comentários sobre os lusíadas por francisco achcar

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Estudo de Os Lusíadas (1572) Orientado por Francisco Achcar (USP - Universidade de São Paulo) CAMÕES E O CLASSICISMO PORTUGUÊS O Renascimento literário atingiu seu ápice, em Portugal, durante o período conhecido como Classicismo, entre 1527 e 1580. O marco de seu início é o retorno a Portugal do poeta Sá de Miranda, que passara anos estudando na Itália, de onde traz as inovações dos poetas do Renascimento italiano, como o verso decassílabo e as posturas amorosas do doce stil nouvo. Mas foi Luís de Camões, cuja vida se estende exatamente durante este período, quem aperfeiçoou, na língua portuguesa, as novas técnicas poéticas, criando poemas líricos que rivalizam em perfeição formal com os de Petrarca e um poema épico, Os Lusíadas, que, à imitação de Homero e Virgílio, traduz em verso toda a história do povo português e suas grandes conquistas, tomando, como motivo central, a descoberta do caminho marítimo para as Índias por Vasco da Gama em 1497/99. Para cantar a história do povo português, em Os Lusíadas, 1

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Page 1: Comentários sobre Os Lusíadas por Francisco Achcar

Estudo de

Os Lusíadas (1572)

Orientado por Francisco Achcar (USP - Universidade de São Paulo)

CAMÕES E O CLASSICISMO PORTUGUÊS

O Renascimento literário atingiu seu ápice, em Portugal, durante o período conhecido como Classicismo, entre 1527 e 1580. O marco de seu início é o retorno a Portugal do poeta Sá de Miranda, que passara anos estudando na Itália, de onde traz as inovações dos poetas do Renascimento italiano, como o verso decassílabo e as posturas amorosas do doce stil nouvo. Mas foi Luís de Camões, cuja vida se estende exatamente durante este período, quem

aperfeiçoou, na língua portuguesa, as novas técnicas poéticas, criando poemas líricos que rivalizam em perfeição formal com os de Petrarca e um poema épico, Os Lusíadas, que, à imitação de Homero e Virgílio, traduz em verso toda a história do povo português e suas grandes conquistas, tomando, como motivo central, a descoberta do caminho marítimo para as Índias por Vasco da Gama em 1497/99. Para cantar a história do povo português, em Os Lusíadas, Camões foi buscar na antigüidade clássica a forma adequada: o poema épico, gênero poético narrativo e grandiloqüente, desenvolvido pelos poetas da antigüidade para cantar a história de todo um povo. A Ilíada e a Odisséia, atribuídas a Homero (Século VIII a. C.), através da narração de episódios da Guerra de Tróia, contam as lendas e a história heróica do povo grego. Já a Eneida, de Virgílio (71 a 19 a.C.), através das aventuras do herói Enéas, apresenta a história da fundação de Roma e as origens do povo romano. Ao compor o maior monumento poético da língua portuguesa, Os Lusíadas, publicado em 1572, Camões copia a estrutura narrativa da Odisséia de Homero, assim como versos da Eneida de Virgílio. Utiliza a estrofação em Oitava Rima, inventada pelo italiano Ariosto, que consiste em estrofes de oito versos, rimadas sempre da mesma forma: abababcc. A epopéia se compõe de 1102 dessas estrofes, ou 8816 versos, todos decassílabos, divididos em 10 cantos.

1. Três planos narrativos (planos temáticos)

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Em Os Lusíadas, três histórias, ou planos narrativos, se superpõem e se imbricam:

1. a história da viagem de Vasco da Gama e seus marinheiros à Índia;2. a história de Portugal, chegando até a época da viagem e antecipando acontecimentos

posteriores a ela;3. a história dos deuses que, como forças do destino, tramam e destramam a sorte daqueles

bravos portugueses que enfrentam perigos e inimigos desconhecidos para ampliar as fronteiras de seu reino e de sua religião

2. Divisão da obra (estrutura interna)

O poema se organiza tradicionalmente em cinco partes: 1. Proposição (Canto I, Estrofes 1 a 3)

Apresentação da matéria a ser cantada: os feitos dos navegadores portugueses, em especial os da esquadra de Vasco da Gama e a história do povo português.

2. Invocação (Canto I, Estrofes 4 e 5) O poeta invoca o auxílio das musas do rio Tejo, as Tágides, que irão inspirá-lo na composição da obra.

3. Dedicatória (Canto I, Estrofes 6 a 18) O poema é dedicado ao rei Dom Sebastião, visto como a esperança de propagação da fé católica e continuação das grandes conquistas portuguesas por todo o mundo.

4. Narração (Canto I, Estrofe 19 a Canto X, Estrofe 144) A matéria do poema em si. A viagem de Vasco da Gama e as glórias da história heróica portuguesa.

5. Epílogo (Canto X, Estrofes 145 a 156) Grande lamento do poeta, que reclama o fato de sua “voz rouca” não ser ouvida com mais atenção.

3. Função dos deuses

Para o poeta, qual o mais elevado objetivo do corajoso empreendimento português? Tal objetivo serio o de, a um tempo, alargar as fronteiras da fé católica e ampliar o poderio da civilização da Europa, representada pelo Império Português. Os navegadores lusitanos estariam, pois, a serviço da Religião e do Rei de Portugal, país que, como fica claro no início do Canto VII, representaria, solitário, a vanguarda de um grande movimento de expansão do Cristianismo, fazendo frente aos "infiéis" muçulmanos, quando outras potências européias se perdiam em guerras de cristão contra cristão.

Sendo assim, é no mínimo estranho que deuses "pagãos", como Vênus e Marte, se associem aos portugueses para fazer triunfar a fé católica. Diversos críticos literários tentaram resolver o problema, alegando que os deuses seriam mero recurso de ornamentação do poema e que, utilizando-os em sua intriga, o poeta estaria apenas adotando uma prática antiga do gênero épico.

