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RENILSON ROSA RIBEIRO COLÔNIA(S) DE IDENTIDADES: Discursos sobre a raça nos manuais escolares de História do Brasil Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas na área de concentração de História Cultural - “Gênero, Identidades e Cultura Material”, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Celso Miceli. Este exemplar corresponde à redação final da Dissertação defendida e aprovada pela Comissão Julgadora em ____/____/2004. BANCA EXAMINADORA: Prof. Dr. Paulo Celso Miceli (DH/UNICAMP – Orientador) Profa. Dra. Maria do Carmo Martins (FE – UNICAMP) Profa. Dra. Celia Maria Marinho de Azevedo (DH/UNICAMP) Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari (DH/UNICAMP – suplente) Campinas, SP – Agosto de 2004.

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RENILSON ROSA RIBEIRO

COLÔNIA(S) DE IDENTIDADES:

Discursos sobre a raça nos manuais escolares de História do Brasil

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas na área de concentração de História Cultural - “Gênero, Identidades e Cultura Material”, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Celso Miceli.

Este exemplar corresponde à redação final da Dissertação defendida e aprovada pela Comissão Julgadora em ____/____/2004. BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Paulo Celso Miceli (DH/UNICAMP – Orientador)

Profa. Dra. Maria do Carmo Martins (FE – UNICAMP)

Profa. Dra. Celia Maria Marinho de Azevedo (DH/UNICAMP)

Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari (DH/UNICAMP – suplente)

Campinas, SP – Agosto de 2004.

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COLÔNIA(S) DE IDENTIDADES

Discursos sobre a raça nos manuais escolares de História do Brasil

Renilson Rosa Ribeiro

Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Departamento de História

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iv

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

Ribeiro, Renilson Rosa

R354c Colônia(s) de identidades: discursos sobre a raça nos manuais escolares de História do Brasil / Renilson Rosa Ribeiro. - - Campinas, SP : [s.n.], 2004.

Orientador: Paulo Celso Miceli. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. 1. Identidade. 2. Racismo. 3. Material didático. 4. Brasil – Historiografia. 5. Brasil – História – Séc. XIX-XX. I. Miceli, Paulo Celso. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III.Título.

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v

________________________________________________Resumo

À luz das orientações teóricas da História Cultural, a presente pesquisa tem a finalidade de realizar um

estudo sobre o discurso raciológico na construção das representações da nação produzidas nos manuais

escolares de História do Brasil, adotados nas escolas brasileiras a partir do final do século XIX e ao longo

do século XX.

O objetivo principal desta pesquisa tem sido identificar e analisar as permanências e as transformações

ocorridas nas práticas discursivas que têm forjado as imagens do Brasil como um país “racializado” nos

manuais escolares da disciplina História, relacionando-as às contribuições dos estudos das Ciências

Humanas, desenvolvidos no período, as reformas curriculares e os movimentos sociais e étnicos. Deve-se

ressaltar, que esta análise recairá também sobre os usos e leituras feitas do discurso do mito da “democracia

racial” pelo saber histórico escolar. As análises terão como ênfase as interpretações elaboradas pelos

autores sobre a história do Brasil colonial, período que eles apontam como a “semente” da nação que se

consolidou em 1822 com a independência.

Palavras-chave: 1. Identidade; 2. Racismo; 3. Material didático; 4. Brasil – Historiografia; 5. Brasil -

História – século XIX-XX.

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________________________________________________Abstract

Under the influence of Cultural History teorical orientation this research proposes a study of the

raciological discourse on the representations of nation construction engendered on Brazilian History

textbooks, adopted at brazilian schools from the end of nineteen century to the twenty century all along.

The main purpose of this research has been identify and analise the permanence and transformations

occurred on discursive pratices that have shaped Brazil images such as a “racialized” country on History

textbooks, relating it to Human Sciences contribution from that time, the courses reforms and the social

and ethnic moviments. It must stand out that this analise will fall upon uses and readings of “racial

democracy” discourse done by scholar historical knowledge. The analises will emphasize the interpretations

worked out by colonial Brazilian history, period that is apointed by them as the nation’s “seed” which was

consolidate on 1822 with the Independence.

Key-words: 1. Identity; 2. Racism; 3. Textbooks; 4. Brazil - Historiography; 5. Brazil – History – 19th &

20th Centuries.

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_____________________________________________Dedicatória

“Se se quiser apanhar um dos primeiros aspectos da pedagogia da história, o mais

importante, imaginai-vos em uma sala de aula. O professor de história ocupa sua

cátedra, digamos sua mesa de trabalho, ou ainda melhor, seu posto de comando.

Começa a lição, que, na realidade, é uma viagem longa e difícil, para os aprendizes

como para o guia, através do tempo e do espaço. Sejamos francos: viagem penosa,

que há de exigir atenção, reflexão, esforço, compreensão e, direi ainda, viagem que

é, e não podia deixar de ser, tão somente instrutiva”.

Fernand Braudel,

“Pedagogia da História” [1955].

À professora Zaida Maria F. Arruda,

por me ensinar a ler, escrever e contar;

pelas inesquecíveis histórias narradas nos bancos escolares.

Ao professor Carlos José Magalhães (in memoriam),

por ensinar que nem sempre a matemática da vida

apresenta resultados tão precisos.

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________________________________________________Sumário

Abertura

Reflexões sobre um fazer, p. xiii

Uma história de amor:“O que é esta profissão?”, p. xiv

Para não dizer que não falei de vocês: aos que fazem valer a pena viver a história, p. xxi

Notas, p. xxvii

Introdução

Colônia(s) de Identidades, p. 01

Por que estamos aqui?, p. 02

A que nós viemos, p. 09

Colônias raciológicas: índios, portugueses e negros, p. 13

Notas, p. 31

Primeiro Capítulo

Imagens do Índio, p. 35

Imagens (didáticas) da “raça cor de cobre ou americana”, p. 36

Joaquim Manuel de Macedo, p. 44

João Ribeiro, p. 57

Rocha Pombo, p. 66

Joaquim Silva, p. 76

Borges Hermida, p. 82

Sérgio Buarque de Holanda, p. 88

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x

Nelson & Claudino Piletti, p. 92

Chico Alencar, p. 104

“O que devemos ao índio”, p. 113

Notas, p. 122

Segundo Capítulo

Imagens do Português, p. 135

Imagens (didáticas) da “raça branca ou caucasiana”, p. 136

Joaquim Manuel de Macedo, p. 146

João Ribeiro, p. 153

Rocha Pombo, p. 160

Joaquim Silva, p. 177

Borges Hermida, p. 183

Sérgio Buarque de Holanda, p. 191

Nelson & Claudino Piletti, p. 201

Chico Alencar, p. 210

“O que devemos ao português”, p. 215

Notas, p. 222

Terceiro Capítulo

Imagens do Negro, p. 231

Imagens (didáticas) da “raça preta ou etiópica”, p. 232

Joaquim Manuel de Macedo, p. 239

João Ribeiro, p. 245

Rocha Pombo, p. 254

Joaquim Silva, p. 273

Borges Hermida, p. 280

Sérgio Buarque de Holanda, p. 284

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xi

Nelson & Claudino Piletti, p. 289

Chico Alencar, p. 312

“O que devemos ao negro”, p. 334

Notas, p. 344

Algumas Considerações

Para além das colônias identitárias, p. 363

Histórias didáticas, histórias do Brasil, p. 364

A ordem (didática) das raças, p. 375

Para além das colônias identitárias, p. 382

Notas, p. 399

Bibliografia, p. 405

Fontes primárias, p. 406

Fontes secundárias, p. 407

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“O lugar de nascimento da liberdade nunca é o interior de algum homem, nem sua

vontade, nem seu pensamento ou sentimentos, senão o espaço entre, que só surge ali

onde alguns se ajuntam e só subsiste enquanto permanecem juntos. Existe um

espaço da liberdade: é livre quem tem acesso a ele e não quem fica excluído do

mesmo.”

Hannah Arendt,

O que é política?

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_______________________________________________Abertura

REFLEXÕES SOBRE UM FAZER

“Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura,

sua história. E uma outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá outra cultura e lhes inventa

uma outra História”

Milan Kundera,

O Livro do Riso e do Esquecimento [1978].

“Amo a história. Se não a amasse não seria historiador. Fazer a vida em duas: consagrar uma à

profissão, cumprida sem amor; reservar a outra à satisfação das necessidades profundas – algo de

abominável quando a profissão que se escolheu é uma profissão de inteligência. Amo a história – e

é por isso que estou feliz por vos falar, hoje, daquilo que amo”.

Lucien Febvre,

Combates pela história [1941].

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Reflexões sobre um fazer

xiv

_______________________________________Palavras de amor: “O que é esta profissão?”

“O que fabrica o historiador quando ‘faz história’? Para quem trabalha? Que produz?

Interrompendo sua deambulação erudita pelas salas dos arquivos, por um instante ele se

desprende do estudo monumental que o classificará entre seus pares, e, saindo para a rua,

ele se pergunta: O que é esta profissão?”1

Esta passagem descrita por Michel de Certeau, no livro A escrita da história, parece perfeita para

compreender o quanto nós, “seres do saber” estamos distantes de nós mesmos. Escrevemos, muitas vezes,

sobre a vida, mas não refletimos sobre a nossa própria existência nela. Estamos sempre ausentes.

Raramente paramos para refletir sobre o nosso papel na sociedade em que vivemos. Parece que não

pertencemos a este mundo. Às vezes, temos a impressão que nós mesmos desconhecemos nossa própria

historicidade, assumindo uma aparente tranqüila e cômoda posição de seres acima do “bem” e do “mau”.

Queremos descobrir o mundo. Vivemos numa busca incessante pelo tesouro escondido no fundo do mar

do passado. Buscamos a “verdade” como se ela não fosse algo deste mundo. Ela, a “verdade”, este baú de

pérolas e diamantes, faz-nos cegos, surdos, insensíveis, obcecados... Acreditamos em algo que, na nossa

mente, está fora de nós. Não nos pertence.

Desde os bancos escolares, ainda de calças curtas, aprendemos a História, mas não a vivenciá-la em

toda sua plenitude. Ela aparece, num passe de mágica, como obra acabada. Resta-nos o deslumbre, a

resignação, a aceitação e a renúncia. Ela não nos pertence, não faz parte de nós. O passado, nos manuais

escolares, está pronto. Não há espaço para a interrogação. Não podemos questionar o que está feito, seria

uma heresia duvidar do texto. A História lida com a verdade, com o que realmente aconteceu, e ponto

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Reflexões sobre um fazer

xv

final. A história é o reflexo, a imagem do espelho, do passado. Nesta história sobre as ações humanas no

tempo e no espaço, nós estamos, por ironia, ausentes.

Aprendemos, desde cedo, a nos escondermos através de uma rede de estratégias de linguagem

cultuando a deusa da Imparcialidade. Não podemos emitir opiniões. Toda fala tem de ser acompanhada ou

respaldada pelo discurso da Autoridade. Não dialogamos com os textos. Não dialogamos com o passado.

Não dialogamos com a história. E pior, não dialogamos entre nós mesmos. Crescemos desconhecidos uns

dos outros. Desejamos, de maneira alucinada, a Essência, a fórmula mágica que está sempre fora de nós.

A afirmação de Nietzsche, em Genealogia da Moral, alertou-nos para o quanto somos desconhecidos de

nós mesmos (a citação é longa, mas vale a pena):

“Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos

desconhecidos – e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que

um dia nos encontrássemos? Com razão alguém disse: ‘onde estiver teu tesouro, estará

também teu coração’. Nosso tesouro está onde estão as colméias do nosso conhecimento.

Estamos sempre a caminho delas, sendo por natureza criaturas aladas e coletoras do mel

do espírito, tendo no coração apenas um propósito – levar ‘algo para casa’. Quanto ao

mais da vida, as chamadas ‘vivências’, qual de nós pode levá-las a sério? Ou ter tempo para

elas? Nas experiências presentes, receio, estamos sempre ‘ausentes’? nelas não temos nosso

coração – para elas não temos ouvidos. Antes, como alguém divinamente disperso e

imerso em si, a quem os sinos acabam de estrondear no ouvido as doze batidas do meio-

dia, e súbito acorda e se pergunta ‘o que foi que soou?’, também nós por vezes abrimos

depois e perguntamos, surpresos e perplexos inteiramente, ‘o que foi que vivemos?’, e

também ‘quem somos realmente?’, e em seguida contamos, depois, como disse, as doze

vibrantes batidas da nossa vivência, da nossa vida, nosso ser – ah! E contamos errado...

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Reflexões sobre um fazer

xvi

Pois continuamos necessariamente estranhos a nós mesmos, não nos compreendemos,

temos que nos mal-entender, a nós se aplicará para sempre a frase: ‘Cada qual é o mais

distante de si mesmo’ – para nós mesmos somos ‘homens do desconhecimento’...”2

Desconhecidos, é o que somos. Desconhecidos! Repitamos a pergunta de Nietzsche: “quem somos

realmente?”. Esta crise existencial, aparentemente insolúvel, faz-se necessária para rompermos as imensas

muralhas que nós podem libertar. Talvez seja a hora de dizermos que não apenas existe vida lá fora, mas

aqui dentro – na nossa oficina.

Ao perguntamos, citando Michel de Certeau, “o que é esta profissão (historiador)?”, iniciamos, de

forma corajosa, uma longa caminhada urgentemente necessária pelas trilhas da construção do saber histórico,

“um dentre uma série de discursos a respeito do mundo”, em busca de nós mesmos (nosso tesouro).

Repensar a história significa repensar a nossa condição como atores no teatro da vida. Significa reconhecer

que somos plurais nas nossas maneiras de ser, pensar, conhecer e interpretar o mundo. Significa

reconhecer também que a história que criamos em nossa oficina tem muitas faces. Diferentes maneiras de

narrar o passado.

Resta-nos, agora, a ousadia para romper a porta imaginária que nos separa de nós mesmos. É

chegada a hora de falarmos das histórias que fazemos. Daquela que nós fazemos parte.

Nesta travessia, cada dia tem de ser uma luta travada contra o sofrimento, mesmo quando as dores a

serem combatidas sejam aquelas de quem escreve este texto. Pois, afinal, somos humanos, demasiadamente

humanos... Nas palavras de Edward Said, em Reflexões sobre o exílio e outros ensaios,

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Reflexões sobre um fazer

xvii

“Com efeito, a vocação do intelectual é essencialmente aliviar de alguma forma o

sofrimento humano e não celebrar o que, na verdade, não precisa de comemoração, seja o

Estado, a pátria ou qualquer desses agentes triunfalistas de nossa sociedade.”3

Ao adentrarmos à esfera pública, seja na sala de aula, seja na vida em comunidade, seja onde for

preciso, não podemos ter medo da controvérsia ou de assumir posições. Não fechar, insistimos, os olhos

para o sofrimento humano. Para o autor de Orientalismo, não havia nada mais irritante e

“enlouquecedor em nossa época do que as pessoas que afirmam: ‘Ah, não, não, isso é

controvertido, não quero fazer’. Ou o refrão oportunista habitual: ‘Não, não posso assinar

porque, sabemos como é, posso causar confusão e as pessoas podem pensar mal de mim’.

Mas, como disse Jean Genet, no momento em que você escreve alguma coisa, já está

necessariamente na esfera pública. Você não pode mais fingir que está escrevendo para si

mesmo. Isso nos leva a questões que têm a ver com mídia, ou seja, a discussão pública e a

publicação.

(...) parece-me que um dos principais papéis do intelectual na esfera pública de hoje é

funcionar como uma espécie de memória coletiva: lembrar o que foi esquecido ou

ignorado, fazer conexões, contextualizar e generalizar a partir do que aparece como

‘verdade’ definitiva nos jornais ou na televisão, o fragmento, a história isolada, e ligá-los

aos processos mais amplos que podem ser produzido a situação de que estamos falando,

seja a situação dos pobres, a política externa americana etc.”4

Ao assumirmos nossas posições de combatentes pela história, almejamos que nossas vidas sejam a

eterna invenção de uma existência, a mais bela obra de arte a ser criada e recriada...

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Reflexões sobre um fazer

xviii

E tal como as grandes obras, desejamos que nossos sentimentos mais profundos ultrapassem as

fronteiras do dizível... Pois estes sentimentos, à semelhança das grandes obras, como nos lembrou Albert

Camus, no livro O Mito de sísifo,

“significam sempre mais do que têm consciência de dizer. A constância de um movimento

ou de uma repulsão da alma se reconhece em hábitos de fazer ou de pensar e se persegue

em conseqüências que a própria alma ignora. Os grandes sentimentos trazem junto com

eles seu universo, esplêndido ou miserável. Com sua paixão, aclaram um mundo exclusivo

onde reencontram seu próprio clima.”5

E quem sabe, num futuro próximo, deixemos de ser um pouco desconhecidos de nós mesmos,

estrangeiros neste admirável mundo louco.

E que não tenhamos vergonha de repetir as belas palavras de amor de Lucien Febvre [1941], proferidas

diante de uma platéia de aprendizes de historiadores (ainda hoje ficamos a imaginar quais os sentimentos,

as tonalidades e as emoções teriam este homem criado naquele momento):

“E, porque tenho a felicidade de saber nesta sala de jovens decididos a consagrar a vida à

investigação histórica, é com firmeza que lhes digo: para fazer história, virem

resolutamente as costas ao passado e antes de mais nada vivam. Envolvam-se na vida. Na

vida intelectual, sem dúvida, em toda a sua variedade. Historiadores, sejam geógrafos.

Sejam também juristas e sociólogos, e psicólogos; não fechem os olhos ao grande

movimento que à vossa frente, transforma, a uma velocidade vertiginosa, as ciências do

universo físico. Mas vivam, também, uma vida prática. Não se contentem em presenciar da

costa, preguiçosamente, o que se passa no mar em fúria. Dentro do braço ameaçado, não

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Reflexões sobre um fazer

xix

sejam como Panurge que se macula de medo varonal, nem mesmo como o bom

Pantagruel, que se contenta, abraçado ao mastro grande, com levantar os olhos ao céu e

implorar. Arregacem as mangas, como Frei João. E ajudem os marinheiros na manobra.

É tudo? Não. Não é mesmo nada, se vocês continuarem a separar a ação do pensamento,

a vida do historiador da vida do homem. Entre a ação e o pensamento, não há separação.

Não há barreira. É preciso que a história deixe de vos aparecer como uma necrópole

adormecida, onde só passam sombras despojadas de substância. É preciso que, no velho

palácio silencioso onde ela dorme, vocês penetrem, animados da luta, todos cobertos da

poeira do combate, do sangue coagulado do monstro vencido – e que, abrindo as janelas

de par em par, avivando as luzes e restabelecendo o barulho, despertem com a vossa

própria vida, com a vida quente e jovem, a vida gelada da Princesa adormecida...

A unidade do mundo – do mundo dilacerado, quebrado, ensangüentado e que pede

misericórdia: não serão as intervenções exteriores a restabelece-la. Cada um tem de a

refazer em si próprio, pelo acordo magnífico do seu pensamento profunda com a sua ação

desinteressada, pela dádiva total, a única que libertará as nossas consciências da

interrogação muda que eu lembrava ao começar, a única que, à grande pergunta: terei eu o

direito? Nós permitirá responder com toda segurança reencontrada, sim.”6

Teremos nós o direito sim de fazer valer a pena, pois o lobo da estepe, ao nosso lado, está cansado, com

sede e fome, e deseja ao lar voltar apenas. Melhor deixá-lo seguir o seu caminho e nós façamos o mesmo.

E que a bela (imaginada) Hermínia (a História) nos conduza pelo salão de baile, em movimentos leves e

suaves7.

Não venham em nossa direção com armaduras para nossos medos. Que eles apodreçam sob a luz do

dia de modo que não venham nos atormentar a noite.

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Reflexões sobre um fazer

xx

“Felicidade”, diria uma voz fraternal, “travada é como meia taça de champagne. Só nos resta sorver o

líquido. Ou então completar o copo. William Shakespeare que o diga”8.

Em nome deste desejo esperançoso de felicidade, de novas utopias, soltamos estas palavras de

resistência contra as práticas colonizadoras de identidades, subjetividades e sonhos. Assumimos nosso

compromisso e responsabilidade pela construção daquilo que Paul Gilroy definiu como “humanismo

planetário”.

Inspirados nestes sentimentos e compromissos, iniciamos nossa expedição pela história dos manuais

escolares de História do Brasil. As histórias narradas nestes livros muito provavelmente não apresentam a

beleza e o fascínio dos personagens dos romances de Victor Hugo, Fiodor Dostoievski e Hermann Hesse,

mas têm muito a nos dizer também sobre nossas maneiras de ser, sentir e interpretar a nós mesmos e ao

mundo. Histórias que forjam a(s) nossa(s) identidade(s). Histórias de um povo, de uma nação, de um país...

Histórias que não deixam de ter seu lado cômico, trágico, romântico, realista, alegre e dramático...

Histórias esquecidas... Histórias que se silenciam ou são silenciadas... Histórias lembradas e celebradas...

Histórias com várias versões... Lugares de guerras de narrativas... de povos, mitos, heróis e tradições...

Cenários de jogos de identidades... de disputas... de conflitos... de vitórias... de derrotas... Páginas de vidas,

de trajetórias, de memórias, de histórias.

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Reflexões sobre um fazer

xxi

________Para não dizer que não falei de vocês: aos que fazem valer a pena viver a história

“__ Sempre é difícil nascer. A ave tem de sofrer para sair do ovo, isso você já

sabe. Mas volte o olhar para trás e pergunte a si mesmo se foi de fato tão

penoso o caminho. Difícil apenas? Não terá sido belo também? Podia

imaginar outro tão belo e tão fácil?

Movi, dubitativo, a cabeça.

__ Foi penoso – disse como adormecido –, foi penoso até que veio o sonho.

Assentiu e fitou-me penetrantemente.

__ Sim, temos que encontrar nosso sonho, e então o caminho se torna fácil.

Mas não há nenhum sonho perdurável. Uns substituem os outros e não

devemos esforçar-nos por nos prender a nenhum.”9

Sempre fiquei a imaginar como seria este dia, o momento de por um provisório ponto final neste trabalho

e descansar momentaneamente nossas ferramentas da oficina da história. Em muitas noites mal dormidas,

perdia-me em devaneios tentando antecipar este instante. E, hoje, finalmente ele chegou. Foi difícil a

travessia, mas não penosa: e aqui estão muitos para testemunhar que esta caminhada foi bela, repleta de

pequenas e grandes conquistas.

Ao contrário da pesquisa, realizada sempre na companhia animada dos moradores da república,

escolhi esta madrugada solitária, silenciosa e fria de julho para redigir estas palavras de carinho para aqueles

que tenho encontrado razões para viver (a história). Fiz este agradecimento sozinho porque seria difícil

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Reflexões sobre um fazer

xxii

escrever estas palavras diante daqueles que são sinônimos de amizade, hospitalidade sem propriedade, e

liberdade. Portanto, peço licença, pelo capricho de redigir esta parte sem vocês por perto.

Aos amigos da Casa M12-A e outros tantos que freqüentam este lar e fazem deste um espaço de rica

experiência de estética de existência, agradeço as belas tonalidades de amizade compartilhadas:

Ao Alexandre Abdala, amigo “Dom Quixote”, pelos sonhos desejados e vividos. Tudo o que sou e

almejo ser tem um pouco de você. Há muitos moinhos de vento a enfrentar nesta vida, cavaleiro andante.

Ao Nei Marçal, amigo “clown”, e Andréa Munhoz, por me fazerem crer que rir é uma necessidade em

todos tempos e lugares.

Ao Mairon Escorsi Valério, amigo viajante, o nosso “Fíleas Fogg pós-moderno”, pelas histórias de

esperança imaginadas (nossas pequenas bolas de sabão). Impossível pensar outras palavras para definir nossa

convivência sem recorrer à tríade amor, fé e utopia.

Ao amigo Leo Sobral, o marketeiro da Casa M12-A, por saber encontrar nos pequenos detalhes o

infinito universo de belezas e encantamentos.

Ao Danilo Neves e Murilo Neves, amigos-irmãos saltimbancos, por me ensinarem novos significados para

a expressão amor fraterno.

Ao generoso amigo Murilo Augusto, pela doçura e leveza das palavras sempre ditas nos momentos

necessários.

Aos amigos-companheiros Joelson Carvalho e Leandra Silvério, por uma nova militância ousada,

apaixonada e admirável.

À nossa mascote, Maria das Dores, pela companhia nas tardes e madrugadas solitárias em casa. Muitas

vezes, os seus pedidos de carinho eram o anúncio das minhas pausas para o descanso.

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Reflexões sobre um fazer

xxiii

À amiga Ana Paula Rocha, por não me levar tão a sério. Nos dias de desespero sempre encontrei na

doçura do seu olhar cor de mel (às vezes, dissimulado) coragem para seguir nesta jornada pela vida.

À amiga Priscilleyne Ouverney, pelas animadas e empolgantes confraternizações entre as casas M12-A e

M4-A.

À Amanda Almeida, amiga-enfermeira, pelas demonstrações diárias de companheirismo e carinho.

Impossível não se emocionar com tanta dedicação ao próximo.

À Ana Carolina Sanches, pequena amiga Kekows, por projetar imagens fantásticas para um mundo ainda

a ser conquistado.

Aos adoráveis amigos André Martini e Camila Sobral, por acreditarem na urgência de se criar novas

utopias.

Ao amigo Luís Guilherme Gaspar Ruas, o homem das especiarias, por saber o valor de um abraço

verdadeiro.

À amiga Ana Rita, minha enfermeira sentimental, pelas doses diárias de estímulo e agitação.

À amiga amada Daiane Cavalheiro, pelos instantes de ternura compartilhados.

À admirável Carol Beckman, pelas travessuras memoráveis das noites campineiras (“All by myself/Don´t

wanna be/All by myself/Anymore”). Saudades de você, meu amor.

Ao amigo Daniel Sobral, pela sensibilidade dos gestos e das palavras que tanto bem me fazem.

Ao amigo Alexandre Favaron, pelas conversas literárias e musicais que tanto me inspiram. Eternamente

agradecido por me apresentar à obra de Dostoievski. O melhor presente que podemos oferecer

ao próximo é nossa sensibilidade de peregrinar por outros jardins da existência humana.

Aos amigos Diego “Zolhos”, Rodrigo Veronese, Karina Corrêa, Tamara Verussa, Rafaela Rodrigues, Cláudia

Costa, Lilian Campos, Mikeli Carvalho, Ariane Chacon, Andréa da Conceição, João Paulo Barbosa, Lia Fernanda,

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Reflexões sobre um fazer

xxiv

Francine Maria e Hugo Leonardo, pelas singularidades de uma amizade que assume novos contornos a cada

dia, hora, minuto e segundo.

Ao Luiz Castelhano, por uma história ainda a ser escrita.

Aos amigos de comunidade de destino (historiadores), pelas várias maneiras possíveis de pensar e compor

histórias:

Aos amados amigos André Côrtes e Silvana Santiago, pelo sonho desejado de um novo “humanismo

planetário”. Encontro sempre no exemplo de vocês a motivação para assumir novos desafios.

Aos amigos de aprendizado de uma paixão, Thomaz Barnezi, Lívia Tiede, Gláucia Fraccaro, Karoline Carula e

Ana Helena Fernandes, por me ensinarem que os belos tesouros podem ser encontrados nas margens, nas

regiões de fronteira entre os exilados.

À amiga confidente Leila Maria Massarão, pela paciência e afeto necessários com este espírito inquieto.

À Deborah Capela, pelas nossos encontros e conversas nos banquinhos da Pós. É, minha amiga, entre

mortos e feridos, salvaram-se todos.

À amiga Mariana Osue Sales, pelo incentivo constante nesta viagem e paixão comum: os escritos de

Lucien Febvre.

À amiga das viagens pelo ABC Paulista Janaina Camilo, pelo bom-humor e incentivo constantes.

Amigos das aulas da Pós-IFCH de 2002 Luiz Estevam Fernandes e Marina Régis Cavicchioli, por

compartilhar projetos, incertezas e desejos de saber.

Às adoráveis amigas Marili Bassini, Daniela Viana, Renata Sunega e Vivian Paulitsch, pelas conversas

animadas, que enriquecem nossas memórias e revestem de cores alegres o pequeno jardim da nossa

existência.

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Reflexões sobre um fazer

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Ao apaixonante amigo Lúcio Menezes Ferreira, pela sua resistência diária aos colonizadores dos corpos,

corações e espíritos. Brindemos à amizade, nos botecos da vida!

Se cheguei até aqui devo em muito aos meus mestres, aqueles que fazem da universidade um lugar de

inspiração e criação. A partir desta máxima, gostaria de agradecer aos professores do Instituto de Filosofia e

Ciências Humanas da UNICAMP, responsáveis por estes inesquecíveis anos de formação:

Ao professor-amigo e orientador Paulo Celso Miceli, por me acompanhar nas aventuras e desventuras

pelo mundo do saber, ajudando pouco a pouco este aprendiz a transformar em palavras uma paixão. Grato

pelas lições de sensibilidade e amor ao ofício de professor de História.

À professora-amiga Celia Marinho de Azevedo, pela nossa “cumplicidade humanitária” construída a

cada dia. Ao contrário do que os outros possam dizer, é possível encontrar novas possibilidades de

existência neste mundo. Sempre grato por me instigar na luta contra as colônias identitárias.

E com toda animação, brincadeiras e afeto que me fizeram sentir neste tempo de convivência, além

do aprendizado, agradeço aos professores Leandro Karnal, Eliane Moura Silva, Isabel Marson, Pedro Paulo

Funari, Margareth Rago e José Alves de Freitas Neto.

Aos professores Leandro Karnal e Celia Marinho de Azevedo agradeço ainda a leitura criteriosa e as

sugestões apresentadas durante o exame de qualificação.

À professora Maria do Carmo Martins, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de

Campinas, por aceitar o convite para participar da banca de defesa desta Dissertação.

Por fim, agradeço à Universidade Estadual de Campinas, representada pelos seus professores,

funcionários e alunos, por ao longo destes anos, dentro das suas possibilidades, ter oferecido as condições

necessárias para a minha formação. Num momento em que muitos apedrejam e maldizem as instituições

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Reflexões sobre um fazer

xxvi

públicas de educação, é necessário que se reafirme a sua importância como espaço para a construção de uma

sociedade justa e democrática.

Sou grato à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Docente) por ter me

apoiado durante o Mestrado. Sem a parceria com esta Instituição de fomento à pesquisa nossa tarefa seria

praticamente inviável.

Sou eternamente grato à minha família pelo apoio incondicional dado as minhas escolhas profissionais:

Aos queridos pais, Antonio e Eva, sinônimo de meu amor, agradeço o esforço diário para educar seus

filhos, dando a eles o que lhes foi negado pelas injustiças da vida. Espero conduzir com ética e

compromisso, valores que vocês me ensinaram, a minha profissão: ser historiador e professor.

Ao meu irmão Roni, por aprender a ser meu amigo e ajudar-me a enfrentar as escolhas necessárias

para estar feliz.

À amiga Cinthia Giorgi, por uma relação afetiva que se fortalece sempre.

Às minhas sobrinhas Marília e Júlia, pelas pequenas alegrias.

À Regiane (in memoriam), minha irmã sonhada e não vivida, uma lembrança marcante em nossas vidas.

Que o nosso avô Francisco (in memoriam) adoce seu paladar com as balas de mel onde quer que vocês estejam.

Enfim, a tantos outros nomes cuja memória esconde, mas o coração lembrará quando a impressão já

estiver a caminho da gráfica, deixo registrado meu agradecimento e pedido de desculpas.

É para vocês todos que escrevo este trabalho, pessoas que, a sua maneira, sabem ser tão humanas

mesmo diante das credenciais identitárias de classe, gênero e raça que perpassam suas vidas.

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Reflexões sobre um fazer

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Gostaria de convidá-los, antes de iniciar este estudo, a experimentar, a romper, a imaginar o ainda

não imaginado, a criar novas formas de existência e de comunidade. Esta tarefa, segundo Francisco Ortega,

“constitui uma forma de resistência política, pois a ação política se define, como

reconhecem Foucault e Deleuze, entre outros, pela procura e fomento de novas formas de

subjetividade, de imagens e modelos para pensar e amar. Vivemos em uma época de

despolitização que exige uma re-invenção do político, entendido como o espaço do agir e

da liberdade, da experimentação, do inesperado, do aberto, um espaço vazio, ainda por ser

preenchido: a amizade como exercício do político. A amizade constitui uma nova

sensibilidade e uma forma de perceber o diferente, baseada no cuidado e na encenação da

‘boa distância’.”10

Eis o desafio que temos a nossa frente. Que este trabalho seja mais um espaço para abertura de

diálogos sobre o mundo que desejamos construir, ou melhor, para pensar o que queremos de nós mesmos.

Campinas, Inverno de 2004.

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NOTAS:

1 Michel de Certeau, A escrita da história, 2a ed. (Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 2000) p. 65. 2 Friedrich Nietzsche, Genealogia da moral: uma polêmica (São Paulo, Companhia das Letras, 1998) p. 07. 3 Edward W. Said, “Sobre a provocação e o assumir posições”, in Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (São Paulo, Companhia das Letras, 1998) p. 250. 4 Ibid., p. 251. 5 Albert Camus, O Mito de Sísifo: Ensaio sobre o absurdo, 2a ed. (Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1989) p. 30. 6 Lucien Febvre, Combates pela história (Lisboa, Presença, 1986) p. 40. 7 Hermann Hesse com o seu humanismo à flor da pele, demonstrou neste romance belíssimo que o ser humano não traz dentro de si apenas uma personalidade, mas sim uma infinidade delas. A busca da personagem Harry talvez seja o reconhecimento por si mesmo de que não é apenas o "lobo" ou o "homem", mas um ser humano, com todas as complexidades e incertezas que a vida implica. O livro, como toda a obra de Hesse nos invade ao espírito, pois não há como ler e não se identificar com as suas personagens. Aliás, essa a sua grande marca, de mostrar nas situações cotidianas a vibração da vida, não escapando ao sofrimento e também do seu aspecto doce e grandioso. Este livro foi me apresentado pelo meu irmão numa daquelas confidentes conversas em que a amizade se sobressaiu ao pesado fardo ainda “essencializado” do amor fraterno.

Conferir: Hermann Hesse, O lobo da estepe, 25a ed. (Rio de Janeiro, Record, 2000). 8 Mensagem eletrônica recebida de Roniclever Rosa Ribeiro, em 17 de setembro de 2003. 9 Hermann Hesse, Demian: história da juventude de Emil Sinclair, 16a ed. (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979) p. 140. 10 Francisco Ortega, Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault (Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000) p. 117.

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______________________________________________Introdução

COLÔNIA(S) DE IDENTIDADES

“O problema político essencial para o intelectual não é criticar os conteúdos ideológicos

que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica seja

acompanhada por uma ideologia justa: mas saber se é possível constituir uma nova

política de verdade. O problema não é mudar a “consciência” das pessoas, ou o que

elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção de

verdade”

Michel Foucault,

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Colônia(s) de Identidades

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Microfísica do Poder.

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_________________________________________________________Por que estamos aqui?

Era uma manhã nublada de novembro de 2003, eu havia sido convidado na noite anterior por uma colega a

participar de um evento da “Semana da Consciência Negra”, promovido pela Prefeitura Municipal de

Campinas, num colégio de ensino fundamental. Lá estava eu com a missão de conversar com um grupo de

alunos sobre as práticas de discriminação contra o negro presentes na nossa sociedade contemporânea.

Tarefa nada fácil para alguém não muito acostumado a dialogar com o público infanto-juvenil.

Como não tive muito tempo para preparar minha palestra, o jeito foi apelar para o improviso, sendo

o mais objetivo e claro possível num curto espaço de tempo. A preocupação era tentar abrir oportunidades

para os alunos perguntarem, trazendo outros rumos para se pensar o assunto.

Já fui criança e ainda me lembro com arrepios como eram monótonas e chatas aquelas palestras

realizadas na escola em semanas comemorativas. A minha vontade, em eventos como estes, era dormir ou

sair para brincar no pátio com os amigos. Pelo que pude perceber nos minutos que antecediam ao início do

evento, as coisas não mudaram muito desde meus tempos de escola, as crianças continuavam a alimentar o

desejo de ficar em qualquer outro lugar do que ali. Elas estavam agitadas e angustiadas, constantemente

vigiadas pelo olhar repressor de inspetores e professores – naquele momento metamorfoseados em “agentes

penitenciários” da boa disciplina e educação.

Chegada a hora marcada, fui conduzido ao posto da autoridade do discurso para proferir palavras sobre

o racismo. No entanto, fui surpreendido com a notícia de que não estava só na empreitada, havia outro

ilustre convidado: o professor Adolfo Lobato1, professor e militante do movimento negro local. Fui

devidamente apresentado ao meu companheiro de trabalho daquela manhã. Nem eu e nem ele

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imaginávamos o que um e outro iria falar. Tanto a minha presença, quanto a dele, era uma surpresa para

ambos.

Feita a abertura do evento, a diretora da escola, depois de impor o silêncio e ordem, passou a palavra

para mim, que em pouco mais de dez minutos, narrei para o público ali presente os significados dos termos

discriminação, preconceito e racismo e os exemplos de práticas racistas presentes no cotidiano deles,

utilizando como fontes as piadinhas correntes sobre o negro e as imagens esteriotipadas disseminadas nos

manuais escolares de História. Procurei ser o mais breve possível, pois as crianças provavelmente não

tolerariam um discurso por demais longo e recheado de palavras complexas.

Em seguida, foi dada a palavra ao professor Lobato que imediatamente começou a proferir um

manifesto emocionado contra o racismo. Dirigindo-se às crianças, ele pediu para que elas relatassem casos

de discriminação que tivessem presenciado ou vivenciado. Todavia, o convite para falar foi nitidamente

endereçado apenas para as crianças negras. Os seus olhos fitavam-nas a todo instante, como se buscasse

somente ali as vítimas de práticas discriminatórias.

Diante do silêncio dos alunos, o professor começou a contar histórias de casos de negros agredidos

ou mortos em batidas policiais ou discriminados em repartições públicas, sempre na expectativa de que

alguém se inspirasse e começasse a falar das suas dores vividas ou presenciadas. Ele desejava fazer daquele

evento uma terapia do sofrimento para comprovar que a nossa sociedade era realmente injusta e racista.

As crianças ficavam a olhá-lo em silêncio, hora ou outra, rompido por conversas paralelas ou risos. O

professor Lobato, não conseguindo a adesão do seu público para o culto da dor, optou por outra estratégia.

Começou calmamente a acusar que a ausência de manifestação das crianças era porque os negros ali

presentes tinham vergonha de sua identidade racial, tinham medo de denunciar práticas de racismo porque

seriam rotulados de “seres inferiores”.

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Para provar seu argumento, ele pediu aos professores da escola presentes que se dirigissem a cada um

alunos e perguntassem a qual raça pertencia, dentro da classificação conhecida desde von Martius, ou seja:

índios, brancos e negros. Naquele momento, peguei meu caderno de anotações e pus-me a escrever sobre

o que estava se passando na minha frente.

Os professores – agora metamorfoseados em agentes da cor – começaram o censo improvisado do perfil

racial da escola adotando uma planilha fechada de classificação, dada a priore. Os entrevistados, para não

dizer inquiridos, deveriam responder se eram índios, brancos ou negros. De acordo com o professor Lobato,

era para desconsiderar qualquer outra designação como moreno, moreno-claro, mulato, etc.

De onde eu estava sentado, visualizava o espetáculo das raças que se apresentava sob o comando do juiz

da cor professor Lobato. Não se enxergava mais ali seres humanos ou alunos de escola uma municipal de

Campinas, mas sim um laboratório repleto de corpos racializados e misturados que precisavam ser classificados e

separados.

Cada uma das crianças era questionada sobre sua raça e naquele pequeno universo de três opções tinha

de escolher pela marca que deveria ter adotar para si. As primeiras tentaram dar definições próprias para a

maneira como se consideravam, mas imediatamente eram reprimidas pelos agentes da cor, lembrando-as que

deveriam escolher entre as opções oferecidas previamente. Elas se entreolhavam tentando encontrar uma

resposta para a pergunta que lhes eram direcionadas. Um sorriso amarelo, um olhar para baixo, uma voz

embargada iam construindo um clima de constrangimento coletivo entre os alunos.

Para ter certeza da lisura do processo, o professor Lobato achou melhor acompanhar de perto a

realização do censo racial. Segundo o senhor juiz da cor, ele seria um grilo falante (a consciência) para auxiliar os

alunos a ser encontrarem, ou seja, para demarcar os limites de qual raça eles “realmente” pertenceriam. E,

assim, pouco a pouco, as raças eram classificadas e separadas.

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Ao se aproximar de dois meninos abraçados, que estavam sentados na primeira fileira, o agente

proferiu a dolorosa pergunta. Um dos meninos ficou em silêncio por alguns segundos, tentando buscar

uma resposta ou talvez a porta de saída mais próxima, e respondeu que era branco. O professor Lobato

olhou-o com indignação, pedindo para que se levantasse imediatamente na frente da escola reunida no

pátio. Disse que ele não era branco, que estava mentido. “Sua cor é negra”, sentenciou o juiz da cor. E para

provar sua afirmação recorreu aos argumentos ditos científicos. Os mesmos argumentos adotados pelos

cientistas do século XIX para aferir a idéia do negro como um ser inferior. Gobineau2, um dos ilustres

teóricos do racismo científico, provavelmente ficaria muito emocionado e orgulhoso de si ao ver seus

argumentos pulsarem vivos ainda no século XXI.

Diante do seu amigo e da escola, o jovem menino foi usado como exemplo de um espécime da raça

negra pelo professor Lobato. Como um perito da raça, foi descrevendo os traços físicos do menino

nitidamente constrangido: tamanho do crânio, desenho do nariz, grossura dos lábios, estrutura corporal,

cor da pele3. Através dos seus conhecimentos adquiridos e da sua autoridade como educador e

representante da raça negra, o professor Lobato desmascarou a falsa cor do menino, colocando-o no seu

devido lugar na tabela das raças.

Não bastou apenas classificá-lo, o juiz da cor, apontando para o seu amigo sentado, que instantes atrás

o abraçava, afirmou que eles eram diferentes porque aquele era branco. Os meninos não conseguiam nem

olhar um para outro de tanta vergonha pela humilhação vivida e compartilhada. Além de expostos aos

olhos do público, foram usados como amostras racializadas do jogo das identidades arbitrado pelo professor

Lobato.

Após a demonstração do poder de autoridade no assunto do professor – o discurso competente4 –, a

maioria das crianças passou a adotar o modelo de classificação apresentado, procurando evitar que a cena

presenciada com os dois meninos se repetisse com eles.

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Da minha mesa observava calado toda aquela situação sem conseguir esboçar uma pequena reação. O

desejo que corria nas minhas entranhas era intervir, por fim a tudo que se passava diante aos meus olhos.

Na verdade, também estava com medo que ele me olhasse e perguntasse qual era a minha raça. Eu que

nunca tinha parado para pensar sobre tal classificação para mim, estava desesperado com a possibilidade de

em algum momento ter de responder sobre algo que tenho lutado contra nos últimos anos: o pensamento

raciológico e racista.

Naquele momento, percebia que a idéia de raça estava viva, latente, pois havia aqueles, como o

professor Lobato, que acreditavam na sua existência e como forma necessária para medir, identificar e

classificar os seres humanos.

Amparado nos dados colhidos com os professores-agentes, o professor Lobato sentenciou que aquela

escola era majoritariamente negra, sendo os brancos uma minoria. Feita esta descoberta laboratorial, ele iniciou

a denúncia dos crimes cometidos por brancos contra os negros historicamente. No seu discurso, aqui se

diferenciando de Gobineau nas conclusões, o negro era visto como vítima do branco algoz. A cor negra era

sinal de bondade, inocência e honestidade e a branca sinal de maldade, malícia e desonestidade. O passado

condenava os brancos pelo seu crime contra os negros. Em síntese, a história para o professor Lobato

estava pautada na guerra entre mocinhos (negros) e vilões (brancos). Todos estavam com seus lugares marcados

no teatro da história. A cor da sua pele e a sua raça definiam o caráter das pessoas. O negro que negasse

sua origem, na opinião do professor, era um alienado. Estava em falta com a sua raça.

O professor Lobato, ao procurar denunciar o racismo na sociedade brasileira, acabou reforçando o

discurso que condenava a humanidade ao estigma da raça. Sua fala não procurou desmontar os métodos

insanos de classificação e hierarquização das pessoas criados ao longo da história, mas sim os reforçou

como necessários. Invertiam-se os lugares, as representações e os sinais, deixando intocável o conceito de

raça. E ela surgia mais uma vez vitoriosa.

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Para as crianças, o discurso do professor deixava a seguinte mensagem: a raça era fundamental para

o funcionamento da sociedade e elas precisavam aprender desde logo a se verem como sujeitos racializados.

(In)felizmente para o nosso palestrante a indisciplina das crianças deu uma resposta não esperada.

Antes de conseguir concluir sua fala, o silêncio já não mais reinava. Os olhares, ouvidos e atenções delas

estavam direcionados para outros assuntos. O seu desejo era o som da campainha do final do período, o

toque libertador daquele espaço nada animador da escola.

Entretanto, não consigo ser tão otimista quanto ao pouco impacto do seu discurso pela indisciplina

das crianças, pois ainda agora me lembro, com certo incomodo, que aqueles dois meninos não se

abraçaram mais depois daquela mostra de política de racialização orquestrada pelo professor Lobato. Não sei

se foi vergonha, medo ou o convencimento da diferença racial entre eles que os afastaram. Rogo que eu

esteja enganado e tenha sido apenas a vergonha. E que pouco tempo depois eles tenham voltado a se

abraçar.

Devo ressaltar que não vejo o professor Lobato como um monstro, um ser abominável que deveria ser

ignorado. Julgá-lo seria muito fácil. Embora não comungue dos seus argumentos, não posso negar sua

história e deixar de compreendê-lo. Ele encontrou na raça seu escudo de defesa contra o racismo porque foi

criado, assim como todos nós, dentro dessa retórica. Em nome da raça, ele muito provavelmente deve ter

sido condenado pela história e pela sociedade a imagens estereotipadas e negativas, a um lugar subalterno

ou lugar nenhum. Em nome da raça, agora ele procura construir uma imagem positiva daqueles que como

ele foram sentenciados pela marca raça negra e seus atributos de inferioridade.

Condenado pela raça e pelas implicações políticas derivadas de seu uso, o professor Lobato, um homem

do seu tempo, representa um dos milhares de exemplos de vítimas do racismo que no desespero por se

salvarem do estigma têm buscado no veneno o antídoto para cicatrizar as suas feridas e tentar se libertar.

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A história de vida do professor Lobato provavelmente se assemelha à da ex-governadora Benedita da

Silva, que numa entrevista ao Roda Viva, de novembro de 2002, narrou que ela até os seis anos de idade se

considerava apenas uma criança como qualquer outra, mas ao entrar na escola descobriu que era

pertencente à raça negra, portanto, “suja”, “fedorenta”, “burra”, “inferior” e “favelada”. Para ela, não

caberia outro destino a não ser ocupar os extratos baixos e miseráveis da sociedade, não pela injustiça

social, mas por sua própria e inata incompetência – atributo que o racismo vigente na sociedade brasileira,

em suas diversas faces, lhe confere dia-a-dia. Difícil viver uma vida sob esta marca.

Por conta disso, perde a ex-governadora Benedita, o professor Lobato, os dois meninos abraçados;

enfim, perde a humanidade.

Talvez, depois desta pequena narrativa, vocês, possíveis leitores, entenderão as razões de nós estarmos

aqui.

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_____________________________________________________________A que nós viemos

Instigada por este lamentável episódio narrado e pela esperança de viver outras possibilidades mais

positivas de existência neste mundo para além das linhas de exclusão, a presente pesquisa teve a finalidade

de realizar um estudo sobre o discurso raciológico5 na construção das representações da nação produzidas

nos manuais escolares de História do Brasil, adotados nas escolas brasileiras a partir da segunda metade do

século XIX e ao longo do século XX.

O objetivo principal desta pesquisa foi identificar e analisar as permanências e as transformações

ocorridas nas práticas discursivas que têm forjado as imagens do Brasil como um país racializado nos

manuais escolares da disciplina História, relacionando-as às contribuições dos estudos das Ciências

Humanas, desenvolvidos no período, as reformas curriculares e os movimentos sociais e étnicos. Devemos

ressaltar, que esta análise recaiu também sobre os usos e leituras feitas do discurso do mito da “democracia

racial” pelo saber histórico escolar. As análises tiveram como ênfase as interpretações elaboradas pelos

autores sobre a história do Brasil colonial, período que eles têm eleito como a “semente” da nação que se

consolidou em 1822 com a Independência.

A escolha dos manuais escolares de História do Brasil como fonte privilegiada de investigação na

nossa oficina amparou-se nas nossas preocupações vinculadas ao campo da história cultural, em especial,

para os trabalhos que têm se dedicado a fazer a história do livro e do impresso e os que têm como foco de

interesse a história das disciplinas e do livro escolar.

Nesta incursão pelo tema, situamos o estudo do tema no âmbito das questões relacionadas à história

do livro, explorando as contribuições teóricas e conceituais fornecidas pelos seus historiadores, procurando

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interligar as questões dos manuais escolares como objeto cultural com as que se referem ao texto escolar e

à disciplina História.

O manual escolar, na nossa opinião, justificou-se também como objeto rico de pesquisa por se

constituir como espaço privilegiado de disputas políticas de constituição de identidades. Nele, há diferentes

personagens e modelos de interpretações em jogo – o jogo das identidades. Assim como o currículo, o manual

escolar é lugar, espaço, território. Objeto de relações de poder por ser trajetória, viagem, expedição,

percurso na formação de gerações de leitores-alunos. Ele é autobiografia, nossa vida, nosso curriculum vitae:

neste espaço se fabrica nossa identidade. O manual escolar é texto, discurso, documento. É um documento

de identidade, uma colônia identitária; objeto de desejo de vários grupos, projetos e políticas6. Suas páginas

são espaços de políticas. Elas não são a História do Brasil, mas nela são esboçadas as histórias desta

comunidade imaginada, de múltiplas definições e leituras, batizada de Brasil.

Para a presente pesquisa foi feita a seleção de manuais escolares de História do Brasil produzidos e

adotados amplamente nas escolas brasileiras a partir do final do século XIX e durante o século passado. A

seleção destes foi feita a partir do número de edições e longevidade do uso e de sua indicação pela

historiografia da educação como “cânones” da produção didática no país7.

Ao estudar o discurso sobre a raça na construção das representações da nação nos manuais escolares

de História do Brasil, a pesquisa aproximou-se das perspectivas teórico-metodológicas lançadas pela

História Cultural, preocupada em apresentar e analisar os novos caminhos para escrever a história, no que

concerne à linguagem e às relações “saber e poder”. Esta área de concentração tem permitido reflexões

sobre a produção do conhecimento histórico, a partir de linhas temáticas específicas:

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Colônia(s) de Identidades

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“escrita da história, discurso, fato e narratividade, ciência e ficção, literatura e história,

tempo e temporalidade são questões presentes nas discussões que abordam temas

referentes tanto à teoria, quanto à política e à religiosidade”8.

Dessa maneira, esta pesquisa trabalhou com as noções de representação, prática e apropriação que,

como afirmou Roger Chartier, constituíram o foco da abordagem da história cultural9. Para o autor, o

objetivo principal da História Cultural era “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos

uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler”10.

Nessa perspectiva, segundo ele, foi necessário, para se alcançar esse objetivo, levar em consideração

as classificações, divisões e delimitações que organizavam a apreensão do real e eram partilhadas pelos

grupos. Destacou ainda que as representações do mundo social apresentavam-se como universais, mas

eram, na verdade, discursos pautados pelos interesses dos grupos que as forjavam. Na sua leitura, as

representações eram

“matrizes de discursos e de práticas diferenciadas que têm como objetivo a construção do

mundo social e como tal a definição contraditória das identidades – tanto a dos outros

como a sua”11.

Assim, as representações, para Roger Chartier, eram social, institucional e culturalmente

determinadas, produzindo maneiras diferenciadas de interpretação12.

Nesta pesquisa, como sugeriu Patrícia Chagas, as noções de identidade e cultura foram tratadas a

partir do pressuposto da indissolubilidade entre o material e o simbólico, no qual o discurso e a prática se

constituíram mutuamente e onde a cultura e a política eram interprenetrantes e interdependentes. A

cultura, fosse ela apresentada como um modo de vida ou como representações objetificadas, era criada em

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Colônia(s) de Identidades

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um mundo hierárquico no qual algumas de suas versões tornaram-se hegemônicas. Consideramos a cultura

como política, pois os significados foram (e são) constitutivos dos processos que têm buscado,

explicitamente ou não, a redefinição ou a preservação da ordem hegemônica vigente13.

Os conceitos de identidades e raça foram instrumentos fundamentais para o desenvolvimento de

nossa análise sobre a construção das representações da identidade nacional brasileira no ensino da História.

O referencial teórico neste caso avizinhou-se das proposições lançadas pelos estudos de Paul Gilroy.

Ao pensar as identidades como construções e não como naturais, o autor propôs a construção de um novo

modelo de humanidade através do retorno sistemático à história dos conflitos sobre os limites da

humanidade na qual a idéia de raça tem sido proeminente. Neste aspecto, ele fez uma reflexão sobre os

conceitos ligados às determinações que antecediam ou transcendiam a individualidade como cultura, etnia,

nação e raça14.

No lugar destes conceitos fechados, amplamente arraigados nos discurso dos manuais escolares de

história do Brasil, Paul Gilroy sugeriu, por exemplo, o conceito de diáspora e de identidades construídas

não nas relações entre a estabilidades da terra (nação, povo, cultura etc.) e a firmeza da árvore genealógica

humana (raça, etnia, povo, cultura etc.), mas comparando-as à instabilidade e o movimento das águas do

mar, na incerteza e na multiplicidade de leituras das comunicações transculturais, nas quais os indivíduos

têm construído suas identidades numa relação entre passado e presente, propondo um novo futuro.

Ao problematizar estes referenciais conceituais, a presente proposta permitiu a realização da

desconstrução dos discursos sobre a identidade nacional forjados pelos manuais escolares de História

assentada na matriz de pensamento estática e fechada do conceito de raça na formação da nossa sociedade.

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Colônia(s) de Identidades

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_________________________________Colônias raciológicas: índios, portugueses e negros

A nossa história estabeleceu-se no campo da ordem dos livros, suas estruturas e imposição de sentido, com a

preocupação de compreender como estratégias para fixar identidades racializantes nos seres humanos foram

elaboradas e circularam no discurso dos manuais escolares de História do Brasil.

Ainda que acreditemos na importância da idéia de movimento, enfatizada por Paul Gilroy, para

pensar nossas maneiras de ser, sentir e conhecer a nós mesmos e o mundo, a nossa narrativa trilhou

espaços fechados, sufocantes, da ordem, das estratégias de controle.

Os manuais escolares de História, dentre outros lugares de políticas identitárias, constituíram na

nossa leitura, verdadeiras prisões, castelos kafkianos, onde as pessoas, ao longo do tempo e do espaço, foram

sendo classificadas e sistematicamente fixadas em marcas como nação, raça, etnia, gênero e classe. A noção

de humanidade, através destas marcas, não era (se algum dia foi) para todos. Alguns, seja por valores

religiosos, seja por argumentos científicos, foram considerados mais humanos do que outros.

Escrever sobre os jogos de identidades presente nos manuais escolares a partir da retórica ou

discursos da raça15 exigiu lidar com imagens cruas e duras. Neste caso, foi muito difícil ser estético e

poético ao lidar com a crueza do tema. Ele obrigou-nos a lidar com práticas discursivas16 de construção de

ideais que naturalizaram biológica e culturalmente a inferioridade de índios e negros em detrimento da

superioridade dos brancos europeus (portugueses). Amparados na idéia de níveis de civilização, os autores

dos manuais escolares analisados, em contextos históricos diversos desde a segunda metade do século XIX

até o crepúsculo do XX, mesmo sendo, muitos deles, defensores da justiça e da igualdade de direitos,

auxiliaram na obra de classificação da humanidade em raças, uma vez que nenhum deles abriu mão deste

conceito para criar suas interpretações sobre a história do Brasil.

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Colônia(s) de Identidades

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Ao realizarmos as descrições e as análises sistemáticas de cada autor sobre uso do conceito de raça

nos seus manuais escolares, a intenção não era denunciar apenas que estes eram racistas ou apresentavam

idéias racistas. Fazer tal afirmação seria cair na armadilha do óbvio, pois vivemos num mundo estruturado

e moldado dentro de um pensamento raciológico presentes em diversos lugares: Estado, academia, escola,

mídia, família entre outros exemplos.

A preocupação que nos motivou a percorrer este território de fabricação de identidades foi a de

realizar a desconstrução das práticas discursivas sobre a identidade nacional forjadas pelos manuais

escolares de História assentada na matriz estática e fechada de pensamento do conceito de raça na

formação da nossa sociedade e as suas implicações históricas, políticas, econômicas sociais, culturais.

O presente estudo apresentou-se com o título Colônia(s) de Identidades por duas razões:

Primeiro, porque a História ensinada nos bancos escolares, em especial, pelos livros

sistematicamente adotados por crianças, jovens e professores, tem ainda trabalhado

com uma visão colonizadora da humanidade, adotando conceitos tidos como

naturais e essencializantes como civilização, nação, raça e etnia, para criar suas

versões sobre o passado. Através destes conceitos identitários, lugares e papéis têm

sido definidos para disciplinar, controlar e submeter indivíduos e grupos humanos.

Em suma, tomamos este objeto da cultura escolar como um privilegiado espaço de

confecção e colonização de identidades, demarcados dos limites de humanidade.

Segundo, porque verificamos que o discurso sobre a raça tem sido conceito-chave

adotado pela tradição historiográfica e didática para construir suas interpretações

do passado colonial brasileiro. Neste passado, os intérpretes (didáticos) do Brasil

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Colônia(s) de Identidades

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têm encontrado os alicerces da formação da nacionalidade brasileira. Por esta razão

realizamos nossa pesquisa centrada nos capítulos dedicados ao período histórico

comumente denominado nos manuais escolares de “Brasil Colônia”.

Adotamos como um dos possíveis começos de nossa análise pelos textos didáticos a publicação de três

obras que consideramos fundamentais para a construção da história para o Brasil, referências para a

produção historiográfica e didática que se constituiu a partir de então no país: a premiada monografia

“Como se deve escrever a história do Brasil”, do naturalista bávaro Karl F. P. von Martius (1794-1868); a

História geral do Brasil, do historiador e diplomata Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878); e os

manuais escolares Lições de História do Brasil para uso dos alunnos do Imperial colégio Pedro II e Lições de História do

Brasil para uso das escolas de instrucção primaria, de Joaquim Manual de Macedo (1820-1882), literato e

catedrático de História e Geografia do Brasil do Imperial Colégio Pedro II.

Os primeiros manuais escolares de História foram publicados no Brasil em meados do século XIX.

Eles se inspiravam nos manuais europeus de história universal, sobretudo nos franceses, que apresentavam

uma concepção européia e cristã da história, na qual as crianças e jovens brasileiros deveriam se espelhar17.

Nos colégios freqüentados pelos filhos das elites, chegava-se a adotar as próprias edições originais

desses manuais franceses. Um dos autores de destaque era Victor Duruy, historiador que chegou ao posto

de ministro da França. No final do século XIX, em meio às reformas educacionais conduzidas pelo regime

republicano, outro francês, Charles Seignobos, era o autor preferido. Nestes dois manuais, o conceito de

civilização era recorrente: o imperialismo europeu conquistava os territórios africanos e asiáticos, tornando

necessário enfatizar-se a missão de levar a “civilização” aos povos “bárbaros” e “selvagens”18.

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Já a situação dos manuais escolares de história do Brasil era mais complexa e polêmica. O Compêndio

de história do Brasil, de 1843, elaborado pelo general José Inácio de Abreu e Lima (1796-1869), foi um dos

pioneiros.

Esse autor havia participado das guerras da independência na América do Sul com Simon Bolívar e

era conhecido por ter pensamentos considerados polêmicos, como o de separar a Igreja do Estado e

defender o casamento civil. Apesar disso, e também das suas divergências com o historiador Francisco

Adolfo de Varnhagen, o manual escolar do general Abreu e Lima foi usado durante anos no Imperial

Colégio Pedro II e em diversas instituições do país19.

Nos anos 1850 a história do Brasil se tornou disciplina independente da história universal, o que

exigiu a produção de livros escolares específicos utilizados também pelos professores dos liceus e dos

cursos preparatórios para o ensino superior.

Nesta época, quem elaborava os programas e manuais escolares eram os letrados do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), muitos dos quais professores do Colégio Pedro II, cujo sistema

de ensino era modelo para todas a escolas secundárias do Império20.

Um desses professores era o romancista Joaquim Manuel de Macedo, que transformou suas aulas no

manual escolar Lições de história do Brasil. Publicado em 1861, seu livro, seguindo os passos do mestre

Varnhagen, contava uma história essencialmente política protagonizada pela elite administrativa e militar e

adotava uma abordagem cronológica que incentivava a memorização dos fatos históricos. Além disso,

Macedo pregava a necessidade da continuidade e o combate à ruptura, principalmente da não-ruptura

Portugal e Brasil no momento da independência brasileira e na legitimidade do trono bragantino na direção

do novo país. Cada lição terminava com um quadro sinótico e as “perguntas”21. O seu livro escolar foi um

sucesso, sendo reeditado até 1925 e assim marcando a vida da cultura escolar de muitas gerações.

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Nas primeiras décadas da era republicana a produção historiográfica ainda estava estreitamente

vinculada ao IHGB onde, desde a sua fundação, desenvolvia-se o projeto de escrita de uma história

nacional. A princípio, os estudos produzidos na esfera do Instituto eram profundamente marcados pela

exaltação da monarquia e da colonização portuguesa no Brasil, vista como a responsável pela construção

das bases da nação. E a obra de Varnhagen e os manuais escolares de Macedo eram exemplares nesta linha

de interpretação histórica e política.

Com o alvorecer da República, as preocupações dirigiram-se para a valorização do novo regime, o

prestígio e o elogio da colonização portuguesa sofreram alguns reveses, mas as diretrizes metodológicas

básicas do IHGB se preservaram até, pelo menos, o começo dos anos 1930 do século passado. Enfim,

continuou-se a confeccionar uma narrativa histórica centrada nos fatos políticos, nos feitos dos grandes

homens, nos episódios gigantescos da era dos descobrimentos, da colonização e da ocupação do território

brasileiro e, especialmente, na valorização da idéia de unidade nacional22.

Nesse momento, a produção dos manuais escolares de História esteve ainda fortemente atrelada ao

IHGB, uma vez que, como já foi observado, muitos historiadores a ele vinculados escreviam os livros mais

conhecidos e adotados nos ensino primário e secundário. Estes vínculos garantiram a permanência das

formas de interpretação então predominantes da História do Brasil, que passavam do Instituto às salas de

aula das escolas através da mediação dos livros escolares, reforçando-as e difundindo-as.

Professor do Colégio Pedro II e membro do Instituto, autor de trabalhos sobre folclore, história,

crítica literária, filologia e gramática da língua portuguesa, João Ribeiro (1860-1934) tornou-se respeitado

entre os seus contemporâneos e gerações posteriores como filólogo e historiador. Segundo Patrícia S.

Hansen,

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Colônia(s) de Identidades

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“Seu livro História do Brasil expressa de maneira bastante eloqüente de que modo algumas

das experiências vividas por sua geração implicavam em uma revisão da história do Brasil,

fundamentada sobre pressupostos que estavam se tornando hegemônicos na produção

historiográfica, para que o ensino da disciplina cumprisse seu papel em um momento

considerado decisivo para o destino do país.”23

A sua História do Brasil (Curso Superior), lançada em 1900, inovou na organização dos conteúdos, ao

apresentar, além da história nacional, novas unidades temáticas, como as que denominou de histórica

comum e de história local. Nesse modelo de história, inspirado em von Martius, o autor procurou

demonstrar que o Brasil derivou do colono, do jesuíta e do mameluco, da ação dos índios e dos escravos

negros, todos personagens principais da sua obra didática.

