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Blog da Psicologia da Educação | Comentários sobre educação matemática - Piaget http://www6.ufrgs.br/psicoeduc/piaget/educacao-matematica/ Comentários sobre educação matemática - Piaget Autor: Jean Piaget Tradução: Eduardo Britto Velho de Mattos, a tradução é fruto de uma atividade voluntária proposta na disciplina Psicologia da Educação II e destina-se aos estudos desenvolvidos nessa disciplina. Supervisão da tradução: Paulo Francisco Slomp. Fonte: PIAGET, Jean. Comments on mathematical education. [transl.: Joan Bliss]. In: Developments in mathematical education : proceedings of the 2nd International congress on mathematical education, Exeter, August 29th September 2nd, 1972 / ed.: Albert Geoffrey Howson. London : Cambridge University Press, 1973. P. 79-87. Ce texte a été lu pour le compte de Jean Piaget au Congrès international pour l'enseignement des mathématiques à Exeter/Angleterre. A orientação dada à educação matemática depende naturalmente da interpretação adotada do desenvolvimento psicológico ou da aquisição das operações e das estruturas lógico-matemáticas. Essa orientação depende igualmente do sentido epistemológico dado a essas questões. A psicogênese e a significação epistemológica são estreitamente relacionadas. Se o platonismo está certo ao considerar que as entidades matemáticas existem independentemente do sujeito, ou se o positivismo lógico está correto ao reduzir as entidades matemáticas a uma sintaxe e a uma semântica gerais; em ambos os casos seria justificável colocar a ênfase na simples transmissão de verdades do professor para as crianças e usar, logo que possível, a linguagem do professor, ou seja, a linguagem axiomática, sem muita preocupação a respeito das idéias espontâneas da criança. Nós acreditamos, ao contrário, que existe, como uma função do desenvolvimento global da inteligência, uma espontânea e gradual construção das estruturas lógico-matemáticas elementares e que essas estruturas 'naturais' ('naturais' no mesmo sentido em que falamos dos números 'naturais') são muito mais próximas das que estão sendo utilizadas na matemática 'moderna' do que as que são utilizadas na matemática tradicional. Existe entretanto um corpo de fatos que são em geral pouco conhecidos dos professores, mas que, uma vez que eles melhorem o seu conhecimento sobre psicologia, seria de considerável utilidade e ajudaria-os bem mais do que fazer outras coisas complicadas. Isto também facilitaria a realização de vocações criativas nos alunos, ao invés de considerá-los simplesmente como instrumentos de recepção. Contudo, para atingir este estágio é necessário revisar nossas idéias sobre a relação entre linguagem e ação. Pareceria psicologicamente evidente que a lógica não surge fora da linguagem, mas de uma fonte mais profunda, e isto pode ser encontrado na coordenação geral das ações. De fato, anteriormente a qualquer linguagem, num nível puramente sensório-motor, as ações são suscetíveis a repetições e depois a generalizações, constituindo o que pode ser chamado de esquemas de assimilação. Estes esquemas se auto-organizam de acordo com certas leis e parece page 1 / 4

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Blog da Psicologia da Educação | Comentários sobre educação matemática - Piagethttp://www6.ufrgs.br/psicoeduc/piaget/educacao-matematica/

Comentários sobre educação matemática - Piaget

Autor: Jean Piaget

Tradução: Eduardo Britto Velho de Mattos, a tradução é fruto de uma atividade voluntária propostana disciplina Psicologia da Educação II e destina-se aos estudos desenvolvidos nessa disciplina.

Supervisão da tradução: Paulo Francisco Slomp.

Fonte: PIAGET, Jean. Comments on mathematical education. [transl.: Joan Bliss]. In: Developmentsin mathematical education : proceedings of the 2nd International congress on mathematicaleducation, Exeter, August 29th September 2nd, 1972 / ed.: Albert Geoffrey Howson. London :Cambridge University Press, 1973. P. 79-87. Ce texte a été lu pour le compte de Jean Piaget auCongrès international pour l'enseignement des mathématiques à Exeter/Angleterre.

