Download - COMISSÃO CAMPONESA DA VERDADE
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COMISSO CAMPONESA DA
VERDADE
RELATRIO FINAL
VIOLAES DE DIREITOS NO CAMPO
1946 a 1988
Braslia, dezembro de 2014.
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COMPOSIO DA COMISSO CAMPONESA DA VERDADE
Alessandra da Costa Lunas CONTAG
Alessandra Gasparotto Universidade Federal de Pelotas
Alexandre Conceio MST
Ana Paula Romo de Souza Ferreira UFPB/PRONERA
Anderson Amaro Silma dos Santos MPA
Angelo Priori Universidade Estadual de Maring
Aton Fon Filho MST
Antnio Canuto CPT
Antonio Escrivo Filho Terra de Direitos
Claudio Lopes Maia Universidade Federal de Gois
Cleia Anice da Mota Porto CONTAG, ABRA
Clria Botelho Costa Universidade de Braslia
Clerismar A. Longo Universidade de Braslia
Clifford Andrew Welch Universidade Federal de So Paulo
Danilo Valentin Pereira USP/NERA/ABRA-SP/CEV Rubes Paiva
Diana Melo Terra de Direitos
Edemir Henrique Batista MST
Edgard Afonso Malagodi Universidade Federal de Campina Grande
Eduardo Fernandes de Arajo CNDH/UFB
Enaile Iadanza Secretaria Geral/PR
rika Medeiros Terra de Direitos
Fabricio Tel CPDA/UFRRJ
Gabriel Pereira UNICAMP/ABRA-SP e CEV Rubens Paiva
Gilney Viana Secretaria de Direitos Humanos/PR
Girolamo Domenico Treccani UFPA/CIDHA
Helciane de Ftima Abreu Araujo UEMA/PNCSA
Hugo Belarmino de Morais CRDH/UFPB/DIGNITATIS
Hugo Studart UnB, UCB
Iby Nontenegro de Silva CPDA/UFRRJ
Igor Bencio CRDH/UFPB
Ivaldo Gehlen UFRGS
Iridiani Seibert MMC
Jos Carlos Leite UFMT
Jos Paulo Pietrafesa UFG
Jovelino Strozake MST
Juara Martins Ramos MMC
Jucimara Almeida Santos MPA
Juliana Amoretti Secretaria de Direitos Humanos/PR
Leonilde Servolo de Medeiros CPDA/UFRRJ
Lucas Amaral Plataforma DHESCA
Luciana Carvalho e Souza USP/ABRA-SP
Luis Antnio Barone FCT/UNESP
Luiz Augusto Passos UFMT
Maria Jos Costa Arruda CONTAG
Marco Antonio dos Santos Teixeira IESP/UERJ
Marta Regina Cioccari Museu Nacional/UFRJ
Manoel Pereira Andrade UnB
Moacir Gracindo Soares Palmeira Museu Nacional/UFRJ
Pablo Francisco de Andrade Porfirio UFPE
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Paola Pereira MST
Rafael Aroni CAMPINAS
Regina Coelly Fernandes Saraiva UnB
Reginaldo Nunes Chaves CRDH/UERJ
Rosngela Piovizani Cordeiro MMC
Rosmeri Witcel MST
Sabrina Steinke UnB
Srgio Sauer UnB
Tnia Chantel Freire MMC
Tiago Rodrigues Santos Grupo de Pesquisa Geografar/UFBA
Valter Israel da Silva MPA
Willian Clementino da Silva Matias CONTAG
Zenildo Pereira Xavier CONTAG
AS ENTIDADES QUE ASSINAM A DELARAO DO ENCONTRO
UNITRIO DOS TRABALHADORES E TRABALHADORAS, DOS POVOS
DO CAMPO, DAS GUAS E DAS FLORESTAS, DE 22 DE AGOSTO DE
2012, SO APOIADORAS DA COMISSO CAMPONESA DA VERDADE
PARTICIPARAM ATIVAMENTE DOS TRABALHOS DA COMISSO
CAMPONESA DA VERDADE
CONTAG Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPT Comisso Pastoral da Terra
FETRAF Federao dos Trabalhadores na Agricultura Familiar
MMC Movimento das Mulheres Camponesas
MPA Movimento dos Pequenos Agricultores
MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Relatoria do Direito Humano Terra, Territrio e Alimentao da Plataforma DHESCA
Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econmicos, Sociais, Culturais e
Ambientais
RENAP Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares
Terra de Direitos
COORDENAO GERAL DOS TRABALHOS DA COMISSO CAMPONESA DA VERDADE
Clia Anice da Mota Porto
Srgio Sauer
Gilney Viana
COMISSO DE SISTEMATIZAO DO RELATRIO
Eduardo Fernandes de Arajo
Gilney Viana
Juliana Amoretti
Pablo Francisco de Andrade Porfirio
Regina Coelly Fernandes Saraiva
Srgio Sauer
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COMISSO DE SISTEMATIZAO DE RELATOS DOS CASOS
INVESTIGADOS
Marco Antonio dos Santos Teixeira
Marta Regina Cioccari
REVISO GERAL
Alessandra Gasparotto
Gilney Viana
Juliana Amoretti
Regina Coelly Fernandes Saraiva
Srgio Sauer
AUTORES (AS) COLABORADORES (AS) NOS RELATOS DOS CASOS
INVESTIGADOS
Alessandra Gasparotto
Aline Dias Ferreira de Jesus
Antnio Canuto
Antnio Torres Montenegro
Arnaldo Jos Zangelmi
Ana Claudia Diogo Tavares
Aline Caldeira Lopes
Carla Luciana Silva
Claudia Cristina Hoffmann
Clifford Andrew Welch
Davi Pereira Junior
Danilo Serejo Lopes
Danilo Valentin Pereira
Dibe Ayoub
Diego Becker da Silva
Eduardo Fernandes de Arajo
Elizabeth Ferreira Linhares
Elson Luiz Mattos
Fabricio Tel
Fernanda Maria da Costa Vieira
Flvia Sousa Garcia Sanz
Gabriel da Silva Teixeira
Gabriel dos Santos Nascimento
Gilney Viana
Girolamo Domenico Treccani
Helciane de Ftima Abreu Araujo
Iby Montenegro de Silva
Igor Bencio
Isadora Cristina Cardoso de Vasconcelos
Ivaldo Gehlen
Joo Paulo Regianni
Jos Carlos Leite
Jos Paulo Pietrafesa
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Jos Sonimar de Sousa Matos Jnior
Juliana Amoretti
Kleber Trambaiolli
Larissa Mies Bombardi
Leonilde Servolo de Medeiros
Luana Nunes Bandeira Alves
Lucas Julio Evangelista
Luciana Carvalho
Maria Aparecida dos Santos
Marcio Antonio Both da Silva
Marco Antonio Teixeira
Mariana Trotta Dallana Quintans
Marta Cioccari
Mirna Silva Oliveira
Osvaldo Aly Jnior
Patrcia Cerqueira dos Santos
Patrcia Maria Portela Nunes
Pablo F. de A. Porfrio
Paula Franco
Pompeu Salgado Carneiro
Rafael Aroni - UNICAMPI
Raquel de Souza Ferreira Osowski
Reginaldo Nunes
Ricardo Leite da Silva
Rosana Akemi Pafunda
Thais Danton
Tiago Egidio Cubas
Tiago Rodrigues Santos
Yamila Goldfarb
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SUMRIO
Apresentao 12
Resumo 14
Introduo 17
I. MEMRIA CAMPONESA: NARRATIVA DA DOR E ESPERANA NO
PORVIR 23
1.1. Memria, verdade e acesso Justia
1.2. Graves violaes de Direitos, Justia de Transio e responsabilidade do Estado
1.3. Campesinato como classe e como sujeito de direitos
II. A HISTRIA DO PONTO DE VISTA CAMPONS 45
2.1. As primeiras organizaes camponesas
2.2. Demandas e formas de luta
2.3. A reao patronal
2.4. Intensificao dos conflitos, reconhecimento de direitos e represso
2.5. Modernizao, fronteira agrcola e grilagem de terras no regime civil-militar
III. VIOLAES AOS DIREITOS HUMANOS DOS CAMPONESES 77
3.1. Resistncia e represso aos camponeses no ps-golpe de 1964
3.2. Casos de assassinatos, torturas e demais violaes de direitos de camponeses
3.3. Represso s entidades do campo: Interveno no movimento sindical, prises,
perseguies, violaes de direitos
IV. RELATOS DE CASOS EMBLEMTICOS
CENTRO-OESTE 96
GOIS
Mortes e desaparecimentos no Movimento de Trombas e Formoso (1949-1964)
Assassinato de Nativo da Natividade Oliveira
Assassinato de Sebastio Rosa da Paz
MATO GROSSO
Sequestro e assassinato na Agropecuria Mirassol
Perseguies e ameaas a posseiros pela Codeara
Inqurito militar e expulso do Padre Jentel
Interrogatrio e tortura de agentes de pastoral da Prelazia de so Flix do Araguaia
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NORDESTE 127
CEAR
Conflito e prises na fazenda Japuara
Prises e torturas sofridas pelo sindicalista Vicente Pompeu da Silva
MARANHO
Represso no Vale do Pindar: Violncias praticadas contra o lder campons Manoel
da Conceio.
Conflito estabelecido pelo Estado com a implantao da base brasileira de lanamento
de foguetes espaciais
Violncias praticadas contra quilombolas e quebradeiras de coco babau
PARABA
Assassinato de Margarida Alves
Prises e desaparecimento de Nego Fuba e de Pedro Fazendeiro
PERNAMBUCO
Assassinato de trabalhadores rurais na Usina Estreliana
Assassinato no Engenho Matapiruma
Tortura e assassinato de Jos Benedito da Silva: Engenho Fanal da Luz, Palmares
Priso e tortura de Manoel Gonalo e Severino Manoel Soares
Represso e assassinatos no Engenho Oriente: a represso na Zona da Mata Norte de
Pernambuco
Priso de Marcos Martins da Silva na Benedita (cadeia privada de usina)
BAHIA
Assassinato de Eugnio Lyra (advogado do STR de Santa Maria da Vitria)
Assassinato de Zeca de Rosa (trabalhador rural de Santa Maria da Vitria)
Represso e Expropriao na Chapada Diamantina (1970-1980)
Assassinato de Jos Zacarias dos Santos (1985)
NORTE 180
ACRE
Conflitos por terra no Acre e a violncia contra sindicalistas: o assassinato de Wilson de
Souza Pinheiro
PAR
Interveno no STR e assassinato de Raimundo Ferreira Lima (o Gringo)
Violncia na Gleba Cidepar e assassinato de Sebastio Souza Oliveira (o Mearim)
Violncia na Gleba Cidapar e assassinato de Armando Oliveira da Silva
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Assassinato de Pedro Gomes da Silva
Assassinato de Joo Canuto e o conflito na fazenda Cana (lote 157)
Assassinato de Jos Manoel de Souza
Assassinato de Paulo Csar Fonteles de Lima.
