com quem fico: papai ou mamãe?
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APASE - Associação de Pais e Mães Separados
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COM QUEM FICO, COM PAPAI OU COM MAMÃE?
Considerações sobre a Guarda Compartilhada
Contribuições da Psicanálise ao Direito de Família
Eliana Riberti Nazareth
Psicóloga, psicanalista, terapeuta familiar e mediadora.
Diretora do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de
Família – SP
INTRODUÇÃO
As separações dos casais, sejam consensuais ou litigiosas, estão se
tornando cada vez mais freqüentes entre nós. Não desejo abordar, aqui, os
motivos de tal aumento, mas examinar com mais detalhe uma das questões
decorrentes da separação, a guarda dos filhos, em particular dos filhos
pequenos, enfocando especialmente a guarda compartilhada que é a
responsabilidade civil dividida, compartilhada por ambos genitores.
Diferentemente da prática tradicional, na qual a guarda é outorgada pelo
juiz de preferência à mãe no caso de crianças de até doze anos, salvo
indicações em contrário, a guarda conjunta vem se delineando como uma nova
modalidade possível e que, portanto, requer maior análise.
MUDANÇAS SOCIAIS – MUDANÇAS DE PAPÉIS
As mudanças econômicas e sociais vêm promovendo alterações nas
atribuições e nos papéis paterno e materno e sobretudo nas relações familiares.
Até a Revolução Industrial, mulher, filhos, bens, tudo era considerado
propriedade do homem e, no caso de separação do casal, naturalmente os
filhos ficavam com o pai.
Com as transformações de então as relações no seio da família foram
evoluindo até chegarmos ao modelo seguido até a primeira metade deste
século, no qual a mãe torna-se a responsável de fato pela educação,
desenvolvimento, condução e orientação dos filhos, ficando a manutenção a
cargo do pai. Esse modelo já não se aplica nos dias de hoje à totalidade dos
casais contemporâneos, pois tais tarefas estão mais equilibradamente
distribuídas pelos dois genitores, que se dividem e compartilham entre si tanto
a educação e condução quanto a manutenção das crianças. Em conseqüência,
sendo o relacionamento atual entre os casais enquanto casados e destes com os
filhos diferente do que havia nas gerações anteriores, surge a necessidade de
se considerar uma modalidade também diferente de guarda para quando se
separam!
CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA E DA PSICANÁLISE
A fim de se examinar mais profundamente um tema tão difícil e de se
procurar a solução mais adequada, alguns pressupostos devem ser
estabelecidos à luz da compreensão aportada pela Psicologia e Psicanálise. O
bem-estar físico e emocional das crianças decide a aplicação da lei e fatores
psicológicos de todos os envolvidos, crianças e pais, devem preponderar na
escolha quer da guarda conjunta quer da guarda exclusiva.
Iludem-se os profissionais, sejam juízes e advogados ou assistentes
sociais e psicólogos, quando sustentam, sem maior análise dos casos, que a
guarda exclusiva representa sempre o melhor desfecho para uma separação;
esta modalidade é a mais praticada, a mais comum, a mais conhecida e muitas
vezes é a que oferece, aparentemente, menos conflitos e questões. E digo
aparentemente porque não é extraordinário observar-se que as perdas e custos
do ponto de vista psicológico excedem os benefícios, como veremos mais
adiante.
A questão da guarda compartilhada se apresenta à ponderação em três
circunstâncias.
Em primeiro lugar, quando o litígio não é geral entre os cônjuges, mas
restrito à guarda, isto é, o casal está de acordo em relação a todos os termos da
separação, exceto quanto à guarda. Ambos os genitores devem saber
discriminar entre os conflitos na área da conjugalidade e o exercício da
parentalidade e da tutelaridade.
É muito freqüente, porém, que a problemática conjugal afete o exercício
da parentalidade. E a própria separação atinge o aspecto tutelar comum do
casal.
De acordo com a dra. Aurora Perez em sua apresentação no I Congresso
Argentino de Psicanálise de Família e Casal realizado em 1987, em Buenos
Aires, dentro da trama familiar o casal adulto, unido pelo matrimônio ou em
união estável, assume uma totalização de funções que pode ser discernida em
três grandes campos ou aspectos: o campo conjugal do casal, o campo parental
do casal e o campo tutelar do casal.
