comissÃo camponesa da verdade

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2 COMISSÃO CAMPONESA DA VERDADE RELATÓRIO FINAL VIOLAÇÕES DE DIREITOS NO CAMPO 1946 a 1988 Brasília, dezembro de 2014.

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  • 2

    COMISSO CAMPONESA DA

    VERDADE

    RELATRIO FINAL

    VIOLAES DE DIREITOS NO CAMPO

    1946 a 1988

    Braslia, dezembro de 2014.

  • 3

    COMPOSIO DA COMISSO CAMPONESA DA VERDADE

    Alessandra da Costa Lunas CONTAG

    Alessandra Gasparotto Universidade Federal de Pelotas

    Alexandre Conceio MST

    Ana Paula Romo de Souza Ferreira UFPB/PRONERA

    Anderson Amaro Silma dos Santos MPA

    Angelo Priori Universidade Estadual de Maring

    Aton Fon Filho MST

    Antnio Canuto CPT

    Antonio Escrivo Filho Terra de Direitos

    Claudio Lopes Maia Universidade Federal de Gois

    Cleia Anice da Mota Porto CONTAG, ABRA

    Clria Botelho Costa Universidade de Braslia

    Clerismar A. Longo Universidade de Braslia

    Clifford Andrew Welch Universidade Federal de So Paulo

    Danilo Valentin Pereira USP/NERA/ABRA-SP/CEV Rubes Paiva

    Diana Melo Terra de Direitos

    Edemir Henrique Batista MST

    Edgard Afonso Malagodi Universidade Federal de Campina Grande

    Eduardo Fernandes de Arajo CNDH/UFB

    Enaile Iadanza Secretaria Geral/PR

    rika Medeiros Terra de Direitos

    Fabricio Tel CPDA/UFRRJ

    Gabriel Pereira UNICAMP/ABRA-SP e CEV Rubens Paiva

    Gilney Viana Secretaria de Direitos Humanos/PR

    Girolamo Domenico Treccani UFPA/CIDHA

    Helciane de Ftima Abreu Araujo UEMA/PNCSA

    Hugo Belarmino de Morais CRDH/UFPB/DIGNITATIS

    Hugo Studart UnB, UCB

    Iby Nontenegro de Silva CPDA/UFRRJ

    Igor Bencio CRDH/UFPB

    Ivaldo Gehlen UFRGS

    Iridiani Seibert MMC

    Jos Carlos Leite UFMT

    Jos Paulo Pietrafesa UFG

    Jovelino Strozake MST

    Juara Martins Ramos MMC

    Jucimara Almeida Santos MPA

    Juliana Amoretti Secretaria de Direitos Humanos/PR

    Leonilde Servolo de Medeiros CPDA/UFRRJ

    Lucas Amaral Plataforma DHESCA

    Luciana Carvalho e Souza USP/ABRA-SP

    Luis Antnio Barone FCT/UNESP

    Luiz Augusto Passos UFMT

    Maria Jos Costa Arruda CONTAG

    Marco Antonio dos Santos Teixeira IESP/UERJ

    Marta Regina Cioccari Museu Nacional/UFRJ

    Manoel Pereira Andrade UnB

    Moacir Gracindo Soares Palmeira Museu Nacional/UFRJ

    Pablo Francisco de Andrade Porfirio UFPE

  • 4

    Paola Pereira MST

    Rafael Aroni CAMPINAS

    Regina Coelly Fernandes Saraiva UnB

    Reginaldo Nunes Chaves CRDH/UERJ

    Rosngela Piovizani Cordeiro MMC

    Rosmeri Witcel MST

    Sabrina Steinke UnB

    Srgio Sauer UnB

    Tnia Chantel Freire MMC

    Tiago Rodrigues Santos Grupo de Pesquisa Geografar/UFBA

    Valter Israel da Silva MPA

    Willian Clementino da Silva Matias CONTAG

    Zenildo Pereira Xavier CONTAG

    AS ENTIDADES QUE ASSINAM A DELARAO DO ENCONTRO

    UNITRIO DOS TRABALHADORES E TRABALHADORAS, DOS POVOS

    DO CAMPO, DAS GUAS E DAS FLORESTAS, DE 22 DE AGOSTO DE

    2012, SO APOIADORAS DA COMISSO CAMPONESA DA VERDADE

    PARTICIPARAM ATIVAMENTE DOS TRABALHOS DA COMISSO

    CAMPONESA DA VERDADE

    CONTAG Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

    CPT Comisso Pastoral da Terra

    FETRAF Federao dos Trabalhadores na Agricultura Familiar

    MMC Movimento das Mulheres Camponesas

    MPA Movimento dos Pequenos Agricultores

    MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

    Relatoria do Direito Humano Terra, Territrio e Alimentao da Plataforma DHESCA

    Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econmicos, Sociais, Culturais e

    Ambientais

    RENAP Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares

    Terra de Direitos

    COORDENAO GERAL DOS TRABALHOS DA COMISSO CAMPONESA DA VERDADE

    Clia Anice da Mota Porto

    Srgio Sauer

    Gilney Viana

    COMISSO DE SISTEMATIZAO DO RELATRIO

    Eduardo Fernandes de Arajo

    Gilney Viana

    Juliana Amoretti

    Pablo Francisco de Andrade Porfirio

    Regina Coelly Fernandes Saraiva

    Srgio Sauer

  • 5

    COMISSO DE SISTEMATIZAO DE RELATOS DOS CASOS

    INVESTIGADOS

    Marco Antonio dos Santos Teixeira

    Marta Regina Cioccari

    REVISO GERAL

    Alessandra Gasparotto

    Gilney Viana

    Juliana Amoretti

    Regina Coelly Fernandes Saraiva

    Srgio Sauer

    AUTORES (AS) COLABORADORES (AS) NOS RELATOS DOS CASOS

    INVESTIGADOS

    Alessandra Gasparotto

    Aline Dias Ferreira de Jesus

    Antnio Canuto

    Antnio Torres Montenegro

    Arnaldo Jos Zangelmi

    Ana Claudia Diogo Tavares

    Aline Caldeira Lopes

    Carla Luciana Silva

    Claudia Cristina Hoffmann

    Clifford Andrew Welch

    Davi Pereira Junior

    Danilo Serejo Lopes

    Danilo Valentin Pereira

    Dibe Ayoub

    Diego Becker da Silva

    Eduardo Fernandes de Arajo

    Elizabeth Ferreira Linhares

    Elson Luiz Mattos

    Fabricio Tel

    Fernanda Maria da Costa Vieira

    Flvia Sousa Garcia Sanz

    Gabriel da Silva Teixeira

    Gabriel dos Santos Nascimento

    Gilney Viana

    Girolamo Domenico Treccani

    Helciane de Ftima Abreu Araujo

    Iby Montenegro de Silva

    Igor Bencio

    Isadora Cristina Cardoso de Vasconcelos

    Ivaldo Gehlen

    Joo Paulo Regianni

    Jos Carlos Leite

    Jos Paulo Pietrafesa

  • 6

    Jos Sonimar de Sousa Matos Jnior

    Juliana Amoretti

    Kleber Trambaiolli

    Larissa Mies Bombardi

    Leonilde Servolo de Medeiros

    Luana Nunes Bandeira Alves

    Lucas Julio Evangelista

    Luciana Carvalho

    Maria Aparecida dos Santos

    Marcio Antonio Both da Silva

    Marco Antonio Teixeira

    Mariana Trotta Dallana Quintans

    Marta Cioccari

    Mirna Silva Oliveira

    Osvaldo Aly Jnior

    Patrcia Cerqueira dos Santos

    Patrcia Maria Portela Nunes

    Pablo F. de A. Porfrio

    Paula Franco

    Pompeu Salgado Carneiro

    Rafael Aroni - UNICAMPI

    Raquel de Souza Ferreira Osowski

    Reginaldo Nunes

    Ricardo Leite da Silva

    Rosana Akemi Pafunda

    Thais Danton

    Tiago Egidio Cubas

    Tiago Rodrigues Santos

    Yamila Goldfarb

  • 7

    SUMRIO

    Apresentao 12

    Resumo 14

    Introduo 17

    I. MEMRIA CAMPONESA: NARRATIVA DA DOR E ESPERANA NO

    PORVIR 23

    1.1. Memria, verdade e acesso Justia

    1.2. Graves violaes de Direitos, Justia de Transio e responsabilidade do Estado

    1.3. Campesinato como classe e como sujeito de direitos

    II. A HISTRIA DO PONTO DE VISTA CAMPONS 45

    2.1. As primeiras organizaes camponesas

    2.2. Demandas e formas de luta

    2.3. A reao patronal

    2.4. Intensificao dos conflitos, reconhecimento de direitos e represso

    2.5. Modernizao, fronteira agrcola e grilagem de terras no regime civil-militar

    III. VIOLAES AOS DIREITOS HUMANOS DOS CAMPONESES 77

    3.1. Resistncia e represso aos camponeses no ps-golpe de 1964

    3.2. Casos de assassinatos, torturas e demais violaes de direitos de camponeses

    3.3. Represso s entidades do campo: Interveno no movimento sindical, prises,

    perseguies, violaes de direitos

    IV. RELATOS DE CASOS EMBLEMTICOS

    CENTRO-OESTE 96

    GOIS

    Mortes e desaparecimentos no Movimento de Trombas e Formoso (1949-1964)

    Assassinato de Nativo da Natividade Oliveira

    Assassinato de Sebastio Rosa da Paz

    MATO GROSSO

    Sequestro e assassinato na Agropecuria Mirassol

    Perseguies e ameaas a posseiros pela Codeara

    Inqurito militar e expulso do Padre Jentel

    Interrogatrio e tortura de agentes de pastoral da Prelazia de so Flix do Araguaia

  • 8

    NORDESTE 127

    CEAR

    Conflito e prises na fazenda Japuara

    Prises e torturas sofridas pelo sindicalista Vicente Pompeu da Silva

    MARANHO

    Represso no Vale do Pindar: Violncias praticadas contra o lder campons Manoel

    da Conceio.

    Conflito estabelecido pelo Estado com a implantao da base brasileira de lanamento

    de foguetes espaciais

    Violncias praticadas contra quilombolas e quebradeiras de coco babau

    PARABA

    Assassinato de Margarida Alves

    Prises e desaparecimento de Nego Fuba e de Pedro Fazendeiro

    PERNAMBUCO

    Assassinato de trabalhadores rurais na Usina Estreliana

    Assassinato no Engenho Matapiruma

    Tortura e assassinato de Jos Benedito da Silva: Engenho Fanal da Luz, Palmares

    Priso e tortura de Manoel Gonalo e Severino Manoel Soares

    Represso e assassinatos no Engenho Oriente: a represso na Zona da Mata Norte de

    Pernambuco

    Priso de Marcos Martins da Silva na Benedita (cadeia privada de usina)

    BAHIA

    Assassinato de Eugnio Lyra (advogado do STR de Santa Maria da Vitria)

    Assassinato de Zeca de Rosa (trabalhador rural de Santa Maria da Vitria)

    Represso e Expropriao na Chapada Diamantina (1970-1980)

    Assassinato de Jos Zacarias dos Santos (1985)

    NORTE 180

    ACRE

    Conflitos por terra no Acre e a violncia contra sindicalistas: o assassinato de Wilson de

    Souza Pinheiro

    PAR

    Interveno no STR e assassinato de Raimundo Ferreira Lima (o Gringo)

    Violncia na Gleba Cidepar e assassinato de Sebastio Souza Oliveira (o Mearim)

    Violncia na Gleba Cidapar e assassinato de Armando Oliveira da Silva

  • 9

    Assassinato de Pedro Gomes da Silva

    Assassinato de Joo Canuto e o conflito na fazenda Cana (lote 157)

    Assassinato de Jos Manoel de Souza

    Assassinato de Paulo Csar Fonteles de Lima.