Ocorre, porém, que os deuses, como demosntra António José Saraiva (19-), estão longe de poder ser tomados como elementos de ornamentação. De fato, eles são essenciais em Os Lusíadas, assim como o eram nos poemas de Homero e Virgílio. Diante da palidez e da inexpressividade extrema de Vasco da Gama, que deveria ser o herói do poema e não passa de um boneco de gestos rígidos, hieráticos, que não age, só posa; diante das apagadas figuras dos companheiros de Gama na viagem, dos quais não se destaca nenhum verdadeiramente dotado de vida, capaz de ação ficcional (isto é, de ação verossímil e conseqüente na intriga do poema); diante dos perfis rápidos das figuras históricas apresentadas, entre talvez só a de Inês de Castro se destaque com mais relevo; diante

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desse panorama de personagens fracas, estereotipadas, incapazes de surpresa e vida própria, os deuses avultam como as verdadeiras personagens, as personagens fortes do poema, aquelas que são arrastadas pelas paixões em que se envolvem e envolvem o leitor. Os deuses é que são verdadeiramente interessantes, com seus amores e ódios, seus ciúmes, suas fraquezas, num quadro em que os presumidos "heróis" são indefectíveis amostras de virtude. Assim, longe de ornamentais, os deuses são centrais e estruturais, ou seja, sem eles a ação do poema perderia a sua mola e o elenco de personagens ficaria sem suas melhores figuras.

4. Ideologia (Cristianismo, Imperialismo, Humanismo)

Outra contradição que se pode apontar na obra consiste no fato de Camões celebrar os feitos guerreiros, conclamando D. Sebastião, no início (na dedicatória) e no fim (epílogo) do poema, empreendendo uma grandiosa guerra. No entanto, ele é humanista e seu porma resulta, basicamente, de sua formação, sua cultura e seus ideais humanísticos. Sabe-se que o Humanismo, por princípio, se opunha à guerra. Camões, porém, justifica seu empenho bélico com razões ao mesmo tempo humanísticas e religiosas: a grande meta seria ampliar o domínio da civilização ocidental (ideal humanístico) e da religião crsitã (ideal das Cruzadas) por todo o universo, levando às mais remotas terras, não a morte, mas a superação dela, graças à imortalidade da alma prometida por Cristo e seus seguidores.

Vós, portugueses, poucos quanto fortes,Que o fraco poder vosso não pesais;

Vós, que à custa de vossas várias mortes,A lei da vida eterna dilatais...

(VII 3)

Tratava-se de estender os limites do Cristianismo e da civilização ocidental, sob o domínio do rei de Portugal; portanto, um triplo e concomitante objetivo: religioso, humanístico e nacional (imperial). Nesse contexto é que se justifica a guerra.

5. Monumento literário e lingüístico

Do ponto de vista artístico, Os Lusíadas constituem um dos maiores êxitos da literatura de inspiração clássica do século XVI, pois o poeta conseguiu dar nova vida a um gênero que parecia morto e que nunca mais reviveu depois da realização camoniana. O verso utilizado por Camões corresponde à chamada "medida nova", introduzida em Portugal por Sá de Miranda: é o decassílabo clássico, que pode ser heróico, quando os acentos predominantes incidem na sexta e décima sílabas (caso da quase totalidade dos versos do poema), ou sáfico, quando os acentos recaem na quarta, oitava e décima (ou simplesmente na quarta e décima) sílabas:

As-ar-mas-e-os-ba-RÕES-a-ssi-na-LA(dos) (I 1)6 10

Es-pe-ra-um-COR-po-de-quem-LE-vas-A AL(ma) (IX 76)4 8 10

A estrofe (ou estância) utilizada no poema é a oitava-rima (ou oitava real), conjunto de oito versos em que os seis primeiros têm duas rimas (A e B), dispostas alternadamente (ABABAB), e os dois últimos são emparelhados por uma terceira rima (C):

No mais interno fundo das profUNDAS ACavernas altas, onde o mar se escONDE, B

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Lá, donde as ondas saem furibUNDAS, AQuando às iras do vento o mar respONDE BNeptuno mora, e moram as jucUNDAS ANereidas, e outros deuses do mar, ONDE BAs águas campo deixam às cidADES CQue habitam essas úmidas deidADES C(VI 8)

Vocabulário: furibundas: furiosasNeptuno: deus do marjucundas: graciosasNereidas: divindades femininas do marúmidas deidades: deuses do mar

Nesta estrofe, o jogo das rimas é particularmente engenhoso e expressivo, exemplificando um dos muitos aspectos da maestria verbal de Camões, em especial seu virtuosismo na organização sonora. Com efeito, as rimas A e B - respectivamente, -undas e -onde - são muito próximas, sonoramente, de onda(s), cujo étimo (origem) é, precisamente, a palavra latina unda. Esses sons aparecem não apenas nas rimas A e B, mas também se espalham pelo resto da estrofe, em outras palavras (fundo, onde, donde, ondas, quando - nesta última palavra note-se a inversão das vogais de onda). Tais sonoridades, magnificamente adequadas à descrição do espetáculo do mar agitado, são valorizadas, também, pela incidência dos acentos, que ressaltam rimas internas:

No mais interno FUNDo das proFUNDASCavernas altas, ONDE o mar escONDE

Do ponto de vista lingüístico, a obra é também prodigiosa: Camões elabora com grande fôlego possibilidades da sintaxe portuguesa antes pouco ou nada exploradas, valendo-se ao mesmo tempo de modelos eruditos (latinos) e de construções marcadas pel oralidade; acrescenta à língua um grande número de vocábulos, forjados a partim do latim, e ao mesmo tempo faz uso de formas populares de sua época; é, em síntese, um escritor intrépido tanto artística quanto lingüisticamente. Por isso, em sua obra se encontra o maior monumento do português clássico - o primeiro estágio do português moderno.

6. Síntese da narrativa

A narrativa ocupa mais de nove décimos da extensão do texto e, como vimos, inclui, no meio da história da viagem de Vasco da Gama, um relato da história de Portugal até o momento da viagem e também profecias do que aconteceria depois dela, até a época de Camões.

Lembre-se que a viagem de Vasco da Gama ocorreu em 1498, 74 anos antes da publicação do poema.

CANTO I

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Depois de anunciar o assunto do poema (proposição), pedir inspiração às ninfas do rio Tejo (invocação) e dedicar o poema ao rei, D. Sebastião (dedicatória), o poeta inicia a narrativa in medias res (expressão latina que quer dizer "no meio do assunto"), quando os portugueses já estão avançados na viagem, tendo passado o Cabo das Tormentas. Os deuses se reúnem no Olimpo para decidir sobre o que fazer com esses navegadores audaciosos (primeiro concílio dos deuses). Baco (deus do vinho) é contrário aos portugueses, pois teme que com sua chegada fique comprometida a fama de que ele goza na Índia. Vênus (deusa do amor) e Marte (deus da guerra) defendem os portugueses. Baco, vencido, vai tramar traições contra eles na costa oriental da África, mas os navegantes livram-se delas graças à ajuda de Vênus.