Ao aspecto conjugal do casal se refere todo o interjogo da sexualidade
genital da família, o qual só se produz entre o casal de pais. Está proibido pelo
“Tabu do Incesto” qualquer intercâmbio entre indivíduos de gerações
diferentes ou da mesma geração que não sejam os pais, quer dizer, entre
irmãos ou entre pais e filhos. O aspecto conjugal é um vínculo simétrico
regulado por dinâmicas particularidades e exclusivas. É terreno extenso e
propiciador, por um lado, da construção, desenvolvimento, elaboração e
crescimento humano, mas por outro pode vir a se transformar em palco de
lutas, rivalidades e rixas.
É neste lugar privilegiado que se armam as precondições necessárias
para o desenrolar dos outros dois aspectos mencionados. Da evolução
satisfatória da maturidade sexual e psíquica irá depender a adequada
arquitetura do projeto familiar. Por aí pode-se ter uma idéia do grau de
distorção e de desintegração que existe nas relações familiares quando ocorre
caso de abuso sexual ou de convivência sexual entre membros da mesma
família nuclear que não sejam os pais.
O aspecto parental do casal é requerido para o exercício das funções
paterno-maternas propostas para a resolução das demandas somáticas e
emocionais com o objetivo de permitir que os filhos obtenham a maturação
física e psíquica. É um vínculo assimétrico que propulsiona e sustenta o
crescimento e desenvolvimento. Permite a metabolização emocional; é
responsável pelos processos de humanização e individuação.
O aspecto tutelar refere-se àquelas funções que o casal exerce cujo
destino é a contenção, sustentação e preservação de todo o grupo familiar,
tanto em cada um dos momentos evolutivos da vida familiar, como em seu
transcorrer no tempo. É função do aspecto tutelar levar a nave familiar a bom
porto. Trata-se da preservação não só dos filhos, mas também dos pais. É
cuidar da família como organização.
Quando ocorre uma separação, há a dissolução concreta da
conjugalidade e da tutelaridade partilhada, porém o mesmo não se dá no nível
psíquico de maneira simultânea. O que observamos, não raras vezes, é o fato
de o casal separado tratar-se como marido e mulher “às avessas”. Pode haver
um grande alívio pelo desfazimento de uma relação que só traz insatisfação e
desagrado, mas paralelamente há um luto a ser guardado e elaborado, pois
envolve um objeto de vida, anseios, expectativas que foram destroçados. E as
pessoas, homem e mulher, são obrigadas a se deparar com o próprio fracasso
de não ter conseguido estabelecer e desenvolver um relacionamento
construtivo. Tudo isso pode ser cenário para o aparecimento do que há de
destrutivo no vínculo daqueles que um dia dividiram suas aspirações. Tenho
tido várias oportunidades de, em consultório, atender casais e famílias em
situação de separação, enviados por seus advogados, que chegaram
procurando ajuda por absoluta incapacidade de manterem entre si uma
comunicação que não fosse constituída apenas de ataques e agressões. A
experiência tem me mostrado o quanto pode ser útil e eficaz para todos um
trabalho de mediação; normalmente abrevia o tempo e o prejuízo moral e
material que se seguem a longas disputas.
Por tudo isso, conflitos na conjugalidade podem estimular a prática
deficiente da parentalidade e tutelaridade. Todavia, quando mesmo em sua dor
e frustração os pais conseguem enxergar que os filhos também estão
desapontados e sofrendo, repartir a guarda pode engendrar elementos
importantes para a restauração e reparação de aspectos internos conscientes e
inconscientes de todos os atingidos, no que concerne a vivências de cuidar e
de receber cuidado, e à capacidade de reorganização da vida afetiva e de
estabelecer vínculos gratificantes “apesar dos pesares”. Isto é, mesmo não
havendo mais a família nos moldes anteriores, tanto mãe quando o pai podem
conduzir, ainda que separadamente, o desenvolvimento da família enquanto
entidade responsável pela fundação, estruturação e progresso do psíquico. E
isso pode se converter no que em Psicanálise denomina-se “experiência
emocional corretiva”.
