m esm o modo, sabendo o que era errado, o fizemos. É po r isso que os d iretores espirituais reco­m endam aos seus orientados que com am um a cenoura da pró ­xima vez que desejarem com er um docc; nào porque os doces sejam maus. m as porque, sc conseguirm os d isciplinar a nossa vontade cm situações em que não está cm jogo nenhum princí­pio moral, estarem os m ais bcm preparados no m om ento da tentação, quando estiverm os realm ente peran te a disjuntiva dc escolher en tre o bem c o mal. E assim com o. quanto m ais nos hab ituarm os ao pccado, m ais facilm ente pecarem os, tam bém é verdade que - com o observou Aristóteles - a vida virtuosa sc tom a cada ve/, mais fácil quan to m ais a praticam os e m ais ela sc to rna um hábito.

Estas são algum as das idéias distintivas que a Igreja in tro­duziu na civilização ocidental. Hoje em dia, a m aioria dos jo ­vens só ouviu falar cm term os caricatos dos ensinam entos da Igreja sobre a moral sexual, c. dada a cu ltu ra em que vivem, nem podem com eçar a en tender po r que a Igreja os propõe. Contudo, fiel à missão que tem cum prido ao longo de dois m i­lénios, a Igreja continua a anunc ia r um a o u tra proposta moral a esses jovens im ersos cm um a cu ltura que os ensina incansa­velmente a buscar o prazer im ediato. A Igreja recorda as gran ­des figuras da Cristandade - com o Carlos M agno, São Tom ás de Aquino, São Francisco dc Assis, para c ita r uns poucos - c ofcrecc*os com o m odelo de com o devem viver os verdadeiros hom ens.

A sua m ensagem ? Essencialm ente esta: você pode asp irar a scr um desses hom ens - um constru to r da civilização, um ser­vidor dc Deus e dos hom ens, um m issionário heróico - , ou en ­tão alguém centrado em si mesmo, obcecado pela ânsia de sa ­tisfazer o«· seus apetites. A nossa sociedade faz tudo o que está ao seu alcance para que você siga o segundo cam inho. Seja você mesmo. Erga-sc por c im a da m anada, declare a sua inde­

202 THOMAS E. WOODS JR.

XI. A IGREJA 1£ A MORAL NO OCIDENTE 203

pendência cm facc de um a cu ltura que pensa que você é tâo pouca coisa, c proclam e que quer viver nào com o um anim al, mas com o um hom em .

CONCLUSÃO

A “CONDESCENDÊNCIA* DIVINA

A religião 6 um aspccto ccntral dc qualquer civilização. Ao longo dc dois mil anos. a m aneira dc o hom em ocidcntal pen­sa r sobre Deus deve-se sem a m enor dúvida à Igreja Católica.

Sâo qua tro as características que distinguem a concepção que a Igreja tem dc Deus das concepções que as antigas civili­zações do O riente Próximo tinham do d iv ino1.

A p rim eira: Deus é um só. Os sistem as politeístas, segundo os quais ce rtas divindades quase on ipotentes zelam por de­term inados fenôm enos na tu ra is ou lugares físicos, são estra­nhos á m entalidade ocidcntal, que vê Deus com o um se r sin­gular. do tado de sum o poder sobre todos os aspectos da sua criação.

A segunda: Deus é abso lu tam ente soberano, porque não deve a sua existência a nenhum a ou tra realidade an te rio r c nào está subm etido a nenhum a ou tra força. Nem a doença, nem a fome. nem a sede, nem a fatalidade - elem entos que po­dem afetar cm m aior ou m enor m edida os deuses do O riente Módio - tem qualquer poder sobre Ele.

A terceira: Deus é transcendente, abso lu tam ente distin to dc

(I) Para a análise destas quatro características, vcja-sc Marvin Perry c ou­tros. Western Civiliyitiott: Ideas, Politics it Society. 6 ' cd.. Houghton Mifflin, Boston, 2000, pág. 39*40.