A orientação dada à educação matemática depende naturalmente da interpretação adotada dodesenvolvimento psicológico ou da aquisição das operações e das estruturas lógico-matemáticas.Essa orientação depende igualmente do sentido epistemológico dado a essas questões. Apsicogênese e a significação epistemológica são estreitamente relacionadas. Se o platonismo estácerto ao considerar que as entidades matemáticas existem independentemente do sujeito, ou se opositivismo lógico está correto ao reduzir as entidades matemáticas a uma sintaxe e a umasemântica gerais; em ambos os casos seria justificável colocar a ênfase na simples transmissão deverdades do professor para as crianças e usar, logo que possível, a linguagem do professor, ou seja,a linguagem axiomática, sem muita preocupação a respeito das idéias espontâneas da criança.

Nós acreditamos, ao contrário, que existe, como uma função do desenvolvimento global dainteligência, uma espontânea e gradual construção das estruturas lógico-matemáticas elementarese que essas estruturas 'naturais' ('naturais' no mesmo sentido em que falamos dos números'naturais') são muito mais próximas das que estão sendo utilizadas na matemática 'moderna' do queas que são utilizadas na matemática tradicional. Existe entretanto um corpo de fatos que são emgeral pouco conhecidos dos professores, mas que, uma vez que eles melhorem o seu conhecimentosobre psicologia, seria de considerável utilidade e ajudaria-os bem mais do que fazer outras coisascomplicadas. Isto também facilitaria a realização de vocações criativas nos alunos, ao invés deconsiderá-los simplesmente como instrumentos de recepção.

Contudo, para atingir este estágio é necessário revisar nossas idéias sobre a relação entrelinguagem e ação. Pareceria psicologicamente evidente que a lógica não surge fora da linguagem,mas de uma fonte mais profunda, e isto pode ser encontrado na coordenação geral das ações. Defato, anteriormente a qualquer linguagem, num nível puramente sensório-motor, as ações sãosuscetíveis a repetições e depois a generalizações, constituindo o que pode ser chamado deesquemas de assimilação. Estes esquemas se auto-organizam de acordo com certas leis e parece

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impossível negar a relação entre eles e as leis da lógica. Dois esquemas podem ser coordenados oudissociados (reunião), um pode ser parcialmente incluído no outro (inclusão), ou somente ter umaparte em comum com o outro (intersecção); as partes de um esquema ou a coordenação de dois oumais esquemas podem permitir uma ordem invariante de sucessões, ou certas permutações (tiposde ordem), assim como correspondência um-a-um, um-a-muitos ou muitos-a-um (bijeção, etc.).Considerando que um esquema impõe um objetivo para uma ação, é contraditório para o sujeito irem sentido oposto. Em resumo, há toda uma lógica da ação que comanda a construção de certasidentidades, e isto vai além da percepção (por exemplo, a permanência de objetos ocultos),conduzindo à elaboração de certas estruturas (o grupo prático de deslocamentos, já descrito porPoincaré em seu ensaio epistemológico).