    Assassinato de Avelino Ribeiro da Silva

    Assassinato de Gabriel Sales Pimenta

    Assassinato de Irm Adelaide Molinari

    Assassinato de Belchior Martins Costa

    Assassinato de Benedito Alves Bandeira (o Ben ou Benezinho)

    Assassinato de Francisco Jacinto de Oliveira (Sinhozinho)

    Chacina do Castanhal Ub

    Chacina de Goiansia

    Chacina da Fazenda Princesa

    Araguaia/Tocantins: os camponeses na Guerrilha do Araguaia

    TOCANTINS

    Assassinato do Padre Josimo Moraes Tavares

    SUDESTE 269

    MINAS GERAIS

    Formao de milcias privadas com apoio de Cel. da PM em Governador Valadares

    Priso, tortura e assassinato do lder sindical Nestor Veras

    Priso e maus tratos do lder sindical Joaquim de Pot e outros sindicalistas

    Prises e perseguies a militantes da Ao Popular de Varzelndia e Montes Claros

    RIO DE JANEIRO

    Violncia contra posseiros decorrentes de obras pblicas e especulao imobiliria: o

    caso do Litoral Sul Fluminense

    Conflitos por terra nas fazendas Laranjeiras e Japuba

    Conflitos na Fazenda Santo Incio (Trajano de Moraes)

    Conflitos na Fazenda Campos Novos (Cabo Frio)

    Perseguio e priso de Laerte Rezende Bastos

    Conflitos por terra e violncia em Mag: Gleba Amrica Fabril e Fazenda Conceio de

    Suru

    Quilombo da ilha da Marambaia (RJ): resistncia contnua

    Violncias na Fazenda So Jos da Boa Morte, Cachoeiras de Macacu

  • 10

    Assassinato de Sebastio Gomes dos Santos, Cachoeiras do Macacu

    SO PAULO

    Contextualizao geohistorica das violaes no campo no perodo 1946-1988

    Conivncia do Estado, grilagem, espionagem, priso e tortura na regio de Andradina

    Negao de livre associao e priso na regio de Lins

    Assassinato na regio de Campinas

    Negao livre associao, priso, tortura e chacina na regio de Marlia

    Conluio do Judicirio, grilagem, perseguio e assassinato na regio de Presidente

    Prudente

    Grilagem de terras, perseguies, expulso e destruio de quilombos, assassinatos e

    denncia de Napalm na regio de Registro

    Perseguies, prises de lideranas, ameaas e assassinato na regio de Ribeiro Preto

    Grandes obras pblicas e negao de direitos: inundao na regio de So Jos dos

    Campos

    Internamento manicomial de liderana na regio de Santa F do Sul

    Ameaas e regularizao fundiria na regio de Sorocaba

    SUL 358

    PARAN

    Conflitos pela terra na regio de Santa Helena

    Violncias no campo no Paran

    Conflitos e violncia contra camponeses no Oeste do Paran no contexto da

    modernizao da agricultura (1964-1988)

    Mortes e torturas na Operao Trs Passos

    Violncia e morte no Quilombo do Varzeo

    Tortura e violncia no depoimento de Izabel Fvero

    Represso ao Grupo dos 11 Companheiros no Paran

    RIO GRANDE DO SUL

    Represso aos camponeses no incio dos anos 1960

    Sequestro de Joo Machado dos Santos (o Joo Sem Terra)

    Entrincheiramento do Acampamento de Passo Feio e seqestro de 19 lderes sindicais

    de Porto Alegre, pela Brigada Militar e pelo Exrcito Brasileiro

    Interveno Federal no Acampamento de Encruzilhada Natalino

  • 11

    IV. RECOMENDAES 385

    FONTES 392

    ANEXOS

    Anexo I

    Lista de camponeses atingidos por IPMS e processos na Justia Militar

    Anexo II

    Lista de camponeses e apoiadores mortos ou desaparecidos de 1961 a 1988

    Anexo III

    Camponeses e ditadura no Oeste do Paran: eventos, fontes e localizao

  • 12

    APRESENTAO

    Em 2012 foi criada a Comisso Camponesa da Verdade (CCV), um dos frutos

    do Encontro Unitrio dos Trabalhadores, Trabalhadoras e Povos do Campo, das guas

    e das Florestas. Este evento reuniu, em Braslia, em 2012, milhares de camponeses de

    mais de quarenta organizaes e movimentos ligados luta pela terra e por territrios,

    em memria ao 1 Congresso Campons, realizado em 1961, em Belo Horizonte.

    Alm de celebrar os mais de cinquenta anos do congresso de Belo Horizonte, o

    Encontro Unitrio articulou a diversidade das organizaes do campo na construo de

    alternativas polticas, econmicas e sociais ao agronegcio para o campo brasileiro.

    Alternativas e bandeiras baseadas na defesa da reforma agrria, no respeito ao meio

    ambiente, na produo de alimentos saudveis e na soberania alimentar, na defesa dos

    direitos territoriais, na gerao de renda e na melhoria da qualidade de vida no meio

    rural, entre outras bandeiras e lutas.

    O contedo deste relatrio a materializao de um primeiro passo, cumprindo

    o compromisso firmado no Encontro Unitrio, conforme consta da declarao final

    (item 11), de lutar pelo reconhecimento da responsabilidade do Estado sobre a morte e

    desaparecimento forado de camponeses, bem como os direitos de reparao aos seus

    familiares, com a criao de uma comisso camponesa pela anistia, memria, verdade e

    justia para incidir nos trabalhos da Comisso [Nacional da Verdade], visando

    incluso de todos afetados pela represso.

    O resgate das violaes de direitos de tantas pessoas do campo, no entanto, no

    tem como objetivo apenas fazer constar nos anais da histria oficial brasileira. A

    memria alm de resgatar a verdade sobre o protagonismo campons na resistncia

    ditadura e seu brao privado, o latifndio tem como objetivo lutar contra o

    esquecimento e construir caminhos para a Justia e reparao. Essa luta pela verdade e

    responsabilizao do Estado fundamental. Ser seguida pela reivindicao de

    reparao, pois s assim se poder diminuir a realidade pretrita e atual de

    impunidade que marca o campo brasileiro.

    Reivindicamos o direito reparao moral e material para os camponeses, seus

    familiares, comunidades e entidades representativas, atingidos pela represso policial e

    militar e pelo brao armado do latifndio, buscando universalizar o acesso aos direitos

  • 13

    da Justia de Transio. S assim ser possvel implementar a transio para a

    democracia no campo.

    tambm nosso compromisso poltico preservar a memria de cada

    companheiro e companheira, nominado ou no neste texto, que sofreu graves violaes

    de seus direitos depois de 1946, mas especialmente durante a ditadura civil-militar

    (1964-1984), para que seu exemplo sirva de estmulo s novas geraes na luta em

    defesa e na conquista de direitos.

    Braslia, dezembro de 2014.

    CONTAG Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

    CPT Comisso Pastoral da Terra

    FETRAF Federao dos Trabalhadores na Agricultura Familiar

    MMC Movimento das Mulheres Camponesas

    MPA Movimento dos Pequenos Agricultores

    MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

    Relatoria do Direito Humano Terra, Territrio e Alimentao da Plataforma DHESCA

    RENAP Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares

    Terra de Direitos

  • 14

    RESUMO

    A Comisso Camponesa da Verdade (CCV) foi criada em 2012, fruto do

    Encontro Unitrio dos Trabalhadores, Trabalhadoras e Povos do Campo, das guas e

    das Florestas. A atuao da CCV foi impulsionada e concretizada atravs de reunies

    realizadas na sede da CONTAG em Braslia, com a participao de professores/as,

    pesquisadores/as, lideranas de movimentos sociais e gestores pblicos que se

    dedicaram a pesquisar, congregar estudos j realizados e elaborar este Relatrio. Um

    dos objetivos desse documento incidir nas atividades desenvolvidas pela Comisso

    Nacional da Verdade (CNV), especificamente no Relatrio final do Grupo de Trabalho

    sobre violaes de direitos humanos relacionadas luta pela terra e contra populaes

    indgenas, por motivaes polticas no perodo compreendido entre 1946-1988, sob

    responsabilidade da comissionada Maria Rita Kehl.

    Alm das contribuies ao trabalho da CNV, esse Relatrio final da CCV

    procurou apresentar o protagonismo histrico dos trabalhadores e trabalhadoras rurais

    na luta contra a ditadura civil-militar. Acreditamos que h um processo poltico e social

    de invisibilizao, tanto no que se refere luta e resistncia camponesas, quanto aos

    processos de reparao em curso no Estado brasileiro. Um dos fatores fundamentais

    para quebrar com essa invisibilidade poltica a reconstruo da memria camponesa,

    necessria ainda para fortalecer a insero dos camponeses no debate pblico sobre a

    ditadura civil-militar, inclusive como sujeitos da resistncia. Essas questes esto

    abordadas no captulo I desse relatrio.

    O captulo II apresenta uma narrativa da Histria do Brasil no sculo XX a partir

    do ponto de vista dos camponeses e camponesas. necessrio que essas pessoas sejam

    reconhecidas enquanto sujeitos de sua histria, passo importante para a construo da

    condio fundamental do campons como sujeito de direitos. Nesse item, so

    apresentadas ao leitor as primeiras organizaes camponesas, suas reivindicaes,

    formas de luta e conquistas de direitos. Mas tambm, a reao patronal, as diversas

    aes de represso e a intensificao do conflito entre camponeses e latifundirios. Esse

    captulo finalizado com a discusso sobre a luta dos camponeses no perodo do regime

  • 15

    civil-militar, instalado a partir de 1964 e promotor do processo de modernizao

    conservadora no Brasil.

    Nesse ltimo ponto, ressalta-se outro debate fundamental realizado pela rede de

    pesquisadores da CCV: a concepo poltica do Estado como sujeito de violaes de

    direitos. As apresentaes de pesquisas nas reunies realizadas na sede da CONTAG

    nos anos de 2013 e 2014 desnudaram a necessidade de considerar que o Estado violou

    os direitos no s quando seus agentes atuaram diretamente. Mas tambm, os atos de

    omisso, conluio, acobertamento e privatizao da ao do Estado, na qual o

    latifndio funcionou como um brao privado antes, durante e depois da ditadura civil-

    militar de 1964, tornam o Estado um agente violador. A CCV buscou construir critrios

    para dar a ver como essas aes e omisses do Estado podem e devem ser associadas

    com as violaes dos direitos dos camponeses.