CONCLUSÃO 205

toda a sua criação, e está acim a dela. N âo ocupa nenhum lu­gar físico nem dotou dc alm a as coisas que criou, com o acon­tece com os deuses na tu ra is do anim ism o. Foi por esse a tribu ­to - por se te r com preendido que a natureza física está despro­vida de a tribu tos divinos - que pôde su rg ir a ciência c desen­volver-se a idéia dc leis naturais. Q uando sc rcconhcccu que os objetos do m undo criado nâo possuem vontade própria, pas­sou a se r possível concebê-los dc acordo com parâm etros regu­lares dc com portam ento.

Finalm ente, Deus é bom. À diferença dos deuses sum érios, que. na m elhor das hipóteses, pareciam indiferentes ao bem- -estar do hom em , ou dos deuses da an tiga Grécia, que eram às vezes m esquinhos c vingativos nas suas relações com a hum a­nidade. o Deus do catolicism o am a a hum anidade e quer o bem do hom em . Além disso, em bora lhe agradem os sacrifí­cios rituais - principalm ente o S anto Sacrifício da Missa com o aos deuses pagãos, tam bém lhe agrada, con trariam ente â m aioria deles, o bom com portam ento dos seres hum anos.

Todas estas características sáo tam bém evidentes no Deus do Antigo Testam ento. Mas, com o conseqüência da Encarna­ção dc Jesus Cristo, a concepção católica dc Deus é diferente d a judaica. Com o nascim ento de Cristo c a sua passagem por este m undo, sabem os que Deus não procura som ente a adora­ção do hom em , m as tam bém a sua am izade. Por isso, o escri­to r católico do século XX Robcrt Hugh Bcnson pôde cscrcvcr um livro in titu lado A amizade com Cristo (1912)2, c, nos seus Fragmentos filosóficos. Sorcn Kicrkcgaard chegou a com parar Deus a um rei que desejasse conquistar o am or dc um a m ulher do povo. Sc sc aproxim asse dessa m ulher com o seu poder real, ela sc assustaria c seria incapaz dc lhe ofcrcccr o tipo dc am or espontâneo que surge en tre iguais. Poderia tam bém ser atra ída pela riqueza e poder do rei, ou sim plesm ente tem er rccusá-lo po r ele ser rei. Foi po r isso que o rei sc aproxim ou da m ulher plebéia com a aparência dc um plebeu: só assim seria capaz dc inspirar-lhe um am or sincero c só en tâo poderia saber sc esse am or por ele era realm ente genuíno.

(2) Há uma iraduçâo cm portugufe: Robcrt Hugh Bcnson, A amizade com Cristo, Otiadranic. SAo Paulo. 1996.

206 THOMAS B. WOODS JK.

Foi isso - d i / K ierkegaard - o quc Deus fez quando nasceu no m undo encarnado em Jesus Crislo, a Segunda Pessoa da Santíssim a Trindade. Procurou o nosso am or sem nos esm agar com a m ajestade da visão beatífica (que não está ao nosso a)· cancc neste m undo, mas apenas no m undo que há dc vir), m as pela condescendência cm re lac ionasse conosco no nosso nível, assum indo a natureza hum ana c tom ando carne hum ana*. Eis um a idéia ex traord inária na história da religião, ainda quc es­teja tão em butida na cu ltura ocidental quc poucos sc detêm a pensar nela.

Os conceitos quc o catolicism o introduziu no m undo enrai- zaram -sc tan to que até m esm o os m ovimentos contrários estão freqüentem ente im pregnados deles. M urray R othbard fez no tar a té que ponto o marxism o, um a implacável ideologia laica, foi buscar idéias religiosas ãs heresias cristãs do século XVI4. E os intelectuais da progressista c ra am ericana dos inícios do sécu­lo XX, quc sc congratulavam por terem abandonado a sua fé (largam ente protestante), continuavam a d iscorrer servindo-sc fundam entalm ente dc um vocabulário claram ente c ris tão 9.

Estes dados só reforçam o que já vimos: a Igreja Católica não apenas contribu iu para a civilização ocidental - a Igreja construiu essa civilização. É verdade que bebeu elem entos do m undo antigo, m as fê-lo dc um m odo quc transform ou a trad i­ção clássica, melhorando-a.