Outra circunstância em que se indica a guarda compartilhada é quando
os dois genitores desejam para si a guarda mas quem a detém não concorda
em reparti-la e o genitor excluído, em geral o pai, mostra-se interessado em
fazê-lo. O homem está muito mais participante da vida diária, rotineira de seus
filhos e apenas o regime de visitas, por mais flexível que seja, não dá conta de
manter, ainda que parcialmente, a convivência e não permite ao pai continuar
a ter uma influência concreta e decisiva na educação de seus filhos. Nos casos
em que o relacionamento é estreito, próximo e satisfatório, não só o pai seria
despojado, mas também e sobretudo as crianças seriam prejudicadas pela
diminuição drástica, até dramática às vezes, do convívio.
Deve ficar claro na mente dos juízes, contudo, que o genitor que se opõe
a compartilhar a guarda não deve ser obrigado a fazê-lo; os genitores podem
ambos desejar a guarda, porém a intervenção do Estado, na figura do juiz, se
faz necessária porque os pais não estão de acordo quanto a isso. A imposição
contraria o objetivo fundamental que é o bem-estar das crianças. O adulto que
não quer, ou que não pode, por motivos compreensíveis ou não, se incumbir
dos cuidados de seus filhos, acaba não propiciando as condições necessárias
ao bom desenvolvimento das crianças, como acolhimento e carinho, e
expressa na maioria das vezes exatamente o contrário, isto é, rejeição, desdém
ou indiferença.
Mesmo nos casos em que à primeira vista esta modalidade de guarda
seria aconselhável, como, por exemplo, aqueles que envolvem crianças
excepcionais, as quais requerem cuidados especiais e estrutura doméstica
adequada, casos em que os pais poderiam e deveriam dividir entre si a carga
emocional e financeira, a sua imposição não é indicada. Na verdade, seria até
contra-indicada. Um filho deficiente em geral elicia nos pais sentimentos de
culpa, de que falharam em algo. E se um genitor se recusa a cuidar desta
criança é porque não consegue empatizar com as necessidades e limitações
nem do filho, nem do outro genitor; ao contrário, costuma responsabilizar o
antigo parceiro pelo “fracasso”, pois não é capaz de distinguir, entre o
sentimento de malogro, algo totalmente pessoal e intransferível e as
circunstâncias da vida. Assim, seria mais indicado que o genitor que se opõe a
partilhar a guarda fosse obrigado a dar uma pensão maior como forma de
ressarcimento.
Por outro lado, há ocasiões em que um dos genitores não se opõe, mas
também não se oferece, não se prontifica a compartilhar a guarda, pois cuidar
de “filho-problema” ou excepcional dá trabalho. Neste hipótese, o juiz pode
“impor”, determinar a guarda compartilhada; aqui já é mais apropriado o
genitor excluído compartir o ônus, a responsabilidade e a convivência do que
simplesmente comparecer com uma pensão maior, pois trata-se de um modo
de assegurar-lhe o direito-dever de exercer a guarda. Situações como essa vão
requerer maior sensibilidade por parte do juiz para saber até onde sua
interferência é positiva e válida.
Abro aqui um parêntese para apresentar a distinção entre as situações
em que o juiz poderia interferir e aquelas em que ele não poderia faze-lo.
Quando o casal de pais está de pleno acordo sobre guarda, visitas, etc., o juiz
não deveria intervir ainda que tal acordo lhe pareça singular. Só se a
integridade física e/ou mental do menor estiver ameaçada justifica-se a
ingerência. Esta ameaça freqüentemente acontece de maneira sutil. Muitos
pais, ao divergirem, não disputam para ver quem fica com os filhos, mas para
ver quem não fica, e desse modo perpetuam-se como não responsáveis; não
podem se apresentar como veículos de sustentação e metabolização de
processos emocionais. Tal funcionamento é o que predomina quando há filhos
que se auto-dirigem e que outorgam suas próprias leis – as chamadas crianças
e adolescentes “sem limites”. Aqui a intervenção do juiz poderá servir como
medida profilática, já que sua ação brinda a família com um aspecto ordenador
e não repressor.