Assassinato de Avelino Ribeiro da Silva
Assassinato de Gabriel Sales Pimenta
Assassinato de Irm Adelaide Molinari
Assassinato de Belchior Martins Costa
Assassinato de Benedito Alves Bandeira (o Ben ou Benezinho)
Assassinato de Francisco Jacinto de Oliveira (Sinhozinho)
Chacina do Castanhal Ub
Chacina de Goiansia
Chacina da Fazenda Princesa
Araguaia/Tocantins: os camponeses na Guerrilha do Araguaia
TOCANTINS
Assassinato do Padre Josimo Moraes Tavares
SUDESTE 269
MINAS GERAIS
Formao de milcias privadas com apoio de Cel. da PM em Governador Valadares
Priso, tortura e assassinato do lder sindical Nestor Veras
Priso e maus tratos do lder sindical Joaquim de Pot e outros sindicalistas
Prises e perseguies a militantes da Ao Popular de Varzelndia e Montes Claros
RIO DE JANEIRO
Violncia contra posseiros decorrentes de obras pblicas e especulao imobiliria: o
caso do Litoral Sul Fluminense
Conflitos por terra nas fazendas Laranjeiras e Japuba
Conflitos na Fazenda Santo Incio (Trajano de Moraes)
Conflitos na Fazenda Campos Novos (Cabo Frio)
Perseguio e priso de Laerte Rezende Bastos
Conflitos por terra e violncia em Mag: Gleba Amrica Fabril e Fazenda Conceio de
Suru
Quilombo da ilha da Marambaia (RJ): resistncia contnua
Violncias na Fazenda So Jos da Boa Morte, Cachoeiras de Macacu
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Assassinato de Sebastio Gomes dos Santos, Cachoeiras do Macacu
SO PAULO
Contextualizao geohistorica das violaes no campo no perodo 1946-1988
Conivncia do Estado, grilagem, espionagem, priso e tortura na regio de Andradina
Negao de livre associao e priso na regio de Lins
Assassinato na regio de Campinas
Negao livre associao, priso, tortura e chacina na regio de Marlia
Conluio do Judicirio, grilagem, perseguio e assassinato na regio de Presidente
Prudente
Grilagem de terras, perseguies, expulso e destruio de quilombos, assassinatos e
denncia de Napalm na regio de Registro
Perseguies, prises de lideranas, ameaas e assassinato na regio de Ribeiro Preto
Grandes obras pblicas e negao de direitos: inundao na regio de So Jos dos
Campos
Internamento manicomial de liderana na regio de Santa F do Sul
Ameaas e regularizao fundiria na regio de Sorocaba
SUL 358
PARAN
Conflitos pela terra na regio de Santa Helena
Violncias no campo no Paran
Conflitos e violncia contra camponeses no Oeste do Paran no contexto da
modernizao da agricultura (1964-1988)
Mortes e torturas na Operao Trs Passos
Violncia e morte no Quilombo do Varzeo
Tortura e violncia no depoimento de Izabel Fvero
Represso ao Grupo dos 11 Companheiros no Paran
RIO GRANDE DO SUL
Represso aos camponeses no incio dos anos 1960
Sequestro de Joo Machado dos Santos (o Joo Sem Terra)
Entrincheiramento do Acampamento de Passo Feio e seqestro de 19 lderes sindicais
de Porto Alegre, pela Brigada Militar e pelo Exrcito Brasileiro
Interveno Federal no Acampamento de Encruzilhada Natalino
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IV. RECOMENDAES 385
FONTES 392
ANEXOS
Anexo I
Lista de camponeses atingidos por IPMS e processos na Justia Militar
Anexo II
Lista de camponeses e apoiadores mortos ou desaparecidos de 1961 a 1988
Anexo III
Camponeses e ditadura no Oeste do Paran: eventos, fontes e localizao
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APRESENTAO
Em 2012 foi criada a Comisso Camponesa da Verdade (CCV), um dos frutos
do Encontro Unitrio dos Trabalhadores, Trabalhadoras e Povos do Campo, das guas
e das Florestas. Este evento reuniu, em Braslia, em 2012, milhares de camponeses de
mais de quarenta organizaes e movimentos ligados luta pela terra e por territrios,
em memria ao 1 Congresso Campons, realizado em 1961, em Belo Horizonte.
Alm de celebrar os mais de cinquenta anos do congresso de Belo Horizonte, o
Encontro Unitrio articulou a diversidade das organizaes do campo na construo de
alternativas polticas, econmicas e sociais ao agronegcio para o campo brasileiro.
Alternativas e bandeiras baseadas na defesa da reforma agrria, no respeito ao meio
ambiente, na produo de alimentos saudveis e na soberania alimentar, na defesa dos
direitos territoriais, na gerao de renda e na melhoria da qualidade de vida no meio
rural, entre outras bandeiras e lutas.
O contedo deste relatrio a materializao de um primeiro passo, cumprindo
o compromisso firmado no Encontro Unitrio, conforme consta da declarao final
(item 11), de lutar pelo reconhecimento da responsabilidade do Estado sobre a morte e
desaparecimento forado de camponeses, bem como os direitos de reparao aos seus
familiares, com a criao de uma comisso camponesa pela anistia, memria, verdade e
justia para incidir nos trabalhos da Comisso [Nacional da Verdade], visando
incluso de todos afetados pela represso.
O resgate das violaes de direitos de tantas pessoas do campo, no entanto, no
tem como objetivo apenas fazer constar nos anais da histria oficial brasileira. A
memria alm de resgatar a verdade sobre o protagonismo campons na resistncia
ditadura e seu brao privado, o latifndio tem como objetivo lutar contra o
esquecimento e construir caminhos para a Justia e reparao. Essa luta pela verdade e
responsabilizao do Estado fundamental. Ser seguida pela reivindicao de
reparao, pois s assim se poder diminuir a realidade pretrita e atual de
impunidade que marca o campo brasileiro.
Reivindicamos o direito reparao moral e material para os camponeses, seus
familiares, comunidades e entidades representativas, atingidos pela represso policial e
militar e pelo brao armado do latifndio, buscando universalizar o acesso aos direitos
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da Justia de Transio. S assim ser possvel implementar a transio para a
democracia no campo.
tambm nosso compromisso poltico preservar a memria de cada
companheiro e companheira, nominado ou no neste texto, que sofreu graves violaes
de seus direitos depois de 1946, mas especialmente durante a ditadura civil-militar
(1964-1984), para que seu exemplo sirva de estmulo s novas geraes na luta em
defesa e na conquista de direitos.
Braslia, dezembro de 2014.
CONTAG Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPT Comisso Pastoral da Terra
FETRAF Federao dos Trabalhadores na Agricultura Familiar
MMC Movimento das Mulheres Camponesas
MPA Movimento dos Pequenos Agricultores
MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Relatoria do Direito Humano Terra, Territrio e Alimentao da Plataforma DHESCA
RENAP Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares
Terra de Direitos
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RESUMO
A Comisso Camponesa da Verdade (CCV) foi criada em 2012, fruto do
Encontro Unitrio dos Trabalhadores, Trabalhadoras e Povos do Campo, das guas e
das Florestas. A atuao da CCV foi impulsionada e concretizada atravs de reunies
realizadas na sede da CONTAG em Braslia, com a participao de professores/as,
pesquisadores/as, lideranas de movimentos sociais e gestores pblicos que se
dedicaram a pesquisar, congregar estudos j realizados e elaborar este Relatrio. Um
dos objetivos desse documento incidir nas atividades desenvolvidas pela Comisso
Nacional da Verdade (CNV), especificamente no Relatrio final do Grupo de Trabalho
sobre violaes de direitos humanos relacionadas luta pela terra e contra populaes
indgenas, por motivaes polticas no perodo compreendido entre 1946-1988, sob
responsabilidade da comissionada Maria Rita Kehl.
Alm das contribuies ao trabalho da CNV, esse Relatrio final da CCV
procurou apresentar o protagonismo histrico dos trabalhadores e trabalhadoras rurais
na luta contra a ditadura civil-militar. Acreditamos que h um processo poltico e social
de invisibilizao, tanto no que se refere luta e resistncia camponesas, quanto aos
processos de reparao em curso no Estado brasileiro. Um dos fatores fundamentais
para quebrar com essa invisibilidade poltica a reconstruo da memria camponesa,
necessria ainda para fortalecer a insero dos camponeses no debate pblico sobre a
ditadura civil-militar, inclusive como sujeitos da resistncia. Essas questes esto
abordadas no captulo I desse relatrio.
O captulo II apresenta uma narrativa da Histria do Brasil no sculo XX a partir
do ponto de vista dos camponeses e camponesas. necessrio que essas pessoas sejam
reconhecidas enquanto sujeitos de sua histria, passo importante para a construo da
condio fundamental do campons como sujeito de direitos. Nesse item, so
apresentadas ao leitor as primeiras organizaes camponesas, suas reivindicaes,
formas de luta e conquistas de direitos. Mas tambm, a reao patronal, as diversas
aes de represso e a intensificao do conflito entre camponeses e latifundirios. Esse
captulo finalizado com a discusso sobre a luta dos camponeses no perodo do regime
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civil-militar, instalado a partir de 1964 e promotor do processo de modernizao
conservadora no Brasil.
Nesse ltimo ponto, ressalta-se outro debate fundamental realizado pela rede de
pesquisadores da CCV: a concepo poltica do Estado como sujeito de violaes de
direitos. As apresentaes de pesquisas nas reunies realizadas na sede da CONTAG
nos anos de 2013 e 2014 desnudaram a necessidade de considerar que o Estado violou
os direitos no s quando seus agentes atuaram diretamente. Mas tambm, os atos de
omisso, conluio, acobertamento e privatizao da ao do Estado, na qual o
latifndio funcionou como um brao privado antes, durante e depois da ditadura civil-
militar de 1964, tornam o Estado um agente violador. A CCV buscou construir critrios
para dar a ver como essas aes e omisses do Estado podem e devem ser associadas
com as violaes dos direitos dos camponeses.
