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Autor: Erick Felinto de OliveiraData de publicação: 10/10/2005

À imagem do homem: robôs, autômatos e pós­humanos no imaginário tecnológico

Erick Felinto de Oliveira

Com a difusão das tecnologias digitais de informação e comunicação, estamos assistindo aoretorno de um importante mito característico da experiência tecnológica. É fato que os robôs eautômatos passeiam, desde há muito tempo, pelas vastas paragens do nosso imaginário cultural.Mesmo antes da revolução industrial ou do pleno desenvolvimento do conceito de tecnologia, nalongínqua antiguidade greco­romana, já proliferavam as narrativas sobre a criação de seresartificiais, como na lenda de Pigmalião e Galateia, na qual o escultor apaixona­se por sua obra,dotada de vida própria graças aos artifícios mágicos da deusa Afrodite. Contudo, esseantiqüíssimo tema cultural adquire hoje uma importância inaudita.

O surgimento dessas tecnologias digitais, com sua incrível capacidade de miniaturização ecomputação, viabilizou a retomada do arcaico sonho dos seres artificiais. Agora, um sonhopassível de realização, já que, para muitos, o cérebro não passa de um complexo computadorbiológico. Dados os devidos recursos técnicos e competência, não existiria razão para que nãofosse possível duplicar a complexidade desse sistema em outro tipo de hardware, como o silíciodos computadores. A ficção científica, bem sabemos, é pródiga nas fantasias a respeito deciborgues e máquinas inteligentes, sempre ameaçando a supremacia do homem como senhor doplaneta.

Não deixa de ser curioso, entretanto, o fato de que essas promessas da ficção científica – emesmo de certas vertentes da tecnociência contemporânea – reelaborem continuamente osmesmos temas dos ancestrais mitos sobre as criaturas artificiais. Em certo sentido, poderíamosdizer que o primeiro desses mitos encontra­se na própria narrativa sobre a criação do homem noGênesis. Afinal, Deus molda o homem a partir do barro da terra (e por essa razão, o nome“Adão”, oriundo de “terra”, Adamá) e depois insufla­lhe o sopro da vida.

Diretamente decalcada dessa narrativa originária, a mitologia do Golem, uma criatura artificial datradição mística judaica, já antecipa o imaginário que, em fins do século XIX, tomaria formaperfeita no célebre relato de Frankenstein por Mary Shelley. Segundo a versão mais popular dahistória, a criação do Golem é atribuída a um personagem histórico real, o rabino Yehuda Loew, ogrande Maharal de Praga (termo que consiste na abreviatura de Moreinu ha­Rav Lev, ou seja,“nosso mestre, o rabi Loew”). Essa figura fundamental do mundo judaico no século XVI foiresponsável pela produção de importantes obras sobre o misticismo hebraico e sua teologia darevelação. Como explica André Neher em seu belo livro Faust et le Maharal de Prague, opensamento todo do Rabi Loew se situa no intervalo do conflito entre duas teses contraditórias:

"uma tese horizontal, que confere um poder infinito de criatividade ao homem epermite assim atribuir ao humanismo, à ciência, à pesquisa, à dúvida e à tolerânciaum direito de cidadania no interior do pensamento judaico, e uma antítese vertical,que percebe em Deus, e somente nele, o Absoluto esmagador diante do qual o homemnão pode ser mais que prece, poeira, nada" (1987:55).

Esse conflito reflete, em certa medida, o dualismo com que ainda hoje enxergamos a figura dosrobôs, autômatos e ciborgues. São expressões do poder criativo do homem, que busca imitar adivindade por meio de suas conquistas científicas e tecnológicas, mas ao mesmo tempo encarnamos temores com que costumeiramente encaramos nossos duplos artificiais. Na lenda do Golem, oMaharal de Praga dá vida a uma criatura artifical confeccionada a partir do barro. Em uma dasversões da história, rabi Loew escreve na testa da criatura a palavra emet (verdade), vivificando­a através das artes mágicas da Cabala. Quando este foge a seu controle, provocando destruiçãoirracional, o rabi apaga a primeira letra da palavra, ficando assim o termo met (morte).