CANTO II

Em Mombaça, Baco prepara suas armadilhas. Vênus vai reclamar junto ao chefe do Olimpo, Júpiter, o pai dos deuses, que, em ambiente carregado de sensualidade, não resiste aos encantos da filha (esta é apresentada, em sua beleza provocante, num sugestivo retrato de Vênus) e prognostica as glórias futuras dos lusitanos, além de enviar Mercúrio, o deus mensageiro, em seu auxílio. Este ruma para a África e presdispõe os habitantes de Melinde a receberem bem os portugueses. O rei de Melinde pergunta a Vasco da Gama sobre a história de seus país.

CANTO III

Vasco da Gama, respondendo ao rei Melinde, descreve a Europa e, nela, Portugal e inicia um relato da história portuguesa desde a fundação do país. Episódio célebre: Inês de Castro - história de amor trágico, da sociedade massacrando o indivíduo.

CANTO IV

Prossegue a narração da história de Portugal, chegando até o momento em que o rei D. Manuel, depois de um sonho profético, encarrega Vasco da Gama de organizar uma expedição para o descobrimento do caminho marítimo para a Índia. Na partida das naus, ocorre o episódio famoso do Velho de Restelo: na praia do Restelo, no momento da partida, em meio à multidão que se despedia tristemente dos navegantes, um velho faz um impressionante discurso combatendo a ambição desregrada que leva aqueles homens a enfrentarem perigos desconhecidos e deixarem o país entregue à desorganização e à decadência moral.

CANTO V

Destaca-se aqui o relato de alguns aspectos notáveis da viagem; passagem do Equador, tromba marinha, fogo-de-santelmo, passagem do Cabo das Tormentas. Neste último, ocorre o episódio célebre do Gigante Adamastor, que simboliza os perigos naturais enfrentados pelos navegantes. Adamastor é o tremendo Tormentório (o Cabo das Tormentas), mas é também um ser palpitante de desejo amoroso, apaixonado pela ninfa Tétis, que o rejeita e humilha. A história de Adamastor exprime a força cósmica do Amor, que move o mundo, na concepção renascentista de Camões. Depois de referir ocorrências da continuação da viagem, Vasco da Gama encerra seu relato ao rei de Melinde com um elogio da tenacidade dos portugueses. O poeta fecha este canto, e a primeira metade da obra, louvando a poesia e lamentando o descaso de seus compatriotas poe ela.

CANTO VI

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Os portugueses seguem viagem, com o auxílio do rei de Melinde. Passagem do Oceano Índico. Veloso narra o episódio dos Doze de Inglaterra: doze cavaleiros portugueses vão à Inglaterra duelar com doze cavaleiros ingleses, a quem vencem, para defender a honra de doze damas (inglesas) que aqueles ingleses tinham ofendido. Baco se reúne com Netuno, o deus do mar, para tramar contra os portugueses (segundo concílio dos deuses). Netuno faz desencadearem os ventos contra os navegantes, mas eles são contidos pelos encantos de Vênus e das Nereidas. Chegada a Calecut (Calecu), na Índia.

CANTO VII

Numa abertura majestosa, o poeta cumprimeita os portugueses por seu grande feito e os contrapóe aos demais povos da Europa, que se guerreavam uns aos outros. Em seguida, relata a tomada de contacto com a terra (descrição da Índia). Os portugueses são recebidos por governantes do lugar (o samorim, o catual).

CANTO VIII

Paula da Gama, irmão de Vasco, apresenta uma galeria de grandes heróis portugueses, a pedido do catual de Calecut, que visitava os navios (essa narrativa é como um complemento da de Vasco da Gama ao rei de Melinde). Baco trama contra os portugueses, instigando os chefes locais contra eles. Gama é retido em terra e tem de pagar para libertar-se, o que dá ocasião a que o poeta faça famosas considerações sobre o poder corruptor do dinheiro.

CANTO IX

Diante do perigo, e tendo já realizado o que pretendia, Vasco da Gama resolve partir. No meio do mar, os portugueses encontram uma ilha maravilhosa, preparada por Vênus como surpresa e recompensa aos navegantes por seu heroísmo sobre-humano. Nesse lugar paradisíaco, a Ilha Namorada ou Ilha dos Amores, os portugueses são aguardados por deusas, as ninfas, que se entregam amorosamente a eles. A Vasco da Gama cabe a prória deusa do mar, Tétis (esta Tétis, esposa de Netuno, é diferente de Tétis, esposa de Peleu, a ninfa por quem Adamastor se apaixona). O poeta encerra este canto com considerações sobre o caráter simbólico da Ilha dos Amores, que representa, na forma de elevação ao mundo divino, a imortalidade que os portugueses tinham conquistado, graças à fama de seus grandes feitos.

CANTO X

Durante o banquete que Tétis oferece aos portugueses, uma ninfa canta profecias sobre os feitos de Portugal posteriores à viagem de Vasco da Gama. Tétis mostra a Gama a máquina do mundo (algo como uma miniatura do universo, segundo a concepção ptolomaica) - uma visão que antes só os deuses podiam ter (um outro sentido simbólico da união dos portugueses com as deusas diz respeito à conquista do conhecimento). A deusa aponta as regiões do mundo onde os portugueses obteriam grandes glórias. Finalmente, em viagem feliz, os navegantes voltam a Portugal. Camões encerra o poema (epílogo) lamentando o estado de decadência do país e conclamando novamente o rei, como já fizera na dedicatória, a uma grande empresa de salvação nacional.

7. Episódios mais significativos

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7.1 Episódio de Inês de Castro

Como vimos, numa longa etapa da obra (cantos III-V), Vasco da Gama narra ao rei de Melinde a história de Portugal. Entre os acontecimentos notáveis do passado português, o capitão se detém (canto III) no relato dos eventos que envolveram Inês de Castro, compondo um dos mais belos episódios do poema. Trágico conto de amor, é a história daquela "que depois de ser morta foi rainha": a jovem amante, e em seguida esposa, do príncipe D. Pedro, assassinada a mando do pai dele, o rei D. Afonso IV. Além da pungência da história (o amor inconformado e a revolta de D. Pedro fizeram que ele, quando rei, mandasse coroar o cadáver da amada, desenterrado na ocasião); além da gravidade da

questão, que opõe o interesse pessoal e os interesses coletivos (a razão de Estado); além disso e mais, há o encanto lírico de que Camões cercou a figura de Inês, impondo-a como um dos grandes símbolos femininos da literatura - e não só da literatura de língua portuguesa.