Essas violaes so descritas e discutidas no captulo III desse relatrio. Os
relatos de casos pesquisados indicam as diversas formas de atuao da represso poltica
sobre os camponeses entre 1946 e 1988. Destaca-se o perodo da ditadura civil-militar
no Brasil entre 1964 e 1985. Em diferentes regies e sob diferentes modus operandis
possvel identificar como agiam, muitas vezes de modo articulado, agentes do Estado e
agentes privados na sistemtica violao dos direitos humanos dos camponeses e de
seus apoiadores. So relatos de torturas, mortes, desaparecimentos, ocultao de
cadveres, ameaas, despejos, agresses fsicas, prises, exlios (no exterior e no
prprio pas), destruio de bens, entre outras. Deve-se ressaltar, contudo, a resistncia
camponesa ao golpe de 1964, muitas vezes ausente da historiografia. Partindo da
perspectiva dos camponeses como sujeitos de sua histria, alguns casos de resistncia,
bem como seus atores, so apresentados no item 3.1 desse captulo.
Por fim, esto disponibilizados para o leitor os relatos dos casos investigados
pela rede de pesquisadores integrantes da CCV. Ainda que tenham ficado de fora muitas
das graves violaes de direitos humanos cometidas contra camponeses e camponesas
no perodo da ditadura civil-militar e do perodo de transio, todas as regies do Brasil
esto contempladas nos mais de 70 casos relatados. Alm de conhecer a histria de
represso sobre camponeses no Brasil, o leitor ter acesso a uma atualizada bibliografia
sobre o assunto e a indicao de diversas fontes de pesquisa (jornais, relatrios,
documentos, entrevistas e outros) sobre o assunto.
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Est anexado a esse relatrio importantes instrumentos de pesquisa, a saber, a
lista de camponeses atingidos por inquritos policiais militares (IPM) e por processos na
Justia Militar, a lista de camponeses e apoiadores mortos ou desaparecidos de 1961 a
1988 e uma tabela com informaes sobre camponeses e ditadura no Oeste do Paran
(com dados sobre eventos, fontes e localizao).
A Comisso Camponesa da Verdade, buscando cumprir o compromisso firmado
de combater e denunciar a violncia e a impunidade no campo e a criminalizao das
lideranas e movimentos sociais promovidas pelos agentes pblicos e privados, atravs
deste Relatrio Final, afirma perante a Comisso Nacional da Verdade, o Estado
brasileiro e a sociedade, como primeira recomendao, que o Estado brasileiro, no
mbito da Unio, dos estados e dos municpios, reconhea as graves violaes de
direitos humanos cometidas contra camponeses no perodo investigado de 1946-1988,
especialmente no perodo da ditadura civil-militar, 1964-1985, e garanta s vtimas e
famlias das vtimas, a devida reparao.
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INTRODUO
Vivemos um momento republicano no pas, em que o olhar da sociedade
brasileira est voltado para a busca do outrora. No momento em que foi criada a
Comisso Nacional da Verdade (CNV), em 2012, comisses da verdade e comits da
memria, verdade e justia despontaram em vrios Estados e municpios e pululam
mirades de manifestaes sobre as lembranas do golpe civil-militar no Brasil de 1964
em diante. nesta atmosfera que se desenvolvem as discusses da Comisso
Camponesa da Verdade, criada em 2012, a partir de uma deciso do Encontro Unitrio
dos Trabalhadores, Trabalhadoras e Povos do Campo, das guas e das Florestas.1
O desejo de conhecer esse pretrito do pas, ainda silenciado pela histria oficial,
significa presentificar os mortos, os desaparecidos at hoje excludos da histria do
Brasil. Presentificar entendido como ao de trazer o passado ao presente, tendo como
suporte a memria no somente como registro, ou com um fim nostlgico, mas como
ao e reivindicao de justia. Neste sentido, memria, futuro e justia se somam.
Significa (re)construir a verdade em relao a centenas e centenas de brasileiros que
tiveram seus sonhos interceptados, seus corpos dilacerados e suas vozes emudecidas no
perodo da ditadura civil-militar.
Portanto, uma memria coletiva de atos que ceifaram vidas e deixaram
cicatrizes nas pessoas, famlias, sociedade, mas tambm expresso da violncia
simblica, do invisvel a olho nu, que machucou a alma de milhares de brasileiros.
uma memria coletiva, tecida pelos fios das lembranas de um magote de brasileiros e
por eles compartilhada. So memrias de operrios, de camponeses, de estudantes,
dentre outros, mas tambm de adversrios e inimigos da liberdade democrtica. So
memrias que pertencem a todos ns.
A Resoluo n. 5/2012, da Comisso Nacional da Verdade (CNV), criou o
Grupo de Trabalho sobre camponeses e indgenas, com a competncia de esclarecer
1 O Encontro Unitrio contou com a organizao e participao da Associao dos Povos Indgenas do
Brasil (APIB); Critas Brasileira; Conselho Indigenista Missionrio (CIMI); Comisso Pastoral da Terra
(CPT); Coordenao Nacional de Articulao das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ);
Confederao Nacional de Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura (CONTAG); Confederao
Nacional dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (FETRAF); Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB); Movimento Campons Popular (MCP); Movimento de Mulheres Camponesas (MMC);
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST);
Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecurio (Sinpaf) e Via
Campesina Brasil. O documento final do encontro est disponvel em
http://encontrounitario.wordpress.com/declaracao-do-encontro/.
http://encontrounitario/
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fatos, circunstncias e autorias de casos de graves violaes de direitos humanos, como
torturas, mortes, desaparecimentos forados, ocultao de cadveres, relacionados s
populaes do campo. O objetivo deste GT identificar e tornar pblico estruturas,
locais, instituies e circunstncias de violao de direitos humanos no campo brasileiro
de 1946 a 1988.2
A partir da criao do GT na CNV, a iniciativa da Comisso Camponesa da
Verdade (CCV) passou a ser, em primeiro lugar, dar suporte CNV no sentido de
resgatar situaes de violncias cometidas pelo Estado e seus agentes contra
camponeses entre 1946-1988. Para alm da investigao no perodo de abrangncia da
CNV, a CCV tambm enfatiza a necessidade premente de reparao das violaes
cometidas por parte do Estado.
O compromisso que originou a CCV foi impulsionado e concretizado atravs de
reunies realizadas na sede da Contag em Braslia, durante os anos de 2013 e 2014, nas
quais professores/as, pesquisadores/as, lideranas de movimentos sociais e gestores
pblicos se dedicaram a pesquisar, juntar estudos j realizados e elaborar este relatrio
com o objetivo de incidir nas atividades desenvolvidas pela Comisso Nacional da
Verdade (CNV), especificamente no Relatrio final do Grupo de Trabalho sobre
violaes de direitos humanos relacionadas luta pela terra e contra populaes
indgenas, por motivaes polticas no perodo compreendido entre 1946-1988
(Resoluo n. 02, de 2012, da CNV), sob responsabilidade da comissionada Maria Rita
Kehl.
Os encontros da CCV visaram ento sistematizar estudos e pesquisas e agregar
contribuies ao relatrio da CNV. Alm de denunciar violaes, a percepo foi a de
que necessrio desnudar o protagonismo histrico dos trabalhadores e trabalhadoras
rurais na luta contra a ditadura civil-militar, principalmente em face constatao de
que h um processo poltico e social de invisibilizao, tanto no que se refere luta e
resistncia camponesas, quanto aos processos de reparao em curso no Estado
brasileiro.
Questes terico-conceituais jurdicas e polticas tm sido discutidas e so
consideradas fundamentais para a conduo dos trabalhos junto CNV, mas tambm na
luta por reconhecimento e reparao. A concepo poltica em relao ao Estado, como
violador de direitos humanos, apresenta um elemento que aponta a este mesmo Estado
2 Resoluo disponvel em http://www.cnv.gov.br/images/pdf/resolucao_5_CNV_051112-2.pdf
http://www.cnv.gov.br/images/pdf/resolucao_5_CNV_051112-2.pdf
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(inclusive um anseio de segmentos populares da sociedade brasileira) a necessidade de
transformar suas instituies, reconhecer sua responsabilidade e estabelecer novas
formas de conduo no campo econmico, social, poltico e cultural para que a
atrocidade cometida no se esquea, para que nunca mais acontea.
Um dos debates na CCV sobre a concepo poltica do Estado como sujeito de
violaes de direitos. As discusses trouxeram tona especificidades da questo
camponesa e a necessidade de considerar, na atuao do Estado, no apenas aqueles
casos e aes em que agentes estatais agiram como atores diretos, mas tambm
situaes de omisso, conluio, acobertamento, ou mesmo a privatizao da ao do
Estado, em que o latifndio funcionou como um brao privado antes, durante e depois
da ditadura civil-militar de 1964. Um dos desafios, portanto, foi o de formular critrios
que dariam condies de entender onde ao, omisso e/ou conivncia do Estado se
associaram com violaes de direitos sofridas por camponesas e camponesas, a fim de
evitar que o passado se repita.
Outro tema que foi norteador do trabalho da CCV refere-se noo de memria
e importncia atual da memria camponesa. A reconstruo dessa memria
fundamental, primeiro, para quebrar a invisibilidade poltica produzida sobre esses
atores sociais. necessria tambm para fortalecer a insero dos camponeses no
debate pblico sobre a ditadura civil-militar, inclusive como sujeitos da resistncia.
Desse modo, a CCV buscou reunir trajetrias de camponeses e camponesas no percurso
da resistncia em todas as regies do Brasil, mas diante da absoluta falta de tempo e
recursos, apresenta neste relatrio casos j pesquisados e investigados por membros e
parceiros da CCV.
fundamental ter claro que, apesar dos processos histricos de luta por direitos
e resistncia expropriao, h uma clara invisibilizao dos camponeses, tanto em
relao ao seu protagonismo (na luta contra a ditadura) como nos processos de
reparao. um segmento social esquecido (poucos casos investigados nas
Comisses de Anistia e de Mortos e Desaparecidos, por exemplo), tanto por seu
protagonismo e luta como pela no reparao das violaes sofridas.
A invisibilizao serve como um mecanismo poltico de no reconhecimento e,
consequentemente, no reparao (pequeno nmero de casos aprovados) e o que mais
grave, no justia (raros casos de punio judicial aos perpetradores das violaes aos
direitos humanos, no campo), sendo fundamental este trabalho de reconstruo da
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memria e da verdade da Comisso Camponesa, mas especialmente da Comisso
Nacional da Verdade.
O processo de constituio e trabalhos de resgate da memria pela Comisso
Camponesa da Verdade, portanto, se deu no bojo de uma luta mais ampla contra o
esquecimento e a invisibilidade, na busca pela verdade, pela reparao e pela justia.