    Essas violaes so descritas e discutidas no captulo III desse relatrio. Os

    relatos de casos pesquisados indicam as diversas formas de atuao da represso poltica

    sobre os camponeses entre 1946 e 1988. Destaca-se o perodo da ditadura civil-militar

    no Brasil entre 1964 e 1985. Em diferentes regies e sob diferentes modus operandis

    possvel identificar como agiam, muitas vezes de modo articulado, agentes do Estado e

    agentes privados na sistemtica violao dos direitos humanos dos camponeses e de

    seus apoiadores. So relatos de torturas, mortes, desaparecimentos, ocultao de

    cadveres, ameaas, despejos, agresses fsicas, prises, exlios (no exterior e no

    prprio pas), destruio de bens, entre outras. Deve-se ressaltar, contudo, a resistncia

    camponesa ao golpe de 1964, muitas vezes ausente da historiografia. Partindo da

    perspectiva dos camponeses como sujeitos de sua histria, alguns casos de resistncia,

    bem como seus atores, so apresentados no item 3.1 desse captulo.

    Por fim, esto disponibilizados para o leitor os relatos dos casos investigados

    pela rede de pesquisadores integrantes da CCV. Ainda que tenham ficado de fora muitas

    das graves violaes de direitos humanos cometidas contra camponeses e camponesas

    no perodo da ditadura civil-militar e do perodo de transio, todas as regies do Brasil

    esto contempladas nos mais de 70 casos relatados. Alm de conhecer a histria de

    represso sobre camponeses no Brasil, o leitor ter acesso a uma atualizada bibliografia

    sobre o assunto e a indicao de diversas fontes de pesquisa (jornais, relatrios,

    documentos, entrevistas e outros) sobre o assunto.

  • 16

    Est anexado a esse relatrio importantes instrumentos de pesquisa, a saber, a

    lista de camponeses atingidos por inquritos policiais militares (IPM) e por processos na

    Justia Militar, a lista de camponeses e apoiadores mortos ou desaparecidos de 1961 a

    1988 e uma tabela com informaes sobre camponeses e ditadura no Oeste do Paran

    (com dados sobre eventos, fontes e localizao).

    A Comisso Camponesa da Verdade, buscando cumprir o compromisso firmado

    de combater e denunciar a violncia e a impunidade no campo e a criminalizao das

    lideranas e movimentos sociais promovidas pelos agentes pblicos e privados, atravs

    deste Relatrio Final, afirma perante a Comisso Nacional da Verdade, o Estado

    brasileiro e a sociedade, como primeira recomendao, que o Estado brasileiro, no

    mbito da Unio, dos estados e dos municpios, reconhea as graves violaes de

    direitos humanos cometidas contra camponeses no perodo investigado de 1946-1988,

    especialmente no perodo da ditadura civil-militar, 1964-1985, e garanta s vtimas e

    famlias das vtimas, a devida reparao.

  • 17

    INTRODUO

    Vivemos um momento republicano no pas, em que o olhar da sociedade

    brasileira est voltado para a busca do outrora. No momento em que foi criada a

    Comisso Nacional da Verdade (CNV), em 2012, comisses da verdade e comits da

    memria, verdade e justia despontaram em vrios Estados e municpios e pululam

    mirades de manifestaes sobre as lembranas do golpe civil-militar no Brasil de 1964

    em diante. nesta atmosfera que se desenvolvem as discusses da Comisso

    Camponesa da Verdade, criada em 2012, a partir de uma deciso do Encontro Unitrio

    dos Trabalhadores, Trabalhadoras e Povos do Campo, das guas e das Florestas.1

    O desejo de conhecer esse pretrito do pas, ainda silenciado pela histria oficial,

    significa presentificar os mortos, os desaparecidos at hoje excludos da histria do

    Brasil. Presentificar entendido como ao de trazer o passado ao presente, tendo como

    suporte a memria no somente como registro, ou com um fim nostlgico, mas como

    ao e reivindicao de justia. Neste sentido, memria, futuro e justia se somam.

    Significa (re)construir a verdade em relao a centenas e centenas de brasileiros que

    tiveram seus sonhos interceptados, seus corpos dilacerados e suas vozes emudecidas no

    perodo da ditadura civil-militar.

    Portanto, uma memria coletiva de atos que ceifaram vidas e deixaram

    cicatrizes nas pessoas, famlias, sociedade, mas tambm expresso da violncia

    simblica, do invisvel a olho nu, que machucou a alma de milhares de brasileiros.

    uma memria coletiva, tecida pelos fios das lembranas de um magote de brasileiros e

    por eles compartilhada. So memrias de operrios, de camponeses, de estudantes,

    dentre outros, mas tambm de adversrios e inimigos da liberdade democrtica. So

    memrias que pertencem a todos ns.

    A Resoluo n. 5/2012, da Comisso Nacional da Verdade (CNV), criou o

    Grupo de Trabalho sobre camponeses e indgenas, com a competncia de esclarecer

    1 O Encontro Unitrio contou com a organizao e participao da Associao dos Povos Indgenas do

    Brasil (APIB); Critas Brasileira; Conselho Indigenista Missionrio (CIMI); Comisso Pastoral da Terra

    (CPT); Coordenao Nacional de Articulao das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ);

    Confederao Nacional de Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura (CONTAG); Confederao

    Nacional dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (FETRAF); Movimento dos Atingidos por Barragens

    (MAB); Movimento Campons Popular (MCP); Movimento de Mulheres Camponesas (MMC);

    Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST);

    Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecurio (Sinpaf) e Via

    Campesina Brasil. O documento final do encontro est disponvel em

    http://encontrounitario.wordpress.com/declaracao-do-encontro/.

    http://encontrounitario/

  • 18

    fatos, circunstncias e autorias de casos de graves violaes de direitos humanos, como

    torturas, mortes, desaparecimentos forados, ocultao de cadveres, relacionados s

    populaes do campo. O objetivo deste GT identificar e tornar pblico estruturas,

    locais, instituies e circunstncias de violao de direitos humanos no campo brasileiro

    de 1946 a 1988.2

    A partir da criao do GT na CNV, a iniciativa da Comisso Camponesa da

    Verdade (CCV) passou a ser, em primeiro lugar, dar suporte CNV no sentido de

    resgatar situaes de violncias cometidas pelo Estado e seus agentes contra

    camponeses entre 1946-1988. Para alm da investigao no perodo de abrangncia da

    CNV, a CCV tambm enfatiza a necessidade premente de reparao das violaes

    cometidas por parte do Estado.

    O compromisso que originou a CCV foi impulsionado e concretizado atravs de

    reunies realizadas na sede da Contag em Braslia, durante os anos de 2013 e 2014, nas

    quais professores/as, pesquisadores/as, lideranas de movimentos sociais e gestores

    pblicos se dedicaram a pesquisar, juntar estudos j realizados e elaborar este relatrio

    com o objetivo de incidir nas atividades desenvolvidas pela Comisso Nacional da

    Verdade (CNV), especificamente no Relatrio final do Grupo de Trabalho sobre

    violaes de direitos humanos relacionadas luta pela terra e contra populaes

    indgenas, por motivaes polticas no perodo compreendido entre 1946-1988

    (Resoluo n. 02, de 2012, da CNV), sob responsabilidade da comissionada Maria Rita

    Kehl.

    Os encontros da CCV visaram ento sistematizar estudos e pesquisas e agregar

    contribuies ao relatrio da CNV. Alm de denunciar violaes, a percepo foi a de

    que necessrio desnudar o protagonismo histrico dos trabalhadores e trabalhadoras

    rurais na luta contra a ditadura civil-militar, principalmente em face constatao de

    que h um processo poltico e social de invisibilizao, tanto no que se refere luta e

    resistncia camponesas, quanto aos processos de reparao em curso no Estado

    brasileiro.

    Questes terico-conceituais jurdicas e polticas tm sido discutidas e so

    consideradas fundamentais para a conduo dos trabalhos junto CNV, mas tambm na

    luta por reconhecimento e reparao. A concepo poltica em relao ao Estado, como

    violador de direitos humanos, apresenta um elemento que aponta a este mesmo Estado

    2 Resoluo disponvel em http://www.cnv.gov.br/images/pdf/resolucao_5_CNV_051112-2.pdf

    http://www.cnv.gov.br/images/pdf/resolucao_5_CNV_051112-2.pdf

  • 19

    (inclusive um anseio de segmentos populares da sociedade brasileira) a necessidade de

    transformar suas instituies, reconhecer sua responsabilidade e estabelecer novas

    formas de conduo no campo econmico, social, poltico e cultural para que a

    atrocidade cometida no se esquea, para que nunca mais acontea.

    Um dos debates na CCV sobre a concepo poltica do Estado como sujeito de

    violaes de direitos. As discusses trouxeram tona especificidades da questo

    camponesa e a necessidade de considerar, na atuao do Estado, no apenas aqueles

    casos e aes em que agentes estatais agiram como atores diretos, mas tambm

    situaes de omisso, conluio, acobertamento, ou mesmo a privatizao da ao do

    Estado, em que o latifndio funcionou como um brao privado antes, durante e depois

    da ditadura civil-militar de 1964. Um dos desafios, portanto, foi o de formular critrios

    que dariam condies de entender onde ao, omisso e/ou conivncia do Estado se

    associaram com violaes de direitos sofridas por camponesas e camponesas, a fim de

    evitar que o passado se repita.

    Outro tema que foi norteador do trabalho da CCV refere-se noo de memria

    e importncia atual da memria camponesa. A reconstruo dessa memria

    fundamental, primeiro, para quebrar a invisibilidade poltica produzida sobre esses

    atores sociais. necessria tambm para fortalecer a insero dos camponeses no

    debate pblico sobre a ditadura civil-militar, inclusive como sujeitos da resistncia.

    Desse modo, a CCV buscou reunir trajetrias de camponeses e camponesas no percurso

    da resistncia em todas as regies do Brasil, mas diante da absoluta falta de tempo e

    recursos, apresenta neste relatrio casos j pesquisados e investigados por membros e

    parceiros da CCV.

    fundamental ter claro que, apesar dos processos histricos de luta por direitos

    e resistncia expropriao, h uma clara invisibilizao dos camponeses, tanto em

    relao ao seu protagonismo (na luta contra a ditadura) como nos processos de

    reparao. um segmento social esquecido (poucos casos investigados nas

    Comisses de Anistia e de Mortos e Desaparecidos, por exemplo), tanto por seu

    protagonismo e luta como pela no reparao das violaes sofridas.

    A invisibilizao serve como um mecanismo poltico de no reconhecimento e,

    consequentemente, no reparao (pequeno nmero de casos aprovados) e o que mais

    grave, no justia (raros casos de punio judicial aos perpetradores das violaes aos

    direitos humanos, no campo), sendo fundamental este trabalho de reconstruo da

  • 20

    memria e da verdade da Comisso Camponesa, mas especialmente da Comisso

    Nacional da Verdade.