Seu manual escolar teve várias reedições, chegando a ser adotada ainda em 1964 em escolas públicas

de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Outro autor contemporâneo de João Ribeiro foi o professor e historiador José Francisco da Rocha

Pombo (1860-1934). Em sua História do Brasil (Curso superior), na seleção temática, cronologia e

periodização, tributário também do modelo de von Martius, o autor privilegiou, quanto ao passado

colonial, os eventos ligados à conformação territorial e nacional, destacando a organização administrativa,

as lutas contra os estrangeiros e os confrontos com a metrópole até a Independência em 1822.

A estrutura do livro de Rocha Pombo não diferiu daquela que se tornou a norma para os manuais

escolares brasileiros durante o século XX. De acordo com Thais Nivia Fonseca e Lima,

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“Ele começa situando o mundo o mundo no século XV, a posição dos países ibéricos e

especialmente de Portugal no quadro europeu, para enfim chegar à descoberta do Brasil

em 1500. Trata das expedições de reconhecimento da terra, fala dos índios, primeiros

habitantes, para então adentrar pela política de colonização empreendida por Portugal,

com a criação das capitanias hereditárias, seguida da organização do governo geral. Em

destaque, aparecem as lutas contra franceses e holandeses, as expedições bandeirantes, as

rebeliões do século XVIII nas Minas e o processo de independência, todos eles eventos

ligados à formação nacional.”24

Assim como o manual escolar de João Ribeiro, a sua História do Brasil (Curso superior) teve muitas

reedições, inclusive uma revista e atualizada pelo historiador Helio Vianna, sendo utilizada nas escolas

brasileiras até os anos 1960.

Rocha Pombo faleceu em 1933, sem conseguir tome posse na Academia Brasileira de Letras. Até

essa época da nossa história da educação, o movimento de imposição de um sentido nacionalista à História

do Brasil contava com a militância de muitos autores de livros escolares. Além do próprio Rocha Pombo,

faziam parte desse grupo desse grupo Jonathas Serrano, João Ribeiro e Oliveira Lima25.

Todavia, foi a partir de 1930 que, com a centralização da política educacional, tornaram-se mais

explícitas as orientações nacionalistas, tanto para os programas curriculares quanto para os manuais

escolares de história do Brasil.

Duas reformas educacionais sucessivas durante a era Vargas – a Francisco Campos, em 1931, e a

Gustavo Capanema, em 1942 – prescreveram com maior precisão as diretrizes do ensino de História do

Brasil, por meio da implantação dos programas elaborados pelo recém-criado Ministério da Educação. A

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primeira reforma preocupava-se com a educação política do adolescente e a segunda ampliava essa

educação para a formação de uma consciência patriótica26.

Era dentro desta perspectiva nacionalista que os manuais escolares produzidos e utilizados nas

escolas brasileiras nos anos 1930 e 1940 montavam sua estrutura e abordagem. Esta linha de pensamento

impunha, no discurso didático, uma valorização da atuação dos brasileiros em seu passado histórico,

principalmente a partir do momento em que se verificaria o nascimento do sentimento nacional. A

colonização portuguesa, por exemplo, sofria críticas, porque era a responsável pelo retardamento do

desenvolvimento da nação, graças, sobretudo, aos erros administrativos cometidos pela metrópole. Esta

situação teria intensificado o clima de animosidade que, alimentado ao longo de aproximadamente dois

séculos, levaria ao rompimento definitivo entre Brasil e Portugal.

Quando havia elogios aos colonizadores, eles eram direcionados aos jesuítas, responsáveis pelo

louvável trabalho da catequese. O professor Joaquim Silva, autor de um dos manuais escolares mais

adotados desse período, dedicou especial atenção aos missionários religiosos da ordem inaciana.

Para ele, a atuação dos jesuítas ganhou relevância na medida em que teria sido a grande responsável

pela consolidação do catolicismo no Brasil, um dos principais elementos conformadores da unidade

nacional, pela via religiosa. Para atender a este fim, um bom começo teria sido essencial – o promissor

momento da celebração da primeira missa em terras braseiras, em 1500. Ali, a comunhão de portugueses e

nativos era o anúncio do futuro da nação ainda não existente, unida pela fé e pela mistura das raças.

Joaquim Silva concentrou especial atenção no período das guerras contra os estrangeiros, sobretudo

contra os holandeses, para reforçar seus objetivos de construção de uma consciência patriótica. É neste

evento que, fazendo coro com a tradição historiográfica e didática, ele situou o nascimento do sentimento

nacional.

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Os manuais escolares deste autor ultrapassaram épocas, sendo amplamente utilizados durante o

regime militar instaurado no Brasil pós-1964. Alguns de seus livros chegaram a atingir a marca de 100

edições durante os anos 1960.

A propaganda nacionalista, em especial no período do Estado Novo (1937-1945), espraiou-se através

de diversos mecanismos, e o ensino de História, mediado pelos manuais escolares, foi um dos mais

poderosos. Tanto que deixou raízes profundas no sistema educacional brasileiro, não tendo sido alterado

substancialmente até os anos 1980 do século passado.

Desde 1945 até o seu falecimento, o professor Antonio José Borges Hermida (1917-1995) dedicou a

sua vida à produção de manuais escolares de História para o primeiro e segundo graus.

O seu manual escolar de História do Brasil seguiu na mesma linha nacionalista de interpretação

histórica de Joaquim Ribeiro. Nele, o autor deu especial relevo para os eventos dos descobrimentos

portugueses do século XV; a mistura das raças (índios, portugueses e negros); os jesuítas representados

como os “amigos dos índios”; a epopéia dos bandeirantes adentrando o interior do país; os ciclos

econômicos (pau-brasil, cana-de-açúcar e ouro); as invasões holandesas; a inconfidência mineira e a

exaltação da figura do mártir Tiradentes.

Para atender ao aumento da demanda de alunos matriculados a partir das reformas educacionais da

era Vargas, os manuais escolares passaram a valorizar cada vez mais o uso de ilustrações, mapas e

atividades com documentos. Os textos foram elaborados, pouco a pouco, para o aluno e não somente para

o professor, cuja a formação já vinha sendo realizada na universidade desde os anos 1930. Os livros de

Joaquim Silva e Borges Hermida são ilustrativos desta nova mentalidade que tomava conta das páginas dos

manuais escolares no país.

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As editoras de manuais escolares concentravam-se nesse momento em São Paulo e não mais apenas

no Rio de Janeiro. Com o passar dos anos, elas passaram a convidar professores universitários para

escrever os novos manuais escolares. Os enfoques variavam entre o político e o econômico. Neste último

exemplo, a narrativa histórica era dividida em ciclos, que iam do pau-brasil ao ciclo do café e á

industrialização.

Depois da reforma educacional de 1961, os conteúdos tornaram-se menos rígidos. Uma certa

influência dos chamados ‘métodos ativos”, que combatiam o excesso de memorização de nomes e datas,

criou algumas inovações, como a coleção organizada pelo historiador paulista Sérgio Buarque de Holanda

(1902-1982), abarcando história do Brasil e história geral. Num trabalho com uma equipe de professores

universitários27, o autor desvinculou-se dos esquemas de memorização, passando a destacar a história da

cultura e a documentação iconográfica, principalmente sobre o Brasil. A coleção de Sérgio Buarque inovou

ao trazer um conteúdo por série, de acordo com propostas oficiais, além de sugerir o uso didático de

documentos de época, como trechos da Carta de Pero Vaz de Caminha. Em termos de conteúdo, o manual

escolar de Sérgio Buarque continuou a seguir o roteiro trilhado pelos demais autores da tradição didática.

Durante a ditadura militar (1964-1985), com o crescimento do mercado editorial e a ampliação do

número de alunos, sobretudo após a reforma educacional de 1971, ocorreu um aumento significativo da

produção didática no Brasil. Novas formas de expressão veiculadas pelos modernos meios de

comunicação, em especial a televisão, influenciaram de maneira emblemática na apresentação e linguagens

dos livros, colocando em xeque os métodos tradicionais.

Também sofreu mudanças a relação entre o manual escolar e o professor. Se antigamente o professor

possuía maior autonomia em relação ao uso do livro, pois se pressupunha que a formação docente deveria

habilitá-lo integralmente, na nova realidade educacional os professores, principalmente aqueles que tiveram

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sua formação nos cursos rápidos denominados de Licenciaturas Curtas, passaram a depender com

freqüência dos livros para preparar e ministrar suas aulas28.

Numa tentativa de despertar o interesse dos jovens leitores, acostumados com o mundo das imagens

e sons, os manuais escolares passaram a apresentar ilustrações em grande quantidade, jogos de

memorização, além de adotarem cada vez mais os exercícios de múltipla escolha.

No contexto das transformações ocasionadas pela crise do regime militar, o ensino de História

encontrou-se diante do dilema de permanecer a difundir a chamada “história oficial” ou de renovar seus

objetivos e suas abordagens, seguindo a direção dos ventos que partiam do processo de redemocratização

do país entre 1980 e 198929.

Diversas foram as propostas de mudanças programáticas e metodológicas, algumas delas ajudando,

de maneira efetiva, no abalo das estruturas do tradicionalismo arraigado no ensino da disciplina30.

Na busca de uma atitude mais crítica, muitos autores construíram manuais escolares que não apenas

tentavam abandonar a formatação convencional, como também faziam uso de linguagens até então pouco

convencionais. Segundo Thais Nivia de Lima e Fonseca,

“Textos leves e impregnados do léxico coloquial e o uso de charges como ilustrações

foram alguns dos recursos mais utilizados em muitos dos novos livros de História.

Cartunistas conhecidos por seu trabalho na imprensa foram, não raro, ilustradores desses

livros, dando um viés debochado às abordagens pretendidas. Nesse caso, o risco de

banalização da história foi considerável, e alguns livros acabaram por transformar o

processo histórico numa revista, às vezes, de gosto duvidoso.”31

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Devemos ressaltar que diante das chuvas de críticas à produção didática desse período, inclusive do

seu comprometimento ideológico, uma nova leva de autores e editores partiram à procura de saídas para

manter uma certa qualidade. O aumento dos cursos de pós-graduação, na década de 1970, permitiu uma

renovação significativa do conhecimento histórico, trazendo novos problemas, abordagens e objetos.

Os autores profissionalizaram-se cada vez mais, atraídos pelo desafio a frente e, também, pelos

rendimentos decorrentes da venda maciça de livros. De acordo com Kazumi Munakata, as lutas pelo

retorno da disciplina História e Geografia, e o fim das disciplinas de Estudos Sociais, Educação Moral e

Cívica (EMC) e Organização Social e Política do Brasil (OSPB), promoveram mudanças importantes.

Como muitos dos autores e alguns editores tiveram formação marxista e haviam participado das lutas pela

democratização do país, cresceu a tendência a ensinar história a partir de conceitos como modo de

produção e classes sociais32. É neste cenário que entraram em cena as coleções História & Vida, do

professor universitário e jornalista Nelson Piletti, em parceria com o seu irmão Claudino Piletti, e Brasil

Vivo, do historiador Chico Alencar, em co-autoria com o cientista social Marcus Venicio Ribeiro e o

cartunista Claudius Ceccon.

O manual escolar dos irmãos Piletti, para a 5a série do primeiro grau, foi escrito em linguagem

simples sem, no entanto, ser banal, bem apropriado para o público ao qual se destinava. Ele é um exemplo

do desenvolvimento dos últimos vinte anos da produção didática no Brasil, principalmente pela boa

qualidade material, que pode ser visualizada nas ilustrações, resultado de uma criteriosa pesquisa

iconográfica e de um cuidadoso tratamento gráfico. Para Thais Nivia Lima e Fonseca,

“Além da reprodução de conhecidas obras de arte da pintura brasileira, aparecem muitas

gravuras européias, desenhos dos viajantes europeus que estiveram no Brasil desde o

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século XV, fotografias de situações do presente, desenhos feitos pelos ilustradores da

editora, além de uma razoável coleção de mapas históricos.”33

O seu manual escolar seguiu a cronologia tradicional da História do Brasil, do descobrimento à

independência, e procurou criar problematizações como maneira de provocar a reflexão do aluno. Quanto

ao tratamento dado à colonização, o autor afirmou que a chegada e a presença dos portugueses no Brasil

significou a sua integração ao sistema de comércio internacional do alvorecer dos tempos modernos,

visando exclusivamente a aquisição de lucros para a metrópole. E foi com base nesta interpretação

econômica que os autores de História & Vida construíram uma imagem negativa dos portugueses e de sua

obra colonizadora, até o acirramento dos conflitos com os brasileiros.

Em diversos momentos, o texto didático tratou do passado à luz do presente dos Piletti. Um

exemplo ilustrativo desta atitude foi o fato deles criticarem a destruição das matas do litoral devido à

exploração do pau-brasil, explicada pela falta de respeito dos colonizadores em relação às florestas do

Brasil, como se fosse possível exigir dos europeus do século XVI uma consciência ecológica nos moldes

dos nossos dias.

No caso do processo de formação do sentimento nacional, a guerra contra os holandeses não teve a

abordagem amparada no discurso da união das três raças na luta contra o invasor. No seu manual escolar, a

interpretação concentrou-se nos interesses econômicos em jogo, envolvendo holandeses, comerciantes

portugueses e senhores de engenho, estando, dessa forma, mais próximo da historiografia mais recente

sobre o assunto.

Os capítulos seguintes do livro foram dedicados ao processo de ocupação e de expansão do território

pelos portugueses, esquema que não fugiu ao roteiro já conhecido desde João Capistrano de Abreu e João

Ribeiro.

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O professor e historiador carioca Chico Alencar, autor de Brasil Vivo, fazendo uso de títulos de

capítulos como “O mundo da terra de todos”, “Pai durão, mulher medrosa, filhos assustados!”, “Pau, pano

e pão”, “Está nascendo um país” entre outros, procuraram atrair o seu leitor-aluno para uma história tida

como mais dinâmica e interessante. Todavia, a proposta inovadora apresentou suas limitações, uma vez que

o autor seguiu o enredo cronológico e temático já estabelecidos desde o final do século XIX.

Destinado para os alunos da 5a série do então primeiro grau e publicado no final dos anos 1980, o

manual escolar de Chico Alencar teve a preocupação de incentivar a reflexão crítica, trabalhando numa

perspectiva de desmontagem de “verdades” históricas consolidadas no imaginário nacional. A linguagem,

por vezes a escrita exacerbada, levou o seu texto didático, em alguns momentos, à beira da banalização,

como se ironia e sátira fossem o mesmo que reflexão crítica.

O seu manual escolar começou tratando dos primeiros habitantes do Brasil, os índios, apresentados

como os verdadeiros heróis de uma saga de violência e destruição, do qual foram as vítimas principais.

Mesmo tecendo críticas à narrativa histórica épica e heróica, o autor fez uso destas mesmas noções na

construção de uma imagem paradisíaca e romantizada das sociedades indígenas brasileiras.

Em contrapartida, carregaram nas pinceladas ao tratar o colonizador português, ridicularizado por

seus costumes, atacados por sua violência e condenados por sua capacidade de destruição. Neste aspecto,

Chico Alencar não fugiu dos textos bem mais antigos, dos republicanos do começo do século XX,

conforme observado.

Apesar da proposta inovadora, Brasil Vivo não abriu mão da cronologia tradicional, evidenciando a

forte presença da obra da obra de Capistrano de Abreu sobre a historiografia brasileira e sobre a produção

didática de História. Descobrimento, ocupação e expansão foram os eixos privilegiados pela nova história

do Brasil criada por Chico Alencar.

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Em nenhum momento, por exemplo, o autor abordou a questão de um sentimento nacional

nascente em meados do século XVII, resultante das invasões holandesa. Por outro lado, a atuação da

administração colonial portuguesa foi apontada como responsável maior pelo acirramento dos sentimentos

anti-lusitanos e despertar dos movimentos contra a metrópole, com a mesma ironia e espírito satírico das

primeiras páginas do manual escolar.

Os manuais escolares dos irmãos Piletti e de Chico Alencar, editados e amplamente usados nas

escolas brasileiras entre 1980 e 2000, foram obras emblemáticas concebidas no bojo das propostas

marcadas pela crítica “história oficial” elitizada.

Com base nas considerações sobre a temática proposta e na apresentação das obras didáticas

analisadas, elaboramos os três capítulos que compõem nossa pesquisa. Cada um abordando as

representações forjadas sobre cada uma das três raças (índios, portugueses e negros), na leitura do autor,

constituintes da nacionalidade brasileira:

O Primeiro Capítulo – Imagens do Índio, tratou das representações construídas pelo discurso

didático sobre os povos que habitavam o Brasil antes da chegada dos portugueses e durante o processo de

colonização.

Na maioria dos livros ou manuais escolares de História do Brasil produzidas desde o Segundo

Reinado até os dias mais recentes, as imagens das populações indígenas têm sido criadas e representadas

inspirados nos estudos de von Martius e Varnhagen; ou seja, a partir da ausência de certas instituições ou

negação de determinados traços culturais da civilização ocidental. Em síntese, as caracterizações

assemelharam-se muito e foram desenvolvidas com base nas seguintes categorias descritivas, não

necessariamente assim ordenadas: origens e classificação; aspectos físicos e usos e costumes; organização

social e política; línguas e cultura; e influências para a formação da sociedade nacional. Mesmo os autores

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que procuravam retratar as sociedades indígenas de outra perspectiva, isto é, como portadoras de cultura

em muitos pontos correspondentes à européia, fizeram-no a partir de tais categorias.

No Segundo Capítulo – Imagens do Português, analisamos as representações criadas por esses

manuais escolares sobre o elemento português a partir do evento das viagens e descobrimentos do século

XV. O português descobridor constituiu a temática central do estudo que desenvolvemos sobre a

construção da identidade de Portugal, pátria-mãe que deu origem à nação-filha, o Brasil. Atribuímos

especial destaque para três aspectos em relação à era dos descobrimentos, tópico que geralmente inaugura

os primeiros capítulos dos manuais escolares de História do Brasil: ser o mar o destino do povo português,

nascido e predestinado a desvendar e colonizar o mundo desconhecido; ser o descobrimento do Brasil um

evento cercado de uma mística, ou seja, a idéia do acaso da “descoberta” configurar-se como uma prova de

que os portugueses eram o povo escolhido a trazer a luz da civilização e da fé cristão para as novas terras e

gentes dos trópicos; ser o português, europeu de origem racial “branca ou caucasiana”, o grande “motor”,

numa expressão cara a von Martius, da obra colonial e nacional no Brasil, constituindo o imenso “rio” que

congregaria as contribuições dos “afluentes” das raças negras e indígenas para a formação da identidade

nacional brasileira.

No Terceiro Capítulo – Imagens do Negro, realizamos uma análise das representações criadas

pelos manuais escolares da disciplina sobre o negro e a história da escravidão no Brasil colonial.

As proposições lançadas, mais uma vez, por von Martius e Varnhagen sobre o elemento negro e a

escravidão, como verificamos neste capítulo, constituíram uma ordem discursiva para a escrita da sua

história em livros e manuais escolares a partir da segunda metade do século XIX. Temáticas como as

justificativas para a escravidão africana, o tráfico negreiro, o cotidiano do cativeiro, as resistências, os

hábitos e costumes, as particularidades da escravidão brasileira e as influências deste elemento na formação

da nacionalidade têm sido privilegiados pelos autores na composição das imagens do negro em seus

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manuais escolares. E, neste caso também, como analisaremos neste capítulo, os autores, dentro de suas

particularidades e contextos, não fugiram ao roteiro apresentado por estes ilustres intérpretes do Brasil do

século XIX.

Em suma, ao longo de Colônia(s) de Identidades, nós nos propusemos a fazer uma leitura das

imagens dos índios, portugueses e negras elaboradas pelos autores de manuais escolares de História,

procurando compreender como e por que eles criaram seus modelos de interpretação, ao escrever suas

versões didáticas para a história nacional. A nossa intenção foi mostrar como eles, cada um a seu modo,

amparados em ferramentas conceituais como raça, nação e civilização, criaram estes sujeitos históricos.

Procuramos, ainda, evidenciar o que houve de permanências e mudanças na arte de construir estas

personagens históricas (o índio, o português e o negro) e as possíveis implicações políticas, sociais,

ideológicas e culturais das escolhas feitas pelos autores ao forjarem o índio, o português e o negro que

deveriam povoar os seus manuais escolares, sujeitos este que acreditavam ou faziam crer como

“verdadeiros”, fiéis à História.

Nosso trabalho, por fim, inspirou-se no conselho dado por Paul Gilroy aqueles que têm se dirigido

ao front de batalha contra as práticas racistas presentes no mundo contemporâneo. O autor de Against Race

considerou que para contrapormo-nos ao racismo, era urgente denunciar o caráter exclusionista da

modernidade liberal e de seu discurso humanista como uma grande fraude da história da humanidade:

“Proponho esta denúncia, não para endossar o poder da ‘raça’ como uma categoria para se

compreender o desenvolvimento histórico e social humano. De fato, reinflar o conceito de

modo que ele permaneça significativo e poderoso seria replicar o próprio fracasso que eu

estou tentando esclarecer. Reconhecer o poder da raciologia, o qual é usado aqui como um

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termo abreviado para uma variedade de modos de pensar reducionistas e essencializantes

que são tanto de caráter biológico como cultural, é uma parte essencial para confrontar o

contínuo poder da ‘raça’ para orquestrar nossas experiências sociais, econômicas, culturais

e históricas.”34

Feitas as devidas apresentações das razões de estarmos aqui e a que viemos, deixamos aos leitores possíveis a

tarefa de enfrentar o território ainda desconhecido do nosso escrito, para ser descoberto e apropriado.

Sintam-se a vontade para se acolherem na hospitalidade sem propriedade de quem oferece este texto possível

para a reflexão histórica, na esperança de imaginar e de viver outras possibilidades de existência para além

das linhas de exclusão e das grades das identidades fixas. Para que histórias como a que foi narrada no

começo desta introdução não se repitam nunca mais.

Campinas, Inverno de 2004.

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NOTAS:

1 Por uma questão de ética, optamos por não fazer referência à identidade verdadeira do professor. O nome Adolfo Lobato é fictício. Qualquer relação do seu nome com o historiador Francisco Adolfo Varnhagen ou com o escritor Monteiro Lobato é mera coincidência. 2 Para uma análise do pensamento de Gobineau, conferir: Tzvetan Todorov, Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993) p. 142-152. 3 Conferir sobre o assunto: Stephen Jay Gould, A falsa medida do homem, 2a ed. (São Paulo, Martins Fontes, 1999). 4 Para Marilena Chauí, “O discurso competente é o discurso instituído. É aquele no qual a linguagem sofre uma restrição (...) não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância”. Dentro desta lógica discursiva, “o homem passa a relacionar-se com a vida, com seu corpo, com a natureza e com os demais seres humanos através de mil pequenos modelos científicos nos quais a dimensão propriamente humana da experiência desapareceu” [Marilena Chauí, Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas (São Paulo, Moderna, 1981) p. 7, 12. 5 Pensamento raciológico ou raciologia, de acordo com Paul Gilroy, tem significado a maneira como a modernidade catalisou distintos regimes de verdade, ou seja, “os modos como ‘raças’ particulares foram historicamente inventadas e socialmente imaginadas”, forjando-se um discurso sobre a raça. Conferir: Paul Gilroy, Against Race: Imagining political Culture Beyond the Color Line (Cambridge/Mass., The Belknap Press of Harvard University Press, 2000) p. 58. 6 Para uma reflexão sobre o conceito de identidade no mundo pós-moderno, conferir: Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, 7a ed. (Rio de Janeiro, DP&A, 2002); Tomaz Tadeu Silva, Documento de Identidade: Uma introdução às teorias do currículo, 2a ed. (Belo Horizonte, MG, Autêntica, 2001). 7 Para auxiliar na seleção dos manuais escolares analisados, amparamo-nos nas orientações de Circe Maria F. Bittencourt, no artigo “Livros didáticos entre textos e imagens”, in O saber histórico na sala de aula, 2a ed. (São Paulo, Contexto, 1998) p. 71-74. 8 Luzia Margareth Rago & Renato A. de Oliveira Gimenes (orgs.), Narrar o passado, repensar a história (Campinas, SP, IFCH/UNICAMP, 2000) p. 10-1. 9 Roger Chartier, A História Cultural: entre práticas e representações (Lisboa, DIFEL, 1990) p. 13-28. 10 Ibid., p. 16-7. 11 Ibid., p. 18. 12 Ibid., p. 26-8. 13 Patrícia de Santana P. Chagas, “Em Busca da Mama África: Identidade africana, cultura negra e política branca na Bahia”, Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Campinas, SP, IFCH/UNICAMP (2001) p. 07. 14 Conferir: Paul Gilroy, Against Race: Imagining political Culture Beyond the Color Line, capítulo II – “Modernity and Infrahumanity” – e capítulo III – “Identity, Belonging, and the Critique of Pure Sameness”. 15 Para uma discussão sobre a noção de retórica na História, conferir: Dominick LaCapra, “Rhetoric and History”, in History & Criticism (Ithaca e London, Cornell University Press, 1985) p. 36-43. 16 Para abordar o conceito de prática discursiva avizinhamo-nos das orientações traçadas por Robert Miles, em Racism [(Londres; New York, Routledge, 1989) p. 69, 74] e Michel Foucault, em Arqueologia do saber [(Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1986)].

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17 Conferir: Circe Maria Fernandes Bittencourt, “Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar”, Tese de Doutorado em História Social, São Paulo, FFLCH/USP (1993). 18 Conferir: Edward Said, Orientalismo – O Oriente como Invenção do Ocidente (São Paulo, Companhia das Letras, 1990). 19 Ciro Flávio de Castro Bandeira de Melo, “Senhores da História: a construção do Brasil em dois manuais de História na segunda metade do século XIX”, Tese de Doutorado em Educação, São Paulo, FEUSP (1997) p. 60. 20 Para uma análise sobre a história do IHGB, conferir: Lilia K. Moritz Schwarcz, Guardiões da nossa historia oficial (São Paulo, Idesp, 1989). 21 Para saber sobre a vida e a produção didática do autor d’A Moreninha, conferir: Selma Rinaldi de Mattos, O Brasil em Lições: A história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de Macedo (Rio de Janeiro, Access Editora, 2000). 22 Thais Nivia de Lima e Fonseca, “‘Ver para compreender’: arte, livro didático e a história da nação”, in Lana Mara de Castro Siman & Thais Nivia de Lima e Fonseca (orgs.), Inaugurando a História e construindo a nação: discursos e imagens no ensino de História (Belo Horizonte, MG, Autêntica, 2001) p. 93. 23 Patrícia S. Hansen, “João Ribeiro e o Ensino da História do Brasil”, in Ilmar R. de Mattos (org.), Histórias do ensino da História no Brasil (Rio de Janeiro, Access Editora, 1998) p. 45. 24 Thais Nivia de Lima e Fonseca, “‘Ver para compreender’: arte, livro didático e a história da nação”, in Lana Mara de Castro Siman & Thais Nivia de Lima e Fonseca (orgs.), Inaugurando a História e construindo a nação: discursos e imagens no ensino de História, p. 96. 25 Conferir: Circe Maria Fernandes Bittencourt, Pátria, Civilização & Trabalho: o ensino de história nas escolas paulistas (1917-1939) (São Paulo, Edições Loyola, 1990). 26 Conferir: Luis Reznik, “Tecendo o amanhã (A História do Brasil no ensino secundário: programas e livros didáticos, 1931 a 1945)”, Dissertação de Mestrado em História, Niterói, RJ, IFCS/UFF (1992). 27 Co-autores: Carla de Queiroz (Professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), Sylvia Barboza Ferraz (Professora da escola de Comunicação e Artes e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), Virgílio Noya Pinto (Professor da Escola de Comunicação e Artes e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), assessoria didática complementar de Laima Mesgravis (Professora de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, e do Colégio Prof. Gualter da Silva). 28 Conferir: “O saber em discurso, projetos e leis: A história ensinada no Brasil entre o II pós-guerra e a ditadura militar”, in ETD – Educação Temática Digital (Campinas, SP, vol. 04, n. 02, jun. 2003) pp. 17-34. 29 Conferir: Elza Nadai, “O ensino de História: trajetória e perspectivas”, in Revista Brasileira de História (São Paulo, vol. 13, n. 25/26, set. 1992/ago. 1993) pp. 143-62. 30 Conferir: Selva Guimarães Fonseca, Caminhos da História Ensinada (Campinas, SP, Papirus, 1993). 31 Thais Nivia de Lima e Fonseca, “‘Ver para compreender’: arte, livro didático e a história da nação”, in Lana Mara de Castro Siman & Thais Nivia de Lima e Fonseca (orgs.), Inaugurando a História e construindo a nação: discursos e imagens no ensino de História, p. 107. 32 Conferir: Kazumi Munakata, “Histórias que os livros didáticos contam, depois que acabou a ditadura no Brasil”, in Marcos Cezar Freitas (org.), Historiografia brasileira em perspectiva (São Paulo, Contexto/EDUSF, 1998), p. 172-80. 33 Thais Nivia de Lima e Fonseca, “‘Ver para compreender’: arte, livro didático e a história da nação”, in Lana Mara de Castro Siman & Thais Nivia de Lima e Fonseca (orgs.), Inaugurando a História e construindo a nação: discursos e imagens no ensino de História, p. 111.

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34 “I propose this denunciation, not to endore the power of ‘race’ as a category for comprehending human social and historical development. Indeed, to reinflate the concept so that it remains a meaningful and powerful one would be to replicate the very failing that I am trying to illuminate. Recognizing the power of raciology, wich is used here as a shorthand term for a variety of essentializing and reductionist ways of thinking that are both biological and cultural in character, is an essential part of confronting the continuing power of ‘race’ to orchestrate our social, economic, cultural, and historical experiences.” Conferir: Paul Gilroy, Against race: Imagining political Culture Beyond the Color Line, p. 72.

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________________________________________Primeiro Capítulo

IMAGENS DO ÍNDIO

“Se os pontos de vista aqui indicados merecem a aprovação do historiador brasileiro, ele

igualmente deverá encarregar-se da tarefa de investigar minuciosamente a vida e a história do

desenvolvimento dos aborígines americanos e estendendo as suas investigações além do tempo da

conquista, perscrutinará a história dos habitantes primitivos do Brasil, história que por ora não

dividida em épocas distintas, nem oferecendo monumentos visíveis, ainda está envolta em

obscuridade, mas que por esta mesma razão excita sumamente a nossa curiosidade.

Que povos eram aqueles que os portugueses acharam na Terra de Santa Cruz, quando estes

aproveitaram e estenderam a descoberta do Cabral? Donde vieram eles? Quais as causas que os

reduziram a esta dissolução moral e civil, que neles não reconhecemos senão ruínas de povos? A

resposta a esta solução e outras muitas perguntas semelhantes deve indubitavelmente preceder ao

desenvolvimento de relações posteriores. Só depois de haver estabelecido um juízo certo sobre a

natureza primitiva dos autóctones brasileiros, poder-se-á continuar a mostrar, como se formou o

seu estado moral e físico por suas relações com os emigrantes; em que estes influíram por leis e

comércio, e comunicação, sobre os índios; e qual a parte que toca aos boçais filhos da terra no

desenvolvimento das relações sociais dos portugueses emigrados”.

Karl Friedrich Philipp von Martius,

“Como se deve escrever a história do Brasil” [1844].

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Imagens do Índio

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___________________________ Imagens (didáticas) da “raça cor de cobre ou americana”

Na sua premiada monografia “Como se deve escrever a história do Brasil”, publicada na Revista do IHGB,

em 1844, o naturalista e viajante bávaro Karl F. Philipp von Martius, sócio honorário do IHGB, ao lançar

as linhas mestras de seu projeto histórico capazes de garantir uma identidade ao Brasil, pautado na idéia da

mescla dos três elementos raciais formadores (português, índio e negro), elaborou algumas diretrizes

necessárias para se escrever sobre os índios (a “raça cor de cobre”) e sua história como parte da história da

recém independente nação1.

Para os que se aventurassem neste ofício, von Martius prescrevia que se tivesse em mente as

seguintes perguntas ao tratar dos chamados “habitantes primitivos do Brasil”:

“Que povos eram aqueles que os portugueses acharam na Terra de Santa Cruz, quando

estes aproveitaram e estenderam a descoberta de Cabral? De onde vieram eles? Quais as

causas que os reduziram a esta dissolução moral e civil, que neles não reconhecemos

senão ruínas de povo?”2.

Encontrar respostas para estas perguntas, na percepção deste naturalista, era fundamental para se

compreender o desenvolvimento de relações posteriores. Só após haver decifrado o “juízo certo” sobre a

natureza primitiva dos “autóctones” nacionais, o historiador poderia continuar a mostrar como se

constituiu o estado moral e físico dos índios em suas relações com o elemento colonizador3.

A partir deste ponto, poder-se-ia imaginar que o elemento colonizador influiu por meio de leis,

comércio e comunicação sobre os índios e também qual a parte que coube aos “boçais filhos da terra” no

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Imagens do Índio

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desenvolvimento das relações sociais dos portugueses emigrados. Em suma, von Martius queria saber a

importância deste afluente no grande rio da civilização brasileira.

Aos interessados na escrita de uma história nacional, von Martius propunha a necessidade do estudo

das línguas dos índios como os seus “documentos históricos” mais importantes. Para ele, através da

atividade etnográfica seria possível aprender sobre os mitos, lendas, teogonias e geogonias dos

“autóctones”4.

Neste cenário de formulação de uma história nacional, em 1854 surgiu da pena de Francisco Adolfo

de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro e natural de Sorocaba, a História geral do Brasil. Nesta obra, o

autor iniciou sua narrativa com uma descrição geral da natureza brasileira, uma descrição feita por alguém

que a “descobre”, que a via pela primeira vez. Descreveu a flora e a fauna da nova terra como se estivesse

olhando do mar, a partir da caravela de Pedro Álvares Cabral. E nesta paisagem, ele visualizou os

indígenas.

Em seu livro, Varnhagen descreveu esses “homens exóticos”, habitantes duma natureza exuberante

e sem riquezas fáceis, com interesse; contudo, sem muita afeição. Para o autor, os indígenas não passavam

de “uma gente” nômade que vivia em cabildas, morava em aldeias transitórias, pouco numerosa em relação

à extensão do território:

“Por toda a extensão que deixamos descrita não havia povoações e que descobrissem em

seus habitantes visos de habitação permanente. As aldeias se construíam de modo que

apenas duravam uns quatro anos. No fim deles, os esteios estavam podres, a palma dos

tetos já os não cobria, a caça dos contornos estava espantada; e, se a tribo ou cabilda era

agricultora, as terras em grande distância pelo arredor estavam todas rateadas e cansadas,

pelo que era obrigada a mudar de residência. Os lugares das aldeias abandonadas se

ficavam denominando taperas. Tais aldeias não eram em grande número; e muitas

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cabildas, nem sequer em povoações provisórias se juntavam; pelo que o país vinha a estar

mui pouco povoado”5.

Varnhagen pintou os índios nos seus escritos como violentos, pois mantinham guerras de extermínio

entre si; bárbaros, os indígenas não nutriam sentimentos de patriotismo. Nos selvagens, segundo ele, não

habitava nem mesmo o sentimento de apego a um pedaço de terra ou bairrismo. Por conta desta ausência

de amor à pátria, “essas gentes” se limitavam a tão curtos horizontes as idéias de sociabilidade, que

geralmente a não prolongavam para além das divisas de sua tribo ou maloca, a qual não dominava mais

território que os dos contornos do distrito que temporariamente ocupavam6.

Sem amor à pátria, sentimento muito caro a Varnhagen, medida de régua para o seu conceito de

civilização, essas “gentes vagabundas”, em constante estado de beligerância, povoavam o terreno que era

do Brasil (imperial), e constituindo, no entanto, uma só raça ou grande nação; isto é, eram procedentes de

uma raiz comum e falavam dialetos da mesma língua – a geral ou tupi.

Essa unidade de raça e língua iria, por um lado, desde Pernambuco até o porto dos Patos, e pelo

outro lado quase até as cabeceiras do rio Amazonas. Desde São Vicente até os mais distantes sertões, onde

nasciam vários afluentes do rio da Prata, que na visão de mundo do autor de História geral do Brasil poderia

tê-los levado à formação de uma única nação, serviu de elementos facilitadores do progresso das conquistas

feitas pelos colonos do Brasil.

Para Guilherme Luz, a análise filológica realizada por Varnhagen, em História geral do Brasil, era

utilizada para que o autor conseguisse fundamentar sua teoria de que os indígenas falantes da língua geral

eram todos de uma só “nação” ou “raça”, os tupis, sendo todas as denominações para as tribos diferentes,

não mais do que insultos, não podendo considerá-las nomes de etnias diferentes7.

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Divididos, como estavam os indígenas, apenas poderiam acudir aos interesses ditados pelo “instinto

vital”. Varnhagen parecia impressionado com o fato de não ter aparecido um só chefe que estabelecesse

um centro poderoso e unificasse estas tribos numa única nação, como houve no Peru:

“cuja aristocracia, livre de cuidar só em resguardar-se das intempéries e em adquirir

diariamente, o necessário alimento, pudesse pensar no bem dos seus semelhantes,

apaziguando as suas contendas, e civilizando-os como o exemplo, e servindo-lhes de

estímulo, para se distinguirem e procurarem elevar-se”8.

Nesse trecho, Varnhagen parecia justificar diante de seus leitores a necessidade da obra civilizatória

realizada pelos colonos portugueses no Brasil, berço do Brasil Império, uma vez que os habitantes da terra

não tinham capacidade mental para constituírem a noção de unidade territorial, racial e lingüística, alicerces

fundamentais para a formação de um Estado-nação. Na sua leitura, se a intervenção da Providência Divina

não tivesse acudido estas pobres almas com a bandeira da fé, da lei e do governo, trazida pelas

embarcações portuguesas, eles perpetuariam no “abençoado solo a anarquia selvagem, ou viriam a deixá-lo

sem população”9.

Para fundamentar seu argumento colonizador, o secretário do IHGB trouxe-nos notícias mais

específicas da situação em que foram encontradas “as gentes” que habitavam o Brasil em termos de

organização social e política. Varnhagen definiu que de tais povos na infância não havia história, apenas

etnografia. E era através desta etnografia que o historiador do Império de Dom Pedro II apresentava-nos

as imagens dos indígenas.

Os laços de família “dessa gente”, primeiro elemento da organização social da visão de mundo

representada por Varnhagen, eram muito frouxos. Os filhos não respeitavam a figura materna e só temiam

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os pais e tios. Em matéria de amor, não havia sentimentos morais. As delícias da verdadeira felicidade

doméstica, na sua leitura, quase não podiam ser apreciadas e saboreadas pelo homem selvagem.

Por viver rodeado de “feras e homens-fera”, segundo o autor, não poderia desenvolver-se nele a

parte afetuosa da natureza humana: a amizade, a gratidão, a dedicação. Eram beneficiados somente nos

dotes do corpo e nos sentidos, mas o mesmo não acontecia com o espírito do selvagem. Eram, na sua

leitura, falsos e infiéis, inconstantes, ingratos, desconfiados, impiedosos, despudorados, imorais, insensíveis,

indecorosos. Brutais, passavam a vida habitual de forma monótona e triste, entrecortada pelos sobressaltos

da guerra, festas e pajelanças. Aos 30 anos, o selvagem apresentava uma expressão melancólica ou feroz.

Congregava num único ser os piores vícios: a hostilidade, a antropofagia, a sodomia, a vingança, o hábito

de comer terra e barro. Varnhagen, embora negasse, não poupou tinta para fazer uma pintura pouco

lisonjeira “dessas gentes”:

“que mais ou menos errantes desfrutavam, sem os benefícios da paz nem da cultura do

espírito, do fértil e formoso solo do Brasil – antes que outras mais civilizadas as viessem

substituir, conquistando-as e cruzando-as com elas, e com outras trazidas d’além dos

mares pela cobiça”10.

Varnhagen, assim como o próprio von Martius11, havia feito um longo estudo sobre os indígenas:

línguas, usos, armas, indústria, idéias religiosas, organização social, trabalho, guerra e medicina, etc. Com

base nas informações colhidas, o autor se surpreendeu que houvesse ainda poetas e filósofos que

encontrassem no estado selvagem a maior felicidade do homem.

Os indígenas passavam por privações, fome, não tinham lei, religião, viviam na selvageria, na

ferocidade. Divididos os tupis em cabildas insignificantes, que se evitavam e guerreavam, apenas atendiam

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aos interesses ditados pelo “instinto vital”. A sorte da mulher era julgada tão inferior à do homem que

muitas mães matavam as filhas ao nascerem. As mulheres eram pouco mais do que escravas. As descrições

dos rituais de sacrifícios humanos, a antropofagia, feitas por Varnhagen, davam bem ao seu leitor o nível de

barbárie dos nativos. Ao escrever sobre os horrores praticados por “essa gente”, ele fez as seguintes

considerações:

“Desgraçadamente o estudo profundo da barbárie humana, em todos os países, prova

que, sem os vínculos das leis e da religião, o triste mortal propende tanto à ferocidade, que

quase se metamorfoseia em fera (...) As leis a que o homem quis voluntariamente sujeitar-

se, depois de mui tristes sofrimentos do mesquinho gênero humano antes de as possuir,

não têm outro fim senão faze-lo mais livre e mais feliz do que seria sem elas (...)”12.

Para curar a alma selvagem, Varnhagen prescreveu os raios de luz da civilização e do evangelho. Sem

os vínculos da lei e da religião o ser humano tenderia à ferocidade. As leis tornavam feliz o homem que se

sujeitava a elas. O direito, a justiça e a razão eram melhores do que o instinto, o apetite e o capricho. O

índio selvagem rodeado de perigos não sabia o que era tranqüilidade d’alma porque receava e temia a tudo.

Ele era inábil para concorrer para a melhoria da situação da humanidade, necessitando, portanto, de tutela.

Ao final do texto sobre os índios, o historiador Varnhagen fez uma abordagem hipotética sobre as

origens dos tupis, segundo a qual eles teriam vindo da Ásia Menor, derrotados na guerra de Tróia, fugindo

das crueldades que se cometiam contra os derrotados. Os seus ancestrais teriam navegado o mar

Mediterrâneo, permanecido no Egito por algum tempo e, finalmente, teriam enfrentado o oceano e

chegado ao território que corresponde ao Brasil. Para referendar a hipótese apresentada, o autor traçou

pontos de convergência entre a cultura indígena e a egípcia:

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“A forma das canoas de guerra dos tupis, semelhantes às antigas pentecontores, o uso das

outras canoas de periperis, análogas, como dissemos, às de papiros dos egípcios, as

pequenas canoinhas ubás, nome que também se encontrava no egípcio, sob a forma de

báa e uáa, o uso do maracá, antigo sistrum, as superstições por uma ave noturna, o serem

curandeiros os sacerdotes, o uso da circuncisão, que hoje temos averiguado que havia

chegado até aos próprios guaranis do Paraguai, e finalmente certa semelhança entre o tupi

e o egípcio antigo, não só nas formas gramaticais, como especialmente em um grande

número de palavras às vezes até idênticas) (...)”13.

Para Varnhagen, não havia dúvidas que os “caribs” ou tupis tinham, com inconfessáveis crueldades,

invadido uma grande parcela do lado oriental do continente americano, cujos anteriores habitantes, bem

em maior atraso, eram, em geral, mansos e timoratos. O dia da expiação desse povo, para o autor, por suas

atrocidades havia chegado junto com o descobrimento e a colonização, efetuados pela Europa cristã e

civilizada14.

Ao falar da influência dos indígenas na história colonial, Varnhagen percebeu que os colonos

adotaram dos bárbaros o uso de tabaco; o uso do milho e da mandioca, e todos os meios de cultivar e

preparar estas duas substâncias alimentícias, bem como as abóboras, o feijão entre outros. Além disso,

“Dos índios adotaram também o uso da farinha de mandioca, bem como o das folhas de

planta ou maniçoba, como hortaliça; para os que usaram também das folhas do taiá ou

taiobas, e dos olhos tenros das aboboreiras jerimus, cujos guisados chamaram

cambuquira. Além disso, cultivavam os carás e inhames, e ainda mais o excelente aipim ou

mandioca doce, comido assado simplesmente ao borralho, e sem preparativos. – dos

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índios adotaram os nossos o pirão. Mingau é também nome dos tupis, que chamavam ao

caldo de mingan”15.

Varnhagen observou ainda a influência indígena nas construções das casas, na agricultura, na

indústria, na navegação, na pesca e no vocabulário16.

Na maioria dos livros ou manuais escolares de História do Brasil, como veremos neste capítulo,

produzidas desde o Segundo Reinado até os dias mais recentes, as imagens das populações indígenas têm

sido criadas e representadas ainda inspirada nos estudos de von Martius e Varnhagen; ou seja, a partir da

ausência de certas instituições ou negação de determinados traços culturais da civilização ocidental. Em

síntese, as caracterizações assemelham-se muito e são desenvolvidas com base nas seguintes categorias

descritivas, não necessariamente assim ordenadas: origens e classificação; aspectos físicos e usos e

costumes; organização social e política; línguas e cultura; e influências para a formação da sociedade

nacional17. Mesmo os autores que procuravam retratar as sociedades indígenas de outra perspectiva, isto é,

como portadoras de cultura em muitos pontos correspondentes à européia, fizeram-no a partir de tais

categorias.

Nosso objetivo neste capítulo, assim como nos demais, foi realizar uma leitura das representações

dos índios, a chamada “raça cor de cobre” por von Martius, elaboradas pelos autores de manuais escolares

de História, procurando compreender como e por que eles criaram seus modelos de interpretação, ao

escrever suas versões didáticas para a história nacional. A intenção é mostrar como eles, cada um a seu

modo, amparados em ferramentas conceituais como raça, nação e civilização, forjaram estes sujeitos

históricos. Procuramos, ainda, evidenciar o que houve de permanências e mudanças na arte de construir

estas personagem histórica e as possíveis implicações políticas, sociais, ideológicas e culturais das escolhas

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feitas pelos autores ao fabricarem o índio que deveria povoar os seus manuais escolares, sujeito este que

acreditavam ou faziam crer como “verdadeiros”, “reais”.

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____________________________________________________Joaquim Manuel de Macedo

Marcado por este cenário de construção de uma memória nacional no Brasil imperial, em Lições de História

do Brasil para o uso das escolas de instrucção primaria, publicado no ano de 1865, de Joaquim Manuel de Macedo,

ilustre secretário e orador do IHGB, professor de História e Geografia do Brasil do Imperial Colégio Pedro

II e romancista, a temática indígena apareceu logo na quinta e sexta lições (“O Brasil Geral – O Gentio do

Brasil” e “Gentio do Brasil – continuação”).

Após apresentar uma descrição do Brasil através de suas maravilhas na vegetação, zoologia, na

ornitologia, pela riqueza do solo, pelos rios, e o bem dos ares e águas que possui em seu vasto território, à

semelhança de Varnhagen, Macedo finalizou com a introdução do elemento nativo:

“O Brasil, o immenso paiz que na América veio a pertencer a Portugal, occupa quase

metade da península meridional do Novo Mundo e se estende do oriente para o occidente

desde o Oceano Atlantico até perto dos Andes, e desde quase o rio da Prata, ao sul, até o

Oyapock ao norte. No seu solo correm os maiores rios do mundo, levantam-se

admiraveis serras, dilatam-se extensos e fertilíssimos valles: em seu litoral abrem-se

magestosas e plácidas bahias, e um grande numero de ilhas enriquecem ainda mais esta

feliz região.

O reino mineral disputa em opulência com o vegetal e animal; a uberdade das terras não

póde ser excedida pelas mais fecundas de outras regiões, e a extensão do paiz offerece

uma variedade de climas, a que corresponde uma infinita variedade de producções.

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No meio porém d’esta natureza opulenta e de proporções colossaes, o que se apresentou

aos olhos dos descobridores e conquistadores do Brasil menos digno de admiração e mais

mesquinho foi o gentio que habitava esta vária região”18.

Embora o assunto fosse abordado longamente nessa lição, o autor, amparado pela idéia de civilização

corrente na época, tratou a presença do índio como um dado ocasional e pontual para definir a conquista

das terras brasileiras. A sua presença fazia parte do movimento evolutivo do homem branco na

constituição do território base da nação brasileira. Para o autor, este elemento formador da nacionalidade

brasileira apareceu no cenário da história como capaz de ter idéia de pátria, defendendo o território contra

um inimigo comum, um estrangeiro como os holandeses, por exemplo.

Para o professor Macedo, o índio apenas podia ser julgado em suas ações por deduções inseguras

adquiridas através dos primeiros cronistas da terra recém descoberta19. Neste aspecto, o autor viu o nativo

como objeto do passado e ao descrever a sua vida fê-lo como um etnólogo, apontando diferenças e

curiosidades. No seu texto didático, elaborado a partir de Varnhagen, o autor afirmou que o índio não seria

tratado com um encanto romanesco, acima da esfera em que ele estava20, nem o confundiria com os

animais, dotados apenas de instinto.

Com base nessas premissas, Macedo descreveu os selvagens tendo por referência clara, além do livro

de Varnhagen, o trabalho dos naturalistas Johann Baptist von Spix e von Martius21. Nas suas conclusões,

apresentou sempre como hipóteses as origens do homem americano, evitando afirmações definitivas.

Deixava evidente que em suas origens, o elemento indígena nada tinha a ver com o elemento negro, pois

no cadinho das raças elas eram diferentes, sendo a “raça cor de cobre” superior à negra.

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Ao longo das páginas da lição, ele tratou da nomenclatura indígena, os traços físicos, os enfeites,

usos e costumes, formas de relacionamento, com rápida explicação de cada uma, às vezes, dando ênfase

para as curiosidades.

Nas Lições de História do Brasil para o uso das escolas de instrucção primaria, a descrição do “caracteres

físicos” 22, “os traços principais que distinguiam um ser de todos os outros seres, ou uma raça das outras

raças”, colocava em relevo os atributos de seres humanos, por vezes de maneira positiva e favorável –

“compleição forte e robusta”23. A descrição das demais características, contudo, era assinalada quase

sempre por colocar em destaque de ausências e elementos incompletos, que se não eram suficientes para

negar aos indígenas o atributo de humanidade, assemelhando-se a animais, bastavam para o autor rotulá-los

como gente bárbara ou selvagem e reservar-lhes um lugar diferente.

As ausências e lacunas postas em evidência nos “gentios” eram identificadas com base numa medida

ou procedimento comparativo que adotava como padrão a visão de mundo do seu leitor-aluno.

Macedo, assim como outros autores posteriormente, apresentou descrições das práticas da guerra e

da antropofagia indígenas destituídas da sua racionalidade ritual, mas sim como indício do grau inferior de

civilização dos índios:

“E deviam estar assim atrazados em civilisação, pois que estavam sempre occupados em

guerrear. Em regra geral faziam a guerra sem prévia declaração, e atacavam a taba inimiga

inesperadamente, arrojando settas que, para incendial-a, levavam perções de algodão

inflamado. O ataque era dado ao som do maracá, das inubias e de horríveis gritos. Nos

combates em campo aberto seguia aos tiros de flexas a luta corpo a corpo com o tacape,

com os dentes, e com as unhas; se a victoria decidia-se pelos atacados, era rápida e

retirada dos atacantes; se estes venciam, a taba ficava saqueada e arrasada, e as roças em

completa destruição.

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No mar e nos grandes rios não eram menos terríveis os combates. O maracá soava atado á

proa da igara, eram armas, além dos arcos e flexas e das tacapes, os remos ou apecuitás.

Nas pelejas aquelles que não podiam mais lutar e vencidos se reconheciam, largavam as

armas e punham as mãos sobre as cabeças, entregando-se prisioneiros, e eram levados

para a aldeã dos vencedores e por estes com o maior desvelo tratados até que chegava o

dia aprazado para o mais horrível sacrifico.

A hora fatal, o prisioneiro rodeado de toda a cabilda era, ao som de uapy, conduzido

amarrado com a mussurana para a acara, dançando as mulheres em torno d’elle; apparecia

em breve o executor com todos os ornatos de festa, e trazendo a ivarapema, tacape

enfeitada e destinada a estes sacrifícios. Então algoz e victima injuriavam-se mutuamente;

o primeiro procurava aterrar o segundo, este procurava a vingança d’aquelle; a um golpe

de ivarapema enfim era morto o prisioneiro, o seu corpo feito em pedaços pelas velhas, e a

esta scena de ferocidade seguia-se outra de anthropophagia e dias de festas, danças e de

embriagues.

Em algumas tribus não se atava o prisioneiro, dava-se-lhe ao contrario um tacape, e o

sacrificio era sempre o termo de uma luta desesperada entre a victima e os guerreiros da

cabilda” 24.

Belicosos e vingativos por natureza, os índios também eram retratados por Macedo como

antropófagos, mas o eram por vingança apenas. Lembremos que o caráter violento dos nativos foi

amplamente destacado por Varnhagen, embora o último afirmasse que não havia carregado tanto na tinta

na sua descrição.

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Ao comparar a hospitalidade indígena com a dos árabes, para o autor d’O Moço louro trouxe para o seu

leitor-aluno o entendimento da superioridade de alguns povos detentores da civilização sobre outros, ou

seja, ele igualava os nativos americanos com os árabes dentro de uma escala de evolução civilizatória:

“Desconfiado ao primeiro accesso de um desconhecido, logo depois fácil e franco, o

gentio se uma vez era illudido, não respeitava mais nem ajustes, nem laços, nem

consideração alguma. Hospitaleiro, como os Arabes, até com o proprio inimigo que o

procurava, agreste, simples, inculto e barbaro, zeloso mais que tudo da sua independencia,

audaz e bravo nos combates, cruelissimo na vingança, astucioso e sagaz, indolente na paz,

impávido e heróe em face da morte, o gentio tinha todos os defeitos e vicios do selvagem,

mas possuia tambem alguns sentimentos nobres e generosos”25.

Não podemos esquecer que Varnhagen apontava hipoteticamente como local de origem dos tupis,

na sua História geral do Brasil, a Ásia Menor e que no período em que estes autores escreviam suas obras

ocorriam as conquistas imperialistas européias do século XIX sobre a África e a Ásia. As descrições dos

costumes árabes e de outros povos do Oriente eram comuns na literatura européia, destacando-se suas

excentricidades, ou seja, o exótico, o diferente26.

Após apresentar uma imagem não muito favorável do índio, o autor amenizou o assunto com a

abordagem da família indígena. Devemos observar que, ao longo do século XIX, as relações políticas eram

vistas como relações da “casa”, no sentido de unidade e adaptadas às relações sociais e políticas, no caso,

externas. Uma boa administração externa era reflexo, em princípio, de uma boa administração interna da

casa27. Por outro lado, a noção de família estável e educada completava a idéia de “boa sociedade”, que

deveria gerir o todo social28. Com uma descrição amena da família indígena, Macedo suavizava esta

presença indígena na composição do povo brasileiro:

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“O gentio do Brasil tinha laços de familia, embora muito limitados. A autoridade dos pais

era reconhecida pelos filhos, e pelos pretendentes á posse das filhas. Aquelle cuja prole

era numerosa, gozava de grande influencia na sua horda.

Em regra geral eram observados nos casamentos os tres grãos principaes de

consangüinidade; nenhum gentio podia tomar por mulher nem sua mãi, nem sua irmã,

nem sua filha; o tio porém podia desposar a sobrinha.

O casamento do selvagem não era celebrado com cerimonia alguma religiosa. O

pretendente pedia a mulher desejada ao pai, que, ou lh’a concedia logo, ou punha em

tributo o empenho do noivo, fazendo-o trabalhar por tempo indeterminado em suas

roças. Ás vezes dava-se o caso de tomar um homem para sua futura mulher uma menina,

a quem elle criava, como se fora sua filha, durante os seus annos infantis.

A mulher que sobrevivia ao marido, casava com o irmão d’este; a sua condição porém era

sempre menos a de uma companheira, do que a de uma escrava. Nem mesmo mãi, se

sentia mais elevada, porque os filhos eram estranhos ás condições de suas mais, e sujeitos

somente ás de seus pais.

O filho era amamentado durante dous, tres e quatro annos; ao entrar na segunda infancia

seguia o pai, que o adestrava no manejo do arco e da tacape, em todos os exercicios

proprios da vida que o esperava. A filha aprendia com sua mãi os misteres que se

incumbiam á mulher naquella vida selvagem. Filho, ou filha em quanto pequeno, era nas

longas viagens carregados aos hombros de sua mãi. Ao menino ou á menina dava o pai o

nome de uma arvore, d euma ave, de uma fera, e por conta do filho ficava ainda o tomar

outro nome, o seu de guerra, merecido e conquistado nos combates”29.

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Quanto às relações sociais do “gentio brasileiro”, o autor discutiu de qual “tronco” derivava o índio e

concluiu que todas as tribos eram originárias de um único tronco, ou seja, formavam uma só nação. A

partir desta afirmação, Macedo trabalhou com o seu leitor-aluno conceitos bases como os de nação e de

religião, fundamentais para ele defender a idéia de unidade e centralidade como necessárias para o bom

funcionamento da sociedade civilizada.

Os índios, na sua leitura, formavam uma só nação, mas não formavam, porém um só corpo. Este era

o grande atraso da sua civilização. A ausência de uma liderança centralizadora na nação indígena era um

problema para Macedo, assim como para Varnhagen, pois as tribos se criavam para viverem mergulhadas

num território sem governo regular, sem laços sociais outros que não os de família.

Para Ciro Bandeira de Melo, o autor de Lições de História do Brasil para o uso das escolas de instrucção

primaria, projetava no leitor-aluno o contraponto que era a sua própria vida, que além de não viver numa

sociedade em guerra constante, tinha governo e Estado que a evitavam. O Brasil do Império, uma nação

civilizada, tinha, ao contrário dos índios da época do descobrimento, uma autoridade, um chefe (o

imperador D. Pedro II) que unia o povo30.

Além disso, os índios também não tinham religião, uma vez que não apresentavam no seu modo de

vida princípios que fizessem as tribos se fraternizarem. Esta falta, para Macedo, era mais uma prova que

tornava inviável a constituição de um governo comum, à moda do Império de Dom Pedro II (o único

caminho para a civilização). Vejamos como, ao tratar das relações sociais entre os gentios, o autor

construiu resumidamente, no “Quadro Synoptico da Lição VI”, a imagem destes como inconstantes,

distantes do modelo de civilização européia:

“Observações geraes: O gentio quase que não tinha relações sociaes; subvidia-se em

tribus e estas em hordas ou cabildas de algumas dezenas de famílias, e vivia desunido,

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nômade e guerreando-se constantemente. A maior parte das tribus pertencia á nação tupi

(tio) ou guarani (guerreiro) e fallava uma lingua geral, o guarani. Diz-se que o gentio que

habitava as margens do amazonas e de grande extensão do paiz, era de uma outra e muito

mais barbara nação, a tapuya.

As tribus tomavam nomes que expremião o seu orgulho, e recebiam das inimigas alcunhas

injuriosas.

Hordas: Cada horda habitava sua aldêa, taba. Duas, quatro ou seis palhoças, ocas,

cercando uma praça, ocara, cada oca, com uma a tres sahidas para a ocara, sem divisão no

interior, e servindo de abrigo a muitos selvagens aparentados ou não; no correr da oca

esteios sustentando redes, no meio d’ella fogo sempre acceso, ao longo das paredes giráos

guardando utensilios e comida; todas as palhoças ou ocas defendidas por uma trincheira de

páo, cahiçara, e cujas hastes, principalmente as da entrada, apresentavam-se com o

repugnante ornamento de caveiras do inimigo. Eis a taba.

Algumas hordas não tinham taba e dormiam em redes suspensas aos ramos de arvores, e

outras em cavernas e grutas.

Governo: O gentio não tinha governo regular. O maioral de cada horda, morubixaba,

escolhido entre os guerreiros, commandava na guerra, influia na aldêa, mas não exercia

poder absoluto. Nas grandes questões a cabilda reunia-se na ocara e ahi as decidia pelo

voto de todos.

O crime unico entre o gentio era o homicídio, e o seu castigo prompto; os pais do

assassino entregavam este aos pais da victima que a matava logo.

Religião: O gentio não tinha religião, e apenas a idéa de um Ser Supremo denunciada

pelo medo que lhe causava o trovão, tupã-cinunga, e o raio, tupã-beraba, cujo complexo era

chamado tupã ou tupana, senhor do raio. – Acreditava o gentio em diversos gênios bons e

máos, e em agouros, tendo a coruja por ave de má agouro; talvez em uma outra vida, pois

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diziam que os guerreiros valentes que morriam iam habitar as montanhas azues. Guardava a

tradição de Sumé, homem vindo de longe, que lhes ensinara preceitos de agricultura, e

desepparecêra mysteriosamente.

Os pagés, feiticeiros, augures e medicos do gentio exerciam sobre este a maior influencia,

moravam em tujupares ou em grutas e passavam pelas mais rudes e às vezes fataes provas

antes de chegarem a ser o que eram.

Civilisação: Grande era o atrazo do gentio em arte e industria. Faltavam á sua lingua as

letras F, L, e R forte; em numeração algumas tribus não passavam de cinco

determinadamente, e de cinco por diante diziam tuba, muito. Conhecia o gentio a

influencia das phases da lua sobre a caça, pesca, e corte de madeiras; e da lua se serviam

para marcar o tempo; em medicina empregava a sangria, hervas, fructos e raizes cujas

propriedades conhecia. Para accender fogo recorria ao attrito prolongado de dous pasos; e

para cortar servia-se de pedras afiadas.

Guerra & Anthropophagia: A guerra era de ordinario feita de surpreza e sem prevenção:

o gentio atacava a tabainimiga lançando sobre ella settas inflammadas; seguia-se a victoria

e a destruição da taba e das roças, ou prompta retirada, no caso contrario. No mar e nos

rios batia-se por meio das igaras. Os que no combate se reconheciam vencidos, largavam

as armas e punham as mãos sobre as cabeças. – Os prisioneiros tratados com o maior

desvelo durante alguns dias, eram depois devorados em festas horríveis. – A victima

levada para o meio da ocara, e atada com a mussurana, era insultada pelo algoz, e o

insultava tambem provocando a morte, que recebia ao golpe da tangapema, e era emfim

devorado. Seguiam-se festas e embriaguez.

Em algumas tribus o prisioneiro não era atado, e havia combate antes da morte entre a

victima e os algozes”31.

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Ao tomar esta linha interpretativa, notamos que o autor fez uma descrição do funcionamento de uma

tribo utilizando os nomes indígenas como oca, ocara, taba, caiçara, morubixaba etc. Todavia, sem fugir às

prescrições de Varnhagen, revestiu os termos com uma interpretação que tendia a valorizar a questão do

governo. Em suma, numa sociedade indígena, com falta de organização, notou Macedo, não poderia haver

lei como a civilização a entende. Sem lei, logo, não haveria governo e vida social. Não haveria civilização

sem fé, lei e rei. Não haveria, portanto, a consolidação de um contrato social.

A escrita de Macedo era sempre recheada de termos indígenas, seguidos de pequenas

complementações sempre adjetivadas. Por exemplo, os pajés eram introduzidos como feiticeiros e

adjetivados de maneira pejorativa como “charlatões ou maníacos”32. O manual encerrava a parte dedicada à

temática do “Gentio do Brasil” da mesma maneira como começara, pela impossibilidade da civilização em

função das guerras permanentes vividas pelos índios, ou seja, não existiria chance de acordo para a

construção de um projeto de nação.

Quanto ao índio como elemento formador do povo brasileiro, argumento proposto por von Martius,

Macedo deixou ao seu leitor-aluno um silêncio. O índio só apareceu no manual escolar como agente

pontual, em situações como a vivida pelo índio Poty, o Felipe Camarão da guerra contra os holandeses33

(tema muito caro ao eixo de construção narrativa da História geral do Brasil, de Varnhagen)34, ou como mão-

de-obra disputada pelos colonos e jesuítas, e neste caso, eram responsabilizados por fomentarem a

discórdia e a desunião na colônia35.

Dessa maneira, podemos perceber que Macedo não se afastou de seu mestre Varnhagen, pois ao

construir a imagem do índio como raça de bárbaros, conquistada e dominada, que perdia seu território,

aceitava integralmente a visão de superioridade do branco como civilização, religião, modo de vida e

governo.