Alm da prpria CNV, a CCV soma-se militncia de memria e verdade no Brasil que
tem alguns fruns como referncia, como por exemplo, a Comisso de Familiares de
Mortos e Desaparecidos Polticos, os Grupos Tortura Nunca Mais e os Comits da
Verdade, Memria e Justia, criados a partir de 2011.
Figuram entre os objetivos da Comisso Camponesa da Verdade investigar e
propor casos e estudos CNV, mas tambm mobilizar as organizaes sociais no
resgate e preservao da memria camponesa. Ao investigar casos de violao e
elaborar relatrio dos movimentos e entidades, o objetivo resgatar o passado como
possibilidade real de reconstruo de um tempo vivido para ser repensado, questionado,
revisto e reparado no presente, combatendo o esquecimento e requerendo justia. A
inteno, de modo geral, dar mais visibilidade aos sujeitos do campo duramente
vitimados pelo Estado e seus agentes entre 1946 e 1988. Ao esclarecer quem foram os
agentes e as vtimas das violaes, a CCV faz uma srie de recomendaes de medidas
e polticas para no repetio, mas especialmente medidas de reparao s vtimas ou
familiares das vtimas que sofreram as violaes.
Este Relatrio apresenta o resultado do trabalho de debates, estudos, pesquisas e
investigao da Comisso Camponesa da Verdade, em seus dois anos de atuao. O
documento inicia com apresentaes dos marcos tericos, os quais direcionaram as
reunies em Braslia DF. Segue construindo uma histria vista da tica do campons,
reforando assim sua condio de protagonista, tanto da sua histria quanto da Histria
do Brasil. Na sequncia, relata casos pesquisados de violao aos direitos humanos de
camponeses e de camponesas, entre 1946 e 1988, e apresenta recomendaes.
Os relatos dos casos pesquisados so apresentados com uma tipologia ou
natureza da violao (procurando vincular com a noo de graves violaes de direitos)
e contexto do conflitos (regio ou local onde o caso ocorreu) e a relevncia para a
violao analisada. Os relatos procuram explicitar atuao, omisso e/ou conivncia do
Estado e de agentes estatais e privados envolvidos, entre outros aspectos. Aps a
descrio desses casos, esto as fontes pesquisadas, em separado, sendo a inteno de
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referenciar o narrado, mas tambm indicar e reforar a necessidade de aprofundar as
investigaes para alm dos casos e violaes destacadas neste relatrio.
Os casos apresentados neste relatrio esto longe de esgotar o universo de
situaes com que nos deparamos nas pesquisas, mas fornece um panorama
representativo dos tipos de violncias cometidos contra camponeses entre 1946 e 1988.
Mesmo que alguns casos no estejam reportados, so situaes emblemticas e de
conhecimento e reconhecimento pblico, como por exemplo, o assassinato de Joo
Pedro Teixeira,3 em 04 de abril de 1962 (ocorrido na BR 232, no Estado da Paraba) e a
perseguio de Elizabeth Teixeira que, com 89 anos de idade, vive e atua no Estado da
Paraba, seguindo o legado de seu companheiro e lder campons, e uma memria viva
das Ligas Camponesas.
Outros casos emblemticos para a histria e luta camponesas, a exemplo da
resistncia expropriao de Trombas e Formoso, em Gois, nos anos 1960 e 1970, e a
participao de camponeses na Guerrilha do Araguaia, nos anos 1970, e tantos outros,
no foram objeto de relatos aprofundados por falta de condies de trazer elementos
novos s pesquisas j realizadas, mas fazem parte da memria camponesa, da resistncia
ditaduta e das injustias cometidas e a serem reparadas.
Consequentemente, por absoluta falta de recursos e tempo, a CCV trabalhou,
parcialmente, com a noo de caso emblemtico episdio importante,
historicamente circunscrito ou um processo temporal mais longo, envolvendo pessoa,
grupo de pessoas e comunidades inteiras como situaes e episdios que
exemplificam a violncia, a violao de direitos e as diversas formas de represso no
campo. So exemplos, no sentido de evento ou episdio particular que, ao serem
resgatados, (re)construdos e recontados, explicitam aes e violaes por parte do
Estado e de seus agentes.
Ao apresentar esse relatrio, a CCV procura dialogar com os movimentos,
organizaes do campo e universidades, criando e internalizando a prtica do trabalho
de narrar e reconstruir a memria camponesa. Considera que esse um passo
fundamental para a conquista do reconhecimento oficial das violaes e para a busca da
justia e da reparao.
Ao longo do relatrio, muitas vezes aparece o termo camponeses, de modo
genrico (inclusive intercambivel e como sinnimo de trabalhador rural ou
3 Caso documentado no filme Cabra marcado para morrer, do diretor Eduardo Coutinho, assassinado
em 02 de fevereiro de 2014.
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agricultor), ou de modo especfico, camponeses e camponesas. O uso genrico do termo
sem entrar no longo e importante debate terico se refere a pessoas que vivem no
campo, portanto, no exclui a presena das mulheres camponesas dos contextos
descritos. Trata-se apenas de uma opo na redao do texto, utilizando uma noo
corrente no perodo em anlise, novamente, sem o objetivo de fazer uma opo terica-
conceitual.
Cabe destacar ainda que esse primeiro panorama estabelece uma percepo de
que as graves violaes de direitos humanos persistem no campo nos dias atuais, como
parte de uma realidade permeada pela impunidade e por uma poltica de justia de
transio inacabada. Porm, a partir dos fatos narrados e da capacidade de indignao,
organizao e resistncia da populao camponesa, a CCV acredita que o horizonte de
uma justia social plena segue alimentando as geraes que ousam lutar e reivindicar
direitos e justia, no s no campo mas em toda a sociedade brasileira.
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I MEMRIA CAMPONESA: NARRATIVA DA DOR E
ESPERANA NO PORVIR
Paulo Freire, no livro Pedagogia do Oprimido,4 proporciona um dilogo com as
construes subalternas do saber, apontando como elas podem amplificar a
compreenso dos processos sociais enraizados no Estado brasileiro que condicionaram
populaes oprimidas como se estas fossem desprovidas de capacidade de elaborar seus
prprios conhecimentos. Segundo ele, a produo do saber determinada atravs das
palavras do doutor. Porm, a opo poltica e metodolgica deste trabalho busca uma
relao mais profunda no sentido epistemolgico, em que uma ampla profuso de
saberes se relacionam, constituindo uma memria coletiva permanente das lutas sociais.
Essa opo poltica e metodolgica permite valorizar a experincia camponesa e
considerar as relaes constitudas no saber popular enquanto fluxo contnuo de
modificao das formas de conceber o conhecimento. Formas que superem distores
preconceituosas que afetam no apenas grupos subalternos, mas a prpria narrativa
institucional do exerccio do poder. Segundo ele,
De tanto ouvirem de si mesmos que so incapazes, que no sabem
nada, que no podem saber, que so enfermos, indolentes, que no
produzem em virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua
incapacidade. Falam de si como os que no sabem e do doutor
como o que sabe e a quem devem escutar.
Uma opo poltica e metodolgica, baseada na diversidade, no pode ser
restrita constatao de insuficincias, mas alarga-se em uma transformao continuada
de novos saberes e perspectivas. Neste sentido, reconstruir a memria camponesa um
processo poltico de presentificar o passado, para irromper silncios.
No pr-golpe, entre 1946 e 1964, o regime democrtico no assegurava os
direitos de cidadania aos camponeses e reprimia suas lutas e organizaes. Entre 1964 e
1985, a ditadura civil-militar suprimiu as liberdades democrticas de camponeses que
foram perseguidos, agredidos, torturados e mortos. A mesma coisa aconteceu com
advogados, religiosos e jornalistas que apoiaram a luta camponesa. Mesmo no perodo
ps-golpe, o Estado democrtico de direitos, entre 1985 e 1988, manteve polticas
permissivas de violao de direitos humanos no campo.
4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2005, p. 56.
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O desvelamento do silncio e da dor sofrida por camponeses na luta pela terra e
por direitos que trazemos neste documento por meio da reconstruo de memrias de
perodos da histria brasileira que no podem ser esquecidos.
O conceito de memria polissmico, mas dois dos sentidos que circulam em
nosso cotidiano chamam a ateno: a) a memria enquanto circunscrita apenas ao
passado e, b) a memria enquanto anseio de no repetio do passado, ou seja, como
forma de assegurar valores democrticos no presente e no futuro. Chama a ateno
tambm o uso cada vez mais frequente da expresso para que nunca mais acontea,
em referncia ao pretrito ditatorial, e como tentativa de fortalecimento de valores
democrticos.
Enquanto anseio de no repetio, o fio condutor adotado neste relatrio a
compreenso da memria como um dilogo com o outro; uma conversa que se realiza
no presente, tentando desenhar probabilidades do porvir. Vincula-se ento aos quadros
sociais da histria e da luta camponesa, no de forma submissa, nem como repetio,
mas como ruptura.
No interessa o sentido da memria circunscrita somente ao passado, no sentido
dado por Aristteles de que a memria do passado.5 Esse sentido, cujo valor se
assenta em imprimir uma marca temporal ao conceito, exclui o presente, o tempo do
agora, de efetivao de nossas experincias. Exclui tambm o tempo de realizao de
nossas aspiraes, o porvir. pensar com o olhar engessado, considerando apenas o que
fomos, como se o outrora no fosse fonte do agora, nem apontasse luzes para o que h
de vir.
Assim, pensar a memria, nos limites do pretrito, induz a pensar que as meras
escavaes do nosso passado ditatorial asseguram-nos um futuro democrtico; que
bastaria revirar escombros desse passado sombrio para aliviar a tormenta de t-lo
vivido. necessrio a apropriao de outra noo de memria, a qual baseada no
dilogo com o outro; um exerccio de ouvir vozes j emudecidas; vozes que revelam
segredos, e das quais portamos infinitas heranas.
Pensar a histria do Brasil, a partir da perspectiva da memria camponesa, ou
seja, dos desvios e das interrupes, significa tambm lanar o olhar para as vtimas do
passado que ficaram no meio do caminho, presentificar suas ausncias e combater seu
5 RICOEUR, Paul. La Memoria, la Historia, el Olvido. Buenos Aires, Fondo de Cultura Econmica,
2004, p. 23.
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esquecimento. Significa lembrar que chegamos ao sculo XXI com um legado esprio
do sculo passado ou seja, ditaduras na Amrica Latina como episdios de
afrontamento dignidade e aos direitos , portanto, preciso rememorar que tambm
somos herdeiros da dor e do silncio que no nos pertenceram.