    O processo de constituio e trabalhos de resgate da memria pela Comisso

    Camponesa da Verdade, portanto, se deu no bojo de uma luta mais ampla contra o

    esquecimento e a invisibilidade, na busca pela verdade, pela reparao e pela justia.

    Alm da prpria CNV, a CCV soma-se militncia de memria e verdade no Brasil que

    tem alguns fruns como referncia, como por exemplo, a Comisso de Familiares de

    Mortos e Desaparecidos Polticos, os Grupos Tortura Nunca Mais e os Comits da

    Verdade, Memria e Justia, criados a partir de 2011.

    Figuram entre os objetivos da Comisso Camponesa da Verdade investigar e

    propor casos e estudos CNV, mas tambm mobilizar as organizaes sociais no

    resgate e preservao da memria camponesa. Ao investigar casos de violao e

    elaborar relatrio dos movimentos e entidades, o objetivo resgatar o passado como

    possibilidade real de reconstruo de um tempo vivido para ser repensado, questionado,

    revisto e reparado no presente, combatendo o esquecimento e requerendo justia. A

    inteno, de modo geral, dar mais visibilidade aos sujeitos do campo duramente

    vitimados pelo Estado e seus agentes entre 1946 e 1988. Ao esclarecer quem foram os

    agentes e as vtimas das violaes, a CCV faz uma srie de recomendaes de medidas

    e polticas para no repetio, mas especialmente medidas de reparao s vtimas ou

    familiares das vtimas que sofreram as violaes.

    Este Relatrio apresenta o resultado do trabalho de debates, estudos, pesquisas e

    investigao da Comisso Camponesa da Verdade, em seus dois anos de atuao. O

    documento inicia com apresentaes dos marcos tericos, os quais direcionaram as

    reunies em Braslia DF. Segue construindo uma histria vista da tica do campons,

    reforando assim sua condio de protagonista, tanto da sua histria quanto da Histria

    do Brasil. Na sequncia, relata casos pesquisados de violao aos direitos humanos de

    camponeses e de camponesas, entre 1946 e 1988, e apresenta recomendaes.

    Os relatos dos casos pesquisados so apresentados com uma tipologia ou

    natureza da violao (procurando vincular com a noo de graves violaes de direitos)

    e contexto do conflitos (regio ou local onde o caso ocorreu) e a relevncia para a

    violao analisada. Os relatos procuram explicitar atuao, omisso e/ou conivncia do

    Estado e de agentes estatais e privados envolvidos, entre outros aspectos. Aps a

    descrio desses casos, esto as fontes pesquisadas, em separado, sendo a inteno de

  • 21

    referenciar o narrado, mas tambm indicar e reforar a necessidade de aprofundar as

    investigaes para alm dos casos e violaes destacadas neste relatrio.

    Os casos apresentados neste relatrio esto longe de esgotar o universo de

    situaes com que nos deparamos nas pesquisas, mas fornece um panorama

    representativo dos tipos de violncias cometidos contra camponeses entre 1946 e 1988.

    Mesmo que alguns casos no estejam reportados, so situaes emblemticas e de

    conhecimento e reconhecimento pblico, como por exemplo, o assassinato de Joo

    Pedro Teixeira,3 em 04 de abril de 1962 (ocorrido na BR 232, no Estado da Paraba) e a

    perseguio de Elizabeth Teixeira que, com 89 anos de idade, vive e atua no Estado da

    Paraba, seguindo o legado de seu companheiro e lder campons, e uma memria viva

    das Ligas Camponesas.

    Outros casos emblemticos para a histria e luta camponesas, a exemplo da

    resistncia expropriao de Trombas e Formoso, em Gois, nos anos 1960 e 1970, e a

    participao de camponeses na Guerrilha do Araguaia, nos anos 1970, e tantos outros,

    no foram objeto de relatos aprofundados por falta de condies de trazer elementos

    novos s pesquisas j realizadas, mas fazem parte da memria camponesa, da resistncia

    ditaduta e das injustias cometidas e a serem reparadas.

    Consequentemente, por absoluta falta de recursos e tempo, a CCV trabalhou,

    parcialmente, com a noo de caso emblemtico episdio importante,

    historicamente circunscrito ou um processo temporal mais longo, envolvendo pessoa,

    grupo de pessoas e comunidades inteiras como situaes e episdios que

    exemplificam a violncia, a violao de direitos e as diversas formas de represso no

    campo. So exemplos, no sentido de evento ou episdio particular que, ao serem

    resgatados, (re)construdos e recontados, explicitam aes e violaes por parte do

    Estado e de seus agentes.

    Ao apresentar esse relatrio, a CCV procura dialogar com os movimentos,

    organizaes do campo e universidades, criando e internalizando a prtica do trabalho

    de narrar e reconstruir a memria camponesa. Considera que esse um passo

    fundamental para a conquista do reconhecimento oficial das violaes e para a busca da

    justia e da reparao.

    Ao longo do relatrio, muitas vezes aparece o termo camponeses, de modo

    genrico (inclusive intercambivel e como sinnimo de trabalhador rural ou

    3 Caso documentado no filme Cabra marcado para morrer, do diretor Eduardo Coutinho, assassinado

    em 02 de fevereiro de 2014.

  • 22

    agricultor), ou de modo especfico, camponeses e camponesas. O uso genrico do termo

    sem entrar no longo e importante debate terico se refere a pessoas que vivem no

    campo, portanto, no exclui a presena das mulheres camponesas dos contextos

    descritos. Trata-se apenas de uma opo na redao do texto, utilizando uma noo

    corrente no perodo em anlise, novamente, sem o objetivo de fazer uma opo terica-

    conceitual.

    Cabe destacar ainda que esse primeiro panorama estabelece uma percepo de

    que as graves violaes de direitos humanos persistem no campo nos dias atuais, como

    parte de uma realidade permeada pela impunidade e por uma poltica de justia de

    transio inacabada. Porm, a partir dos fatos narrados e da capacidade de indignao,

    organizao e resistncia da populao camponesa, a CCV acredita que o horizonte de

    uma justia social plena segue alimentando as geraes que ousam lutar e reivindicar

    direitos e justia, no s no campo mas em toda a sociedade brasileira.

  • 23

    I MEMRIA CAMPONESA: NARRATIVA DA DOR E

    ESPERANA NO PORVIR

    Paulo Freire, no livro Pedagogia do Oprimido,4 proporciona um dilogo com as

    construes subalternas do saber, apontando como elas podem amplificar a

    compreenso dos processos sociais enraizados no Estado brasileiro que condicionaram

    populaes oprimidas como se estas fossem desprovidas de capacidade de elaborar seus

    prprios conhecimentos. Segundo ele, a produo do saber determinada atravs das

    palavras do doutor. Porm, a opo poltica e metodolgica deste trabalho busca uma

    relao mais profunda no sentido epistemolgico, em que uma ampla profuso de

    saberes se relacionam, constituindo uma memria coletiva permanente das lutas sociais.

    Essa opo poltica e metodolgica permite valorizar a experincia camponesa e

    considerar as relaes constitudas no saber popular enquanto fluxo contnuo de

    modificao das formas de conceber o conhecimento. Formas que superem distores

    preconceituosas que afetam no apenas grupos subalternos, mas a prpria narrativa

    institucional do exerccio do poder. Segundo ele,

    De tanto ouvirem de si mesmos que so incapazes, que no sabem

    nada, que no podem saber, que so enfermos, indolentes, que no

    produzem em virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua

    incapacidade. Falam de si como os que no sabem e do doutor

    como o que sabe e a quem devem escutar.

    Uma opo poltica e metodolgica, baseada na diversidade, no pode ser

    restrita constatao de insuficincias, mas alarga-se em uma transformao continuada

    de novos saberes e perspectivas. Neste sentido, reconstruir a memria camponesa um

    processo poltico de presentificar o passado, para irromper silncios.

    No pr-golpe, entre 1946 e 1964, o regime democrtico no assegurava os

    direitos de cidadania aos camponeses e reprimia suas lutas e organizaes. Entre 1964 e

    1985, a ditadura civil-militar suprimiu as liberdades democrticas de camponeses que

    foram perseguidos, agredidos, torturados e mortos. A mesma coisa aconteceu com

    advogados, religiosos e jornalistas que apoiaram a luta camponesa. Mesmo no perodo

    ps-golpe, o Estado democrtico de direitos, entre 1985 e 1988, manteve polticas

    permissivas de violao de direitos humanos no campo.

    4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2005, p. 56.

  • 24

    O desvelamento do silncio e da dor sofrida por camponeses na luta pela terra e

    por direitos que trazemos neste documento por meio da reconstruo de memrias de

    perodos da histria brasileira que no podem ser esquecidos.

    O conceito de memria polissmico, mas dois dos sentidos que circulam em

    nosso cotidiano chamam a ateno: a) a memria enquanto circunscrita apenas ao

    passado e, b) a memria enquanto anseio de no repetio do passado, ou seja, como

    forma de assegurar valores democrticos no presente e no futuro. Chama a ateno

    tambm o uso cada vez mais frequente da expresso para que nunca mais acontea,

    em referncia ao pretrito ditatorial, e como tentativa de fortalecimento de valores

    democrticos.

    Enquanto anseio de no repetio, o fio condutor adotado neste relatrio a

    compreenso da memria como um dilogo com o outro; uma conversa que se realiza

    no presente, tentando desenhar probabilidades do porvir. Vincula-se ento aos quadros

    sociais da histria e da luta camponesa, no de forma submissa, nem como repetio,

    mas como ruptura.

    No interessa o sentido da memria circunscrita somente ao passado, no sentido

    dado por Aristteles de que a memria do passado.5 Esse sentido, cujo valor se

    assenta em imprimir uma marca temporal ao conceito, exclui o presente, o tempo do

    agora, de efetivao de nossas experincias. Exclui tambm o tempo de realizao de

    nossas aspiraes, o porvir. pensar com o olhar engessado, considerando apenas o que

    fomos, como se o outrora no fosse fonte do agora, nem apontasse luzes para o que h

    de vir.

    Assim, pensar a memria, nos limites do pretrito, induz a pensar que as meras

    escavaes do nosso passado ditatorial asseguram-nos um futuro democrtico; que

    bastaria revirar escombros desse passado sombrio para aliviar a tormenta de t-lo

    vivido. necessrio a apropriao de outra noo de memria, a qual baseada no

    dilogo com o outro; um exerccio de ouvir vozes j emudecidas; vozes que revelam

    segredos, e das quais portamos infinitas heranas.

    Pensar a histria do Brasil, a partir da perspectiva da memria camponesa, ou

    seja, dos desvios e das interrupes, significa tambm lanar o olhar para as vtimas do

    passado que ficaram no meio do caminho, presentificar suas ausncias e combater seu

    5 RICOEUR, Paul. La Memoria, la Historia, el Olvido. Buenos Aires, Fondo de Cultura Econmica,

    2004, p. 23.