É difícil encon tra r um a iniciativa hum ana já desde o início da Idade Média para a qual os m osteiros não tenham con tri­buído. A Revolução Científica arraigou-se na Europa Ocidental graças aos fundam entos teológicos e filosóficos quc, lançados

(3) Kierkegaard cra protestante, mas descreve aqui, evidentemente, um as· pcclo da cncamaçio dc Cristo quc ó compartilhado pelos católicos. Além dis­so. mantinha cm geral uma atitude crítica cm rciaç&o a Lutcru c deplorava a supressão da Iradiç&o monástica. Vcja-sc Alfcc von Hildebrand. "Kierkegaard: A Critic of Luther*, 71k Latin Mass (prim. 2004). pdgs. 10-4.

(4) Murray N. Rothbard. 'Karl Marx as Religious Eschatologist". cm Yuri N. Maltsev, cd.. Requiem for Marx. Ludwig von Miscs Institute. Auburn. Alaba­ma. 1993.

(5) Murray N. Rothbard, "World War I as Fulfillment: Power and the In­tellectuals". cm John V. Denson, ed.. Tlte Cons of War. Transaction. NewBrunswick.· New Jersey. 1997; para exemplos mais rcccnics dcstc fcrW>mcno. vcja-sc Paul Gottfried, Multiculturalism and the Politics of Cuih, University of Missouri Press. Columbia. 2002.

CONCLUSÃO 207

no seu núcleo por figuras da Igreja, provaram ser um terreno fértil para o desenvolvim ento das pesquisas científicas. E a idéia am adurecida do dire ito internacional surgiu a partir dos últim os escolásticos, assim com o os conceitos centrais para o nascim ento da econom ia com o um a disciplina diferenciada.

Estas duas ú ltim as contribuições surgiram das universida­des européias, um a criaçáo da Idade Média que teve lugar sob os auspícios da Igreja. Diferentem ente das academ ias da an ti­ga Grécia, cada um a das quais tendeu a ser dom inada por um a única escola dc pensam ento, as universidades da Europa medieval foram lugares dc intenso debate c intercâm bio in te­lectual. Assim o d iz David Lindberg:

“Deve-se a firm ar enfaticam ente que. den tro desse siste­m a educativo, o m estre medieval gozava de um a am pla li­berdade. O estereótipo das im agens que nos ap resen tam da Idade Média é o do professor sem espinha dorsal e subser­viente. seguidor escravo dc Aristóteles e dos Padres da Igre­ja (o estereótipo nâo explica exatam ente com o alguém po­deria ser escravo seguidor de am bos), receoso dc afastar-se um a vírgula dos ditam es da au toridade. Na realidade, é claro que havia uns lim ites teológicos, mas. den tro desses am plos lim ites, o m estre medieval tinha um a notável liber­dade de pensam ento e de expressão; quase nâo havia d ou ­trina algum a, filosófica ou teológica, que nâo tivesse sido subm etida a um m inucioso exame crítico por parte dos in ­telectuais da universidade medieval"*.

O em penho dos escolásticos em pesquisar a verdade, cm e studar e em pregar um a grande diversidade dc fontes e cm analisar com precisão e cuidado as objeções às suas posições, dotou a tradição intelectual medieval - e. po r extensão, as u n i­versidades nas quais essa tradição sc desenvolveu c am adure­ceu - dc um a vitalidade da qual o O cidente pode legitim am en­te orgulhar-se.

Todas essas áreas - o pensam ento econômico, o d ireito in­ternacional. a ciência, a vida universitária, as ob ras dc carida-

(6) Davkl C. Lindberg. The Be^innings o f Western Science, pág. 213.

dc, as idéias religiosas, a arte e a morai - são os verdadeiros fundam entos de um a civilização c, no Ocidcnte. todas e cada um a delas surgiram do ccm c da Igreja Católica.