A memria reflexo que possibilita o conhecimento do agora e do outrora,
assim orienta possibilidades de existncia do porvir. Ela irrompe o presente com os
estilhaos do passado; faz ressurgir no agora o que foi ontem, portanto, a memria
ruptura. Na esteira de Benjamin,6 a memria uma leitura anacrnica da histria,
tradio, mas tambm uma ao revitalizadora do presente. elo de contato com o
outro, com aquele que j se foi, mas que por meio da lembrana sua ausncia ser
presentificada. a organizao dos fatos na ordem do tempo, portanto, evocar a
memria est na arte de narrar. Reconstruir memrias no fazer um resgate do passado
puro e simples, ou ainda fazer uma descrio desse passado, mas narrar para fazer
emergir esperanas no realizadas desse passado.
1.1. MEMRIA, VERDADE E ACESSO JUSTIA
Como se fazer valer da memria camponesa para justificar o acesso justia,
quando sabemos que a realidade de violncia, represso, retaliao, perseguio e
massacres sofridos por homens e mulheres no campo no est devidamente registrada
nos documentos oficiais? Ao tratar da memria camponesa, a CCV compreende que a
memria parte da construo da verdade. Sem trazer tona memrias daqueles que
foram duramente atingidos, em perodos repressivos, a verdade, o acesso justia e a
reparao seriam limitados. Temos clareza que ambas, memria e verdade, so
elementos fundamentais para a reparao do direito humano de tantos camponeses
atingidos.
Se reconhecermos que as lutas camponesas foram parte da resistncia
represso na ditadura civil-militar, ser possvel alm de reconhecer o protagonismo
pretrito desses sujeitos iniciar um justo processo de reparao s violaes sofridas
pelos mesmos, especialmente ps-1964, aproximando memria e justia. Essa
6 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de histria. Obras Escolhidas. Vol. I. So Paulo, Ed. Brasiliense,
1987.
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aproximao no esvazia a relao entre memria e passado, mas a vincula a uma
construo do porvir de maneira concreta, dando respostas s situaes de violao de
direitos humanos sofridas por camponeses.
Na luta camponesa por direitos e contra o latifndio e a propriedade privada,
figuram aes de milcias privadas, jagunos, pistoleiros, e outros, em violncias
reiteradamente marcadas como crimes comuns. Entretanto, poucos so investigados os
agentes do Estado que participaram ativamente de aes repressoras, por conivncia ou
omisso, dos crimes cometidos no campo. Tampouco aprofundado o impacto das
polticas pblicas que se abateu contra a populao rural no perodo. Falar em memria
e verdade no campo deve abrir a possibilidade de reescrever um captulo da histria
brasileira e reconhecer e responsabilizar agentes do Estado por violaes de direitos,
cometidos no abuso de suas competncias.
Entre os crimes cometidos contra camponeses no perodo da ditadura, as
torturas, mortes/assassinatos, desaparecimentos forados, ocultao de cadveres so
mais facilmente identificadas como graves violaes de direitos humanos. Entretanto, a
Comisso Camponesa da Verdade entende que necessrio abrir o escopo, incluindo a
violncia entendida como ameaas, perseguies, expulso da terra, prises arbitrrias e
outras aes contra pessoas e grupos no campo.
A memria no deve se limitar a cumprir um compromisso com as vtimas da
represso, seno servir tambm para construir um futuro que, a partir do recordar, logre
sanar e superar a herana perversa do autoritarismo. Por isso, no possvel abrir mo
de instrumentos de justia, portanto, fundamental que a responsabilidade do Estado e
de seus agentes sejam reconhecidas pelas violaes e danos causados vida de tantos
camponeses e as injustias sejam reparadas. O sentido da memria apreendida como
perspectiva de futuro pautado em valores democrticos ampliados est ancorado na
sua compreenso como uma recordao limpa, coesa e ampliadora da verdade. Assim, a
sociedade brasileira guarda os mesmos sentidos para o passado e o mesmo
encaminhamento para o futuro, como garantia da justia.
Apesar das referncias e acordos com Benjamin, aqui o papel da memria
modesto, pois no promete e nem garante nenhuma soluo que possa resolver o que
est pendente. Mas a memria nos recoloca a questo do que fazer com os resqucios e
flagelos encontrados. Assim, escavar o passado ditatorial e suas agruras, alm de
desvelar uma situao de terror, que passou a organizar e disciplinar a vida social dos
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camponeses, assim como a de todos os brasileiros, significa situar as violaes, mas
tambm alentar a justia e a reparao.
A justia reparativa caminha junto com a verdade e possibilita que a memria
camponesa saia da invisibilidade poltica, negando prticas de no-justia. Nesse
sentido, a memria um instrumento estratgico a favor daqueles que foram torturados,
assassinados, sofreram desaparecimento forado, ou que sofreram outras formas de
violao de seus direitos.
Em tempos de Comisso da Verdade, a sociedade brasileira tem a possibilidade
de apreender, no presente, os vestgios de vidas silenciadas, mutiladas, as vozes
dilaceradas, as feridas abertas desconhecidas pela ditadura civil-militar e em outros
perodos repressivos. O conhecimento dessas feridas possibilitar a escolha de caminhos
a serem palmilhados rumo ao futuro: o caminho do perdo, como o fez a frica do Sul,
ou o caminho da punio aos torturadores, como est sendo trilhado por nossos irmos
latino-americanos. Desse modo, o ato de memria se transforma em ao poltica, no
sentido atribudo por Hannah Arendt, uma ao coletiva que visa o bem comum.
Trazer a memria dos perodos repressivos, longe de nos oferecer segurana
social, sensibiliza a sociedade ao denunciar que nossa histria e nosso presente se
assentam sobre pessoas assassinadas, torturadas, perseguidas; se assenta sobre o
desrespeito dignidade humana, porque expe aquele que recorda a um novo
sofrimento. Mas, ao mesmo tempo, nos sensibiliza para a possibilidade de que o
caminho do futuro no pode abrir mo da reconciliao com o passado e com o
fortalecimento da democracia, sem a repetio das violaes aos direitos humanos.
Ao irromper o agora com os estilhaos do pretrito, a memria em geral provoca
tenso na sociedade por oferecer rastros do passado que questionam o j institudo,
podendo at alter-lo. Assim, a memria, ao invs de garantia, marca da incerteza, da
instabilidade e da insegurana. Por isso, percebida por muitos como perigosa.
O testemunho do coronel Malhes7, concedido CNV pouco antes de sua morte,
em 2014, um bom exemplo da insegurana gerada pela memria. No rastro dos
sentidos possveis do testemunho, o lugar de fala do militar, coronel reformado e
7 Paulo Malhes era coronel reformado, ex-agente do Centro de Informaes do Exrcito. O militar em
depoimento a Comisso Nacional da Verdade, confessou participar de torturas, mortes e ocultao de
cadveres de presos polticos durante a ditadura, inclusive do deputado federal Rubens Paiva. Foi morto,
em Nova Iguau, na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, em 2014, aos 76 anos de idade.
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integrante do Centro de Informaes do Exrcito - integrante de grupo dirigente e,
consequentemente, detentor de poderes polticos e prestgio social na corporao, foi
importante. O referido depoimento ofereceu sociedade runas do passado ditatorial
brasileiro, at ento conhecidos somente nas camadas superiores do Exrcito. Eram
informaes privadas, que se tornaram pblicas pelo testemunho, e apropriadas e
propagadas pela mdia.
O referido testemunho ganha a configurao memorialstica, ou seja, uma ao
matizada pela memria e uma ao poltica. Uma ao poltica por apresentar resqucios
trgicos da tortura, assassinato, desaparecimento forado e ocultao de cadveres de
opositores polticos do perodo ditatorial brasileiro. A fala do coronel fez emergir
lembranas da desumanidade em nvel incomensurvel, a ausncia de liberdade, a
recusa frontal diversidade e pluralidade; dimenses vitais da condio humana.
Assim, o depoimento propiciou um liame entre o que se pensava separado (hoje e
outrora, presente e passado), uma das funes da memria.
O depoimento rememorou fatos desconhecidos pela maior parte da sociedade,
mas, de forma fria, anunciou a crueldade e o no arrependimento do narrador. Assim,
inspirou perigo ao institudo, por ir contra o leque de recordaes naturalizados por
grupos da nossa sociedade; por fracionar e ampliar o leque de recordaes j
naturalizados; por fraturar o repertrio de esquecimento que nossa sociedade tenta
superar. O depoimento representa uma ameaa estabilidade do institudo, pois
provocou uma tenso entre o estabelecido por grupos de poder na ditadura e os fatos
reconstrudos pela recordao e publicizados. O narrador, aps um ms de seu
depoimento CNV, foi silenciado.
A memria ento se constitui como interrupo de um ciclo repetitivo e prepara
a abertura para o diferente, configurando-se como um passo para a liberdade e nutrindo
prticas de uma democracia efetiva. Neste sentido, so vrios os argumentos que nos
levam a crer, a pensar a memria como inoportuna, questionadora e desestabilizadora de
poderes naturalizados, portanto, incapaz de assegurar e garantir o institudo.
O slogan do nunca mais se relaciona compreenso do uso educativo da
memria, ou seja, sua eficcia pedaggica. Encampa diversos sentidos como a
conscincia da fora que o passado tem no presente, somado a um clamor para que o
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mundo seja possvel. Todavia, parece tambm, possuir o tom do definitivo,8 pois nunca
mais se repetiro os fatos que a morte enclausurou. To definitivo soa o clamor do
slogan repetido por aqueles que observam com horror a possibilidade de que a ditadura
se repita. Nunca mais tambm pode ser o chamado para no esquecer jamais aquele
tempo em que coraes sangraram. O nunca mais o desejo que toda sociedade
brasileira deveria expressar como seu, mas tambm uma exigncia coletiva dessa
mesma sociedade.
Mas para que nunca mais os erros do passado se repitam no basta o uso
constante do slogan. preciso muito mais! Faz-se necessrio a realizao de
experincias pedaggicas da memria com vistas criao de uma conscincia social
sobre o passado reconstrudo sobre o papel das instituies, sobre as vtimas e seus
perpetradores e ainda a busca da verdade como um exerccio coletivo. Em outros
termos, necessrio que o ato de memria se transfigure em uma ao poltica. O
exerccio pedaggico da memria deve exercitar a inquietao popular frente ordem
do social como um fato dado pronto que independe da ao humana e estimular o
desejo de um futuro diferente do j vivido.