  • 25

    esquecimento. Significa lembrar que chegamos ao sculo XXI com um legado esprio

    do sculo passado ou seja, ditaduras na Amrica Latina como episdios de

    afrontamento dignidade e aos direitos , portanto, preciso rememorar que tambm

    somos herdeiros da dor e do silncio que no nos pertenceram.

    A memria reflexo que possibilita o conhecimento do agora e do outrora,

    assim orienta possibilidades de existncia do porvir. Ela irrompe o presente com os

    estilhaos do passado; faz ressurgir no agora o que foi ontem, portanto, a memria

    ruptura. Na esteira de Benjamin,6 a memria uma leitura anacrnica da histria,

    tradio, mas tambm uma ao revitalizadora do presente. elo de contato com o

    outro, com aquele que j se foi, mas que por meio da lembrana sua ausncia ser

    presentificada. a organizao dos fatos na ordem do tempo, portanto, evocar a

    memria est na arte de narrar. Reconstruir memrias no fazer um resgate do passado

    puro e simples, ou ainda fazer uma descrio desse passado, mas narrar para fazer

    emergir esperanas no realizadas desse passado.

    1.1. MEMRIA, VERDADE E ACESSO JUSTIA

    Como se fazer valer da memria camponesa para justificar o acesso justia,

    quando sabemos que a realidade de violncia, represso, retaliao, perseguio e

    massacres sofridos por homens e mulheres no campo no est devidamente registrada

    nos documentos oficiais? Ao tratar da memria camponesa, a CCV compreende que a

    memria parte da construo da verdade. Sem trazer tona memrias daqueles que

    foram duramente atingidos, em perodos repressivos, a verdade, o acesso justia e a

    reparao seriam limitados. Temos clareza que ambas, memria e verdade, so

    elementos fundamentais para a reparao do direito humano de tantos camponeses

    atingidos.

    Se reconhecermos que as lutas camponesas foram parte da resistncia

    represso na ditadura civil-militar, ser possvel alm de reconhecer o protagonismo

    pretrito desses sujeitos iniciar um justo processo de reparao s violaes sofridas

    pelos mesmos, especialmente ps-1964, aproximando memria e justia. Essa

    6 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de histria. Obras Escolhidas. Vol. I. So Paulo, Ed. Brasiliense,

    1987.

  • 26

    aproximao no esvazia a relao entre memria e passado, mas a vincula a uma

    construo do porvir de maneira concreta, dando respostas s situaes de violao de

    direitos humanos sofridas por camponeses.

    Na luta camponesa por direitos e contra o latifndio e a propriedade privada,

    figuram aes de milcias privadas, jagunos, pistoleiros, e outros, em violncias

    reiteradamente marcadas como crimes comuns. Entretanto, poucos so investigados os

    agentes do Estado que participaram ativamente de aes repressoras, por conivncia ou

    omisso, dos crimes cometidos no campo. Tampouco aprofundado o impacto das

    polticas pblicas que se abateu contra a populao rural no perodo. Falar em memria

    e verdade no campo deve abrir a possibilidade de reescrever um captulo da histria

    brasileira e reconhecer e responsabilizar agentes do Estado por violaes de direitos,

    cometidos no abuso de suas competncias.

    Entre os crimes cometidos contra camponeses no perodo da ditadura, as

    torturas, mortes/assassinatos, desaparecimentos forados, ocultao de cadveres so

    mais facilmente identificadas como graves violaes de direitos humanos. Entretanto, a

    Comisso Camponesa da Verdade entende que necessrio abrir o escopo, incluindo a

    violncia entendida como ameaas, perseguies, expulso da terra, prises arbitrrias e

    outras aes contra pessoas e grupos no campo.

    A memria no deve se limitar a cumprir um compromisso com as vtimas da

    represso, seno servir tambm para construir um futuro que, a partir do recordar, logre

    sanar e superar a herana perversa do autoritarismo. Por isso, no possvel abrir mo

    de instrumentos de justia, portanto, fundamental que a responsabilidade do Estado e

    de seus agentes sejam reconhecidas pelas violaes e danos causados vida de tantos

    camponeses e as injustias sejam reparadas. O sentido da memria apreendida como

    perspectiva de futuro pautado em valores democrticos ampliados est ancorado na

    sua compreenso como uma recordao limpa, coesa e ampliadora da verdade. Assim, a

    sociedade brasileira guarda os mesmos sentidos para o passado e o mesmo

    encaminhamento para o futuro, como garantia da justia.

    Apesar das referncias e acordos com Benjamin, aqui o papel da memria

    modesto, pois no promete e nem garante nenhuma soluo que possa resolver o que

    est pendente. Mas a memria nos recoloca a questo do que fazer com os resqucios e

    flagelos encontrados. Assim, escavar o passado ditatorial e suas agruras, alm de

    desvelar uma situao de terror, que passou a organizar e disciplinar a vida social dos

  • 27

    camponeses, assim como a de todos os brasileiros, significa situar as violaes, mas

    tambm alentar a justia e a reparao.

    A justia reparativa caminha junto com a verdade e possibilita que a memria

    camponesa saia da invisibilidade poltica, negando prticas de no-justia. Nesse

    sentido, a memria um instrumento estratgico a favor daqueles que foram torturados,

    assassinados, sofreram desaparecimento forado, ou que sofreram outras formas de

    violao de seus direitos.

    Em tempos de Comisso da Verdade, a sociedade brasileira tem a possibilidade

    de apreender, no presente, os vestgios de vidas silenciadas, mutiladas, as vozes

    dilaceradas, as feridas abertas desconhecidas pela ditadura civil-militar e em outros

    perodos repressivos. O conhecimento dessas feridas possibilitar a escolha de caminhos

    a serem palmilhados rumo ao futuro: o caminho do perdo, como o fez a frica do Sul,

    ou o caminho da punio aos torturadores, como est sendo trilhado por nossos irmos

    latino-americanos. Desse modo, o ato de memria se transforma em ao poltica, no

    sentido atribudo por Hannah Arendt, uma ao coletiva que visa o bem comum.

    Trazer a memria dos perodos repressivos, longe de nos oferecer segurana

    social, sensibiliza a sociedade ao denunciar que nossa histria e nosso presente se

    assentam sobre pessoas assassinadas, torturadas, perseguidas; se assenta sobre o

    desrespeito dignidade humana, porque expe aquele que recorda a um novo

    sofrimento. Mas, ao mesmo tempo, nos sensibiliza para a possibilidade de que o

    caminho do futuro no pode abrir mo da reconciliao com o passado e com o

    fortalecimento da democracia, sem a repetio das violaes aos direitos humanos.

    Ao irromper o agora com os estilhaos do pretrito, a memria em geral provoca

    tenso na sociedade por oferecer rastros do passado que questionam o j institudo,

    podendo at alter-lo. Assim, a memria, ao invs de garantia, marca da incerteza, da

    instabilidade e da insegurana. Por isso, percebida por muitos como perigosa.

    O testemunho do coronel Malhes7, concedido CNV pouco antes de sua morte,

    em 2014, um bom exemplo da insegurana gerada pela memria. No rastro dos

    sentidos possveis do testemunho, o lugar de fala do militar, coronel reformado e

    7 Paulo Malhes era coronel reformado, ex-agente do Centro de Informaes do Exrcito. O militar em

    depoimento a Comisso Nacional da Verdade, confessou participar de torturas, mortes e ocultao de

    cadveres de presos polticos durante a ditadura, inclusive do deputado federal Rubens Paiva. Foi morto,

    em Nova Iguau, na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, em 2014, aos 76 anos de idade.

  • 28

    integrante do Centro de Informaes do Exrcito - integrante de grupo dirigente e,

    consequentemente, detentor de poderes polticos e prestgio social na corporao, foi

    importante. O referido depoimento ofereceu sociedade runas do passado ditatorial

    brasileiro, at ento conhecidos somente nas camadas superiores do Exrcito. Eram

    informaes privadas, que se tornaram pblicas pelo testemunho, e apropriadas e

    propagadas pela mdia.

    O referido testemunho ganha a configurao memorialstica, ou seja, uma ao

    matizada pela memria e uma ao poltica. Uma ao poltica por apresentar resqucios

    trgicos da tortura, assassinato, desaparecimento forado e ocultao de cadveres de

    opositores polticos do perodo ditatorial brasileiro. A fala do coronel fez emergir

    lembranas da desumanidade em nvel incomensurvel, a ausncia de liberdade, a

    recusa frontal diversidade e pluralidade; dimenses vitais da condio humana.

    Assim, o depoimento propiciou um liame entre o que se pensava separado (hoje e

    outrora, presente e passado), uma das funes da memria.

    O depoimento rememorou fatos desconhecidos pela maior parte da sociedade,

    mas, de forma fria, anunciou a crueldade e o no arrependimento do narrador. Assim,

    inspirou perigo ao institudo, por ir contra o leque de recordaes naturalizados por

    grupos da nossa sociedade; por fracionar e ampliar o leque de recordaes j

    naturalizados; por fraturar o repertrio de esquecimento que nossa sociedade tenta

    superar. O depoimento representa uma ameaa estabilidade do institudo, pois

    provocou uma tenso entre o estabelecido por grupos de poder na ditadura e os fatos

    reconstrudos pela recordao e publicizados. O narrador, aps um ms de seu

    depoimento CNV, foi silenciado.

    A memria ento se constitui como interrupo de um ciclo repetitivo e prepara

    a abertura para o diferente, configurando-se como um passo para a liberdade e nutrindo

    prticas de uma democracia efetiva. Neste sentido, so vrios os argumentos que nos

    levam a crer, a pensar a memria como inoportuna, questionadora e desestabilizadora de

    poderes naturalizados, portanto, incapaz de assegurar e garantir o institudo.

    O slogan do nunca mais se relaciona compreenso do uso educativo da

    memria, ou seja, sua eficcia pedaggica. Encampa diversos sentidos como a

    conscincia da fora que o passado tem no presente, somado a um clamor para que o

  • 29

    mundo seja possvel. Todavia, parece tambm, possuir o tom do definitivo,8 pois nunca

    mais se repetiro os fatos que a morte enclausurou. To definitivo soa o clamor do

    slogan repetido por aqueles que observam com horror a possibilidade de que a ditadura

    se repita. Nunca mais tambm pode ser o chamado para no esquecer jamais aquele

    tempo em que coraes sangraram. O nunca mais o desejo que toda sociedade

    brasileira deveria expressar como seu, mas tambm uma exigncia coletiva dessa

    mesma sociedade.

    Mas para que nunca mais os erros do passado se repitam no basta o uso

    constante do slogan. preciso muito mais! Faz-se necessrio a realizao de

    experincias pedaggicas da memria com vistas criao de uma conscincia social

    sobre o passado reconstrudo sobre o papel das instituies, sobre as vtimas e seus

    perpetradores e ainda a busca da verdade como um exerccio coletivo. Em outros

    termos, necessrio que o ato de memria se transfigure em uma ao poltica. O

    exerccio pedaggico da memria deve exercitar a inquietao popular frente ordem

    do social como um fato dado pronto que independe da ao humana e estimular o

    desejo de um futuro diferente do j vivido.