Essa lenda emblemática mostra com clareza nossa relação ambígua com os autômatos. Em seucélebre ensaio sobre a sensação da estranheza (das Unheimliche, 1919), Freud citava a tese deJentsch segundo a qual os autômatos poderiam ser arrolados como seres causadores da sensaçãode estranheza, já que nos colocam diante de angústia não saber se um ser animado está de fato

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vivo ou morto. E efetivamente, o conto de Hoffman brilhantemente analisado por Freud no ensaio,“O homem de areia”, envolvia a participação de um “robô” feminino, Olympia, pela qual oprotagonista da história se apaixona. Mesmo descartando a idéia de que esse seja o elementocentral da história, como faz Freud, é impossível não perceber como essas criaturas nosproduzem sentimentos de embaraço, medo, fascínio e estranheza. Os séculos XVIII e XIX foraminteiramente seduzidos pela figura dos autômatos, que faziam enorme sucesso nas feiras deatrações e nos relatos literários – exemplos nítidos disso são narrativas como O jogador dexadrez de Maelzel, de Poe, e a Eva futura, de Villiers de l’Isle­Adam.

Mas imitar o criador é empresa arriscada, e nosso imaginário tecnológico transborda de fantasiasnas quais o autômato, a exemplo do mito do Golem, escapa ao controle humano, convertendo­sede serviçal útil em arma de destruição. No novo horizonte cultural das tecnologias digitais, boaparte dessa negatividade parece ter se dissipado. Nesse sentido, é significativo o sucesso de umtexto como o Manifesto Ciborgue, de Donna Haraway. Haraway, historiadora da ciência, defende aidéia de que a figura do ciborgue constitui­se num mito político vital para nosso tempo, já queabole as categorias polares com as quais sempre tentamos organizar o mundo e os seres. Ociborgue não é exatamente homem ou mulher, orgânico ou inorgânico, natural ou artificial. Nessesentido, ele emblematiza, nos tempos de hoje, a possibilidade de novas subjetividades, já nãomais enquadradas de acordo com nossas tradicionais perspectivas dualistas. Como afirmaHaraway, o ciborgue pode constituir “uma ficção que mapeia nossa realidade social e corporal”,além de representar “um recurso imaginativo que pode sugerir alguns frutíferos acoplamentos”(2000: 41).

O acoplamento entre homem e máquina, que se encontra na essência da definição do ciborgue,surge em nossa imaginação como um destino radical da humanidade futura. Novas próteses,extensões e implantes serão desenvolvidas no sentido de tornar cada vez mais nebulosos oslimites que separam o natural do artificial. Em algumas extrapolações mais radicais, o futuropoderá mesmo prescindir inteiramente da raça humana, já que as máquinas e robôs terminariampor suceder o homo sapiens na escala evolutiva – uma idéia elaborada em AI, inteligênciaartificial, filme recente de Steven Spielberg. O ser humano cederia, então, lugar a suas criações,capazes de destronar o criador e tomar o rumo de seu próprio destino.

Não deixa de ser intrigante a relevância que temas como os dos robôs e ciborgues alcançaram noimaginário contemporâneo. É fato que eles ainda estão muito longe de constituir uma realidadecotidiana, sendo corriqueiros apenas no universo da ficção científica. Entretanto, no novo domíniocultural que convencionamos chamar “cibercultura”, eles aparecem como símbolo fundamental. Enos revelam a existência de uma certa dimensão “espiritual” dessa cultura. Em outras palavras,os robôs, ciborgues e autômatos apontam para um desejo de transcendência humana em relaçãoa suas limitações materiais. Como sugiro em meu livro A religião das máquinas (2005), acibercultura e suas narrativas tecnológicas estão recheadas de mitologias a respeito da tecnologiacomo instrumento de aperfeiçoamento espiritual do homem. Em certo sentido, é como se a atualcultura tecnológica viesse realizar hoje os antigos sonhos religiosos de aproximar o homem dadivindade.