208 THOMAS E. WOODS JR

UM MUNDO SEM DEUS

Paradoxalm ente, a im portância da Igreja para a civilização ocidental foi-se tom ando cada vez mais c lara à m edida que a sua influencia dim inuía. D urante o llum inism o do século XVIII, a posição privilegiada da Igreja c o respeito de que tra ­d icionalm ente a cercavam foram seriam ente questionados, em um nível sem precedentes na história do catolicism o. O século XIX assistiu a mais ataques ao catolicism o, particularm ente com o K ulturkam pf germ ânico c o anticlericalism o dos nacio­nalistas italianos. A França sccularizou o seu sistem a escolar em 1905. Em bora a Igreja tivesse florescido nos Estados Uni­dos du ran te o final do século XIX c com eços do XX, no resto do m undo ocidental os ataques ã liberdade da Igreja provoca­ram danos indizíveis7.

O m undo da arte fornece-nos, talvez, a mais dram ática e notória evidência das conseqüências do eclipse parcial da Igre­ja no m undo m oderno. Judc Doughcrtv, decano em érito da School of Philosophy da Catholic University, falou dc um a co­nexão “entre a em pobrecida filosofia anti-m etafísica dos nos­sos dias c o efeito debilitante sobre as artes". Dc acordo com esse professor, há um a ligação entre a arte de um a civilização e a sua crença e consciência sobre o transcendente. "Sem um reconhecim ento metafísico do transcendente, sem o reconheci­m ento dc um intelecto divino que é, ao m esm o tempo, fonte da ordem natural e cum prim ento das aspirações hum anas, a realidade é construída em m eros term os m ateriais. O homem converte-se cm medida dc todas as coisas, sem o m enor com ­prom isso com a ordem objetiva. A vida cm si m esm a tom a-se vazia c sem propósito. Essa aridez encontra a sua expressão na perversidade c esterilidade da arte m oderna, desde B auhaus

(7) Sobfc o sucesso da Igreja na America, veja-sc Thomas K. Wood* Jr., The Church Confnnus Modentitv: Catholic Intellectuals and the Progressive Km, Columbia University Press. New York. 2004.

CONCLUSÃO 209

até o cubism o c o pós-m odcm ism o". A asserção de Dougherty é mais do que plausível; é positivam ente convincente. Quando um a pessoa acredita que a vida nâo tem qualquer significado e é fruto dc um puro acaso, que nâo é guiada po r um a força ou princípio superior, quem poderá surprecndcr-se de que essa ausência dc sentido sc reflita na sua arte?

A ausência dc sentido e a desordem aum entaram a partir do século X!X. Em A gaia ciência, Friedrich N ietzsche escre­veu: “O horizonte fica finalm ente livre d iante dc nós. em bora haja que reconhecer que nâo é brilhante: ao m enos o m ar. o nosso m ar. sc abre aberto diante de nós. Talvez nunca tenha havido um m ar tào aberto". O que significa dizer que não exis­te ordem ou sentido no universo além daqueles que o próprio hom em , no mais suprem o c livre dc todos os atos da vontade, decida dar-lhe. Frederick Copplcston. o grande h istoriador da filosofia, adere ao ponto de vista dc Nictzschc: "A rejeição da idéia dc que o m undo foi criado por Deus com um a finalidade, ou dc que o próprio hom em é a m anifestação da Idéia ou Es­pírito absoluto, deixa-o livre para d a r â vida o significado que queira. E ela nào tem outro significado"*.

Nesse ínterim , o m odernism o literário ocupou-sc cm aba­lar os pilares da ordem no âm bito da palavra escrita, anulan­do aspectos tais com o d a r âs histórias c rom ances um com e­ço. m eio e fim. Os escritores concebiam enredos b izarros cm que o protagonista enfrentava um universo caótico c irracio­nal, que era incapaz dc com preender. Eis com o com eça A Metamorfose de Franz Kafka: "Quando Gregor Sam sa desper­tou um a m anhã dc um sonho perturbador, descobriu que. en ­quan to dorm ia, se havia transform ado cm um gigantesco in­seto".