7.1.1 Os fatos históricos

O fato relatado por Camões, registrado por historiadores (cronistas) da época, pode ser assim resumido. Dona Inês, da importantíssima família castelhana Castro, veio a Portugal como dama de companhia da princesa Constança, noiva de D. Pedro, herdeiro do rei D. Afonso IV. O príncipe apaixonou-se pela moça, de quem teve filhos ainda em vida da princesa, sua esposa. Com a morte desta, em 1435, ter-se-ia casado clandestinamente com Inês, segundo o que ele mesmo declarou tempos depois, quando já se tornara rei. Talvez tal declaração, embora solene, fosse falsa; é fato, porém, que o príncipe rejeitou diversos casamentos, politicamente convenientes, que lhe foram propostos.

A ligação entre o príncipe e sua amante não foi bem vista pelo rei, que temia que seu filho estivesse envolvido em manobras pró-castelhanas da família Perez de Castro, pai de Inês.

Aqui é preciso lembrar que o conflito entre Portugal e Castela, ou seja, a Espanha, remonta a fundação de Portugal, que nasceu de um desmembramento do território castelhano e que Castela sempre almejou reintegrar a si.

Em conseqüência, o rei, estimulado por seus conselheiros, decidiu-se pelo assassinato de Inês, que foi degolada quando o príncipe se achava caçando fora de Coimbra, onde vivia o casal. O crime motivou um longo conflito entre o príncipe e o pai. Depois que se tornou rei, D. Pedro ordenou a exumação do cadáver, para que Inês fosse coroada como rainha.

A perseguição e as torturas que infligiu aos envolvidos no assassinato (caçados até além das fronteiras de Portugal) ficaram célebres, registradas que foram pelo grande historiador Fernão Lopes, na Crônica de D. Pedro: os dois principais implicados foram caçados quanto fugiam e trazidos diante do rei que, enquanto comia, assistiu à morte que mandou dar a eles, sendo o coração de um arrancado vivo, pelo peito, e do outro, pelas costas. E tudo foi feito por um carrasco inexperiente, que, desajeitado, demorou mais que o necessário e teve muita dificuldade para terminar a tarefa, prolongando e intensificando assim a satisfação do rei com aquele espetáculo. Esse comportamento sangüinário se tornou constante em D. Pedro, que, obcecado por justiça, torturava ele mesmo os supeitos de crimes. Por isso, ele passou a ser chamado tanto Pedro o Justiceiro como Pedro Cru.7.1.2 Canto III (118-120)

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Passada esta tão próspera vitória, Tornado Afonso à Lusitana Terra, A se lograr da paz com tanta glória Quanta soube ganhar na dura guerra, O caso triste e dino da memória, Que do sepulcro os homens desenterra, Aconteceu da mísera e mesquinha

Que despois de ser morta foi Rainha.

[Vasco da Gama, contando ao rei de Melinde a história de Portugal, fala sobre a grande vitória do rei Afonso IV na batalha do Salado. E continua] - Depois desta vitória tão favorável, Afonso voltou a Portugal para gozar a paz com toda a glória que conquistara na guerra. Então aconteceu o caso triste, digno de lembrança imorredoura, da infeliz que, depois de morta, foi feita rainha.

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Tu, só tu, puro amor, com força crua,Que os corações humanos tanto obriga,Deste causa à molesta morte sua,Como se fora pérfida inimiga.Se dizem, fero Amor, que a sede tuaNem com lágrimas tristes se mitiga,É porque queres, áspero e tirano,Tuas aras banhar em sangue humano.

Tu, só tu, puro amor, que tendes tanto domínio sobre os corações humanos, tu é que fostes a causa da sua morte deplorável, como se ela fosse uma inimiga traiçoeira. Se dizem, Amor cruel, que a tua sede não pode ser aplacada nem com lágrimas tristes, é porque exiges, despótico e cruel, que os teus altares sejam banhados com o sangue de sacrifícios humanos.

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Estavas, linda Inês, posta em sossego,De teus anos colhendo doce fruito,Naquele engano da alma, ledo e cego,Que a fortuna não deixa durar muito,Nos saudosos campos do Mondego,De teus fermosos olhos nunca enxuito,Aos montes insinando e às ervinhasO nome que no peito escrito tinhas.

Estavas tranqüila, linda Inês, gozando os belos dias da tua juventude e vivendo aquela ilusão alegre e cega que o destino não deixa que dure muito. Nos campos à margem do rio Mondego, as saudades do teu amado faziam que teus belos olhos chorassem tanto, que o rio nunca ficava seco, e que tu repetisses o nome dele - gravado no teu coração - como se quisesses ensiná-lo aos montes e à vegetação.

121Do teu Príncipe ali te respondiam As lembranças que na alma lhe moravam, Que sempre ante seus olhos te traziam, Quando dos teus fermosos se apartavam; De noite, em doces sonhos que mentiam,

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De dia, em pensamentos que voavam; E quanto, enfim, cuidava e quanto via Eram tudo memórias de alegria.

  As lembranças do Príncipe respondiam-lhe, em pensamentos e em sonhos, quando ele estava longe. Isto é, a memória do amado fazia com que Inês conversasse com ele, quando este estava ausente. Ambos não se esqueciam um do outro e se “comunicavam” através da memória, em forma de pensamentos e sonhos. Assim, tudo quanto faziam ou viam os fazia felizes, porque lembravam dos respectivos amados. Esta estrofe é bastante ambígua. As lembranças do Príncipe vinham à mente de Inês como resposta aos seus cuidados amorosos; por outro lado, as mesmas lembranças, agora de Inês, existiam (moravam) na alma do príncipe quando estava longe da amada. Os sonhos e os pensamentos dos versos 5 e 6, dois modos de lembranças, pertencem indistintamente ao amado e à amada. E o sujeito de cuidava e via, no verso 7, tanto pode ser ela quanto o Príncipe.

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De outras belas senhoras e Princesas Os desejados tálamos enjeita, Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas, Quando um gesto suave te sujeita. Vendo estas namoradas estranhezas, O velho pai sesudo, que respeita O murmurar do povo e a fantasia Do filho, que casar-se não queria,  O Príncipe se recusa a casar com outras mulheres (tálamo: casamento, leito conjugal) porque o amor despreza, rejeita tudo que não seja o rosto do amado (gesto significa rosto, semblante) a quem está sujeito. Ao ver este estranho amor, este comportamento estranho de não querer se casar, o pai sisudo atende ao murmurar do povo e…

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Tirar Inês ao mundo determina, Por lhe tirar o filho que tem preso, Crendo c’o sangue só da morte ladina Matar do firme amor o fogo aceso. Que furor consentiu que a espada fina, Que pôde sustentar o grande peso Do furor Mauro, fosse alevantada Contra hûa fraca dama delicada?  … decide matar Inês, para que o filho seja libertado do seu amor. O pai acredita que só o sangue da morte apagará o fogo do amor. Que fúria foi essa que fez com que a espada cortante que afrontara o poder dos Mouros fosse levantada contra uma frágil e indefesa mulher?