Garantir justia s vozes silenciadas, reparar violaes so exerccios
pedaggicos que nos ajudam a compreender que a histria vivida no uma abstrao
do passado, ou porque j vivido no preciso ser retomado. Essa ao pedaggica pode
e deve ser assumida pelo Estado ao responsabilizar-se em restaurar a dignidade dos que
sofreram abusos e violaes, legitimando outra verso da histria. A relao memria
camponesa e justia significa a retratao de ns mesmos com nossas razes to
fortemente articuladas terra, e com camponeses que lutaram por ela e, por isso foram
duramente violentados.
A memria, segundo Walter Benjamin, arranca a tradio do conformismo,
procurando no passado, nas tradies, sementes de outra histria possvel. Para ele, a
memria a redeno da histria. As experincias, ao serem redimidas, criam condies
para se escrever no presente os apelos do passado. Assim, a reconstruo de
experincias permite refletir sobre seus significados nas aes da vida cotidiana onde a
histria transcorre.
8 Isso evoca o inevitvel verso de Alan Poe, pois never more no uma mera informao indicada por
um corvo protagonista do poema, mas o anncio do absoluto, da verdade trgica do destino humano.
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Devemos ento interpretar a memria como uma projeo tica da experincia
humana, reforadora e modeladora do humano no porvir. Antes de ser um relicrio ou
uma caixa de escombros do passado, a memria ruptura; a expresso do inesperado.
lembrana no sentido de pluralidade temporal. Ela , sobretudo, crena e esperana no
possvel.
A memria, enquanto tradio e oralidade, est calcada na compreenso de que
s h histria onde h experincia e s h experincia onde h sujeito. Todo sujeito
produz palavras pelas quais constri seu testemunho, sua narrativa. Assim, ela se
configura como a arte de dizer e de narrar para reconstruir, redimir ou reparar.
Desse modo, a tica ajuda a memria ultrapassar o discurso racionalista e a
salvaguardar a mobilidade histrica. E, ao estimular a interrupo de um ciclo repetitivo
e preparar a abertura para caminhos diferentes da histria, aponta para a liberdade.
Assim a liberdade conecta-se memria, verdade no sentido de que sejam cultivadas
prticas de uma democracia efetiva, cujos caminhos so abertos pela justia que se
materizaliza nas diversas iniciativas de reconhecer o direito das vtimas, promover a
reparao e facilitar a reconciliao com o passado vivido.
Por outro lado, a memria, como expresso da tradio, nos convida a uma
narrativa em que a comunicao entre pessoas no se d apenas por meio do contedo.
Envolve a disposio para estar de fato com o outro e efetivamente ouvi-lo. As palavras
carregam a tradio, bem como a histria pessoal de quem as ouve e as pronuncia.
Na perspectiva benjaminiana, reconstruir o passado permite que dores e
violaes no sejam silenciadas e esquecidas. Significa tambm concretizar e ampliar as
possibilidades de que reparaes de violaes aconteam e o passado seja redimido.
Representa a possibilidade de presentificao da memria de camponeses sobre
violaes, no s para constar dos anais da histria do Brasil, para registro formal-
oficial, mas para redimir o passado e acabar com a impunidade atravs de aes de
justia e reparao no presente.
Presentificar entendida aqui como ao de trazer o passado para o presente,
tendo como suporte a memria, no somente como registro, ou com um fim nostlgico,
mas como ao e reivindicao de justia. Neste sentido, memria, verdade e justia se
complementam.
Reconstruir a memria camponesa como parte dos trabalhos da Comisso
Nacional da Verdade abre para a possibilidade de dar visibilidade pblica s violaes
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cometidas pelo Estado e seus agentes contra homens e mulheres do campo, violentados
por lutarem pelo direito terra, resistir ao avano de uma modernizao (excludente e
dolorosa) e marcados pela usurpao de direitos.
1.2. GRAVES VIOLAES DE DIREITOS, JUSTIA DE TRANSIO E
RESPONSABILIDADE DO ESTADO
Assim como a memria no presente, a Comisso Camponesa da Verdade se vale
do conceito de graves violaes de direitos humanos para mostrar que camponeses e
camponesas foram ameaados, torturados, mortos e desaparecidos no perodo da
ditadura civil-militar e ainda continuam sendo, devido inacabada transio
democrtica no campo.
Recorre tambm ao conceito de justia de transio entendido como um
conjunto de aes administrativas e judiciais que efetiva direitos tais como anistia,
reparao moral e material s vtimas. Memria, verdade e justia, portanto, so
condio para superao do passado ditatorial e estabelecimento de um regime
democrtico pleno. Denunciar a baixa incluso dos camponeses nos instrumentos atuais
reparadores, portanto, faz deste Relatrio um instrumento de luta pela efetivao de
direitos justia de transio.
No Brasil, durante todo o perodo da ditadura civil-militar ocorreram denncias
de graves violaes aos direitos humanos, particularmente daqueles crimes identificados
de lesa humanidade, como tortura, assassinatos de opositores polticos e de ativistas
sociais, desaparecimentos forados de prisioneiros, feitos de forma continuada e
sistemtica. Mas tambm de outras formas de violao de direitos, como excluso dos
empregos, das universidades, impedimento ao trabalho, censura e cerceamento da
liberdade de criao e de imprensa, cassao de mandatos eletivos, fechamento ou
interveno em sindicatos, associaes, ligas camponesas, grmios estudantis. Mais
especificamente, a negao aos direitos trabalhistas, sindicais, previdencirios e o
direito terra, e a represso policial e militar a quem por eles lutaram, atingiram
camponeses e camponesas.
Contra os crimes ditatoriais se ergueu uma militncia persistente e corajosa de
organizaes sociais, partidos polticos, entidades e lideranas culturais e religiosas, que
no obstante a represso policial e militar, no deixaram de fazer denncias. Como nos
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demais pases latino-americanos, que passaram por perodos ditatoriais, dois grupos de
pessoas tiveram protagonismo importante nesta luta, os presos e ex-presos polticos, e
os familiares de mortos e desaparecidos polticos vtimas diretas e testemunhas das
graves violaes aos direitos humanos que persistiram na luta mesmo quando as
condies polticas eram desvantajosas e perigosas.
Estes grupos enfrentaram uma srie de dificuldades, desde o silenciamento em
relao s violaes ocorridas at os impasses criados pela Lei de Anistia. A Lei foi
conquistada por uma ampla mobilizao, impulsionada por inmeras entidades,
especialmente o Movimento Feminino pela Anistia, fundado em 1975, e os Comits
Brasileiros pela Anistia, criados nas principais cidades do pas a partir de 1978. Naquele
momento, os movimentos sociais reivindicavam o retorno das liberdades democrticas e
uma anistia ampla, geral e irrestrita. Pressionado, o ditador-presidente Figueiredo
enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei que versava sobre o tema. Moreira
Alves afirma que tal [...] medida possibilitaria um desafogo de opinio poltica, ao
mesmo tempo desarticulando um amplo movimento social que se mobilizara em torno
da questo.9
O projeto, no entanto, apresentava inmeras limitaes, pois a proposta no
inclua condenados por crimes de terrorismo, atentado pessoal, assaltos e sequestros,
no permitia que ex-integrantes das Foras Armadas afastados por crimes polticos
reassumissem suas funes e no concedia liberdade imediata aos presos condenados
pela Lei de Segurana Nacional. A principal controvrsia estava centrada na questo
dos beneficirios da Lei, ou seja, na possibilidade desta ser recproca, de parte a parte.
O texto enviado ao Congresso indicava a concesso de anistia a todos quantos, no
perodo compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979,
cometeram crimes polticos ou conexos com estes.10 Este dispositivo poderia
beneficiar os integrantes do aparato repressivo, impedindo a investigao e punio dos
agentes do Estado envolvidos em crimes de tortura e outras violaes de direitos
humanos.
O projeto de lei sofreu inmeras crticas, mas foi votado e aprovado em 28 de
agosto de 1979, por 206 votos contra 201, o que evidencia a dimenso das disputas e
9 ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposio no Brasil. (1964 - 1984) Rio de Janeiro: Vozes,
1984. p. 268. 10 A lei diz ainda, em seu Artigo Primeiro, que : Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os
crimes de qualquer natureza relacionados com crimes polticos ou praticados por motivao poltica.
BRASIL. Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979.
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embates em relao ao tema. Apesar dos limites da Lei de Anistia, cabe destacar que
esta beneficiou milhares de pessoas, entre presos polticos, banidos, exilados e atingidos
por Atos Institucionais e que, juntamente com outras medidas e mobilizaes sociais,
permitiu um avano efetivo rumo redemocratizao.
Infelizmente, a interpretao e a aplicao dada a Lei de Anistia, principalmente
em relao sua abrangncia e aos chamados crimes conexos, tornou-a um
instrumento para a auto-anistia e para a impunidade. At hoje, nenhum agente do Estado
foi punido pelas graves violaes de direitos humanos cometidas ao longo do perodo
ditatorial.
Vale ressaltar que ao longo dos ltimos anos a Lei de Anistia tem sido alvo de
inmeros questionamentos, seja por parte dos movimentos sociais seja no mbito
institucional.11 A presso popular o motor das transformaes sociais, re-significando
a histria oficial contada pelo poder poltico vigente. Portanto, denncias de graves
violaes de direitos humanos so progressivamente sustentadas no discurso e nas aes
de movimentos sociais, que exigem justia e verdade e impulsionam transformaes
necessrias.
Graves violaes de direitos humanos so analisadas na histria recente,
especialmente aps os crimes de holocausto e de genocdio cometidos durante a II
Guerra Mundial. A perspectiva adotada a de reverter o quadro de impunidade a crimes
cometidos contra a vida de civis em perodos de guerras, golpes e ditaduras militares,
denunciando a participao de agentes do Estado em violncias que afetam parcelas da
sociedade, especialmente no bojo de perseguies polticas, raciais e religiosas.