Contudo, sem a presença de tal demanda, uma postura intervencionista
do Estado teria como pressuposto que o Estado-juiz sabe o que é melhor para
aquela família, o que nem sempre corresponde à realidade; tal atitude pode ter
como conseqüência o desestímulo da responsabilidade e eficácia por parte dos
próprios pais.
A terceira circunstância em que também se indica compartir a guarda é
quando um dos genitores não dá conta desta sozinho, por motivos de trabalho,
por exemplo, ou quando não a quer só para si (como exposto em relação a
crianças com problemas sérios, deficiências, etc.)
CONTRA INDICAÇÕES
A seguir levanto algumas situações que poderiam contra-indicar o uso
dessa modalidade de guarda.
A primeira seria, por motivos óbvios, qualquer situação que contrarie os
três pressupostos já explanados.
A guarda compartilhada não seria indicada também nos casos em que os
filhos são usados como moeda entre o casal, isto é, nas situações em que a
disputa pela guarda é apenas um espaço privilegiado para o aparecimento de
conflitos deslocados entre os pais. Não há aqui a preocupação com o bem-
estar e desenvolvimento das crianças. Estas são usadas e manipuladas com a
intenção de ferir, magoar, vingar-se do outro genitor que é sentido e percebido
como adversário a ser derrotado. Nessas situações, que infelizmente são mais
comuns do que se imagina, é terminantemente contra-indicada a guarda
compartida, porque as crianças converter-se-iam em alvos de ataque,
instrumentos de investidas perversas e portanto tornar-se-iam mais
vulneráveis, menos protegidas pelo genitor ou um terceiro mais amadurecido e
adequado.
Ou, quando um dos genitores não tem as condições operacionais
adequadas, a guarda compartilhada é desaconselhável. Por exemplo, não
possuir habitação apropriada para receber os filhos; morar muito longe da
escola das crianças e das atividades por elas freqüentadas; precisar, por
motivos vários, se ausentar durante períodos prolongados, tendo de delegar a
terceiros os cuidados para com as crianças; cumprir horário de trabalho que
não permite atenção adequada e suficiente, etc.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O intuito de examinar aqui esta nova modalidade de guarda é estimular
a discussão de um tema complexo que está se impondo cada vez mais
intensamente quando o assunto é separação e filhos. Tive também a intenção
de mostrar por meio da análise dos “prós e contras” que as vantagens e
desvantagens devem ser avaliadas e ponderadas caso a caso. A priori nada é
bom ou ruim, salvo em situações extremas.
Apesar de na guarda conjunta pais e crianças poderem conviver mais
igualitariamente, temos em contraste uma menor estabilidade no contexto
físico-doméstico, o que requer uma maior adaptação por parte das crianças e
também por parte dos pais, que precisam se organizar de maneira diferente
para receber seus filhos. E há a variável tempo, nada desprezível quando se
trata de crianças de até doze anos.
O ideal seria que os pais fossem informados sobre as vantagens e
desvantagens, os direitos e deveres não só da guarda conjunta mas de qualquer
tipo de guarda já pelos seus advogados.
A discussão interdisciplinar e a prática de entrevista familiar
diagnóstica, realizada conjuntamente pelo advogado e pelo psicólogo,
tornariam também menos custosas, sofridas e longas as separações
propiciando que as pessoas alcançassem de maneira mais adequada e
amadurecida seus objetivos e reconstruíssem suas vidas.
O fato de haver desvantagens, senões ou interrogações não deveria
inibir o questionamento sobre a aplicabilidade desse tipo novo de guarda por
parte de juízes, advogados, assistentes técnicos, enfim, todos os envolvidos
nas disputas pelos filhos. Trata-se de tentar de todas as maneiras possíveis
atenuar as perdas inevitáveis de uma separação. Pior seria manter, sem debate,
as práticas tradicionais de guarda por ser aparentemente mais fácil, cômodo e
menos oneroso.
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