    Garantir justia s vozes silenciadas, reparar violaes so exerccios

    pedaggicos que nos ajudam a compreender que a histria vivida no uma abstrao

    do passado, ou porque j vivido no preciso ser retomado. Essa ao pedaggica pode

    e deve ser assumida pelo Estado ao responsabilizar-se em restaurar a dignidade dos que

    sofreram abusos e violaes, legitimando outra verso da histria. A relao memria

    camponesa e justia significa a retratao de ns mesmos com nossas razes to

    fortemente articuladas terra, e com camponeses que lutaram por ela e, por isso foram

    duramente violentados.

    A memria, segundo Walter Benjamin, arranca a tradio do conformismo,

    procurando no passado, nas tradies, sementes de outra histria possvel. Para ele, a

    memria a redeno da histria. As experincias, ao serem redimidas, criam condies

    para se escrever no presente os apelos do passado. Assim, a reconstruo de

    experincias permite refletir sobre seus significados nas aes da vida cotidiana onde a

    histria transcorre.

    8 Isso evoca o inevitvel verso de Alan Poe, pois never more no uma mera informao indicada por

    um corvo protagonista do poema, mas o anncio do absoluto, da verdade trgica do destino humano.

  • 30

    Devemos ento interpretar a memria como uma projeo tica da experincia

    humana, reforadora e modeladora do humano no porvir. Antes de ser um relicrio ou

    uma caixa de escombros do passado, a memria ruptura; a expresso do inesperado.

    lembrana no sentido de pluralidade temporal. Ela , sobretudo, crena e esperana no

    possvel.

    A memria, enquanto tradio e oralidade, est calcada na compreenso de que

    s h histria onde h experincia e s h experincia onde h sujeito. Todo sujeito

    produz palavras pelas quais constri seu testemunho, sua narrativa. Assim, ela se

    configura como a arte de dizer e de narrar para reconstruir, redimir ou reparar.

    Desse modo, a tica ajuda a memria ultrapassar o discurso racionalista e a

    salvaguardar a mobilidade histrica. E, ao estimular a interrupo de um ciclo repetitivo

    e preparar a abertura para caminhos diferentes da histria, aponta para a liberdade.

    Assim a liberdade conecta-se memria, verdade no sentido de que sejam cultivadas

    prticas de uma democracia efetiva, cujos caminhos so abertos pela justia que se

    materizaliza nas diversas iniciativas de reconhecer o direito das vtimas, promover a

    reparao e facilitar a reconciliao com o passado vivido.

    Por outro lado, a memria, como expresso da tradio, nos convida a uma

    narrativa em que a comunicao entre pessoas no se d apenas por meio do contedo.

    Envolve a disposio para estar de fato com o outro e efetivamente ouvi-lo. As palavras

    carregam a tradio, bem como a histria pessoal de quem as ouve e as pronuncia.

    Na perspectiva benjaminiana, reconstruir o passado permite que dores e

    violaes no sejam silenciadas e esquecidas. Significa tambm concretizar e ampliar as

    possibilidades de que reparaes de violaes aconteam e o passado seja redimido.

    Representa a possibilidade de presentificao da memria de camponeses sobre

    violaes, no s para constar dos anais da histria do Brasil, para registro formal-

    oficial, mas para redimir o passado e acabar com a impunidade atravs de aes de

    justia e reparao no presente.

    Presentificar entendida aqui como ao de trazer o passado para o presente,

    tendo como suporte a memria, no somente como registro, ou com um fim nostlgico,

    mas como ao e reivindicao de justia. Neste sentido, memria, verdade e justia se

    complementam.

    Reconstruir a memria camponesa como parte dos trabalhos da Comisso

    Nacional da Verdade abre para a possibilidade de dar visibilidade pblica s violaes

  • 31

    cometidas pelo Estado e seus agentes contra homens e mulheres do campo, violentados

    por lutarem pelo direito terra, resistir ao avano de uma modernizao (excludente e

    dolorosa) e marcados pela usurpao de direitos.

    1.2. GRAVES VIOLAES DE DIREITOS, JUSTIA DE TRANSIO E

    RESPONSABILIDADE DO ESTADO

    Assim como a memria no presente, a Comisso Camponesa da Verdade se vale

    do conceito de graves violaes de direitos humanos para mostrar que camponeses e

    camponesas foram ameaados, torturados, mortos e desaparecidos no perodo da

    ditadura civil-militar e ainda continuam sendo, devido inacabada transio

    democrtica no campo.

    Recorre tambm ao conceito de justia de transio entendido como um

    conjunto de aes administrativas e judiciais que efetiva direitos tais como anistia,

    reparao moral e material s vtimas. Memria, verdade e justia, portanto, so

    condio para superao do passado ditatorial e estabelecimento de um regime

    democrtico pleno. Denunciar a baixa incluso dos camponeses nos instrumentos atuais

    reparadores, portanto, faz deste Relatrio um instrumento de luta pela efetivao de

    direitos justia de transio.

    No Brasil, durante todo o perodo da ditadura civil-militar ocorreram denncias

    de graves violaes aos direitos humanos, particularmente daqueles crimes identificados

    de lesa humanidade, como tortura, assassinatos de opositores polticos e de ativistas

    sociais, desaparecimentos forados de prisioneiros, feitos de forma continuada e

    sistemtica. Mas tambm de outras formas de violao de direitos, como excluso dos

    empregos, das universidades, impedimento ao trabalho, censura e cerceamento da

    liberdade de criao e de imprensa, cassao de mandatos eletivos, fechamento ou

    interveno em sindicatos, associaes, ligas camponesas, grmios estudantis. Mais

    especificamente, a negao aos direitos trabalhistas, sindicais, previdencirios e o

    direito terra, e a represso policial e militar a quem por eles lutaram, atingiram

    camponeses e camponesas.

    Contra os crimes ditatoriais se ergueu uma militncia persistente e corajosa de

    organizaes sociais, partidos polticos, entidades e lideranas culturais e religiosas, que

    no obstante a represso policial e militar, no deixaram de fazer denncias. Como nos

  • 32

    demais pases latino-americanos, que passaram por perodos ditatoriais, dois grupos de

    pessoas tiveram protagonismo importante nesta luta, os presos e ex-presos polticos, e

    os familiares de mortos e desaparecidos polticos vtimas diretas e testemunhas das

    graves violaes aos direitos humanos que persistiram na luta mesmo quando as

    condies polticas eram desvantajosas e perigosas.

    Estes grupos enfrentaram uma srie de dificuldades, desde o silenciamento em

    relao s violaes ocorridas at os impasses criados pela Lei de Anistia. A Lei foi

    conquistada por uma ampla mobilizao, impulsionada por inmeras entidades,

    especialmente o Movimento Feminino pela Anistia, fundado em 1975, e os Comits

    Brasileiros pela Anistia, criados nas principais cidades do pas a partir de 1978. Naquele

    momento, os movimentos sociais reivindicavam o retorno das liberdades democrticas e

    uma anistia ampla, geral e irrestrita. Pressionado, o ditador-presidente Figueiredo

    enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei que versava sobre o tema. Moreira

    Alves afirma que tal [...] medida possibilitaria um desafogo de opinio poltica, ao

    mesmo tempo desarticulando um amplo movimento social que se mobilizara em torno

    da questo.9

    O projeto, no entanto, apresentava inmeras limitaes, pois a proposta no

    inclua condenados por crimes de terrorismo, atentado pessoal, assaltos e sequestros,

    no permitia que ex-integrantes das Foras Armadas afastados por crimes polticos

    reassumissem suas funes e no concedia liberdade imediata aos presos condenados

    pela Lei de Segurana Nacional. A principal controvrsia estava centrada na questo

    dos beneficirios da Lei, ou seja, na possibilidade desta ser recproca, de parte a parte.

    O texto enviado ao Congresso indicava a concesso de anistia a todos quantos, no

    perodo compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979,

    cometeram crimes polticos ou conexos com estes.10 Este dispositivo poderia

    beneficiar os integrantes do aparato repressivo, impedindo a investigao e punio dos

    agentes do Estado envolvidos em crimes de tortura e outras violaes de direitos

    humanos.

    O projeto de lei sofreu inmeras crticas, mas foi votado e aprovado em 28 de

    agosto de 1979, por 206 votos contra 201, o que evidencia a dimenso das disputas e

    9 ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposio no Brasil. (1964 - 1984) Rio de Janeiro: Vozes,

    1984. p. 268. 10 A lei diz ainda, em seu Artigo Primeiro, que : Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os

    crimes de qualquer natureza relacionados com crimes polticos ou praticados por motivao poltica.

    BRASIL. Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979.

  • 33

    embates em relao ao tema. Apesar dos limites da Lei de Anistia, cabe destacar que

    esta beneficiou milhares de pessoas, entre presos polticos, banidos, exilados e atingidos

    por Atos Institucionais e que, juntamente com outras medidas e mobilizaes sociais,

    permitiu um avano efetivo rumo redemocratizao.

    Infelizmente, a interpretao e a aplicao dada a Lei de Anistia, principalmente

    em relao sua abrangncia e aos chamados crimes conexos, tornou-a um

    instrumento para a auto-anistia e para a impunidade. At hoje, nenhum agente do Estado

    foi punido pelas graves violaes de direitos humanos cometidas ao longo do perodo

    ditatorial.

    Vale ressaltar que ao longo dos ltimos anos a Lei de Anistia tem sido alvo de

    inmeros questionamentos, seja por parte dos movimentos sociais seja no mbito

    institucional.11 A presso popular o motor das transformaes sociais, re-significando

    a histria oficial contada pelo poder poltico vigente. Portanto, denncias de graves

    violaes de direitos humanos so progressivamente sustentadas no discurso e nas aes

    de movimentos sociais, que exigem justia e verdade e impulsionam transformaes

    necessrias.

    Graves violaes de direitos humanos so analisadas na histria recente,

    especialmente aps os crimes de holocausto e de genocdio cometidos durante a II

    Guerra Mundial. A perspectiva adotada a de reverter o quadro de impunidade a crimes

    cometidos contra a vida de civis em perodos de guerras, golpes e ditaduras militares,

    denunciando a participao de agentes do Estado em violncias que afetam parcelas da

    sociedade, especialmente no bojo de perseguies polticas, raciais e religiosas.