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Traziam-na os horríficos algozes Ante o Rei, já movido a piedade; Mas o povo, com falsas e ferozes Razões, à morte crua o persuade. Ela, com tristes e piedosas vozes, Saídas só da mágoa e saudade Do seu Príncipe e filhos, que deixava, Que mais que a própria morte a magoava, 

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Quando os horríveis e cruéis carrascos trouxeram Inês perante o rei, este já estava compadecido (com dó) e arrependido. No entanto, o povo persuadia, incitava o rei a matá-la. Inês, então, com palavras ou com a voz triste, sentindo mais pela dor e saudade do príncipe e dos filhos do que pela própria morte…

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Pera o céu cristalino alevantando, Com lágrimas, os olhos piedosos (Os olhos, porque as mãos lhe estava atando Um dos duros ministros rigorosos); E despois, nos mininos atentando, Que tão queridos tinha e tão mimosos, Cuja orfindade como mãe temia, Pera o avô cruel assi dizia:  Levantando os olhos cheios de lágrimas ao céu (somente os olhos, porque um carrasco prendia-lhe as mãos) e, depois, olhando para as crianças - que amava tanto e temia que ficassem órfãs -, disse para o avô cruel (o rei):

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Se já nas brutas feras, cuja mente Natura fez cruel de nascimento, E nas aves agrestes, que somente Nas rapinas aéreas tem o intento, Com pequenas crianças viu a gente Terem tão piedoso sentimento Como c’o a mãe de Nino já mostraram, E c’os irmãos que Roma edificaram:  “Se já vimos que até os animais selvagens, cujos instintos são cruéis, e as aves de rapina têm piedade com as crianças, como demostraram as histórias da mãe de Nino e a dos fundadores de Roma…” Semíramis, rainha da Assíria e mãe de Nino, a abandonara num monte. Nino foi alimentada por aves de rapina. Rômulo e Remo, fundadores de Roma, foram abandonados quando infantes e amamentados por uma loba.

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Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito (Se de humano é matar hûa donzela, Fraca e sem força, só por ter sujeito O coração a quem soube vencê-la), A estas criancinhas tem respeito, Pois o não tens à morte escura dela; Mova-te a piedade sua e minha, Pois te não move a culpa que não tinha.  Sendo assim, ele, o rei, que tinha o rosto e o coração humanos (se é que é humano matar uma mulher só porque esta ama um homem que a conquistou), poderia ao menos ter respeito e consideração às crianças, ainda que não se importasse com a triste morte da mãe. Inês suplica, então, que o rei se compadeça dela e das crianças, já que não queria perdoá-la ou absolvê-la de uma culpa, um crime, que não tinha cometido.

 

128 E se, vencendo a Maura resistência,

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A morte sabes dar com fogo e ferro, Sabe também dar vida, com clemência, A quem peja perdê-la não fez erro. Mas, se to assi merece esta inocência, Põe-me em perpétuo e mísero desterro, Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente, Onde em lágrimas viva eternamente.  E se o rei sabia dar a morte, como o mostrara ao vencer os Mouros, também saberia dar a vida a quem era inocente. Mas, se apesar da sua inocência, ainda a quisesse castigar, que a desterrasse, expulsasse, para uma região gelada ou tórrida, para sempre.

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Põe-me onde se use toda a feridade, Entre leões e tigres, e verei Se neles achar posso a piedade Que entre peitos humanos não achei. Ali, c’o amor intrínseco e vontade Naquele por quem mouro, criarei Estas relíquias suas que aqui viste, Que refrigério sejam da mãe triste.)  Que ele a colocasse entre as feras, onde poderia encontrar a piedade que não achara entre os homens. Ali, por amor daquele por quem morria ou sofria, criaria os filhos, que era recordações do pai e seriam consolação da mãe.

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Queria perdoar-lhe o Rei benino, Movido das palavras que o magoam; Mas o pertinaz povo e seu destino (Que desta sorte o quis) lhe não perdoam. Arrancam das espadas de aço fino Os que por bom tal feito ali apregoam. Contra hûa dama, ó peitos carniceiros, Feros vos amostrais e cavaleiros?  O rei bondoso queria perdoar Inês, comovido por suas palavras. Mas o povo obstinado, persistente e o destino de Inês (que assim o quis) não lhe perdoaram. Os que proclamavam que ela deveria morrer puxam suas espadas. Mostram-se valentes atacando uma dama.

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Qual contra a linda moça Policena, Consolação extrema da mãe velha, Porque a sombra de Aquiles a condena, C’o ferro o duro Pirro se aparelha; Mas ela, os olhos, com que o ar serena (Bem como paciente e mansa ovelha), Na mísera mãe postos, que endoudece, Ao duro sacrifício se oferece:  Assim como Pirro se prepara com a espada (“ferro”) para matar Policena, por ordem do fantasma de Aquiles, e ela -

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mansa e serenamente -, movendo os olhos para a mãe, enlouquecida de dor, oferece-se ao sacrifício… Aquiles, herói da guerra de Tróia, era invulnerável por ter sido submergido, logo ao nascer, na água da lagoa Estígia (Lagoa da Morte). Personagem da Ilíada de Homero, morreu durante a guerra de Tróia, quando foi atingido por uma seta no calcanhar, o único ponto vulnerável do seu corpo. Pirro, filho de Aquiles, teria sido aconselhado pelo fantasma (“sombra”) do pai a matar Policena, noiva do herói morto. Matou-a quando esta se encontrava sobre o túmulo de Aquiles.

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Tais contra Inês os brutos matadores, No colo de alabastro, que sustinha As obras com que Amor matou de amores Aquele que despois a fez Rainha, As espadas banhando e as brancas flores, Que ela dos olhos seus regadas tinha, Se encarniçavam, fervidos e irosos, No futuro castigo não cuidosos.  Do mesmo modo agem os cruéis assassinos de Inês. No pescoço (“colo”) que sustenta o belo rosto (“as obras”: o sorriso, o olhar, os movimentos do rosto) pelo qual se apaixonou (o deus Amor, Cupido, fez morrer de paixão) o príncipe, que depois a fará rainha, eles (os matadores) banham, lavam suas espadas e também as faces pálidas (“brancas flores”) e molhadas de lágrimas de Inês;  atacavam enraivecidos, sem pensarem no castigo que o futuro lhes reservava. Camões supõe que Inês foi degolada, como Policena oferecendo o pescoço ao golpe, e o sangue escorreu sobre seu rosto.