Na música, o espírito dos tem pos fez-se sen tir especialm en­te na atonalidade de Arnold Schoenberg e nos ritm os caóticos dc Igor Stravinsky, particularm ente na sua célebre Sagração da Primavera, mas tam bém cm alguns dos seus trabalhos poste­riores, com o a sua Sinfonia em Três Movimentos, de 1945. E. no cam po da arqu ite tura , será preciso denunciar a sua dcgcnc-

(d) Frederick Coplcsion, A History of Philosophy, vol. 7: Modem IHulosophy from the Post-Kantian Idealists to Marx. Kierkegaard, and Nietzsche. Doublcdav. New York. 1994 (I965J. pág. 419.

210 THOMAS E. WOODS JR.

ração, hoje tão cvidcnlc até m esm o cm edifícios que preten­dem ser igrejas católicas?9

Não sc tra ta dc questionar o m érito dessas obras, mas sim dc m ostrar que refletem um am biente intelectual e cultural contrário à crença católica cm um universo ordenado c dotado de um significado último.

O dia a/.iago chegou cm m eados do século XX. quando Jean-Paul Sartre (1905-1980) c a sua escola de pensam ento existencialista proclam aram que o universo cra to talm ente ab­surdo c a vida, em si mesm a, com pletam ente sem sentido. £ com o é que, cntào, a pessoa devia viver? Encarando corajosa­m ente o vazio, reconhecendo com franqueza que nada tem sentido e que nâo existem valores absolutos. E, logicamente, cada qual construindo os seus próprios valores e vivendo dc acordo com eles (o que recorda Nict/.schc, sem dúvida).

As artes visuais foram afetadas por esse m eio filosófico. O artista medieval, consciente de que o seu papel era com unicar algum a coisa m aior do que d c mesmo, norm alm ente nào as­sinava as suas obras. Desejava cham ar a a tençáo nâo para si próprio, mas para o tem a das suas obras. Com a Renascença, começou a surg ir um novo conceito dc artista, que atingiu a sua m aturidade no rom anticism o do século XIX. Por rcaçáo contra a frieza racionalista do Iluminismo. o rom anticism o en ­fatizou o sentim ento, a em oção e a espontaneidade. E assim a a rte concentrou-se cm exprim ir os sentim entos, as lutas, as emoções c as idiossincrasias do próprio artista; a arte tor- nou-sc um a form a de auto-expressão. O foco da obra do artis­ta passou a se r re tra ta r as suas disposições interiores. A inven­ção da fotografia, no final do século XIX, veio reforçar essa tendência, já que, ao perm itir com toda a facilidade a reprodu­ção exata do m undo natural, deixou o artista livre para embre* nhar-sc no seu m undo interior.

Com o passar do tempo, essa rom ântica auto-preocupaçâo degenerou no simples narcisism o e niilism o da arte m oderna. Em 1917, o artista francês Marccl Ducham p chocava o m undo da arte ao apo r a sua assinatura em um urinol c expô-lo com o

(9) Pará a arquitctuia bcki c a horrível, vcjam-sc. rapcctivamcntc. MkhaclS. Rose. /»I Tters of Giory. Mcsi Polin. Cincinnati. Ohio. 2004. e M«chacl S. Rose. Ugh· as Sin, Sophia In&tilute Press. Manchester. New Hamp&hitv. 2001.

CONCLUSÃO 211

um a obra dc arte. Fala po r si m esm o o faio dc que, em um a votação dc qu inhentos peritos cm arte realizada cm 2004, sc tenha atribu ído à Fountain dc Ducham p o título dc "a obra dc arte m ais influente da arte m oderna",0.

D ucham p influiu no artista radicado cm Londres Traccy Emin. O seu My Bed, que foi indicado para o prestigioso Prê­mio Turncr, consistia cm um a cam a com plctam cntc desar­rum ada, onde sc espalhavam garrafas dc vodea, preservativos usados c roupas íntim as m anchadas dc sangue. Em um dos dias cm que essa peça foi exposta na Tatc Gallery, em 1999, dois hom ens nus puseram -sc a pu lar sobre a cam a c a beber a vodea. Todos os presentes com eçaram a aplaudir, persuadidos dc que esse a to dc vandalism o fazia parte do quadro exposto. Em in é hoje professor na Europcan G raduatc School.