Os autômatos e robôs representariam, nesse cenário cultural, o impulso divino da criação. Assimcomo o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, de acordo com o relato bíblico,engendramos criaturas artificiais com a finalidade de deixar nossa marca no mundo. Atuaríamos,então, como pequenos demiurgos, provando que poderemos inclusive, talvez, superar nosso “paisimbólico” na odisséia da criação. Por outro lado, as fantasias de desenvolver próteses ou mesmocorpos robóticos inteiros para nossas consciências responde ao impulso de prolongar nossaangustiante finitude. Não seria extraordinário, perguntam alguns defensores desse projeto, comoo cientista Hans Moravec, se pudéssemos transferir nossa inteligência para corpos robóticos eviver assim virtualmente para sempre?

Em última instância, como sugere Philippe Breton em seu livro À l’image de l’homme (1995: 6), ascriaturas artificiais nos permitem discernir entre as múltiplas representações do humano quepontuam e estruturam as culturas ocidentais. Ou seja, eles nos diriam menos sobre o futuro doque sobre o passado e o presente. Caberia, portanto, perguntar o que as ficções sobre osciborgues e robôs nos ensinam a respeito de nós mesmos. Nesse sentido, a noção de “pós­humano”, um dos referenciais­chaves da nova cultura tecnológica, pode nos prestar valiosasindicações sobre os modos como iremos nos “enxegar” nos anos por vir. Pós­humano seria todoser humano tecnologicamente aperfeiçoado. A noção envolve não apenas uma relação vital deseus proponentes com as tecnologias contemporâneas (da informática à biotecnologia), comotambém toda uma filosofia de vida fundada em determinada espiritualidade “cibernética”.

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Se algum dia conseguirmos chegar efetivamente ao estágio dessa pós­humanidade, então nãofará tanto sentido distinguir entre nós e nossas criaturas artificiais. Seremos todos ciborgues,autômatos que reunirão o melhor dos mundos humano e maquínico. Seremos os criadores de nósmesmos, senhores de nosso destino, na posse de um futuro luminoso, no qual a comunicação serátotal, a democracia e a igualdade imperarão em todo o mundo e os antigos medos que sempreimpediram nosso desenvolvimento integral serão finalmente superados. Mas o que essas utopiaspós­humanistas nos ensinam hoje é que estamos muito longe de resolver o enorme mistério queestava implicado já desde a narrativa do Gênesis. Falo no mistério da criação, do surgimento dainteligência (ou do espírito, se o leitor preferir esse termo) a partir da matéria. E desse modo,seremos obrigados a continuamente repensar nossas relações com o mundo, com nosso corpo ecom o enigma da consciência. Como afirma Andy Clark em Natural­born cyborgs, nós existimosapenas, “como coisas pensantes que somos, graças a uma complexa dança de cérebros, corpos emuletas culturais e tecnológicas” (2003: 11). Buscar a compreensão dessas intricadas relaçõesserá uma tarefa fundamental no futuro tecnológico que se abre a nós. Nesse contexto, osseculares mitos sobre as criaturas artificiais poderão nos ajudar a encontrar respostasinteressantes ou, no cenário mais negativo, enredar­nos em fantasiosas teias de mitos e utopiasdesenfreadas.

Erick Felinto de Oliveira é professor do Centro de Educação e Humanidades, Departamento deTeoria da Comunicação, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Bibliografia:

Breton, Philippe. À l’Image de l’homme: du golem aux créatures virtuelles. Paris: Seuil, 1995.

Clark, Adny. Natural­born cyborgs: minds, technologies and the future of human intelligence. NewYork: Oxford University Press, 2003.

Felinto, Erick A Religião das máquinas. Porto Alegre: Sulina, 2005.

Freud, Sigmund. Obras psicológicas completas ­ edição standard (Vol. XVII – 1917­1919). Rio deJaneiro: Imago, 1976.

Haraway, Donna. “Manifesto Ciborgue”, in Tadeu da Silva, Tomaz (org.). Antropologia do ciborgue.Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

Neher, André. Faust et le Maharal de Prague. Paris: PUF, 1987.

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