    O Tribunal de Nuremberg12 inaugurou uma nova fase do Direito Internacional ao

    tipificar, no Art. 6 do seu Estatuto, o conceito de crime contra a humanidade,

    prevendo as condutas de homicdio, deportao, extermnio e outros atos desumanos,

    cometidos dentro de um padro amplo e repetitivo de perseguio a determinado grupo

    (ou grupos) da sociedade civil, por razo poltica. O conceito foi ratificado pela

    11 A deputada Luiza Erundina (PSB/SP), por exemplo, apresentou um Projeto de Lei (PL 573/2011) que

    busca revisar a Lei de Anistia e dar interpretao autntica ao que dispe a Lei 6.683/1979, no artigo 1,

    pargrafo 1. A tramitao do PL 573/2011 pode ser acompanhada em

    http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_imp;jsessionid=706EF8E49D77DB958952FE873395D

    E4A.node2?idProposicao=493311&ord=1&tp=completa 12 Aps a II Guerra Mundial, entre 1945 e 1949, foi criado um Tribunal Militar Internacional, a partir de

    acordo entre URSS, EUA, Gr-Bretanha e Frana, que se reuniu em Nuremberg, na Alemanha, e julgou

    quase 200 homens, incluindo lderes nazistas do alto comando, juristas e mdicos por crimes de guerra

    (COSTA Jr., Dijosete Verssimo da. Tribunal de Nuremberg. Jus Navigandi, Teresina, Ano 4, n. 28,

    01/fev./1999. Disponvel em: . Acesso em 11/jul./2014.

    http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_imp;jsessionid=706EF8E49D77DB958952FE873395DE4A.node2?idProposicao=493311&ord=1&tp=completahttp://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_imp;jsessionid=706EF8E49D77DB958952FE873395DE4A.node2?idProposicao=493311&ord=1&tp=completahttp://jus.com.br/artigos/1639

  • 34

    Organizao das Naes Unidas (ONU), em dezembro de 1946, abrindo precedente

    para a criao de sistemas internacionais de proteo da pessoa humana.

    A Assembleia Geral da ONU reiterou, em vrias ocasies, que atos como

    tortura, escravido, assassinatos, execues sumrias, execues extrajudiciais ou

    arbitrrias e crimes de desaparecimento forado de pessoas so graves violaes de

    Direitos Humanos. Essas violaes so tipificadas como crimes para rgos que

    representam a comunidade internacional, por exemplo, rgos ligados Organizao

    dos Estados Americanos (OEA) (especialmente o Sistema Interamericano de Proteo

    de Direitos Humanos, integrado pela Comisso e pela Corte Interamericana de Direitos

    Humanos) e prpria ONU. Os Estados que se submetem a estes regimes jurdicos tm

    a obrigao de julgar e punir aos responsveis por esses crimes e pode ser o prprio

    Estado responsabilizado penalmente.13

    As normas internacionais de direitos humanos, com seus sistemas de proteo,

    lentamente repercutem nas normas jurdicas dos Estados nacionais. Associado noo

    de graves violaes de direitos, vem ocorrendo avanos de instrumentos e normas

    jurdicas, forjando a noo de Justia de Transio, especialmente a partir do final dos

    anos 1980 e incio dos anos 1990.

    Da juno de demandas por justia e por transio democrtica, o

    termo justia transicional [ou Justia de transio] foi cunhado para

    expressar mtodos e formas de responder a sistemticas e amplas

    violaes aos direitos humanos. Assim, justia transicional no

    expressa nenhuma forma especial de justia, mas diversas iniciativas

    que tm por intuito reconhecer o direito das vtimas, promover a paz,

    facilitar a reconciliao e garantir o fortalecimento da democracia.14

    Em deciso do Juz Caio Mrcio Guittierrez Taranto, da 4 Vara Federal

    Criminal do Estado do Rio de Janeiro, de 26 de maio de 2014, a denncia contra

    militares e agentes pblicos envolvidos no homicdio de Rubens Paiva, em janeiro de

    1971 nas dependncias do Exrcito, narra com clareza o contexto das condutas

    imputadas aos denunciados como prtica de uma poltica de governo ilegal perante o

    ordenamento poca qualificada por atrocidades. Ainda segundo termos da deciso,

    [] passados mais de 40 anos dos fatos, j no se ignora mais que a

    prtica de tortura e homicdios contra dissidentes polticos no perodo

    13 emblemtica a sentena que condena o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo

    desaparecimento de militantes presos polticos no caso chamado Julia Gomes Lund e outros (Guerrilha

    do Araguaia) vs. Brasil, datada de 24 de novembro de 2010. Disponvel em http://www.corteidh.or.cr/

    docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf 14 PINTO, Revista Debates, 2010.

    http://www.corteidh.or.cr/%20docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdfhttp://www.corteidh.or.cr/%20docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf

  • 35

    conhecido historicamente como Ditadura Militar fazia parte de uma

    poltica conhecida, desejada e coordenada pela mais alta cpula

    governamental, mas que a manteve em um plano de ilegalidade,

    expondo que o Estado e os detentores do poder estavam acima do

    ordenamento jurdico.15

    A compreenso de organismos internacionais de que crimes, tais como as graves

    violaes aos direitos humanos, devem ser obrigatoriamente reparados pelos Estados

    e apurados justifica a defesa do Presidente da Comisso de Anistia do Ministrio da

    Justia, Paulo Abro. Segundo ele, uma obrigao de todo e qualquer Estado de

    Direito ao viver a Democracia contrapor-se a essa violncia do passado, para fortalecer

    instrumentos, nos dias de hoje, que permitam a no repetio desses erros.

    Neste mesmo escopo, com base na ideia e no preceito fundamental de que

    crimes contra a humanidade so imprescritveis e no passveis de anistia, Paulo Abro

    define a ideia fundamental de Justia de Transio:

    [...] um conjunto de direitos, novos direitos forjados em

    perodos de transio democrtica, que apontam para quatro

    obrigaes do Estado: primeiro, a obrigao de reparar todas as

    vtimas; a segunda, permitir que venha a tona todas as

    informaes e se construa ambientes propcios a verdade

    histrica; a terceira, a possibilidade de realizao de reformas

    institucionais das estruturas do Estado para que aquelas

    instituies que no passado foram vocacionadas para destruir a

    vida dos nossos concidados estejam devidamente vocacionadas

    para a defesa da cidadania, ou seja, a ideia que o Estado existe

    para proteger e no para reprimir. Em quarto lugar assegurar o

    direito a memria e tambm a proteo judicial das vtimas.16

    No Brasil, entre as medidas institucionais adotadas no mbito da Justia de

    Transio destacam-se:17

    A Lei n. 9.140, de 04 de dezembro de 1995, que reconheceu como mortas pessoas desaparecidas em razo de participao, ou acusao de participao,

    em atividades polticas, no perodo de 2 de setembro de 1961 a 05 de outubro de

    1988.18 A Lei tambm instituiu a Comisso Especial de Mortos e Desaparecidos

    Polticos (CEMDP), a quem cabe investigar as denncias, envidar esforos para

    localizar corpos de desaparecidos e emitir parecer sobre os requerimentos de

    indenizao formulados pelos familiares das vtimas. Hoje lotada na Secretaria

    15 Caio Marcio Gutterres Taranto. Deciso recebimento de denncia. Documento No. 70258019-1-0-1-

    19-578334. Consulta autenticidade do documento atravs do site http://www.jfrj.jus.br/autenticidade. 16 Entrevista do STJ ao Presidente da Comisso de Anistia (MJ), Paulo Abro, publicada em 13/02/2013,

    disponvel em www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=448&tmp.texto=108466 17 Ver o documento Sobre conceitos de Justia de Transio e Graves Violaes de Direitos Humanos,

    sistematizado por Gilney Viana para a Comisso Camponesa da Verdade. 18 Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9140.htm Salientamos que a Lei, apesar de

    seus avanos, foi criticada em funo de que caberia aos familiares o nus da prova; ou seja, seriam eles

    os responsveis por reunir evidncias que comprovassem a morte de seus entes pelos agentes do estado.

    http://www.jfrj.jus.br/autenticidadehttp://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=448&tmp.texto=108466

  • 36

    de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, a Comisso j reconheceu a

    responsabilidade do Estado sobre a morte ou desaparecimento de 362 pessoas

    entre os anos de 1961 e 1988 (o perodo de abrangncia foi alterado pela Lei

    10.536/2002).19

    A Medida Provisria n. 2.151, de 2001, que instituiu a Comisso de Anistia, criada para analisar requerimentos de anistia poltica e de indenizao

    formulados por pessoas que foram impedidas de exercer atividades econmicas

    por motivao exclusivamente poltica desde 18 de setembro de 1946 at 05 de

    outubro de 1988. Normatizada pela Lei n. 10.559/2002, a Comisso de Anistia

    encontra-se lotada no Ministrio da Justia, tendo recebido, at esta data, mais

    de 74.000 requerimentos de anistia.

    A Emenda Constitucional n. 45, de 2004, que cria um procedimento de deslocamento de competncia da Justia Estadual ou Distrital para a Justia

    Federal, quando da constatao de falha e omisso institucional na ocorrncia

    de crime que viole gravemente os direitos humanos,20 equacionando a posio

    da Unio no contexto de responsabilidade internacional em matria de direitos

    humanos.21

    A Conferncia Nacional de Direitos Humanos, realizada em 2009, durante a qual a sociedade civil participou da construo do Plano Nacional de Direitos

    Humanos (PNDH III), o que resultou na incluso do Eixo 6 Direito

    Memria e Verdade no documento, que props a criao da Comisso

    Nacional da Verdade, expresso no Decreto n 7.037 de 21 de dezembro de

    2009.22

    O Grupo de Trabalho criado em 2011 no mbito do Ministrio Pblico Federal (PGR), que produziu o relatrio Crimes da Ditadura Militar: Relatrio sobre as

    atividades de persecuo penal, desenvolvidas pelo MPF, em matria de graves

    violaes a DH cometidas por agentes do Estado durante o regime de exceo

    (2008-2012). Publicado em maro de 2013, este relatrio descreve vrias

    denncias judiciais contra prepetradores de crimes de lesa humanidade.23

    19 Comisso Especial de Mortos e Desaparecidos Polticos - www.sdh.gov.br/assuntos/mortos-e-

    desaparecidos-politicos/programas/comissao-especial-sobre-mortos-e-desaparecidos-politicos O trabalho

    da Comisso Especial resultou na publicao do livro Direito memria e verdade, publicado pelo

    Governo Federal em 2007, reunindo todos os casos de mortos e desaparecidos polticos analisados pela

    mesma. 20 Daniel Henrique de Sousa Lyra. A federalizao dos crimes de graves violaes dos direitos humanos:

    a razovel durao do processo como garantia no combate impunidade ou instrumento retrico?

    http://seer.ucp.br/seer/index.php?journal=LexHumana&page=article&op=view&path%5B%5D=24 21 Piovesan sugere que o deslocamento de competncia para a esfera federal: a) assegurar maior proteo

    vtima; b) estimular melhor funcionamento das instituies locais em casos futuros; c) gerar a

    expectativa de resposta efetiva das instituies federais. Se as instituies estadual e federal forem falhas

    ou omissas, a esfera internacional ser a prxima instncia, a partir do esgotamento da responsabilidade

    primria do Estado. PIOVESAN, Flvia. Reforma do Judicirio e direitos humanos. In: TAVARES, A.R.;