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Por ser seu manual escolar voltado para crianças da “boa sociedade”, Macedo não deu muita ênfase

às lutas e aos combates entre os colonizadores e os “gentios”, mas descreveu com detalhes as guerras entre

os índios. Por viver este povo em guerras selvagens, segundo o autor, como bárbaros, era necessária a

intervenção da mão divina, acompanhada pela cruz da Igreja e a espada do Estado para civilizá-los. Ele

oferecia ao seu leitor-aluno, neste momento, a justificativa da conquista e sua legitimação plena pela

construção da nação brasileira que nasceria desse fato, portadora única da civilização que recebera de quem

podia oferecer, por herança, o sangue europeu.

O autor concluiu seu raciocínio com a idéia de que nas guerras contra os índios, contra a barbárie,

durante a conquista, estavam lançadas as sementes para a construção de um sentimento pátrio. Podemos

deduzir desta lição do professor Macedo que a guerra entre as tribos indígenas seria a barbárie, mas que a

guerra entre portugueses e indígenas seria uma obra civilizatória, de purificação da alma ou racial.

Esta visão do indígena não era crédito apenas dos ilustres letrados do Império, Varnhagen e Macedo,

uma vez que grande parte dos estudos do IHGB nesta época estava direcionada para a questão indígena, e

nesse Instituto encenando um debate sobre o caráter representativo da “brasilidade” dos índios36. E

Macedo, assim como von Martius e Varnhagen, defendeu a superioridade do elemento colonizador.

Na sua análise do período de composição do manual escolar de Macedo, Ciro Bandeira de Melo

destacou a distância existente entre a representação do indígena muitas vezes utilizado como símbolo

nacional e sua descrição nos manuais escolares de História do Brasil. A literatura do século XIX brasileiro,

influenciada pelo romantismo, explorou o assunto indianista como identificador da terra e do povo

brasileiro, dele se servindo como elemento de representação da própria Coroa Imperial. Num momento

crítico de definição de território ou de luta como na Guerra do Paraguai, a imprensa fazia representar o

Brasil como índio37.

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Já no outro lado da margem do rio da história, o indianismo romântico, como retratado pela

literatura da época, representado por José de Alencar e o seu bravo Peri, criou um modelo de índio

civilizado, pois o caminho para a civilização era a correnteza das águas do grande rio, de sangue europeu,

cheio de virtudes e honras compatíveis com a figura de um súdito-cidadão. Ao criar a imagem do índio-

súdito, esta literatura enxergava a Monarquia como modelo ideal que combinava com o Estado brasileiro38.

Se folhearmos o manual de Macedo, perceberemos o divisor de águas no trato com o elemento

indígena. Ao ter em mente uma análise objetiva, por meio de uma exposição sumária do indígena e de sua

vida comunitária, o autor não destacou os aspectos mais duros apontados por Varnhagen. Contudo, em

lições como os dos choques entre jesuítas e colonos, o índio era retratado como o terceiro envolvido –

principal responsável pelas discórdias. Para ele, jesuítas e índios desempenhavam o papel de

desagregadores. Neste aspecto, Macedo não fugiu aos ensinamentos de Varnhagen.

Como os indígenas desconheciam o sentido de pátria, na leitura de Lições de História do Brasil para o uso

nas escolas de instrucção primaria, era necessário que estes se submetessem ou fossem tratados pela força, pois

o estado de barbárie vivido pelos nativos impedia o fluxo das correntezas civilizatórias do Estado; da

criação do todo colonial português, base do Estado nacional brasileiro.

Ao destacar as ausências, por exemplo, de vestimentas, de bons sentimentos, de sedentarização e

agricultura, de “verdadeira sociedade”, de pátria e de civilização, e lacunas nos laços de família, de maiores

ocupações para os homens, das relações sociais, religiosas e da língua, associadas a diversas outras

ausências e lacunas, Macedo impôs certas necessidades. A principal delas era a necessidade da descoberta,

conquista e colonização portuguesa, realizada a partir do século XV. De acordo com Selma de Mattos, o

duplo sentido da expansão marítima portuguesa – mercantil e religiosa – permitiu

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“não somente a “descoberta” do índio, mas também a conquista e colonização do

território, o que possibilitou a conversão à fé cristã e a aquisição de civilização pelos

nativos. Isto é, um processo de ‘preenchimento’ daquelas ausências e lacunas; um

‘preenchimento’ que significava a aquisição de um sentido para a existência daquelas

populações, isto é, o seu ingresso na História. Desta forma, o ‘descobrimento do Brasil’

não era entendido nem pelos navegadores, conquistadores e colonizadores portugueses

nem pelos historiadores, professores e alunos do século XIX como o encontro entre

descobridores ou dominadores e descobertos ou dominados, do qual deveria resultar a

transformação do Outro ou Diferente em um Mesmo ou Igual”39.

Para o professor Macedo, assim como seu mestre Varnhagen, retomando o argumento do cronista

Pero de Magalhães Gandavo40, descobrir, conquistar e colonizar eram processos que permitiriam

cristianizar e civilizar o “gentio”, e que deveriam dar continuidade no século XIX. Esta era a lição ensinada

nos bancos escolares para as crianças e jovens da sua época: a necessidade de impor uma fé, uma lei e um

monarca para aqueles que não estavam fora do teatro da História. Numa sociedade disciplinar, não eram

apenas as crianças que tinham o seu lugar no espaço da escola, mas também as personagens históricas

individuais ou coletivas que deveriam aparecer ou desaparecer nas páginas dos manuais escolares de

História. E para o índio já havia um lugar traçado, ou melhor, demarcado.

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__________________________________________________________________João Ribeiro

Em sua História do Brasil (Curso Superior), publicado em 1900, já no período republicano, o jornalista e

professor de História Universal e de História do Brasil do Colégio Pedro II, João Ribeiro apresentou a

temática indígena logo no primeiro capítulo (“O Descobrimento”).

Ao iniciar sua expedição pela história dos índios no Brasil, o autor fez a seguinte afirmação:

“Ao ser descoberto, era o Brasil habitado por uma gente da mais ínfima civilização; vivia

da caça e pesca, não conhecia outras armas de indústria ou de guerra senão arco e a clava

e nadava em completa nudez. Entregues à natureza, os índios não conheciam Deus, nem

lei, pois não era conhece-los possuir o terror da superstição e dos mais fortes”41.

Amparado na idéia de civilização, João Ribeiro, assim como seu antecessor de ofício no Colégio

Pedro II, Macedo, não elaborou uma leitura muito diferente do índio, no que concerne ao seu modo de

vida quando os portugueses aqui aportaram em 1500. Em suma, a citação acima nos deixou bem claro que,

na conceituação do indígena, não haveria muita variação quanto à visão do índio como portador de

“civilização”.

Todavia, ao contrário de Macedo, o manual escolar de João Ribeiro abordou de maneira mais

explícita a importância da presença indígena na formação do Brasil por aspectos como a formação da “raça

brasileira” e quanto à escravidão vermelha, esta incluída no sexto capítulo. No que se refere ao conceito de

raça brasileira, devemos notar que o autor considerou o brasileiro como “mameluco”, mas designando por

um ser miscigenado de modo geral.

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Diferente de Macedo, ao descrever o encontro entre os índios e os portugueses, João Ribeiro deixou

transparecer um clima de amistosidade. Chegou a escrever, a partir da Carta de Pero Vaz de Caminha, que

durante a primeira missa em terra firme, os índios ajudaram a elevar a cruz e se misturaram num grupo de

uns cento e cinqüenta entre os cristãos. Estiveram a bordo das embarcações de Cabral, onde não foram

compreendidos pelos intérpretes, mas deixaram excelente impressão entre a tripulação, “pela doçura de

índole e pela curiosidade e inocência de suas maneiras primitivas e ingênuas”42.

Para João Ribeiro, apaixonado desde jovem pelos assuntos da filologia, da antropologia e da história,

ao contrário do que a princípio se pensava sobre a origem dos índios, eles não eram de um mesmo tronco

ou estirpe. Com base em fundamentos etnográficos mais detalhados do que Macedo, o autor notou que os

índios brasileiros distinguiam-se muito, uns dos outros, pela diversidade de costumes, “sempre incultos”,

pela índole pacífica ou feroz que apresentavam ou “ainda pelo hábito de comerem a carne humana”,

prática que não era comum a todas as tribos; “e distinguiam-se igualmente pela variedade das línguas”43.

No início, segundo João Ribeiro, os índios eram divididos entre tupis e tapuias. Os tupis eram tribos,

de sul a norte, com diferentes nomes, mas que falavam a “língua geral”, que não só foi fixada nos primeiros

séculos do Brasil pelos jesuítas por conta da catequese, como os mesmos “enriqueceram e aperfeiçoaram a

língua dos Tupis e Guaranis”, salvaguardando-a44. Observamos nesta passagem do manual escolar de João

Ribeiro, de forma semelhante ao que fizeram décadas mais tarde Joaquim Silva e Borges Hermida, uma

consideração positiva dos jesuítas, aliás, uma postura adotada ao longo de outros capítulos.

João Ribeiro informou que, naquele momento, ainda não se sabia muito bem em quantas famílias

distintas se dividiam os índios de todo o país; eram

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“muito conhecidos os tupis e foram quase os únicos que mais ou menos se aproximaram

das povoações civilizadas, que outros mais ‘bugres’, os tapuias, por exemplo, nunca

puderam suportar sem rancor”45.

A noção de civilização de João Ribeiro aparecia de forma nítida quando tratou dos choques entre

portugueses e índios. Na sua leitura, estes dois grupos praticavam mutuamente crueldades, porque não se

entendiam e nem se podiam entender, uma vez que estavam em “diferentes graus de civilização”.

Entendendo que o nível superior da civilização estava com os portugueses, de origem européia e cristã, no

trecho abaixo, o autor procurou demonstrar a inferioridade do elemento da terra, ao afirmar que este não

tinha noção de propriedade privada, de criminalidade, de individualidade – conceitos chaves para a

formulação de uma idéia de contrato social:

“O índio tinha o sentimento da propriedade coletiva (da tribo) mas não tinha da propriedade

privada; o índio não julgava fazer mal, roubando; e assim muitos crimes que o eram para

os cristãos, para eles nada significavam. Por outra parte, qualquer ultraje feito a um índio

por um só português, deles eram considerados responsáveis todos os portugueses onde os

encontravam, o que fazia parecer má-fé, traição ou ferocidade gratuita da parte dos

selvagens”46.

João Ribeiro fez uma ressalva, ainda neste mesmo parágrafo, ao observar que mesmo os civilizados,

entretanto, na época em que ele compunha a sua História do Brasil (Curso Superior), responsabilizavam povos

inteiros, durante a guerra, pelos erros e atrocidades de poucos indivíduos.

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Os índios, para o autor, tinham os conquistadores como homens sobrenaturais, “fantasmas vindos

do mar”47. Este fato explica obviamente, na sua ótica, que fosse natural a submissão deles aos invasores. A

partir da constatação da submissão do habitante local, o português pensou em escravizá-lo.

Ao abordar a questão da escravidão, João Ribeiro escreveu que o ato de escravizar não era uma

ofensa para a consciência dos negros, muito menos para a dos índios, e sim era um ato e o principal efeito

da guerra. Contudo, ao caracterizar a escravidão, demonstrou ao seu leitor-aluno indícios da não adequação

do elemento indígena ao trabalho pelas particularidades do seu modo de vida primitivo:

“A escravidão era também trabalho, o castigo corporal, a vida sedentária; e o índio, quase

nômade, de natureza, ao nosso parecer, indolente, não podia e não gostava de trabalhar.

Daí nasceram muitos tumultos e vinganças atrozes”48.

Em seguida, João Ribeiro afirmou que a ação dos jesuítas, que vieram logo no século XVI com a

missão de civilizar os índios, não os tornou mais cristãos do que poderiam ser,

“mas conservou-os agremiados, sem exigir maior trabalho que o que podiam dar, e

sobretudo em muitos casos lhes poupou a degradação, os horrores da crueldade, das

doenças e da morte ao contato dos conquistadores, a cujo cativeiro preferiam o

suicídio”49.

O trecho acima citado tinha a finalidade de justificar a necessidade da presença do elemento jesuíta

para moralizar o indígena, não afeito ao trabalho. Os jesuítas assumiram, no seu texto didático, assim como

no de Joaquim Silva, a tarefa de educar para o cristianismo os selvagens e, além disso, a de tutelar, preservá-

los da degradação. Nas missões jesuíticas, os índios trabalhariam de acordo com as suas limitações, mas

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principalmente teriam uma educação dos corpos e da alma, uma vez que preferiam a morte ao cativeiro

imposto pelo conquistador. O autor pareceu querer nos mostrar que a ação jesuítica foi uma alternativa

encontrada para a não adequação do elemento da terra ao trabalho servil. Neste momento, João Ribeiro

diferiu de Varnhagen, no que concernia à escravidão indígena ou vermelha e sobre a atuação dos jesuítas.

Varnhagen, em História geral do Brasil, apresentou o seguinte argumento a favor da escravidão vermelha:

“Parece que, logo a princípio, no Brasil, onde a natureza é tão fecunda que permite

conseguir talvez resultados iguais aos de outros países com metade do trabalho, ninguém

se lembrou de que bastava que os colonos ou os índios trabalhassem nas lavouras desde

as cinco até as oito ou nove da manhã, e desde as quatro ou cinco até as seis e meia da

tarde, descansando assim, ou empregando-se em casa, durante as sete horas mais

calmosas do dia. E isto, apesar de que, segundo hoje sabemos, era esta, entre os próprios

índios, a prática geral, antes da chegada dos europeus”50.

Quanto aos jesuítas, Varnhagen reconheceu sua participação na obra civilizatória, fosse na conversão

dos índios, na educação da mocidade, ou na construção de edifícios públicos. Entretanto, teceu algumas

críticas severas à sua conduta. No caso da conversão dos índios, observou que, embora os inacianos

fossem contrários à escravidão vermelha por parte dos colonos, fizeram uso dela nas suas missões, ou seja,

granjeavam as suas fazendas com o “suor dos índios”, ao passo que os colonos tiveram de comprar

escravos da África “e arruinando-se com isso, não poderiam competir com eles na cultura do açúcar,

etc.”51.

Embora apresentasse suas particularidades em torno de algumas temáticas, o historiador republicano

João Ribeiro não poucas vezes recorreu ao livro de Varnhagen para emitir seus julgamentos sobre o

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assunto dos índios. Na apresentação que o autor realizou dos indígenas, estes eram descritos ao leitor-

aluno sem qualquer outra informação mais detalhada sobre a vida e a organização dos grupos de tribos.

No item “A etnologia brasílica”, o autor destacou a problemática de se realizar um estudo etnográfico

sobre os indígenas brasileiros, mas apontou que haveria certos aspectos claros e definidos e pontos de

apoio que se poderiam considerar resolvidos na área.

Ao fazer referência aos estudos neste campo, o autor teceu comentários sobre as investigações

conduzidas por von Martius. Embora ele não tivesse estabelecido uma classificação definitiva dos índios,

João Ribeiro o credenciou por acumular “grande e substancioso material de fatos que dentro de pouco

tempo”, na sua opinião, “se tornou possível afrontar sem excessiva timidez um ensaio de generalização”52.

Pela linguagem e maneira como o autor tratou o assunto, podemos perceber que esta parte do

capítulo parecia voltada para o professor. Por exemplo, ele apresentou uma crítica às conceituações as

quais afirmavam que os índios “constituíam uma só família, dilacerada em tribos aparentemente diversas,

pouco importando as diferenças de língua e muito menos de civilização e cultura que entre elas se podiam

notar”53. Para João Ribeiro, tal leitura estava envolvida num pensamento que procurava justificar a ordem

vigente sob a centralização do Império:

“Contribua para isso o fato de ser o Brasil civilizado uma única unidade política, e os

espíritos acostumavam-se a ver debaixo do Brasil português um só Brasil indiano. A pré-

história devia subordinar-se à história”54.

Nesta perspectiva, escrevendo no período republicano, o autor sentenciou que este sistema de

classificação, esboçado no Império, trazia a vantagem da simplificação, ao preço do sacrifício da verdade,

conceito essencial para o discurso científico. Em nome da verdade histórica, ele afirmou que “muitas das

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tribos diferiam entre si mais do que diferem europeus e africanos atuais, no que respeita à cultura geral” e

que, “pouco a pouco, estudadas as tribos nos seus múltiplos aspectos, apareceu desde logo a

irredutibilidade de muitas delas”55.

Feitas as devidas ressalvas e correções necessárias para o exercício da ciência histórica, João Ribeiro

traçou a etnologia das quatro grandes nações de índios que eram absolutamente distintas: a Tupi, a Tapuia

(ou Gé), a Nu-aruaque e a Cariba56. Nesta etnologia, ele fez a localização das nações indígenas no território

brasileiro, as correntes migratórias, as origens e, por fim, a caracterização dos grupos. No caso das

características dos grupos, como filólogo, enfatizou os aspectos lingüísticos na sua descrição e classificação.

Quanto à origem dos indígenas, tema não abordado por Macedo, provavelmente por este tender à

conciliar os pontos de vista sagrado e profano no ensino da História57, João Ribeiro fez menção à

periodização de Karl von den Stein para as migrações pré-européias no interior do continente, as quais

contrapunha às suas. O autor realizou uma discussão detalhada sobre as rotas e as datas das migrações dos

ameríndios no interior do continente e silenciou-se sobre como estes surgiram no Novo Mundo. Fez

referência à existência de “primitivos habitantes” expulsos do litoral e interior por povos que migravam em

diversas direções58.

A idéia de um foco étnico, a partir do qual teriam se irradiado todas as raças de índios, associada ao

silenciamento sobre as origens da humanidade nas Américas, para Adriane da Silva, “indicaria talvez”, na

obra deste autor, “uma hipótese diversa da concepção que sustentava a unidade das raças humanas,

formadas de acordo com a tradição bíblica”59.

Para a autora, Basílio de Magalhães, em Lições de História do Brasil – em conformidade com o programa do

curso anexo a Faculdade de Direito de S. Paulo, publicado em 1895, procurou conciliar as duas versões sobre a

origem: o asiatismo e o indigenismo60. Essas teorias eram analisadas em todos os seus pormenores por

Magalhães, “que dividiu as raças brasileiras em dois grandes grupos etnográficos, baseado na distinção de

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Sílvio Romero entre ‘a época das primeiras aparições do homem, noturna, impenetrável, do tempo das

trans migrações, mais positivo e esclarecido’”61. Tanto o manual de João Ribeiro, como o de Magalhães

acabaram reafirmando as origens profanas dos índios, rompendo com a tradição do casal bíblico, ainda que

não se declarassem abertamente sobre um ou mais centros criadores da humanidade. Rocha Pombo, nos

anos 1920, em seu manual escolar, apresentava abertamente sua opinião diversa sobre a origem do povo

ameríndio. Ele considerava a hipótese da autoctonia do homem americano como já posta de lado pela

história, optando pela corrente que defendia que o continente foi povoado por antigas migrações da Ásia.

No segundo capítulo (“Tentativa de Unidade e Organização da Defesa”), o autor de História do Brasil

(Curso Superior) fez uma breve consideração sobre o índio como parte do povo brasileiro, ao fazer

referência às três raças que o formaram. Para João Ribeiro, o elemento indígena constituiu uma população

muito variada nas suas tribos, como já havia dito no capítulo anterior do manual escolar, algumas destas

talvez mais distantes entre si do que dos brancos, e tinha tal mobilidade de habitat que seria difícil a tarefa,

ao menos em parte, de assinalar-lhe região e domínio próprios.

Agora, em termos de contribuição para a formação étnica da sociedade brasileira, João Ribeiro, em

poucas linhas, resumiu a imagem do índio que se forjou no Brasil de seu tempo:

“Esse elemento étnico pouco contribuiu e contribui ainda pouco ao desenvolvimento

econômico e moral do país – mas com toda a sua mesquinhez de ação é todavia simbólico

e característico, e tem sido falsa ou verdadeiramente utilizado como fator aristocrático na

história da luta entre colonos e jesuítas e quatro séculos mais tarde entre os

revolucionários da independência; os autonomistas mais tarde dirão que descendem do

caboclo”62.

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No item “A escravidão vermelha”, do quarto capítulo, João Ribeiro tratou da expansão territorial

pela atuação das bandeiras paulistas e da luta dos jesuítas contra os bandeirantes, em virtude da escravidão

indígena, a qual os primeiros repudiavam.

Todo este item ficava restrito à questão da escravidão indígena no norte da colônia, ou seja, o

confronto entre as autoridades da Companhia de Jesus, dentre as quais destacava-se padre Antônio Vieira,

e os colonos insaciáveis por mão-de-obra.

Para ele, o sentimento de humanidade não justificava a escravidão negra de preferência à vermelha,

tida como menos culta; antes a justificava o instinto prático, senão o prejuízo da cor, por se considerar a

última mais próxima do branco. Em outras palavras, em História do Brasil (Curso Superior), como pontuou

Ciro Bandeira de Melo, a verdadeira presença indígena na história da nação estava na formação do povo,

mesmo que tal contribuição fosse ínfima para o desenvolvimento econômico e moral do Brasil, e que a

utilização da imagem do índio na formação do povo e da nação fosse mais ideológica do que efetiva63.

O historiador e professor João Ribeiro, vivendo sob a constelação da era republicana e influenciado

pelas orientações da sociologia e etnologia próprias do crepúsculo do século XIX, encontrava na figura do

índio o espaço do “mameluco”, este o verdadeiro homem brasileiro, embora este termo estivesse presente

o sentido de mestiço. Ao lado dos jesuítas, o “mameluco” assumiria o cenário da chamada “história

interna” do Brasil, elaborada pelo referido autor64.

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________________________________________________________________Rocha Pombo

Ao abrimos o terceiro compêndio de história da pátria, intitulado História do Brasil (Curso superior), publicado

em 1924, pela Companhia Melhoramentos, do jornalista e professor de História do Colégio Pedro II e da

Escola Normal, José Francisco da Rocha Pombo, percebemos, na esteira de seus colegas de cadeira

Macedo e João Ribeiro, que a temática indígena estava presente no primeiro capítulo dedicado ao

“Descobrimento do Brasil”. Neste capítulo, o autor dedicou os dois últimos itens às populações indígenas.

No item “As populações indígenas”, Rocha Pombo iniciou seu relato com a notícia de que quando

os portugueses chegaram ao Porto Seguro encontraram “uma gente” em pleno estado de “selvageria” e que

as expedições subseqüentes à de Cabral reconheceram que toda terra descoberta estava ocupada por

populações que pareciam da mesma raça.

Após esta breve descrição do encontro entre portugueses e índios, ele propôs ao seu leitor-aluno a

primeira questão que era “a que consiste em saber se esse homem é autóctone, ou se é adventício no

continente”65.

A esta pergunta inicial, Rocha Pombo descartou a hipótese da autoctonia e partiu para a análise da

variedade de nações que, no momento da conquista, ocupavam todas as zonas do hemisfério, “nada mais”,

na sua opinião, “que remanescentes de antigas imigrações”. Em relação às origens destes elementos e à sua

entrada no continente americano, o autor comentou a existência de muitas tradições cuja exatidão ou não

ainda estava a ser apurada. Contudo, ele optou pela hipótese, “a mais geralmente preferida, e aceita pelos

historiadores”, que dava como vindos da Ásia os povos que se encontravam aqui66. E para corroborar a sua

escolha por este caminho hipotético, teceu as seguintes considerações:

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“A própria situação em que se achavam esses povos parece, com efeito, que assinalava

ainda o caminho que tinham seguido, e o modo como depois se instalaram nas várias

porções do continente.

Entrando pelo extremo norte, vieram essas migrações descendo pelo litoral do Pacífico, e

fixando-se nos pontos em que as condições do meio físico eram melhores.

Chegaram assim a formar agrupamentos já policiados, e até nações de cultura

considerável, como principalmente os dois impérios patriarcais do México e do Peru.

É desses vastos centros de civilização que se destacaram em seguida as levas de famílias

que povoaram toda a parte oriental das duas grandes penínsulas”67.

No caso da América do Sul, Rocha Pombo afirmou que os índios brasileiros tiveram a sorte de

descender da raça superior peruana, ou seja, dos incas. O selvagem encontrado aqui pelos descobridores

seria um “aimará decaído”, e tendo já, nas “vicissitudes da nomadia”, perdido muito dos elementos da sua

civilização matriz, todavia conservando o suficiente para se estabelecer a filiação entre os dois grupos. Após

terem transposto a cordilheira dos Andes, os invasores (incas) da América oriental dividiram-se em duas

grandes correntes: “a dos que procuraram o norte pela costa do Atlântico, e a dos que tomaram o mesmo

rumo seguindo a bacia do Prata”68.

Ao estabelecer esta conexão, ou melhor, filiação entre os povos indígenas do Brasil com os povos de

outras partes do continente americano, o autor retomou sua preocupação de se realizar estudos e o ensino

da História do Brasil ligado à História da América. O professor Rocha Pombo, segundo Circe Bittencourt,

alimentava um desejo profundo de difundir, pelo ensino, os ideais de confraternização entre as nações

americanas. Ao contrário dos seus contemporâneos, ele defendia que “a civilização americana não era

apenas o país norte-americano, mas o conjunto de nações que com o Brasil formam ‘a nossa América no

seu largo caminho aberto ao futuro’”69.

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69

Em 1928, no prefácio da sua premiada História da América (publicada originalmente em 1900), Rocha

Pombo reafirmou esta sua preocupação, ao optar pelo que denominava de estudo “dos grandes homens do

Novo Mundo”. Nesta perspectiva, o autor buscou conciliar a ação dos indivíduos frente ao conjunto da

sociedade,

“reconhecendo que as grandes individualidades são sempre a síntese da sua época, na

esfera em que se manifestam, em torno delas gira toda uma vida coletiva; e muitas vezes

destacando um desses grandes tipos temos caracterizado toda a vida de uma geração, ou

todo um momento da história de um povo”70.

Após este breve parêntese em relação ao posicionamento do autor sobre o ensino de História da

América, vamos prosseguir a leitura de como Rocha Pombo, sócio efetivo do IHGB desde 1900, construiu

a imagem do indígena na sua História do Brasil (Curso superior).

Em relação aos dois ramos que tomaram conta de toda parte do continente que se estendia a leste da

Cordilheira, o autor notou que estes se multiplicaram na profusão de tribos que os conquistadores vieram a

encontrar, em alto nível de retrocesso em relação ao centro de origem – os incas:

“Estes povos que se isolaram do Peru sofreram aqui um grande abaixamento de cultura,

ou metamorfose regressiva; da qual, no entanto, os tupis, por esforço próprio, já se

reerguiam vigorosamente.

É por isso mesmo que, enquanto nos tupis se reconhecem sinais evidentes da nova fase

que com eles iniciava para a raça, é entre tapuias que se hão de apanhar os vestígios

menos vagos da civilização original”71.

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Imagens do Índio

70

Percebemos, pela citação acima, que Rocha Pombo optou pela classificação adotada pelos autores

anteriores, no que concerne aos índios: tapuias (os que primeiro passaram os Andes e subiram pelo interior)

e tupis (os que desceram pelo litoral).

Em relação aos tapuias, ele registrou que estas tribos cultuavam formalmente o Sol e a Lua;

praticavam feitiçaria e acreditavam em um sem-número de superstições, “características do antigo

peruano”72. Para os tupis ou tupi-guaranis, observou que estes se levantavam da decadência sofrida; e com

eles “tomava a raça impulso novo”73. Na época da conquista, os grupos mais notáveis da família tupi eram

os goianos (no planalto de Piratininga) e os tamoios (no litoral entre São Vicente e Cabo Frio).

Diferentemente de João Ribeiro, Rocha Pombo ofereceu ao seu leitor-aluno informações detalhadas

sobre os tupis, em especial, sobre o seu modo de viver.

Os tupis eram caracterizados como um povo de instinto de vida heróico. Viviam para guerrear e se

orgulhavam da sua força e da sua coragem. Segundo o autor, eles exaltavam a tal ponto que sua bravura os

levaram aos excessos da antropofagia. A prática da antropofagia pelos tupis apareceu com ressalvas no seu

texto:

“O tupi não sacrificava o inimigo por gula. As festas de sacrifício não eram para ele

sacrílegos banquetes, mas cerimônias de culto. Trincava a carne do inimigo como se

fizesse um desagravo, e uma honra à tribo desagravada.

É o que se poderia chamar – antropofagia heróica – muito diferente da antropofagia

doméstica ou religiosa, que se praticava entre os tapuias”74.

Ao contrário de Varnhagen e Macedo, o autor de Nossa Pátria afirmou que os mais mentalmente

desenvolvidos das tribos tupis tinham se elevado, no momento da chegada dos europeus, a um legítimo

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senso de pátria, ou ao menos “um certo espírito nacional”. Para ilustrar sua descrição, Rocha Pombo

chegava a comparar o nível de desenvolvimento dos tupis aos antigos germanos75:

“Como os povos da Germânia, não tinham os índios do Brasil propriamente

monumentos históricos; e tudo que, de reminiscências do passado, conservavam, reduzia-

se a mitos, lendas, tradições e cânticos, celebrando combates, paixões, feitos heróicos e

ações grandiosas, ou rendendo culto a divindades”76.

Além de destacar outras similaridades entre os índios tupis e os germanos antigos, ele ressaltou o

notável conhecimento que tinham os primeiros da botânica e da geografia77. Os termos da topografia geral

indígena, segundo o autor, tão ampla e curiosa, revelavam profundo espírito de observação e extraordinária

sutileza de instinto para “destacar o aspecto de uma região, de uma bacia fluvial, de uma enseada, de um

monte”78. Num tópico do item sobre as populações indígenas, Rocha Pombo dedicaria especial atenção às

noções do índio relativas à botânica e à zoologia.

Quanto à teogonia dos índios, o autor estabeleceu uma relação entre Tupã e Deus. Para ele, não se

podia duvidar de que, no espírito bárbaro, o signo Tupã não possuísse um valor equivalente ao do nome de

Deus no espírito do homem civilizado, ou seja, cristão. Como Deus para o civilizado, Tupã era para o índio

o “ser supremo, absoluto, misterioso, incompreensível em si mesmo, mas que se manifesta na luz, nas

claridades do céu, na fulguração do relâmpago, na chama, no sol, fonte universal da vida”79.

A psicologia do indígena, na sua leitura, era fundada num vasto panteísmo naturalístico. Tal

influência decorria diretamente do espetáculo da natureza como expressão do mistério. As maiores

divindades visíveis eram o Sol, a Lua e as Estrelas.

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No item “Ainda as populações indígenas”, Rocha Pombo, à maneira de Varnhagen, mas numa

linguagem didática, procurou descrever minuciosamente a organização política e social de uma tribo tupi.

O autor comentou também sobre as suas crenças e superstições, a relação entre as tribos, as construções e

as armas e objetos confeccionados.

A taba era descrita como formada por longos galpões (ocas) dispostos, em pentágono de ordinário,

dentro de uma cerca circular (caiçara). Em cada lanço da oca havia duas redes para o casal. O resto da

família deitava em esteiras (piris), em volta das redes. O dia-a-dia dos índios na tribo era passo a passo

relatado por Rocha Pombo. A sua descrição era tão detalhada que permitia ao leitor-aluno visualizar o

cotidiano da tribo. Em parágrafos curtos, o professor do Colégio Pedro II foi montando o seu cenário e as

personagens, ou seja, a sua visão do que era uma tribo e os índios:

“Acomodam-se muito cedo, e levantam-se antes do nascer do sol; a primeira coisa que

fazem é banhar-se.

Depois do banho, começam a comer; e comem o dia inteiro, salvo tempo em que

trabalham.

A refeição é feita em comum. Todos os da família, cada qual com a sua cuia, põem-se de

cócoras em volta do chefe, e este reparte a comida por todos em quinhões iguais.

Quando comem, guardam absoluto silêncio.

O alimento consiste em farinhas, bolos, carnes e peixes, e frutas, como de cereais e de

legumes.

Em suas enfermidades, além de ervas e óleos, usavam também da sarjadura. (...)

A vida do índio, na paz, era uma festa contínua. Festejavam o natalício, as núpcias, a

nubilidade das raparigas, a investidura dos rapazes no ofício das armas. E tudo isso além

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das festividades da tribo tanto religiosas como guerreiras. Celebravam as estações, as

colheitas, as pescarias, as grandes vitórias contra inimigos”80.

O manual escolar de Rocha Pombo apresentava uma sociedade indígena com elementos básicos de

organização e disciplina, onde valores como bons hábitos alimentares e higiene eram super valorizados.

Havia, na sua percepção, um respeito em torno da figura dos mais velhos e dos antepassados,

principalmente nos rituais de culto aos mortos. A família indígena era unida e realizava atividades de forma

comunal. Aos olhos do leitor-aluno, esta tribo indígena aproximava-se muito do seu dia-a-dia como, por

exemplo, sua casa, seu bairro e sua escola. Havia uma pedagogia do corpo e da moral do aluno neste trecho

citado, pois o autor enxergava como virtudes, algo a se admirar, esse modo de viver dos índios.

Embora fizesse referência às atividades de guerra, Rocha Pombo não carregou muito nas tintas como

o fizeram Varnhagen, Macedo e, de alguma forma, João Ribeiro ao tratar do assunto. O fato de não

enfatizar tanto as situações de guerra entre populações indígenas explicava-se pela razão de na sua obra,

como observou Circe Bittencourt, haver a influência de uma corrente anarquista pacifista da qual o autor

era adepto81. Ele pensava a história a partir da compreensão da idéia de civilização numa perspectiva

humanitária, “como meio de por fim às guerras, à violência, contrariamente à maioria da bibliografia da

época que incitava a difusão da superioridade racial dos brancos e fornecia argumentos para uma decisão

social baseada em privilégios”82. Não podemos deixar de levar em consideração que o autor compunha sua

História do Brasil (Curso superior) num mundo já marcado pelos confrontos traumáticos da Primeira Guerra

Mundial entre 1914 e 191883, e num momento em que o mito ariano ganhava força84.

Quanto à idéia de família entre “nossos selvagens”, Rocha Pombo afirmou que esta “estava

perfeitamente organizada”. Ele deu destaque para aspectos da família indígena semelhantes às vivenciadas

pelo seu leitor-aluno das primeiras décadas do século XX, apontando uma preocupação por parte dos

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índios em preservar suas famílias85. A monogamia, por exemplo, “era a regra; e quando excepcionalmente

tomava um chefe mais de uma mulher, a autoridade doméstica pertencia à primeira esposa, e por esta se

regulava a sucessão paterna”86.

O casamento indígena era repleto de rituais. O rapaz deveria se casar aos 25 anos, e até essa idade,

deveria se conservar virgem. A moça só poderia se casar após se tornar mulher. Rocha Pombo ofereceu

detalhes do processo que ia da corte ao casamento numa comunidade indígena. Alguns índios, segundo

contou o autor, apaixonavam-se pelas donzelas que escolhiam, e sujeitavam-se a servir primeiro, ao longo

de dois ou mais anos, aos pais delas, como era prática entre os povos hebreus.

Depois do casamento, a mulher saía do jugo do pai ou tio para o do marido. No entanto, observou

Rocha Pombo, “não era pela força que a mulher era submissa; mas antes por algum sentimento que na

psicologia do sexo ficou da fase da sagrada família”87. Na sua leitura, a mulher indígena obedecia por

veneração, pois enxergava “no esposo, não senhor que era forte, mas o patriarca que representa a tradição

da família, e pelo qual ela e os filhos se incorporam na vida da raça”88. Ao contrário das índias de

Varnhagen, as de Rocha Pombo não prefeririam a morte ao modo de vida a qual eram submetidas.

A parte final do item “Ainda as populações indígenas” era dedicada às particularidades das línguas da

América oriental, em especial, a tupi. Neste ponto, ele fez um breve comentário sobre o alfabeto e a

formação das palavras tupi.

Em sentido oposto do que assinalaram seus antecessores do Colégio Pedro II, Macedo e João

Ribeiro, Rocha Pombo sugeria que, além do “que representa como fator étnico, conviria estudar ainda o

nosso selvagem sob o ponto de vista da influência que exerceu sobre a sociedade histórica, e

particularmente do concurso que deu aos colonizadores da terra”89. Neste aspecto, o autor aproximou-se

das indicações apresentadas por von Martius.

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Rocha Pombo, à semelhança do que posteriormente fizeram Joaquim Silva, Borges Hermida e

Sérgio Buarque Holanda, destacou a influência indígena na língua, nos costumes, nas indústrias, como em

todos os vários aspectos dos conquistadores:

“impressões que ainda hoje se encontram bem vivas em todo o Brasil, e até nos sítios

menos afastados das zonas urbanas.

Quanto ao concurso do índio na obra colonial, não há nenhuma palavra dissonante no

coro dos encômios que merece a raça. Quer nos serviços agrícolas, quer na defesa da

terra, ou ainda nas explorações do interior, foi o índio um auxiliar operoso, sem o qual

nada do que fizeram teriam os colonos feito aqui”90.

Com estas palavras, apresentou o indígena como operoso afluente no grande rio que formava a

nacionalidade brasileira. Notamos que ele construiu uma figura indígena simpática e prestimosa. Em vários

momentos da história do Brasil colonial, afirmou entusiasticamente, fosse na repulsa a intentos de piratas e

corsários, fosse na guerra contra intrusos, os índios figuraram como “primeiro elemento de sucesso”. Em

síntese,

“de mais eloqüência ainda que tudo isso, foi a altivez com que ele se remia, por protestos

heróicos, das violências da conquista. As revoltas e as guerras formais, com que afrontou

os excessos da força, dizem evidentemente que esta família tinha um largo fundo moral

que a fazia apta para a plenitude da vida histórica”91.

Neste ponto, o historiador Rocha Pombo, assim como Macedo e João Ribeiro, pareceu seguir as

orientações de von Martius ao pensar o significado do elemento da raça vermelha ou americana na história

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do Brasil. A imagem do indígena desenhada em suas palavras aproximava-se muito mais da personagem de

José de Alencar, no seu romance O Guarani, do que da esboçada por Varnhagen, na sua História geral do

Brasil. De acordo com Circe Bittencourt, na obra didática de Rocha Pombo, “o elemento indígena não era

tido como obstáculo à marcha do progresso, mas visto como um agente na colonização pelo trabalho e,

contraditoriamente reconhecia a sua luta de resistência frente ao branco”92.

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_________________________________________________________________Joaquim Silva

Em sua História do Brasil para a primeira série ginasial, publicada na década de 1940 e com inúmeras edições

até os anos 1960, o professor Joaquim Silva, dedicou o segundo capítulo (“O indígena brasileiro”) para o

estudo dos “primeiros habitantes do Brasil”. Nele, o autor estruturou a sua escrita em três tópicos: “Usos e

costumes”; “Principais nações e tribus”; “O selvagem brasileiro e seus primeiros contatos com os

europeus”.

No primeiro tópico “Usos e costumes”93, o autor anunciou que, na época do seu descobrimento, o

Brasil era habitado por numerosos “selvagens”, cuja origem ainda não estava “perfeitamente conhecida”.

Algumas tribos, segundo ele contou, apresentavam uma civilização rudimentar, mas ainda desconheciam o

uso dos metais.

Ao dar como não-determinada a descendência dos primeiros habitantes do continente americano,

Joaquim Silva, ao contrário de João Ribeiro e Rocha Pombo, fugiu do delicado debate travado entre o

discurso científico e o religioso sobre a origem do homem. Devemos lembrar que este autor era professor

de História em tradicionais colégios confessionais na cidade São Paulo e, muito provavelmente, tinha

formação religiosa.

Em relação aos costumes, observou que os índios não eram sempre os mesmos em todas as tribos;

contudo, diversos deles eram comuns a todas elas. Os indígenas, segundo o seu manual escolar, andavam

geralmente pelados ou trazendo somente uma pequena tanga feita de penas, conhecida pelo nome de

enduape. Os chefes ou principais da tribo utilizavam a acaiaba, um manto de penas. Tinham o hábito de

tatuarem-se, furarem “os lóbulos das orelhas e o septo nasal onde introduziam penas e, para as festas,

pintavam o corpo inteiramente, com cores vivas”. Eles ainda gostavam de se adornar “com colares,

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braceletes, brincos de pequenos ossos ou madeira”. Além disso, concluiu o parágrafo, “traziam à cabeça

cocares ou carapuças de penas”94.

Os índios, segundo o professor do Liceu Rio Branco da cidade de São Paulo, conseguiam fazer fogo

“pelo atrito de dois paus”. A sua dieta alimentar baseava-se em frutas e produtos da caça e da pesca. Como

dominavam a arte do fogo, assavam a carne e o peixe, “conservando também moqueada ou defumada”. O

uso do sal não era do conhecimento de todas as tribos, mas era comum o emprego da pimenta; “algumas

faziam pequenas plantações de mandioca e milho”95.

Assim como Rocha Pombo, mas de forma mais sintética e menos lisonjeira, Joaquim Silva procurou

descrever uma aldeia ou taba indígena:

“As aldeias ou tabas, onde viviam até cem famílias, formavam-se de toscas choupanas, as

ocas, reunidas em torno dum pátio, a ocara; eram regularmente feitas em lugar alto, não

longe de boa aguada e tinham uma cerca, a caiçara, que as protegia contra os ataques dos

inimigos; a taba, geralmente durava poucos anos: quando a caça rareava nos arredores,

abandonavam a velha morada tapera, e iam construir outra em lugar mais favorável”96.

Ainda sobre os costumes dos índios, o autor observava que estes não faziam proveito de animais

domésticos. Os poucos que mantinham, em sua maioria, eram aves, em especial papagaios. Em suma, não

possuíam animais domesticados pudessem lhes fornecer ovos, leite, matéria-prima para as suas vestimentas

ou meio de transporte97.

A indústria indígena, na leitura de Joaquim Silva, consistiu na confecção de armas para caça e pesca

ou para guerra e utensílios de uso doméstico. Entre algumas tribos, comentou o autor, desenvolveu-se a

arte da cerâmica, permitindo fazer “potes, urnas, panelas e outras vasilhas; a cerâmica encontrada no

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Cunaní e em Marajó, era notável pela forma dos objetos e por sua interessante decoração”. Os tupis, por

exemplo, dominavam a prática de fazer pequenas jangadas ou balsas buriti98.

Ao tratar da temática das guerras entre os índios, o autor recorreu às informações fornecidas por

João Capistrano de Abreu, em Capítulos de História Colonial99, e Jonathas Serrano, na História do Brasil.

Joaquim Silva apresentou a guerra como uma das principais ocupações dos indígenas; “faziam-na de

surpresa, pelo mais fútil motivo: com o fim de disputar melhor lugar para a taba, melhor zona de caça,

vingança duma afronta”100.

Numa nota de rodapé, destacou uma citação de Capistrano de Abreu, à semelhança do comentário

feito por João Ribeiro sobre a ausência da noção de individualidade entre os nativos, em que afirma:

“E, uma vez começada, [a guerra] tornava-se hereditária. (...) Exatamente, porque um

indivíduo resuma a tribu, quem o ofendia, ofendia à colectividade”101.

De acordo com o manual escolar do professor Joaquim Silva, durante o confronto a tribo toda se

empenhava para vencer o inimigo. Os prisioneiros eram feitos escravos ou mortos em ritual solene

(antropofagia), pois acreditavam que a carne do inimigo valoroso e valente lhes transferia as qualidades do

guerreiro morto.

Ao fazer a descrição da prática da guerra entre as tribos indígenas, Joaquim Silva, inspirado pela

referência em nota de Jonathas Serrano, procurou desmistificar a imagem idealizada do selvagem presente

nos textos poéticos e românticos dos indianistas, como José de Alencar e Gonçalves Dias102.

Para o autor, na família indígena, era muito comum a prática da poligamia. As mulheres exerciam

tarefas de “manufatura de tecidos, a cozinha, a feitura da louça, o fabrico de bebidas fermentadas, assim

como trabalho da plantação e da colheita, após a derrubada do mato, feita pelos homens”103.

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No que concerne à religião indígena, Joaquim Silva observou que havia entre estes a vaga idéia de um

ser poderoso, conhecido pelo nome de Tupã, “que pelo raio, pelo trovão, pela tempestade ou pelo sol,

manifestava seu poder ou sua cólera”. Cada ato realizado pela tribo era atribuído a um “gênio ou espírito”.

Além disso, não havia templos em suas tribos e nem culto organizado104.

As divindades e chefes religiosos das tribos eram retratados de forma assustadora pelo autor, levando

seu leitor-aluno, amparado no referencial cristão católico, a ter uma imagem negativa da crença indígena,

vista como superstição:

“Os gênios ou deuses maléficos causavam geral terror: assim, Anhangá, que trazia os

sonhos maus e os pesadelos; o saci, pequeno índio duma perna só, que andava pelos

campos com um barrete vermelho à cabeça; o Curupira, de pés voltados para trás; o

caapora. Vários tribus adoravam o sol, a que chamavam Guaraci, e a Lua, chamada Jaci. O

sacerdote dos indígenas, o pagé, tinha-se como adivinho e curandeiro, exercendo sobre

toda tribu, com o mistério de que se rodeava, uma influência inigualada”105.

O governo ou direção da tribo era exercido pela figura do maioral, chamado de morubixaba, escolhido

entre os que se distinguiam por seus atos de bravura e que, em momentos de guerra, tinha poder total. Os

chefes de famílias formavam um conselho que se reunia para deliberar sobre os casos mais graves da tribo,

“em que condenavam à morte ou à expulsão”106.

A cultura dos índios, na visão de Joaquim Silva, era praticamente nula em algumas tribos e muito

pouco desenvolvida em outras. O autor apresentou como exceção neste cenário rudimentar os

“interessantes exemplares de cerâmica marajoara”107.

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No tópico “Principais nações e tribus”, Joaquim Silva reproduziu resumidamente a classificação

apresentada por João Ribeiro, na História do Brasil (Curso Superior)108: Tupis, Tapuias, Nu-Aruaques, Caraíbas

e Grupos menores.

O capítulo encerrou-se com o tópico sobre o selvagem brasileiro e seus primeiros contatos com os

europeus. Neste momento o autor descreveu o encontro, em 1500, os primeiros choques e as influências

do indígena na formação da sociedade brasileira. Assim, como os outros autores analisados até o momento,

ele não fugiu ao esquema e as temáticas sugeridas por von Martius e Varnhagen.

A partir da Carta de Pero Vaz de Caminha, o autor construiu a cena do primeiro encontro pacífico e

cordial entre indígenas e descobridores:

“desconfiados assustadiços quando os viram, mostraram-se logo mais confiantes; e, no

terceiro dia após o descobrimento, ajudaram os lusitanos a renovar a provisão de suas

naus, em troca de barretes vermelhos ou de fios de contas. E depois, quando se celebrou

a primeira missa em terra firme, auxiliaram a elevação da cruz, misturando-se aos cristãos

quase duas centenas deles, que impressionavam bem ‘pela doçura de índole e pela

curiosidade e inocência de suas maneiras primitivas e ingênuas’”109.

A amizade entre brancos e índios nos primeiros tempos da colonização era ilustrada pelo autor

através da história de Diogo Álvares e João Ramalho, que desposaram filhas de caciques.

Ao contrário dos tupis, que logo se aliaram aos portugueses, Joaquim Silva afirmou que os tapuias

ofereceram fortes dificuldades de contato, conduzindo aos choques. O autor destacou que o nível de

insubmissão e agressividade dos “íncolas” cresceu quando os colonos iniciaram o processo de escravização.

Nos primeiros anos da colônia, destacou o autor, assim como Rocha Pombo e Borges Hermida, era

notável a influência do elemento racial indígena sobre os costumes e mesmo sobre a linguagem dos

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brancos que conviviam com eles: “Tal influência via-se na casa e na roça, na paz e na guerra, na cidade, no

sertão”110. E citando a História do Brasil. As origens (1500-1600), de Pedro Calmon, enfatizou que

“Poucos e esparsos, os portugueses se deixaram dominar pelos hábitos da terra: na mesa,

no trabalho, na viagem, na luta, no repouso. Passou a nutrir-se de farinha de pau, a abater,

para o prato, a caça grossa, embolar-se na rede de fio, a imitar os selvagens na rude e livre

vida”111.

O professor Joaquim Silva encerrou o capítulo sobre o elemento indígena dando destaque à

influência deste na língua dos colonos;

“não só numerosos nomes de lugares ou acidentes geográficos, pessoas, plantas, animais

são de origem tupi; mas, ainda, até o começo do século XVII, era corrente o uso da língua

dos índios ao lado da portuguesa”112.

Embora não tenha feito uma detalhada alusão às influências indígenas no modo de viver da

sociedade colonial, como havia feito Rocha Pombo, Joaquim Silva não as negou ou as apresentou como

nocivas. A imagem do indígena deste autor dos anos 1940 aproximava-se, como podemos notar, muito

mais da realizada por Capistrano de Abreu e Jonathas Serrano113, referência implícita e explícita no seu

manual escolar.

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______________________________________________________________Borges Hermida

Em sua História do Brasil, o professor do Colégio Pedro II e da rede oficial de ensino do Estado do Rio de

Janeiro, entre os anos 1940 e 1970, Antonio José Borges Hermida, a partir do relato da Carta de Pero Vaz

de Caminha, introduziu o elemento indígena no cenário da História.

De acordo com o autor, quando o navegador português Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil, no

dia 22 de abril de 1500, a costa da Bahia era habitada por índios. Havia, continuou ele, entre os portugueses

e os nativos enorme diferença de adiantamento, sendo os primeiros civilizados e os outros selvagens114.

Ao analisar este manual escolar, Paulo Miceli sintetizou de forma precisa o que a definição de

civilizado e selvagem representa na escrita de Borges Hermida:

“os portugueses vivam na civilizada Europa, fabricavam armas de fogo, viajavam em navios

e registravam, por meio da escrita, os acontecimentos importantes, como fez Pero Vaz de

Caminha ao escrever ao rei de Portugal a carta sobre o descobrimento do Brasil; os índios

nadavam nus ou vestiam-se apenas com uma simples tanga, manejavam armas

rudimentares, como o arco e a flecha, utilizavam canoas rústicas e não sabiam escrever.

Como todos os povos atrasados que não possuem escrita, os antigos habitantes do Brasil

pertenciam à pré-história. Quanto à história, ela só se ocupa dos povos civilizados, que

podem, através da escrita, documentar os acontecimentos, os chamados fatos históricos;

descobrimento do Brasil, abolição da escravatura, proclamação da República, etc”115.

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O domínio da escrita como elemento determinante para pertencer, como observou Paulo Miceli, ao

panteão da História pode ser explicitado no seguinte trecho do manual analisado, quando Borges Hermida

definiu o que era a disciplina:

“A História estuda o passado da humanidade desde a formação dos povos mais antigos,

mas só a partir do momento em que a escrita passou a ser usada”116.

Assim como Joaquim Silva, Borges Hermida afirmou, no quarto capítulo (“Os portugueses no

Brasil”), que o primeiro contato entre os índios e os europeus foi amistoso e, com base na carta de

Caminha, que os antigos habitantes assistiram à missa, rezada em terra firme, “com muita atenção e

respeito”117.

No capítulo seguinte (“Brasil, mistura de raças”)118, apresentou o indígena junto com o branco e o

negro, os outros dois elementos formadores do povo brasileiro. Neste capítulo, o autor dedicou quatro

tópicos para tratar dos índios: “Costumes dos índios”, “Armas e combates”, “Nações e tribos por todo o

Brasil” e “A influência indígena”.

Ao descrever os costumes indígenas, o professor Borges Hermida afirmou que eles viviam da caça,

da pesca e do cultivo, feito por algumas tribos, do milho e da mandioca. Quando rareava o alimento,

mudavam para outros lugares, ou seja, eram nômades. Faziam uso do arco e da flecha para caçar e sabiam

preparar armadilhas para atrair pássaros. Na prática da pesca nos rios, além dos anzóis, utilizavam

“pequenas redes chamadas ‘puçás’”119.

Quanto às tribos que conheciam a agricultura, segundo o autor, que os índios “plantavam,

preparavam as roças depois que punham fogo nos matos. É a coivara, ainda muito praticada no interior do

Brasil”120. Após esta informação, Borges Hermida, preocupado com a dimensão pedagógica da História,

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alertou o leitor-aluno sobre o fato das autoridades proibirem a queima da mata, pois “o fogo acaba com a

fertilidade da terra”. Para conseguir fazer fogo,

“os índios imprimiam, com a palma das mãos, um movimento de rotação a um pequeno

pedaço de pau, cuja ponta friccionava em outro, até formar uma chama que passava para

folhas secas” 121.

Em seguida, a exemplo do manual escolar de Macedo122, registrou o hábito dos índios se enfeitarem

com pinturas no corpo com tinta vermelha do urucu e azul do jenipapo; com furos nas orelhas e lábios,

onde colocavam “pedaços de madeira chamados ‘botoques’”123; com colares de contas ou de dentes de

animais no pescoço e cocar, feitos com penas de pássaro, na cabeça.

A produção de cerâmica – “arte de trabalhar o barro para fazer utensílios domésticos (panelas,

moringas, etc.)” – era conhecida, segundo Borges Hermida, por quase todas as tribos. Além disso, “sabiam

trançar o cipó e as fibras vegetais (cestaria)”124.

Após apresentar as armas utilizadas pelos índios, o autor, à semelhança dos manuais escolares de

João Ribeiro e Joaquim Silva, afirmou que a guerra entre as tribos poderia ser provocada pelo motivo mais

insignificante, pois,

“como todos os povos primitivos, tinham um forte sentimento de vingança; até a ofensa

feita a uma pessoa bastava para envolver toda a tribo numa luta. (...)

Quando havia número suficiente de prisioneiros, interrompiam a luta. Os vencidos eram

conduzidos até a taba, com grande alarido; lá eram sacrificados, em meio de grandes

festas, e podiam ser devorados se os vencedores fossem antropófagos”125.

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No seu texto didático, assim como nos outros autores, parecia que só a guerra praticada entre os

índios era condenável, algo típico de “povo primitivo” ou atrasado, não fazendo nenhuma ressalva contra a

idéia de guerra em si, presente mesmo entre os povos ditos “civilizados”.

Dessa forma, tem-se a impressão que, para a maioria dos autores analisados até o momento, havia

uma diferença de nível cultural, para não dizer racial, e de juízo de valor (moral) entre uma guerra praticada

por “selvagens” e “civilizados”, sendo a primeira abominável porque motivada por questões

“insignificantes” (como comentava Joaquim Silva, por um papagaio) e a outra justificável por atender a

interesses maiores (civilização) como a conquista de uma região (o Brasil), a expulsão de um inimigo ou

invasor (os holandeses e franceses), ou mesmo a salvação de almas da brutalidade da vida selvagem (no

caso dos índios)126.

Ao tratar da organização das tribos, Borges Hermida fez referência a um chefe, o morubixaba, ao qual

os índios obedeciam, e também ao pajé, o feiticeiro da tribo. Para ele, o pajé era a autoridade de maior

influência na tribo, pois os índios

“acreditavam que ele possuía poderes extraordinários: adivinhar o futuro, curar todas as

doenças, transformar-se em qualquer animal e até tornar-se invisível.

O pajé vivia solitário numa cabana distante; quando visitava a taba, porém, era recebido

com cânticos e danças e até limpavam o caminho para que ele passasse”127.

O pajé, na sua leitura, era o maior inimigo que os padres jesuítas enfrentaram quando iniciaram seu

trabalho de catequese no Brasil. Neste momento, o autor deixou transparecer a idéia de que o cristianismo

era superior às “crenças” indígenas, pois o pajé, segundo consta, “sabia que, depois de catequizados, os

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companheiros deixariam de acreditar em seus poderes”. Em outros termos, depois de iluminados pela fé

cristã, um dos elementos chave para a civilização, o índio deixaria de crer em feitiçaria e superstições128.

Quanto às nações e tribos, Borges Hermida repetiu a mesma classificação apresentada por João

Ribeiro, na sua História do Brasil (Curso Superior), e fez um breve resumo de cada uma, apontando para

aspectos como a sua localização e nível de civilização. Entre as tribos dos tapuias, ele qualificou os aimorés,

localizados no Espírito Santo, como os mais ferozes e atrasados porque não faziam casas, dormiam no

chão e “açoitavam seus filhos com plantas espinhosas para que eles se acostumassem a andar pelos matos”.

Os caribas ou caraíbas possuíam tribos tão cruéis que do nome “cariba” derivou, segundo o autor,

“canibal, sinônimo de antropófago”129.

A idéia de atraso, aqui esboçada, referia-se ao fato deste povo não seguir a maneira civilizada de

viver, ou seja, morar numa casa de alvenaria, dormir na cama de um quarto, deixar a criança protegida em

casa ou na escola e, principalmente, não devorar o seu próximo. Mas, poderíamos ampliar esta maneira

civilizada de viver para a idéia de existência de fé (cristã, de preferência católica), de lei (Estado) e de rei, no

caso do momento em que escrevia o autor, presidente (autoridade, chefe).

Assim como Macedo, que em suas Lições de História do Brasil para o uso das escolas de instrucção primarias

reproduziu a idéia de que à língua dos índios “faltavam as letras F, L e R forte”; portanto, não havendo

“verdadeira sociedade, nem leis, nem governo” e nem fé130, Borges Hermida retomou e reafirmou, com

outra roupagem e linguagem de seu tempo, o discurso da ausência de civilização entre estes povos, o que

os qualificava como “selvagens”, “pré-históricos”, “primitivos”.

De acordo com Adriane da Silva, a conhecida tríade nem Fé, nem Lei, nem Rei repetida de maneira

incansável por cronistas como Simão de Vasconcelos, Pero de Magalhães Gandavo e pelos jesuítas, era

reafirmada por Macedo, João Ribeiro, Joaquim Silva e Borges Hermida, obras didáticas de grande

vendagem e longa vida editorial no Brasil131.

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A influência indígena, concluiu o autor, era muito variada nos costumes do povo brasileiro, em

especial nas áreas rurais:

“construção de casas: feitas de barro batido e cobertas de palha ou sapé; alimentação: o

milho, cozido ou assado, e a mandioca para fazer farinha ou beiju; dança: cateretê e

xaxado; uso doméstico de utensílios de barro: moringas, talhas (para guardar a água) e

panelas”132.

Além desses elementos, o autor renomado de manuais escolares de História para o primeiro e

segundo graus desde 1945 apontou a influência indígena no uso da rede de dormir, apreciada pelas

populações do Norte e Nordeste, e no vocabulário, com o emprego de palavras da língua tupi “na flora

(pitanga, caju), na fauna (capivara, pirarucu), na denominação de acidentes geográficos (Paraíba, Iguaçu) e

em muitos nomes de pessoas (Moacir, Piragibe, Peri)”133.

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_____________________________________________________Sérgio Buarque de Holanda

No terceiro capítulo (“Exploração e posse da terra”), o historiador Sérgio Buarque de Holanda, professor

da cadeira de História da Civilização Brasileira da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo,

introduziu o elemento indígena na história do Brasil colonial. No item “O que devemos ao índio”, o autor

abordou, de forma esquemática, particularidades relacionadas aos primeiros habitantes do Brasil: tribos;

organização tribal, técnicas e artes; influências na formação da nacionalidade brasileira.

Quanto às tribos, assim como fez João Ribeiro, Sérgio Buarque observou que elas eram classificadas

segundo os critérios de raça e língua. Os grupos principais arrolados por ele eram os tupis-guaranis, jês,

caribes ou caraíbas e nuaruaques. A origem dos primeiros habitantes do Brasil não foi mencionada nem

hipoteticamente no seu manual escolar.

Em relação à organização tribal, o autor notou que elas se reuniam em nações, dentre as quais foi de

maior destaque a nação dos índios tupis – padrão de análise. As relações sociais nas tribos eram mediadas

por um chefe geral, o tuxaua ou morubixaba. Os chefes guerreiros obedeciam aos chefes gerais. Além do

chefe guerreiro, tinha ainda o chefe religioso, conhecido pelo nome de pajé. As tribos, na sua leitura,

mudavam freqüentemente de lugar, portanto, eram nômades:

“Como viviam da caça, da pesca e de algum plantio, logo que animais e peixes

começavam a faltar e o solo a produzir menos, procuravam novo lugar para viver.

Invadiam territórios de outras tribos, a fim de expulsá-las. Daí estarem freqüentemente

em guerra”134.

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As aldeias dos índios, de acordo com Sérgio Buarque, numa descrição próxima a feita por Rocha

Pombo, eram protegidas por uma cerca de paus, uma paliçada, denominada de caiçara. Eles moravam em

grandes abrigos (ocas) feitos a partir de troncos cobertos de folhas de palmeira. Estes abrigos se agrupavam

em torno de uma praça central (ocara), onde eram realizadas as festividades e as cerimônias.

Os laços de união e afetividade entre todos os membros da tribo eram muito intensos. Segundo o

autor de Raízes do Brasil, tal sentimento de unidade pôde ser exemplificada da seguinte maneira:

“qualquer provocação ou ataque a um deles atingia a todos os demais, levando a novas

guerras. Uma lenda dos guaranis do Portugal diz que eles e os tupis eram antigamente

uma só nação. O que separou aqueles destes foi uma discussão por causa de um papagaio

que os dois grupos reclamavam para si. Os mais fortes, porque eram mais numerosos (os

tupis), acabaram ficando com o papagaio e com a terra, que era o Brasil, e expulsaram os

outros, menos numerosos, que ficaram sendo os guaranis.”135.

Para o autor, as tribos apresentavam entre si graus diferentes de adiantamento. Enquanto algumas

possuíam certo conhecimento de agricultura, outras viviam de forma mais primitiva, da coleta, ou seja,

“colhendo frutos de plantas que encontravam”136.

Embora ressaltasse os diferentes níveis de desenvolvimento dos índios, à semelhança dos demais

autores, Sérgio Buarque traçou algumas características comuns entre as tribos:

“não conheciam a escrita, nem o uso de metais; não domestificavam animais, acreditavam

nas divindades do bem e do mal; alguns praticavam a antropofagia, comendo a carne do

inimigo forte e corajoso para absorver-lhe as qualidades. Viviam geralmente nus, pintando

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o corpo de vermelho e de preto, com tinturas extraídas de plantas, como o urucu, e o

jenipapo”137.

No que concerne as técnicas e artes praticadas pelos índios, o seu manual escolar ressaltou que eles

cultivavam plantas nativas após a derrubada e a queimada das árvores, prática chamada de coivara. Borges

Hermida, por exemplo, havia recriminado a prática da coivara como uma péssima herança deixada pelos

índios na agricultura brasileira. Entre os alimentos cultivados pelos indígenas estavam a mandioca, o milho,

o feijão, o amendoim, o abacaxi, a batata-doce, o tabaco, a banana e a pimenta. Além disso, enfatizou o

autor, eles colhiam frutos selvagens como o caju, o mamão, abóbora e cabaças. A mandioca, o milho e o

caju eram ingredientes essenciais para a fabricação do cauim, uma bebida utilizada durante o ritual da

antropofagia.

Como instrumentos de trabalho, os índios possuíam facas e machados de pedra polida. Para a guerra

entre as tribos, faziam uso de “tacapes, o arco e a flecha, e lanças para as quais utilizavam pontas de pedras,

de ossos e de dentes”138.

Segundo Sérgio Buarque, assim como destacaram Joaquim Silva e Borges Hermida, algumas tribos

sabiam técnicas de tecelagem, produzindo tangas e redes de fibras de palmeiras ou de algodão nativo. Era

também conhecida a prática entre algumas tribos de fabricação de cestos e a técnica da cerâmica, ocupação

exclusivamente exercida por mulheres. As índias faziam recipientes de diversos tamanhos e formas e

esteiras de palha.

Para a navegação nos rios e no mar, os índios construíram jangadas e canoas. As últimas eram feitas a

partir de “um tronco escavado ou de cascas de certas árvores”139.

Nas festividades tribais, de acordo com o seu manual escolar, os índios faziam uso de instrumentos

sonoros como tambores, chocalhos e flautas de osso.

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Para o professor Sérgio Buarque, na esteira de Borges Hermida, as manifestações artísticas dos índios

tinham maior destaque nos objetos de cerâmica e nos enfeites: “Cocares de penas e plumas; braceletes de

sementes, combinadas com dentes humanos e de animais”140.

Ao contrário de Macedo e João Ribeiro, o autor enfatizou a importância do índio como um dos

elementos formadores do povo brasileiro. Na esteira de Rocha Pombo e Borges Hermida, Sérgio Buarque

descreveu para o seu leitor-aluno as contribuições deste elemento racial para a formação da identidade

nacional brasileira:

“Devemos ao índio a técnica do preparo do solo para o plantio, pois a coivara continua

sendo usada no interior do Brasil. A rede (ini) também é uma herança do índio. No norte

do país ela é utilizada para dormir, em substituição da cama, devido ao clima muito

quente. No resto do Brasil, ela é sinônimo de descanso.