O Tribunal de Nuremberg12 inaugurou uma nova fase do Direito Internacional ao
tipificar, no Art. 6 do seu Estatuto, o conceito de crime contra a humanidade,
prevendo as condutas de homicdio, deportao, extermnio e outros atos desumanos,
cometidos dentro de um padro amplo e repetitivo de perseguio a determinado grupo
(ou grupos) da sociedade civil, por razo poltica. O conceito foi ratificado pela
11 A deputada Luiza Erundina (PSB/SP), por exemplo, apresentou um Projeto de Lei (PL 573/2011) que
busca revisar a Lei de Anistia e dar interpretao autntica ao que dispe a Lei 6.683/1979, no artigo 1,
pargrafo 1. A tramitao do PL 573/2011 pode ser acompanhada em
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_imp;jsessionid=706EF8E49D77DB958952FE873395D
E4A.node2?idProposicao=493311&ord=1&tp=completa 12 Aps a II Guerra Mundial, entre 1945 e 1949, foi criado um Tribunal Militar Internacional, a partir de
acordo entre URSS, EUA, Gr-Bretanha e Frana, que se reuniu em Nuremberg, na Alemanha, e julgou
quase 200 homens, incluindo lderes nazistas do alto comando, juristas e mdicos por crimes de guerra
(COSTA Jr., Dijosete Verssimo da. Tribunal de Nuremberg. Jus Navigandi, Teresina, Ano 4, n. 28,
01/fev./1999. Disponvel em: . Acesso em 11/jul./2014.
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_imp;jsessionid=706EF8E49D77DB958952FE873395DE4A.node2?idProposicao=493311&ord=1&tp=completahttp://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_imp;jsessionid=706EF8E49D77DB958952FE873395DE4A.node2?idProposicao=493311&ord=1&tp=completahttp://jus.com.br/artigos/1639
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Organizao das Naes Unidas (ONU), em dezembro de 1946, abrindo precedente
para a criao de sistemas internacionais de proteo da pessoa humana.
A Assembleia Geral da ONU reiterou, em vrias ocasies, que atos como
tortura, escravido, assassinatos, execues sumrias, execues extrajudiciais ou
arbitrrias e crimes de desaparecimento forado de pessoas so graves violaes de
Direitos Humanos. Essas violaes so tipificadas como crimes para rgos que
representam a comunidade internacional, por exemplo, rgos ligados Organizao
dos Estados Americanos (OEA) (especialmente o Sistema Interamericano de Proteo
de Direitos Humanos, integrado pela Comisso e pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos) e prpria ONU. Os Estados que se submetem a estes regimes jurdicos tm
a obrigao de julgar e punir aos responsveis por esses crimes e pode ser o prprio
Estado responsabilizado penalmente.13
As normas internacionais de direitos humanos, com seus sistemas de proteo,
lentamente repercutem nas normas jurdicas dos Estados nacionais. Associado noo
de graves violaes de direitos, vem ocorrendo avanos de instrumentos e normas
jurdicas, forjando a noo de Justia de Transio, especialmente a partir do final dos
anos 1980 e incio dos anos 1990.
Da juno de demandas por justia e por transio democrtica, o
termo justia transicional [ou Justia de transio] foi cunhado para
expressar mtodos e formas de responder a sistemticas e amplas
violaes aos direitos humanos. Assim, justia transicional no
expressa nenhuma forma especial de justia, mas diversas iniciativas
que tm por intuito reconhecer o direito das vtimas, promover a paz,
facilitar a reconciliao e garantir o fortalecimento da democracia.14
Em deciso do Juz Caio Mrcio Guittierrez Taranto, da 4 Vara Federal
Criminal do Estado do Rio de Janeiro, de 26 de maio de 2014, a denncia contra
militares e agentes pblicos envolvidos no homicdio de Rubens Paiva, em janeiro de
1971 nas dependncias do Exrcito, narra com clareza o contexto das condutas
imputadas aos denunciados como prtica de uma poltica de governo ilegal perante o
ordenamento poca qualificada por atrocidades. Ainda segundo termos da deciso,
[] passados mais de 40 anos dos fatos, j no se ignora mais que a
prtica de tortura e homicdios contra dissidentes polticos no perodo
13 emblemtica a sentena que condena o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo
desaparecimento de militantes presos polticos no caso chamado Julia Gomes Lund e outros (Guerrilha
do Araguaia) vs. Brasil, datada de 24 de novembro de 2010. Disponvel em http://www.corteidh.or.cr/
docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf 14 PINTO, Revista Debates, 2010.
http://www.corteidh.or.cr/%20docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdfhttp://www.corteidh.or.cr/%20docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf
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conhecido historicamente como Ditadura Militar fazia parte de uma
poltica conhecida, desejada e coordenada pela mais alta cpula
governamental, mas que a manteve em um plano de ilegalidade,
expondo que o Estado e os detentores do poder estavam acima do
ordenamento jurdico.15
A compreenso de organismos internacionais de que crimes, tais como as graves
violaes aos direitos humanos, devem ser obrigatoriamente reparados pelos Estados
e apurados justifica a defesa do Presidente da Comisso de Anistia do Ministrio da
Justia, Paulo Abro. Segundo ele, uma obrigao de todo e qualquer Estado de
Direito ao viver a Democracia contrapor-se a essa violncia do passado, para fortalecer
instrumentos, nos dias de hoje, que permitam a no repetio desses erros.
Neste mesmo escopo, com base na ideia e no preceito fundamental de que
crimes contra a humanidade so imprescritveis e no passveis de anistia, Paulo Abro
define a ideia fundamental de Justia de Transio:
[...] um conjunto de direitos, novos direitos forjados em
perodos de transio democrtica, que apontam para quatro
obrigaes do Estado: primeiro, a obrigao de reparar todas as
vtimas; a segunda, permitir que venha a tona todas as
informaes e se construa ambientes propcios a verdade
histrica; a terceira, a possibilidade de realizao de reformas
institucionais das estruturas do Estado para que aquelas
instituies que no passado foram vocacionadas para destruir a
vida dos nossos concidados estejam devidamente vocacionadas
para a defesa da cidadania, ou seja, a ideia que o Estado existe
para proteger e no para reprimir. Em quarto lugar assegurar o
direito a memria e tambm a proteo judicial das vtimas.16
No Brasil, entre as medidas institucionais adotadas no mbito da Justia de
Transio destacam-se:17
A Lei n. 9.140, de 04 de dezembro de 1995, que reconheceu como mortas pessoas desaparecidas em razo de participao, ou acusao de participao,
em atividades polticas, no perodo de 2 de setembro de 1961 a 05 de outubro de
1988.18 A Lei tambm instituiu a Comisso Especial de Mortos e Desaparecidos
Polticos (CEMDP), a quem cabe investigar as denncias, envidar esforos para
localizar corpos de desaparecidos e emitir parecer sobre os requerimentos de
indenizao formulados pelos familiares das vtimas. Hoje lotada na Secretaria
15 Caio Marcio Gutterres Taranto. Deciso recebimento de denncia. Documento No. 70258019-1-0-1-
19-578334. Consulta autenticidade do documento atravs do site http://www.jfrj.jus.br/autenticidade. 16 Entrevista do STJ ao Presidente da Comisso de Anistia (MJ), Paulo Abro, publicada em 13/02/2013,
disponvel em www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=448&tmp.texto=108466 17 Ver o documento Sobre conceitos de Justia de Transio e Graves Violaes de Direitos Humanos,
sistematizado por Gilney Viana para a Comisso Camponesa da Verdade. 18 Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9140.htm Salientamos que a Lei, apesar de
seus avanos, foi criticada em funo de que caberia aos familiares o nus da prova; ou seja, seriam eles
os responsveis por reunir evidncias que comprovassem a morte de seus entes pelos agentes do estado.
http://www.jfrj.jus.br/autenticidadehttp://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=448&tmp.texto=108466
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de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, a Comisso j reconheceu a
responsabilidade do Estado sobre a morte ou desaparecimento de 362 pessoas
entre os anos de 1961 e 1988 (o perodo de abrangncia foi alterado pela Lei
10.536/2002).19
A Medida Provisria n. 2.151, de 2001, que instituiu a Comisso de Anistia, criada para analisar requerimentos de anistia poltica e de indenizao
formulados por pessoas que foram impedidas de exercer atividades econmicas
por motivao exclusivamente poltica desde 18 de setembro de 1946 at 05 de
outubro de 1988. Normatizada pela Lei n. 10.559/2002, a Comisso de Anistia
encontra-se lotada no Ministrio da Justia, tendo recebido, at esta data, mais
de 74.000 requerimentos de anistia.
A Emenda Constitucional n. 45, de 2004, que cria um procedimento de deslocamento de competncia da Justia Estadual ou Distrital para a Justia
Federal, quando da constatao de falha e omisso institucional na ocorrncia
de crime que viole gravemente os direitos humanos,20 equacionando a posio
da Unio no contexto de responsabilidade internacional em matria de direitos
humanos.21
A Conferncia Nacional de Direitos Humanos, realizada em 2009, durante a qual a sociedade civil participou da construo do Plano Nacional de Direitos
Humanos (PNDH III), o que resultou na incluso do Eixo 6 Direito
Memria e Verdade no documento, que props a criao da Comisso
Nacional da Verdade, expresso no Decreto n 7.037 de 21 de dezembro de
2009.22
O Grupo de Trabalho criado em 2011 no mbito do Ministrio Pblico Federal (PGR), que produziu o relatrio Crimes da Ditadura Militar: Relatrio sobre as
atividades de persecuo penal, desenvolvidas pelo MPF, em matria de graves
violaes a DH cometidas por agentes do Estado durante o regime de exceo
(2008-2012). Publicado em maro de 2013, este relatrio descreve vrias
denncias judiciais contra prepetradores de crimes de lesa humanidade.23
19 Comisso Especial de Mortos e Desaparecidos Polticos - www.sdh.gov.br/assuntos/mortos-e-
desaparecidos-politicos/programas/comissao-especial-sobre-mortos-e-desaparecidos-politicos O trabalho
da Comisso Especial resultou na publicao do livro Direito memria e verdade, publicado pelo
Governo Federal em 2007, reunindo todos os casos de mortos e desaparecidos polticos analisados pela
mesma. 20 Daniel Henrique de Sousa Lyra. A federalizao dos crimes de graves violaes dos direitos humanos:
a razovel durao do processo como garantia no combate impunidade ou instrumento retrico?
http://seer.ucp.br/seer/index.php?journal=LexHumana&page=article&op=view&path%5B%5D=24 21 Piovesan sugere que o deslocamento de competncia para a esfera federal: a) assegurar maior proteo
vtima; b) estimular melhor funcionamento das instituies locais em casos futuros; c) gerar a
expectativa de resposta efetiva das instituies federais. Se as instituies estadual e federal forem falhas
ou omissas, a esfera internacional ser a prxima instncia, a partir do esgotamento da responsabilidade
primria do Estado. PIOVESAN, Flvia. Reforma do Judicirio e direitos humanos. In: TAVARES, A.R.;
LENZA, P. e ALARCN, P.de J.L. (coords.). Reforma do Judicirio. So Paulo: Mtodo, 2005, p. 67. 22 Ressalta-se que as entidades presentes na Conferncia propuseram a criao de uma Comisso da
Verdade e da Justia, mas o termo justia foi excludo do texto final do PNDH III. 23 Relatrio MPF Crimes da Ditadura Militar (2013) http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-
trabalho/justica-de-transicao/relatorios1/Relatorio%20GT%20Revisado%20FinalMarco2012_1_Pagina.