    LENZA, P. e ALARCN, P.de J.L. (coords.). Reforma do Judicirio. So Paulo: Mtodo, 2005, p. 67. 22 Ressalta-se que as entidades presentes na Conferncia propuseram a criao de uma Comisso da

    Verdade e da Justia, mas o termo justia foi excludo do texto final do PNDH III. 23 Relatrio MPF Crimes da Ditadura Militar (2013) http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-

    trabalho/justica-de-transicao/relatorios1/Relatorio%20GT%20Revisado%20FinalMarco2012_1_Pagina.

    pdf. Criao do GT MPF (2011): Portaria 2 CCR n 21 de 9 de novembro de 2011. Publicada no Boletim

    de Servio/MPF n 22 da 2 quinzena de novembro de 2011 Disponvel em

    http://2ccr.pgr.mpf.gov.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/justica-de-transicao/composicao/composicao

    http://www.sdh.gov.br/assuntos/mortos-e-desaparecidos-politicos/programas/comissao-especial-sobre-mortos-e-desaparecidos-politicoshttp://www.sdh.gov.br/assuntos/mortos-e-desaparecidos-politicos/programas/comissao-especial-sobre-mortos-e-desaparecidos-politicoshttp://seer.ucp.br/seer/index.php?journal=LexHumana&page=article&op=view&path%5B%5D=24http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/justica-de-transicao/relatorios1/Relatorio%20GT%20Revisado%20FinalMarco2012_1_Pagina.%20pdfhttp://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/justica-de-transicao/relatorios1/Relatorio%20GT%20Revisado%20FinalMarco2012_1_Pagina.%20pdfhttp://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/justica-de-transicao/relatorios1/Relatorio%20GT%20Revisado%20FinalMarco2012_1_Pagina.%20pdffile:///U:/Sauer/Backup18-outubro2014/SAUER%20-%20geral/Comisso%20da%20verdade%20-%202012-2014/Relatrio%20CCV/Relatrio%20final/Portaria%202%20CCR%20n%2021%20de%209%20de%20novembro%20de%202011.%20Publicada%20no%20Boletim%20de%20Servio/MPF%20n%2022%20da%202%20quinzena%20de%20novembro%20de%202011%20%20Disponvel%20emfile:///U:/Sauer/Backup18-outubro2014/SAUER%20-%20geral/Comisso%20da%20verdade%20-%202012-2014/Relatrio%20CCV/Relatrio%20final/Portaria%202%20CCR%20n%2021%20de%209%20de%20novembro%20de%202011.%20Publicada%20no%20Boletim%20de%20Servio/MPF%20n%2022%20da%202%20quinzena%20de%20novembro%20de%202011%20%20Disponvel%20emhttp://2ccr.pgr.mpf.gov.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/justica-de-transicao/composicao/composicao

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    A Comisso Nacional da Verdade (CNV), criada pela Lei n. 12.528/2011 e instituda em 16 de maio de 2012, que tem por finalidade apurar graves

    violaes de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de

    outubro de 1988.24 No mbito deste Relatrio, cabe destacar a criao pela CNV

    do Grupo de Trabalho sobre violaes de direitos humanos relacionadas luta

    pela terra e contra populaes indgenas, por motivaes polticas no perodo

    compreendido entre 1946-1988 (Resoluo n. 02, de 2012, da CNV), com a

    competncia de esclarecer fatos, circunstncias e autorias de casos de graves

    violaes de direitos humanos, como torturas, mortes, desaparecimentos

    forados, ocultao de cadveres, relacionados s populaes do campo.

    A Lei n 12.527 de 18 de novembro de 2011, que regula o acesso a informaes no mbito da administrao pblica e tem com princpio bsico o acesso

    informao enquanto um direito humano. Um dos principais avanos da lei

    assegurar que As informaes ou documentos que versem sobre condutas que

    impliquem violao dos direitos humanos praticada por agentes pblicos ou a

    mando de autoridades pblicas no podero ser objeto de restrio de acesso

    (Captulo IV).25

    A Justia de Transio, portanto, se prope a consolidar instrumentos que

    progressivamente restabeleam medidas de reparao s vtimas e seus familiares,

    garantindo o direito memria, verdade e justia. Ressaltamos que o direito

    justia, que prev a responsabilizao e punio dos agentes do Estado envolvidos na

    represso, permanentemente negado no Brasil, tendo em vista a interpretao dada

    Lei de Anistia de 1979. Em 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) interps

    junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma Arguio de Descumprimento de

    Preceito Fundamental (ADPF 153) que questionava a concesso de anistia aos

    representantes do Estado (policiais e militares) que praticaram graves violaes aos

    direitos humanos durante o regime militar. Infelizmente, a ao foi considerada

    improcedente em 2010, por sete votos a dois, entendendo o STF que tais crimes foram

    objeto da Anistia Poltica de 1979. Infelizmente, a interpretao do STF afirma que os

    torturadores no podero ser processados criminalmente, porque tais crimes foram

    objeto da Anistia Poltica de 1979.26

    Todas essas conquistas foram decorrentes das lutas da sociedade civil e merecem

    ser reconhecidas e apoiadas. Entre os movimentos e entidades que protagonizaram tais

    lutas destavam-se:

    24 Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm Ver

    tambm o site da Comisso Nacional da Verdade (CNV): http://www.cnv.gov.br. 25 Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm 26 A ADPF 153 est disponvel em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf153.pdf

    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htmhttp://www.cnv.gov.br/http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htmhttp://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf153.pdf

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    O Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), o Comit Brasileiro de Anistia (CBA) e outras variadas formas de organizao e manifestao em favor da

    Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, com maior atuao nos anos de 1975 a 1980.27

    Os Grupos Tortura Nunca Mais, organizados a partir dos anos 1980 em lugares como Rio de Janeiro, So Paulo e Recife e que lutam pela abertura dos arquivos

    da represso, pela denncia de torturadores e pelo direito reparao aos

    perseguidos polticos.

    A Comisso de Familiares de Mortos e Desaparecidos Polticos, que elabora dossis com denncias e reivindica justia, lutando contra o entendimento que

    os torturadores seriam anistiados pela Lei n. 6683, de 1979. O objetivo

    divulgar as investigaes sobre as mortes, a localizao de restos mortais das

    vtimas da ditadura e identificar os responsveis pelos crimes de tortura,

    homicdio e ocultao dos cadveres durante a ditadura (1964-1985).

    Os Comits da Verdade, Memria e Justia que, criados a partir de 2011, so iniciativas autnomas da sociedade civil que tm por objetivo promover aes

    pblicas de denncia dos crimes cometidos durante a ditadura civil-militar e

    lutar por justia e reparao. Alguns destes comits tm estimulado polticas

    municipais, estaduais e nacionais para a justia, a memria e a verdade.

    As Comisses da Verdade Setoriais, como as Comisses da Verdade de Universidades, da OAB, de Centrais Sindicais, a Comisso Indgena da Verdade

    e a Comisso Camponesa da Verdade, que se dedicam a investigar casos de

    graves violaes aos direitos humanos em suas respectivas reas de atuao ou

    representao.

    Feitas estas consideraes iniciais a respeito dos instrumentos jurdicos,

    mecanismos polticos e foras sociais e polticas que fundaram as bases da justia de

    transio, destaca-se como lacuna central, para efeitos deste relatrio, a invisibilizao e

    a consequente falta de reparao de grande parte dos camponeses, vitimados por graves

    violaes de direitos humanos depois de 1946. No foram poucos os camponeses

    perseguidos, ameaados, torturados, mortos e desaparecidos por motivos polticos, mas

    raramente estes dados aparecem nas estatsticas, ou fazem parte dos processos

    investigados e reparatrios, como veremos neste relatrio.

    Muitos crimes polticos contra camponeses so apresentados nos livros Retrato

    da Represso Poltica no Campo e Camponeses mortos e desaparecidos, publicados

    como parte da coleo Direito Memria e Verdade.28 O segundo oferece uma anlise

    mais detalhada do tratamento dado aos casos de camponeses perseguidos e

    27 Em 1980, mudou-se o nome do movimento para Anistia e Liberdades Democrticas.

    28 CARNEIRO, Ana e CIOCCARI, Marta. Retrato da Represso Poltica no Campo Brasil 1962-1985

    camponeses torturados, mortos e desaparecidos, Braslia, Ministrio do Desenvolvimento Agrrio,

    2011; VIANA, Gilney. Camponeses mortos e desaparecidos: excludos da justia de transio. Braslia,

    Secretaria de Direitos Humanos/Presidncia da Repblica, 2011.

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    assassinados, apresentando a discusso sobre restries de acesso e razes institucionais

    da excluso de camponeses da Justia de Transio, bem como razes polticas que

    tentam justificar este cenrio.

    Do reencontro com a histria, surgem fundamentos para promover a reparao

    das violaes a direitos fundamentais praticadas entre 1946 e 1988, como tambm a

    reflexo da no repetio destes atos de arbtrio. Como assinalou o ento Ministro de

    Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, na apresentao do livro Retrato da Represso:

    Chacinas como a de Corumbiara, em 1995, Eldorado dos Carajs, em

    1996, Felizburgo, em 2004, poderiam ter sido evitadas ou pelo

    menos no ficariam marcadas pela impunidade se livros como este

    j tivessem resgatado, h mais tempo, as razes histricas e profundas

    da violncia no campo, particularmente durante a ditadura de 1964,

    apontando mecanismos para a superao democrtica dos conflitos na

    rea rural.

    Consequentemente, a investigao das violncias e a busca de reparao de

    graves violaes de direitos, cometidas contra camponeses e suas famlias no Brasil

    fundamental, tanto para as pessoas diretamente atingidas, como para uma real

    materializao da Justia de Transio. Neste contexto, a misso da Comisso Nacional

    da Verdade de examinar e esclarecer as graves violaes de direitos humanos

    praticadas no perodo (Resoluo n. 2/2012, art. 1) deve preencher essa lacuna que

    vem inviabilizando o reconhecimento do protagonismo e do sofrimento campons.

    Ainda, a Comisso Camponesa entende que o Estado como sujeito de violaes

    de direitos se refere a todos os casos ou situaes em que estiveram envolvidos

    agentes pblicos, pessoas a seu servio, com apoio ou no interesse do Estado (termos

    da Resoluo em seu art. 1). No entanto, a responsabilidade no deve ficar restrita

    presena, pois h muitos casos de responsabilidade por omisso ou conivncia de agente

    pblico (funcionrio pblico de qualquer nvel ou instncia), inclusive instituies do

    Estado.

    Esses atos e violaes no devem ser entendidos apenas como aes isoladas,

    mas atuao e polticas que seguiram orientaes de altas esferas de poder e que

    contaram com apoio e ao de diferentes setores, como empresrios e outros grupos,

    demarcando uma responsabilidade compartilhada. O Estado, como sujeito de violaes,

    estende a responsabilidade para a ao de agentes privados, que agiram autorizados ou

    liberados para tanto, ou mesmo apoiando aes do Estado ou ainda por omisso ou

    descaso. Consequentemente, a responsabilidade no se d apenas nos casos em que

  • 40

    agentes