Em várias regiões (Norte e Nordeste) continuam a ser usadas as jangadas e as canos de

um só tronco de árvore. Nos alimentos que os índios nos legaram, a mandioca ocupa

lugar principal, pois ainda é alimento constante de todo o país. Uma das contribuições

mais importantes dos índios tupis-guaranis está no nome de localidades, de plantas e de

animais brasileiros”141.

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______________________________________________________Nelson & Claudino Piletti

Na sua História do Brasil sobre o período colonial, da coleção História & Vida, publicada nos anos 1980, o

Nelson Piletti, jornalista e docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em co-autoria

com seu irmão, Claudino Piletti, ao contrário dos seus confrades de escrita de história, dedicou os dois

capítulos iniciais à temática do indígena, os “primeiros habitantes do Brasil”, antes de abordar os tópicos

dos descobrimentos e conquistas portugueses.

O primeiro capítulo (“Pré-História do Brasil”) era dedicado à tentativa de solucionar algumas

questões sobre as origens e modos de vida dos primeiros habitantes do território brasileiro:

“Há quantos anos o Brasil é habitado por seres humanos? Como chegaram os primeiros

habitantes? Como viviam essas pessoas? Que sinais nos deixaram para que pudéssemos

estudar sua vida?”142.

Para os Piletti, diferentemente de Joaquim Silva e Borges Hermida, os primeiros habitantes do

continente americano vieram muito provavelmente da Ásia, passando pelo estreito de Bering, localizado a

noroeste da América do Norte, por volta de há mais ou menos 40 000 anos. Assim como João Ribeiro e

Rocha Pombo, eles deixaram de lado a hipótese da autoctonia do homem americano.

Os autores declararam ainda que seria um grande engano pensar que a “nossa aventura” teria tido

início quando os portugueses desembarcaram em Porto Seguro, “há pouco menos de quinhentos anos

(cinco séculos), em 1500”143.

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Os primeiros habitantes do Brasil, segundo os Piletti, não legaram para a posteridade nada escrito.

Contudo, deixaram uma série de vestígios arqueológicos, como por exemplo “restos de objetos e de casas,

pinturas, esqueletos etc.”, que podiam auxiliar a sociedade atual a ter algumas idéias a respeito de como eles

viviam144.

Entre os artefatos arqueológicos dos antepassados indígenas que viviam no Brasil quando os

portugueses chegaram, os irmãos Piletti destacaram montes de conchas, conhecidos como sambaquis ou

concheiros, objetos de barro e de pedras e pinturas em cavernas.

Em relação aos sambaquis ou concheiros, deixados no litoral brasileiro, principalmente no sul, os

autores os descreveram e ofereceram datações para orientar o seu leitor-aluno:

“Esses sambaquis têm de 2 a 30 metros de altura e às vezes até 100 metros de diâmetro.

Cavando no interior desses sambaquis, os estudiosos encontraram restos de esqueletos,

restos de cabanas, objetos de pedra de diferentes tipos e outras coisas.

Esses montes de conchas foram sendo feitos durante centenas ou milhares de anos. Os

mais antigos Chegam a ter 10 000 anos”145.

Para os Piletti, os objetos de barro e de pedra podiam ser encontrados geralmente no interior do

país. Muitas vezes, ao lavrar a sua terra, os trabalhadores rurais encontravam pedaços de tigelas de barro ou

mesmo grandes potes do mesmo material com esqueletos dentro. Outras vezes desenterravam objetos de

pedra, como machadinha e lascas de vários tamanhos, utilizados para cortar e raspar, e ainda pedaços de

pedra, usados “para quebrar sementes e para outras finalidades”146.

Segundo seu manual, esses restos, deixados há cerca de mil anos, estudados pelos arqueólogos,

poderiam mostrar dados a respeito dos grupos humanos que os deixaram. Por exemplo: 1. Esses grupos

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viviam em aldeias que eram formadas por cabanas de diversos tamanhos; ficavam quase sempre no alto de

suaves colinas, próximos de rios ou riachos. 2. Os moradores dessas aldeias tinham a prática de enterrar os

seus mortos em vãos de cerâmica, dentro das aldeias, mas fora das cabanas147. 3. A quantidade de flechas

feitas de pedra encontradas pelos estudiosos permite mostrar a “evolução” dos grupos que fabricaram estes

objetos – “são encontradas desde lascas simples até pontos totalmente retocadas”148.

Os autores, em seguida, comentaram sobre as pinturas em várias cores (como o vermelho, o

amarelo, o branco e o preto), sinais gravados ou outras representações encontradas em muitas cavernas e

grutas do interior do Brasil e mesmo em lajes de pedra ao ar livre.

Ao abordar este assunto, eles fizeram um breve histórico das pesquisas sobre a arte rupestre feitas

no país, em especial, das pinturas encontradas em Lagoa Santa, Minas Gerais, e no Estado do Piauí. No

caso deste Estado, os Piletti observaram que no ano de 1969, o prefeito da localidade de São Raimundo

Nonato levou ao Museu Paulista 69 fotografias de abrigos e pinturas da área. E, amparada neste material

levado até a referida instituição,

“foram então organizadas várias expedições para o local. E o que se descobriu? Cerca de

220 cavernas, grutas e outros abrigos, com aproximadamente 9 000 figuras. A partir

dessas descobertas feitas no Piauí, você pode ter uma idéia aproximada da importância

dos grupos que viveram na região há milhares de anos.

A maioria das figuras dessas cavernas representa seres humanos, animais e objetos, além

de simples traços. Os seres humanos aparecem isolados ou agrupados em cenas de caça

de guerra, de trabalho e outras. Os animais mais comuns são o veado, a ema, a onça, o

tatu, o lagarto, a anta, a capivara e alguns pássaros”149.

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Para ilustrar a relevância destas descobertas e estudos arqueológicos para o conhecimento histórico,

além de fotos dos artefatos, os autores trouxeram como leitura complementar artigos de jornais de grande

circulação, como a Folha de S. Paulo, tratando do assunto.

Os irmãos Piletti encerraram o capítulo fazendo uma defesa da necessidade destas pesquisas não

somente nas instituições como museus, mas também na sala de aula, pois através da sua prática alunos e

professores poderiam descobrir muitas informações que antes desconheciam: “como fazer melhor um

trabalho escolar, como ajudar um colega, como organizar melhor uma brincadeira, um jogo e assim por

diante”150.

Além do livro didático como fonte de pesquisa em sala de aula, os autores apontaram a necessidade

de se recorrer às notícias apresentadas pela televisão ou jornais, pois nem sempre muitas das novas

descobertas apareciam nos manuais escolares. Por esta razão, alertou, era “muito importante ler jornal e

acompanhar as notícias no rádio e na televisão”151.

Após apresentar os estudos sobre a Pré-História do Brasil, os Piletti, de modo semelhante ao que

tinha feito Capistrano de Abreu, em Capítulos de História Colonial, dedicaram um capítulo aos indígenas (“O

Brasil dos Índios”). Nesta perspectiva, eles começaram a descrever a paisagem natural (fauna e flora) do

Brasil antes da chegada dos portugueses e, nesse momento, incluíram o elemento nativo da terra e seu

modo de vida.

Os autores relatavam sobre o Brasil daquela época pelo que ele tinha de diferente do momento em

que o seu leitor-aluno estava no presente. Pediam para o leitor-aluno imaginar que não existia nada do que

ele estava acostumado a ver todos os dias. Por exemplo, ressaltava a dupla de autores, “não existem

escolas, casas, edifícios” e, além disso, “não existe luz elétrica, nem automóvel, nem ônibus, nem avião, e

nenhuma rua é asfaltada”152. Em suma, não havia nenhum elemento tecnológico que caracterizasse os

padrões de civilização do final do século XX.

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Em seguida, eles solicitaram ao leitor-aluno que utilizasse a sua imaginação e construísse um Brasil

onde existissem apenas florestas imensas, cortadas por rios caudalosos, de águas límpidas e cristalinas:

“Espalhado pela imensidão do território brasileiro, alguns milhares de clareiras no meio

das florestas. E o que se vê nessas clareiras? Algumas choupanas, feita de troncos e folhas

de árvore, algumas roças com pequenas plantações de milho e mandioca e numerosos

seres humanos – homens, mulheres, crianças – sem nenhuma roupa e que se dedicam a

atividades diversas: caçam, pescam, dançam, brincam, nadam nos rios.

É esse o Brasil que os portugueses encontraram quando aqui chegaram em 1500. O Brasil

dos índios. Mais ou menos 5 milhões de pessoas ocupavam quase todas as regiões

brasileiras”153.

Este cenário, quase idílico das paisagens e povos do continente americano, segundo os autores da

coleção História & Vida, seria completamente transformado “com a chegada dos brancos vindos da

Europa em grandes embarcações”. Eles traziam muitos objetos, narrou os irmãos Piletti, que os índios não

conheciam e que os deixaram encantados: espelhos, contas, canivetes, tecidos etc. Além disso, traziam em

suas embarcações também um item desconhecido dos povos nativos – as armas de fogo, instrumento

fundamental para “os europeus dominarem os índios e ocuparem suas terras”154.

Embora eles já tivessem oferecido ao leitor-aluno um quadro não muito favorável ao índio, ou seja,

um perdedor, uma vítima das armas da civilização européia, estes se propuseram a mostrar o que os índios

fizeram em defesa de sua vida, de sua terra, de sua liberdade, de suas crenças, de seus costumes155.

Os Piletti, homens do seu tempo, escrevendo num Brasil da abertura e das “Diretas Já”, trouxeram

para o seu texto a necessidade de se estudar os índios do Brasil para que se pudesse aprender “a respeitar

todas as pessoas, sejam elas brancas, negras, índias ou mestiças, velhas ou jovens, católicas, judias ou

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protestantes, ricas ou pobres”156, ou seja, os brasileiros, síntese de todas as histórias, sentimentos, dores e

sofrimentos a ser alcançada na construção de uma nova democracia política157.

Depois de apresentar seus objetivos e compromissos ao escrever sobre o Brasil dos índios, os Piletti

retomaram os tópicos comuns adotados pela tradição didática ao abordar o assunto. No primeiro tópico

tratou da organização dos povos indígenas. Observaram que os índios brasileiros pertenciam a vários

grupos diferentes, com costumes diferentes, mas que geralmente eram

“agrupados de acordo com sua língua. E já foram descobertas e estudas mais de cem

línguas indígenas. Veja que grande diferença em relação ao Brasil atual, em que a maioria

do povo fala apenas uma língua, o português. Mesmo os índios atualmente muitas vezes

são obrigados a aprender o português para se comunicar com os brancos”158.

Para eles, as línguas indígenas eram reunidas em grupos, de acordo com suas semelhanças, sendo

três grupos ou troncos os principais no Brasil: o Tupi; o Macro-Jê; o Aruaque, fora outras línguas que não

foram agrupadas. Em suma, Piletti repetiu o modelo apresentado havia um século por João Ribeiro.

Apesar de destacar a diferença entre os índios, os Piletti optaram por se aterem aos traços comuns a

quase todos eles. Dessa forma, eles reafirmaram com alguns nuances as imagens construídas pela tradição

de escrita de manuais escolares de História do Brasil sobre o índio:

“podemos dizer que os índios se organizam em tribos. Uma tribo é um grupo de pessoas

que fazem suas aldeias numa mesma área, falam a mesma língua, têm os mesmos

costumes e um forte sentimento de união entre elas”159.

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Ao escrever sobre o trabalho e a família indígena, os autores afirmaram que a maioria dos índios

vivia da atividade da coleta de frutos na floresta, da agricultura, da caça e da pesca. Havia uma tendência, na

sua leitura, dos índios que praticavam a agricultura de se fixarem por mais tempo num lugar, porque

necessitavam “preparar a terra, plantar e esperar a colheita. Enquanto esperam a colheita, fazem outras

coisas, como objetos de cerâmica e utensílios para o trabalho”. Além disso, “geralmente as roças pertencem

a toda a tribo e os alimentos colhidos são distribuídos entre todos”160.

Neste trecho, os autores pareceram dar a entender ao seu leitor-aluno que o fato de se fixar num

lugar permitia o desenvolvimento, para não dizer a “evolução”, dos povos indígenas, pois a prática de

confeccionar utensílios de cerâmica era associada apenas aos povos que praticavam agricultura e

permaneciam por mais tempo num lugar. Havia nestes também uma maior sentimento de coletividade ou

comunismo.

A descrição da organização política e social da tribo feita pelos Piletti aproximaram-se muito da

elaborada por Rocha Pombo, nos idos dos anos 1920. Nela, as tarefas eram bem distribuídas entre os seus

membros, havendo trabalhos que eram realizados por mulheres e homens. As mulheres cuidavam do

trabalho agrícola; a coleta dos frutos da floresta; a fabricação da farinha; a comida e os demais serviços

domésticos; o cuidado das crianças. Os homens da tribo cuidavam das tarefas mais pesadas, como a

derrubada das matas e preparação da terra; a caça e a pesca; a fabricação de canoas; a construção das casas.

Além disso, eram responsáveis pelas expedições guerreiras; a proteção das mulheres, crianças e velhos.

A referência aos conflitos entre as tribos e a prática da antropofagia, ressaltada por outros autores,

não compunha a imagem do índio elaborada pelos autores do manual analisado.

As uniões matrimoniais nas tribos indígenas, segundo Piletti, geralmente eram feitas entre os

membros de uma mesma tribo. A prática da monogamia ou poligamia variava de tribo para tribo.

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Os Piletti construíram um indígena semelhante ao bom selvagem, ainda não corrompido pela

maldade humana. Os índios, enfatizou os autores, “respeitam muito uns aos outros e são muitos

carinhosos, principalmente com as crianças”161. O seu discurso lembrava, neste aspecto, um Bartolomeu de

Las Casas na defesa do índio contra as atrocidades cometidas pelo colonizador162 e um Jean-Jacques

Rousseau ao proclamar que o ser humano não nascia mau, mas era vítima do meio. O índio dos Piletti,

portanto, vivendo no meio da floresta, longe da corrupção do material e da carne, estava muito mais

próximo do paraíso163.

Ao falar das “coisas que os índios sabem”, os autores observaram que estes dependiam da natureza

para sua sobrevivência; por isso, viviam em plena harmonia com ela164. O seu índio ecologista fazia uso dos

recursos naturais (a floresta, os animais, a água dos rios e os peixes) sem destrui-los. Este índio oferecia às

gerações futuras (aos leitores-alunos do manual escolar dos Piletti do final do século XX) lições de

cidadania ambiental. Ele aprendia com a natureza e assim:

“Conhece os hábitos dos animais, em que época dão cria, de que se alimentam, quando

podem ser caçados, e de que maneira deve caçá-los; conhece as plantas, as que fazem bem

para a saúde e as que são venenosas. Na América do Sul são conhecidas mais ou menos

setenta espécies de vegetais venenosos e que são usados pelos índios na pesca; dentre eles,

o mais conhecido no Brasil é na pesca; dentre eles, o mais conhecido no Brasil é o timbó

ou tingui. Jogado na água, esse veneno mata ou atordoa os peixes, facilitando a pesca. Ele

não faz mal a quem comer o peixe”165.

Os conhecimentos adquiridos pelos índios, comentou os autores do manual escolar, eram resultado

de muitos anos de estreita convivência com a natureza. Desde criança, através dos adultos, eles começavam

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a receber estes conhecimentos. O índio ecologista sabia que a natureza era a garantia de sua vida, “que o

mal que fizer a ela estará fazendo a si mesmo e a seus filhos” 166.

Além de ecologistas, os índios apreciavam as artes. Tanto da arte que tinha uso para o seu cotidiano,

como a fabricação de utensílios (redes, vasos de cerâmica etc.) e armas, quanto da arte ligada a seus rituais e

festas, como a pintura do corpo, a arte das plumas, os cantos e as danças.

Nesta perspectiva, parecia ao leitor-aluno que nos modos de vida destes povos estariam as sementes

da noção de cidadania necessária para a construção de um Brasil mais justo, igualitário, carinhoso e com

consciência ambiental.

Após demonstrar os atributos memoráveis da cultura indígena, os irmãos Piletti trouxeram uma

imagem apocalíptica sobre estas sociedades. O mundo do índio teve o início de seu desmoronamento no

instante do encontro com o branco. Este, enfatizou os autores,

“considerava-se superior, dono da verdade, com direito sobre a terra, a liberdade e a

própria vida do índio. Os conquistadores europeus chegaram ocupando a terra do índio,

obrigando-o a trabalhar em troca de objetos de pouco valor e matando quem

resistisse”167.

A cena do encontro entre indígenas e portugueses, denominados de “invasores”168, não era nada

amistosa no discurso didático dos Piletti como havia sido descrito por Joaquim Silva e Borges Hermida. A

chegada dos portugueses, na sua leitura, foi fatal para os índios, pois os que não morriam nas guerras eram

escravizados ou pereciam vítimas de doenças para as quais não tinham resistência, como a varíola, o

sarampo e a gripe.

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Imagens do Índio

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Diante dos invasores portugueses, segundo os Piletti, os índios tomaram três atitudes: 1. reagiram

violentamente, promovendo uma guerra incansável contra o invasor branco, numa tentativa frustrada de

expulsá-lo do Brasil. No confronto com o inimigo, os índios sucumbiram, pois “viviam dispersos e não

tinham como unir-se para enfrentar os invasores; suas armas eram menos poderosas que as dos

portugueses, que já tinham armas de fogo”. 2. não podendo vencer o inimigo, muitas tribos indígenas

tentaram convier de forma pacífica com eles, mas também neste ponto levaram a pior: “foram obrigados a

abandonar os costumes de sua gente, e a trabalhar para os brancos como escravos, e ainda ficaram sujeitos

a todas as doenças dos brancos”. 3. sem poder vencer ou conviver com os invasores, muitos indígenas

fugiram para o interior do Brasil, na tentativa de preservar um modo de vida próprio, distante dos brancos.

Contudo, neste aspecto também não foram felizes, uma vez que os “invasores organizavam expedições

armadas para aprisioná-los com o objetivo de escravizar”. Enfim, o índio acabou fracassando em todas as

tentativas de resistir ou convier com o invasor, superior a eles em termos de armas e em estratégia169.

Os Piletti encerraram sua análise da trajetória trágica dos índios comentando sobre os problemas que

as populações sobreviventes enfrentam na atualidade, as suas lutas para que as suas terras fossem

demarcadas e protegidas pelo Estado contra a invasão dos fazendeiros e das grandes empresas

agropecuárias. Para confirmar sua preocupação em defender o índio, os autores transcreveram no item

final do capítulo uma entrevista de um índio ao jornal O Pasquim sobre a vida no sul do Pará e as lutas de

seu povo contra as ameaças dos invasores. Ao longo do capítulo, ele transcreveu trechos do livro História

dos povos indígenas. 500 anos de luta no Brasil, elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI)170,

sobre o seu jeito de governar, pensar a terra, de ensinar as crianças, de respeitar a natureza, de enfeitar-se e

praticar suas crenças, de trabalhar. Nestes textos, eles contrapuseram-se às maneiras dos índios pensarem o

seu mundo com a dos brancos, reforçando a idéia de uma história pautada entre duas lógicas: a dos

vencedores (opressores) e a dos vencidos (oprimidos).

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Imagens do Índio

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Ao fazer uma denúncia das atrocidades cometidas pelos portugueses contra os povos indígenas, os

Piletti falavma aos seus leitores-alunos sobre as violências praticadas por todas as formas de opressão

presentes ao longo da história do país. As restrições aos direitos de liberdade vivida pelos índios desde o

período colonial podiam ser, através do texto didático destes autores, projetadas nas censuras e

perseguições cometidas pelas autoridades do regime militar, a partir de 1964, àqueles que ofereciam

resistência ou contestavam o status quo.

Em suma, os Piletti denunciavam que o Brasil imaginado por Joaquim Silva e Borges Hermida,

manuais escolares amplamente utilizados nas escolas ao longo dos anos 1960 e 1970, representados pela

convivência pacífica dos povos, da união das “três raças”, e por um Estado forte e justo, era uma ilusão,

uma meta não alcançada. Havia ainda um longo caminho a percorrer para a conquista plena da cidadania.

Era nas comunidades indígenas do período pré-cabraliano que os autores iriam buscar exemplos de prática

de cidadania.

Embora os irmãos Piletti enfatizassem a destruição dos povos indígenas, no décimo segundo

capítulo (“A Cultura no Brasil Colonial”) havia referências às contribuições deste povo na formação da

cultura colonial (e, depois, nacional). Ele rotulou as influências dos índios como cultura espontânea171. Ao

tratar deste tópico, percebemos uma repetição dos mesmos atributos ressaltados pelos autores analisados:

na alimentação (mandioca, milho, feijão, amendoim, abacaxi, batata-doce, banana, abóbora, mamão); na

técnica da preparação da terra para o cultivo (a coivara)172; na construção de casas de pau-a-pique, muito

utilizados no interior do país; o uso da rede para dormir, hábito comum no Norte e Nordeste brasileiro; na

técnica de construção de canoas, “tanto para a pesca quanto para o transporte”; a confecção de

instrumentos musicais (os tambores, os chocalhos e as flautas de osso); os nomes de cidades, plantas e

animais originados das línguas indígenas; as crenças e histórias que enriqueceram o folclore nacional (o

boitatá, o curupira, o saci-pererê)173.

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Imagens do Índio

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Devemos, todavia, observar que no início deste mesmo capítulo os autores da conhecida coleção

História & Vida informaram aos seus leitores-alunos que se não fosse o Brasil colonizado, mesmo em que

pesassem as críticas citadas anteriormente, não haveria uma série de elementos fundamentais para uma

nação civilizada. O aluno

“moraria numa habitação muito simples, feita de troncos de árvores e coberturas de

folhas de palmeira ou de outro vegetal. Quase não usaria roupa, andaria descalço, suas

armas seriam o arco e a flecha.

Não iria á escola, mas aprenderia os costumes e valores de sua tribo em contato direto

com as pessoas mais velhas. (...).

Sua alimentação seria tirada do rio, da mata ou de algumas roças. Sua tribo mudaria de

lugar quando ficasse difícil conseguir alimento na área ocupada por ela. Você não

conheceria telefone, rádio, televisão, automóvel, avião e outros inventos. Falaria o tupi-

guarani ou outra língua indígena. Não saberia escrever”174.

As conclusões dos professores-autores Piletti, neste aspecto, não estariam distantes das apresentadas

principalmente por Joaquim Silva e Borges Hermida sobre a relevância da obra colonial na construção da

civilização brasileira, uma vez que este demonstrava pelo trecho citado as perdas que teriam os seus alunos

se vivessem como as tribos indígenas da época da chegada dos portugueses. Em suma, eles não deixaram

de reconhecer as contribuições dos colonizadores, embora criticassem os meios adotados, uma vez que a

nação brasileira era fruto deste encontro de raças: índios, portugueses, negros.

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Imagens do Índio

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________________________________________________________________Chico Alencar

No primeiro capítulo (“O mundo da terra de todos”)175 de Brasil Vivo (volume I), Chico Alencar,

historiador e professor licenciado de Prática de Ensino da Universidade Federal do Rio de Janeiro, iniciou a

sua leitura sobre a presença indígena no Brasil a partir da narrativa da pequena história de Tsipré, um

indiozinho xavante que fez uma música e foi aplaudido por toda a tribo176.

A narrativa sobre o mundo do pequeno índio serviu para o autor apresentar a vida dos primeiros

habitantes antes da chegada dos portugueses – um cenário paradisíaco, onde todos eram felizes e viviam

em plena harmonia com a natureza. Antes de falar do índio triste e submetido, o autor e co-autor de

diversos manuais escolares de História e infanto-juvenis teve a preocupação de mostrar ao seu leitor-aluno

que antes ele era alegre e livre:

“Tsipré quer dizer Pássaro Vermelho. Tsipré é também o nome de um jovem xavante que

mora em Mato Grosso.

Ele está feliz da vida: ao lado de uma fogueira, entoou com alguns amigos um canto de

sua autoria. Toda a tribo ouviu com atenção.

- Tei wadzairõ redi! – diz um velho, chacoalhando as bochechas de tsipré em sinal de

aprovação.

- É bonito mesmo, concordam todos.

A partir de agora, aldeia xavante entoará esse novo canto ao terminar o dia. E Tsipré não

ia mais ficar aflito por não ser moço completo. Como bom xavante, ele já sonhou seu

canto e não precisou enterra-lo, esquece-lo para sempre, pois nenhum dos velhos da

aldeia reprovou a canção.

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Na cabana dos não-casados, ninguém mais vai zombar do seu sono pesado, que o

impediu por tanto tempo de criar uma melodia.

Aquela madrugada calma nunca mais seria esquecida: Pássaro Vermelho acordou com um

arrepio no corpo, sentou-se na esteira, espantou o sono e, muito concentrado, foi tirando

um som dentro de si... Os pauzinhos da arvora wetepa reawyhi enfiados na sua orelha

tinham funcionado, provocando o sonho de um canto novo, lindo, nunca ouvido por

ninguém!

A alegria de Tsipré, Pássaro Vermelho, não espanta nenhum outro xavante. É a mesma das

crianças de todas as tribos, dos muitos curumins quando vão se banhar no rio ou na lagoa,

bem cedinho. Sem medo de água fria ou correnteza! É a mesma dos caçadores que voltam

da mata com uma anta ou com um macaco cuatá de vinte quilos:

- Hoje tem almoço farto e ninguém mais trabalha, não é?

A felicidade de Tsipré é igual à de sua mãe há treze anos, cavando um ‘ninho’ no chão e

ficando de cócoras para que ele saísse de seu útero. Tsipré está tão contente quanto seu

pai no dia em que ele nasceu, preparando o caldo de folhas para limpa-lo assim que sua

mãe rompesse com as mãos o cordão umbilical. Viva a vida!

Tsipré, moço completo, vê agora a criançada da ladeia brincar de ‘caça ao veado’. Um

indiozinho faz o papel do animal selvagem, outro o do caçador e os restantes são os

cachorros. Depois de muita algazarra e correria, a caça acaba sendo encurralada, ‘morta’ e

levada para uma clareira onde sua pele é ‘arrancada’ e sua carne ‘assada’. O jogo recomeça:

quem era caça vira o caçador.

Pássaro Vermelho lembra do divertimento que era cultivar minúsculas roças ou espantar a

passarinhada nas vésperas das colheitas. A bater camaleões com pequenos barcos, então,

nem se fala: uma delícia. (...)

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Pássaro Vermelho cresceu e descobriu novas emoções, como a de cantarolar para Watsi,

uma indiazinha graciosa:

Te mandei um passarinho

Patuá miri pupé

(dentro de caixa pequena)

Pintadinho de amarelo

Iporanga ne iané!

(tão formoso como’ocê!)

Watsi que dizer Estrela”177.

Ao tomar como referência a pequena narrativa sobre a vida de Tsipré, o autor montou o cenário do

cotidiano dos índios no Brasil antes de 1500, retratando os seus hábitos, costumes, relações sociais e

familiares. Na imagem criada por Chico Alencar, o mundo de Tsipré era cercado de segurança e paz, não

havia conflitos ou sofrimento. Uma criança nascia e crescia sem passar por qualquer ameaça. O seu mundo

era uma brincadeira. A alegria e a música eram uma marca registrada da comunidade indígena. As

atividades da tribo de Tsipré eram pautadas pela convivência não destrutiva com a natureza. Aliás, ela era a

fonte de inspiração para as músicas e rituais dos índios. Havia um clima de respeito entre os índios e entre

estes e a natureza. O alimento conseguido a partir da caça, pesca e plantio era o necessário para a

sobrevivência da tribo. Não havia a preocupação de acumulo e de exploração excessiva da natureza. A

felicidade renovava-se a cada nascimento, representado pelo amor dos pais do pequeno Tsipré. Ali, naquela

paisagem paradisíaca, perdida no meio da floresta, um índio nascia, crescia, tornava-se homem e constituía

sua família.

À maneira de Rocha Pombo, o autor relatou aos seus leitores-alunos que a escola dos curumins era a

vida. Uma criança desde os três anos costumava dividir o que tem entre os companheiros, sem ser forçada

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a isso. A idéia de comunidade era valorizada desde muito cedo. As crianças aprendiam imitando os adultos.

A educação dos pequenos nunca era acompanhada de “palmada, puxão de orelha ou beliscão”178.

Para Chico Alencar, a natureza era o grande laboratório para os índios. Um laboratório que produzia

vida, não poluía ou desmatava.

Em suma, o mundo dos primeiros habitantes do Brasil era como a do pequeno Tsipré. A sua

comunidade tribal era o retrato de uma aldeia feliz:

“gente e mata, gente e terra, gente e lago, bicho e gente. Uma grande união entre todos

esses elementos vegetais, minerais e animais: aí está o equilíbrio ecológico. Nas suas aldeias

passeiam araras, tucanos, perdizes, patos micos, quatis e gatos! Suas lendas mostram uma

grande intimidade com tudo que os cerca”179.

Assim como os irmãos Piletti, o professor Chico Alencar procurou mostrar aos seus leitores-alunos

que nas comunidades indígenas do passado estavam as sementes da cidadania almejada para o Brasil dos

anos 1980. Na tribo de Tsipré estava o modelo para a construção de uma nova sociedade, para a escrita de

uma nova história da “nossa gente”. Ali estava o paraíso perdido. O bom selvagem era o homem a quem

os homens do século XX deveriam se espelhar, exaltando e praticando a ética, o respeito e a valorização da

natureza. O índio no seu manual escolar, na esteira da obra de Capistrano de Abreu, apareceu como parte

da paisagem da natureza, ou seja, “Homem que é árvore, que é pedra, que é rio”180.

Outra idéia amplamente atribuída aos índios por Chico Alencar era o sentimento de solidariedade e

comunidade tribal:

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“Todos se ajudam: lá estão muitas mulheres cavando o chão com pedaços de pau e depois

plantando mandioca, abóbora, milho, amendoim e mamão. Tudo é repartido igualmente,

toda a produção é colocada em comum: é a comunidade tribal. Quem já ouviu falar de um

índio mendigo dentro da tribo? Quando há boa caça, boa pesca e boa colheita, todos

engordam. Em tempos difíceis, todo mundo emagrece. Inclusive os chefes!”181.

Em relação à organização familiar, os homens xavantes costumavam casar-se com as irmãs das

mulheres de seus irmãos com o objetivo de manter a união da família, evitando o casamento com pessoas

muito afastadas. Provavelmente a índia Watsi, por quem Tsipré se apaixonou, era pertencente ao grupo de

relações próximas da sua família. Além do amor, ressaltou o autor, importavam também os interesses e as

conveniências da família indígena. No relacionamento entre um homem e uma mulher não havia o medo,

conhecido da tradição ocidental, sobre o sexo e o amor:

“Das margens do rio Guaporé, em Rondônia, vem a certeza dos nambikwara:

- Tamindige mondage! (Fazer amor é bom!)”182.

Nos mitos e tradições indígenas ensinadas dos mais velhos para os mais novos, Chico Alencar

encontrou belas lições para a vida. Lições de sabedoria e respeito ao mundo em que viviam. O mundo do

pequeno Tsipré era a contra história do vivido pela a maioria das crianças brasileiras nos anos 1980. Chico

Alencar, homem de longa história de militância em movimentos sociais na cidade do Rio de Janeiro, ao

narrar a vida desse pequeno índio, teceu severas críticas a sociedade de seu tempo, onde valores como

cidadania, ética, respeito e amor estavam distantes da vida de todos.

A história do maravilhoso mundo de Tsipré contada pelo autor foi preparando o seu leitor-aluno

para a tragédia que se aproximava junto com as caravelas portuguesas em 1500. Para ressaltar o tamanho

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do desastre vindouro, ele apresentou dados numéricos da dizimação causada pelas armas e doenças

trazidas pelos colonizadores:

“Esse é o mundo dos primeiros habitantes do Brasil. Eles eram cerca de 6 milhões

quando os portugueses aqui chegaram, faz quase 500 anos. Hoje, porém, cabem dentro

do estádio do Maracanã ou do Morumbi. Ou do Mineirão, ou do Beira-Rio. São pouco

mais de 200 mil índios, falando 155 idiomas diferentes.

São quase 200 grupos tribais, isto é, quase duas centenas de nações. A pátria de um índio

é sua tribo e sua terra. Essas nações tentam resistir. Dentro de muitos estados brasileiros

vivem grupos numerosos, como os tucuna no Amazonas, os macuxi em Roraima, os

caxianauá no Acre, os munducuru no Pará, os terena em Mato Grosso, os guajajara no

maranhão, os potiguara na Paraíba, os caingang no Rio Grande do Sul.

Entretanto, só neste século desapareceram 800 mil índios de 90 nações diferentes. Por

que isto aconteceu?”183

Chico Alencar, fazendo coro com os Piletti, denunciou a história da violência cometida pelos

colonizadores contra os índios. Para ele, o encontro e a convivência entre portugueses e índios não foi

nada amistoso e harmonioso como poderia sugerir os defensores da “democracia racial”. O Brasil nasceu,

sentenciou o autor, alicerçado numa memória de dor:

“Pela violência da arma de fogo e da doença ou pela violência macia da catequese. Nas

outras partes da América também foi assim: incas, astecas, maias e outras nações destroçadas

pelos conquistadores espanhóis. Os que já viviam na terra sempre levaram a pior”184.

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A história da violência não parou e encontrava-se ainda latente no cenário nacional do tempo de

Chico Alencar. Os invasores da floresta, segundo o autor, eram outros:

“Volkswagen, Swift, Nixdorf, Brascan, Jarí ... Grandes empresas nacionais e internacionais

que vão abrindo estradas, derrubando, milhares de árvores por dia, levando o ‘progresso’,

com muito gado gordo e boiadeiro magro”185.

De forma semelhante ao manual escolar dos irmãos Piletti, o autor trouxe para o debate sobre a

realidade da violência vivida a fala dos próprios indígenas, oprimidos historicamente. Houve, portanto, a

preocupação de dar voz aos excluídos, aqueles que tiveram roubados sua terra. Para ilustrar o clima de

miséria e humilhação vivido pelos índios, o manual escolar de Chico Alencar reproduziu um comentário

do chefe Raoni, tuxucarramãe que vivia no Parque Nacional do Xingu – uma reserva indígena criada em

1960:

“– É preciso saber a vida, a história do índio. E do caraíba também. Amanhã ele chega aqui e diz que a

terra dele. E a gente, vai ficar que nem bobo? Precisa conhecer a história do branco pra poder se defender.

Índio não é bicho, não é macaco, não é anta. É gente mesmo”186.

A preocupação da fala do chefe Raoni, citado por Chico Alencar, era reivindicar o direito dos índios

à memória. O poder de construir sua identidade e defender-se da dominação e exploração imposta pelo

branco. Para isso, Raoni rebateu argumentos que animalizavam seu povo, defendendo sua condição de

humanidade roubada pela história.

Citar a palavra do índio era, para o autor, dar a oportunidade e vez aos que ficaram nas margens das

páginas da história de romperem o silêncio e reclamarem por justiça e igualdade. O contrário do retrato de

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uma aldeia feliz do início do capítulo do manual escolar era a situação de um presente amargo e de

exclusão. A vida do índio de agora não era mais paraíso do pequeno Tsipré, mas o desespero e humilhação

contados por Sataré Mauá, Ralita, Umuru e Ângelo Cretan:

“– Estamos sendo acabados por projetos, empresas e invasores que roubam nossa vida tomando nossa

terra e nos expulsando delas, sendo nós os donos dessa pequena e única terra nesse imenso país, e

colocando um ponto final em nossa cultura, em nossos direitos” (Sataré Mauá).

“– Arcos, flechas, bordunas, tudo isso exige um treinamento permanente. Mesmo assim é melhor mil

vezes que tomar ônibus cheio de gente, depender sempre do dinheiro e viver com pessoas de mau humor.

Porque caraíba vive maior parte do dia de cara amarrada, reclamando da vida, descontente com o

trabalho. E tem hora pra tudo, pra comer, pra tomar banho, pra se divertir, pra trabalhar. Assim com

civilizado nunca consegue ser índio, índio nunca conseguirá ser civilizado” (Ralita).

“– Difícil na cidade um falar com outro. Ora, índio quando se encontra é uma festa, muita conversa,

muita alegria, pouca pressa. Civilizado sempre com muita roupa. Não pega sol, não sobe em árvore, não

corre, não toma banho de rio, não anda de noite admirando a lua” (Umuru).

“– Todo dia, quando acordamos, damos bom-dia pra terra e bom-dia pro sol. Não é por causa deles que

vivemos?” (Ângelo Cretan)187.

Chico Alencar encerrou o capítulo com uma crítica aos caminhos tomados pela história do país. O

Brasil, na sua leitura, não era o “paraíso racial” presente no discurso dos manuais escolares de Joaquim

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Silva, Borges Hermida e Sérgio Buarque. O contrato social para construção de uma nação forte e unida

defendido por Rocha Pombo não havia sido ainda concretizado.

O cenário social brasileiro, para o autor de Brasil Vivo, era de injustiças e crimes cometidos desde a

chegada dos portugueses. A cruz e espada dos colonizadores invadiram o paraíso do pequeno Tsipré,

trazendo a fome, a miséria, a submissão e a morte. Através da fala dos índios, Chico Alencar questionou os

valores da civilização ocidental: sua frieza, seu distanciamento e sua amargura. Os sentimentos nobres

valorizados pelo autor poderiam se encontrados no passado dos primeiros habitantes do Brasil: a alegria, a

amizade, paz e consciência ecológica. Lá estavam os germes do cidadão necessário para a concretização de

uma nova página para “história da nossa gente”.

Em síntese, o manual escolar Brasil Vivo, assim como História & Vida dos Piletti, surgiu como uma

denúncia de crimes cometidos contra a história pelos colonizadores, os ditadores, as elites – os chamados

vencedores. Chico Alencar seria o porta-voz da história dos vencidos, dos que foram excluídos do banquete da

História, cabendo apenas a eles servirem seus senhores188. Nessa perspectiva, o paraíso estaria mais longe

do que se imaginava. O que teria acontecido com o pequeno Tsipré?

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______________________________________________________“O que devemos ao índio”

Ao analisarmos as imagens do índio ou “raça cor de cobre”, como definia von Martius, nos manuais

escolares de História do Brasil desde a publicação de Lições de História do Brasil, do professor Joaquim

Manuel de Macedo, a partir de 1861, no período imperial, passando pelos clássicos textos de João Ribeiro,

Rocha Pombo, Joaquim Silva, Borges Hermida, Sérgio Buarque até a coleção História & Vida, dos irmãos

Piletti, e Brasil Vivo, de Chico Alencar, nos anos 1980, percebemos como esses autores, em diferentes

contextos, forjaram este sujeito racializado a partir principalmente de quatro eixos temáticos: origens e

classificação, relações sociais e familiares, usos e costumes, primeiros contatos e suas influências na obra

colonial (nacional).

As fontes utilizadas pelos autores para elaborar sua representação do elemento indígena geralmente

eram relatos de viagens (Carta de Pero Vaz de Caminha), cronistas do período colonial (Pero Magalhães

Gandavo, Simão de Magalhães, Gabriel Soares de Souza, Jean de Léry), textos de religiosos, em especial, de

jesuítas (Manuel da Nóbrega, José de Anchieta, Fernão Cardim, Antonio Vieira) para descrever aspectos

gerais da cultura e comportamento indígena.

As classificações tribais foram feitas com base nos modelos de K. F. P. von Martius, Karl von den

Steinen e dos próprios jesuítas e primeiros colonizadores: índios do litoral (tupis) e os do interior (tapuias).

As influências dos estudos etnográficos e referências literárias de Gonçalves de Magalhães e José de

Alencar também se fizeram presentes no exercício de confecção do tipo racial nativo. Os historiadores

Francisco Adolfo Varnhagen e João Capistrano de Abreu eram constantemente mencionados, tendo suas

obras influenciado na estrutura, organização e abordagens dos manuais escolares analisados. Havia

referências a autores de manuais escolares que se transformaram em modelos para a criação de uma

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Imagens do Índio

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história didática do Brasil, podemos mencionar: Joaquim Manuel de Macedo, João Ribeiro, Rocha Pombo

e Jonathas Serrano. Além disso, havia um uso acentuado de iconografia de Jean-Baptiste Debret, Johann

Moritz Rugendas, Victor Meirelles, entre outros189.

Embora os manuais escolares tivessem se dedicado a falar da diversidade de tribos ou nações

indígenas existentes, apresentando até as suas classificações e localização no território colonial, houve uma

generalização da imagem deste em termos de seu modo de vida. É como se o livro didático operasse como

a categoria de um índio “genérico”, ou seja, aquele índio que vivia nu na mata, morava em ocas e tabas,

enfeitava-se com cocar e penacho na cabeça, cultuasse Tupã e Jaci e que fala tupi190. Buscaram-se

referências comuns na origem, nos traços físicos e morais e nos hábitos e costumes que enquadrassem um

grupo de seres humanos, localizados num lugar (o continente americano), na categoria raça indígena, “raça

cor de cobre” ou “raça americana”.

De acordo com Everardo Rocha, a constância com que se pode perceber o emprego de certo tipo de

frase curta, direta, sintética e incisiva, tem sido uma das marcas na estruturação dos textos didáticos191. Por

exemplo, um sem-número de frases típicas como “os indígenas geralmente andavam nus”, “gostavam de se

adornar com colares, braceletes, brincos de pequenos ossos ou de madeira”, “os índios viviam da caça e da

pesca”, “eram nômades” (expressões retiradas dos manuais escolares de Joaquim Silva e Borges Hermida) e

outras variações possíveis e imagináveis encontraram-se com freqüência nestes textos, criando uma noção

de unidade entre diferentes grupos. Dessa maneira, as diversas tribos são definidas como um todo

homogêneo, absolutamente igual aos aspectos que se desejava nelas enfatizar, demarcando uma raça192.

Outro detalhe, os indígenas eram definidos, muitas vezes, por contraste, ou seja, no que eles diferiam

do padrão (europeu, branco, cristão, civilizado). Podemos perceber esta estratégia no manual escolar de

Borges Hermida e, também, dos Piletti. Lembremos a referência à expressão: “sem fé, sem lei e sem rei”,

que apareceu com diferentes nuances no corpo dos manuais escolares analisados.

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Os manuais escolares mencionavam a questão da assimilação de elementos indígenas e negros, sendo

estas categorias fechadas e homogêneas, na cultura brasileira e, por outro lado, não se realizava uma

generalização do homem branco:

“Estes são referidos como portugueses, espanhóis, italianos, sírios, eslavos etc. Os

compêndios chegam até a ressaltar o tipo social do português que chegou ao Brasil: os

fidalgos, os navegantes, as diferentes ordens sacerdotais que eram enviadas para cá”193.

As classificações que usualmente iniciavam o capítulo referente ao indígena eram abandonadas e,

quando muito, limitavam-se às divisões entre Tupis como os mais adiantados, os Tapuias como os mais

ferozes e atrasados, os Nuaruaques como dados às artes (produção de cerâmica) e os Caraíbas, com sua

tribo dos Canini, como etimologicamente responsáveis pela expressão canibal, antropófago194.

Apesar de destacar as diferenciações, os autores analisados optaram por tratar os nativos como se

fossem um todo homogêneo e como se a generalização fosse a melhor forma de estudá-los, ou melhor, dos

leitores-alunos entenderem. Optaram pelo binômio analítico índio x branco, selvagem x civilizado, inferior

x superior, primitivo x avançado, colonizado x colonizador, vencido x vencedor, subsenvolvido x

desenvolvido.

A impressão final que deveria ficar na mente dos leitores-alunos tem sido a imagem do índio numa

mesma disposição e idêntica visão de mundo. Em suma, uma só cultura, uma só raça e um mesmo homem

(quando não se questiona a sua humanidade) vivendo apenas na medida que o diferia do elemento

colonizador, este de múltiplas faces, mas ainda assim uma raça superior – o padrão de medida do nível de

civilização da humanidade (o ponto final da linha da evolução).

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A diferença era elaborada com base na noção de atraso, primitivismo, pré-História. Havia uma série

de expressões que poderiam ser intercambiáveis ao se referir aos primeiros habitantes da quarta parte do

mundo: selvagem, bárbaro, índio, indígena, primitivo, primário, antropófago, não-civilizado. Nomes que

encobriam outras múltiplas identidades, faces de grupos que são enterrados numa expressão identitária,

classificatória, hierarquizada com fins de conquistar, dominar, controlar e civilizar (ou exterminar). Nomes,

terminologias com data de nascimento e finalidades, mas que nos pareciam (ou nos faziam parecer) tão

naturais, como se fosse impossível pensar nas populações deste continente antes de 1492 sem uso destas

palavras. Era como se eles passassem a existir somente no momento em que o navegador genovês

Cristóvão Colombo os batizou de “índios”195.

A rigor, lembrou-nos Everardo Rocha, eram três momentos ou lugares de entrada do índio

genérico nos livros e manuais escolares de História do Brasil (1. etnia brasileira; 2. catequese e 3. primeiros

habitantes do Brasil):

“As rubricas mais gerais que recobrem assuntos onde pode aparecer a representação do

índio são: a rubrica sobre etnia-brasileira, a rubrica sobre a catequese e, finalmente, uma

terceira denominada, via de regra, os primeiros habitantes da terra. De compêndio para

compêndio são poucas as variações de escolha no nome destas rubricas. Assim, para o

tema etnia brasileira, encontramos também; formação étnica do Brasil e formação do povo brasileiro.

Para o tema da catequese as seguintes variações: obra da catequese, início da catequese, obra da

Companhia de Jesus, obra dos jesuítas, jesuítas e a catequese e os padres jesuítas. E para a rubrica os

primeiros habitantes da terra encontramos: os donos desta terra, habitantes do Brasil, o Brasil na

época do descobrimento, habitantes da terra, o selvagem brasileiro e os primeiros contatos com o europeu e

a gente da pindorama.

Normalmente, debaixo destas rubricas é que se abre espaço para falar do índio”196.

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Os manuais escolares analisados optaram por abordar pela primeira vez a temática do índio na

rubrica os primeiros habitantes ou em etnia brasileira197. A rubrica “os primeiros habitantes da terra” aproximou-

se dos temas do descobrimento, pau-brasil, rotas marítimas, expedições e capitanias hereditárias, sendo esta

boa oportunidade para a entrada do índio no palco da História. João Ribeiro e Rocha Pombo optaram por

apresentá-lo em tópicos do capítulo sobre o descobrimento. Tanto Macedo, Joaquim Silva e os irmãos

Piletti fizeram a sua apresentação num capítulo específico. Macedo e Joaquim Silva trataram do elemento

indígena em capítulos posteriores ao descobrimento. Já os Piletti e Chico Alencar, à semelhança de

Capistrano de Abreu, dedicaram os primeiros capítulos aos primeiros habitantes do Brasil. Borges Hermida

escolheu falar dele na rubrica “etnia brasileira”, que se aproximou dos temas de raças, formação étnica,

brancos e negros. Sérgio Buarque, por exemplo, dedicou um tópico ao assunto, intitulado “O que

devemos ao índio”, no capítulo “Exploração e posse da terra”198. Esta temática, em seu manual escolar,

estava associada aos primeiros tempos da colônia, à organização política e religiosa da terra, ao

desenvolvimento e economia nos tempos iniciais. Neste tópico, o autor de Raízes do Brasil não se diferiu

muito das representações construídas por Joaquim Silva e Borges Hermida.

Como podemos evidenciar na análise realizada, as informações sobre os índios têm sido distribuídas

nestas duas rubricas e divididas num grupo mais ou menos recorrente de subtítulos (origem, classificação,

religião, costumes, cultura, família estado social, habitação, influências, caracteres físicos e línguas)199.

Subtítulos recorrentes, com algumas variações, nos manuais escolares, desde o projeto de von Martius e a

obra de Varnhagen.

A origem dos indígenas era apresentada sempre quase como incerta e alguns autores discorreram

sobre as hipóteses mais prováveis. Em relação à classificação, havia uma variação das mais simples até as

mais completas, elaboradas por von den Steinen. As línguas eram divididas em duas categorias: a geral e a

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língua travada. Quanto à religião ou crenças dos índios, a figura que se sobressaltava era a do pajé. A

descrição da suas práticas religiosas e do pajé na tribo feita pelos manuais escolares (por exemplo, Borges

Hermida) lembrava muito a definição apresentada por Capistrano de Abreu:

“Maior força cabia ao poder espiritual. Acreditavam em reses luminosos, bons e inertes,

que não exigiam culto, e poderes tenebrosos, maus, vingativos, que cumpria propiciar

para apartar sua cólera e angariar-lhes o favor contra os perigos: eram as almas dos avós.

Entre eles contava-se o curador, pajé ou caraíba, senhor da vida e da morte, que

ressuscitara depois de finado e não podia mais tornar a morrer”200.

Os autores também fizeram referência à Tupã, Jaci, Guaraci e associavam a religião dos índios à magia

e feitiçaria, quando não ficavam a se questionar se haveria religião verdadeira entre eles. Os “costumes”

constituem um subtítulo que guarda leque extenso de possibilidades. Tanto neste tópico, como em

“cultura”, os autores (por exemplo, Macedo, Rocha Pombo, Borges Hermida e os irmãos Piletti) falaram

de instrumentos de trabalho ou caça ou pesca (redes, canoas, armadilhas), de instrumentos musicais

(chocalho, tambor, gaita), de armas (arco e flecha), de agricultura, coleta, nomadismo e de vestes. Os Piletti

e Chico Alencar chegaram a criar a imagem de um índio com consciência ecológica, um legítimo defensor

da natureza.

Na parte dedicada ao estado social, os autores analisados privilegiavam os usos de expressões

envolvendo as noções de governo, pátria, liderança e guerras. Geralmente os autores mencionaram a

ausência de uma liderança forte que organizasse as nações indígenas em uma (esse traço foi ressaltado

principalmente por Macedo e João Ribeiro). Ao tratar da família, discutiu-se se a educação dos curumins, o

trabalho do pai e da mãe, se viviam como irmãos ou tinha promiscuidade na reunião das famílias que

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compunham a tribo e, até mesmo, se o casamento tinha ou não conotação religiosa (Rocha Pombo e Piletti

apresentavam uma visão muito positiva em relação à organização familiar das comunidades indígenas).

Os traços físicos eram descrições de altura, cor, tipo de cabelo, nariz, sendo muito comum a

utilização de iconografia para ilustrar este item. Como influências, fora àquelas relacionadas ao caráter,

exploradas na parte sobre a etnia brasileira ou formação da sociedade brasileira, os autores destacaram

algumas palavras que se incorporaram ao idioma nacional (o português) e algo da cultura material

(construção de casas, canoas, redes e cerâmicas) e aspectos da culinária.

Ainda sobre as contribuições do elemento da raça indígena para a construção da identidade nacional

brasileira eram apontadas duas noções chaves: a de amor à liberdade e a de coragem (o índio herói à moda

Peri, embora o modelo alencariano de indígena fosse criticado por Macedo e Joaquim Silva). Cada uma

destas noções apresentava sua própria história e justificativa no enredo das versões didáticas para a História

do Brasil.

A noção de amor à liberdade, destacada, por exemplo, em Rocha Pombo, nos Piletti e em Chico

Alencar, era provavelmente uma das possíveis interpretações para o problema da escravidão vermelha.

Neste sentido, aproximamo-nos de Everardo Rocha, que afirma estar a escravidão do índio associada a três

questões:

“uma relacionada à catequese, onde o índio necessita da proteção dos jesuítas. Uma

relacionada à incapacidade do índio para o trabalho na lavoura, e esta mesma incapacidade

e a subseqüente fuga do jugo que os portugueses lhes queriam impor pode servir para

legitimar o tema do amor à liberdade”201.

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Já a noção de coragem ou bravura estava associada à imagem do índio herói. Muitas vezes, nos

manuais escolares o heroísmo do indígena era vinculado a sua adesão à causa do colonizador português,

por exemplo, contra a invasão dos holandeses. Aí merecia destaque dos autores a atuação heróica do índio

Poty, na guerra contra os holandeses.

Quanto à catequese, o papel principal do elemento indígena, neste caso, era o de justificar e legitimar

a vinda e a obra dos missionários jesuítas. Os jesuítas, com exceção de Macedo e dos Piletti, eram

altamente elogiados pelos autores: João Ribeiro os chamava de elemento moral da colônia; Rocha Pombo

destacava as atuações de José de Anchieta, o “apóstolo do Brasil”; Joaquim Silva e Borges Hermida

falavam destes como “amigos dos índios”.

Enfim, de acordo com o lugar de sua entrada no enredo da História criada pelos seus artesãos, a

imagem do índio “genérico” recobria os atributos que a ela impunha e se adequava ao sentido que se

desejava evidenciar ou fazer crer. Diante do discurso colonizador, e para posicionar-se nos estágios de

civilização, o elemento indígena fazia-se primitivo, selvagem e canibal. Diante do discurso da formação da

nacionalidade brasileira, a raça indígena vinha contribuir no altar da pátria com a sua força, coragem,

heroísmo e amor à liberdade. Diante do discurso da catequese, o bárbaro, o selvagem, tornava-se infantil,

homem aproveitável, alma virgem e carente de proteção – um cristão em potencial202.

Poderíamos encerrar este capítulo denunciando as imagens do elemento indígena construídas pelos

manuais escolares de história do Brasil como “equivocada”, “enganadora”, “mentirosa”, distante do índio

real, verdadeiro, genuíno, possível de ser alcançado através da ciência praticada com seriedade e sem

ideologias203. Poderíamos ainda reivindicar a presença do “tribunal das belas mentiras” para fazer uma

devassa nestes manuais e condená-los às chamas da fogueira purificadora204. Entretanto, optamos por

encerrar nosso diálogo propondo que olhemos para estes manuais como versões didáticas, ou melhor,

interpretações (documentos) possíveis para a história do Brasil. Interpretações que esses autores

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elaboraram e, pensamos, nelas acreditaram como as melhores para se ensinar na sala de aula às crianças e

jovens. Cada um a seu tempo, dentro das conjunturas políticas, sociais, econômicas e culturais, e de seus

questionamentos, interesses (até mesmo financeiros) e diálogos intelectuais todos pararam para pensar e

compor sua História do Brasil e, conseqüentemente, o seu índio “genérico”, atuando no cenário da história

em conjunto com os outros elementos formadores da nossa nacionalidade.

Não há, portanto, nesta perspectiva, uma imagem do índio pura ou real que possa se contrapor ou

desmentir a criada por Macedo, João Ribeiro, Rocha Pombo, entre outros, pois a imagem “real”,

construída por nós, deste sujeito histórico seria mais uma representação para a multiplicidade de outras

tantas existentes. Querer impor outra imagem como verdadeira não iria solucionar os problemas da

discriminação, preconceitos e racismos presentes na fabricação da história destes grupos de seres humanos

que se convencionou rotular de “índios”. Mas, propor outras possibilidades e interpretações seria o

começo de outras histórias... Histórias dos lugares e modos de produção das identidades...

Neste capítulo, nós nos propusemos a fazer uma leitura das representações do elemento indígena

pelos autores de manuais escolares de História, procurando compreender como e porque eles criaram seus

modelos de interpretação, ao escrever suas versões didáticas para a história nacional. A intenção não era

mostrar o que eles não fizeram ou fizeram de “errado”, mas compreender a maneira como eles, cada um a

seu modo, amparados em ferramentas conceituais como raça, nação e civilização, criaram o seu índio.

Tentamos, ainda, evidenciar o que houve de permanências e mudanças na arte de construir esta

personagem histórica (o índio) e as possíveis implicações políticas, sociais, ideológicas e culturais das

escolhas feitas pelos autores ao forjarem o índio que deveria povoar os seus manuais escolares, sujeito este

que acreditavam ou faziam crer como “reais”.

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NOTAS:

1 Para compreender a trajetória intelectual de K. F. P. von Martius no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), conferir: Kaori Kodama, “Uma missão para letrados e naturalistas: ‘Como se deve escrever a História do Brasil’”, in Ilmar R. de Mattos, Histórias do ensino da história no Brasil (Rio de Janeiro, Access Editora, 1998) pp. 09-30. 2 Karl Friedrich Philipp von Martius, “Como se deve escrever a história do Brasil”, in O estado do direito entre os autóctones do Brasil (Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1982) p. 91. Monografia publicada originalmente na Revista do IHGB (Rio de Janeiro, tomo 06, 1844) pp. 389-411. 3 Ibid., p. 91. 4 Para uma análise da proposta de história indígena feita por von Martius no IHGB, conferir: Guilherme Amaral Luz, “As Cores do Cobre: o indígena na produção historiográfica e literária brasileira no século XIX”, paper apresentado como trabalho final à disciplina “Historiografia colonial no século XIX”, ministrado pela Profa. Dra. Leila Mezan Algranti, no segundo semestre de 1997, no programa de pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Campinas (retirado do BADAPH – Banco de Dados de Pesquisadores e Publicações na Área de História, endereço: URL <http: www.bandaph.hpg.ig.com.br/cobre.doc>, acessado em 23/03/2004. 5 Francisco Adolfo Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, Varnhagen: história (São Paulo, Ática, 1979) p. 37. Nesta coletânea, organizada por Nilo Odália, foram selecionados excertos do livro História geral do Brasil, de Varnhagen. 6 Para Eduardo Viveiro de Castro, a imagem do selvagem inconstante na historiografia brasileira tem sido um lugar comum desde a obra do “eminente e reacionário Varnhagen”. Conferir: Eduardo Viveiros de Castro, A inconstância da alam selvagem e outros ensaios de antropologia (São Paulo, Cosac & Naif, 2002) p. 187. 7 De acordo com o autor, “É interessante como Varnhagen, a partir, de uma análise dos vocábulos tupinambá, tupinaem e tupiniquim chega à conclusão de que a primeira seria a união de tupi com aba, significando tupi ilustre, sendo utilizada para chamar iguais. A segunda seria utilizada para denominar os tupis inimigos, porque seria a união do tupi com aem (malvado) e a terceira seria para denominar os tupis aliados ou amigos, pois seria a união do tupi com ikis (vizinhos). Deste modo, Varnhagen sugere que aqueles que se autodenominam tupinambás, podem ser denominados tupiniquins ou tupinaem por outros grupos que consideram tupiniquins ou tupinaem, mas que se auto-proclamam tupinambás. Assim tupinambá, tupinaem e tupiniquim não seriam nações ou raças, mas maneiras que tinham os tupis de se referirem aos diversos grupos existentes. O mesmo tipo de análise é também feita com outros vocábulos como guainases, anacés, tamoio, etc.” [Guilherme Amaral Luz, “As Cores do Cobre: o indígena na produção historiográfica e literária brasileira no século XIX”]. 8 Francisco Adolfo Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, Varnhagen: história, p. 38. 9 Ibid., p. 38. 10 Ibid., p. 44. 11 Conferir: Karl Friedrich P. von Martius, “O Estado do Direito entre os Autóctones do Brasil”, in Revista do IHGSP, tomo 11 (São Paulo, 1907 [1832]) pp. 20-82; “Etnografia Americana: o Passado e o Futuro do Homem Americano”, in Revista do IHGSP, tomo 9 (São Paulo, 1905 [1838]) pp. 534-62; Natureza, doenças, medicina e remédio dos índios brasileiros (São Paulo, Editora Nacional, 1979 [1844]). 12 Ibid., p. 44. 13 Ibid., p. 46.

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14 Para uma reflexão sobre o significado dos descobrimentos do século XV e XVI para construção da noção de humanidade, civilização e etnocentrismo, conferir: Tzvetan Todorov, Nós e os outros: A reflexão francesa sobre a diversidade humana (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993). 15 Ibid., p. 66-7. 16 Vocábulos de origem indígena, para Varnhagen, os seguintes: “chara, guapiara, apicum, massapé, cherapi, coivara, pipoca, tipóica, picumã, chulé, chué, tetéia, tapejara, pixuma, tocaiar, coroca, catapora, canhambola, pixaim, cauíra, pitiú, garajau e muitos outros” (Ibid., p. 67). 17 A temática da escravidão foi abordada de forma detalhada no capítulo sobre as imagens do negro. Neste capítulo, articularemos a nossa análise sobre a presença de escravos negros no Brasil a partir da tese defendida pelos autores dos manuais escolares sobre a inadaptabilidade do nativo ao trabalho árduo e compulsório e os estereótipos e preconceitos construídos a partir disto. 18 Joaquim Manuel de Macedo, Lições de História do Brasil para uso das escolas de instrucção primaria (Rio de Janeiro, B.L. Garnier, 1907) p. 38. 19 Para fazer uma história dos índios no Brasil pré-descobrimento e colonial, Varnhagen, fonte privilegiada por Macedo na composição de seu manual escolar, adotou como documentação que tratasse do estudo da língua destes povos. Embora, em muitas notas, Varnhagen tivesse citado análises filológicas contemporâneas sobre a língua geral – tupi – suas principais referências foram a gramática da língua guarani de Montoya, a gramática de José de Anchieta, e os muitos vocábulos encontrados em documentação da época, com Jean de Léry, Gabriel Soares, Abbeville, Pero de Magalhães Gandavo, Hans Staden, entre outros. Para uma análise da influência dos cronistas e do discurso jesuítico na construção do passado colonial brasileiro e da história dos índios, conferir: João Adolfo Hansen, “Sem F, sem L, sem R: cronistas, jesuítas & índio no século XVI”, in Cadernos CEDES – A conquista da América (Campinas, SP, CEDES, n. 30, 1993) pp. 45-55; Leandro Karnal, “Memória infinita para glória de Deus: os jesuítas e a construção da memória”, in Revista Tempo Brasileiro (Rio de Janeiro, vol. 135, 1998) pp. 77-88. 20 O autor neste momento, à semelhança de Varnhagen, teceu uma crítica ao modelo romantizado do índio criado por autores indianistas como Gonçalves Dias e José de Alencar. 21 Conferir: Johann Baptist von Spix & Karl Friedrich Philipp von Martius, Viagem pelo Brasil (Rio de Janeiro, Impr. Nacional, 1938). 22 Em seu manual escolar, Macedo apresentou com detalhes a descrição física dos índios: “Os caracteres physicos do selvagem eram e são os seguintes: estatura pequena, compleição forte e robusta, craneo e ossos da face largos e salientes fronte baixa; temporas proeminetes; rosto largo e angular; orelhas pequenas; olhos tambem pequenos, pretos e temando em direcção obliqua com angulo externo voltado para o nariz sobrancelhas delgadas e arqueando-se fortemente; nariz pequeno, ligeiramente comprimido na parte superior e achatado na inferior; ventas grandes; dentes brancos; labios espessos, pescoço curto e grosso; peito largo; barriga da perna fina; braços redondos e musculosos; pés estreitos na parte posterior e largos na anterior; pelle fina, macia, luzente e de uma côr de cobre carregada; cabellos longos e espessos, pouca barba” [Joaquim Manual de Macedo, Lições de História do Brasil para uso das escolas de instrucção primaria, p. 39]. 23 Ibid., p. 39. 24 Joaquim Manual de Macedo, Lições de História do Brasil para uso das escolas de instrucção primaria, p. 50-1. 25 Ibid., 41. 26 Conferir: Edward Said, Orientalismo: A invenção do Oriente pelo Ocidente, 2a ed. (São Paulo, Companhia das Letras, 2001); Cultura e Imperialismo (São Paulo, Companhia das Letras, 1995). 27 Conferir: Ilmar R. de Mattos, O tempo saquarema (São Paulo, Hucitec, 1987).