pdf. Criao do GT MPF (2011): Portaria 2 CCR n 21 de 9 de novembro de 2011. Publicada no Boletim
de Servio/MPF n 22 da 2 quinzena de novembro de 2011 Disponvel em
http://2ccr.pgr.mpf.gov.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/justica-de-transicao/composicao/composicao
http://www.sdh.gov.br/assuntos/mortos-e-desaparecidos-politicos/programas/comissao-especial-sobre-mortos-e-desaparecidos-politicoshttp://www.sdh.gov.br/assuntos/mortos-e-desaparecidos-politicos/programas/comissao-especial-sobre-mortos-e-desaparecidos-politicoshttp://seer.ucp.br/seer/index.php?journal=LexHumana&page=article&op=view&path%5B%5D=24http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/justica-de-transicao/relatorios1/Relatorio%20GT%20Revisado%20FinalMarco2012_1_Pagina.%20pdfhttp://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/justica-de-transicao/relatorios1/Relatorio%20GT%20Revisado%20FinalMarco2012_1_Pagina.%20pdfhttp://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/justica-de-transicao/relatorios1/Relatorio%20GT%20Revisado%20FinalMarco2012_1_Pagina.%20pdffile:///U:/Sauer/Backup18-outubro2014/SAUER%20-%20geral/Comisso%20da%20verdade%20-%202012-2014/Relatrio%20CCV/Relatrio%20final/Portaria%202%20CCR%20n%2021%20de%209%20de%20novembro%20de%202011.%20Publicada%20no%20Boletim%20de%20Servio/MPF%20n%2022%20da%202%20quinzena%20de%20novembro%20de%202011%20%20Disponvel%20emfile:///U:/Sauer/Backup18-outubro2014/SAUER%20-%20geral/Comisso%20da%20verdade%20-%202012-2014/Relatrio%20CCV/Relatrio%20final/Portaria%202%20CCR%20n%2021%20de%209%20de%20novembro%20de%202011.%20Publicada%20no%20Boletim%20de%20Servio/MPF%20n%2022%20da%202%20quinzena%20de%20novembro%20de%202011%20%20Disponvel%20emhttp://2ccr.pgr.mpf.gov.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/justica-de-transicao/composicao/composicao
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A Comisso Nacional da Verdade (CNV), criada pela Lei n. 12.528/2011 e instituda em 16 de maio de 2012, que tem por finalidade apurar graves
violaes de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de
outubro de 1988.24 No mbito deste Relatrio, cabe destacar a criao pela CNV
do Grupo de Trabalho sobre violaes de direitos humanos relacionadas luta
pela terra e contra populaes indgenas, por motivaes polticas no perodo
compreendido entre 1946-1988 (Resoluo n. 02, de 2012, da CNV), com a
competncia de esclarecer fatos, circunstncias e autorias de casos de graves
violaes de direitos humanos, como torturas, mortes, desaparecimentos
forados, ocultao de cadveres, relacionados s populaes do campo.
A Lei n 12.527 de 18 de novembro de 2011, que regula o acesso a informaes no mbito da administrao pblica e tem com princpio bsico o acesso
informao enquanto um direito humano. Um dos principais avanos da lei
assegurar que As informaes ou documentos que versem sobre condutas que
impliquem violao dos direitos humanos praticada por agentes pblicos ou a
mando de autoridades pblicas no podero ser objeto de restrio de acesso
(Captulo IV).25
A Justia de Transio, portanto, se prope a consolidar instrumentos que
progressivamente restabeleam medidas de reparao s vtimas e seus familiares,
garantindo o direito memria, verdade e justia. Ressaltamos que o direito
justia, que prev a responsabilizao e punio dos agentes do Estado envolvidos na
represso, permanentemente negado no Brasil, tendo em vista a interpretao dada
Lei de Anistia de 1979. Em 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) interps
junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma Arguio de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF 153) que questionava a concesso de anistia aos
representantes do Estado (policiais e militares) que praticaram graves violaes aos
direitos humanos durante o regime militar. Infelizmente, a ao foi considerada
improcedente em 2010, por sete votos a dois, entendendo o STF que tais crimes foram
objeto da Anistia Poltica de 1979. Infelizmente, a interpretao do STF afirma que os
torturadores no podero ser processados criminalmente, porque tais crimes foram
objeto da Anistia Poltica de 1979.26
Todas essas conquistas foram decorrentes das lutas da sociedade civil e merecem
ser reconhecidas e apoiadas. Entre os movimentos e entidades que protagonizaram tais
lutas destavam-se:
24 Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm Ver
tambm o site da Comisso Nacional da Verdade (CNV): http://www.cnv.gov.br. 25 Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm 26 A ADPF 153 est disponvel em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf153.pdf
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htmhttp://www.cnv.gov.br/http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htmhttp://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf153.pdf
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O Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), o Comit Brasileiro de Anistia (CBA) e outras variadas formas de organizao e manifestao em favor da
Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, com maior atuao nos anos de 1975 a 1980.27
Os Grupos Tortura Nunca Mais, organizados a partir dos anos 1980 em lugares como Rio de Janeiro, So Paulo e Recife e que lutam pela abertura dos arquivos
da represso, pela denncia de torturadores e pelo direito reparao aos
perseguidos polticos.
A Comisso de Familiares de Mortos e Desaparecidos Polticos, que elabora dossis com denncias e reivindica justia, lutando contra o entendimento que
os torturadores seriam anistiados pela Lei n. 6683, de 1979. O objetivo
divulgar as investigaes sobre as mortes, a localizao de restos mortais das
vtimas da ditadura e identificar os responsveis pelos crimes de tortura,
homicdio e ocultao dos cadveres durante a ditadura (1964-1985).
Os Comits da Verdade, Memria e Justia que, criados a partir de 2011, so iniciativas autnomas da sociedade civil que tm por objetivo promover aes
pblicas de denncia dos crimes cometidos durante a ditadura civil-militar e
lutar por justia e reparao. Alguns destes comits tm estimulado polticas
municipais, estaduais e nacionais para a justia, a memria e a verdade.
As Comisses da Verdade Setoriais, como as Comisses da Verdade de Universidades, da OAB, de Centrais Sindicais, a Comisso Indgena da Verdade
e a Comisso Camponesa da Verdade, que se dedicam a investigar casos de
graves violaes aos direitos humanos em suas respectivas reas de atuao ou
representao.
Feitas estas consideraes iniciais a respeito dos instrumentos jurdicos,
mecanismos polticos e foras sociais e polticas que fundaram as bases da justia de
transio, destaca-se como lacuna central, para efeitos deste relatrio, a invisibilizao e
a consequente falta de reparao de grande parte dos camponeses, vitimados por graves
violaes de direitos humanos depois de 1946. No foram poucos os camponeses
perseguidos, ameaados, torturados, mortos e desaparecidos por motivos polticos, mas
raramente estes dados aparecem nas estatsticas, ou fazem parte dos processos
investigados e reparatrios, como veremos neste relatrio.
Muitos crimes polticos contra camponeses so apresentados nos livros Retrato
da Represso Poltica no Campo e Camponeses mortos e desaparecidos, publicados
como parte da coleo Direito Memria e Verdade.28 O segundo oferece uma anlise
mais detalhada do tratamento dado aos casos de camponeses perseguidos e
27 Em 1980, mudou-se o nome do movimento para Anistia e Liberdades Democrticas.
28 CARNEIRO, Ana e CIOCCARI, Marta. Retrato da Represso Poltica no Campo Brasil 1962-1985
camponeses torturados, mortos e desaparecidos, Braslia, Ministrio do Desenvolvimento Agrrio,
2011; VIANA, Gilney. Camponeses mortos e desaparecidos: excludos da justia de transio. Braslia,
Secretaria de Direitos Humanos/Presidncia da Repblica, 2011.
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assassinados, apresentando a discusso sobre restries de acesso e razes institucionais
da excluso de camponeses da Justia de Transio, bem como razes polticas que
tentam justificar este cenrio.
Do reencontro com a histria, surgem fundamentos para promover a reparao
das violaes a direitos fundamentais praticadas entre 1946 e 1988, como tambm a
reflexo da no repetio destes atos de arbtrio. Como assinalou o ento Ministro de
Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, na apresentao do livro Retrato da Represso:
Chacinas como a de Corumbiara, em 1995, Eldorado dos Carajs, em
1996, Felizburgo, em 2004, poderiam ter sido evitadas ou pelo
menos no ficariam marcadas pela impunidade se livros como este
j tivessem resgatado, h mais tempo, as razes histricas e profundas
da violncia no campo, particularmente durante a ditadura de 1964,
apontando mecanismos para a superao democrtica dos conflitos na
rea rural.
Consequentemente, a investigao das violncias e a busca de reparao de
graves violaes de direitos, cometidas contra camponeses e suas famlias no Brasil
fundamental, tanto para as pessoas diretamente atingidas, como para uma real
materializao da Justia de Transio. Neste contexto, a misso da Comisso Nacional
da Verdade de examinar e esclarecer as graves violaes de direitos humanos
praticadas no perodo (Resoluo n. 2/2012, art. 1) deve preencher essa lacuna que
vem inviabilizando o reconhecimento do protagonismo e do sofrimento campons.
Ainda, a Comisso Camponesa entende que o Estado como sujeito de violaes
de direitos se refere a todos os casos ou situaes em que estiveram envolvidos
agentes pblicos, pessoas a seu servio, com apoio ou no interesse do Estado (termos
da Resoluo em seu art. 1). No entanto, a responsabilidade no deve ficar restrita
presena, pois h muitos casos de responsabilidade por omisso ou conivncia de agente
pblico (funcionrio pblico de qualquer nvel ou instncia), inclusive instituies do
Estado.
Esses atos e violaes no devem ser entendidos apenas como aes isoladas,
mas atuao e polticas que seguiram orientaes de altas esferas de poder e que
contaram com apoio e ao de diferentes setores, como empresrios e outros grupos,
demarcando uma responsabilidade compartilhada. O Estado, como sujeito de violaes,
estende a responsabilidade para a ao de agentes privados, que agiram autorizados ou
liberados para tanto, ou mesmo apoiando aes do Estado ou ainda por omisso ou
descaso. Consequentemente, a responsabilidade no se d apenas nos casos em que
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