Estes exemplos revelam sim bolicam ente até que ponto m ui­tos ocidentais sc afastaram da Igreja cm anos recentes. A Igre­ja. que pede aos seus filhos que sejam generosos na transm is- sâo da vida. vê até m esm o esta mensagem tão fundam ental cair cm ouvidos surdos na Europa Ocidcntal, que não chega sequer a te r filhos suficientes para garan tir a continuidade das gerações. A Europa afastou-se a tal ponto da fé que a cons­truiu, que a União Européia não foi capaz de rcconheccr*sc dc* vedora da herança cristã na sua C onstituição. M uitas das gran­des catedrais que um a ve/, testem unharam as convicções reli­giosas dc um povo tom aram -sc. nos d ias atuais, peças dc m u­seu. curiosidades interessantes para um m undo descrente.

Mas a auto-im posta am nésia histórica do Ocidente não pode hoje desfazer o passado nem o papel central da Igreja na construção da civilização ocidental. MEu nào sou católica", es­creveu a filósofa francesa Sim onc Wcil, "m as considero os princípios cristãos - que têm as suas raízes no pensam ento grego e que. no transcorrer dos séculos, alim entaram todas as nossas civilizações européias - com o algo a que um a pessoa não pode renunciar sem sc aviltar". Eis um a lição que a civili­zação ocidcntal. cada m ais afastada dos seus fundam entos ca­tólicos. vem aprendendo com grande dificuldadc.

(10) "Duchamp's Urinal Tops Art Survey", cm BBC News ■ Wartd Edition. 01.12.2004. Cfr. htlp;tfncw*.bbc.co.uk/2/hi/cntcrtainmcni/4059997.nm.

AGRADECIMENTOS

D urante a redação deste iivro, recebi valiosas sugestões do Dr. M íchacl Folcy, da Dra. Dianc M oczar, do Dr.. John Rao c do Professor Carol Long. Tam bém desejo agradecer ao Dr. Anthony Rizzi, d ire tor do histitute fo r Advanced Physics e au to r do livro The Science Before Science: A Gttide lo Thinking in lhe 2 Ist Ceniury, pela revisão do capítulo V. Q uaisquer erros sobre os fatos ou na sua interpretação são. com o é lógico, unicamen- tc meus.

Devo fazer especial m enção a Dorecn M unna c a Marilyn Vcnticrc, da biblioteca da m inha Faculdade, pela gentileza com que atenderam a todos os m eus pedidos dc livros antigos, difíceis de encon tra r e há m uito tem po csquccidos.

Mais um a vez, trabalhar com a Rcgncry foi um prazer. O livro foi, sem dúvida, enriquecido pelos com entários c suges­tões do editor cxccutivo Harry Crockcr c pela revisão aten ta e minuciosa da diretora editorial Pauta Decker.

Comecei a redigir este livro antes dc rcccbcr a sugestão dc escrever The Politically Incorrect Cuide to American Hisiory, meu terceiro livro. Para cum prir o prazo desse outro, pus este dc lado por algum lem po c, finalm ente, rctom ei-o no ano pas­sado. Concluí a redação dois dias antes do nascim ento da nos­sa segunda filha. Verónica Lynn. E estou profundam ente agra­decido pelo apoio da m inha querida esposa H cathcr ao longo destes nove meses, que para ela foram difíceis.

Dedico este livro a Verônica c Regina (nascida cm 2003), nossas duas filhas. Espero que ele venha a reforçar o que lhes

tentam os ensinar: que possuem na sua fé católica um a pérola dc grande valor, que náo háo dc querer irocar por nada no mundo. Como disse certa vez Sâo Thom as More, ninguém no seu leito de morte se arrependeu jam ais dc te r sido católico.