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28 Selma Rinaldi de Mattos, “Lições de Macedo. Uma pedagogia do súdito cidadão”, in Ilmar R. de Mattos (org.), Histórias do ensino da história no Brasil, p. 33-34. 29 Joaquim Manual de Macedo, Lições de História do Brasil para uso das escolas de instrucção primaria, p. 46-7. 30 Ciro Flávio de Castro Bandeira de Melo, “Senhores da História: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de História na segunda metade do século XIX”, Tese de Doutorado em Educação, São Paulo, FEUSP, (1997) p. 137. 31 Joaquim Manual de Macedo, Lições de História do Brasil para uso das escolas de instrucção primaria, p. 55-6. 32 Ibid., p. 50. 33 Joaquim Manual de Macedo, Lições de História do Brasil para uso das escolas de instrucção primaria, Lição XIX – “Guerra Hollandeza”, pp. 166-75. 34 Conferir: Francisco Adolfo Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, História das Lutas com os Holandeses no Brasil desde 1624 a 1654 (Viena, Imp. De Carlos Finsterbeck, 1871). 35 Joaquim Manual de Macedo, Lições de História do Brasil para uso das escolas de instrucção primaria, Lição XXIV – “Reformas e Desenvolvimento”, p. 212-23. 36 Para saber da história das pesquisas desenvolvidas pelo IHGB sobre o indígena brasileiro, conferir: Lúcio Menezes Ferreira, “Vestígios de Civilização: A Arqueologia no Brasil Imperial (1838-1877)”, Dissertação de Mestrado em História, Campinas, SP, IFCH/UNICAMP, (2002). 37 Ciro Flávio Bandeira de Melo, Senhores da História, p. 143. 38 Conferir: Alfredo Bosi, Dialética da Colonização (São Paulo, Companhia das Letras, 1995). 39 Selma Rinaldi de Mattos, O Brasil em lições: a história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de Macedo (Rio de Janeiro, Access Editora, 2000), p. 106. 40 Em 1570, o cronista Pero de Magalhães Gandavo escreveu que “a língua deste gentio todo pela costa é uma; carece de três letras: não se acha nela nem F, nem L, nem R, coisa digna de espanto porque assim não tem Fé, nem Lei, nem rei, e desta maneira vivem sem justiça e desordenadamente” [Pero de Magalhães Gandavo, Tratado da terra do Brasil (São Paulo, Obelisco, 1964) p. 87]. 41 João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), 17a ed. revista e completada por Joaquim Ribeiro (Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1960) p. 48. 42 Ibid., p. 49. 43 Ibid., p. 49. 44 Ibid., p. 49. 45 Ibid., p. 49. 46 Ibid., p. 49-50. 47 Ibid., p. 50. 48 Ibid., p. 50. 49 Ibid., p. 50. 50 Francisco Adolfo Varnhagen, Varnhagen: história, p. 73. 51 Ibid., p. 124. 52 João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), p. 50.

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53 Ibid., p. 51. 54 Ibid., p. 51. 55 Ibid., p. 51. 56 Ao falar deste esquema quádruplo, João Ribeiro não deixou de fazer uma observação necessária ao seu leitor-aluno: “Além desses grupos principais ficam ainda várias tribos mui pouco estudadas e cujos caracteres, pelo que são conhecidos até hoje, não comportam redução ao esquema quádruplo que acabamos de indicar. É esse justamente o lado obscuro da etnologia brasílica e é que prova o ardor e a diligência dos nossos investigadores” (Ibid., p. 51). 57 Para entender os conflitos entre concepções profanas e sagradas na educação, em especial no ensino de História, no Brasil, conferir: Circe Maria Fernandes Bittencourt, “Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar”, Tese de Doutorado em História, São Paulo, FFLCH/USP, (1993) capítulo III. A discussão sobre as origens do homem americano, num país de tradição católica com forte influência no ensino, envolviam questões delicadas relacionadas às explicações bíblicas sobre a origem do homem, tendo Adão e Eva como ponto de partida. Defender, portanto, a autoctonia do índio americano implicava num questionamento ao texto bíblico. Conferir: Stephen Jay Gould, A falsa medida do homem, 2a ed. (São Paulo, Martins Fontes, 1999) capítulo II – “A poligenia americana e a craniometria antes de Darwin”. 58 João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), p. 53-5. 59 Adriane Costa da Silva, “Versões didáticas da história indígena (1870-1950)”, Dissertação de Mestrado em Educação, São Paulo, FEUSP, (2000) p. 34. 60 Basílio de Magalhães, Lições de História do Brasil – em conformidade com o programa do curso anexo a Faculdade de Direito de S. Paulo (São Paulo, Tipografia & Litografia Ribeiro, 1895) p. 25-8. 61 Ibid., p. 36. 62 João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), p. 96. 63 Ciro Flávio Bandeira de Melo, “Senhores da História”, p. 142. 64 Segundo Patrícia Hansen, a nacionalidade brasileira apresentada por João ribeiro era simbolizada pala “raça nacional mameluca”. Sua formação confundia-se, na leitura do autor, com a “Formação do Brasil”, pois ela era um dos elementos capazes de conceder à nação uma “homogeneidade integradora”, que já era a sua existência, em última instância, que permitia com que aquela história fosse comum [Patrícia Hansen, Feições & Fisionomia: a História do Brasil de João Ribeiro (Rio de Janeiro, Access Editora, 2000) p. 104]. 65 José Francisco da Rocha Pombo, História do Brasil (Curso superior), 6a ed. revista e atualizada por Hélio Vianna (São Paulo, Edições Melhoramentos, 1952) p. 23. 66 Ibid., p. 23. 67 Ibid., p. 23-4. 68 Ibid., p. 24. 69 Circe Maria Fernandes Bittencourt, Pátria, Civilização e Trabalho: O ensino de História nas escolas paulistas (1917-1939) (São Paulo, Edições Loyola, 1990) p. 86-7. 70 José Francisco da Rocha Pombo, Compêndio de História da América, 2a ed. (Rio de Janeiro, Benjamin de Aquila Editor, 1925) prefácio. 71 José Francisco da Rocha Pombo, História do Brasil (Curso superior), p. 24.

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72 Rocha Pombo apresentava como indícios outros de grande valor de afinidade entre os tapuias e a cultura incaica “uma arte cerâmica em desacordo com o grau de inteligência; a fabricação de artefatos de uso doméstico, tanto de madeira, como de osso ou de terracota; o culto da pedra; o cuidado com que se conserva o fogo da lareira (vestígio do culto vestal); o sentimento de veneração no seio da família; a obrigação, para o guerreiro, de fabricar ele próprio as suas armas, os seus instrumentos e os seus artifícios de caça e de pesca, etc.” (Ibid., p. 24-5). 73 Ibid., p. 25. 74 Ibid., p. 25. 75 Para Adriane Silva, a comparação com os germanos na obra de Rocha Pombo projetava nos índios a capacidade de civilizarem-se, assim como haviam se aperfeiçoado aqueles bárbaros ancestrais dos alemães cuja kultur tanto encantava intelectuais como João Ribeiro, João Capistrano de Abreu, Manuel de Oliveira Lima, Sérgio Buarque de Holanda entre outros. Conferir: Adriane Costa da Silva, “Versões didáticas da história indígena (1870-1950)”, p. 61. 76 José Francisco da Rocha Pombo, História do Brasil (Curso superior), p. 25-6. 77 Aspectos ressaltados por Rocha Pombo para a construção da identidade dos povos indígenas em comparação com os antigos germanos estão vinculados à construção dos antigos mitos de origem. Conferir: Léon Poliakov, O mito ariano: ensaios sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos (São Paulo, Editora Perspectiva/Edusp, 1974) em especial capítulo V – “Alemanha: A Língua e a Raça”. 78 Ibid., p. 27. 79 Ibid., p. 28. 80 Ibid., p. 30. 81 De acordo com Francisco Foot Hardman, Rocha Pombo era ligado ao grupo de intelectuais anarquistas do Rio de Janeiro. As simpatias dele pelos libertários estariam presentes de forma difusa nas suas crônicas reunidas em Contos e Pontos (1911). Conferir: Francisco Foot Hardman, Nem pátria, nem patrão! (vida operária e cultura anarquista no Brasil) (São Paulo, Brasiliense, 1984) p. 132. 82 Circe Maria Fernandes Bittencourt, Pátria, Civilização e Trabalho, p. 86. 83 Para entender o significado da Primeira Guerra Mundial na história contemporânea (século XX), conferir: Eric Jay Hobsbawm, Era dos Extremos: o breve século XX, 2a ed. (São Paulo, Companhia das Letras, 1999) capítulo I. 84 Para saber sobre as construções do mito ariano, conferir: Leon Poliakov, O mito ariano: ensaios sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos, Parte II – “O mito das origens arianas”. 85 Por exemplo, ressaltava o autor, “Cumpria também ao homem solteiro desposar a viúva do irmão. O tio tinha, com o sobrinho, deveres de pai, principalmente com o filho da irmã. Parece mesmo que, entre algumas tribos, o filho da irmã era para o índio pelo menos ao próprio filho, até para a sucessão no comando da tribo” [José Francisco da Rocha Pombo, História do Brasil (Curso superior), p. 30]. 86 Ibid., p. 31. 87 Ibid., p. 31-2. 88 Ibid., p. 32. 89 Ibid., p. 34. 90 Ibid., p. 34-5. 91 Ibid., p. 35. 92 Circe Maria Fernandes Bittencourt, Pátria, Civilização e Trabalho, p. 87.

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93 As descrições feitas por Joaquim Silva sobre os hábitos e costumes indígenas aproximavam-se muito das feita por João Capistrano de Abreu, no capítulo “Antecedentes indígenas”, em Capítulos de História Colonial (1500-1800), 7a ed. (São Paulo, Publifolha; Belo Horizonte, MG, Itatiaia, 2000). 94 Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, 8a ed. (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1951) p. 24. 95 Ibid., p. 24. 96 Ibid., p. 24-5. 97 Este comentário aproximava-se da referência feita por Capistrano de Abreu: “entre estes animais nem um pareceu próprio ao indígena para colaborar na evolução social, dando leite, fornecendo vestimenta ou auxiliando o transporte; apenas domesticou um ou outro, os mimbabas da língua geral – em maioria aves, principalmente papagaios, só para recreio” [João Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial (1500-1800), p. 39]. 98 Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, p. 25. 99 Em Capítulos de História Colonial, Capistrano de Abreu teceu as seguintes considerações sobre as guerras entre os indígenas: “As guerras ferviam contínuas; a cunhã prisioneira agregava-se à tribo vitoriosa, pois vigorava a idéia da nulidade da fêmea na procriação, exatamente como a da terra no processo vegetativo; os homens eram comidos em muitas tribos no meio de festas rituais. A antropofagia não despertava repugnância e parece ter sido muito vulgarizada: algumas tribos comiam os inimigos, outras os parentes e amigos, eis a diferença. (...) De rixa minúsculas surgiam separações definitivas; grassava uma fissiparidade constante. Tradição muito vulgarizada explicava grandes migrações por disputas a propósito de um papagaio” [João Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial (1500-1800), p. 39]. 100 Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, p. 25. 101 Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, citado na nota 1 da página 25. Conferir: João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), p. 49-50. 102 Neste sentido, o autor, em sua nota 2, citou do manual escolar de Jonathas Serrano o seguinte trecho: “O tipo de Peri, no ‘Guarani’, ou do guerreiro de ‘I-Juca-Pirama’, são fantasias literárias que exageram as qualidades e sentimentos selvagens” (Ibid., p. 26). Conferir: Jonathas Serrano, Epítome de História do Brasil, 3a ed. (Rio de Janeiro, F. Briguiet e Cia., Editores, 1941) p. 86. 103 Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, p. 27. 104 Ibid., p. 27. 105 Ibid., p. 27. 106 Ibid., p. 27. 107 Ibid., p. 28. 108 Além de João Ribeiro, Joaquim Silva fez referência neste tópico ao livro de Pedro Calmon, História do Brasil. As origens (1500-1600), e a dados das expedições de Marechal Cândido Rondon. 109 Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira séria do ginasial, p. 30-1. 110 Ibid., p. 32. 111Ibid., p. 32. Conferir: Pedro Calmon, História do Brasil. As origens (1500-1600) (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1939) p. 331. 112 Ibid., p. 32.

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113 Em muitos aspectos, podemos perceber que Joaquim Silva seguiu o roteiro, os tópicos e as descrições do manual escolar de Serrano na composição do seu capítulo sobre o elemento indígena, chegando a alguns trechos dar a impressão que se estava lendo o último no primeiro. A influência de Jonathas Serrano no manual de Joaquim Silva explicou-se, muito provavelmente, pelo fato daquele ter sido o responsável pela formulação dos programas de História de 1940 e 1942, durante o Estado Novo, momento quando o autor compunha sua História do Brasil. Conferir: Luis Reznik, “O lugar da História do Brasil”, in Ilmar R. de Mattos, Histórias do ensino da História no Brasil, p. 67-89. 114 Para deixar bem clara as diferenças entre selvagens e civilizados para o seu leitor-aluno, Borges Hermida escrevia o primeiro capítulo intitulado “Selvagens e Civilizados” do seu manual. 115 Paulo C. Miceli, “Por outras histórias do Brasil”, in Jaime Pinsky (org.), O ensino de história e a criação do fato, 7a ed. (São Paulo, Contexto, 1997) p. 31-2. 116 Antonio José Borges Hermida, História do Brasil. 5a série (São Paulo, Companhia Editora Nacional, s.d.) p. 07. O esquema, a divisão histórica e as definições apresentadas por Borges Hermida podem ser encontradas também no manual escolar de Jonathas Serrano. De acordo com este autor, “nunca há de se isolar a História da Pátria da História da Civilização Humana”. Conferir: Jonathas Serrano, “Noções Preliminares”, in Epítome de História do Brasil, p. 05-15. 117 Antonio José Borges Hermida, História do Brasil. 5a série, p. 24. 118 Notamos pelo título do capítulo e também pela maneira como este foi escrito, que o autor retomou o projeto de von Martius ao pensar uma História do Brasil, ou seja, a partir dos três elementos raciais formadores. Contudo, percebemos em Borges Hermida uma aproximação da interpretação do Brasil como uma “democracia racial”, apresentada de forma mais elaborada pelo sociólogo Gilberto Freyre, a partir dos anos 1930, no livro Casa Grande & Senzala (Rio de Janeiro, Record, 2000 [1933]). 119 Antonio José Borges Hermida, História do Brasil. 5a série, p. 31. 120 Ibid., p. 31. 121 Ibid., p. 31. 122 Este autor teve a preocupação de descrever detalhadamente os costumes indígenas de se vestir e enfeitar-se. Segundo o seu manual escolar: “Os selvagens andavam em completa nudez, e apenas algumas hordas de terras mais frias usavam pelles de animaes; nas suas festas porem, e, segundo alguns, nos seus combates apresentavam-se ornados com vistosas plumas, trazendo nas cabeças cocares de pennas amrellas e vermelhas, a que chamavam acanguape; nas cinturas umas tangas de plumas, enduapes; nos joelhos ornamentos identicos; e nas costas mantos curtos tambem de pennas, que eram chamados açoyabas; junto dos tornozelos atilhos em que enfiavam certos fructos que ao menor movimento soavam como cascaveis.

A influencia dos raios do sol e o uso de diversas tintas, especialmente do urucu e da sapucaia tornavam ainda mais baça a cor já cobreada dos selvagens.

Usavam traçar nas faces, nos braços e no peito imagens extravagantes, emblemas de victorias e cruezas; faziam para isso sarjaduras com dentes de animaes, e especilamente da cutia, e derramavam nellas tintas que não se pagavam mais. Furavam os beiços, quase sempre de preferência o infeior, e no buraco introduziam pedras, resina, ossos, ou pedaços de páo, a que chamavam metara. Furavam do mesmo modo as orelhas, as ventas e até as faces; o enfeite porem que mais estimulavam era aiucara, collar feito de dentes e ossos pequenos do inimigo morto por aquelle que o trazia. Rapavam emfim os cabellos até acima das orelhas, pelo que os portuguezes os chamaram caboclos.

As mulheres usavam dos mesmos ornatos, eram-lhes porém peculiares os ramaes de contas de diversas cores de que faziam collares e pulseiras; em algumas tribus não rapavam os cabellos como os homens. A mulher de um guerreiro

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tinha o direito de trazer também a ayucara” [Joaquim Manuel de Macedo, Lições de História do Brasil para o uso nas escolas de instrucção primaria, p. 39-40].

A descrição detalhada das vestimentas e ornamentações dos índios, feita por Macedo, tinha a finalidade de reforçar a construção da imagem do indígena como um selvagem, um bárbaro, destituído da moral e bons costumes da cultura ocidental, branca e européia. Em suma, era criada uma imagem aterrorizadora, animalesca, dos “gentios” aos olhos do seu leitor-aluno. 123 Antonio José Borges Hermida, História do Brasil. 5a série, p. 31. 124 Ibid., p. 31. 125 Ibid., p. 32. 126 Ainda sobre a temática da guerra na História, Jonathas Serrano apontava para a necessidade de só tomar cuidados ao escrever sobre o assunto para evitar que se alimentasse o espírito dos alunos de sentimentos de vingança e beligerância: “O ideal seria nem falar nas guerras. Infelizmente é preciso dizer alguma coisa das mais importantes, sob pena de mutilar, falseando-o, o nosso conhecimento do passado nacional” [Jonathas Serrano, Epítome de História do Brasil, p. 02]. 127 Antonio José Borges Hermida, História do Brasil. 5a série, p. 32. 128 O autor deixou explicitada sua atitude favorável aos religiosos, em especial aos missionários jesuítas, logo no título dedicado ao tema da Igreja e da catequese: “Os jesuítas: os amigos dos índios”. Nessa leitura, se os jesuítas eram amigos, então, podemos deduzir, que os pajés eram inimigos dos indígenas. O elogio pela atividade dos jesuítas no processo de colonização e formação da sociedade brasileira era uma marca presente na maioria dos autores de manuais escolares de História do Brasil analisados, mesmo que os tecem críticas ou ressalvas, não deixam de pagar tributo à obra desses religiosos. 129 Antonio José Borges Hermida, História do Brasil. 5a série, p. 33. 130 Joaquim Manuel de Macedo, Lições de História do Brasil para uso das escolas de instrução primária, p. 49-50. 131 Adriane Costa da Silva, “Versões Didáticas da História Indígena (1870-1950)”, p. 61-2. 132 Em relação aos tupis e nuaruaques, o autor considerou estes mais adiantados que os demais. No caso dos nauruaques, habitantes do norte do Brasil, “algumas de suas tribos eram bastante adiantadas, como prova a cerâmica, vasos de argila feitos com perfeição encontrados na ilha de Marajó” [Antonio José Borges Hermida, História do Brasil. 5a série, p. 33]. 133 Ibid., p. 33. 134 Sérgio Buarque de Holanda, História do Brasil – Curso Moderno (1. Das origens à Independência), 3a ed. (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1972) p. 40. 135 Ibid., p. 41. 136 Ibid., p. 41. 137 Ibid., p. 41. 138 Ibid., p. 41. 139 Ibid., p. 42. 140 Ibid., p. 42.

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141 Ibid., p. 42. Ao relatar as contribuições dos índios para a formação da nacionalidade brasileira, Sérgio Buarque chamou atenção para aspectos valorizados por Gilberto Freyre, em Casa-grande e senzala, no capítulo II – “O indígena na formação da família brasileira”. 142 Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da Pré-História à Independência. 1o grau, 3a ed. (São Paulo, Ática, 1990) p. 14. 143 Ibid., p. 14. 144 Percebemos o diálogo do autor com as pesquisas desenvolvidas no campo da Arqueologia, que apareciam como importante aliada para a construção da história dos primeiros habitantes do Brasil: “Arqueologia é a ciência que estuda as coisas antigas, principalmente da época que na da foi deixado de escrito, isto é, da Pré-História” (Ibid., p. 14). 145 Ainda neste parágrafo, o autor descreveu detalhadamente a possível origem do sambaqui, aventando a seguinte leitura, “um grupo de pessoas, uma comunidade, ocupou um lugar, construiu suas casa, alimentou-se de peixes e outros produtos do mar. Aí foi enterrando seus mortos e deixando seus restos e seus objetos. Depois de muitos anos esse grupo foi embora. Os restos deixados por ele foram se decompondo, sendo cobertos por vegetação. Depois veio outro grupo, ocupou o mesmo local e fez a mesma coisa. E assim vários grupos humanos passaram por esse lugar e foram deixando seus vestígios. Outros locais foram ocupados sucessivamente por outros grupos que agiram de maneira semelhante à que acabamos de contar. O resultado de tudo isso foi a formação dessas pequenas colinas espalhadas pelo litoral brasileiro” (Ibid., p. 15). 146 Ibid., p. 16. 147 De acordo com os irmãos Piletti, isto os diferenciava dos habitantes dos sambaquis, uma vez que estes “enterravam os mortos na própria cabana e colocavam os cadáveres diretamente no solo” (Ibid., 16). 148 Ibid., p. 16. 149 Ibid., p. 17. 150 Ibid., p. 19. 151 Ibid., p. 19. 152 Ibid., p. 20. 153 Ibid., p. 20. 154 Ibid., p. 21. 155 Notamos que os Piletti a todo instante trabalharam com números e estatísticas ao elaborar sua argumentação. Para demonstrar o poder de destruição dos europeus no processo de conquista dos portugueses no Brasil, destacaram que dos 5 milhões que se encontravam aqui em 1500, hoje só existem cerca de 250 000 índios no Brasil e lamentavam que o “homem civilizado” fosse capaz de “exterminar seu semelhante para tomar suas terras”. Para eles, a idéia de “civilização”, da qual eles faziam parte, era abominável a prática de extermínio ou qualquer outra forma de violência principalmente contra os mais fracos (Ibid., p. 21). Percebemos no discurso desta dupla de autores a influência de uma visão sobre a conquista da América próxima à apresentada pelo intelectual marxista uruguaio Eduardo Galeano, em As veias abertas da América Latina [6a ed. (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979)] e pelo jornalista militante e professor da Universidade Columbia Leo Huberman, em História da Riqueza do Homem [21a ed. (Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1986)]. Estas duas obras, com várias edições no mercado editorial brasileiro, influenciaram uma série de interpretações sobre a história nacional seja em obras militantes, seja em estudos acadêmicos, seja em manuais escolares a partir dos anos 1970, em especial, nos anos 1980, momento de abertura política e luta pela democratização do país, governado desde 1964 por um regime militar. Se analisarmos detidamente os manuais escolares deste período, perceberemos uma valorização de conceitos como liberdade e respeito e uma crítica feroz contra qualquer forma de dominação e injustiça contra os oprimidos – no caso do Brasil colonial –

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representados pelos índios e negros. Outro livro didático de grande circulação nesse período que seguiu esta linha interpretativa foi o Brasil Vivo. Uma nova história da nossa gente (volume I), de autoria de Francisco Alencar, Marcus V. Ribeiro & Claudius Ceccon [12a ed. (Petrópolis, RJ, Vozes, 1992)]. 156 Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da Pré-História à Independência. 1o grau, p. 21. 157 Para um estudo sobre o ensino de História no Brasil a abertura política e democrática nos anos 1980, conferir: Renilson Rosa Ribeiro, “Entre Textos & Leituras: As representações do professor e da história ensinada no discurso histórico das últimas décadas do século XX”, Monografia de Bacharelado em História, Campinas, SP, IFCH/UNICAMP (2001) em especial capítulo II. 158 Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da Pré-História à Independência. 1o grau, p. 22. 159 Para tentar demonstrar a diferença entre as tribos, os Piletti comentaram rapidamente que o desenho das aldeias variava de uma tribo para outra. Por exemplo, “os Xavantes preferem construir as aldeias em ferradura; já outras preferem a forma circular; outras, ainda, constroem uma única habitação coletiva”. Entretanto, não havia nenhuma explicação da razão de tais padrões de desenho das tribos, parecendo ao leitor-aluno apenas uma questão estética. Esta informação posta desta maneira parece vazia, retirado o parágrafo não alteraria o a significação dada ao índio pelos autores (Ibid., p. 23). 160 Ibid., p. 24. 161 Ibid., p. 25. 162 Para saber sobre a interpretação lascasiana do passado colonial na América Espanhola, conferir: Tzvetan Todorov, A Conquista da América: a questão do outro (São Paulo, Martins Fontes, 1996), Terceiro Capítulo – “Amar”; Héctor H. Bruit, Bartolomé de Las Casas e a simulação dos vencidos (Campinas/São Paulo, Ed. da UNICAMP/Iluminuras, 1995); José Alves de Freitas Neto, Bartolomé de Las Casas: a narrativa trágica, o amor cristão e a memória americana (São Paulo, AnnaBlume, 2004). 163 Em relação à natureza do selvagem conferir: François Laplantine, Aprender Antropologia, 7a ed. (São Paulo, Brasilense, 1994) capítulo I. 164 Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da Pré-História à Independência. 1o grau, p. 26. 165 Ibid., p. 26. 166 Ibid., p. 26. 167 Ibid., p. 28. 168 João Capistrano de Abreu, em Capítulos de História Colonial, chamava os portugueses, junto com os africanos, de “fator exótico” na história do Brasil. 169 Nelson & Claudino Piletti. História & Vida. Brasil: da Pré-História à Independência. 1o grau, p. 30. 170 Conselho Indigenista Missionário (CIMI), História dos povos indígenas. 500 anos de luta no Brasil, 2a ed. (Petrópolis, RJ, Vozes, 1984). 171 Os irmãos Piletti definiram cultura espontânea aquela “que se aprende olhando e imitando os mais velhos, brincando com os amigos, enfim, vivendo com os outros” [Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da Pré-História à Independência, p. 115]. 172 Assim como Borges Hermida, os Piletti fizeram a seguinte ressalva sobre a coivara: “O costume de queimar a mata para limpar o terreno antes de plantar foi herdado dos índios; hoje sabemos que essa prática é prejudicial ao solo, pois destrói muitos de seus elementos” (Ibid., p. 116). 173 Ibid., p. 116.

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174 Ibid., p. 114. 175 Para compor sua representação sobre os índios no Brasil, o autor fez referência as seguintes obras: Julio Cezar Melatti, Índios do Brasil (Distrito Federal, Ed. Brasília, 1970); Berta Ribeiro, O Índio na História do Brasil (São Paulo, Global Editora, 1983); Orlando e Cláudio Villas Boas, Xingu: os índios, seus mitos (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1974); Conselho Indigenista Missionário (CIMI), História dos povos indígenas (Rio de Janeiro, Ed. Vozes, 1984); Antonieta Dias de Moraes, Contos e lendas de índios do Brasil (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1979); Edílson Martins, Nosso índios, nossos mortos (Rio de Janeiro, Editora Codecri, 1979). 176 Chico Alencar inspirou-se na letra da música “Pássaro Vermelho”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, para montar a história do pequeno xavante Tsipré: “Pássaro Vermelho/sonhou um canto e cantou/e seu canto era belo e bom:/ê sol/ê lua/ê mata/ê rio/Brasil nem era Brasil/Muito antes de Colombo/muito antes de Cabral/aqui vivia uma gente/falando língua de vida/vivendo uma vida tal/que até parece cinema/até parece um sonho/o que era natural./Brasil nem era Brasil./O povo que aqui vivia/amava as coisas que tinha:/a mata que dava a caça/o rio que dava o peixe/a terra que dava o fruto/o fruto que repartia/na aldeia e na casa/na tribo e na família./Brasil nem era Brasil./um dia chegou de longe/o homem civilizado/trazendo em sua bagagem/veneno mais que mortal/e tudo que aqui vivia/em suave harmonia/tocado por tal veneno/foi virando pelo avesso./Brasil já era Brasil./E todos que aqui sonhavam/viram que o sonho virava/um enorme pesadelo/Por isso é que todo mundo/que mora nesse Brasil/precisa sonhar canto novo/precisa crescer como povo./Pássaro Vermelho/sonhou um canto e cantou/e seu canto era belo e bom:/ê sol/ê lua/â mata/ê rio...”. 177 Francisco Alencar, Brasil Vivo: Uma nova história da nossa gente (volume 1). 12a ed. (Petrópolis, RJ, Vozes, 1992) p. 11. 178 Ibid., p. 11. 179 Ibid., p. 12. 180 Ibid., p. 12. 181 Ibid., p. 12. 182 Ibid., p. 12. 183 Ibid., p. 13. 184 Ibid., p. 20. 185 Ibid., p. 20. 186 Ibid., p. 20. 187 Ibid., p. 20-1. 188 Percebemos no discurso didático de Chico Alencar a influência da obra de Eduardo Galeano, As veias abertas da América Latina [6a ed. (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979)] e Leo Huberman, História da Riqueza do Homem [21a ed. (Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1986)]. 189 Para uma análise iconográfica sobre o indígena nos manuais escolares de História do Brasil, conferir: Adriane da Costa Silva, “Versões didáticas da história indígena (1870-1950)”. Livros mais recentes como o de Nelson Piletti e Francisco Alencar fazem uso de fotografias e charges. 190 Conferir: Luís Donisete Benzi Grupioni, “Livros didáticos e fontes de informações sobre as sociedade indígenas no Brasil”, in A temática indígena na escola. Novos subsídios para professores de 1o e 2o graus (São Paulo, Editora Global/MEC/UNESCO, 1998) p. 483. 191 Everardo P. Guimarães Rocha, “Um índio didático: nota para o estudo de representações”, in Testemunha ocular: Textos de Antropologia Social do Cotidiano (São Paulo, Brasiliense, 1984) p. 31.

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192 Para compreender a construção do pensamento racialista, conferir: Tzvetan Todorov, Nós e os outros: A reflexão francesa sobre a diversidade humana, p. 107-141. 193 Ibid., p. 31. 194 Conferir: José Antonio Borges Hermida, História do Brasil. 5a série, p. 32-3. 195 Conferir: Norma Telles, “A imagem do índio no livro didático: equivocada, enganadora”, in Aracy Lopes da Silva (org.), A questão indígena na sala de aula. Subsídio para professores de 1o e 2o graus. 2a ed. (São Paulo, Brasiliense, 1993) p. 80-2. 196 Everardo P. Guimarães Rocha, “Um índio didático: nota para o estudo de representações”, in Testemunha ocular: Textos de Antropologia Social do Cotidiano, p. 34. No caso dos capítulos dos manuais analisados sobre as representações dos indígenas, encontramos as seguintes rubricas196: Joaquim Manuel de Macedo – Lição IV: “O Brasil em geral – Povos que o habitaram na época do descobrimento”; João Ribeiro – I. Descobrimento: “A terra e seus habitantes” e “A etnologia brasílica” e II. Tentativa de Unidade e Organização da Defesa: “As três raças. A sociedade”; Rocha Pombo – I. Descobrimento do Brasil. O íncola: “As populações indígenas” e “Ainda as populações indígenas”; Joaquim Silva – II. O indígena brasileiro; Borges Hermida – “Brasil, mistura de raças”; Nelson e Claudino Piletti – I. O Brasil dos índios e XII. A cultura no Brasil colonial: “Contribuições do índio”. 197 A catequese é, pela própria questão de seqüência histórica, a segunda referência ao índio no discurso didático. 198 Sérgio Buarque de Holanda, História do Brasil – Curso Moderno (1. Das origens à Independência), p. 40-2. 199 Em relação às variações presentes nos manuais escolares, concordamos com Everardo Guimarães ao afirmar: “É importante ressaltar também o fato de que dadas às condições arbitrárias de privilégio deste tipo de aspecto como as mais representativos da vida indígena cada autor pode formular variações, na mesma base, de acordo com sua criatividade, inventiva ou remanejamento de informações. O importante é que todas as variações se fecham em torno dos mesmos princípios de primitivismo e generalização. Parece lógico supor, de acordo com o critério de escolha das áreas da cultura indígena a serem privilegiadas, torna-se, então, possível generalizar e estabelecer o atraso cultural” [Everardo P. Guimarães Rocha, “Um índio didático: nota para o estudo de representações”, in Testemunha ocular: Textos de Antropologia Social do Cotidiano, p. 35]. Por esta razão, fizemos a opção de analisar detalhadamente a estrutura, organização e aspectos privilegiados (físicos, morais e intelectuais) por cada autor ao construir sua interpretação sobre os índios. 200 João Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial (1500-1800), p. 39-40. 201 Everardo P. Guimarães Rocha, “Um índio didático: nota para o estudo de representações”, in Testemunha ocular: Textos de Antropologia Social do Cotidiano, p. 40. 202 Para Norma Telles, os manuais escolares quando abordavam sobre a temática dos habitantes da América, eles eram introduzidos em posição de completa inferioridade – “inferioridade técnica, inferioridade devido à beligerância entre grupos, tão decantada e enfatizada (o que torna o colonizador um pacifista, um pacificador), a inferioridade por não estar na história – e resulta a impressão de que são ultrapassados, anacrônicos, decadentes, porque incapazes de fazer história ou de resistir ao agressor. Essa impressão é reforçada pela ausência da história, do processo de conquista. O momento escolhido pelos autores para mencionar esses grupos é sempre desfavorável porque são colocados em capítulos separados, e porque sua cultura não é descrita na totalidade e em sua lógica própria, mas através de elementos isolados, de preferência exóticos” [Norma Telles, “A imagem do índio no livro didático: equivocada, enganadora”, in Aracy Lopes da Silva (org.), A questão indígena na sala de aula. Subsídio para professores de 1o e 2o graus, p. 83-4]. 203 Conferir: Maria Laura P. Barbosa Franco, O livro didático de história no Brasil: a versão fabricada. (São Paulo, Global, 1982); Norma Abreu Telles, Cartografia brasílis ou: esta história está mal contada, 3a ed. (São Paulo, Edições Loyola, 1996).

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Imagens do Índio

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204 Conferir: Kazumi Munakata, “Produzindo livros didáticos e paradidáticos”, Tese de Doutorado em Educação, São Paulo, PUC/SP (1997).

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________________________________________Segundo Capítulo

IMAGENS DO PORTUGUÊS

“Cada uma das particularidades físicas e morais, que distinguem as diversas raças, oferece a este

respeito um motor especial; e tanto maior será sua influência para o desenvolvimento comum,

quanto maior for a energia, número e dignidade da sociedade de cada uma dessas raças. Disso

necessariamente se segue o português, que, como descobridor, conquistador e senhor, poderosamente

influiu naquele desenvolvimento; o português, que deu as condições e garantias morais e físicas

para um reino independente; que o português se apresenta como o mais poderoso e essencial

motor”.

Karl Friedrich Philipp von Martius,

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Imagens do Português

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“Como se deve escrever a história do Brasil” [1844].

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Imagens do Português

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_______________________________ Imagens (didáticas) da “raça branca ou caucasiana”

Ao pensar o papel desempenhado pelo português na construção da obra colonial nas Américas, a exemplo

de Karl F. P. von Martius, os manuais escolares de História do Brasil, dentro de suas especificidades, têm

concentrado suas leituras na imagem desse como descobridor, conquistador e senhor.

Na monografia de von Martius, nascido em Erlangen na Bavária, o papel preponderante atribuído ao

elemento português foi constantemente reiterado em virtude de seu imperativo civilizacional. O português

surgia na sua escrita como “poderoso e essencial motor” da obra colonial no Brasil. O sangue da “raça

branca ou caucasiana” influiu de maneira magistral no desenvolvimento da futura nação. Era o português

quem dava as condições e garantias morais e físicas para um reino independente que foi se formando

caudalosamente ao longo de três séculos1.

Nesta linha de raciocínio, o autor enfatizou as peculiaridades da colonização instaurada pelos

descobridores do Brasil, sublinhando a organização do sistema de milícias, pois estas “fortaleciam e

conservavam o espírito de empresas aventureiras, viagens de descobrimento, e extensão do domínio

português”2, assim como favoreciam o desenvolvimento de instituições municipais livres e a atuação das

ordens religiosas, principalmente pelo fato de que diversas vezes “elas eram os únicos motores de

civilização e instrução para um povo inquieto e turbulento. Outras vezes nós vemos elas protegerem os

oprimidos contra os mais fortes”3.

Para o historiador que se aventurasse a desbravar a história da nação a partir da contribuição do

português, este naturalista, que visitou o Brasil entre os anos de 1817 a 1820 como botânico da expedição

bávara juntamente com o zoólogo Johan Baptist von Spix, propôs que este não poderia se restringir à

redação de uma crônica dos eventos políticos, mas, sobretudo,

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Imagens do Português

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“deve transportar-nos à casa do colono e cidadão brasileiro; ele deve mostrar-nos como

viviam nos diversos séculos, tanto nas cidades como nos estabelecimentos rurais, como se

formavam as relações do cidadão para com seus vizinhos, seus criados e escravos; e

finalmente com os fregueses nas transações comerciais. Ele deve juntar-nos o estado da

igreja, a escola, levar-nos para o campo, às fazendas, roças, plantações e engenhos. Aqui

deve apresentar, quais os meios, segundo que sistema, com que conhecimentos manejavam

a economia rústica, lavoura e comércio colonial. Não é destituído de interesse saber-se

como e aonde se introduziram pelos colonos, pouco a pouco, árvores e plantas européias;

como, pouco a pouco, se desenvolveu o sistema presente; qual a parte que em todos estes

movimentos tiveram a construção naval, a navegação e o conhecimento dos mares,

principalmente daqueles que foram sulcados pelos portugueses”4.

No trecho citado podemos identificar várias possibilidades de estudo sobre o agente colonizador

português no Brasil colonial. No campo e na cidade, no litoral e no interior, von Martius procurou retratar

as múltiplas facetas do português: descobridor, colonizador, missionário, desbravador, senhor,

administrador, militar entre outras. Na descrição desses homens que aportaram no Brasil, ele encontrou

elementos emblemáticos para construir as características da colonização portuguesa e da formação da

sociedade brasileira. Sob o domínio dessa “raça caucasiana”, segundo o autor, as raças “etiópicas” e

“indígenas” reagiram positivamente na obra colonial instaurada nos trópicos5.

Ao adentrar o mundo que o português criou no Brasil, von Martius lançou uma série de

possibilidades temáticas e interpretativas que têm ocupado os autores de livros e manuais de História do

Brasil. Suas proposições sobre a colonização portuguesa, seja em acordo ou desacordo, constituíram um

referencial privilegiado na construção das narrativas sobre a história da nação. Um referencial não por ser o

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Imagens do Português

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único, mas por apresentar de forma organizada e sistematizada uma série de prescrições para a escrita da

memória nacional. Em clássicos da historiografia como os de Francisco Adolfo de Varnhagen, Capistrano

de Abreu, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior entre outros nomes podemos

encontrar um diálogo com o modelo interpretativo de von Martius, principalmente em relação ao passado

colonial6.

Nos anos 1850, por exemplo, o historiador Varnhagen, ao publicar sua História geral do Brasil, de

modo semelhante a von Martius, apresentou o elemento português como personagem principal nas tramas

e acontecimentos que moldaram o passado e o presente do Brasil.

A História geral do Brasil transparecia nas suas páginas a fidelidade à monarquia bragantina, herdeira da

Coroa portuguesa, a defesa do colonialismo e uma interpretação histórica que unisse o Brasil a Portugal

com laços fortes de sangue e amizade. Elogiar os colonizadores do passado era legitimar as elites do seu

presente. Relatar, por exemplo, os feitos da era dos descobrimentos portugueses era uma forma de celebrar

a figura do monarca D. Pedro II.

No capítulo dedicado à “Descoberta do Brasil”, Varnhagen ofereceu ao seu leitor uma mostra do que

viria ser a saga dos portugueses pelos mares desconhecidos e novas terras. Para ele, os indígenas com seus

modos de vida bárbaros ter-se-iam perpetuados no solo brasileiros se a providência divina não tivesse

acudido a dispor que o cristianismo e a civilização trazidos pelas caravelas portuguesas viesse por termo a

tão triste e depravado estado. Temos a impressão em seu texto que era injusto que essas “gentes errantes”

desfrutassem, sem os benefícios da paz e da cultura do espírito, do fértil e formoso solo do Brasil. De

acordo com José Carlos Reis, o Visconde de Porto Seguro defendia que esse passado indígena do Brasil

deveria ser esquecido ou não deveria influenciar na construção do futuro da nação brasileira, se preservado.

Aliás,

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“os capítulos dedicados ao indígena na história geral do Brasil teriam esta função: mostrar

que o futuro do Brasil não poderá ter nesse passado a sua raiz. O presente-futuro do Brasil

se assentaria em um outro passado, naquele que veio do exterior para pôr fim a essa

barbárie e selvageria interiores. Com a chegada do cristianismo, do rei, da lei, da razão, da

paz, da cultura, da civilização, com a chegada dos europeus a este território, o Brasil surgiu

e integrou-se no seio da providência”7.

Para realizarem a descoberta do Brasil, os portugueses tiveram dois impulsos: o comércio com o

Oriente e o espírito evangelizador, as guerras comercial e santa, sendo a primeira travada dos europeus

entre si, a segunda, entre os europeus unidos contra os muçulmanos:

“Os interesses do comércio, mais que a curiosidade natural ao homem e que a sede das

conquistas, têm sido em geral a causa da facilidade do trato e comunicação dos indivíduos

da espécie humana entre si. Foi ao da especiaria do Oriente que originariamente se deveu o

grande acontecimento que denominamos Descobrimento do Novo Continente. (...)

Lull ou Lúlio, como vulgarmente o apelidam, talvez o sábio mais enciclopédico da Idade

Média, depois de haver corrido grande parte do mundo, segundo ele ingenuamente diz,

escreveu em princípios do século XIV (1305) um livro intitulado De fine, no qual lembrou a

conveniência de acabarem os cristãos com o improfícuo sistema das cruzadas marítimas,

com que nunca ficariam por uma vez senhores da Terra Santa; e propôs para agredir os

muçulmanos um plano mais razoável.

Consistia em ir rechaçando passo a passo os infiéis das terras por onde se avizinhavam da

cristandade, obrigando-os assim a abandonarem todas as conquistas feitas aquém da

Arábia, e a retrocederem pelo mesmo caminho por que tinham avançado vitoriosos”8.

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Em História geral do Brasil, a descoberta do Brasil ocorreu no contexto destas duas guerras, que haviam

criado duas controvérsias na Europa. A primeira controvérsia enfrentada pelos europeus referia-se à

estratégia para a tomada da Terra Santa: devia-se atacar diretamente os lugares santos e liberta-los, assim

como fizeram os cruzados, ou se devia expulsar o infiel porto por porto, fortaleza por fortaleza, a partir da

Europa, descendo pela África até o Oriente. A opção feita pelo reino português foi a segunda estratégia, a

partir das orientações de Lull ou Lúlio. Neste momento, o autor destacou a importância dos monarcas D.

João I e D. Henrique no processo de reconquista:

“D. João I de Portugal, desejoso de estender mais os eu pequeno reino, por meio de

conquistas sobre os infiéis, passou a desalojá-los de Ceuta; e os seus herdeiros

prosseguiram depois nesse grande pensamento, apoderando-se de outras terras dos

Algarves da África.

O infante D. Henrique, filho daquele rei, propôs a diminuir a riqueza e por conseqüência a

importância do Egito, bloqueando-lhe o seu rendoso comércio da especiaria, não do lado

do Mediterrâneo, mas, com muito maior ousadia, pelos mares do Oriente, que tratou de

buscar, empreendendo chegar à Índia por meio da circunavegação da África”9.

A segunda controvérsia vivida pela Europa do período era justamente sobre a estratégia para se

atingir as Índias, evitando-se os intermediários muçulmanos e outros europeus da rota terrestre tradicional.

Havia dois caminhos possíveis: a via ocidental e a via oriental. A primeira levou Colombo à América; a

segunda levou os portugueses às Índias. A rota oriental, contornando o continente africano, levou os

portugueses a cumprirem primeiro sua meta. A rota ocidental levou Colombo a um lugar inesperado.

Varnhagen ateve-se a esses eventos para construir sua interpretação sobre o contexto da descoberta do

Brasil. Na sua leitura, os portugueses iniciaram a empreitada das viagens e navegações levando vantagem

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sobre os espanhóis: atingindo o seu objetivo com menos custos e menos ousadia. Embora tenham perdido

a prata americana, pois não investiram no plano de Colombo, os portugueses não deixaram de ser

magistrais aos seus olhos. Ele lamentou esse prejuízo enorme, mas defendeu os cosmógrafos portugueses

que levaram o rei a cometer esse erro.

Chegados ao Brasil na frota de Pedro Álvares Cabral, por essas razões e pela via meridional, e após os

espanhóis, Varnhagen passou a apresentar um desfile dos heróis portugueses pela paisagem e pela história

do Brasil. A descoberta do Brasil, na sua História geral do Brasil, era atribuída a Vasco da Gama, pois o

navegado português foi quem orientou a navegação de Cabral. Vasco da Gama e Cabral surgiam como os

primeiros heróis do panteão cívico de Varnhagen. A descoberta do Brasil, contudo, não foi planejada,

sendo obra do acaso. A meta de Cabral, quando partiu de Lisboa com suas embarcações, não era descobrir

o Brasil, e sim consolidar o novo caminho das Índias inaugurado por Vasco da Gama. No momento do

desembarque da tripulação de Cabral na nova terra em 1500 iria Varnhagen datar o início da história do

Brasil. Com base nestes dados, vejamos como o autor narrou o evento da descoberta do Brasil:

“Prosseguindo no empenho de encontrar a Índia, dobrando a extrema meridional da

África, viu resolvido esse problema, com a chegada de Vasco da Gama a Calecut, em 1848;

com a qual se comprovou a possibilidade de cortar ao Egito, pelos mares da Índia, o

comércio da especiaria, dando-lhe outro rumo. A fim de assegurar esse comércio em favor

de Portugal, por meio do estabelecimento de algumas feitorais, a partiu da foz do Tejo, aos

9 de março de 1500, uma esquadra de treze embarcações, armadas algumas por

negociantes particulares, mas todas sujeitas à capitania-mor de Pedro Álvares Cabral,

indivíduo de família ilustre, porém não afamado por feitos alguns anteriores. Nas

instruções escritas que recebeu, e das quais chegaram providencialmente a nossas mãos

alguns fragmentos da maior importância, foi-lhe recomendado que, na altura de Guiné, se

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afastasse quanto pudesse da África, para evitar suas morosas e doentias calmas. Obediente

a essas instruções, que haviam sido redigidas pelas insinuações do Gama, Cabral se foi

amarando da África, e naturalmente ajudado a levar pelas correntes oceânicas ou pelágicas,

quando se achava com mais de quarenta dias de viagem, aos 22 de abril, avistou a oeste

terra desconhecida. O que desta se apresentou primeiro distantemente aos olhos curiosos

da gente dessa armada, agora constante só de doze embarcações, por se haver desgarrado

dias antes uma delas, foi um alto monte, que em atenção à festa da Páscoa que se acabava

de solenizar a bordo, foi chamado Pascoal; nome que ainda conserva esse monte, mui

conhecido dos mareantes, que o consideram entre as melhores balizas para a conhecença

dessa parte do litoral”10.

Em seguida ao desembarque em terra firme, através da personagem de Cabral, Varnhagen,

engenheiro militar formado pela Escola de Cadetes de Portugal, pôs a pergunta da sua propriedade:

pertenceria aos portugueses? A tal questionamento, o autor respondeu que pertencia, sim, desde 1494, isto

é, antes mesmo de ter sido descoberta, pelo Tratado de Tordesilhas, assinado por portugueses e espanhóis

diante do papa. O autor de História geral do Brasil não negou que antes de Cabral os navegantes Américo

Vespúcio, Vicente Pinzon e Diogo Lepe, sob o comando da Coroa espanhola, haviam desembarcado no

Brasil. Todavia, a vinda desses não teria trazido conseqüências e a história do Brasil realmente começava

ali. Varnhagen explicitou sua defesa da legitimidade da descoberta e posse dos portugueses amparado nos

termos do Tratado de Tordesilhas:

“Como e quando se inteirou Portugal da existência do legado, a que, com poucos anos de

antecipação, dera herdeiro o tratado testamentário de Tordesilhas, como o descuidou a

princípio, e o beneficiou e aproveitou depois; e finalmente como, através de muitas

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vicissitudes (incluindo acometimentos e guerras por parte de gentes das quatro nações,

que, além de Portugal, mais se ocuparam de colônias do século dezesseis para cá, isto é, da

Espanha, França, Inglaterra e Holanda) veio a surgir, na extensão de território que o

mesmo legado abarcava, um novo Império a figurar no orbe entre as nações civilizadas,

regido por uma das primeiras dinastias de nossos tempos - tal é o assunto da presente

História. Portugal tomou conhecimento de suas terras somente seis anos após o Tratado

de Tordesilhas, em 1500. Poucos imaginariam que nessa terra, dentro de algumas gerações,

se havia de organizar uma nação mais rica e considerável do que a mãe-pátria”11.

Feita a descoberta, era o momento de explorar a fim de “haver mais exata informação da terra que

tinha à vista”, da qual se poderia fazer bom uso, quem sabe “refrescar os navios com algumas provisões”12.

Auxiliado pela carta de Pero Vaz de Caminha, Varnhagen reconstruiu o cenário da presença dos

portugueses no Brasil narrando o momento do nascimento da futura nação, o encontro dos nativos com a

civilização européia. Descoberta e feitas as primeiras explorações, os portugueses realizaram o ritual de

posse da terra através da celebração religiosa:

“No dia 26 do mencionado abril, que era domingo da Pascoela, foram todos os da armada

assistir à missa que foi celebrada em um ilhéu ou restinga, que se acha à entrada do dito

Porto Seguro. Presenciaram a solenidade, cheios de espanto (que alguns dos nossos

tomaram por devoção), muitos filhos da terra que ali vieram. Também cumpre fazer

menção de que, no 1o de maio seguinte e no meio da solenidade de outra missa, se efetuou

a cerimônia da tomada de posse da nova região para a Coroa de Portugal, levantando-se

num morro vizinho uma grande cruz de madeira, com a divisa do venturoso rei D.

Manuel”13.

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Como historiador renomado e sócio do IHGB, Varnhagen apresentava, dessa forma, a Carta do

escrivão Caminha como a “certidão de nascimento” da nação. Nascia, naquele momento, o Brasil como

obra da atuação épica dos portugueses pelo Atlântico desconhecido.

Em relação aos manuais escolares elaborados para a disciplina, como verificaremos neste capítulo,

notamos também uma forte influência do modelo desse autor na criação de uma versão didática para a

história da colonização portuguesa no Brasil. Ao abrirmos as páginas destes manuais, podemos encontrar

versões do sujeito colonizador português favoráveis ou desfavoráveis, representados principalmente por

quatro modelos ideais derivados da monografia de von Martius: o descobridor (os navegadores), o religioso

(os jesuítas) o conquistador (os bandeirantes) e o senhor (os senhores de engenho). Ao abordar a presença

portuguesa no Novo Mundo a partir destes modelos, os manuais escolares foram forjando uma identidade

nacional para Portugal como uma civilização e uma raça superior.

Para os fins deste capítulo, pretendemos analisar as representações criadas por esses manuais

escolares sobre o elemento português a partir do evento das viagens e descobrimentos do século XV. O

português descobridor constituiu a temática central do estudo que desenvolvemos sobre a construção da

identidade de Portugal, pátria-mãe que deu origem à nação-filha – o Brasil. Atribuímos especial destaque

para três aspectos em relação à era dos descobrimentos, tópico que geralmente inaugura os primeiros

capítulos dos manuais escolares de História do Brasil: ser o mar o destino do povo português, nascido e

predestinado a desvendar e colonizar o mundo desconhecido; ser o descobrimento do Brasil um evento

cercado de uma mística, ou seja, a idéia do acaso da “descoberta” configurar-se como uma prova de que os

portugueses eram o povo escolhido a trazer a luz da civilização e da fé cristão para as novas terras e gentes

dos trópicos; ser o português, europeu de origem racial “branca ou caucasiana”, o grande “motor”, numa

expressão cara a von Martius, da obra colonial e nacional no Brasil, constituindo o imenso rio que

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congregaria as contribuições dos pequenos afluentes das raças negras e indígenas para a formação da

identidade nacional brasileira.

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Imagens do Português

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____________________________________________________Joaquim Manuel de Macedo

A idéia de ser um destino de Portugal singrar o imenso mar oceano e conquistar novas terras apareceu com

especial destaque em Lições de História do Brasil para o uso nas escolas de instrucção primaria, do professor

Joaquim Manuel de Macedo, fluminense de Itaboraí. O autor, na primeira lição (“Idéas Preliminares”), foi

longe na história portuguesa para definir as linhas do movimento expansionista de Portugal. Como fiel

súdito e amigo da Coroa reinante, ele aceitava a ordem monárquica e o trono. Para ele, buscar as origens

remotas dos descobrimentos era relatar a ação de reis descobridores, de príncipes de visão ampla, de

dinastias eleitas por Deus para dirigir o futuro de povos. Neste manual, de modo semelhante ao seu

confrade do IHGB, Vanhagen, Macedo realizou um elogio dos feitos dos monarcas portugueses:

“No século décimo quinto Portugal maravilhou o mundo pelas admiráveis descobertas e

conquistas que os seus navegantes emprehenderam e levaram a effeito”14.

A partir de D. João I, mestre de Avis, filho natural de D. Pedro o Justiceiro, Macedo iniciou a sua

narrativa sobre a história do Brasil. Uma nova dinastia se iniciava e com ela a história de Portugal se

transformaria. O reinado de D. João I, segundo o referido manual, foi marcado por grandes feitos que se

realizaram, e que em grande parte foram devidos a um de seus filhos, o infante D. Henrique.

Na figura do infante, o “Dr. Macedinho”, como era conhecido pelos seus alunos do Colégio Pedro

II, incorporou o espírito de Portugal como predestinado a dominar os mares. Portugal assumia uma nova

veste com o manto real do príncipe aventureiro. Elogiar os atos dele era enaltecer o futuro glorioso que

esperava a nação lusitana no século vindouro:

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Imagens do Português

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“Este inclito príncipe era dotado de uma intelligencia vasta e de uma vontade forte, e

sendo muito instruído em cosmographia, e astronomia, e tendo gosto decidido pela

navegação, fundou uma escola naval na praia de Sagres, junto ao cabo de S. Vicente, fez

construir navios, rodeou-se dos mais hábeis pilotos, e ordenou expedições maritimas

successivas e numerosas, que começaram a dar aos Portuguezes o imperio dos mares”15.

Para Macedo, somente nas mãos e mente de um homem brilhante como D. Henrique estaria o êxito

de um povo. O Brasil enquadrava-se no seu passado colonial e presente imperial a uma história de

expansão e conquista ensejada pela Coroa portuguesa. O passado, presente e futuro da nação brasileira

tinham o seu berço na Europa, no pequeno reino da Península Ibérica que se desgarrara do continente para

navegar os mares. De acordo com o autor:

“Até então os navegantes não ousavam passar além do cabo de Nun (cabo de Não), que

está situado no reino de Marrocos, na África, na extrema occidental do Atlas: dizia-se

‘quem passasse o cabo de não, voltará ou não;’ mas o infante D. Henrique, desprezando o

adágio assustador, mandou dobrar o cabo de Não em 1412, e em seguida de 14417 ou

1418 em diante o poder de sua vontade, e a inspiração de seu genio fizeram avançar pelo

oceano pilotos adestrados e animosos, que descobriram um grande numero de ilhas e toda

a costa occidental da Africa até quase á serra Leoa”16.

A partir desta observação feita sobre os atos de D. Henrique, podemos verificar que Macedo,

seguindo os passos de seu mestre Varnhagen, não apresentou a expansão portuguesa do “Mar Oceano”

como um movimento meramente mecânico em função da tomada de Ceuta aos árabes. Para ele, a

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conquista de Ceuta foi o primeiro anel de uma cadeia imensa de tentativas e empenhos audaciosos,

arriscados e bem sucedidos de Portugal. Embora aparentasse a idéia de uma história dinâmica não

reducionista, permitindo articulações e movimentos próprios, envolvendo outros fatores para compreender

a expansão portuguesa pelos mares, Macedo optou por seguir um modelo de história atrelada

expressamente ao Estado monárquico como criado pelas dinastias e só se atendo a aspectos políticos e

institucionais.

A descrição dos feitos de D. Henrique serviu-nos de parâmetro para compreender como a idéia de

Portugal como império unido e preparado para ser senhor dos mares estava na mente de Macedo associado

à noção de um governo forte e sábio. Só mediante a ação da monarquia que as navegações e

descobrimentos seriam possíveis. O povo português (Europa) significava o complemento necessário para

os índios (América) e negros (África) alcançarem a civilização, uma vez que aqueles tinham em sua

linguagem as letras F, L e R fortes. Em suma, esta nação era portadora de civilização constituir-se com base

na fé, na lei e no rei. O que era ausência ou lacunas para os “gentios”, para Portugal constituía seu modo de

ser, sentir e saber.

Este provavelmente deveria ser um assunto bastante apresentado em sala de aula. O texto didático do

professor memorialista Macedo deixou transparecer ao seu leitor-aluno um forte sentimento de admiração

na narração dos fatos dos descobrimentos, destacando a importância do voluntarismo político e até mesmo

místico de reis e príncipes como motor principal da história em movimento no século XV.

Apesar de elencar a partir da Europa, renascida das invasões bárbaras, as Cruzadas que abriram o

Mediterrâneo e os conhecimentos técnicos científicos que surgiram na época, Macedo não deixou de

enfatizar e exaltar a figura da Coroa reinante como chave propulsora de toda a obra da navegação. Mesmo

morto o infante D. Henrique, o impulso do mar oceano já era uma realidade. A história brasileira

encontraria o seu lugar na história da civilização a partir do movimento iniciado pelo infante:

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“A D. João I, que morreu em 1433, succedeu no throno de Portugal D. Duarte, e por

morte d’este empunhou o sceptro Affonso V, em 1438, e todos estes reis auxiliáram o

empenho patriótico do infante D. Henrique, em cujos planos já entrava a idea magestosa

de ir procurar o caminho das Índias, rodeando a extrema meridional da África, idea que

não lhe foi dado effectuar, porque faleceu aos 13 de Novembro de 1460, quando mais

animoso meditava na execução dos seus projectos.

D. Affonso V proseguio na obra gloriosa encetada pelo inclito infante, e D. João II, que

em 1481 subio ao throno de Portugal por morte d’aquelle rei, seu pai, dominado pelo

mesmo pensamento, mandou em 1486 Bartolomeu Dias dobrar o grande cabo que

termina a Africa ao sul.

Bartolomeu Dais, depois de uma penosa viagem, em que passou além do cabo sem que o

percebesse, teve de voltar coagido pela gente dos navios revoltada pelo terror, e então

avistou o cabo, a que chamou das Tormentas, em lembranças das que perto d’elle soffrêra,

e foi chegar em Dezembro de 1487 a Portugal, onde D. João II, sentindo-se cheio de

esperanças de novos descobrimentos, deu o nome de cabo da Boa esperança ao mesmo que

o seu piloto nomeára das Tormentas”17.

Nesse momento, Cristóvão Colombo, já ocupava a atenção nas Cortes ibéricas. Macedo tinha um

afeto especial pela personagem do navegador genovês, o que o fez construir uma imagem grandiosa dele.

O futuro descobridor do continente americano era enaltecido nas páginas de Lições de História do Brasil por

suas qualidades intelectuais, de liderança, de navegador, de visionário. Macedo destacou ainda toda a

peregrinação de Colombo pelas Cortes de Portugal e Espanha até finalmente a viagem que em 1492 levá-

lo-ia ao descobrimento do Novo Mundo. A descoberta de novas terras no Atlântico deu início a uma série

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de debates e confrontos entre as monarquias portuguesa e espanhola. Junto com o rei D. João II, Macedo

parecia lamentar o fato de Portugal não haver financiado o projeto do navegador genovês.

Outra figura ilustre retratada por seu manual escolar foi o navegador Vasco da Gama, que completou

a obra de Bartolomeu Dias. A mando do rei D. Manuel, o navegador português partiu com o objetivo de

dobrar com sua armada o cabo da Boa Esperança e chegar às Índias. Assim como Varnhagen, Macedo não

poupou elogios às conquistas de Vasco da Gama:

“O illustre capitão portuguez mostrou-se digno da confiança do seu rei; sahio de Lisboa a

3 de Julho de 1497, dobrou o cabo da Boa Esperança a 22 de novembro, correu a costa

oriental da Africa, chegou a Calicut, onde o Samorim o recebeu com benevolência e

depois armou-lhe ciladas, que a constância dos Portuguezes annullou, e lançando as bases

do poder Portugal na Índia, voltou e appareceu diante de Lisboa em Julho ou Agosto de

1499.

O chefe de uma expedição tão afortunada e brilhante e que tão importantes resultados

assegurava, não podia ficar sem prêmios elevados. Vasco da Gama teve o titulo de conde

da Vidigueira, e de almirante dos mares orientaes”18.

A imagem do final do século XV criada nas páginas de Lições de História do Brasil para o uso nas escolas de

instrucção primaria era cara ao coração de Macedo. Nela o professor dos filhos da princesa Isabel fez sua

exaltação da monarquia como sistema de governo e da colonização portuguesa como modelo civilizacional

para a humanidade. Escrever sobre as glórias dos descobrimentos marítimos do século XV português era

uma maneira de defender a origem nobre e européia da formação da nacionalidade brasileira, representada

na época do autor pelo reinado de D. Pedro II.

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Além de valorizar a argumentação política para pensar sua narrativa sobre os descobrimentos

portugueses, Macedo enfatizou a importância da História como gerenciadora do progresso e da

regeneração dos povos. O século XV significou a regeneração da Europa e o inicio do processo civilizador

das novas terras descobertas. Para ele, monarquia, dinastias e providência divina presentes na alma de

Portugal produziram o progresso e a civilização como lemas para a humanidade:

“A idéia magestosa do infante D. Henrique estava, pois realisada; o século decimo quinto

acabava com um feito estrondoso.

Mas o século décimo sexto ia começar com um esplendor inesperado e ainda mais

precioso e magnifico”19.

O espírito e a cultura universalizante da Europa Ocidental ganharam, nas páginas escritas por

Macedo, o espaço de seu complemento na América com uma fundamentação teológica. Ele preparava o

seu leitor-aluno para a monumental entrada do Brasil no cenário da História com o desembarque dos

portugueses em 1500. Era como se as terras descobertas só passassem a existir no momento em que

Portugal as possuísse.

Ao abordar o tema do descobrimento do Brasil na segunda lição (“Descobrimento do Brasil”), “Dr.

Macedo”, assim tratado pelos confrades do IHGB, realizou uma breve seqüência dos fatos relativos a

chegada dos portugueses na região de Porto Seguro. O navegador Pedro Álvares Cabral foi introduzido

como um homem de capacidade e prestígio para realizar tal feito. O seu texto didático narrou rapidamente

a solenidade que antecedeu a partida da esquadra cabralina e baseado na carta do escrivão Pero Vaz de

Caminha fez a construção da descrição da viagem e o descobrimento do Monte Pascoal, nome de

referência cristã.

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A narrativa de Macedo foi simples e seqüencial, não havendo qualquer comentário ufanista em

relação à carta de Caminha, sua principal fonte norteadora. O elemento indígena aparecia em momentos

específicos: O primeiro deles quando Affonso Lopes, ao sondar a região próxima da onde a embarcação

estava aportada, ter colhido dois moços que trouxe para bordo. Segundo o autor de Memórias da Rua do

Ouvidor, houve contatos amistosos entre portugueses e nativos, embora se notasse que estes eram

“completamente selvagens”. O segundo momento foi durante a celebração da missa no dia 1o de maio,

realizada pelo frei Henrique, quando muitos “selvagens” acompanharam a solenidade, procurando imitar

os portugueses em todos os sinais de externo culto20.

Após narrar a cerimônia de posse, o autor fez uma breve reflexão sobre os nomes que a terra

descoberta recebeu: Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz e Brasil.

Assim como Varnhagen, Macedo abordou a polêmica da prioridade dos descobrimentos, fazendo

referência à presença anterior dos navegadores a serviço da Espanha como Alonso de Hojeda, Américo

Vespúcio, João de la Cosa, Vicente Pinzon e Diego de Lepe. Entretanto, ressaltou que as honras do

descobrimento tinham sido conservadas ao navegador português, porque

“porque as expedições d’esses três outros navegadores não tiveram resultados e quase que

se perderam os vestígios de passagem d’ellas por alguns pontos d’esta parte do continente

da America, e porque enfim a fortuna de Cabral no de 22 de abril foi logo mezes depois

solemnemente annunciada á Europa por el-rei D. Manoel”21.

Em Lições de História do Brasil para o uso das escolas de instrucção primaria, surgia o descobrimento do Brasil

como mais um evento memorável da história das navegações portuguesas do século XV.

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__________________________________________________________________João Ribeiro

Ao analisar os antecedentes cabralinos no primeiro capítulo (“O Descobrimento”), o historiador e crítico

literário João Ribeiro, sergipano de Laranjeiras, em sua História do Brasil (Curso Superior), afirmou que as

navegações eram fruto da escravidão, ao contrário de Macedo que atribuía à obra da vontade de príncipes:

“O primeiro impulso que arrastou os portugueses às terras incógnitas da África foi a

escravidão. Não haviam ainda os turcos fechado o caminho do Oriente, no fundo do

Mediterrâneo, e já os portugueses eram os grandes navegadores ocidentais. A caça ao

homem negro levou-os a arrostar o mar tenebroso e desfazer a lenda medieval que

considerava inacessível ao homem a zona tropical africana”22.