Portanto seria um grande equívoco, particularmente em educação matemática, negligenciar o papeldas ações e sempre retornar ao nível da linguagem. Particularmente com alunos jovens, atividadescom objetos são indispensáveis para a compreensão da aritmética, assim como das relaçõesgeométricas (como foi o caso com a matemática empírica dos Egípcios). A aversão dos professoresde matemática à atividades que envolvam experimentação material é compreensível. Elesprovavelmente vêem uma variedade de referências das propriedades físicas dos objetos e podemtemer que verificações empíricas possam prejudicar o desenvolvimento da dedução e daracionalidade pura que caracteriza sua disciplina. Mas, na verdade, isto é uma incompreensãofundamental e uma análise psicológica nos permite afastar estes medos e reassegurar aosmatemáticos, com relação a sua demanda essencial, de que os aspectos dedutivos e formais damente podem ser educados. Existem, na verdade, dois tipos de ‘experiências’, uma bem diferenteda outra, que estão relacionadas às ações do sujeito. Em primeiro lugar, há o que é conhecido como‘experiência física’ (no sentido amplo) que consiste em agir sobre os objetos para descobrir aspropriedades dos próprios objetos, por exemplo, comparando pesos ou densidades, etc. Mas existetambém, e isto geralmente não é conhecido, o que pode ser chamado de ‘experiêncialógicomatemática’. Este tipo de experiência retira informação, não das propriedades físicas deobjetos particulares, mas das ações atuais (ou mais precisamente de sua coordenação) executadaspelas crianças sobre os objetos. Estes dois tipos de experiência não são equivalentes. Um amigomeu e matemático muito conhecido disse que o começo de seu interesse pela matemática foiprovocado por uma experiência do segundo tipo que lhe aconteceu quando ele tinha cerca de quatroou cinco anos de idade. Sentado no jardim, ele começou a entreter-se colocando pedrinhas em linhae contando-as, por exemplo, de um a dez, da esquerda para a direita. Após ele contou-as da direitapara a esquerda e, para a sua grande surpresa, ainda encontrou dez. Então colocou-as em umcírculo e, entusiasmado contou novamente -- dez!. Contou-as no sentido oposto e eram dez emambos os sentidos. Continuou organizando as pedrinhas de variados modos e terminouconvencendo-se de que a soma, dez, era independente da disposição ou organização das pedrinhas.É evidente que nem a soma nem a organização são propriedades físicas das pedrinhas, até aquelemomento em que a criança de fato as tenha organizado ou colocado todas juntas. Neste instante acriança descobriu que a ação de reunir pedrinhas produz resultados e estes resultados sãoindependentes do ato de ordenação das mesmas. Ela pode observar isso com qualquer objeto sólido.As propriedades físicas das pedras não representaram papel particular algum (além do fato de queas pedrinhas ‘aceitavam’ estas ações, a natureza delas, não obstante, permaneceu inalterada, istoé, foi conservada; e a própria conservação também proporciona uma experiêncialógico-matemática).

O papel inicial das ações e experiências lógico-matemáticas, longe de impedir o ulteriordesenvolvimento de pensamento dedutivo, constitui, ao contrario, a preparação necessária, e istopor duas razões. A primeira é que as operações mentais ou intelectuais, que participam dosprocessos de raciocínio dedutivo subseqüentes, originam-se das ações. São ações interiorizadas e,uma vez que tenham sido interiorizadas e coordenadas, será o suficiente. Então experiências

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lógico-matemáticas na forma de ações materiais não serão mais necessárias e a deduçãointeriorizada será suficiente. A segunda razão é que as coordenações das ações e a experiêncialógico-matemática, enquanto se interiorizam, proporcionam a criação de uma variedade particularde abstração que corresponde precisamente à abstração lógica e matemática. Ao contrário dasabstrações comuns ou aristotélicas, que originam-se das propriedades físicas dos objetos e por essarazão são chamadas de ‘abstrações empíricas’, a abstração lógico-matemática refere-se à‘abstração reflexionante’ e isso por duas razões relacionadas. De um lado, esta abstração ‘reflete’(no mesmo sentido que um refletor ou projetor) tudo que estava em um plano inferior (por exemplo,esse plano das ações) e projeta para um plano superior, o do pensamento ou representação mental.Por outro lado, é uma ‘abstração reflexionante’ no sentido de uma reorganização da atividademental que reconstrói em um nível superior tudo que foi extraído da coordenação das ações.