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Bem puderas, ó Sol, da vista destes, Teus raios apartar aquele dia, Como da seva mesa de Tiestes, Quando os filhos por mão de Atreu comia! Vós, ó côncavos vales, que pudestes A voz extrema ouvir da boca fria, O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes, Por muito grande espaço repetistes.  Naquele dia, o sol deveria ter-se escondido, como fizera quando Tiestes comeu os próprios filhos em um banquete servido por Atreu, para não ver o terrível crime. A última palavra de Inês - o nome de Pedro, o príncipe - ecoou longa e repetidamente através da região. Camões iguala a crueldade da morte de Inês à da história de Atreu e Tiestes. Tiestes era filho de Pélops e irmão de Atreu. Seduziu a esposa do irmão. Atreu deu a comer a Tiestes os filhos que nasceram daquela união.

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Assi como a bonina, que cortada Antes do tempo foi, cândida e bela, Sendo das mãos lascivas maltratada Da minina que a trouxe na capela, O cheiro traz perdido e a cor murchada: Tal está, morta, a pálida donzela, Secas do rosto as rosas e perdida A branca e viva cor, co a doce vida.  Como uma flor colhida precocemente pelas mãos travessas (“lascivas”) de uma menina para colocá-la numa grinalda

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(“capela”), assim está Inês, sem perfume e sem cor. Morta, pálida, com as faces (“do rosto as rosas”) secas, murchas, sem rubor. O padrão de beleza feminino era uma combinação de branco na testa, colo, etc. (“branca e viva cor” ) e vermelho (“viva cor”) nas “rosas” do rosto.

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As filhas do Mondego a morte escura Longo tempo chorando memoraram, E, por memória eterna, em fonte pura As lágrimas choradas transformaram. O nome lhe puseram, que inda dura, Dos amores de Inês, que ali passaram. Vede que fresca fonte rega as flores, Que lágrimas são a água e o nome Amores.  As ninfas do Mondego (rio de Portugal), durante muito tempo, lembraram chorando a morte de Inês. E, para sua memória eterna, as lágrimas transformaram-se numa fonte chamada “dos amores de Inês”, acontecidos ali. A fonte que rega as flores é refrescante porque é feita de lágrimas e de amores.

7.2 Episódio do Velho de Restelo

Depois de contar ao rei Melinde a história de seu país, Vasco da Gama fala-lhe de su viagem. No início dela, situa-se outro célebre episódio do poema: o Velho do Restelo. Os navios portugueses estão prestes a largar; esposas, filhos, mães, pais e amigos dos marinheios apinham-se na praia (do Restelo) para dar seu adeus, envolto em muitas lágrimas e lamentos, àqueles que partiam para perigos inimagináveis e talvez para não mais voltar. No meio dessa confusão emocionada, destaca-se a figura imponente de um velho que, com sua voz "pesada", ouvida até nos navios, faz um discurso veemente, condenando aquela aventura insana, impelida, segundo

ele, pela cobiça. Diz o velho que, para ir enfrentar desnecessariamente perigos desconhecidos, os portugueses abandonavam os perigos urgentes de seu país, ainda ameaçado pelos mouros e no qual já se instalava a desorganização social que decorreu das grandes navegações.

7.2.1 Quem é o Velho do Restelo?

Segundo parece, o velho representa a opinião conservadora (alguns diriam "reacionária") da época - opinião da aldeia, do torrão natal, da vida segura, mas não heróica. Seria estranho que Camões se identificasse com esse tipo de atitude, "pois não seria compreensível que compusesse uma epopéia para celebrar o que condenava como erro fatal" (VALVERDE, p. 258). Mas, segundo se pode inferir de diversos elementos do discurso de Velho, assim como do resto do poema, a opinião expressa no admirável discurso não era inteiramente rejeitada por Camões, por mais que ele fosse empolgado pelo empreendimento marítimo de seu país.

O discurso do Velho contém uma condenação enfática da guerra, de acordo com o ponto de vista humanista, que, como vimos, era radicalmente ntibelicista. Mas o Velho, como Camões, abre exceção (sob forma de concessão) para a guerra na África (lembremos que o poeta, no início e no fim do poema, recomenda enfaticamente a D. Sebastião que embarque nessa aventura). Sabemos que havia, na época, uma corrente de opinião em Portugal que condenava a poliítica ultramarina do país, direcionada desde D. João III em favor da Índia, com o abandono das conquistas africanas.

Portanto, o Velho do Restelo não é propriamente uma voz discordante a que o poeta concede um lugar em seu poema, representando nele simplesmente os rumores do povo ou o ponto de vista de um partido adversário da empresa que o poeta se punha a celebrar. O Velho é também a

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expressão de idéias camonianas, divididas entre o Humanismo pacifista e o belicismo dos ideais da Cavalaria e das Cruzadas, cujo espírito muito influenciou a visão da missão de seu país.

7.2.2 Fontes clássicas

O discurso do Velho do Restelo corresponde a um gênero antigo da literatura, cultivado desde os primórdios da poesia grega. Trata-se do gênero conhecido pelos gregos como propemptikón, ou seja, "adeus a um viajante que parte". Elementos básicos para uma composição deste gênero são: a) o viajante (no caso, Vasco da Gama e seus marinheiros), b) quem se despede (o Velho), c) a relação que os une (no caso, o fato de serem portugueses), e d) o cenário apropriado para a despedida (a praia do Restelo, com os navios a ponto de largar). Neste tipo de poema há alguns assuntos constantes: os perigos e as inconveniências da viagem, os perigos do lugar de destino, considerações sobre os motivos da viagem, a quebra de fé implicada na viagem. Uma das modalidades desse gênrero inclui o que em grego se chamava skhetliasmós, isto é, uma reclamação ou lamentação, cuja finalidade é, condenando a viagem, persuardir o viajante a desistir de fazê-la. Diversos desses elementos se encontram no discurso do Velho, organizados com formidável eloqüência, retomando virtuosisticamente e com novidade um gênero da poesia que remonta a Homero.