Diferente de Macedo, João Ribeiro deixou bem claro ao seu leitor-aluno que a história brasileira

começaria marcada pelo signo da escravidão negra já praticada pela e na metrópole portuguesa. Na sua

leitura, história da escravidão moderna confundia-se com a história do Brasil. Publicado originalmente em

1900, o manual escolar de João Ribeiro estava ainda impregnado pela experiência da abolição da

escravatura. Para ele, o fato dos portugueses conhecerem e praticarem a escravidão africana iria influenciar

a história das regiões ocupadas por eles. Em manuais escolares publicados posteriormente a História do

Brasil (Curso Superior) a questão da escravidão seria tratada como prática universal da expansão portuguesa, e

a colônia, como parte do império, não podia se afastar das praticas metropolitanas.

Embora tivesse ressaltado a importância a atuação de reis e príncipes na empresa das grandes

navegações do século XV, o autor deixou claro que a expansão lusitana estava ligada diretamente a

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interesses materiais muito específicos. Na seqüência dos interesses almejados, apareceram ainda “o ouro da

Costa” e o comércio. A esta ambição material juntou-se também a fé cristã em luta contra os muçulmanos.

A questão religiosa, ao contrário de Macedo, aparecia na sua obra como motor da expansão portuguesa.

Para João Ribeiro, foi dentro desta dinâmica que se instaurou os grandes descobrimentos:

“Desde 1415 é tomada Ceuta aos mouros; logo depois os navegantes portugueses Zarco e

Tristão Vaz descobrem a Madeira (1420); Gil Eanes dobra o cabo Bojador (1433) e

sucessivamente vão revelando as terras africanas em percurso de trezentas e cinqüenta

léguas. Ainda o próprio Bartolomeu Dias, que descobriu o cabo das Tormentas (depois da

Boa Esperança), não sabia sequer que havia atingido o extremo meridional do continente

negro e foi muito além dele pelos mares, supondo que tinha à esquerda a costa africana;

pouco a pouco, porém, foi velejando subindo para o norte e teve a revelação jucunda de

que havia contornado a África.

Antes desse momento firmou-se a idéia de atingir a Índia pelo meio-dia; corria então pela

Europa o mito Preste João, e ao tempo que as caravelas de Bartolomeu Dias levavam o

rumo do sul, seguiam por terra à Abissínia (reino do legendário rei) Peres da Covilhã e

Afonso de Paiva; destarte D. João II, o príncipe perfeito, abraçava a África, por mar e

terra, pelo sul e pelo norte.

Pouco depois, em 1497, partia de Lisboa Vasco da Gama que, com grande glória, achou o

caminho da Índia”23.

À semelhança do manual escolar de Macedo, o descobrimento do Brasil, assim como o da América,

situava-se como uma etapa do périplo africano. Para João Ribeiro, o continente americano seria fatalmente

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descoberto pelos portugueses dentro de pouco tempo, ainda que Colombo não tivesse aparecido, uma vez

que eles, por experiência com os mares africanos,

“afastavam-se sempre para o oeste com o fim de evitar as calmarias da costa de Guiné; o

próprio Vasco da Gama na sua célebre viagem bem perto passou das terras brasileiras e

talvez só por acaso não percebeu qualquer indício delas. Cabral, enfim, que seria o

Colombo português, primeiro dos navegadores da Índia, avistou a terra americana a 22 de

abril de 1500. é que eles seguiam a corrente oceânica que corre no Atlântico do lado das

nossas praias.

Não é menos certo que aos portugueses cabiam a ciência e os instintos das grandes

navegações.

É provável que clara ou dissimuladamente guardaram o segredo dos descobrimentos”24.

No trecho citado, percebemos que João Ribeiro realizou um elogio ao conhecimento dos

portugueses sobre as técnicas de navegação. Ele optou por dar mais destaque ao povo do que aos

monarcas portugueses nas páginas de seu manual escolar ao tratar da temática.

Ao mesmo tempo em que a navegação pelo Atlântico Sul era conduzida pelos portugueses, surgiu a

personagem de Colombo. João Ribeiro associou a razão do navegador genovês da busca de uma nova rota

para o Oriente à sua fé religiosa. Em seus diários, ressaltou a História do Brasil (Curso Superior), Colombo

escrevia que a descoberta da América

“nada dependera da Geografia, Astronomia, ou de qualquer indicação da ciência; fora obra

divina e providencial. Era esse grande gênio, porém, como todos os místicos, tenaz nas

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suas empresas. Sua intenção era a de catequizar a gentilidade e extrair ouro bastante para

reconstruir o Santo Sepulcro”25.

Em relação aos conhecimentos da arte de navegar de Colombo, o titular da cadeira 31 da Academia

Brasileira de Letras (ABL), assumida em 1898, observou que o navegador genovês não havia deixado,

todavia de colher informações mais ou menos precisa do pensamento de seus contemporâneos quanto à

possibilidade da circunavegação. Apesar de atribuir todo o mérito da descoberta da quarta parte do mundo

ao navegador genovês, o autor ressaltou que este tinha conhecido muitos dos navegadores portugueses,

“de cuja arte e convivência tirou todo proveito”26.

A viagem de Colombo abriu um novo ciclo de navegações que tendiam a atingir o oriente, não

périplo da África, mas diretamente pelo Poente. Contudo, pontuou João Ribeiro, os grandes interesses da

época giravam em torno das Índias. E portugueses e espanhóis a buscaram.

A descoberta do Brasil, segundo seu manual escolar, foi realizada quase ao mesmo tempo por

espanhóis e portugueses:

“por isso que o Brasil se achava na interferência dos dois ciclos dos navegadores, o ciclo

atlântico e o ciclo atlântico sul, o dos descobridores do Novo Mundo e o dos do caminho

da Índia que se cruzavam uns e outros na linha equatorial.

Os primeiros procediam a priori, seguindo o ousado exemplo de Colombo, pretendendo a

circunavegação segundo um aparelho intertropical; os segundos, a posteriori, acompanhando

a costa africana, e só depois de terem verificado que era possível contorná-la. A uns,

guiava-os a teoria da esfericidade da terra; a outros, a experiência e a prática da navegação

que eles próprios iam criando ao redor da África”27.

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João Ribeiro, escrevendo já na era republicana, não destacou com cores fortes a atuação do infante

D. Henrique na empreitada das navegações do século XV, preferindo enfatizar a atuação dos navegadores

no processo de conhecimento e conquista do mar oceano. Para ele, a descoberta do Brasil seria inevitável

devido a sua localização estratégica nos dois ciclos de navegação do Atlântico.

Embora tivesse destacado, a semelhança de Varnhagen e Macedo, a descoberta do Brasil pelos

navegadores a mando da Coroa espanhola em 1499, o Brasil permaneceu um território português por conta

da diplomacia e do Tratado de Tordesilhas, firmado em 1494.

Em relação ao descobrimento do Brasil feito pelo ciclo dos navegadores do Sul, realizada pela

esquadra comandada por Pedro Álvares Cabral, João Ribeiro comentou sobre o tamanho da frota, que ao

se afastar muito além do que devia da costa do continente africano, aos 21 de abril de 1500 teve indícios da

existência de terra e no dia seguinte avistou o mente nomeado de Pascoal. Após a “arribada” das

embarcações, o autor tratou de fazer referência às missas celebradas na nova terra. Nesse momento,

praticamente não fez menção aos índios, apenas afirmou que “espantados” eles assistiram às orações

portuguesas.

Em relação à Carta de Caminha só informou que o escrivão comentava da terra, que esta tinha clima

ameno e que a terra era “sem ouro nem prata nem nenhuma coisa de metal”, um recorte que reforçava o

aspecto de busca de riqueza que marcava a expansão. Dias depois do evento, a frota seguiu viagem para as

Índias, meta final da esquadra cabralina.

A frota de Cabral, não deixou de destacar João Ribeiro, havia homens de “grande reputação e fama”,

como

“Bartolomeu Dias, descobridor do cabo das Tormentas, Nicolau Coelho, o companheiro

de Vasco da Gama, Pêro Dias, irmão e companheiro de Bartolomeu, o físico-mor João, o

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astrônomo Duarte Pacheco, fidalgo e hábil marítimo, que, a seguir as conjecturas de

escritores modernos, inspirava a derrota que conduzira ao novo descobrimento, e Pero

Vaz de Caminha, escrivão da armada que relatou em carta a notícia do descobrimento e

ainda frei Henrique de Coimbra, guardião franciscano, que celebrou a missa”28.

Quanto a alguns aspectos nebulosos sobre o assunto do descobrimento, o autor apresentou suas

considerações. Primeiro, disse João Ribeiro, que Varnhagen, “talvez um pouco vaidosamente para justificar

seu título”, demonstrou que o primeiro desembarque português na terra recém descoberta tinha sido em

Porto Seguro. Para ele, amparado nos estudos de Capistrano de Abreu, o descobrimento do Brasil teria

acontecido na baia Cabrália29. Segundo, na questão do nome Brasil, o autor de Páginas de estética fez breve

exposição de erudição ao demonstrar como o nome já era conhecido na Europa, o que facilitou a troca do

nome da nova terra30. Diferente de Macedo, não fez qualquer referência de cunho religioso sobre o

primeiro nome da terra. Terceiro, quanto à questão do acaso da descoberta, ele deixou explicita uma

avaliação negativa das realezas portuguesas que se tornou a tônica presente no restante do manual escolar31.

Ao debater se o descobrimento foi obra do acaso, João Ribeiro que informou que não tinha propósito de

descobrir o Brasil e o que causara tal fato atestava que

“se as expedições marítimas portuguesas desde D. Manuel não fossem capitaneadas por

fidalgos e homens de guerra (ao invés de marítimos e cosmógrafos como anteriormente o

eram) a Terra de santa Cruz já haveria sido descoberta antes de 1500, pelos próprios

portugueses. Hoje a opinião que cada vez mais se consolida é que realmente o acaso em

coisa alguma contribuiu para o descobrimento. Pode dizer-se como o épico lusitano ao

narrar o itinerário de Vasco da Gama tendo à esquerda a costa da África que se presumia

para o lado direito as terras do Brasil”32.

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Navegando em sentido contrário aos textos de Varnhagen e Macedo, o republicano João Ribeiro não

deixou de se posicionar de maneira crítica às atitudes da Corte portuguesa, reafirmando desde o início uma

certa antipatia pelo regime monárquico ao longo do qual terra do Brasil foi colonizada durante três séculos.

Na esteira do Visconde de Porto Seguro, ao pensar sobre a data correta do descobrimento do Brasil,

o autor foi taxativo ao afirmar que

“a data de 3 de maio para o descobrimento do Brasil é inteiramente arbitrária; não a

justifica a correção gregoriana, que se tem alegado em falso para legitimá-la. A data

verdadeira é a de 22 de abril, em que se avistou a terra, e sobre esse dia nunca houve

dúvida que merecesse consideração”33.

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________________________________________________________________Rocha Pombo

Ao elaborar suas imagens sobre a era dos descobrimentos, no primeiro capítulo (“O Descobrimento do

Brasil – O Íncola”) de História do Brasil (Curso superior), o professor e poeta José Francisco da Rocha

Pombo, paranaense de Morretes, procurou traçar para os seus leitores-alunos a mentalidade do mundo no

século XV34. Na sua leitura, os séculos XV para o XVI assinalaram uma época de grandes transições dos

velhos para os novos tempos35. O mundo conhecido até aquele momento da história não era muito mais

que a Europa, ou seja, o conhecimento sobre outros lugares (mesmo dentro do próprio continente

europeu) não era vasto:

“Fora da Europa, mal se conheciam a Ásia anterior (até o Indo), o Egito (quase só a bacia

inferior do Nilo) e o litoral africano do norte.

Mesmo na Europa havia países que só depois é que entraram na história.

São esses limites do mundo ocidental naquela época.

Quanto ao conhecimento da periferia do globo nada se havia, pois, adiantado ao que

tinham feito os antigos.

Havia-se mesmo perdido alguma coisa da obra dos fenícios e dos gregos.

Não se havia ainda constituído propriamente uma ciência geográfica.

Os poucos que estudavam a Terra só nos deixaram noções quase sempre falsas, e

hipóteses absurdas.

Se muito pouco se sabia da própria Europa, é fácil imaginar que concepção se poderia ter

do resto do planeta.

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A própria redondeza da Terra, quando não era negada com absoluta segurança, tornava-se

objeto de apaixonada controvérsia entre os sábios.

A idéia de antípodas despertava indignação e repulsa entre os mais altos espíritos”36.

Rocha Pombo procurou retratar uma Europa ainda presa em si mesma, povoada de lendas, medos e

ignorante. Para ilustrar este clima de desconhecimento, o autor relatou o incidente em que figuraram

Colombo e os mestres da Universidade de Salamanca sobre a esfericidade da Terra.

Para ciência da época, segundo o manual escolar, o planeta Terra já se encontrava dividido em três

zonas, mas a única que se julgava habitável era a temperada. Fora desta zona, acreditava-se, não haveria

seres vivos:

“Para o norte, o frio polar era incompatível com a vida; e para o sul, ficava um oceano

desconhecido, impossível de navegar – o temeroso mar da noite, ou mar tenebroso”37.

No âmbito da ciência cartográfica, mapa mais antigo e mais autorizado na época era o de Agatodemo

(do século II), elaborado a partir de informações do Almagesta, de Ptolomeu. Neste planisfério figuravam

“além de muitas ilhas e mares interiores, a Europa ainda muito mal conformada; a Ásia,

maciça e até a longitude de 180 graus, e aí bruscamente interrompida; achando-se a Índia

Cisgangética (Hindostão) truncada, e tendo para o sul, desmesuradamente grande, a

Trapobana (Ceilão), e muito aberto para o oriente, o Quersoneso do Ouro (Indo-China).

A África está prolongada longitudinalmente até aí, e dentro da latitude de 20 graus.

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Fronteira à extrema costa meridional da Ásia, desenha-se uma terra austral desconhecida,

como continuação da África (sem nunca exceder a latitude de 20 graus) até emendar com

outra terra nos confins orientais, aos 180 graus” 38.

De acordo com o historiador Rocha Pombo, no final do século XIII foi publicado o mapa de Marco

Polo, o qual não deixou de ser muito mais que uma reprodução do de Ptolomeu, alterando apenas algumas

informações sobre a China e toda a parte da Ásia que o viajante havia visitado. Ao comparar o mapa de

Marco Polo com o Ptolomeu, o autor procurou mostrar as dificuldades para o europeu conhecer e

desenhar o mundo:

“Continua neste (onze séculos depois de Almagesta!) a África a terminar aos 20 graus de

latitude.

Madagascar ficou muito perto de Ceilão; e entre as duas grandes ilhas, estão mais 12 700

ilhas pequenas.

No lugar onde Ptolomeu indica terra firme, de norte a sul, a 180 graus, dá marco pólo as

ilhas das especiarias (7 448), tendo estas ao norte, já separada do continente, a grande ilha

de Cipango (Japão)”39.

Diferentemente de Macedo e João Ribeiro, Rocha Pombo ateve-se com muita preocupação sobre a

história da cartografia e da arte e técnica de navegar. Através dos mapas, ele foi acompanhando o lento

processo de conhecimento do mundo pelos cartógrafos europeus da época. Segundo o seu manual escolar,

quase um século após o a publicação do mapa de Marco Pólo, desenhou-se na Espanha uma carta

conhecida pelo nome de Carta Catalã. Esta carta era um perfil das costas da Península Ibérica e da costa da

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africana até o cabo do Bojador indicando ainda para o sul o cap de finisterra de affricha. Através da Carta

Catalã, o autor mostrou ao seu leitor-aluno que

“Já se havia, pois, avançado até além da latitude de 30 graus; e a farta nomenclatura de

acidentes geográficos mostra que antes do século XIV já os portugueses conheciam o

litoral da África pelo menos até ali”40.

Rocha Pombo citou ainda na sua análise sobre a cartografia do período o mapa de André Bianco, um

geógrafo veneziano da primeira metade do século XV. Para ele, esse mapa mundi era talvez o documento

mais curioso da ciência daquele tempo, pois figurava o antigo continente como única parte sólida da Terra,

e dividido em três partes – Europa, Ásia e África – circuladas de água. O mapa de Bianco serviu para o

autor recriar o imaginário da época sobre o mundo conhecido pela Europa:

“A África já se prolonga para o sul além do Bojador; e distende-se depois para leste

paralelamente com a costa da Ásia, até os 180 graus.

A Ásia termina a oriente em duas enormes penínsulas.

Fora da Europa, África e Ásia, só estão indicadas infinidade de ilhas, mesmo nos rumos

por onde até então se supunha que existisse terra firme”41.

Entre os trabalhos geográficos daqueles tempos (fins do século XV), Rocha Pombo não deixou de

fazer referência ao globo terrestre de Martinho Behaim, cosmógrafo e navegante alemão, nascido em

Nuremberg:

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“Nessa esfera, que é a mais antiga conhecida, já se revela a preocupação de procurar pelo

ocidente o caminho das Índias.

Nele se vê que entre a Europa e a África de um lado (a África ainda truncada) e o extremo

oriental da Ásia fronteira, estão indicadas numerosas ilhas, entre as quais a maior é a de

Cipango”42.

No entanto, esses problemas de definição dos traços dos mapas não eram os únicos obstáculos que

se opunham aos grandes empreendimentos marítimos. De acordo com o manual escolar o que mais

desestimulava a inteligência e a audácia daquelas gerações de homens aventureiros eram os prejuízos, as

abusões correntes, as lendas e fantasias que ocupavam a imaginação de todo mundo, inclusive dos

profissionais e homens da ciência:

“Dava-se o grande mar, que era preciso investir, como povoado de monstros, e acabando

de repente em voragens que engoliam navios, e apresentando a cada instante perigos e

entraves que homens não seriam capazes de vencer.

Era necessário, portanto, que alguma coragem sobre-humana, ou a temeridade de algum

novo heroísmo, se afoitasse a afrontar os mistérios do mar oceano”43.

Para Rocha Pombo, membro da congregação da Escola Normal do Rio de Janeiro, era importante

apresentar ao seu leitor-aluno no capítulo sobre os descobrimentos uma idéia do que devia ser o espírito

humano fechado nos limites daquele mundo, e dessa maneira habilitá-lo para saber apreciar a “espantosa

ressurreição, o vasto renovamento espiritual, a grandeza daquela obra surpreendente do século XV”44. O

seu discurso didático, através de uma narrativa envolvente, não tão árida quanto a de João Ribeiro, foi aos

poucos preparando os olhares dos alunos para a epopéia dos portugueses pelos mares. Houve uma

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preocupação do autor em construir o cenário da Europa do século XV para facilitar a compreensão e até

encher de pompa e monumentalidade os empreendimentos marítimos. Observemos como ele retratava

com solenidade tais eventos, criando um clima de expectativa aos seus leitores-alunos. O final do século

XV, assim como em Macedo e João Ribeiro, aparecia como o ensaio do que viria no próximo ato da

história de Portugal – o século XVI:

“E no momento em que o esforço dos portugueses, ao cabo de cerca de um século de

afanos e sacrifícios, desvenda novos horizontes aos olhos ansiosos da Europa exausta e

obstinada na sua incredulidade, o que nos cumpre é acentuar bem que fase que se via

seguir (de fins do século XV em diante) foi gerada, como um milagre, da fé e coragem

daquelas gerações que iniciaram a epopéia marítima”45.

Rocha Pombo apresentou os portugueses como os responsáveis pela iluminação da Europa presa

na escuridão da ignorância e da superstição. Eles eram para o mar oceano o que os gregos e fenícios foram

para o mar Mediterrâneo na Antigüidade. Para uma Europa alheia ao mundo, Portugal era a face que

avistava um novo tempo. Aos portugueses, deixou explicitado o autor, cabia a missão de fazer o milagre de

abrir novos horizontes:

“Porque é preciso não esquecer que enquanto os portugueses, primeiro ensaiavam, e logo

depois instituíam definitivamente o problema das grandes navegações, todos os demais

povos da Europa andavam alheios a tais empreendimentos; uns cuidando de fazer a sua

integração política sobre os remanescentes do regime feudal; outros procurando, pelo

trabalho resignado, conciliar-se com as condições de geral penúria; e ainda muitos

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fazendo a guerra como um derivativo dos embaraços internos; e todos vivendo de uma

suspeita aflitiva uns contra outros.

A França e a Inglaterra dirimiam o seu conflito secular. Perdida a ilusão dos seus intentos

de domínio no continente, cai a segunda num período de lutas intestinas que lhe fizeram

maiores males que os cem anos de guerra; enquanto a França trata de tirar, para a sua

política interna, todos os proveitos da vitória.

A Espanha, para constituir a sua unidade política, esforça-se por liquidar a sua causa

contra os mouros.

A províncias de Holanda cuidam providamente de sua vida.

Na Itália, consolidam-se grandes famílias nos pequenos Estados que saiam da anarquia

medieval.

Se na Europa marítima ninguém se apercebia da obra que andavam levando os

portugueses, decerto que não havia de ser nos países continentais que se tomasse mais

interesse por uma causa que só se sentiu depois de abertos os grandes caminhos para a

terra”46.

Rocha Pombo, assim como Capistrano de Abreu47, acreditava que a localização geográfica do reino

de Portugal determinou no impulso dos portugueses para o mar oceano. Desde muito cedo, argumentava o

autor do manual escolar, começaram os povos que habitavam no retângulo ocidental da península Ibérica a

voltar suas atividades para o mar. Talvez mesmo fosse necessário “afastar para a época remota da

influência fenícia os primeiros ensaios que familiarizaram aquelas populações com a visão do oceano”48.

O novo reino, ressaltou Rocha Pombo, ao destacar-se de Castela, não tardou em formar sua própria

frota de guerra, com a finalidade de proteger navios mercantes, que dos mares litorâneos foram ampliando

relações comerciais pelo mar do Norte e até pelo Mediterrâneo. De modo semelhante ao “Dr. Macedo”,

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ele destacou a importância dos reis, sobretudo de D. Dinis em diante, na criação do “gênio marítimo” da

raça portuguesa. Na sua leitura, a idéia de mar como destino inato do povo português teria encontrado seu

mentor na segunda dinastia:

“É o grande Mestre de Avis que institui o ideal imenso de que ia viver aquele pequeno

povo, que toma a si, decisivo, a função gloriosa de realizar a integração da ordem humana

no planeta.

Com a vitória de Aljubarrota (1385) retempera-se o espírito nacional; e D. João I aproveita

aquele momento de revivescência e de ufania cavalheiresca para iniciar a grande obra”49.

A explicação para a grande obra não se encontrava, segundo o autor, apenas na necessidade de sair da

estreiteza da terra e desenvolver o comércio: nessa obra se encontrava muito do espírito de “proselitismo

cristão”, e acima de tudo o desejo de reagir contra os avanços do Islã. À semelhança de Colombo, os

portugueses criados por Rocha Pombo tinham uma missão de fé ao aventurar-se pelos mares. Neste

aspecto, Rocha Pombo aproximou-se do texto de Capistrano de Abreu, uma vez que este havia notado que

“A restauração cristã produziu uma marinha nacional, que alentaram e tornaram próspera

a escolha da barra do Tejo para escala da carreira de Flandres e a vinda de catalães e

italianos chamados a ensinar a náutica e a técnica. A expedição contra Ceuta em 1415

reuniu já centenas de embarcações e milhares de marinheiros”50.

Vencer os infiéis e fazer fortuna51 eram esses os objetivos que preponderaram em toda alma

portuguesa ao abrir no teatro da história da humanidade o período das grandes navegações. A parir destas

prerrogativas, o autor de No hospício iniciou sua narrativa sobre os avanços portugueses pelos mares. Neste

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cenário a figura de D. João I, assim como fez Varnhagen e Macedo, surgiu como o inaugurador dessa nova

mentalidade:

“Assim que fora proclamado nas Côrtes de Coimbra, cuidou D. João I de organizar uma

expedição contra os mouros na África, os que estavam ali mais perto, e ameaçavam de

desforço a cristandade levantada na Península.

Foi a primeira expedição que saiu do reino com esse objetivo.

Era uma verdadeira Cruzada, lavando a cruz nas velas dos navios, nos estandartes, nas

armaduras.

O infante D. Henrique, filho de D. João, acompanhou os expedicionários, já sem dúvida

com pensamento de auferir daquela jornada algum proveito para os vastos projetos em

que se concretizavam os sonhos da monarquia.

Apoderam-se de Ceuta os portugueses (1415), e é D. Henrique armado cavaleiro, com dois

do seus irmãos.”52.

Nesse momento, assumiu posição de destaque no seu texto didático a personagem de D. Henrique,

sendo exaltado pela sua inteligência e perspicácia. O autor ressaltou a figura do estudioso infante que em

contato com os árabes adquiriu conhecimentos sobre as técnicas das navegações através da antiga literatura

oriental. D. Henrique, segundo Rocha Pombo, chegou a aprender o árabe e conseguiu grande cópia de

cartas, roteiros e livros de valor para os trabalhos que ia empreender. Para ele, a história do infante era um

bom exemplo para os seus leitores-alunos, uma vez que este simbolizava o modelo do estudante desejado

para a construção de um projeto de nação.

D. Henrique era o modelo de homem que seus leitores-alunos deveriam se espelhar. O príncipe,

mediante a cultura conquistada, seria capaz de realizar grandes feitos em prol do reino. D. Henrique

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também incorporava a figura do modelo de mestre, pois além de aprender tinha a preocupação de ensinar e

formar cartógrafos e navegadores. Tanto que

“Quando voltou para Lisboa, deu começo (por 1420) à construção de seu castelo no

promontório de Sagres, ali adiante do mar, que ia ser o teatro da nova Cavalaria.

Junto ao castelo, no recinto murado, construiu também instalações para arsenal, estaleiros

e oficinas, para a morada dos seus auxiliares; e chamou para ali, de muitos países, pilotos e

mareantes, e até homens conhecidos como competentes em questões de cosmografia e de

náutica”53.

Para Rocha Pombo, daquele rochedo, onde se situava a escola de Sagres, saíram os pioneiros do

novo heroísmo, os responsáveis pela conquista dos mares e de novas terras. Portugal era o celeiro dos

grandes navegadores. A partir daí partiram os portugueses para fazer cumprir seu destino manifesto:

navegar.

Ele dedicou todo um momento da lição para relatar os feitos dos portugueses, cumprindo sua

missão. No mar construía-se a identidade do povo português, era preciso sair para ser tornar legitimamente

um homem daquela terra. Havia um destino a realizar, a epopéia marítima. O autor fez seu leitor-aluno

pensar que Portugal revivia a histórias homéricas contadas na Ilíada e Odisséia, onde o tesouro a ser

(re)conquistado não era Helena, mas sim a expansão do comércio de especiarias e da fé cristã. A figura

heróica de Ulisses era incorporada por todos aqueles que enfrentavam o mar oceano. Na representação que

este autor criava dos portugueses temos a impressão que todos os homens do século XV respiravam os

ares do desejo de navegar, de conquistar novas terras. Portugal era, na sua leitura, a caravela que conduziria

toda a Europa para Idade Moderna.

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Graças às façanhas dos portugueses através da escola de Sagres e das conquistas pelo périplo africano

a humanidade pôde vislumbrar a figura de Colombo. O navegador genovês, segundo Rocha Pombo, era

“filho da escola de Sagres”54. Ele era o exemplo de aluno-navegador que a escola de navegação portuguesa

oferecia para a civilização. Embora não navegando pelo reino português, a este povo o navegador genovês

era tributário de seu saber, pois

“É em Lisboa que ele aprende tudo o que devia leva-lo a conquista de um cometimento

que não era novo nem estranho àqueles homens, que tinham tido um certame de mais de

setenta anos de Atlântico.

Em Portugal, desde os primeiros tempos de D. Henrique, discutia-se o problema da Ásia

sob dois aspectos – o da via africana, e o da ocidental –; e o movimento, como vimos,

fazia-se para os dois rumos.

Viveu Colombo muito tempo entre aquele povo de marinheiros; e ali colheu todas as

notícias que lhe convinham, e muniu-se de dados muito seguros para realizar o seu projeto

antes que os portugueses pudessem faze-lo de conta do seu soberano.

Era ainda a política de cautela com que a corte de Lisboa, assoberbada dos seus sucessos,

tinha de dissimular tudo perante as outras côrtes, até que chegasse o momento oportuno

de revelar a grandeza da sua obra sem perigo de perde-la, como em parte depois perdeu”55.

Após a conquista de Colombo – a descoberta da quarta parte do mundo –, um revés para Portugal,

Rocha Pombo relatou que os navegadores cuidaram de apressar a viagem em busca de uma rota para as

Índias pelo sul, “e sem perder a esperança de salvar o que fosse possível de quanto haviam feito no

Atlântico”56. Assim como Varnhagen e Macedo, o autor não deixou de registrar a tristeza que representou

para os portugueses, em especial para a Coroa, a descoberta de Colombo.

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Para tentarem recuperar parte do desfalque, os portugueses procuraram negociar com a grande

concorrente (Espanha) no oceano:

“Só depois de reguladas em Tordesilhas as respectivas jurisdições, é que puderam os

portugueses, agora sem temer nenhum risco, ver até que ponto se haviam de ressarcir

daquele desastre”57.

Em seguida, de acordo com Rocha Pombo (fazendo eco aos trabalhos de Varnhagen, Macedo e

Capistrano de Abreu), os reis portugueses deram início uma séria de viagens para alcançar o caminho das

Índias pelo contorno do continente africano. Após ter assinado o Tratado de Tordesilhas entre as duas

Coroas, Portugal preparou uma frota destinada a realizar a primeira viagem redonda de Lisboa à Índia:

“a 8 de julho saía do Tejo a pequena frota de Vasco da Gama.

Descendo este pela costa africana, dobrando o extremo sul, vai, sem grandes acidentes, ao

cabo de uns dez meses de viagem, atingir Calicut, na costa do Hisdostão.

Estava resolvido o problema secular”58.

Rocha Pombo, imbuído do sentimento da conquista lusitana, registrou ao leitor-aluno o clima de

euforia que se cercou a viagem de Vasco da Gama. Era o anúncio de um futuro de glórias para o povo

português:

“A volta do Gama alvoroça todo o reino; e não só porque as naus vieram abarrotadas de

quanto se recolhera no curso da expedição; mas ainda porque se traziam notícias do mais

alto interesse para o que se ia fazer ainda no ‘mar oceano’”59.

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Aqui, podemos perceber que mais uma vez o autor trouxe uma reflexão muito semelhante a

desenvolvida por Capistrano de Abreu sobre a viagem de Vasco da Gama. Para o autor de Capítulos de

História Colonial (1500-1800), mesmo com a volta triunfal de Colombo em 1493, trazendo informações

sobre a descoberta do caminho para as Índias pelo Ocidente, o rei D. João II não confiou no acaso e não

alterou seus planos, ou seja, a rota do Oriente para alcançar o mesmo destino. Feitas as devidas

investigações60, relatou Capistrano de Abreu, o “Príncipe Perfeito”, falecido em 1495, deixou ao seu

sucessor, D. Manoel, a simples tarefa de saborear o fruto das descobertas de Vasco da Gama:

“A chegada de Vasco da Gama com as embarcações carregadas de lídimos produtos

indianos mostrou a sabedoria e a previdência de D. João II, preferindo a qualquer outro o

caminho indicado pelo cabo da Boa Esperança; sobre os espanhóis não parece ter exercido

igual impressão, pis continuaram no mesmo empenho primitivo de chegar ao oriente

navegando sempre para o Ocidente”61.

Nesse momento, podemos notar que a narrativa de História do Brasil (Curso superior) já preparava os

olhos atentos do seu leitor-aluno para o evento monumental que esperava os portugueses. Havia um

destino a cumprir – fazer-se império dos mares. O caminho das Índias seria apenas o ensaio do espetáculo

vindouro: a descoberta do Brasil.

Solucionado o problema do caminho para as Índias pelo contorno do continente africano, a Coroa

portuguesa tinha de enfrentar de dois outros problemas: primeiro, o de adentrar na posse do que existisse

no Atlântico dentro da sua jurisdição fixada pelo Tratado de Tordesilhas, e, segundo, o de fundar na Ásia o

império português.

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Naquela data, a prioridade eleita pelo rei D. Manuel era a fundação do império no continente asiático.

A missão de Cabral, segundo Rocha Pombo, não era fazer uma exploração do Atlântico, mas sim ir às

Índias dar continuidade ao trabalho iniciado por Vasco da Gama:

“Andavam por lá os mouros em grandes assanhos e alaridos, a criar para os cristãos uns

tantos obstáculos, que só à custa de força militar poderiam ser vencidos”62.

Na mesma linha narrativa de Macedo e João Ribeiro, mas recheado de maiores detalhes, o autor

passou a falar da montagem da expedição de Cabral, destacando a composição da esquadra e o fato de

todos os capitães serem “afeitos à vida marítima, e já conhecidos por serviços que haviam prestado”63. Da

mesma forma que João Ribeiro, ressaltou a presença de pilotos e práticos que haviam participado da

viagem de Vasco da Gama. Nas embarcações havia representantes de elementos primordiais da civilização

portuguesa: autoridades da Coroa, das leis e da religião, além de homens da ciência e da navegação. A

caravela de Cabral criada por Rocha Pombo era uma escola flutuante, um pedaço de Portugal (a “jangada

de pedra” de José Saramago)64 que seguia em direção à conquista do mundo. A caravela era o símbolo de

civilização, pois nelas estavam presentes as três letras fortes – F, L e R: a Fé, a Lei e o Rei.

Rocha Pombo, à maneira de um cronista, teve ainda o cuidado de reproduzir o cenário da cidade de

Lisboa nas vésperas da partida da esquadra de Cabral. A imaginação do autor criou um clima de euforia e

ansiedade diante de tal evento, dando a impressão de que todos estavam envolvidos com a áurea dos

descobrimentos. A partida era um momento de grande solenidade e também de tristeza, pois havia

possibilidade dos homens irem e não mais regressarem. Esse sentimento expresso no seu discurso didático

criava no leitor-aluno o clima de risco e ousadia assumido pelos bravos navegadores portugueses. Vejamos

como ele narrou a partida de Cabral:

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“No dia 8 de março, tendo à frente o capitão-mor, saía do paço de Alcáçova a expedição,

no meio de aclamações, dirigindo-se para a margem do Tejo.

O rio simulava agora uma floresta de mastros. As naus estavam embandeiradas, e

ostentando profusão de flâmulas de vivas cores.

Sob o troar dos vivas e o estridor das trombetas, seguiu a gente para bordo; e não

demorou que as naus salvassem à terra, sob o vasto delírio de ovações.

Pelas três da tarde, levantavam ancoras, e desciam vagarosamente até Belém.

Na manhã seguinte, assistiam os expedicionários à missa solene celebrada na ermida do

Restelo, com a presença do rei e de toda a corte.

Durante a cerimônia esteve o capitão-mor ao lado de D. Manuel, na tribuna real.

Depois da missa, e do sermão do bispo D. Diogo de Ortiz, o próprio rei entregou a Cabral

uma bandeira da ordem de Cristo, signo glorioso daquele novo heroísmo que andava

assombrando o mundo.

Ordenou-se outra vez o cortejo, pondo-se logo em marcha para a praia, indo Cabral ‘a par

Del rei’, à frente a bandeira conduzida pelo alferes, os frades com cruzes alçadas cantando

orações.

Chegados à praia, o capitão-mor e todos os capitães despediram-se de D. Manoel,

beijando-lhe a mão; e seguiram para bordo, recebendo os últimos votos e manifestações de

todo o povo que enchia a praia”65.

Em seguida, o manual escolar passou a narrar a viagem da esquadra pelo Atlântico até o momento

em que os navegadores avistaram o monte Pascoal. Perto dali, fundearam as naus, pernoitando no local.

No dia seguinte, aqui percebemos que o autor fazia uso da carta de Caminha, os descobridores puderam

verificar que a terra era habitada por “selvagens”. Devido ao mau tempo que se aproximava, os

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navegadores “procuraram e encontraram, no dia 24, um porto abrigado, ao norte, suficiente para toda a

esquadra”66.

Após falar das explorações iniciais, o autor, como se fosse o cronista presente na esquadra de Cabral,

passou a narrar os eventos de posse da terra descoberta, fazendo referência às duas missas realizadas pelo

frei Henrique de Coimbra. Naquele momento, enfatizou Rocha Pombo, o Brasil nascia para história pelas

mãos dos portugueses. Tomada a posse para a Coroa e fé cristã da terra, rumou os descobridores para o

seu destino final: as Índias.

A descoberta da nova terra, na leitura do autor, parecia ocorrer sem nenhuma surpresa, “sem um

gesto de espanto e admiração, como se o que se faz é tarefa já sabida”. Cabral comunicou o fato ao rei

através da carta de Caminha. Rocha Pombo pareceu surpreendido com a falta de empolgação, de excitação,

de ufania nos texto dos descobridores enviados ao monarca. O fato de em Lisboa tal notícia não ter

causado nenhuma festividade causou ainda mais estranhamento para o autor do manual escolar. A atitude

do rei, para certo desapontamento de Rocha Pombo, foi apenas de comunicar o sucesso às outras Cortes

“e sem grandes mostras de quem sentisse a sua fortuna aumentada: achara-se uma ilha que ia ser de

vantagem como estação para os navegantes da Ásia...”67. Os olhos do rei miravam, naquele momento, o

Oriente. Lá estava seu coração, seu desejo, sua ambição – as bases de consolidação do império português.

Rocha Pombo chegou a mencionar as polêmicas sobre o descobrimento envolvendo os navegadores

a mando de Espanha, mas as rechaçou com toda veemência. Para ele, a descoberta do Brasil era uma obra

monumental dos portugueses.

Quanto à idéia do sucesso casual da empreitada portuguesa, defendida por cronistas e até

historiadores dignos de nota, ele a condenou afirmando que era “inteiramente desfeita a antiga lenda da

tempestade e das correntes pelágicas”68. Assim como seu confrade de ofício, João Ribeiro, Rocha Pombo

afirmou que

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“Enquanto abriam pelo sul o caminho da Ásia, nunca deixaram os portugueses de ir

devassando, ao mesmo tempo, o Atlântico ocidental.

De Vasco da Gama por diante, o pensamento de assegurar a posse de terras descobertas

neste oceano tornou-se obsidente para os portugueses.

Até que, discriminadas entre as duas coroas ibéricas as zonas respectivas de domínio,

puderam eles fazer o que até então não tinham feito por não arriscar a grandeza do seu

patrimônio.

Decerto que Cabral não saiu do Tejo para descobrir o Brasil. Nem isso se conceberia,

sabendo-se como sempre andou precavida a corte de Lisboa. O que ela sempre quis, ainda

quer agora, isto é, fazer passar a descoberta do Brasil como feita ao acaso.

Por isso mesmo é que, em vez de mandar uma caravela direto à terra de Vera Cruz,

incumbe a uma grande expedição, que tinha outro destino, de vir, de passagem, achar a

dita terra.

Cabral propriamente não fez mais que um reconhecimento”69.

Fruto da obra dos navegadores ou do destino (quem sabe pela mão divina), a descoberta do Brasil

apareceu como um símbolo de fortalecimento da identidade portuguesa como de povo destinado a ser

senhor dos mares. Se obra de engenhosos homens do mar, a descoberta reforçava o dom desse povo na

arte de navegar e descobrir novas terras. Se obra do acaso (um sopro divino), a descoberta justificava a

missão de fé de Portugal de propagar o cristianismo pelo mundo. O acaso ou Deus estaria do lado dos

portugueses na sua cruzada pelos mares. Rocha Pombo, apologético do saber dos portugueses como

grandes navegadores, pareceu pender para o poder da sabedoria, ainda que revestida também pela mística

da lendária da escola de Sagres.

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_________________________________________________________________Joaquim Silva

Ao escrever nos anos 1940 sua História do Brasil para a primeira série ginasial, o professor Joaquim Silva, de

forma muito mais esquemática do que narrativa, no primeiro capítulo (“O Descobrimento”), veio reafirmar

algumas das representações criadas sobre o povo português como predestinado a navegar.

A maneira de Rocha Pombo, o autor ressaltou que durante muitos séculos não se conhecia o mundo

antigo senão quase só o que já Antigüidade sabia:

“além dos países da Europa, do ocidente da Ásia e do norte da África, umas noções muito

vagas da índia, da Indochina e da China, pouco maiores que as do tempo do famoso

Marco Pólo”70.

As causas para o evento das grandes navegações do século XV foram sintetizadas em diversas

possibilidades. Dentre elas, Joaquim Silva fez a opção para as seguintes:

“A aplicação da bússola à navegação facilitou as grandes viagens que naquele tempo se

fizeram, estimuladas por várias causas: o espírito de aventura, as lendas sobre Catai e

Zipangú, terras de maravilhosas riquezas, o zelo pela propaganda religiosa movendo os

cristãos em busca dos pagãos para convertê-los. Outra causa ainda, talvez a maior, foi o

interesse comercial: a venda de especiarias, drogas. Sedas e outros produtos do Oriente, de

tão compensadores lucros, dificultava-se pela de Constantinopla em poder dos turcos: era

assim necessário descobrir um caminho marítimo para as Índias (nome pelo qual os

europeus designavam a Índia, Arábia, China e Sonda)”71.

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Notamos no trecho citado que o autor destacou como a maior causa para as grandes navegações os

interesses comerciais. Para ele, o comércio de especiarias com o Oriente era um elemento fundamental

para a sobrevivência do continente europeu. O interesse por elas era tão forte no seu discurso didático que

no final do capítulo apresentou como sugestão de leitura um pequeno texto explicativo:

“As três mercadorias valiosas que Colombo procurou e assegurou haver encontrado em

sua chegada às Antilhas eram o ouro, os escravos e as especiarias. Uma a ligeira explicação

é necessária para compreender o valor do terceiro destes objetos de comércio. Antes que

os progressos da agricultura proporcionassem um bom alimento para o gado durante o

inverno, era costume, na Europa setentrional, abater no começo daquela estação o gado

que ia ser consumido por vários meses, conservando-se a carne em salmoura; mas, para

melhorar suas condições, havia necessidade de especiarias, sobretudo pimenta e cravo.

Não e conheciam ainda na Europa as batatas nem muitos dos legumes lá hoje cultivados;

as boas pastagens eram escassas e o gado de luxo e o vinho tolerável não era comum.

Havia então ilimitado uso das especiarias que se misturavam com a carne, a cerveja, o

vinho e outras bebidas de fabricação doméstica.

As drogarias e farmácias tinham provisões de especiarias a cuja fragrância e sabor se

atribuíam poderosas virtudes medicinais. E, nas ruas estreitas e sujas das cidades

medievais, a muito visitadas por febres infecciosas, era de constante necessidade, pelas más

condições de higiene, o uso de perfumes ativos.

Assim, em todo o norte da Europa, sobretudo na Inglaterra, Alemanha e Países Baixos, era

imensa a procura de pimenta, cravo, canela, noz-moscada, gengibre, aloés, incenso,

cânfora, sândalo, produtos aromáticos das terras asiáticas meridionais e orientais, ilhas do

Oceano Índico e Arquipélago Malaio.

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A riqueza de Constantinopla, nos anos que seguiram a queda de Roma, foi devida, em

grande parte, ao tráfico de especiarias trazidas das terras do Oriente às margens do

Bósforo e dali distribuídas com grandes lucros por toda a Europa. Esse comércio foi

depois enriquecer a república de Veneza, até que, com os descobrimentos dos portugueses

no Oriente passou para Lisboa”72.

O texto explicativo apresentado por Joaquim Silva trouxe para a discussão sobre a era dos

descobrimentos uma nova dimensão não tão aprofundada pelos outros autores. Ele ressaltou na lógica das

motivações para as grandes navegações pelo Atlântico a necessidade de sobrevivência. Enfatizou-se a

preocupação alimentar dos povos europeus diante dos produtos do Oriente. Além de ouro e escravos,

como podemos observar na sua referência à viagem de Colombo, havia a busca de especiarias,

fundamentais para a preservação dos alimentos consumidos na Europa. Embora não perdesse a dimensão

monumental das viagens dos descobrimentos, Joaquim Silva pôs na pauta das necessidades materiais

(pimenta, cravo, canela entre outros) o movimento da história das navegações dos séculos XV e XVI. A

queda de Constantinopla para os turcos significou, na sua leitura, a não manutenção de um mercado de

suprimentos alimentares e também medicinais. Para uma Europa faminta e doente, esses produtos

representavam muito em termos de lucros e de sobrevivência. Ter o controle sobre o caminho para as

Índias era ter reinos e populações sob seu controle e poder. A necessidade alimentar assumia, no seu

discurso didático, um lugar privilegiado no cenário da história. Tanto que depois de enriquecer a república

de Veneza, o comércio das especiarias com o Oriente foi encontrar seu porto seguro na cidade de Lisboa.

Segundo o autor, Portugal, nesse momento, passava a ser porta de entrada dos meios de sustentação do

continente. Enfim, os portugueses assumiram o papel de redentores da civilização ao salvar a Europa das

privações impostas pelo fechamento da rotas comerciais para o Oriente pelos turcos.

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Após uma reflexão sobre as causas das navegações, o professor de escolas tradicionais da cidade de

São Paulo passou a dedicar-se aos descobrimentos praticados pelos portugueses. Na esteira de Macedo e

Rocha Pombo, dedicou especial atenção ao infante D. Henrique. A ele atribuiu a fundação no começo do

século XV em Sagres, no extremo do sudoeste de Portugal, “um centro de estudos de geografia e náutica

dando impulso às viagens de descoberta em que já vinham se distinguindo os portugueses”73. O

conhecimento da geografia tanto em Rocha Pombo quanto em Joaquim Silva constituiu um saber

estratégico para o domínio de Portugal sobre os mares. Na escola de Sagres

“aprendiam os marítimos o uso dos instrumentos de navegação, estudavam os portulanos

(cartas pelas quais se guiavam os pilotos daquele tempo) e praticavam a arte da

pilotagem”74.

Assim como Rocha Pombo, Joaquim Silva acreditava que a obra de conquista dos mares realizada

pelos portugueses só seria possível se houvesse uma instituição que formasse cartógrafos e navegadores. A

escola de Sagres representava, de uma certa maneira, o locus idealizado para a construção de um projeto

imperial de domínio. O saber ali produzido e ensinado significava a legitimidade da autoridade portuguesa

sobre a arte de navegar75.

Em suma, o domínio do saber era poder: legitimidade para navegar, descobrir e colonizar.

Amparados com essas ferramentas, segundo o autor do manual escolar História da Civilização, os

portugueses realizaram várias descobertas na “costa africana e foram devassando os segredos do mar

Tenebroso, como se apelidara o Atlântico”76. Essa aventura pelo mar oceano rendeu à Coroa portuguesa,

em 1498, com o navegador Vasco da Gama, a conclusão do sonhado objetivo de chegar as Índias77.

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O autor não se ateve nos detalhes do avanço dos portugueses pela costa africana, mas registrou

especial atenção para a viagem do descobrimento da América realizado por Colombo. Para ele, seguindo a

trilha de Varnhagen, Macedo e João Ribeiro, a descoberta de Colombo impôs uma nova direção para a

história da humanidade, mas também para a relação entre Portugal e Espanha. Joaquim Silva dedicou à

viagem de Colombo mais espaço do que a realizada por Vasco da Gama. Assim como João Ribeiro, ele

creditou a descoberta da América como resultado de estratégias diferentes traçadas para se alcançar as

Índias.

Diante do novo achado, o seu manual escolar procurou traçar um panorama, não detalhado quanto o

realizado por Macedo, sobre os conflitos diplomáticos entre Portugal e Espanha. Segundo o autor,

“O rei de Portugal julgava-se lesado em seus direitos com o descobrimento de Colombo,

chegando-se ao perigo de uma guerra com a Espanha. Entraram, porém, em acordo as

duas nações resolvendo, por um tratado, feito em Tordesilhas, que todas as terras e ilhas a

leste duma linha de polo a polo (meridiano) a 370 léguas das ilhas do cabo Verde, seriam

pertencentes a Portugal; e as que ficassem a oeste da mesma linha pertenceriam à Espanha.

Esse meridiano corre de Belém do Pará a Laguna, em Santa Catarina. Assim, antes que

Cabral as descobrisse já eram domínio português as terras brasileiras a leste daquela

linha”78.

O argumento de Joaquim Silva justificando a posse do Brasil a Portugal antes de seu descobrimento

foi anteriormente repetido por João Ribeiro, uma vez que este afirmava que “O Brasil, sem embargo do

descobrimento, para os portugueses foi dádiva da sua diplomacia”79. Além da maestria como navegadores,

os portugueses também eram elogiados pela sua diplomacia.

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Quanto ao tema do descobrimento do Brasil, o autor retomou o percurso trilhado pela tradição da

escrita da história do Brasil. À maneira de Rocha Pombo, mas sem tanto entusiasmo e detalhes descritivos,

Joaquim Silva fez referência aos preparativos da viagem de Cabral; a viagem pelo Atlântico; o

descobrimento; as primeiras explorações; a Carta de Caminha; as missas de posse do Brasil; as discussões

sobre a presença de outros navegadores antes dos portugueses, a data exata do descobrimento, os nomes

do Brasil. Sobre este último assunto, a exemplo do que fizeram Capistrano de Abreu, o autor explicou

detalhadamente a razão da mudança dos nomes:

“Terra de Vera Cruz foi o primeiro nome que teve o Brasil, dado por Álvares Cabral, logo

que o descobriu, julgando fosse a terra uma grande ilha; mais tarde sua denominação foi

Terra de santa cruz que, como aquela, desapareceu já nos primeiros tempos da

colonização, muito embora fosse o nome oficial da terra: é que logo se encontrara em

grande abundância, na região descoberta, certa madeira, o ibirapitanga, que servia para

fazer tinta vermelha, tal como outra que importavam do Oriente e se denominava Brasil. A

madeira cor de brasa veio a dar o nome definitivo: Terra do Brasil, começavam os

mercadores e navegantes a chamar a nossa terra, e brasileiros os que negociavam com

aquela madeira; e, assim, o nome do Brasil, suplantando outros, como Terra dos

Papagaios, passou a figurar nas cartas geográficas e veio a estender-se a toda a colônia”80.

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______________________________________________________________Borges Hermida

Para o professor Borges Hermida, morador na Rua Cauibi, na Praça Seca, em sua História do Brasil, o

evento das grandes navegações portuguesas teve forte ligação com o fechamento do comércio pelo

Mediterrâneo com a tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453. Segundo o autor,

“O Mediterrâneo é mar conhecido e navegado pelos povos mais antigos do mundo.

Pelo Mediterrâneo, os europeus comerciavam com o Oriente, onde iam buscar: especiarias

da Índia (pimenta, cravo e canela); perfumes da Arábia; objetos de porcelana da China;

tapetes da Pérsia.

Em Constantinopla, a grande cidade do Mediterrâneo, as mercadorias chegadas do Oriente

eram desembarcadas e ficavam à espera dos navios que vinham da Europa. Constantinopla

era, portanto, um grande centro comercial”81.

À maneira de Joaquim Silva, Borges Hermida, no segundo capítulo (“Portugal e as Grandes

Navegações”), observou que o fechamento do comércio através de Constantinopla foi o principal

responsável pelo impulso das navegações portuguesas pelo Atlântico, contornando o continente africano,

em busca de uma nova rota para as Índias. Ele também apontou como outras causas das grandes

navegações os inventos e o sentimento religioso:

“Naquele tempo, houve alguns inventos que muito ajudaram as Grandes Navegações: a

bússola; o astrolábio; a vela triangular ou latina.

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A bússola, importante invenção chinesa, levada depois para a Europa pelos árabes, serve

para orientar a direção: a agulha da bússola indica o Norte.

O astrolábio marcava a latitude ou a posição do navio em qualquer parte do mundo.

Com a vela triangular ou latina, o navio podia navegar para onde se quisesse, com o vento

em qualquer direção.

Outra importante causa das Grandes Navegações foi o sentimento religioso: os reis

cristãos, dos países europeus, queriam converter os povos do Oriente e, por isso,

ordenavam aos sacerdotes que seguissem nas expedições. Assim se explica ter a esquadra

de Cabral, quando ia para as Índias, levado vários frades franciscanos: um deles, frei

Henrique Soares de Coimbra, rezou no Brasil as duas primeiras missas”82.

Diferente dos autores analisados até o momento, Borges Hermida preocupou-se em descrever o dia-

a-dia das viagens do tempo dos descobrimentos do século XV, destacando as dificuldades e sacrifícios por

que passavam os viajantes nas embarcações. Ressaltou os desafios enfrentados por aqueles homens que se

aventuravam no mar oceano. O lado idílico das viagens cedeu lugar para bravura e resistência dos

portugueses ao partirem na viagem incerta. Para o autor,

“Com navios de madeira, podemos imaginar como eram constantes os naufrágios,

provocados pelos temporais.

Muitas vezes, porém, sem haver tempestade, o navio naufragava porque batia nas pedras

que as águas escondiam. Não havia, naquele tempo, faróis nem cartas marítimas que

indicassem um rumo seguro para a navegação.

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Outro perigo que os marinheiros enfrentavam era a calmaria, que podia durar vários

meses. A caravela ficava imobilizada em meio do oceano; os alimentos e a água

estragavam, porque faltava frigorífico para conservá-los.

Além disso, assustavam os navegadores ignorantes daquele tempo as lendas sobre o

Atlântico desconhecido, que eles chamavam de Mar Tenebroso ou Mar das Trevas; os

marinheiros acreditavam viverem em suas águas monstros que afundavam os navios e

devoravam os tripulantes. Também diziam não ser possível navegar pelo Equador, onde o

calor era tanto que as águas ferviam.

No tempo das grandes navegações, os marinheiros, durante a viagem, comiam bolachas e

carnes salgadas, alimentos pobres em vitamina C. A falta dessa vitamina provoca doença, o

escorbuto, que causa inflamação das gengivas e queda dos dentes”83.

Ao expor as dificuldades enfrentadas pelos navegadores, o autor reforçou a magnitude da empreitada

portuguesa em busca de uma nova rota para as Índias. Embarcações precárias, tempestades, calmarias,

mares desconhecidos, falta de suprimentos, monstros e doenças ajudaram a construir a saga o reino

português pelo oceano Atlântico, ou seja, o sucesso pelo sacrifício.

Diante dos perigos postos pelo mar oceano, Borges Hermida apresentou a história das navegações

em Portugal. Reino de tradição agrícola, um “país de lavradores”, Portugal mudou o seu destino com a

ação do infante D. Henrique e a sua escola de Sagres. Na esteira de Macedo, Rocha Pombo e Joaquim

Silva, o autor fez um enaltecimento da figura do príncipe navegador para a transformação dos “pescadores

de Portugal em grandes marinheiros”84. Homens bravos que enfrentariam todas as intempéries,

sacrificando-se, pelo engrandecimento da sua terra natal. Para ele, graças aos feitos de D. Henrique foi

possível concretizar o destino de Portugal:

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“Na sua residência em Sagres, no litoral português, D. Henrique reunia marinheiros e

cartógrafos, isto é, pessoas que sabiam fazer mapas ou cartas geográficas. Por isso, a casa

de D. Henrique foi chamada de escola de Sagres. Nela aprendia-se a navegar”85.

Quando o infante D. Henrique morreu, os portugueses já tinham atingido, no litoral da África, a

região de Serra Leoa. Contudo, segundo o professor de História do Colégio Pedro II entre 1947 e 1977,

para chegar ao Oriente, precisavam contornar esse imenso litoral:

“Era preciso, descendo o litoral, descobrir o cabo sul-africano, onde os dois oceanos se

juntam. Assim, os portugueses que viessem do Atlântico poderiam passar para o outro

oceano, que conduz à Índia.

O cabo sul-africano foi descoberto em 1488, por Bartolomeu Dias. Nessa ocasião, o

navegador enfrentou violenta tempestade, e por isso, deu-lhe o nome de cabo das

Tormentas, mas o rei D. João II preferiu chamá-lo de cabo da boa Esperança: com o seu

descobrimento, havia maior esperança de se chegar ao Oriente.

Reinava em Portugal D. Manuel o Venturoso quando Vasco da Gama descobriu, em 1498,

o caminho para as Índias.

A viagem de Vasco da Gama foi cheia de aventuras. Muitos marinheiros morreram de

escorbuto, mas os doentes que conseguiram chegar até o fim da jornada forma curados no

oriente com caldo de limão doce, fruta que, como a laranja, é muito rica em vitamina C.

Ainda reinava em Portugal D. Manuel o Venturoso quando Pedro Álvares Cabral,

comandando uma esquadra, partiu para as Índias.

Cabral era um nobre, portanto, a pessoa indicada para tratar com os príncipes orientais.

Em meio do caminho, porém, a esquadra mudou de rumo e, a 22 de abril de 1500, o Brasil

foi descoberto.

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Nesse dia, começa a história da nossa pátria”86.

No discurso didático de Borges Hermida, evidenciamos que a identidade portuguesa como de um

povo navegador foi se constituindo através das histórias de reis e príncipes, grandes navegadores, de

descobertas e conquistas, privações, mortes e doenças. Em suma, uma história forjada entre o trágico e

glorioso, o medo e a ousadia, a ignorância e a sabedoria.

Ao trazer a vida dura do cotidiano das embarcações, o autor reforçou a monumentalidade da obra

realizada pelos portugueses uma vez que muitas vidas foram sacrificadas para a retomada das relações

comerciais com o Oriente e difusão da fé cristã. As vidas perdidas na “cruzada” marítimas só encheram

mais de glória o passado dos portugueses – portadores da civilização. O Brasil seria, nessa leitura, o fruto

da campanha desse povo pelos mares.

Borges Hermida, no terceiro capítulo (“A Espanha e o Descobrimento da América”), a exemplo de

Rocha Pombo e Joaquim Silva, atribuiu especial destaque para a viagem de Colombo como elemento de

grande transformação no ruma da história das grandes navegações. Com o plano de chegar às Índias

viajando para o Ocidente, financiado pelos Reis Católicos, Colombo acabou por descobrir a América. Tal

descoberta gerou um conflito entre as Coroas portuguesa e espanhola pela divisão do mundo, gerando o

Tratado de Tordesilhas. Para o autor, a descoberta do navegador genovês teve conseqüências marcantes

para a América e a Europa:

“o comércio marítimo, antes pelo Mediterrâneo, passou a ser feito pelo Atlântico,

principalmente entre os Estados Unidos e os países europeus; vieram para o Novo Mundo

as línguas faladas pelos colonizadores: o inglês, o português e o espanhol ou castelhano; a

América ainda recebeu dos colonizadores as religiões: o catolicismo para os países de

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colonização espanhola e portuguesa e o protestantismo para as colônias inglesas que

deram origem aos Estados Unidos; também houve influência americana na Europa e em

todo o mundo, como o vício de fumar dos indígenas, pois eles cultivavam o tabaco e

conheciam o cachimbo e o charuto.

Da América foram levados o ouro e a prata, que as minas da Europa produziam em

quantidade. Transformados em moeda, esses metais ajudaram o desenvolvimento do

comércio, tornando-se a classe dos comerciantes, chamada burguesia, mais importante que

a nobreza”87.

O trecho citado do manual escolar de Borges Hermida permitiu-nos tecer algumas considerações

sobre a sua visão do descobrimento da América por Colombo. Primeiro, ele construiu uma imagem

positiva do encontro entre americanos e europeus. Segundo, os europeus (representado pelos espanhóis)

eram portadores de civilização, levando fé, lei e rei para os povos americanos. Terceiro, os americanos

apareceram como tabula rasa, recipientes vazios onde os europeus preencheram com a sua cultura, ou seja,

a América era um lugar a ser moldado. Quarto, os nativos, por não serem portadores de civilização,

corromperam a cultura européia com o vício de fumar. Quinto, os metais preciosos extraídos das minas do

novo Mundo permitiram o enriquecimento e fortalecimento da burguesia européia. Havia, portanto, um

clima aparente de harmonia na relação de “troca” entre os dois mundos: um fornecia a cultura e o outro as

riquezas. Enfim, o autor fez uma defesa moral, aos olhos do seu leitor-aluno, em relação à presença dos

europeus na América para inseri-la no teatro da história do mundo civilizado (europeu – modelo de

humanidade). Esse raciocínio lógico foi o mesmo adotado para construir no terceiro capítulo sua

interpretação sobre a chegada dos portugueses no Brasil.

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Na sua leitura, expedição de 1500 foi a continuação do projeto de estabelecimento de relações

comerciais entre Portugal e o Oriente. A indicação de Cabral, segundo o autor, para comandar tal missão

foi feita porque

“precisava ser escolhido um homem acostumado à vida da corte, pois lá, no oriente, ele

teria que conversar com príncipes e outras pessoas importantes. Um homem assim só

podia ser um nobre (...)”88.

Borges Hermida, de modo semelhante aos demais autores, ateve-se ao roteiro traçado pela Carta de

Caminha para narrar o evento do descobrimento do Brasil. O autor, ao tratar do acaso ou intenção da

descoberta, optou para ficar com a opinião da intencionalidade:

“Portugal já sabia da existência do Brasil, mas, temendo a ambição da Espanha, somente

depois de garantir a posse pelo Tratado de Tordesilhas (1494) é que resolveu mostrá-lo ao

mundo, fazendo seu descobrimento oficial”89.

Além de grandes navegadores, o autor enfatizou o lado estrategista e diplomata dos portugueses no

processo de conquista dos mares e de novas terras.

Após falar dos nomes da terra, o manual escolar passou a dedicar especial atenção ao documento

mestre para a construção da interpretação do nascimento do Brasil. A Carta de Caminha, assim como fez

João Ribeiro, assumiu o papel de verdade no processo de escrita da história do descobrimento. Além de

informações sobre a natureza e gentes do Brasil, a carta ajudou, ressaltou Borges Hermida, a história a ser

mais fiel ao passado, corrigindo erros sobre a data da descoberta (22 de abril) e o lugar exato da chegada

dos portugueses (baía de Cabrália).

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A Carta de Caminha também apareceu no seu discurso didático como um oráculo para prever o

futuro da nação ainda de recém-nascida. Ao descrever que a terra encontrada era muito fértil e que deveria

ser aproveitada para agricultura, ele havia traçado o destino manifesto do Brasil, ou seja, ser um país

agrícola. Em suma, naquele momento descrito pelo escrivão de Cabral estava as sementes formadoras da

nacionalidade brasileira. O Brasil entrava, assim, para o cenário da História (civilizada).

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_____________________________________________________Sérgio Buarque de Holanda

No primeiro capítulo (“A era dos descobrimentos”) de História do Brasil (Curso Moderno), o historiador

paulista Sérgio Buarque de Holanda analisou a temática dos descobrimentos a partir das relações

comerciais estabelecidas da Europa com o Oriente e a África. As rotas das especiarias constituíram o

elemento chave para compreender o processo de expansão marítima a partir do século XV. Segundo o

autor, as rotas comerciais que, da Ásia e da África, alcançavam a Europa, entre os séculos XI e XV,

“vinham por terra e por mar, trazendo várias mercadorias até os portos do mar

Mediterrâneo. Por terra, chegavam em caravanas a grandes centros como Bagdá,

Damasco, Cairo. Dali eram encaminhadas a vários portos como Constantinopla, Trípoli,

Alexandria, Tunis e Ceuta. Era nesses portos que os europeus iam comerciar, isto é

comprar ou vender, as mercadorias, pois a Europa ainda não ia buscá-las diretamente no

oriente e na África”90.

Até o século XIII a Europa não realizava comércio diretamente com o Oriente, pois os seus

comerciantes não conseguiam chegar às regiões produtoras das especiarias na Ásia. A partir desse século,

os irmãos Polo, conhecidos comerciantes de Veneza, conseguiram realizar duas viagens ao Oriente. Essas

viagens tiveram significativos avanços para o desenvolvimento do comércio entre Europa e Ásia. De

acordo com o autor, aproximando-se do discurso didático de Rocha Pombo, as viagens de Marco Polo,

filho de um dos irmãos, ajudaram também no melhor conhecimento das regiões produtoras das especiarias:

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“Quando Marco Polo voltou a Veneza, escreveu um livro sobre a viagem. Por ele, a

Europa ficou sabendo, com minúcia, como era feito o comércio das especiarias na Ásia, e

quais as rotas. Além disso, o livro, descrevendo regiões do Oriente, esclareceu e corrigiu

certas noções que os europeus tinham sobre a geografia da Ásia”91.