Entretanto, entre a idade em que ações materiais e experiências lógico-matemáticas sãonecessárias (antes dos 7/8 anos de idade) e a idade em que o pensamento abstrato começa atornar-se possível (por volta dos 11/12 anos através de níveis sucessivos, até os 14/15 anos), há umimportante estágio cujas características são interessantes para o psicólogo e muito úteis aoprofessor. Entre os 7 e 11/12 anos de idade podemos observar um importante desenvolvimentoespontâneo de operações dedutivas com suas características de conservação, reversibilidade, etc.Elas permitem a elaboração da lógica elementar de classes e relações, a construção operacional detoda a série dos números pela síntese das noções de inclusão e ordem [Nota de rodapé: Muitosautores (Freudenthal, etc), parecem entender que eu penso que os números ordinais são maisprimitivos do que os números cardinais, ou o contrário. Nunca fiz tal afirmação e sempre considereiestes dois aspectos dos números finitos como indissociáveis e psicologicamente reforçadores um dooutro em uma síntese que vai além de ambos, na direção da inclusão de classes e do ordenamentodas relações assiméticas transitivas. Se a ordenação é necessária, é porque as unidades que setornaram equivalentes pela abstração de suas qualidades podem somente ser distinguidas uma daoutra pela sua posição na ordem. Mas a ordem das unidades elementares é relativa ao número(cardinal) de unidades que procede de cada uma das unidades assim ordenadas.], a construção danoção de medida pela síntese da subdivisão de um contínuo e o deslocamento regular ordenado deuma parte escolhida que serve como unidade, etc. Embora haja um progresso considerável nopensamento lógico infantil, ele é entretanto ainda muito limitado. Neste nível a criança não poderaciocinar a partir de puras hipóteses, expressadas verbalmente, e, para atingir dedução coerente,ela precisa aplicar seu raciocínio em objetos manipuláveis (no mundo real ou na sua imaginação).Por essas razões neste nível nos referimos a ‘operações concretas’, diferenciando-as das operaçõesformais. Estas operações concretas são intermediárias entre as ações do estágio pré-operatório e doestágio de pensamento abstrato, que ocorre mais tarde.

Desta maneira, tendo estabelecido a continuidade entre as ações espontâneas da criança e seupensamento reflexivo, podemos concluir que as noções essenciais que caracterizam a matemáticamoderna são mais próximas das estruturas de pensamento “natural” do que os conceitos usados namatemática tradicional. Primeiro, deve ser destacada a importância do papel espontâneo dasoperações que permitem o estabelecimento de correspondências entre conjuntos e, em decorrência,da construção de morfismos, e particularmente quando podem ser combinadas com seriaçõesrecorrentes. Temos, por exemplo, com B. Inhelder, pedido a crianças entre 4/5 e 7/8 anos de idadepara colocar uma bolinha com uma mão em um copo transparente e simultaneamente, com a outramão, colocar outra bolinha em um segundo copo que estava, entretanto, escondido atrás de umanteparo. As perguntas foram elaboradas para descobrir se as crianças entenderam ou não que osdois conjuntos assim constituídos eram equivalentes e também para descobrir se esta ação, casocontinuasse indefinidamente, teria sua igualdade conservada. Todas as crianças entrevistadasadmitiram a igualdade dos dois conjuntos enquanto a ação estava em curso. Porém as crianças maisnovas se recusaram a generalizar no caso em que a ação continuasse indefinidamente. Por volta dos

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cinco ou seis anos em diante elas admitiram esta generalização e um menino mais novo, de cincoanos e meio, encontrou a seguinte fórmula muito divertida: ‘Quando alguém sabe uma vez, sabepara sempre’. Porém, esta mesma criança após ter visto um conjunto de dez fichas vermelhasenfileiradas em correspondência um-a-um com um segundo conjunto de dez fichas azuis recusou-sea admitir a conservação desta equivalência uma vez que os elementos de um dos conjuntos tinhamsido mais espaçados entre si e a correspondência entre as duas fileiras não mais era visível. Esteexemplo demonstra o papel construtivo do estabelecimento de uma correspondência combinadacom a idéia de repetição.

[...]

O texto integral da tradução está disponível aos alunos da disciplina EDU01012 Psicologia daEducação II.

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