7.2.3 Função no poema

Para além de representar uma opinião corrente na época, que devia ser, em maiorou menor medida, partilhada pelo próprio poeta, o episódio do Velho do Restelo tem um papel estrutural no poema. Comenta Valverde (p. 258): "Dentro dos cânones do gênero, jusifica o episódio a conveniência épica de que o herói parta apesar dos presságios contrários. O Velho é a aldeia, e a aldeia é ideal dourado, mas anti-heróico. Vasco da Gama parte vencendo as lágrimas do sangue e as vozes da terra. Que, na realidade, umas e outras houve na partida, afirma-o claramente João de Barros [historiador contemporâneo a Camões] na Década I: 'dobraram estas lágrimas e começaram de os encomendar a Deus e lançar juízos, segundo o que cada um sentia da partida'. Também aqui temos, portanto, uma base histórica, real, para um episódio moldado em evocações clássicas; uma vez mais, a visão literária sobrepóe-se ao conhecimento de um fato verdadeiro, aliando poesia e verdade". E acrescenta: " A fala do Velho do Restelo tem, dentro do poema, um papel análogo ao do coro trágico, de admoestação desatendida".

7.2.4 Canto IV, estrofes de 90 a 104

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"Qual vai dizendo: —" Ó filho, a quem eu tinha Só para refrigério, e doce amparo Desta cansada já velhice minha, Que em choro acabará, penoso e amaro, Por que me deixas, mísera e mesquinha? Por que de mim te vás, ó filho caro, A fazer o funéreo enterramento, Onde sejas de peixes mantimento!" —  Uma mãe fala ao filho, lamentando-se de que ele, que iria ampará-la e cuidar dela na velhice, a está abandonando para servir de alimento aos peixes. O lamento das mulheres nessa e na estrofe seguinte é plenamente justificado: a frota de Vasco da Gama deixou o cais do Restelo com 170 homens, dos quais apenas 55 retornariam vivos a Portugal.

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"Qual em cabelo: —"Ó doce e amado esposo, Sem quem não quis Amor que viver possa, Por que is aventurar ao mar iroso Essa vida que é minha, e não é vossa? Como por um caminho duvidoso Vos esquece a afeição tão doce nossa? Nosso amor, nosso vão contentamento Quereis que com as velas leve o vento?" —  Outra mulher, com o cabelo descoberto (“em cabelo”), pergunta ao marido, sem o qual não poderá viver, o motivo de ele ir arriscar a vida ao mar bravio, quando a vida dele pertence a ela, e não a ele; e como ele pode esquecer ou trocar o sentimento deles pela incerteza dos ventos e do mar. Será que ele deseja que o vento leve, com as velas da embarcação, o seu amor? Note-se a aliteração final (Velas leVe o Vento) que imita o som do Vento.

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"Nestas e outras palavras que diziam De amor e de piedosa humanidade, Os velhos e os meninos os seguiam, Em quem menos esforço põe a idade. Os montes de mais perto respondiam, Quase movidos de alta piedade; A branca areia as lágrimas banhavam, Que em multidão com elas se igualavam.     Com estas e outras palavras de amor e de piedade, os velhos e as crianças, a quem a idade faz mais fracos, os seguiam. E os montes, como se estivessem comovidos, respondiam a estes lamentos com ecos. As lágrimas molhavam a areia, e eram tantas que, em quantidade, se igualavam à areia.

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"Nós outros sem a vista alevantarmos Nem a mãe, nem a esposa, neste estado, Por nos não magoarmos, ou mudarmos Do propósito firme começado, Determinei de assim nos embarcarmos Sem o despedimento costumado, Que, posto que é de amor usança boa, A quem se aparta, ou fica, mais magoa.  Com medo de sofrer ou se arrepender, os nautas (navegantes), não olhavam para as mães e esposas. Vasco da Gama decidiu que embarcariam sem a despedida costumeira, porque, ainda que seja um bom costume porque mostra o amor das pessoas,  faz sofrer a quem parte e a quem fica.

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"Mas um velho d'aspeito venerando, Que ficava nas praias, entre a gente, Postos em nós os olhos, meneando Três vezes a cabeça, descontente, A voz pesada um pouco alevantando, Que nós no mar ouvimos claramente,

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C'um saber só de experiências feito, Tais palavras tirou do experto peito:  Mas um velho de aspecto respeitável (venerável), que estava entre as pessoas, na praia, olhando para os navegadores e balançando a cabeça negativamente, levantou um pouco mais alto a voz grave, que foi ouvida claramente pelo que estavam no mar, e com uma sabedoria feita de experiências disse algumas palavras sábias, inteligentes, e profundas (“experto peito” - “experto” = experiente, experimentado, culto, inteligente).

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—"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça Desta vaidade, a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça C'uma aura popular, que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles experimentas!     Este prazer dos homens de dominar e a cobiça fútil e sem valor da fama são tolices ilusórias, passageiras (“vaidade”). Esta satisfação falsa, enganadora, é estimulada pelas pessoas, que a chamam de honra. Isso castiga grandemente os homens de coração tolo, vazio (“peito vão”) que ambicionam o poder e a fama; fazendo com que experimentem muitos suplícios (“mortes”, “perigos”, “tormentas”) e crueldade.  Note que a expressão “peito vão”, nesta estrofe, se opõe à “experto peito”, na estrofe anterior.  Essas estrofes remetem ao livro bíblico de Eclesiastes, em que o rei   Salomão afirma e argumenta que “é tudo vaidade” (Eclesiastes 1:2) e que “Melhor é ouvir a repreensão do sábio, do que ouvir alguém a canção do tolo.” (Eclesiastes 7:5).

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— "Dura inquietação d'alma e da vida, Fonte de desamparos e adultérios, Sagaz consumidora conhecida De fazendas, de reinos e de impérios: Chamam-te ilustre, chamam-te subida, Sendo dina de infames vitupérios; Chamam-te Fama e Glória soberana, Nomes com quem se o povo néscio engana!  Esta ambição causa angústia e perturbação (“inquietação d’alma e da vida”), é origem de abandonos e adultérios e destrói fortunas e Estados. Chamam-na de nobre e elevada, quando é digna, merecedora, de desmoralizantes insultos, palavras infamantes. Fama e glória são palavras para enganar o povo ignorante e tolo.

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—"A que novos desastres determinas De levar estes reinos e esta gente? Que perigos, que mortes lhe destinas Debaixo dalgum nome preminente? Que promessas de reinos, e de minas D'ouro, que lhe farás tão facilmente? Que famas lhe prometerás? que histórias? Que triunfos, que palmas, que vitórias?  E o velho pergunta que novos desastres serão causados ao reino e ao povo, em nome de (disfarçados em) alguma

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palavra enobrecedora. Que promessas fáceis serão feitas de reinos, de minas de ouro, famas, histórias e triunfos para enganá-los?