Assim como Borges Hermida, Sérgio Buarque ressaltou que as dificuldades para o estreitamento dos

contatos entre Europa e Ásia deveram-se aos árabes, povo não-cristão, seguidor de Maomé, que haviam

aos poucos conquistado diversas regiões localizadas entre o centro da Ásia e o mar Mediterrâneo. Por esta

razão, segundo o autor de Visão do Paraíso, os árabes passaram a controlar o comércio asiático e africano,

dominando as rotas que levavam até a China e a Índia, através das cidades de Bagdá e Damasco, e as rotas

que conduziam até o centro da África, pelas cidades do Cairo e de Tombuctu.

Na sua leitura, percebemos a importância que assumia os produtos do Oriente para o abastecimento

do continente europeu. Diferente dos outros autores, ele ateve-se na descrição das antigas rotas comercias

da Europa com o Oriente antes da tomada de Constantinopla, em 1453, pelos turcos92. Além disso,

destacou o domínio estabelecido pelas cidades italianas de Veneza e Gênova por se destacarem na

navegação e comércio no Mediterrâneo. Sérgio Buarque teve a preocupação de relatar ao seu leitor-aluno

como era comandado o comércio das especiarias orientais no Mediterrâneo pelos comerciantes italianos:

“Os comerciantes venezianos e genoveses, negociando nos portos em poder dos árabes e

com Constantinopla, vendiam as especiarias e os produtos da Ásia e da África ao resto da

Europa. Atravessando o estreito de Gibraltar, seus navios tocavam Portugal, Espanha,

França, Inglaterra; e chegavam até Antuérpia, grande centro do comércio europeu, nos

séculos XIV e XV”93.

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Para o autor, em síntese, três fatores impulsionaram a busca de uma nova rota para Ásia, através do

oceano Atlântico: 1. a presença árabe, dominando as cidades principais do Oriente; 2. o monopólio

estabelecido pelas cidades italianas (Veneza e Gênova) no mar Mediterrâneo; 3. a tomada de

Constantinopla pelos turcos, em 1453, o que dificultou o comércio europeu das especiarias e dos produtos

orientais.

Sérgio Buarque, com base nessa situação de fechamento da rota mediterrânica para o Oriente, passou

a analisar o processo de formação do reino de Espanha e Portugal na Península Ibérica. Para ele, a

formação e consolidação destas duas monarquias foi possível graças ao processo de reconquista contra os

árabes, presentes na península desde o século VIII. A formação do reino de Portugal, como a dos reinos de

Espanha,

“foi conseqüência da reação cristã contra o domínio árabe. No início, fez parte do reino de

Leão, mas no século XII, depois de expulsar os árabes de grande parte de suas terras,

tornou-se independente. Durante dois séculos lutou contra o reino de Castela para manter

essa independência, que só se tornou definitiva no século XIV”94.

Após relatar brevemente o processo de unificação do reino português, assunto não muito explorado

pelos outros autores dos manuais escolares analisados, o autor explicou a necessidade de Portugal voltar-se

para o mar devido a sua posição geográfica, à semelhança de Capistrano de Abreu, como um território

pequeno e comprimido entre o reino de Castela e o oceano Atlântico. Não haveria, dentro dessa lógica,

uma outra possibilidade expansão do pequeno reino95. Lisboa, observou Sérgio Buarque, desde o século

XIV tinha se transformado num importante centro comercial, “porto de encontro de marinheiros,

construtores de navios e comerciantes”96. Tal condição imposta pela geografia, somada à necessidade de ir

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buscar as especiarias diretamente nas regiões produtoras, fez com que Portugal, no século XV, assumisse o

projeto de expansão pelo mar.

Assim como Macedo e Rocha Pombo, o autor enfatizou a atuação da família real portuguesa no

projeto de expansão marítima, representada pela figura do infante D. Henrique. A esse príncipe ele atribuiu

a responsabilidade de transformar Portugal num grande centro de estudos da ciência da navegação.

Segundo seu texto didático, por conta de D. Henrique

“Muitos pilotos, navegadores, matemáticos e astrônomos foram chamados para lá.

Estudaram o emprego da bússola, fizeram mapas mais exatos sobre a localização

geográfica de várias terras. Além disso, foi formada toda uma biblioteca com obras antigas

e da época sobre viagens e navegação.

Dos estudos realizados, chegou-se finalmente a compreender que seria possível atingir a

Ásia depois de contornada a África. E com isso, Portugal estava pronto para a expansão

marítima, preparado para iniciar sua grande conquista atlântica”97.

Para Sérgio Buarque, na esteira de Rocha Pombo, o domínio do conhecimento da técnica de navegar,

associada a sua posição estratégica, foi fator determinante para construção de Portugal como o senhor dos

mares no século XV. A partir de uma estrutura de Estado, centrada na figura do monarca, e um projeto de

expansão, o pequeno reino passou a abraçar o mar tenebroso através de várias fases: a tomada de Ceuta; o

contorno da costa africana; a passagem entre o oceano Atlântico e o Índico, feita por Bartolomeu Dias, no

extremo sul da África; a chegada de Vasco da Gama às Índias.

Com a viagem de Vasco da Gama, saindo de Lisboa em 1497, rumo às Índias, concretizava Portugal

o seu projeto de uma nova rota para as fontes das especiarias.

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O professor universitário Sérgio Buarque, ao contrário de Joaquim Silva e Borges Hermida, por

exemplo, não incluiu como uma das justificativas para a expansão marítima a questão da profusão da fé

cristã no Oriente. As suas preocupações se concentraram mais na pauta dos interesses comerciais do que

na cristianização da África e da Ásia. Mesmo a viagem de Colombo, pela rota ocidental, rumo às Índias,

financiada pela Coroa espanhola, não apareceu como um intento dos Reis Católicos de expandir a fé cristã.

Para o autor de Caminhos e Fronteiras, à semelhança de Rocha Pombo, Cristóvão Colombo era um

filho da escola de navegação portuguesa:

“Já vimos como Portugal, no século XV, tornou-se um centro importante de estudos de

navegação que reunia pilotos e navegadores de vários países. Entre eles estava Cristóvão

Colombo, um navegador genovês. Ele havia entrado em contato com os conhecimentos

náuticos mais avançados da época e, pelos estudos feitos, deduziu que poderia alcançar a

índia navegando para o ocidente”98.

Sérgio Buarque não fez nenhuma referência direta à existência a escola de Sagres, tema amplamente

citado por autores anteriores e posteriores ao seu manual escolar, nem vinculou a figura de Colombo a tal

instituição, como ressaltou Rocha Pombo.

A viagem de Colombo resultou na descoberta da América, uma vitória grandiosa para a Coroa

espanhola no cenário das grandes navegações. Espanha e Portugal, de acordo com o autor, a partir desse

evento estabeleceram uma disputa pela hegemonia nos mares, levando a assinatura do Tratado de

Tordesilhas que estabelecia a divisão do mundo entre os dois reinos. Pelo referido tratado,

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“a Espanha ficou com o domínio das terras a oeste, garantindo a posse dos lugares

descobertos por Colombo. E Portugal ficou com o domínio da maior parte do Atlântico

sul, ou seja, das costas da África até o Brasil, mesmo antes deste ser descoberto”99.

A viagem de Cabral e a descoberta do Brasil, segundo Sérgio Buarque, estiveram atrelada ao projeto

da carreira das Índias conduzido por Portugal. A esquadra de Cabral, assim como afirmou Rocha Pombo e

Borges Hermida, tinha a missão de estabelecer o domínio português no Oriente.

A tomar como referência a carta de Caminha, o autor passou a narrar brevemente a expedição de

1500, comandada por Cabral:

“Além de um interprete, pilotos, soldados, mercadores, padres, acompanharam a

expedição alguns dos mais experimentados navegadores da época. Entre eles, estavam

Bartolomeu Dias, descobridor do cabo da Boa Esperança, e dois companheiros de Vasco

da Gama na sua viagem á Índia.

A 9 de março de 1500, a esquadra partiu do Tejo. Seguiu a rota de Vasco da Gama

desviando-se, porém, para o ocidente. No dia 21 de abril, surgiram sinais vários de terra e,

na tarde do dia seguinte, apareceu o contorno de ‘um grande monte mui alto e redondo’.

Estava descoberto o Brasil”100.

De acordo com Sérgio Buarque, a grande meta da viagem de Cabral era Calicute, onde deveria

concluir um tratado de paz e comércio necessário para o enriquecimento de Portugal. Os olhos da Coroa

estavam voltados para o Oriente, lá estava as bases para a consolidação do império português.

Percebemos no seu manual escolar, assim como no de Rocha Pombo, um destaque maior dado à

geografia como campo de saber estratégico para o domínio português dos mares. Para Sérgio Buarque, por

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exemplo, o conhecimento sobre as monções constituiu um importante aliado para os navegadores

portugueses no momento de sua expansão marítima. Com base no livro de Marco Polo e na viagem de

Vasco da Gama fez as seguintes considerações sobre as monções:

“Monções são ventos periódicos, de certa intensidade. O nome é de origem árabe,

significando estação. Isto porque esses ventos sopram, no verão, em uma direção e, no

inverno, em direção contrária. No verão, sopram do mar para a terra; no inverno, da terra

para o mar.

Até o emprego do navio a vapor, os navegadores muito se utilizaram desses ventos

periódicos. Já o livro de Marco polo faz referência à importância das monções. As

monções mais fortes e mais características são as do sul da Ásia, em particular as da Índia.

Daí o papel importante que esses ventos desempenharam na história das grandes

navegações portuguesas. Valendo-se das monções de verão, Vasco da Gama conseguiu

com maior facilidade chegar a Calicute, em junho de 1498 (época de verão no hemisfério

norte)”101.

No capítulo “A era das revoluções”, Sérgio Buarque apresentou o item “O que devemos ao

português”, onde trouxe uma breve descrição das contribuições dadas pelos colonizadores ao longo de três

séculos na formação da nacionalidade brasileira. De acordo com o autor, ao português o Brasil devia as

bases de sua formação:

“a maneira de ser e viver, a religião católica, as instituições (divisões administrativas, como

município, comarca, Câmaras), o idioma”102.

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Para ele, Portugal representou, numa leitura não muito distante da feita por Macedo, o

preenchimento de ausências e lacunas no Brasil, através da famosa tríade Fé, Lei e Rei.

Ao espírito unificador da civilização portuguesa, ressaltou o autor, o Brasil era tributário da sua

unidade territorial. Na Europa, Portugal foi o primeiro país que se constituiu geográfica e politicamente,

conservando para o seu povo uma só língua:

“Graças ao esforço de Portugal, proibindo o uso da língua geral e impondo o uso da língua

portuguesa na sua colônia da América, o Brasil passou a falar uma só língua e formou uma

só nação. Essa união conseguida por Portugal, na América, não foi alcançada pela

Espanha: as colônias espanholas se fragmentaram em vários países”103.

Na visão do literato paulista Sérgio Buarque, os colonizadores portugueses, mesclando-se com os

elementos da terra (índios), bem como a elementos de outras terras (negros), permitiram a formação de

uma população de aspectos raciais diversos, “perfeitamente harmonizados”104.

O seu manual escolar destacou as diferentes contribuições dos portugueses nas técnicas e artes,

hábitos e costumes. Muitas das antigas cidades brasileiras, afirmou o autor, foram testemunhas da herança

portuguesa105:

“obedeceram pouco a traçados geométricos; as ruas formaram-se de modo irregular, sem

respeitar planos, abrindo-se por vezes em largos de forma desigual. As casas forma

construídas a contento dos moradores, amoldando-se ao tipo de terreno e de paisagem.

(...)

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Percorrendo as nossas cidades mais antigas encontraremos belos chafarizes, casarões com

rótulas e amplos beirais, sobrados e claustros de conventos, ornamentados com azulejos

coloridos, que os portugueses haviam herdado dos árabes.

No Brasil os portugueses não dispensaram as chácaras, lembrança das quintas de Portugal,

onde cultivavam legumes, verduras, frutas e flores, a que estavam acostumados. Nas casas

da cidade introduziram os quintais, com hortas e pomares”106.

Em seguida, o autor teceu considerações sobre a culinária portuguesa e suas influências nos hábitos

alimentares dos brasileiros:

“Estavam habituados a um doce em pasta feito de marmelo, a marmelada, criação

tipicamente portuguesa. Ainda hoje a palavra marmelada é usada em outras línguas que têm

palavras diferentes para designar o marmelo. Criaram assim no Brasil a goiabada, a

bananada, tão conhecidas de todos nós. A atração dos brasileiros pelos doces feitos com

muitos ovos e muito açúcar é herdada do português. As nossas festas de aniversário, de

batizados ou de casamento, tipicamente brasileiras, não dispensam os ‘docinhos’: a ameixa

recheada (olho-de-sogra), os fios de ovos, os bem-casados, as queijadinhas e tantos outros

mais. Os pratos de sal vieram para o Brasil preparados com os temperos portugueses:

folhas de louro, cheiros-verdes, alho, cebola, azeitonas. O cozido português enriqueceu-se

no Brasil com novos ingredientes, a mandioca, a batata-doce, a banana, espiga de milho,

pirão. A couve, complemento indispensável da nossa feijoada é contribuição portuguesa,

como também as sopas e as frituras, que tanto o índio como o negro, desconheciam.

Não podemos esquecer que, junto com a cozinha portuguesa, herdamos o gosto pela mesa

farta, pela variedade de comidas, e o prazer de comer em companhia, de amigos e

convidados, base da hospitalidade”107.

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Sérgio Buarque, importante referência na historiografia brasileira ao lado de Gilberto Freyre e Caio

Prado Junior, realizou no seu manual escolar um elogio da obra colonial, destacando a importância deste

povo português para a construção da identidade nacional brasileira. O seu discurso didático, fazendo coro à

obra de Gilberto Freyre108, veio reforçar a imagem do Brasil como “paraíso racial”, lugar onde as diferentes

raças (índios e negros), liderados pelo português, conviviam harmoniosamente. Os portugueses eram, na

sua leitura, exímios anfitriões no banquete nacional iniciado a partir de 1500. Como pratos de

acompanhamento para os seus doces e quitutes, os colonizadores introduziram sua sopa de letrinhas com

muito F (fé), L (lei) e R (rei).

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______________________________________________________Nelson & Claudino Piletti

No terceiro capítulo (“A chegada dos portugueses”) de História & Vida – Brasil: da pré-História à

Independência, os professores-autores Nelson e Claudino Piletti iniciaram sua narrativa sobre era dos

descobrimentos portugueses fazendo um breve panorama sobre o mundo que os europeus conheciam.

Assim como Rocha Pombo, mostraram que os homens daquela época só conheciam os limites da

Europa109:

“um ou outro viajante tinha ido até o Oriente – a China e as Índias – e o norte da África.

Mas informações que existiam sobre esses lugares eram muito confusas e fantasiosas. A

África, a Ásia, a América e a Oceania eram praticamente desconhecidas”110.

A Europa retratada pelos autores estava mergulhada na Idade Média, ou seja, agrícola, feudal, servil,

subdesenvolvida economicamente e controlada pela Igreja católica:

Cerca de 300 anos antes da vinda dos portugueses, a Europa era quase só agrícola. Isto é,

não havia fábricas nem cidades; o comércio também quase não existia. As pessoas viviam

em grandes propriedades rurais chamadas feudos. O feudo era formado por um castelo,

um aldeia e uma extensão de terra em que o povo trabalhava. (...)

Quase não havia comércio. Os próprios camponeses produziam os alimentos e faziam as

roupas e os móveis de que precisavam. Os mais habilidosos faziam os objetos necessários

ao castelo do senhor feudal. O comércio limitava-se quase só à troca de mercadorias (trigo

por um animal, por exemplo) e assim mesmo acontecia poucas vezes.

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O rei era quase sempre o mais rico dos senhores feudais. Aquele que tinha mais terras. O

seu poder sobre os outros senhores feudais não era muito grande. Cada feudo tinha uma

vida quase independente. Às vezes alguns feudos se uniam para lutar contra outros feudos;

outras vezes uniam-se para formar um novo reino. Portugal, por exemplo, nasceu da união

de vários feudos.

O papa era a maior autoridade. Mandava até sobre os reis. Existia uma única religião, a

católica, e todos deviam obedecer ao papa. Quem não obedecesse e defendesse idéias

diferentes era condenado a morrer na fogueira”111.

O comércio, elemento importante para a sua análise, naquela época quase não existia. Para os Piletti,

era difícil comprar ou vender mercadorias porque havia pouco dinheiro; as moedas eram diferentes em

cada lugar e era muito difícil estabelecer o valor de uma ou outra; os pesos e medidas também eram

diferentes; o transporte das mercadorias era difícil e muito caro; não tinham boas vias e havia muitos

assaltantes que roubavam os comerciantes. A alteração desse quadro econômico e social só foi possível

devido às Cruzadas, feitas principalmente do ano 1000 até o ano 1200. Essa corrida pela conquista da

Palestina pela fé Cristã, segundo os autores, permitiu o florescimento do comércio:

“Essas Cruzadas demoravam meses e meses. Muitas vezes até mais que um ano. Pense

bem: 50, 70 a 100 mil pessoas deslocando-se durante um ou mais anos, a pé ou a cavalo,

por mar ou por terra, da Europa até a Palestina, por milhares de quilômetros? Quanta

comida, quanta roupa, quantas coisas seriam necessárias para todo esse pessoal? Foi aí que

os comerciantes entraram em ação, vendendo seus produtos.

Quando voltavam à Europa, os cruzados, principalmente os nobres, já estavam

acostumados a um novo a um novo tipo de vida: roupas de luxo, jóias, produtos finos.

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Eram coisas que haviam conhecido durante a cruzada. Por isso, quando apareciam os

comerciantes com essas coisas, eles as compravam por qualquer preço”112.

Para eles, a intensificação do comércio de produtos do Oriente, aumentou o número de

comerciantes. Estes passaram a viver numa mesma localidade, chamada de burgos, que mais tarde se

transformaram em cidades. Com o desenvolvimento do comércio, a sociedade passou a sofrer

transformações. Nesse momento, aprofundando o argumento de Borges Hermida, os irmãos Piletti

encontraram a gênese da burguesia, composta “pelos comerciantes ricos, os donos do dinheiro”113. Como

decorrência disso, outras mudanças aconteceram no cenário europeu:

“os reis foram ficando mais fortes; as ciências se desenvolveram, mostrando que é a Terra

que gira ao redor do Sol (heliocentrismo) e não o contrário (geocentrismo); surgiu a

imprensa, e os livros já não precisavam ser escritos à mão; passaram a ser usadas na

Europa várias invenções, como a bússola, a pólvora e o papel”114.

As viagens da época dos descobrimentos realizadas pelos portugueses ocorreram num período de

intensas mudanças no mundo europeu. Para os autores da coleção História & Vida, numa análise fundada

em aspectos econômicos, as Cruzadas, os produtos do Oriente, o crescimento comercial, a formação das

cidades e o surgimento da burguesia eram os elementos fundamentais para compreender o futuro que

aguardava a Europa da transição da Idade Média para a Moderna115.

As grandes navegações, na sua leitura, foram impulsionadas devido a vários problemas que poderiam

prejudicar os lucros dos comerciantes:

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“trazendo de tão longe os produtos que vendiam, no lombo de animais e em viagens

marítimas muito arriscadas, não conseguiam atender a todos os compradores, já que a

quantidade e os tipos de produtos que ofereciam não eram suficientes; os árabes, que

ocupavam várias regiões da Ásia, da África e da própria Europa, cobravam altos pedágios

pela passagem dos comerciantes, por isso, o preço das mercadorias tornava-se muito alto;

era cada vez mais difícil conseguir os metais preciosos de que eram feitas as moedas (ouro

e prata).

O comércio entre o Oriente e a Europa era dominado pelos comerciantes italianos, que

compravam os produtos dos árabes e os revendiam na Europa. Por isso, os comerciantes

portugueses sentiam-se muito prejudicados, pois não podiam aumentar muito seus

negócios”116.

De acordo com os irmãos Piletti, o pioneirismo português nas viagens pelo Atlântico deveu-se à

união do reino sob a autoridade de um rei, apoiado pelos ricos comerciantes. Apenas um pacto entre rei e

burguesia, afirmou taxativamente os autores, poderia juntar recursos e homens suficientes para concretizar

o projeto das grandes navegações. Esse manual escolar se diferenciou dos outros por apresentar a

importância do poder econômico no processo de expansão marítima de Portugal. Poderíamos, com base

no que foi exposto, afirmar que o capitalismo era o conceito chave para compreender a história proposta

pelos autores da coleção História & Vida.

Assim como Rocha Pombo, eles reforçaram a importância da posição estratégica de Portugal no

mapa europeu117 e as realizações de D. Henrique com a escola de Sagres concretização no projeto navegar.

Notamos, com variações de estilo e destaques, que estes três elementos constituíram tópicos centrais para

os autores dos manuais escolares forjarem a identidade desse reino como pré-destinado a dominar a arte de

navegar. Os Piletti, por exemplo, embora tivessem privilegiado o poder da burguesia como financiadora,

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reafirmou com cores vivas a idéia de que realmente houve uma escola de navegação no Portugal do século

XV, de onde saíram os melhores especialistas no assunto. Na Sagres criada pelos Piletti,

“Pilotos, navegadores, geógrafos, matemáticos e astrônomos reuniam-se para estudar as

maneiras de melhorar a navegação: cada um transmitia aos outros o que sabia, discutiam as

dificuldades que tinham encontrado nas viagens já feitas, conversavam sobre as

descobertas realizadas, faziam mapas, estudavam o uso da bússola e de outros

instrumentos de navegação, organizaram uma biblioteca com obras sobre viagens”118.

Após exaltar a lendária escola de navegadores, como se seguisse um roteiro traçado a longo tempo

por Varnhagen e Macedo, os autores fizeram referência aos diferentes caminhos dotados por portugueses e

espanhóis para atingir as Índias. Entretanto, não se detiveram, como João Ribeiro e Rocha Pombo, na

descrição minuciosa das viagens de Colombo e Vasco da Gama.

Ao comparar com as viagens espaciais nos dias de hoje, os irmãos Piletti informaram aos seus

leitores-alunos que fazer uma viagem naquele tempo era muito mais arriscado. Os autores, assim como

Borges Hermida, traçaram um panorama das dificuldades enfrentadas pelos navegadores em alto mar: “as

viagens eram muito longas e exigiam muitos recursos”; “as embarcações daquele tempo eram muito

precárias”; “o Atlântico era quase completamente desconhecido (...) a maioria das pessoas acreditava que

esse mar fosse cheio de monstros e plantas diabólicas, com águas que ferviam em determinadas áreas e

terminavam numa grande cachoeira”119.

As pessoas, segundo o manual escolar dos Piletti, embarcaram nas grandes viagens em busca de

aventura, fama e riqueza, mas poucos conseguiram usufruir as conquistas de além mar:

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“uns morreram durante as viagens e foram esquecidos; outros descobriram novos

caminhos e encontraram novas terras, alcançando a fama, mas morreram na miséria, como

Cristóvão Colombo, navegador italiano que comandou a primeira expedição à América

(1492)”120.

Ao contrário de Rocha Pombo e Joaquim Silva, deslumbrados com as conquistas das grandes

navegações do século XV, os Piletti foram mais duro na construção das representações sobre o período.

Os grandes beneficiários na empreitada pelos mares não eram os marinheiros, cuja maior parte morreu sem

fama nem dinheiro, e sim os burgueses e os reis. Para os comerciantes portugueses, as grandes navegações

renderam a ampliação de seus negócios e o crescimento de suas fortunas. Para ilustrar tal enriquecimento,

os autores mencionaram que a primeira viagem dos portugueses às Índias deu um lucro de 6000%. Os reis,

por sua vez, ficaram mais poderosos, consolidando sua autoridade real:

“com as riquezas que conseguiram explorando as novas terras, puderam fortalecer-se,

organizar exércitos, e exercer o poder absoluto em seus reinos”121.

Ao concluir suas reflexões, os autores da coleção História & Vida afirmaram que o mundo não foi

mais o mesmo com as grandes navegações: novos continentes passaram a ser conhecidos e explorados, o

oceano Atlântico deixou de provocar tanto pavor. Os europeus passaram a ocupar as novas regiões as

quais haviam chegado com a cruz e a espada, explorando suas riquezas e dominando sua gente. A imagem

do encontro entre Europa e América não foi tão idílica no seu manual escolar.

A partir do final dos anos 1970, mergulhado nos debates sobre justiça social e na denúncia dos

crimes historicamente cometidos contra os vencidos, o professores-autores Piletti procuraram reforçar que

a presença do europeu na América representou o flagelo de indígenas e negros.

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Além de fazer uma breve referência sobre os eventos do descobrimento do Brasil em 1500, seguindo

o roteiro da partida de Lisboa até o desembarque e a realização das missas, os Piletti realizaram uma análise

da idéia de descobrimento e da relação estabelecida entre Portugal e Brasil. Ao contrário dos autores de

manuais apresentados até agora, eles deixaram bem claro que a noção de descobrimento referia-se ao fato

de os portugueses terem encontrado uma terra que até aquele momento era desconhecida da Europa. No

ano de 1500, destacou os autores, o Brasil foi descoberto para os europeus. Assim como Capistrano de

Abreu, os Piletti afirmaram que os portugueses eram “elementos exóticos” na história do Brasil. Antes da

chegada dos portugueses, no Brasil viviam milhões de índios. Contudo, segundo eles,

“esta era uma terra desconhecida e sem dono. Ela estava distribuída entre os numerosos

grupos indígenas que a ocupavam. É verdade que a idéia de posse e propriedade, no caso

dos índios, não tem o mesmo sentido que tinha para os portugueses e que ainda tem para

nós, ou seja, o sentido de propriedade privada”122.

Os índios, na sua leitura, tinham uma relação diferente com a sua terra, a posse era coletiva; as vastas

regiões do país eram ocupadas por tribos; existiam limites mais ou menos estabelecidos, mas as tribos

mudavam de lugar de acordo com suas necessidades.

Ao contrário da imagem criada por Borges Hermida, por exemplo, os irmãos Piletti retrataram o

descobrimento da América e do Brasil como uma ocupação, uma invasão123. Os europeus se consideravam

superiores aos povos ditos “não civilizados” que habitavam o continente americano. Eles não tinham os

mesmos direitos que os europeus, como o da posse da terra:

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“Os europeus consideravam-se donos do mundo e achavam que todos os outros povos

deviam seguir as leis que existiam na Europa”124.

Não foi um clima de harmonia e reciprocidade que estabeleceu entre os portugueses e indígenas, mas

de hostilidade e guerras. Os Piletti acusaram os portugueses de praticarem o extermínio dos primeiros

habitantes do Brasil por conta da ambição e sede de lucros. A obra colonial realizada pelos invasores,

pontuou os autores, foi marcada pela destruição de tudo o que se encontrava pela frente. Para eles, tal

atitude de invasão e exploração gerou um carma para os povos indígenas. De acordo com os autores,

“Ainda hoje existe a idéia de que os índios são seres inferiores, que não têm os mesmos

direitos que os brancos. É essa a mentalidade que nos foi transmitida pelos colonizadores.

Seria muito mais fácil para eles justificar o extermínio dos índios se estes fossem

considerados seres inferiores, sem nenhum direito, nem mesmo à vida”125.

A partir da denúncia da exploração dos índios, eles propuseram a necessidade de se fazer uma outra

história mais verdadeira, a contada pelo vencido. Uma história do ponto de vista do indígena, “o primeiro

povo a viver no Brasil”126. Somente assim seria possível construir uma sociedade verdadeira, amparada na

defesa dos direitos de todos. No seu discurso didático havia uma preocupação humanista, voltada para a

realização do projeto de um mundo melhor, “mais humano e mais justo”127.

No décimo segundo capítulo (“A cultura no Brasil colonial”), ao tratarem das contribuições do

português para a formação do Brasil, a exemplo do manual escolar de Sérgio Buarque, os irmãos-autores

ressaltaram aspectos ligados à língua, à religião, à arquitetura e traçado das cidades e à alimentação. Quanto

à alimentação, eles fizeram menção aos

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“doces (marmelada, goiabada, bananada), temperos (louro, cheiro-verde, alho, cebola,

azeitona), sopas, frituras, a couve, que acompanha a feijoada; o cozido, que aqui se

enriqueceu com alimentos nativos, como a mandioca, a batata-doce e o milho”128.

Além disso, os autores fizeram referência ao fato dos portugueses terem trazido para o Brasil a

tradição das festas religiosas católicas (Natal, Páscoa, Dia de Reis entre outros) e dos festejos populares,

como as folias carnavalescas e as festas juninas.

A cultura trazida pelo português para ao Brasil, na sua leitura, foi a dominante. Foi de acordo com as

imposições e regras trazidas por ela que índios e negros interagiram, enriquecendo o banquete e as

festividades nos trópicos.

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________________________________________________________________Chico Alencar

Ao abordar o tema dos descobrimentos portugueses no primeiro capítulo (“O mundo da terra de todos”),

o historiador e professor carioca Chico Alencar definiu os descobridores de “gente que entra sem pedir

licença”, marcando um posicionamento nada favorável aos colonizadores. Para ele, houve uma invasão,

uma apropriação indébita das terras do continente americano realizada pelos europeus. A partir da fala de

um índio, o seu manual escolar denunciou que o português veio para dividir as terras dos povos indígenas:

“– Não era assim. Morava tudo uma coisa só. Mas chegaram o branco pra cá... Não sei nem por que o

branco veio para cá! Ta tudo dividido: se eu chego lá o fazendeiro vai proibir: ‘Não pode pegar tartaruga,

não pode peixe...’ Índio não é bicho pra amansar. Amansar pra poder ficar assim manso e o branco

aproveitar a terra dele”129.

Awatekãto’i, o chefe tapirapé, segundo o autor, não sabia explicar como o branco veio parar no Brasil,

mas era necessário explicar como tudo aconteceu. Dessa maneira, ele propôs uma viagem no tempo para a

Europa do século XV, onde tudo começou.

Na península Ibérica, estavam localizados os reinos de Portugal e Espanha, um mundo bem diferente

do mundo nativo do pequeno xavante Tsipré. A sociedade do homem branco era estruturada numa

pirâmide, dividida em classes130:

“no alto, a Igreja e a nobreza dos barões, condes, marqueses, duques e reis. Eles eram os

donos das terras. Logo depois, ainda perto do topo, a classe dos ricos comerciantes, a

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burguesia. Na base – o maior pedaço da pirâmide -, os servos dos campos e os

trabalhadores das cidades, a maioria da população daqueles reinos”131.

A maioria da população do continente europeu, assim como os índios no Brasil, trabalhavam com a

terra. Porém, os primeiros eram obrigados a entregar boa parte do que produziam para o senhor “todo-

poderoso, o senhor feudal, também chamado de nobre”132. A vida dos camponeses, ressaltou Chico Alencar,

era bem diferente da vida da tribo de Tsipré e seus irmãos: era uma vida miserável e explorada. Eles não

tinham direito a terra e, muitos, nem livres eram.

Nas cidades viviam os trabalhadores, denominados assalariados. Eles foram os responsáveis pela

construção das caravelas do descobrimento. Ao contrário do que imaginava Macedo e Rocha Pombo, as

pessoas comuns

“tinham sonhos e pesadelos quando se lançavam ao mar, sob as ordens de posudos

capitães. Os ricos comerciantes, donos das embarcações, compravam com dinheiro o

trabalho dessa gente. Esse salário não valia nada perto dos grandes negócios que

começavam a surgir”133.

Os grandes beneficiários, segundo o autor da coleção infanto-juvenil Viramundo, aproximando-se das

afirmações dos Piletti, dos negócios das navegações foram os comerciantes. Navegar como necessidade era

certeza dos reis, dos nobres e da burguesia. Assim como Sérgio Buarque, Chico Alencar associou o evento

das navegações do século XV ao comércio de especiarias com o Oriente. A busca de produtos no distante

Oriente era o principal motivo de tal empreendimento. Além disso, o autor destacou outra justificativa para

o avanço pelos mares – a necessidade de mais terras134:

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“Os reis empurravam seus súditos para o mar porque os nobres, donos das terras queriam

mais terras ainda. Afinal, o topo da pirâmide também estava e precisava aumentar o seu

poder”135.

A justificativa religiosa também foi arrolada por Chico Alencar, fazendo coro às afirmações de Rocha

Pombo, Joaquim Silva e Borges Hermida. A conquista do mundo pelos europeus era a vontade divina,

relatou o autor, acreditavam os cristãos da época dos descobrimentos.

Se para os comerciantes navegar era preciso, para os marinheiros navegar era perigoso. Assim como

os irmãos Piletti, o autor fez referência aos medos que tomavam conta dos homens que se atreviam a

enfrentar os mares:

“Eles temiam serpentes aladas, monstros submarinos e o fim súbito do ‘Mar Tenebroso’,

lançando as esquadras no nada ou no fogo do inferno! Eles tinham muito medo das

calmarias, que os deixavam morrer à mingua na imensidão do oceano escuro, disputando

com os ratos os últimos biscoitos e bebendo água podre”136.

Chico Alencar apontou o ano de 1415 como data oficial para o início da expansão marítima

portuguesa. Neste ano eles conquistaram a cidade Ceuta, localizada no norte da África, ponto final das

rotas que traziam as mercadorias do Oriente. A partir deste lugar, os portugueses seguiram pelo mar

fazendo outras conquistas. Assim como João Ribeiro, o autor ressaltou, além das especiarias, a importância

do comércio de escravos para o desenvolvimento do empreendimento das navegações portuguesas:

“Os portugueses compravam nessas regiões uma grande variedade de mercadorias:

produtos de luxo, como seda e porcelana, especiarias, como pimenta, cravo e canela,

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metais e pedras preciosas como ouro e diamantes, marfim, madeira tintorial e uma

mercadoria muito especial: escravos negros. Vendidos na Europa por preços bem mais

elevados, essas mercadorias davam lucros fabulosos aos portugueses”137.

Na esteira dos demais autores, ele destacou a importância dos estudos e do suporte dos reis para o

projeto de navegação português. Entretanto, não apresentou uma visão épica das navegações dos

portugueses. Com os avanços técnicos e investimentos, em 1488, eles chegaram ao cabo das Tormentas e,

em 1498, alcançaram o destino desejado: as Índias. Portugal tornava-se o dono dos mares:

“D. Manuel não cabia em si de tanto orgulho. Ele era ‘O Venturoso, Senhor da conquista,

Navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia’. Os portugueses chegariam ainda

às Molucas (atual Indonésia), Málaca (perto da atual Cingapura), Macau, na China, e

Cipango (Japão), onde fundaram a feitoria de Santa Maria de Nagasaki”138.

A Espanha, segundo o autor, não pôde realizar as mesmas proezas dos portugueses porque estava

envolvida nas guerras contra os mouros que ainda se faziam presente na Península Ibérica, ocupada desde

o ano de 711. O quadro se reverteria com os eventos de 1492: a reconquista e a viagem de Colombo, rumo

às Índias pelo Ocidente, que culminou na descoberta da América.

De acordo com o seu manual escolar, a disputa entre os dois reinos por terras conquistadas levou à

partilha do mundo através do Tratado de Tordesilhas. Ao fazer a divisão das terras descobertas e por

descobrir, acusou Chico Alencar, portugueses e espanhóis de não reconheceram os direitos dos povos que

as habitavam. Por essa razão, na sua leitura, a chegada dos portugueses no Brasil foi considerada uma

invasão.

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O Brasil aconteceu na história dos portugueses em meio a estes confrontos diplomáticos. Para o

autor da História da Sociedade Brasileira,

“Pedro Álvares Cabral, o comandante da expedição de 1500, confirmou as suspeitas que

Vasco da Gama tivera em 1498, quando viajava para Calicute, na Índia: se afastarmos a

esquadra da costa africana, novas terras serão encontradas, além daquelas que Colombo

tinha ‘descoberto’”139.

A “descoberta” feita pelos portugueses, ao contrário das exaltações de Macedo e Rocha Pombo, para

Chico Alencar representou um desastre para os povos que habitavam a parte sul do continente americano:

“Chegava o branco vendo os homens das diferentes nações e grupos tribais como uma

coisa só: índios simplesmente. O conquistador europeu já sabia que o Brasil não era as

Índias, mas continuava chamando assim os seus primeiros habitantes”140.

O mundo do pequeno xavante Tsipré começaria a mudar a partir de 1500. Novos costumes, novas

idéias trazidas pelas caravelas portuguesas iriam impor uma nova realidade para aquele mundo. A diferentes

tribos perderiam sua identidade, seus territórios. O encontro brancos e índios, para o autor, representou o

fim da paz e harmonia entre os índios. Começava, na leitura do professor Chico Alencar, uma página triste

da história da futura nação.

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__________________________________________________“O que devemos ao português”

Neste capítulo, pretendemos analisar as representações criadas por esses manuais escolares de História do

Brasil sobre o elemento português a partir do evento das viagens e descobrimentos do século XV. O

português descobridor constituiu a temática central do estudo que desenvolvemos sobre a construção da

identidade de Portugal, pátria-mãe que deu origem à nação-filha, o Brasil. Atribuímos especial destaque

para alguns aspectos em relação à era dos descobrimentos, tópico que geralmente abria os primeiros

capítulos dos manuais escolares: a idéia de ser Portugal predestinado a assumir o papel de senhor dos

mares pelo discurso da fé e/ou da técnica; a importância da figura do infante D. Henrique e da lendária

Escola de Sagres na consolidação do projeto de navegação português; a disputa pela busca de uma nova

rota para o Oriente entre Espanha e Portugal, exemplificada pelas viagens de Cristóvão Colombo (1492) e

Vasco da Gama (1497); e a polêmica e as místicas criadas sobre a “descoberta” do Brasil, em 1500.

As fontes utilizadas pelos autores para elaborar suas representações do português descobridor

geralmente eram os relatos de viagem, em especial, os diários de Colombo, o relato da viagem de Vasco da

Gama e a Carta de Pero Vaz de Caminha141. As obras de historiadores como Francisco Adolfo Varnhagen

e João Capistrano de Abreu142, neste caso, eram as referências principais, sendo constantemente

mencionados implícita ou explicitamente nos corpo dos manuais escolares. Havia também, assim como no

caso dos índios e negros, autores que adotaram modelos de imagens criadas do português a partir de

manuais escolares consagrados pela tradição didática, como por exemplo, Joaquim Manuel de Macedo,

João Ribeiro, Rocha Pombo e Jonathas Serrano. As obras didáticas publicadas principalmente a partir dos

anos 1930 trouxeram o uso de iconografias, fotos e mapas. O quadro de Victor Meireles da primeira missa

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realizada no Brasil no momento de sua posse pela Coroa portuguesa foi amplamente utilizado pelos

manuais escolares143.

Ao contrário do elemento indígena e negro, em que os autores construíram representações fechadas

em torno da idéia de raça, estabelecendo padrões ditos universais para construir sua identidade: o “índio

submetido” e o “negro escravizado”144, os portugueses apareceram cobertos de várias representações,

atributos que lhes davam identidades múltiplas: descobridor, conquistador e senhor. O português era um

europeu, pertencente à uma civilização superior, herdeira dos gregos e romanos. O seu sangue era puro, ou

seja, descendia da “raça branca ou caucasiana”, numa terminologia de von Martius. A maioria dos autores

não fez nenhuma referência explícita sobre o conceito de raça para definir os descobridores e muito menos

para a formação étnica do povo português145. Para os autores analisados, o português era dado como

europeu e branco. Mesmo sendo um europeu, o português tinha suas particularidades destacadas. Ele não

era apenas diferenciado em relação aos negros e índios, mas também no cenário dos povos e reinos que

formavam a Europa daquele momento.

Para eles, ser português era muito mais uma questão de identidade nacional do que racial, embora

estivesse implícito para o leitor-aluno que se estava falando de um povo “branco”. Aliás, a designação

“homem branco” para os descobridores só foi adotada largamente pelos irmãos Piletti e Chico Alencar, a

partir dos anos 1980. Ao fazer referência ao conceito de “raça” para os descobridores portugueses, estes

dois autores, diferentemente dos demais, procuravam pôr eles em pé de igualdade com os índios e os

negros. Entretanto, a terminologia veio carregada de uma imagem negativa: ao “homem branco” era

atribuída as imagens de “invasor”, “explorador”, “dominador”, “vencedor”, “gente que entra sem pedir

licença”. Estes autores fizeram ao longo das páginas dos seus manuais escolares uma denúncia contra a

violência e exploração imposta pelos portugueses aos vencidos e humilhados índios e negros.

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De certa maneira, os Piletti e Chico Alencar racializaram o português para poder criticar suas atitudes

cruéis, desumanas e irracionais. A cor “branca”, na sua leitura, era sinal de injustiça, deslealdade e violência.

Os “brancos” eram os vencedores (dominadores), enquanto os “negros” e “índios” incorporavam o papel de

vencidos (dominados).

Todavia, as designações atribuídas pelos manuais escolares eram “europeus”, “portugueses”,

“navegadores”, “conquistadores” e “colonizadores”. Terminologias associadas à idéia de nacionalidade e de

funções ou papéis sociais, políticos e econômicos.

A maioria dos autores analisados não falava, de maneira clara e objetiva, de “raça branca” para definir

os descobridores, mas sim de civilização “superior” ou “adiantada” em comparação com os outros, ou seja,

negros e índios, estes definidos como povos racializados. A idéia de raça, numa leitura dos manuais

escolares, estava presa a uma imagem pejorativa, sendo utilizada para fazer menção aos povos ditos “não-

civilizados”, “inferiores”, “atrasados” e “subsenvolvidos”146.

Não houve uma referência positiva ao tratar da idéia de raça, sendo raramente utilizada para

descrever o europeu (os irmãos Piletti e Chico Alencar). Neste caso, a preferência era sempre por fazer uso

da nacionalidade: português, espanhol, holandês, francês etc. Quando se falava, por exemplo, dos

descobridores a seqüência de associações seria portugueses → europeus → civilizados → “raça branca ou

caucasiana”. Tais atribuições identitárias davam ao descobridor português a função de ser o conquistador,

dominador, controlador e civilizador (ou exterminador). Além disso, concedia-lhe a autoridade discursiva

para decidir quem era digno de ser humano ou raça; livre ou escravo; superior ou inferior; civilizado ou

bárbaro147.

Os portugueses, segundo os manuais escolares, eram superiores porque possuíam uma forte idéia de

civilização arraigada. Eles tinham, como ressaltou Macedo, três letras fortes no seu vocabulário: o F de Fé;

o L de Lei e o R de Rei. Três letras ausentes no universo cultural de índios e negros e ainda em processo de

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formação em outros povos europeus148. No caso dos outros povos europeus, estes teriam a possibilidade

de alcançar tal nível elevado de civilização. Para Rocha Pombo, por exemplo, Portugal foi o responsável

pelo desenvolvimento de Europa medieval ao assumir para si a missão de aventurar-se pelo oceano

Atlântico em busca de um novo caminho para as Índias. Já os demais povos, o africano e o americano, não

teriam a mesma chance. O primeiro, na leitura do referido autor, por ser um povo em decadência ou

degeneração. O segundo, na leitura de João Ribeiro e Joaquim Silva, condenado por uma África bárbara e

selvagem. Para o índio, regresso à infância da civilização, a prescrição seria a tutela ou o extermínio. Ao

negro, a escravização como uma forma de reabilitação. Por ser sedentário e forte, este estaria adequado a

servir de mão-de-obra para a construção do império colonial português.

Aos portugueses, superiores pela cultura (civilizado) e biologia (branco), caberia ser a força

dominadora, numa referência ao manual escolar de Sérgio Buarque, na construção do Brasil colônia e, mais

tarde, nação. A este povo da península Ibérica seria tributária o Brasil contemporâneo. Elogiosos ou

críticos dos rumos dados pelos descobridores à nova terra, todos foram unânimes em ressaltar o seu poder,

a sua dominação. No banquete nos trópicos, eles eram servidos por índios e negros, que no mínimo

poderiam trazer oferendas para enriquecer o cardápio nacional.

Para os que fizeram a conquista dos mares e novas terras para Portugal, os autores, dentro de suas

particularidades, apresentaram as mais diversas identificações e atributos. Havia uma pluralidade de

explicações para o seu êxito como os senhores do mar. As explicações estavam vinculadas às três palavras-

chaves para a noção de civilização – Fé, Lei e Rei. Cada autor, à sua maneira, procurou enfatizar um ponto

desta tríade149.

A questão da fé (Cristianismo) foi objeto de destaque para João Ribeiro, Borges Hermida e os irmãos

Piletti. A constituição de uma legislação estruturada e instituições fortes assumiu relevância no discurso

didático de Rocha Pombo, Joaquim Silva e Sérgio Buarque. A importância da figura do rei, especialmente,

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do infante D. Henrique, foi muito detalhada pelos manuais escolares de Macedo, Rocha Pombo e Joaquim

Silva. À figura deste príncipe estava ligada a lendária Escola de Sagres, fundada para formar navegadores.

Para além deste tripé, os autores procuraram ressaltar alguns outros aspectos que legitimavam a

supremacia dos portugueses como os grandes navegadores: a necessidade comercial e a formação de uma

burguesia (Joaquim Silva, Borges Hermida, os Piletti e Chico Alencar); o conhecimento e a técnica

(Macedo, Rocha Pombo e Sérgio Buarque); a localização geográfica privilegiada (Rocha Pombo, Sérgio

Buarque e Piletti) e a busca de mão-de-obra – escravidão (João Ribeiro, os Piletti e Chico Alencar).

Percebemos na narrativa sobre os descobridores portugueses que os autores tiveram uma

preocupação histórica, não etnográfica. Estas personagens históricas tinham seu lugar bem determinado no

espaço e no tempo. Eles possuíam nomes, sobrenomes, famílias, profissões e classe social. Os portugueses,

através da ação individual ou coletiva, escreviam a sua história e determinavam o lugar a ser ocupado pelos

“outros”, os que estavam fora das fronteiras da Europa. Nas páginas dos manuais escolares, personagens

como o infante D. Henrique, o rei D. Manuel, os navegadores Cristóvão Colombo, Vasco da Gama e

Pedro Álvares Cabral eram detentores e produtores de história.

Em suma, a exemplo do que defendeu Varnhagen, para os manuais escolares, a história era uma

propriedade dos colonizadores. Para os índios e negros apenas a etnografia poderia dar informações sobre

seus modos de ser e viver. A história pertencia a quem tinha o poder da escrita.

A entrada dos índios e negros no palco da História só era possível mediante a atuação dos

portugueses – estes considerados, numa afirmação de von Martius, o “motor” da obra colonial.

Ao narrar os atributos dos portugueses necessários para que realizassem a obra da navegação no

Atlântico e a descoberta, conquista e colonização de novas terras, como podemos evidenciar neste capítulo,

levavam seus leitores-alunos, em diferentes contextos históricos, a acreditar que não haveria outro desfecho

ou interpretação para o passado da humanidade. Os portugueses, pertencentes à Europa, detentores de Fé,

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Lei e Rei teriam a missão de “complementar” resto da humanidade com “ausências” ou “lacunas” de

civilização.

Percebemos na narrativa dos manuais escolares que os atributos de inteligência dos portugueses

(europeus/brancos) no processo de conquista dos outros povos foram amplamente valorizados. De acordo

com Patrícia Chagas, na história das chamadas “relações raciais” tem ocorrido a clara divisão

“dos atributos do corpo, como sendo mais fortes nos negros, e os atributos da mente,

como características quase que exclusivas dos brancos.”150

Na hierarquia capitalista, devemos lembrar, os atributos físicos representavam características

negativas, pois o corpo era inferior à mente e subordinado a ela. Nesta perspectiva, era plausível que os

negros e índios, portadores de atributos físicos, fossem submetidos pelos portugueses, de origem européia

e brancos, portanto portadores de atributos mentais. A astúcia e a inteligência tinham um lugar geográfico

(a Europa) e uma identidade racial (branca).

Os manuais escolares, em sua grande maioria, destacaram a astúcia de personagens decisivas para o

projeto de navegação dos portugueses no século XV. Macedo e Rocha Pombo, por exemplo, teceram

louvores ao brilhantismo do infante D. Henrique. Nas caravelas comandadas por Cabral estavam reunidos,

além de habilidosos marinheiros, segundo João Ribeiro, homens de profundo conhecimento em diferentes

assuntos do Estado português e da Igreja.

Outro exemplo amplamente citado, mas não objeto de atenção específica de nossa pesquisa, da

astúcia do europeu sobre os índios seria a vitória do conquistador espanhol Fernão Cortez sobre o

imperador asteca Montezuma e seu povo no México151.

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Neste capítulo, nós nos propusemos a fazer uma leitura das representações do descobridor português

pelos autores de manuais escolares de História do Brasil, tendo a preocupação de compreender como e

porque eles forjaram seus modelos de interpretação, ao compor suas versões didáticas para a história

nacional. O objetivo principal, assim como nos demais capítulos, não era relatar o que eles não fizeram ou

fizeram de “errado”, mas entender a maneira como eles, cada um a seu modo, amparados em ferramentas

conceituais como raça, nação e civilização, criaram as suas imagens sobre o português. Tentamos, ainda,

observar o que houve de permanências e transformações na arte de esculpir discursivamente esta

personagem histórica (os descobridores portugueses) e as possíveis implicações políticas, sociais,

ideológicas e culturais das escolhas feitas pelos autores ao criarem o português didático que deveria povoar

os seus manuais escolares, sujeito este que acreditavam ou faziam crer como “verdadeiros”.

Ao abrirmos as páginas destes manuais, podemos encontrar versões do sujeito colonizador português

favoráveis ou desfavoráveis, representados principalmente por quatro tipos ideais derivados da monografia

de von Martius: o descobridor (os navegadores), o religioso (os jesuítas) o conquistador (os bandeirantes) e

o senhor (os senhores de engenho). Ao abordar a presença portuguesa no Novo Mundo a partir destas

características, os manuais escolares foram construindo uma identidade nacional para Portugal como uma

civilização e uma raça superior. Cada um destes tipos ideais ressaltou aspectos específicos que ajudavam a

formar a identidade dos colonizadores do Brasil.

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NOTAS:

1 Karl Friedrich Philipp von Martius, “Como se escreve a história do Brasil”, in: O estado do direito entre os autóctones do Brasil (Belo Horizonte; São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1982) p. 87 (Originalmente publicado na RIHGB, t. VII, 1845, pp. 381-403). 2 Ibid., p. 95. 3 Ibid., p. 98. 4 Ibid., p. 99. 5 Ibid., p. 87. 6 Para uma análise da produção historiografia destes autores, pensando a construção de uma identidade para o passado colonial brasileiro, conferir: José Carlos Reis, As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 2a ed. (Rio de Janeiro, Editora FGV, 1999). 7 José Carlos Reis, As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, p. 37. 8 Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, Varnhagen: história (São Paulo, Ática, 1979) p. 47. 9 Ibid., p. 47. 10 Ibid., p. 49. 11 Ibid., p. 48. 12 Ibid., p. 49. 13 Ibid., p. 49. 14 Joaquim Manuel de Macedo, Lições de História do Brasil. 10a ed. (Rio de Janeiro, H. Garnier, 1907) p. 03. 15 Ibid., p. 04. 16 Ibid., p. 04. 17 Ibid., p. 04. 18 Ibid., p. 06. 19 Ibid., p. 06. 20 Ibid, p. 14-5. 21 Ibid., p. 16. 22 João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), 17a ed. revista e completada por Joaquim Ribeiro (Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1960) p. 27. 23 Ibid., p. 27-8 24 Ibid., p. 28. 25 Ibid., p. 28. 26 Ibid., p. 28.

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27 Ibid., p. 29. 28 Ibid, p. 35. 29 Neste caso, a obra de referência seria a seguinte: João Capistrano de Abreu, O Descobrimento do Brasil (São Paulo, Martins Fontes, 1999). 30 Aqui, provavelmente, a referência segura de João Ribeiro foi Capistrano de Abreu. Em Capítulo de História Colonial (1500-1800), ele explicou a razão do nome Brasil para a colônia portuguesa nas Américas: “O nome do Brasil já era bem conhecido e figurava em portulanos anteriores às descobertas dos portugueses; havia um nome à procura de aplicação, exatamente como o de Antilha, e isto explicaria a rapidez com que se introduziu e vulgarizou, suplantando outras denominações, como terra dos Papagaios, de Vera Cruz ou Santa Cruz, se a abundância de uma apreciada madeira de tinturaria até então recebida por via do Levante, e o comércio sobre ela fundado desde o começo, não colaborassem na propaganda, e talvez com maior eficácia” [João Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial (1500-1800), 7a ed. (Belo horizonte, Itatiaia; São Paulo, Publifolha, 200) p. 56]. Esta questão havia sido abordada pelo autor em 1883, na sua tese de concurso à cadeira de História do Brasil do Colégio Pedro II, intitulada “Descobrimento do Brasil – Seu desenvolvimento no século XVI”. 31 Para compreender a o posicionamento antimonarquista e crítico da colonização portuguesa do Brasil de João Ribeiro, conferir: Ciro Flávio de Castro Bandeira de Melo, “Senhores da História: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de História na segunda metade do século XIX”, Tese de Doutorado em Educação, São Paulo, FEUSP (1997). 32 João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), p. 37-8. 33 Ibid., p. 38. 34 Assim como em João Ribeiro, podemos perceber uma forte presença dos escritos de Capistrano de Abreu na criação das representações sobre o descobrimento do Brasil elaboradas por Rocha Pombo. 35 A noção de transição vivenciada por Portugal no final do século XV e início do XVI foi também destacada por Capistrano de Abreu. Segundo o autor, “Ao começar o século XVI, Portugal labutava na transição da Idade Média para a era moderna. Coexistiam em seu seio duas sociedades completas, com sua hierarquia, sua legislação e seus tribunais; mas a sociedade civil não professava mais a superioridade transcendente nem se sujeitava à dependência absoluta da Igreja, despida agora de muitas de suas históricas prerrogativas, obrigada a reduzir muitas de suas pretensões” [João Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial (1500-1800), p. 43]. 36 José Francisco da Rocha Pombo, História do Brasil (Curso superior), 6a ed. revista e atualizada por Hélio Vianna (São Paulo, Edições Melhoramentos, 1952) p. 09. 37 Ibid., p. 10. 38 Ibid., p. 10. 39 Ibid., p. 11. 40 Ibid., p. 11. 41 Ibid., p. 11. 42 Ibid., p. 11. 43 Ibid., p. 12. 44 Ibid., p. 12. 45 Ibid., p. 12.

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46 Ibid., p. 12-3. 47 Segundo o autor, “A posição geográfica de Portugal destinava-o à vida marítima, e data da dominação romana o conhecimento de ilhas alongadas ao Ocidente” [João Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial (1500-1800), p. 49]. 48 José Francisco da Rocha Pombo, História do Brasil (Curso superior), p. 13. 49 Ibid., p. 13. 50 João Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial (1500-1800), p. 49. 51 Para Capistrano de Abreu, importante fonte de leitura de Rocha Pombo, as Cruzadas e, principalmente, as viagens comerciais repetidas no Mediterrâneo tiveram um papel significativo na composição de uma nova página na história das navegações portuguesas:

“As viagens repetidas no Mediterrâneo formaram marinheiros peritos; a arte náutica forneceu-lhes embarcações capazes; a invenção da bússola permitiu-lhes fixarem em cartas exatas o aspecto das costas e apartarem-se delas sem receio de se perderem nos plainos oceânicos; desde o século XIV genoveses primeiro e logo depois venezianos estabeleceram navegação regular entre o Mediterrâneo e o Atlântico, com as naus da carreira de flandres, o grande foco industrial em que se fiavam as lãs inglesas.

Colocada a meia distância, Lisboa elevou-se à escala considerável da carreira, graças à excelência do seu porto. O exemplo, o contato, a cobiça, despertaram no povo português o desejo de imitar os estrangeiros; vieram mestres de Gênova; começou-se e consumou-se rápida a aprendizagem; em poucos anos surgiu vigorosa a marinha portuguesa. Os primeiros anos do século XV mostram-na sólida e apta para maiores empresas”[João Capistrano de Abreu, “Descobrimento do Brasil: Povoamento – Evolução social” [1900], in O Descobrimento do Brasil, p. 126]. 52 José Francisco da Rocha Pombo, História do Brasil (Curso superior), p. 14. 53 Ibid., p. 14. 54 Ibid., p. 15. 55 Ibid., p. 15-6. 56 Ibid., p. 16. 57 Ibid., p. 16. 58 Ibid., p. 17. 59 Ibid., p. 17. 60 Vejamos o que o autor escreveu sobre as investigações realizadas por D. João II: “Se protestou contra a divisão do mundo promulgada por Alexandre VI, julgando postergados seus direitos; se mandou alguma expedição clandestina ao Ocidente, como parece verificado; bastaram o aspecto dos naturais e sua barbárie visível, os produtos recolhidos e os países descobertos, tão diferentes de tudo o que os seus emissários vinham de apurar, para não lhe deixarem dúvidas de que a Índia procurada pelos portugueses não se confundia com a Índia achada pelos espanhóis” [João Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial (1500-1800), p. 51].

Tal observação de Capistrano de Abreu ajudou a construir a imagem de uma Coroa portuguesa profundamente consciente dos movimentos no jogo das peças do xadrez imaginário dos mares. O xeque-mate dado pela descoberta de Colombo não significou último movimento de Portugal no jogo. A viagem de Vasco da Gama seria o movimento de peça estratégico e necessário para comprovar que técnica, o conhecimento e a fé estavam do lado dos portugueses. 61 Ibid., p. 51.

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62 José Francisco da Rocha Pombo, História do Brasil (Curso superior), p. 18. 63 Ibid., p. 18. 64 Conferir: José Saramago, A jangada de pedra (Lisboa, Caminho, 1986). 65 José Francisco da Rocha Pombo, História do Brasil (Curso superior), p. 19. 66 Ibid., p. 20. 67 Ibid., p. 22. 68 Ibid., p. 22. 69 Ibid., p. 22-3. 70 Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, 8a ed. (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1951) p. 09. 71 Ibid., p. 09. 72 Ibid., p. 14. 73 Ibid., p. 09. 74 Ibid., p. 09-10. 75 Em Epítome de História do Brasil, Jonathas Serrano apresentou uma imagem semelhante a feita por Joaquim Silva sobre o infante D. Henrique e a Escola de Sagres:

“O mais ilustre dos filhos de D. João I, o Infante D. Henrique, foi quem deu grande impulso às expedições marítimas, com a fundação da chamada Escola de Sagres. De volta de Ceuta, o Infante, a quem ficou o merecido título de ‘Navegador’, tendo deixado a Corte, foi residir no Algarves, na ponta de Sagres, onde se fundou a Vila do Infante. Aí podia estar em trato mais freqüente com os pilotos e marinheiros.

Sagres não foi uma escola na acepção rigorosa da palavra. Era uma espécie de noviciado prático da arte da navegação, escola ‘cujas aulas eram as próprias galés e caravelas’. Sob a direção do Infante foi um centro natural de cultura das ciências matemáticas e astronômicas e o ponto de encontro da marinhagem decidida às explorações ousadas”[Jonathas Serrano, Epítome de História do Brasil, 3a ed. (Rio de Janeiro, F. Briguiet & Cia. Editores, 1941) p. 20]. 76 Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, p. 10. 77 De acordo com João Pandiá Calógeras, importante referência para Joaquim Silva, Portugal, potência com fragilidades, só possuía um caminho a seguir – esconder o segredo das viagens e descobertas:

“Sabedores conscientes de que não poderiam resistir aos golpes de reinos mais fortes, os soberanos de Avis haviam adotado em suas peregrinações atlânticas uma política de constante defesa: o segredo.

Não era lícito publicar mapas, portulanos ou relações de viagem. A ser absolutamente imprescindível pôr por escrito qualquer apontamento, isto se fazia de tal modo que nenhum dado fidedigno pudesse ser aproveitado pelo público. A regra invariável fôra imposta desde o alvorecer do século XV, quando o infante D. Henrique começou a dirigir soberanamente toda a expansão marítima da marcha do comércio do reino de seu ninho feudal de Sagres, escola naval de aprendizado, centro de instruções náuticas e de ciência geográfica, promontório onde assentou o facho de energia e de luz que aclarou o Atlântico inteiro”[João Pandiá Calógeras, Formação Histórica do Brasil, 7a ed (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1967) p. 04]. 78 Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, p. 12-3.

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79 João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), p. 32. 80 Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, p. 17-8. 81 Antonio José Borges Hermida, História do Brasil (5a série) (São Paulo, Companhia Editora Nacional, s.d.) p. 11. 82 Ibid., p. 12. 83 Ibid., p. 12. 84 Ibid., p. 13. 85 Ibid., p. 13. 86 Ibid., p. 14. 87 Ibid., p. 20. 88 Ibid., p. 22. 89 Ibid., p. 23. 90 Sérgio Buarque de Holanda, História do Brasil (Curso Moderno): das origens à Independência. 3a ed. (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1972) p. 10. 91 Ibid., p. 11. 92 No ensaio “O Descobrimento do Brasil – Povoamento do solo – Evolução social”, publicado em 1900, de forma semelhante, Capistrano de Abreu dedicou especial atenção para a questão das rotas comerciais das especiarias do Oriente para a Europa. 93 Sérgio Buarque de Holanda, História do Brasil (Curso Moderno): das origens à Independência, p. 12. 94 Ibid., p. 13. 95 Pandiá Calógeras, ao tratar da lógica da expansão portuguesa para o Atlântico, fez a seguintes considerações: “Orla continental estreita do litoral atlântico da península ibérica, Portugal contava menos de milhão e meio de habitantes, largamente ultrapassados por seus vizinhos e rivais de Castela, competidores ainda das aventuras de navegação” [João Pandiá Calógeras, Formação Histórica do Brasil, p. 04]. 96 Sérgio Buarque de Holanda, História do Brasil (Curso Moderno): das origens à Independência, p. 14. 97 Ibid., p. 14. 98 Ibid., p. 16. 99 Ibid., p. 18. 100 Ibid., p. 18-9. 101 Ibid., p. 26. 102 Ibid., p. 120. 103 Ibid., p. 120. 104 Ibid., p. 120. 105 Este autor anteriormente havia feito uma reflexão sobre as heranças lusitanas na formação da nacionalidade brasileira. Conferir: Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 26a ed. (São Paulo, Companhia das Letras, 1995). 106 Ibid., p. 120-21.

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107 Ibid., p. 121. 108 As contribuições da cultura portuguesa para obra colonial e, principalmente para a formação do patriarcado brasileiro, foram constantemente ressaltados e exemplificados em: Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala, capítulo III – “O colonizador português: antecedentes e predisposições”. Segundo o referido sociólogo,

“O escravocrata terrível que só faltou transportar da África para a América, em navios imundos, que de longe se adivinhavam pela inhaca, a população inteira de negros, foi por outro lado o colonizador europeu que melhor confraternizou com as raças chamadas inferiores. O menos cruel nas relações com os escravos. É verdade que, em grande parte, pela impossibilidade de constituir-se em aristocracia européia nos trópicos: escasseava-lhe para tanto o capital, senão em homens e mulheres brancas. Mas independentemente da falta ou escassez de mulher branca o português sempre pendeu para o contato voluptuoso com mulher exótica. Para o cruzamento e miscigenação. Tendência que parece resultar da plasticidade social, maior no português que em qualquer outro colonizador europeu” [Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala, p. 255]. 109 As principais obras de referência para o manual escolar dos irmãos Piletti eram: Celso Furtado, Formação econômica do Brasil, 8a ed. (São Paulo, Nacional, 1968); Caio Prado Junior, Evolução política do Brasil e outros estudos, 5a ed. (São Paulo, Brasiliense, 1985); História econômica do Brasil, 12a ed. (São Paulo, Brasiliense, 1970); Nelson Werneck Sodré, Formação histórica do Brasil, 5a ed. (São Paulo, Brasiliense, 1970). 110 Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da Pré-História à Independência. 1o grau, 3a ed. (São Paulo, Ática, 1990), p. 34. 111 Ibid., p. 35. 112 Ibid., p. 35. 113 Ibid., p. 36. 114 Ibid., p. 36. 115 As afirmações feitas por Piletti sobre esse momento histórico, em especial sobre a ascensão da burguesia comercial, aproximaram-se do livro de Caio Prado Junior. De acordo com o autor de Evolução política do Brasil e outros estudos, “Não era e não podia o pequeno reino lusitano ser uma potência colonizadora à feição da antiga Grécia. O surto marítimo que enche sua história no séc. XV não resultara do extravasamento de nenhum excesso de população, mas fora apenas provocado por uma burguesia comercial sedenta de lucros, e que não encontrava no reduzido território pátrio satisfação à sua desmedida ambição. A ascensão do fundador da Casa de Avis ao trono português trouxe esta burguesia para um primeiro plano. Fora ela quem, para se livrar da ameaça castelhana e do poder da nobreza, representado pela Rainha Leonor Teles, cingira o mestre de Avis com a Coroa lusitana. Era ela portanto quem devia merecer do novo rei o melhor das suas atenções” [Caio prado Junior, Evolução política do Brasil e outros estudos, p. 11] 116 Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da Pré-História à Independência, p. 36-7. 117 Argumento semelhante pode ser encontrado em João Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial (1500-1800), p. 49. 118 Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da Pré-História à Independência, p. 37. 119 Ibid., p. 37-8. 120 Ibid., p. 38. 121 Ibid., p. 39-40. 122 Ibid., p. 40.