AGRADECIMENTOS 213

Thom as E. Woods, Jr. Coram, New York

M arço dc 2005

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ÍNDICE

I. A IGREJA INDISPENSÁVEL........................................................ 5II. UMA LUZ NAS TRLVAS »2

"Idade das trevas"........................................................................ 12A conversão dos pnmeiros bárbaros......................................... 14A Renascença Carolíngia............................................................. 17A lenta reconquista do conhecimento....................................... 21

III. COMO OS MONGES SALVARAM A CIVILIZAÇÃO.............. 25Inícios do monaquismo............................................................... 25As artes práticas........................................................................... 28Os monges como consultores técnicos..................................... 35Obras dc caridade........................................................................ 38A palavra escrita.......................................................................... 39Centros de educação.................................................................... 42

IV. A IGREJA E A UNIVLRS1DADL 46Uma instituição única na históna............................................. 46Cidade e toga........ 48Vida académica............................................................................ 51A idade da Escolástica................................................................. 54Um “rio dc ciência"..................................................................... 60

V. A IGREJA E A CIÊNCIA 63Galileu............................................................................................ 63Deus "dispôs todas as coisas com medida, quantidade

c peso"....................................................................................... 71O problema do momento incrcial............................................. 78A Escola Catedral de Chartres................................................... 81O sacerdote cientista................................................................... 69Conquistas científicas das jesuítas............................................ 94As catedrais como observatórios astronómicos...................... 105

VI. A ARTE. A ARQUITETURA E A IGREJA................................ 110O ódio às imagens: iconoclasmo............................................... 110A Catedral..................................................................................... 113O Renascimento........................................................................... 119Arte c ciência................................................................................ 124

222 THOMAS E. WOODS JR.

VII. AS ORIGENS DO DIREITO INTERNACIONAL.................... ......127Uma voz no deserto..................................................................... ......128Francisco de Vitória.................................................................... ......131Igualdade segundo a lei natural................................................ ......132Bartolomé dc las Casas.....................................................................136Direito internacional versus Estado moderno......................... ......140

VIII. A IGREJA E A ECONOMIA 145Os fundadores da ciência econômica..............................................145A teoria do valor subjetivo................................................................150Católicos e protestantes............................................................... ..... 155

IX..COMO A CARIDADE CATÓLICA MUDOU O MUNDO......... ..... 159Uma atitude assombrosa.................................................................. 159Os pobres e os doentes................................................................ ..... 163Os primeiros hospitais c os cavaleiros de Sâo Joào.................... 166Assistência eficaz......................................................................... ..... 170

X. A IGREJA E O DIREITO OCIDENTAL........................................... 177A separação entre a Igreja e o Eslado...........................................179A doutrina da expiação.................................................................... 184As origens dos direitos naturais................................................ ..... 186

XI. A IGREJA E A MORAL NO OCIDENTE.......................................191Moral católica e morais n&o-calólicas...........................................191O duelo.......................................................................................... .....194O tema da guerra justa................................................................ .....195Castidade c dignidade da mulher.............................................. .....199A vida virtuosa...................................................................................201

CONCLUSÃO............................................................................................ 204A “condescendência" divina....................................................... .....204Um mundo sem Deus................................................................. ......208

AGRADECIMENTOS - 212BIBLIOGRAFIA....... ................................................................................ 214

ESTE LIVRO ACABOU DE SE IMPRIMIR A 8 DE NOVEMBRO DE 2008, SOBRE PAPEL OFFSET CHAMBR1L BOOK 75g, NA PAU* LUSGRAFICA. VIA RAPOSO TAVARES. KM

18.5. EM SAO PAULO. SP.

Thomas E. Woods, Jr., recebeu o bacharelado pela Universidade de Har­vard e o doutorado |>ela Universidade de Columbia, além de outros títulos, já publicou o best-seller The Politicaly In­correct Cuide to American History, bem como The Church Confronts M o­dernity: Catholic Intellectual$ and the Progressive Era e The Church and the Market: A Catholic Defense of the Free Economy. É memlxo do Ludwig von Mises Institute.