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— "Mas ó tu, geração daquele insano, Cujo pecado e desobediência, Não somente do reino soberano Te pôs neste desterro e triste ausência, Mas inda doutro estado mais que humano Da quieta e da simples inocência, Idade d'ouro, tanto te privou, Que na de ferro e d'armas te deitou:  Mas o gênero humano, descendente do insensato e demente cujo pecado provocou não somente sua expulsão e exílio (“desterro e triste ausência”) do paraíso (“reino soberano”), mas também privou-o do estado de paz e de inocência da idade de ouro e o colocou, o abateu (“te deitou”) na idade do ferro e das guerras.

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— "Já que nesta gostosa vaidade Tanto enlevas a leve fantasia, Já que à bruta crueza e feridade Puseste nome esforço e valentia, Já que prezas em tanta quantidade O desprezo da vida, que devia De ser sempre estimada, pois que já Temeu tanto perdê-la quem a dá:  Já que, nessa prazerosa tolice, o homem tanto empenha, arrebata a imaginação, a criatividade; já que dá o nome de esforço e valentia à violenta crueldade e perversidade; já que dá tanto valor ao desprezo pela vida, que deveria ser sempre amada e preservada, pois até quem a deu teve medo de perdê-la (refere-se a Cristo, que receou a morte, na noite anterior à sua crucificação).

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— "Não tens junto contigo o Ismaelita, Com quem sempre terás guerras sobejas? Não segue ele do Arábio a lei maldita, Se tu pela de Cristo só pelejas? Não tem cidades mil, terra infinita, Se terras e riqueza mais desejas? Não é ele por armas esforçado, Se queres por vitórias ser louvado?  Já que é assim, não estão ali perto os Mouros (“o Ismaelita”), com quem sempre terá guerras de sobra (muitos combates)? Não seguem eles a lei maldita dos árabes (refere-se ao Corão – lei islâmica, criada por Maomé, profeta de Alá), enquanto você guerreia (“pelejas”) pela lei de Cristo? Se luta para enriquecer (“terras e riqueza mais desejas”), os mouros tem muitas cidades e terra; eles são guerreiros valentes (“por armas esforçado”), se o que deseja é ser glorificado, elogiado pelas vitórias na guerra.      Ismaelita é a designação dada aos descendentes de Ismael, filho de Abraão e da escrava Agar. Os ismaelitas viviam numa confederação de tribos no deserto da Arábia e deram origem aos árabes.

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— "Deixas criar às portas o inimigo, Por ires buscar outro de tão longe, Por quem se despovoe o Reino antigo, Se enfraqueça e se vá deitando a longe? Buscas o incerto e incógnito perigo Por que a fama te exalte e te lisonge, Chamando-te senhor, com larga cópia, Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?  Descuida do inimigo próximo para buscar outro distante, por quem o reino iria se despovoar, se enfraquecer e se perder. Procura o perigo impreciso e desconhecido, para que a fama o celebre e elogie chamando-o, em grande quantidade  (“larga cópia”), de senhor da Índia, Pérsia, Arábia e Etiópia.      O objeto a quem se dirige o Velho vai mudando no decorrer do discurso. Primeiro é um sentimento descrito como “glória de mandar” etc; depois é a “geração daquele insano”, isto é, o gênero humano; então é alguém que procura a guerra na Índia (provavelmente Vasco da Gama e os navegantes) e, finalmente, o título de “senhor da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia” que identifica o próprio rei de Portugal.

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— "Ó maldito o primeiro que no mundo Nas ondas velas pôs em seco lenho, Dino da eterna pena do profundo, Se é justa a justa lei, que sigo e tenho! Nunca juízo algum alto e profundo, Nem cítara sonora, ou vivo engenho, Te dê por isso fama nem memória, Mas contigo se acabe o nome e glória.  O Velho amaldiçoa o homem que fez o primeiro barco (“pôs velas nas ondas”), como merecedor do inferno (“dino da eterna pena do profundo”), se houver justiça como a que ele acredita. Que nunca sejam feitos um alto conceito,   nem música (“cítara sonora”) ou poesia (“vivo engenho”) que eternize sua memória por este feito (“Te dê por isso fama nem memória”), mas que, com o inventor do primeiro barco, morram sua fama, sua reputação (“seu nome”) e sua glória.

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— "Trouxe o filho de Jápeto do Céu O fogo que ajuntou ao peito humano, Fogo que o mundo em armas acendeu Em mortes, em desonras (grande engano). Quanto melhor nos fora, Prometeu, E quanto para o mundo menos dano, Que a tua estátua ilustre não tivera Fogo de altos desejos, que a movera!  Afirma que o fogo que o filho de Jápeto trouxe do céu e deu aos homens, esse fogo o mundo acendeu em armas, em mortes, em desonras. Foi um grande erro (“engano”) dar o fogo à humanidade. Teria sido melhor a nós e causado menos dano (prejuízo) ao mundo se a estátua feita por Prometeu não tivesse o fogo do desejo que a movera.     O filho de Jápeto era Prometeu, o titã que roubou o fogo aos deuses e o deu aos homens. Prometeu trouxe o fogo do Olimpo escondido em uma estátua humana. Foi condenado a ficar preso num rochedo enquanto uma águia lhe comia as entranhas.

104 — "Não cometera o moço miserando

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O carro alto do pai, nem o ar vazio O grande Arquiteto co'o filho, dando Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio. Nenhum cometimento alto e nefando, Por fogo, ferro, água, calma e frio, Deixa intentado a humana geração. Mísera sorte, estranha condição!" —  Se não fosse esse fogo do desejo, o jovem miserável e digno de pena não teria ousado guiar o carro do pai, nem o grande arquiteto e seu filho teriam se arriscado a voar (“cometera o ar vazio”). Um deu nome ao mar e o outro deu fama ao rio. Camões se refere a Faeton ou Faetonte, filho de Apolo, o deus Sol, que foi imprudente e caiu com o carro do pai no rio Eridano e Dédalo, arquiteto do labirinto, que, com cera e penas, construiu asas para si e para seu filho Ícaro que, descuidado, voou rumo ao sol e acabou caindo no mar.      Nenhum empreendimento nobre ou perverso, por qualquer modo realizado (“Por fogo, ferro, água, calma e frio”), o gênero humano (“humana geração”) não tenta realizar (“deixa intentado”).  É um destino miserável e uma estranha obrigação (ou um estado, um modo de ser esquisito).

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