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123 Para construir a imagem da chegada dos portugueses como uma invasão, a obra de Eduardo Galeano provavelmente tenha se constituído numa importante fonte inspiração para o autor. Conferir: Eduardo Galeano, As veias abertas da América Latina, 6a ed. (Rio de Janeiro, Paz & Terra, 1979). 124 Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da Pré-História à Independência, p. 40. 125 Ibid., p. 40. 126 Ibid., p. 40 127 Ibid., p. 40. 128 Ibid., p. 119. 129 Francisco Alencar, Brasil Vivo: Uma nova história da nossa gente (Volume 1). 12e ed. (Petrópolis, RJ, Vozes, 1992) p. 14. 130 Em relação à estrutura social da sociedade européia (em especial, a portuguesa), o autor provavelmente tenha encontrado referências em João Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial (1500-1800), p. 43-45. 131 Francisco Alencar, Brasil Vivo: Uma nova história da nossa gente (Volume 1), p. 14. 132 Ibid., p. 14. 133 Ibid., p. 14. 134 A questão da terra foi amplamente abordada por Caio Prado Junior, em Evolução política do Brasil e outros estudos, p. 11-6. 135 Francisco Alencar, Brasil Vivo: Uma nova história da nossa gente (Volume 1), p. 14. 136 Ibid., p. 15. 137 Ibid., p. 15. 138 Ibid., p. 16. 139 Ibid., p. 17. 140 Ibid., p. 17. 141 A Carta de Pero Vaz de Caminha constituiu-se em importante documento para a construção de interpretações e leituras sobre a descoberta do Brasil, através de livros, manuais escolares, pinturas, filmes e mini-séries. Conferir: Eduardo Victorio Morettin, “Produção e formas de circulação do tema do Descobrimento do Brasil: uma análise de seu percurso e do filme Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro”, in: Revista Brasileira de História (São Paulo, vol. 20, n. 39, 2000) pp. 135-165. 142 Para uma análise das contribuições destes dois autores para a construção das representações sobre o passado colonial brasileiro, conferir: José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil: introdução Metodologia. 3a ed. (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969); José Carlos Reis, As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 2a ed. (Rio de Janeiro, Editora FGV, 1999). 143 Para uma análise sobre a iconografia produzida sobre o Descobrimento do Brasil, conferir: Jorge Coli, “Primeira Missa e invenção da descoberta”, in: Adauto Novaes, A descoberta do homem e do mundo (São Paulo, Companhia das Letras; Brasília, DF, MINC/FUNARTE, 1998) pp. 107-21; Lana Mara de Castro Siman, “Pintando o descobrimento: o ensino de História e o imaginário de adolescentes”, in Inaugurando a História e construindo a nação; discursos e imagens no ensino de História (Belo Horizonte, MG, Autêntica, 2001) pp. 149-70.

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144 Para uma discussão aprofundada sobre o conceito de raça e racismo científico, conferir: Stephen Jay Gould, A falsa medida do homem. 2a ed. (São Paulo, Martins Fontes, 1999) pp. 15-72. 145 O caráter miscigenado do português, explorado por Gilberto Freyre, em Casa-grande & senzala, não foi destacado pelos autores dos manuais escolares de História do Brasil analisados. 146 Para uma análise sobre a criação do discurso da inferioridade dos negros, conferir: Gislene aparecida dos Santos, A invenção do “ser negro”: um percurso das idéias que naturalizaram a inferioridade dos negros (São Paulo, EDUC/FAPESP; Rio de Janeiro, Pallas, 2002). 147 Para uma análise das representações construídas sobre o “outro”, conferir: François Hartog, O espelho de Heródoto: ensaios sobre a representação do outro (Belo Horizonte, MG, Editora da UFMG, 1999). 148 Para uma análise das influências dos cronistas e jesuítas na criação do imaginário brasileiro sobre o Brasil colonial, conferir: Eduardo França Paiva, “De português a mestiço: o imaginário sobre a colonização e sobre o Brasil”, in: in: Inaugurando a História e construindo a nação; discursos e imagens no ensino de História, pp. 23-52. 149 Ao revisar a historiografia oficial e reinterpretar os textos dos cronistas, Guilhermo Giucci descortinou as contradições motivações do período que vai do “descobrimento do Brasil” a 1932. Neste aspecto, o autor teceu as seguintes considerações sobre a famosa tríade escrita por cronista Pero de Magalhães Gandavo, em 1570:

“A ausência de fé, lei e rei compromete, por diversos ângulos, os nativos brasileiros. Os cronistas que apelam para esta fórmula definidora desembocam na barbárie dos naturais. Consolida-se, assim, a imagem de um mundo próprio, exclusivo, autônomo, independente da cosmovisão do narrador e da intervenção dos portugueses. O mito se apodera das relações entre as culturas e se instala poderosamente no espaço dos preconceitos. Um mosaico de palavras se confunde com uma realidade indócil, determinada pela animalidade. Gabriel Soares de Sousa nota a ausência das letras F, L e R entre os tupinambás da Bahia e reitera a falta de fé, lei e rei. Tal princípio anárquico é coerente com a atribuição de qualidades degradantes, que completam o quadro da animalidade americana. O desconhecimento dos benefícios do cristianismo e da utilidade dos decretos e figuras repressivas leva à obrigação de domesticar, uma tarefa missionária e civilizadora. Belicosidade, vingança, luxúria, poligamia, canibalismo, desamor e homossexualismo são as características negativas que o cronista pretende eliminar pela integração dos bárbaros na divisão do trabalho. (...)

Frei Vicente de Salvador comparte plenamente a concepção que Soares de Souza tem dos nativos, embora a requinte com uma crítica severa aos colonizadores portugueses. Por trás da ausência de fé, lei e rei, delineia-se novamente a ameaça à necessidade do poder absoluto e, sorrateiramente, à existência de Deus.” [Guilhermo Giucci, Sem fé, lei ou rei: Brasil 1500-1532 (Rio de Janeiro, Rocco, 1993) p. 208-09]. 150 Patrícia de Santana Pinho Chagas, “Em busca da Mama África: Identidade africana, cultura negra e política branca na Bahia”, Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Campinas, SP, IFCH/UNICAMP (2001) p. 86. 151 Segundo Tzvetan Todorov, a capacidade de Cortez em buscar mecanismos de comunicação com as populações indígenas, ao compreender a língua e o funcionamento da sua sociedade, possibilitou o entendimento do “outro” – o índio – e facilitou a dominação do império Asteca. Conferir: Tzvetan Todorov, A Conquista da América: a questão do outro (São Paulo, Martins Fontes, 1996).

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________________________________________Terceiro Capítulo

IMAGENS DO NEGRO

“Não há dúvida que o Brasil teria tido um desenvolvimento muito diferente sem a introdução dos

escravos negros. Se para melhor ou para pior, este problema se resolverá para o historiador, depois

de ter tido ocasião de ponderar todas as influências, que tiveram os escravos africanos no

desenvolvimento civil, moral e político da presente população.

Mas, no atual estado das coisas, mister é indagar a condição dos negros importados, seus

costumes, suas opiniões civis, seus conhecimentos naturais, preconceitos e superstições, os defeitos e

virtudes próprias à sua raça em geral, etc., se demonstrar quisermos como tudo reagiu sobre o

Brasil”.

Karl Friedrich Philipp von Martius,

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“Como se deve escrever a história do Brasil” [1844].

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___________________________________ Imagens (didáticas) da “raça preta ou etiópica”

Ao tratar da raça africana ou etíope em suas relações com a História do Brasil, Karl Friedrich Philipp von

Martius, vencedor do concurso para um plano de escrita da história antiga e moderna do Brasil promovido

pelo IHGB, teceu breves considerações, ao contrário do que havia feito em relação ao indígena. Em

relação ao negro africano, ele nos ofereceu poucos dados e propôs algumas poucas questões. Os

questionamentos lançados pelo naturalista bávaro concentravam-se praticamente em torno do tráfico de

escravos, os seus hábitos e costumes, os defeitos e virtudes próprios da sua raça e suas influências no

caráter do português, o elemento colonizador:

“Sendo a África visitada pelos portugueses antes da descoberta do Brasil, e tirando eles,

deste país grandes vantagens comerciais, é fora de dúvida que já naquele período influía

nos costumes o desenvolvimento político de Portugal. Por este motivo devemos analisar

as circunstâncias das colônias portuguesas na África, de todas as quais se trafica em

escravatura para o Brasil, dever-se-á mostrar que movimento imprimiam na indústria,

agricultura e o comércio das colônias africanas para com as do Brasil, e vice-versa. De

sumo interesse são as questões sobre o estado primitivo das feitorais portuguesas, tanto no

litoral como no interior da África, e da organização do tráfico de negros. Estas

circunstâncias são quase inteiramente desconhecidas na Europa. Só ultimamente foram

publicadas notícias sobre este assunto pelos ingleses; contudo parecem representadas em

grande parte de um só lado, nem fornecem esclarecimentos suficientes, sobre o manejo e

procedimento do tráfico dos escravos no interior do país. E se observarmos pela outra

parte que a literatura portuguesa oferece muito pouco, o que se refere a História Universal

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do tráfico da escravatura, o autor prestaria um serviço muito relevante se na História do

Brasil tratasse cabal e extensamente este assunto. De si mesmo oferecem-se então muitas

comparações sobre a índole, os costumes e usos entre os negros e os índios, que sem

dúvida contribuirão para o aumento do interesse que nos oferecerá a obra. Enfim será

conveniente indicar qual a influência exercida pelo tráfico de negros e suas diferentes fases

sobre o caráter português no próprio Portugal”1.

A questão chave sobre este elemento formador da nacionalidade brasileira, para este viajante bávaro,

era se o Brasil teria tido um desenvolvimento diferente sem a introdução dos negros escravos? Esta era a

pergunta que deveria reger o ofício do historiador preocupado em escrever a história do Brasil. Esta

questão iria atormentar gerações de historiadores e outros pensadores ao longo da história da escrita da

História do Brasil2.

Em História geral do Brasil, o historiador e diplomata Francisco Adolfo de Varnhagen, dedicou aos

negros poucas páginas, assim como von Martius em sua monografia. Para o Visconde de Porto Seguro, os

traficantes negreiros fizeram uma má ação ao Brasil entulhando as suas cidades do litoral e engenhos de

negrarias. Na sua leitura, como a colonização africana teve uma grande entrada no Brasil, podendo ser

considerada um dos elementos da sua população, “julgamos do nosso dever consagrar algumas linhas neste

lugar a tratar da origem desta gente, a cujo vigoroso braço deve o Brasil principalmente os trabalhos do

fabrico do açúcar, e modernamente os da cultura do café”. Entretanto, rogou o autor aos céus,

“fazemos votos para que chegue um dia em que as cores de tal modo se combinem que

venham desaparecer totalmente no nosso povo os característicos da origem africana, e por

conseguinte a acusação da procedência de uma geração, cujos troncos no Brasil vieram

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conduzidos em ferros do continente fronteiro, e sofreram os grilhões da escravidão,

embora talvez com mais suavidade do que nenhum outro país da América (...)”3.

Para Varnhagen, ao passar tais “gentes” ao Brasil, como escravizados, na verdade estes melhoraram

de sorte. Embora a escravidão fosse injusta, por não ser filantrópica, e fosse uma ofensa à humanidade, por

ser um ataque ao indivíduo, à família e ao Estado de onde foram arrancados, os negros, ressaltou o autor,

melhoraram de sorte ao entrar em contato com gente mais polida, com a bandeira da civilização e a cruz do

cristianismo. Por esse motivo, os negros da América eram melhores do que os africanos. Dessa forma, “a

raça africana tem na América produzido mais homens prestimosos e até notáveis, do que no Continente

donde é oriunda”4. Eles se destacaram pela força física, o gênio alegre para suportar a sua sina, pela

capacidade de trabalho.

Quanto à origem dos cativos trazidos para o Brasil, o autor avisou que havia poucos dados para

montar um catálogo extenso das diferentes nações de “raça preta”, que os colonos preferiram nesta ou

naquela época, e para esta ou aquela região. Mesmo assim, podia-se afirmar

“que a importação dos colonos pretos para o Brasil, feita pelos traficantes, teve lugar de

todas as nações não só do litoral da África que decorre desde o Cabo Verde para o sul, e

ainda além do Cabo da boa Esperança, nos territórios e costas de Moçambique; como

também não menos de outras dos sertões que com elas estavam em guerra, e às quais

faziam muitos prisioneiros, sem os matarem. Os mais conhecidos do Brasil eram

provindos de Guiné (em cujo número só compreendiam berberes, jalofos, felupos,

mandingas), do Congo, de Moçambique, e da costa da Mina, donde eram o maior número

dos que entravam na Bahia, que ficava fronteira e com mui fácil navegação; motivo por

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que nesta cidade tantos escravos aprendiam menos o português, entendendo-se uns com

outros em nagô”5.

Nessas nações, segundo Varnhagen, a idéia de liberdade individual não estava assegurada, uma vez

que os mais fortes vendiam os mais fracos, os pais os filhos e os vencedores os inimigos submetidos e, por

esta razão, a escravidão no Brasil tornou-se um alento para os africanos.

A visão do Brasil como lugar de prática de escravidão amena por parte dos senhores ocuparia o

imaginário de intelectuais abolicionistas tanto, brasileiros como estrangeiros, em especial norte-americanos,

ao longo do século XIX6. O desdobramento desta visão far-se-ia presente na obra do sociólogo

pernambucano Gilberto Freyre, a partir da década de 19307. A idéia de escravidão amena, suave e humana

no Brasil colonial esteve tão presente no discurso deste autor que, em Novo mundo nos trópicos, chegou ao

ponto de fazer a seguinte consideração:

“À vista de todas essas evidências não há como duvidar de quanto o escravo nos engenhos

do Brasil era, de modo geral, bem tratado, e a sua sorte realmente menos miserável do que

a dos trabalhadores europeus que, na Europa ocidental da primeira metade do século XIX,

não tinham o nome de escravos”8.

Quanto às práticas religiosas dos “povos negros”, Varnhagen comentou que havia em alguns idéias

de islamismo, e até já de cristianismo, em virtude da vizinhança dos estabelecimentos e feitorias dos

europeus. Todavia, a maioria não passava de “gentios ou idólatras” porque “andavam nus, lavavam-se a

miúdo, e, muito deles, em pequenos, golpeavam a cara por distintivo de nação”. Eles adoravam ídolos,

outros animais, depositavam sua fé em calundus, quigilas e feitiços, realizavam sacrifícios e oferendas aos

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que possuíam muito “charlatanismo para se inculcarem por seus sacerdotes”9. Tais costumes horrorizavam

Varnhagen, criado dentro dos preceitos da civilização e da fé cristã.

Ao Brasil, acusou taxativamente, “essa gente” fez mal com seus costumes pervertidos, seus hábitos

menos decorosos, despudorados. Os escravos apresentavam o coração endurecido pois viviam alheios à

ternura da família. A escravidão, nesta perspectiva, trouxe sérios inconvenientes: abusos, crueldades quanto

ao vestuário, alimentação e bebida.

À pergunta lançada por von Martius sobre se o Brasil teria tido um desenvolvimento diferente, ou

seja, melhor, sem a introdução dos negros escravos, Varnhagen respondeu enfaticamente de forma

positiva. O desenvolvimento do Brasil teria sido outro sem a presença dessa “gente”. A colonização

africana da colônia constituiu um erro, na sua opinião. No país, havia perpetuado um regime de trabalho

servil que ele nem conseguia qualificar, mas de que não se podia abrir mão, sem causar grandes males para

a nação. Para o autor, o índio deveria ter sido usado como mão-de-obra nas lavouras e engenhos. Neste

aspecto, História geral do Brasil teceu críticas e ataques aos jesuítas e defendeu a ação dos bandeirantes.

Varnhagen acusou a falsa filantropia dos missionários da Companhia de Jesus de impedir a escravidão

vermelha. Os bandeirantes paulistas, na sua opinião, que caçavam os “gentios” pelo sertão foram menos

nocivos ao Brasil do que os traficantes de escravos negros e os jesuítas.

A filantropia dos jesuítas, rechaçou o autor, em relação ao indígena era mais discurso (pregação) do

que exemplo; eles próprios fizeram uso do índio como escravo em suas reduções. Concluiu, de maneira

irritada, que a sua proteção ao elemento da terra tinha deixado a colônia à míngua de braços para o

trabalho, forçando a importação de africanos.

Ainda quanto à introdução do escravo africano no Brasil colonial, destacou Varnhagen dois motivos:

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“em primeiro lugar como fica dito, de se haver promulgado como ilegal a escravatura

índia, com raras exceções, das quais se os poderosos abusavam, outros se receavam, só

para não virem a achar-se no caso de ter que pleitear o seu direito. Em segundo lugar

proveio de se haver já nas Antilhas conhecido por experiência que os africanos eram mais

fortes, e resistiam mais ao trabalho aturado do sol que os índios”10.

Varnhagen fez uma outra referência elogiosa à atuação dos bandeirantes quando tratou da luta contra

Palmares, um foco de quilombolas na região da serra da Barriga, em Alagoas. A obra de conquista e

sujeição dos Palmares foi atividade de “largos anos, e de não poucos trabalhos e fadigas”11.

Para o Visconde de Porto Seguro, um fiel súdito da monarquia de Dom Pedro II, que os mocambos

e quilombolas dos Palmares vieram a formar seriamente um ou mais Estados não era digno de se pôr em

dúvida, mas havia exageros aos que

“os apresentam como organizados em república constituída com leis especiais, e

subordinados a um chefe que denominavam Zombi, expressão equivalente à com que na

língua conguesa se designa Deus. Acerca do verdadeiro distrito dos palmares, que

ocupavam os sublevados há várias opiniões (...)”12.

O bandeirante paulista Domingos Jorge Velho foi retratado no texto de Varnhagen “como muito

conhecedor das artes ardis das guerras do mato no Brasil”13, pelas campanhas que realizou nos sertões da

colônia contra os índios. A campanha contra Palmares realizada por este bandeirante era abordada como

um feito heróico paulista digno de nota e lamentava-se o fato de não ter havido um cronista que o

perpetuasse num relato. Além de integrar a colônia, os bandeirantes tiveram a missão de conter rebeliões

escravas como a do Quilombo dos Palmares.

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Portanto, podemos perceber que Varnhagen não considerava que a presença da raça negra tivesse

sido boa, favorável à colonização portuguesa no Brasil. Talvez, segundo o autor, esta poderia ter sido

evitada, ou com o abandono da cultura do açúcar, ou então com o trabalho de brancos e índios entre cinco

e nove horas da manhã e das quatro às seis horas da tarde, descansando ou empregando em casa as horas

mais quentes do dia, como faziam os índios antes do desembarque dos europeus. Um projeto colonial (e

nacional) sem negros seria o ideal para o autor de História geral do Brasil.

Contudo, ressaltou Varnhagen, se fosse inevitável tal opção de força de trabalho, que estes viessem

não na condição de escravos romanos, como objeto venal, bens móveis, e sim na condição de servos,

fixando-se o negro com sua família e dando-se o primeiro passo para a sua emancipação. De acordo com

José Carlos Reis, Varnhagen acreditava que essa atitude teria

“evitado o embotamento, no escravo, dos sentimentos mais ternos da humanidade, ao

separar pais e filhos, maridos e esposas, amigos de infância. Nessa condição, não haveria

como esperar deles nobres sentimentos, sobretudo em relação à pátria”14.

As proposições lançadas por von Martius e Varnhagen sobre o elemento negro e a escravidão

constituíram uma ordem discursiva para a escrita da sua história em livros e manuais escolares, a partir da

segunda metade do século XIX. Temáticas como as justificativas para a escravidão africana, o tráfico

negreiro, o cotidiano do cativeiro, as resistências, os hábitos e costumes, as particularidades da escravidão

brasileira e as influências deste elemento na formação da nacionalidade têm sido privilegiadas pelos autores

na composição das imagens do negro, por exemplo, em seus manuais escolares. E, neste caso também,

como analisaremos neste capítulo, os autores, dentro de suas particularidades e contextos, não fugiram ao

roteiro apresentado por estes intérpretes do Brasil do século XIX.

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____________________________________________________Joaquim Manuel de Macedo

Nas Lições de História do Brasil para o uso das escolas de instrucção primaria, do professor Joaquim Manuel de

Macedo, em nenhum momento a escravidão foi tratada. Embora para o autor a escravidão africana fosse

uma grande infelicidade nacional, o assunto era extremamente ruinoso. Ela comprometia a Coroa e a nação

no concerto das civilizações, mas isso só era afirmado por ele em discurso no IHGB, na literatura e

opiniões jornalísticas.

A temática da escravidão, tão indigesta, ganhou espaço na escrita de Macedo com maior relevância

no livro As vítimas-algozes – quadros da escravidão, publicado em 1869. Nesta obra, o autor deu vazão ao seu

posicionamento contrário à escravidão15. Contudo, apresentou tese emancipacionista com cautela, tendo

em vista a possibilidade de criar atritos e confrontos.

Em As vítimas-algozes, diferentemente do seu manual escolar, Macedo rompeu o silêncio e marcou

com ferro em brasa sua opinião desfavorável à escravidão praticada no Brasil de seu tempo. Para ele, na

abertura do livro, não se eliminava um cancro sem sofrimento. Na óptica de um Macedo, formado em

Medicina pela Faculdade do Rio de Janeiro, a escravidão era um “cancro social”, uma doença que tomou

conta da sociedade nacional. Ela impregnou os costumes como se fosse uma “árvore venenosa plantada no

Brasil pelos primeiros colonizadores”16. E prosseguiu afirmando que esta era

“fonte de desmoralização, de vícios e de crimes, é ainda assim instrumento de riqueza

agrícola, manancial do trabalho dos campos, dependência de inumeráveis interesses,

imenso o capital que representa a fortuna de milhares de proprietários, e portanto a

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escravidão para ser abolida fará em seus últimos arrancos de monstro cruelíssima

despedida.

A emancipação imediata e absoluta dos escravos, que aliás pode vir a ser um fato

indeclinável e súbito na hipótese de adiamento teimoso do problema, e provocador do

ressentimento do mundo, seria louco arrojo que poria em convulsão o país, em desordem

descomunal e em soçobro a riqueza particular e pública, em miséria o povo, em bancarrota

o Estado.

A emancipação gradual iniciada pelo ventre livre dos escravos, e completada por meios

indiretos no correr de prazo não muito longo, e diretos no fim desse prazo com

indenização garantida aos senhores, é o conselho da prudência e o recurso providente dos

proprietários.

Ainda assim o costume e o interesse do senhor hão de disputar ao Estado a opressão e o

domínio do escravo. É explicável a oposição, é natural a repugnância que aparece no

campo invadido ao princípio que invade: é a dor que faz gemer na extração do cancro”17.

Macedo, militante do Partido Liberal, consciente da depravação gerada pela escravidão, foi cuidadoso

na sua escrita para orientar os senhores de escravos a aderirem à sua causa, ou seja, em convencê-los de

que estava em seus próprios interesses auxiliar o Estado imperial na imensa obra da emancipação. Sua

cautela explicava-se pelo receio do Brasil regressar aos tempos regenciais, onde reinava o medo, a anarquia

e as lutas intestinas destruidoras da unidade da pátria. Ele desejava rapidez na extração do cancro, mas

esperava que a dor gerada não fosse tão insuportável que provocasse a ira e a revolta do paciente, no caso a

elite proprietária nacional.

Para criar no seu leitor a aceitação da idéia da emancipação como uma necessidade vital para o futuro

do Brasil, Macedo, escrevendo em 1869, em meio a discussões acaloradas em torno da escravidão e do seu

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fim, ao crescimento das fugas, furtos e crimes cativos contra proprietários e feitores, a ameaças de cisões

no interior da própria classe senhorial, construiu um perfil assustador para o escravo18.

Para Flora Süssekind, num estudo introdutório para a 3a edição, a imagem aterrorizante do escravo

esboçada por Macedo era um misto de tigre e serpente, de vítima e algoz, capaz de atacar quando menos se

esperava:

“Quando os senhores estão dormindo, como em “Simeão – o crioulo”; envenenando o

café e as plantações do fazendeiro com raízes desconhecidas, como em “Pai-Raiol – o

feiticeiro”; minando a “candura” da inexperiente sinhá-moça, no seu próprio quarto,

como em “Lucinda – a mucama”. Transformam nos três casos, e em movimento

sincronizado, escravos em algozes e senhores em vítimas”19.

De um lado, o “perigo negro”20, de outro, a possível divisão na classe senhorial: o sentimento de

medo era o eixo dos “quadros exemplares” apresentados nas histórias relatadas pelo escritor

emancipacionista. A massa negra, como se percebia nas páginas do seu livro, vinha escurecer as águas

cristalinas do grande rio da civilização brasileira. O clima de medo criado por suas palavras em seu leitor-

senhor estava carregado de terminologias negativas e pesadas, com ênfase na traição e na dissimulação

como traços inerentes ao escravo e na ingenuidade e credulidade como marcas registradas dos fazendeiros

e proprietários de escravos. Estas imagens, associadas ao recurso melodramático, vieram com um único

objetivo declarado desde as primeiras linhas do Prólogo: a defesa da classe proprietária. Uma defesa que

advogava a necessidade desta classe decretar por ela mesma a emancipação, antes que tal pudesse se

suceder por meios mais cruentos, a exemplo da guerra civil vivenciada pelos Estados Unidos, para não

mencionar a revolução dos negros no Haiti21. Macedo temia que a “nefasta influência” de tais “vítimas-

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algozes” e de ameaçadoras senzalas pudesse macular de modo irreparável casas-grandes e sobrados

brancos. Em suma, sintetizou Süssekind:

“Todo o livro é, na verdade, uma tentativa de afirmar que, sob as histórias de Simeão, Pai-

Raiol e Lucinda, manifesta-se uma única interpretação todo-poderosa: a de que a

escravidão faz vítimas-algozes e deve ser gradualmente extinta, sem prejuízo para os

grandes proprietários de cativos. Todo o livro repete, em três versões, essa mesma idéia.

Idéia que precede a própria construção narrativa das histórias e, de certa maneira, chega

mesmo a tomar o seu lugar”22.

O elemento negro, à semelhança do que aconteceu nas obras de von Martius e Varnhagen, apareceu

poucas vezes nas páginas do manual escolar de Macedo. Uma de suas aparições ocorreu na figura de

Henrique Dias, como herói na luta de todos “portugueses e brasileiros” contra os invasores holandeses23.

Fora deste momento, só houve referência significativa à presença negra no Brasil nos tempos coloniais no

tópico sobre Palmares.

Na vigésima quinta lição, um dos assuntos tratados foi a “Destruição de Palmares”. Macedo, sobre

este fato, privilegiou os instantes finais dos quilombos que apareceram ao longo das guerras holandesas, na

região da Serra da Barriga, em Alagoas. Não teve a preocupação em descrever e comentar os quilombos

por dentro como faria Rocha Pombo, décadas mais tarde, em sua História do Brasil (Curso superior).

A invasão de Pernambuco pelos holandeses tinha desorganizado fazendas e propriedades e os

escravos, aproveitando-se da confusão armada, “foram acoutar-se nas faldas da serra da Barriga e

provavelmente em outras matas”24. Tantos foram os fugidos que chegaram a alcançar a marca de alguns

mil, escreveu Macedo.

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No manual adotado para a escola secundária, o autor teceu insinuações sobre a possibilidade deles

terem constituído uma espécie de república. Contudo, tal insinuação serviu para afirmar que qualquer

tratamento dos quilombos com uma história romanesca de instituições, costumes e tendências generosas

não passaria de licenças poéticas. Em síntese, na sua opinião, uma “república romanesca” no sertão das

Alagoas, no século XVII, nada mais era que criação da imaginação25.

Em relação ao numero de quilombolas, Macedo observou que talvez até trinta mil escravos fugitivos,

desertores e criminosos se avultavam ameaçadores, zombando do governo da capitania que os não podia

destruir. No discurso didático macediano, o mundo daqueles que lá viviam estava traçado e à espera de um

único gesto. Não havia outro caminho senão o da destruição.

Os quilombolas, segundo o autor, não cresciam sozinhos, pois os habitantes das regiões próximas

davam guarida aos fugitivos e aos criminosos, não por simpatia à causa, mas por necessidade da sua própria

segurança como homens livres. Eram proprietários, súditos da Coroa portuguesa; contudo, não podiam

sofrer acusações de apoiar o inimigo, porque na realidade estavam na condição de reféns. Aqui o tema do

medo reaparece no texto do Macedo. Embora remoto, preso ao passado colonial, este sentimento se fazia

(se faz) presente, na sua leitura, nas relações entre senhores e escravos. No caso do passado, a ameaça

estava nas fugas e nos quilombos. No presente em que escrevia “Dr. Macedo”, o medo estava também no

interior das próprias fazendas26.

Para Ciro Bandeira de Melo, ele não fugiu aos dramas do seu tempo, ao tratar da temática da revoltas

escravas na história do Brasil colonial:

“Macedo escreve na segunda metade do século XIX. A escravidão tardava a acabar no

Brasil. Tantos exemplos maléficos tinham acontecido ao longo do correr do século XIX,

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como a questão da revolta haitiana atormentando sempre com o temor de uma

haitinização do Brasil”27.

Se aqui nesta referência do manual escolar o quilombo de Palmares apareceu como um perigo do

passado remoto, só para lembrar o que já aconteceu, no livro As vítimas-algozes já se podia remeter a um

Toussaint-Louverture, o libertador do Haiti que estava mergulhado em revoltas, lembrando uma ameaça

próxima à memória de Macedo.

Após várias tentativas frustradas das autoridades pernambucanas, relatou Macedo, o paulista

Domingos Jorge Velho apresentou-se e deu início aos combates, tendo em vista as cláusulas que lhe

interessavam, por exemplo, a que doava, como sesmarias, as terras que se fossem submetendo aos

vencedores dos quilombolas; a que dava aos mesmos a propriedade dos escravos que fossem aprisionados,

sob a obrigação de serem levados para fora da capitania os que tivessem mais de sete anos, sendo perdoada

a morte aos que não fossem primeiros cabeças e a que garantia aos chefes e oficiais quatro hábitos das três

ordens militares. Tais garantias oferecidas ao bandeirante mostravam como a questão de Palmares foi

importante para o governo colonial, sendo imperativa a sua destruição.

Ao narrar as operações de ataque, Macedo, sem fugir das orientações do mestre Varnhagen,

ressaltava o valor dos paulistas e a valentia dos atacados e, após muita luta, a vitória da ordem. Quanto aos

líderes do quilombo, entre eles Zumbi, o autor anotou que eles preferiram a morte à escravidão, atirando-

se do alto de um penhasco28.

Nos seus manuais escolares, Macedo resumiu a este evento à presença do negro na memória nacional

a ser ensinada nos bancos escolares. Em relação ao negro, como parte formadora do povo brasileiro, o

autor optou pelo silêncio. Macedo era contra a escravidão, embora não tivesse escrito sobre o assunto uma

linha no seu manual escolar. Não fez qualquer nota sobre o elemento da raça negra como co-partícipe na

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construção da nação brasileira porque sua preocupação era definir os foros de civilização que a Monarquia

de Dom Pedro II carregava e o negro não era passível de tal assimilação. Ele estava fora da encenação

monumental do ato de formação da nacionalidade brasileira no texto didático de Macedo.

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__________________________________________________________________João Ribeiro

Ao escrever sobre o negro e escravidão em sua História do Brasil (Curso Superior), professor João Ribeiro

vivia num momento diferente da história política e social do país. Seu manual escolar foi publicado no

período republicano e pós-abolição. O problema já não era a escravidão, mas o que fazer com os ex-

escravos, como construir uma identidade nacional de um povo mestiço, e como fazer este povo encontrar-

se consigo mesmo dentro da constelação do novo regime.

João Ribeiro, estudioso de antropologia e ligado ao grupo da Escola de Recife com influências

alemãs, tratou em dois itens da questão da escravidão africana, sendo que em outros lugares ela aparecia

pelo sangue negro como componente da formação social e cultural do país29. O primeiro tratamento do

tema aconteceu no sexto capítulo (“A formação do Brasil”).

Nesta parte, o autor apresentou a escravidão negra como um fato já conhecido dos europeus e

praticado pelos portugueses desde os primeiros descobrimentos pelo continente africano, antes, portanto,

do descobrimento do Brasil:

“A escravidão negra começou com os descobrimentos portugueses na África. Foi um

português, Gilianes, o primeiro que aprisionou nas Canárias alguns homens, que

escravizou e trouxe a vende-los na Europa; o príncipe Henrique, estranhando essa crueza,

mandou que o aventureiro os restituísse à pátria donde foram roubados. A ousadia do

pirata, porém, foi logo despertando a cobiça de outros; a lúgubre aventura encontrou

defensores e foi logo largamente imitada. Em 1442, Antão Gonçalves aprisionou vários

mouros da Costa do Ouro, e só os restituiu e resgatou a troca de escravos negros, em

número de dez, os primeiros que lavraram o solo europeu”30.

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Para legitimar a prática da escravização, segundo o autor, prevaleceria o princípio romano do jure

gentium, utilizado contra os bárbaros. Mas, no caso dos envolvidos no tráfico negreiro, houve também o uso

do fundamento religioso: era o castigo bíblico, a maldição lançada por Noé contra Cam, seu filho,

amaldiçoando seus descendentes (povoadores da África) à escravidão, como se podia verificar na leitura de

Gênese 9, 20-731.

A introdução do escravo negro na América data de 1501, a pedido de Nicolau Ovando de

Hispaniola. De acordo com João Ribeiro, tal experiência demonstrou o quanto se devia preferir o elemento

negro “ativo e submisso” ao indígena “indomável e indolente”:

“Os próprios teólogos, defendendo com Las Casas a liberdade dos índios, ao mesmo

tempo eram indiferentes ou aconselhavam a escravidão africana.

Pesava sobre a desditosa raça o sinete bíblico da maldição de Cam”32.

No Brasil colonial, o escravo negro teria sido introduzido no tempo dos primeiros estabelecimentos

produtivos no litoral. A escravidão vermelha precedeu decerto à negra; e daquela, relatou o autor, “se tem

referência desde 1531, quando Martin Afonso concedeu a Pero de Góis permissão para levar à Europa

dezessete escravos índios”; mas desde cedo nas capitanias de São Vicente e em Pernambuco foram

escravos negros que trabalhavam na agricultura33.

Ao se contrapor ao escravo indígena, “maus agricultores”34, e na zona da costa ocidental açucareira, o

negro, adaptados desde a África nestes trabalhos, tornou-se o preferido como mão-de-obra na colônia. Na

leitura de João Ribeiro, como escravos, os índios

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“serviam melhor de canoeiros, soldados e agentes da indústria extrativa. Por isso foram

sempre caçados, apesar da lei, no extremo Norte ou no sertão do Sul. Na zona marítima

oriental era preferível o escravo negro. De resto, os índios tinham seus defensores nos

jesuítas e no próprio governo del-rei; as restrições que cerceavam a escravização do

indígena tornavam a propriedade litigiosa e, pois, sem grande valor”35.

Para João Ribeiro, a escravidão africana, reconhecida legalmente e protegida, transformou-se na

principal e na mais útil; através dela se instituíram as lavouras canavieiras e os “vergéis e pomares das

primeiras povoações”36.

A interpretação sobre a substituição da escravidão vermelha pela negra apresentada pelo autor tem

sido muito comum nos manuais escolares de História do Brasil produzidos para as escolas de educação de

crianças e jovens ainda em dias mais recentes.

Em relação à escravidão negra, João Ribeiro não realizou uma clara denúncia, sendo esta encarada

como um fato natural dos processos econômicos dos primeiros séculos da colonização do continente

americano, e resultado da superioridade de uma raça sobre as outras consoante as doutrinas do final do

século XIX sobre os estudos raciais37.

Os portugueses, os “que em mais larga escala exerciam o tráfico de escravos”, explorando vastas

regiões da África, dominaram vários povos negros, que são definidos por suas origens38. João Ribeiro, com

base nas informações colhidas por Varnhagen, localizou as proveniências dos vários povos negros da

África. Ao efetuar a sua classificação, o autor de História do Brasil (Curso Superior) indicou as tendências de

cada uma, a índole, a docilidade ou não e a que serviços eram destinados39:

“Os mais conhecidos dos negros no Brasil, diz Varnhagen, eram os provindos de Guiné

(em cujo número se compreendiam berberes, jalofos, felupos, mandingas), do congo, de

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Moçambique e da Costa de mina donde eram o maior número dos que entravam na Bahia, que

ficava fronteira e de mui fácil navegação; motivo por que nesta cidade tantos escravos

aprendiam menos português, entendendo-se uns com outros em nagô (língua ioruba)”40.

Quanto ao comércio de escravos, João Ribeiro notou que os traficantes, por seu turno, faziam uso

das próprias tradições escravistas e conflitos raciais da África para construírem seu tráfico nos negreiros. A

escravidão, escreveu o autor, era prática comum entre as nações negras, aplicada em quase todos os delitos.

O pai podia vender o filho, o juiz condenar qualquer um à escravidão, o rei escravizar vassalos e nas

guerras escravizar a todos os vencidos, facilitando a expansão da escravidão no continente americano pelo

fato de serem os próprios chefes negros os “produtores” de escravos. Aos traficantes só custava, neste

contexto, provocar as guerras intertribais:

“Desde logo a cobiça dos pais, o arbítrio dos reis e dos sovas, e o direito da guerra

convulsionou como um terremoto todo sertão negro; as famílias se desmembram, as rixas

se multiplicam, as guerras se ateiam, a caça humana se institui; o resgate dos negreiros, cujo

rastilho eles acendiam de longe na foz deserta dos rios ou à beira do Oceano”41.

Ele afirmou ainda que os traficantes se eximiam da infamidade do comércio de escravos dizendo ser

a escravidão mais um negócio africano do que deles. Em seguida a esta exposição que se não justificava,

explicava a facilidade da expansão da escravidão, o autor descreveu de maneira trágica o percurso dos

escravos negros do local onde foram capturados até as viagens de travessia do Atlântico, comentando

sobre a mortandade nos navios ocasionadas por maltratos e doenças, entre as quais o banzo, “moléstia

estranha”, uma espécie de “saudade da pátria, (...) loucura nostálgica ou suicídio forçado”42. Embarcados

nos navios, o autor passou a descrever dramaticamente a situação dos escravos negros:

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“No navio amontoam-se quatrocentos, quinhentos, no porão. De dia sobem à coberta

para o banho e para dançar, de cada vez uma porção de negros, e logo depois descem ao

porão escuro, onde são guardados e vigiados.

Esses hábitos são ordenados em vista da higiene e interesse privado. No porá, a

mortalidade é grande; na coberta, o risco de perder os que se atirariam ao mar, é maior.

Por isso instituem essas danças lúgubres para arejar a carniça e distender-lhes os membros

que o torpor e a melancolia paralisam. Em 1569, Fr. Tomás de Mercado descrevia já as

cenas horripilantes do tráfico, o tratamento de muito mais crueldade que o que usam os

turcos com os cristãos cativos.

A esse duro trato escapam as mulheres e crianças que, por não inspirarem suspeita, viajam

na coberta e por isso é dessas menor a mortandade.

A bordo, a luta é pelo ar, pelo espaço, pela alimentação que é nula e corrompida pelos

dejetos.

Amontoados uns quase sobre outros, sem a luz solar, sem roupas, sem o mais mesquinho

conforto, é maravilha que escapem à morte”43.

Para reforçar a sua crítica ao infame comércio, João Ribeiro, de passado abolicionista, citou em nota

de pé de página os números da mortandade durante a travessia. No século XVI, relatou a partir de Fr.

Thomas de Mercado, “uma nau de Cabo Verde para o México levou quinhentos escravos”, após uma noite

amanheceram mortos cento e vinte e antes de ancorarem no destino final havia morrido quase trezentos44.

O autor pintou ainda o quadro do tráfico negreiro recorrendo às cores indeléveis do poeta dos escravos,

Castro Alves45.

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A travessia do Atlântico, no texto didático ribeiriano, foi descrita como um dos momentos mais

tenebrosos vividos pelo negro. Nas páginas restantes, o autor deixou claro o seu entendimento sobre a

escravidão para o leitor-aluno. Ao chegar ao Brasil, destacava João Ribeiro, há uma mudança radical no

tratamento dado aos escravos. É significativo reproduzir uma parte do texto deste manual escolar que

tratava de peculiaridade do regime de escravidão na colônia portuguesa na América, tendo em vista a

imagem que se tornou recorrente na tradição didática de escrita da história do Brasil até meados do século

passado, em autores como Jonathas Serrano e Joaquim Silva, ou seja, a da amenidade, da brandura das

relações entre senhor e escravo. Vejamos o que João Ribeiro escreveu para a memória da tradição didática:

“Força é confessar que de toda que de toda essa jornada de horrores a escravidão no Brasil

é o epílogo desejado para os escravos. Daqui em diante, a vida dos negros regulariza-se, a

saúde refaz-se e com ela a alegria da vida e a gratidão pelos novos senhores, que melhores

eram que os da África e os do mar. Sem dúvida alguma, ainda muitos dos horrores e

crimes ressurgem no cativeiro novo, e aqui e ali, não falham, entre senhores cruéis, rigores

monstruosos.

A escravidão, porém, sempre era corrigida entre nós pela humanidade e pela filantropia. Se

o negros não tiveram, como os índios, em favor deles, a voz onipotente da igreja, tiveram

ao menos o espírito cristão e a caridade própria da nossa raça”46.

O autor realizou uma longa descrição da filantropia brasileira em relação ao escravo negro, pautada

por bons costumes, religiosidade, tradições benfazejas, ausência de Código Negro, alforrias na pia etc47.

Assim como Varnhagen, João Ribeiro construiu uma visão positiva da escravidão brasileira em comparação

com a norte-americana. Para o autor, esta peculiaridade da relação senhor-escravo deveu-se à índole e

liberalidade do povo brasileiro. Embora explicitasse que havia horrores por parte de alguns senhores que

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“macularam o homem branco e sobre ele recaíram”, o que predominou foi a filantropia em relação à

escravidão. Nas páginas de seu manual escolar, esboçou-se uma versão didática do “paraíso racial” presente

nos discursos abolicionistas do século XIX, no Brasil e Estados Unidos, e na obra do sociólogo Gilberto

Freyre, a partir dos anos 193048.

Ao fazer esta descrição positiva da escravidão no Brasil, marcada pela bondade e religiosidade dos

senhores, João Ribeiro criou até mesmo uma superioridade moral no comportamento da realeza

portuguesa sobre a inglesa em relação ao tráfico, uma vez que o passado dos filantropos ingleses não era

glorioso. Para o autor de História do Brasil (Curso Superior) os ingleses foram os maiores traficantes e seus

reis, diferentemente dos reis portugueses, que somente toleravam o tráfico, eram acionistas da Companhia

Africana que incrementava o mesmo tráfico. Esta era uma rara avaliação positiva da monarquia portuguesa

feita por João Ribeiro49.

O autor encerrou sua leitura sobre a escravidão afirmando que a raça negra tinha dívidas como parte

integrante do povo brasileiro. Apesar de não querer fazer uma apologia da escravidão, João Ribeiro

observou que ela teria socorrido o negro em relação ao seu futuro, resgatando-o da África selvagem e

doente, aproximando-o da civilização e dando-lhe uma pátria e finalmente a própria liberdade pela outorga

civilizadora do elemento branco dominador:

“Mas a escravidão no Brasil foi para os negros a reabilitação deles próprios e trouxe para a

descendência deles uma pátria, a paz e a liberdade e outros bens que pais e filhos jamais

lograriam gozar, ou sequer entrever no seio bárbaro da África”50.

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Neste aspecto, João Ribeiro retomou a imagem do senhor de escravo “humanitário”, do Brasil como

“paraíso racial” e da África como “viciosa”, terra da barbárie, presente no discurso dos abolicionistas

brasileiros da segunda metade do século XIX51.

Quanto às revoltas escravas, João Ribeiro não apresentou muitas informações. O quilombo de

Palmares, por exemplo, tão comentado pelo manual escolar do ensino secundário de Macedo, recebeu

apenas esparsos comentários no sétimo capítulo (“Formação do Brasil”). Ao falar da constituição da

capitania das Alagoas, em 1818, o autor relatou que esta região foi cenário da guerra holandesa e

“aterrorizada” pela formação de quilombos ou aglomerações de negros que, “fugindo ao cativeiro, viviam

de pilhagem e roubos, tanto mais freqüentes e cruéis quanto eram os escravos perseguidos pelos capitães do

mato”52. Responsabilizou as invasões holandesas pela desestruturação das lavouras açucareiras e,

conseqüentemente, à semelhança do que faria Sérgio Buarque nos anos 1970, pela formação dos

quilombos de escravos que, assim como seus senhores, fugiam pelo sertão.

Para “dar cabo dos quilombos”, destacou João Ribeiro, foi contratado “um digno chefe desses capitães

do mato”, o paulista Domingos Jorge Velho, com escolta numerosa. O autor não fez uma crítica ao

bandeirante, pois este representava um elemento chave na obra de João Ribeiro: o mameluco. Em seguida, ele

alertava para a necessidade de se apurar uma série de exageros e lendas criadas acerca de um quilombo no

cume dos Palmares,

“onde os negros, arregimentados sob um chefe, o Zumbi, defenderam-se heroicamente e

de lá preferiram atirar-se ao precipício que voltar à escravidão dos civilizados. A história

dos Palmares tem muito de inverossímil nos seus pormenores, e mereceria ser estudada

com critério. É certo, porém, que os quilombolas da serra da Barriga deram muito que

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fazer a Domingos Jorge e ao governo que resolveu empregar recursos equivalentes aos de

uma guerra”53.

Na esteira do que fez Macedo, João Ribeiro não deu muito destaque à organização social e política do

quilombo de Palmares, optando apenas por relatar sua destruição. Rocha Pombo, nos anos 1920, por

exemplo, faria uma descrição mais detalhada sobre o referido quilombo.

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________________________________________________________________Rocha Pombo

No sexto capítulo (“Divisão do Brasil em dois governos, e reunião posterior em um só”), de História do

Brasil (Curso superior), o historiador José Francisco da Rocha Pombo, originário de uma família de

professores, numa interpretação próxima à proposta de von Martius, tratou da temática da “importação de

africanos”, destacando aspectos relacionados ao tráfico negreiro, os hábitos e costumes dos cativos e sua

influência na formação da nacionalidade brasileira.

O autor iniciou sua narrativa comentando sobre a noção de escravidão na história da humanidade.

Na sua leitura, desde épocas muito remotas existia a prática da escravidão histórica na África; ou seja, a que

era “própria de todas as sociedades humanas numa certa fase da sua evolução social e política”. Da

escravidão histórica surgiu a escravidão de cunho mercantil – a exploração do cativeiro como um negócio.

A escravidão mercantil, segundo Rocha Pombo, constituiu-se em exclusividade e característica das “raças

africanas degradadas”, desde que se puseram em contato com outras “raças em mais alto grau de cultura”54.

A origem da moderna escravidão do negro, para o autor do Compêndio de História da América,

remontava aos árabes. As vitórias dos muçulmanos deram como resultado o estabelecimento do tráfico

pelo extremo nordeste do continente africano. Ao adentrarem o coração do continente, as legiões do

profeta Maomé, através da conquista impuseram o monopólio e o tráfico de escravos destinados a suprir o

Sul da Ásia e grande parte do Mediterrâneo Oriental. Este tráfico ampliou-se com a expansão dos

muçulmanos por todo o Norte da África.

Na alvorecer do século XV, os primeiros navegadores cristãos puseram-se em relações com os

indígenas da costa noroeste africana. Alguns aventureiros, contou Rocha Pombo, chegaram até a adentrar o

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interior do continente pelos grandes rios. Neste período, os navegadores cristãos encontraram-se “com os

traficantes e mercadores árabes, e viram então em que estado se achavam os negros”55.

Embora fizesse referência à presença de africanos no reino português, por volta de 1432, quando Gil

Eanes trouxe africanos do Senegal, Rocha Pombo observou que o tráfico efetivo datava dos fins do século

XV:

“Primeiro, fazem-se experiências na Madeira e em porto Santo; em seguida, levam-se

negros para os Açores; logo depois para o Cabo Verde; e por último (por meados do

século XVI) trazem para o Brasil”56.

Para o autor, as Coroas reinantes do período logo regularam ou apoiaram o negócio (a compra na

África, o transporte, e a venda nos mercados). A disputa pelo comércio de escravos africanos deu-se de

forma mais intensa entre especuladores da França, da Inglaterra, de Portugal e da Holanda. Foi, escreveu

Rocha Pombo, principalmente nas novas terras descobertas que se fez maior a necessidade de “braços

vigorosos, sem os quais os latifúndios, que facilmente se adquiriam, não teriam nenhum valor”57. O

continente americano, nesse contexto, seria o principal cliente do trafico de escravos, sendo Cuba e Haiti

os dois maiores centros de elemento africano; “e a tal ponto que ainda hoje, numa porção considerável da

antiga Hispaniola, é negra a raça preponderante”58. Diferentemente de Varnhagen, Rocha Pombo, assim

como João Ribeiro, apontou como necessária à presença da mão-de-obra africana para a economia colonial

portuguesa na América.

No Brasil, relatou o autor em seu manual escolar, somente com alguns donatários foi que começaram

a desembarcar as primeiras levas de negros. Num primeiro momento, eram empregados exclusivamente em

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serviços domésticos; mais tarde, no trabalho dos engenhos e lavouras. Os escravos eram trazidos do

continente de origem por empresas, “que disso se ocupavam como negócio lícito e rendoso”59.

Ao contrário de João Ribeiro, que dedicou páginas para descrever dramaticamente os horrores da

passagem do Atlântico dos navios negreiros ou tumbeiros, ou de Macedo que se silenciou quanto ao fato,

Rocha Pombo optou por tratar da questão do tráfico já na colônia, dando destaque para as diferentes

regiões para onde eram enviados os cativos. O autor associou as rotas das levas de escravos negros aos

ciclos econômicos vividos pela colônia portuguesa na América. De acordo com ele,

“Do porto de desembarque seguiam as turmas para estações de refresco, de onde se

recolhiam depois aos armazéns das feiras.

Os dois grandes entrepostos da introdução, no Brasil, foram a Bahia e o Rio de Janeiro.

Daí é que saiam escravos para todo o país”60.

Para ele, era fundamental o estudo do elemento negro na formação do “nosso complexo étnico”

justamente porque se havia calculado em milhões o total deles que entraram no Brasil na “fusão geral”61.

Ao perseguir os caminhos trilhados pelos cativos na colônia, Rocha Pombo, à semelhança do que

havia anotado João Capistrano de Abreu62, afirmou que nos primeiros tempos, até meados do século XVII,

os núcleos mais densos da escravatura estavam localizados no Norte, em Pernambuco e na Bahia. Logo

depois, o Rio de Janeiro constituiu-se em centro notável de uso de “braços vigorosos” dos negros. Durante

o século XVIII, “primeiro devido ao trabalho dos engenhos, em seguida ao serviço agrícola”, o Rio de

Janeiro se fez um porto africano, “com aspecto de uma Loanda mais vasta e mais agitada”. O tráfico

externo e interno de escravos sofreu mudanças a partir do século XIX, com maior fluxo para o Sul (São

Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro), região onde se desenvolvia as lavouras de café63.

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O professor Rocha Pombo escreveu ao seu leitor-aluno que, desembarcados nos portos da colônia,

nem todos os escravos iam para o interior. Muitos deles ficavam nas cidades, seja nos lares como fâmulos,

seja “nos armazéns de comércio, nos serviços de estiva e de transporte local, e até em pequenas oficinas de

artes mecânicas”64. Segundo consta no manual escolar, desenvolveu-se mesmo entre “gente mediana” da

colônia o costume de comprar escravos africanos

“para os pôr de aluguel em fábricas, ou de soldada na praça, ou em obras públicas. Este

gênero de negócio tornou-se logo muito comum. Uma família que conseguia adquirir um

casal de escravos tinha feito às vezes um seguro patrimônio. Era um bem que aumentava,

tanto pela procriação, como pelo acréscimo do valor venal que o escravo ia tendo. A

fecundidade da raça continuou aqui a ser espantosa como na África. Muitos senhores, em

vinte ou trinta anos, viam triplicada ou quintuplicada aquela propriedade, sacrílega ao

nossos olhos hoje, mas naquele tempo só preciosa”65.

Pelo discurso didático de Rocha Pombo, percebemos não apenas que o escravo africano era

fundamental para trabalhar como “braço vigoroso” na economia colonial, mais era também mercadoria

que movimentava a economia, articulando toda uma rede de relações comerciais no Atlântico (Europa,

África e América) e dentro das próprias colônias. Possuir escravo era sinal de status social e garantia de

patrimônio para quem o adquirisse. Neste aspecto, vemos cada vez mais Rocha Pombo se distanciar da

visão de Varnhagen em relação ao tráfico negreiro e a presença do negro no Brasil e aproximar-se do relato

de André João Antonil, em Cultura e opulência do Brasil (1710):

“Os escravos eram as mãos e os pés do senhor de engenho, porque sem eles, no Brasil,

não seria possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. Por

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isso, todo ano é necessário comprar alguns escravos e reparti-los pelas roças, serrarias e

barcas”66.

Em suma, para Rocha Pombo, aproximando-se do que afirmaria o manual escolar de Sérgio Buarque

anos mais tarde, não haveria colonização sem o recorrer à escravidão africana.

Rocha Pombo foi enfático ao registrar a importância do tráfico interno no cenário da história da

escravidão e da presença do elemento racial negro no Brasil. Através do tráfico interno, na sua opinião, os

negreiros comparavam escravos nas cidades para os vender nas fazendas. Nas áreas urbanas, com os

antigos senhores, ficavam somente os “escravos de estimação”: as amas de peito e amas secas, os criados

domésticos (as mucamas), artífices e operários. Estas personagens do cotidiano da colônia, fossem nas

fazendas, fossem nas cidades, ressaltou o autor de História do Paraná, foram os “elementos que entraram na

fusão; e hoje se acham mais ou menos diluídos no aspecto geral da população brasileira”67.

Ao deixar de lado a descrição do cotidiano dos negros no cativeiro em solo colonial, aspecto realçado

por autores como Joaquim Silva e Borges Hermida, o autor partiu para a busca dos vestígios que a

escravidão e o elemento negro deixaram no caráter nacional.

Para Rocha Pombo, foi o escravo o responsável pela perda da nobreza do trabalho. Ninguém,

mesmo na época em que compôs o seu manual escolar, convencia-se de que num ofício se poderia ser

homem de sociedade:

“As próprias artes liberais voltaram a ser aqui o que tinham sido na Idade Média. Saber

música, tocar um instrumento, conhecer desenho ou pintura, ser escultor ou arquiteto –

eram habilidades que não convinham a pessoas de família ou de posição social. Ensinar

meninos era profissão quase degradante.

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É por isso mesmo que, em regra, os artistas do período colonial vinham da escravidão, ou

das classes mais humildes”68.

Em sua perspectiva de análise, a coexistência e, na maioria das vezes, a convivência do senhor com o

escravo deixou em toda a psicologia do povo brasileiro profundos vincos, que só a obra da cultura iria

fazer desaparecer de todo. Ele assinalou facilmente estes vincos, para não dizer marcas, no caráter nacional:

“– um sentimento exagerado de fortuna e do poder, e até de funções (às vezes mesmo as mais

precárias) – em contraste com a mais absoluta subserviência diante de uma fortuna ou de um poder

maior, ou de funções mais altas; ao lado de uma negação absurda da autoridade – um ridículo

autoritarismo no cargo mais insignificante; alternando com a mais leviana desestima pela justiça e pela

ordem, até as mais incríveis audácias – uma refinada hipocrisia e desplante para invocar, em momento

oportuno, o império da lei; a violência arrogante, e o mais baixo renunciamento pessoal; a filáucia

destemperada, e a indolência vencida, a desídia moral do bárbaro; a idolatria das grandezas e o desprezo

da humanidade; e tantas outras virtudes, de que as vezes nem nos apercebemos”69.

Rocha Pombo responsabilizou a herança colonial da escravidão pelas falhas no caráter nacional do

brasileiro. O regime servil vivido pelo Brasil equivalia perfeitamente, nos seus efeitos, aos antigos

despotismos. Na sua leitura, deles, assim como destes, não podiam deixar de surgir “um homem que

sempre mandou, e outro que sempre obedeceu”, ou seja, um cuja sorte era morrer no trabalho, e outro que

tinha direito a gozar a vida à custa do seu semelhante. “Um e outro”, escreveu o autor, “vieram da

escravidão, e ficaram como taras no sangue nacional”70.

Ao procurar construir o caráter do povo brasileiro, Rocha Pombo – na esteira de João Ribeiro,

Afonso Celso, Capistrano de Abreu, Alberto Torres, Olavo Bilac, Manoel Bonfim, Paulo Prado, Monteiro

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Lobato, Mário de Andrade entre outros nomes notáveis – estava ligado às discussões e polêmicas sobre a

questão da formação da nacionalidade e identidade nacional, que vinha ocupando espaços na produção

intelectual e política do país, ao longo das primeiras décadas do século XX. De acordo com Circe

Bittencourt, esse período de busca de uma identidade nacional sob a constelação do regime republicano

“foi marcado por debates intensos no que se refere ao Nacionalismo, e sobre projetos do

futuro da nação. A concepção de cidadania se alterou, passando as discriminações e as

exclusões a serem feitas sob novas bases, após a abolição da escravatura. As marcas e as

heranças da escravidão estavam presentes e podia-se optar por dois caminhos: enfrentar

esse passado e procurar formas de encaminhamento sobre os problemas sociais

decorrentes desse processo histórico ou omitir e deixar silenciado e seu passado”71.

Embora não deixasse de fazer uma hierarquização das raças, colocando o negro entre o branco e o

índio, Rocha Pombo responsabilizou pelas falhas no caráter do povo brasileiro o regime da escravidão

vivido durante mais de três séculos72. Neste ponto, o autor não fugiu à reflexão sobre as marcas e heranças

da escravidão na formação da sociedade nacional. Assim como os diversos intérpretes do Brasil da sua

época, ele voltou ao passado colonial para compreender o seu presente (republicano) e construir um

projeto novo para a nação, ou seja, um contrato social a ser firmado pelas partes interessadas73.

O autor de História do Brasil (Curso superior) retratou nas suas páginas aspectos sobre a presença do

elemento escravo negro na vida cotidiana dos senhores dentro do espaço da privacidade da casa-grande,

lugar privilegiado anos mais tarde por Gilberto Freyre na construção da sua interpretação sobre o passado

colonial português. Provavelmente, a preocupação de Rocha Pombo em pensar o espaço da casa-grande

estivesse baseada na obra de Capistrano de Abreu, que, em Capítulos de História Colonial (1500-1800),

atribuiu importância à história social e dos costumes e onde, pela primeira vez, aparecia a casa-grande e a

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senzala. Através de Capistrano de Abreu como uma das possíveis referências, podemos supor, Rocha

Pombo e Gilberto Freyre entre outros, teriam trazido para o cenário da ação histórica a escravidão

doméstica com a figura da ama-de-leite e da mucama, o caráter carinhoso, doce e alegre do negro

suavizando as relações entre senhor e escravo74.

Para Rocha Pombo, foram as famílias ricas na colônia que trouxeram logo, para fazer todos os

serviços domésticos, o “homem de cor”:

“Era muito raro encontrar casas onde houvesse fâmulos que não fossem negros; pois os

brancos, a isso se recusavam como a uma degradação. Não havia serviço mister, e até festa

de lar, onde a criadagem negra não entrasse. Mesmo fora de casa, indo à igreja, ou

viajando, a família não prescindia da sua escolta de serviçais. A ação do escravo não se

limitava, aliás, a exercer-se nesse trato íntimo e contínuo com a família do senhor”75.

Ao contrário do manual escolar de Macedo, que se silenciou sobre a temática da escravidão africana

nas relações sociais, econômicas e políticas, e do seu livro As vitimas-algozes – quadros da escravidão, no qual o

negro era representado como um perigo para a elite proprietária, Rocha Pombo destacou a relevância da

figura do negro, em especial da mulher negra, nas construção das relações entre a senzala e a casa-grande76.

Aqui, o autor retomou a temática da miscigenação, tão cara, por exemplo, à obra de João Ribeiro, para

refletir sobre a formação étnica do Brasil. João Ribeiro, em História do Brasil (Curso Superior), enfatizou a

importância dos sujeitos miscigenados na construção da nacionalidade brasileira, como o sertanejo e o

mameluco.

Contudo, ao contrário de João Ribeiro, Rocha Pombo não deixou de pensar com mais afinco as

influências do escravo negro no caráter nacional brasileiro. Se, para o primeiro, o elemento negro tinha

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dívidas para com a escravidão brasileira como reabilitadora e civilizadora, o segundo ressaltou a

incontestável relevância deste elemento racial no forjar da maneira de ser do brasileiro. O escravo negro,

segundo Rocha Pombo, contribuiu “nas indústrias, nas artes, nos ofícios, nas festas, na língua”, e “vestígios

bem vivos da ação do africano” poderiam ser ainda encontrados. Quem quisesse, escreveu o autor, tomar

conhecimento donde “subsiste melhor a índole do negro sobrevivente da escravidão”, não deveria ficar

procurando nos grandes centros urbanos, “mas há de visitar as paragens mais escusas das cidades, os

pequenos povoados nas vizinhanças das praças, os sítios onde, depois da abolição, se foi refugiar uma

grande parte da população negra”77.

Ao estudar o elemento racial negro, do ponto de vista do concurso que prestou à raça branca na

formação da nacionalidade, como sugeria von Martius, Rocha Pombo afirmou taxativamente a necessidade

de se reconhecer que este representava em toda a nossa história “um contingente de primeira ordem”,

importante aliado na obra colonial portuguesa:

“agüentou ele aqui, durante mais de três séculos, todo o peso do trabalho de que viveu a

colônia. E isso não impediu que em toda parte facilitasse o estabelecimento dos

portugueses, guardando-lhes as povoações e as fazendas contra os índios.

Passou em seguida a defender a terra contra estrangeiros. Em todos os movimentos de

repulsa a corsários e aventureiros e a cobiça de outros governos, figurou o negro com uma

coragem e galhardia que o igualaram aos grandes heróis das duas outras raças. Á mais do

que provável que, sem o negro e o índio, não teria o português mantido aqui o seu

domínio”78.

No trecho acima citado, o autor começou a esboçar a sua proposta de contrato social entre as raças

para implantação de um projeto de nação que unisse, não separasse. O elemento negro ganhava destaque

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pelos seus atos de bravura, seu sofrimento no eito, sua adesão à causa colonial portuguesa. Rocha Pombo

falava de uma História do Brasil em que as três raças estariam irmanadas em prol de uma causa comum. E

aqui ele, assim como Macedo e, posteriormente, Joaquim Silva e Borges Hermida, não fugiu ao momento

fundador eleito por Varnhagen, em sua História geral do Brasil: as invasões holandesas.

Rocha Pombo concedeu o título de “agente da nossa riqueza” ao africano na América e foi sob este

aspecto que ele se colocava acima, indiscutivelmente, do elemento indígena. Não lhes coube, escreveu o

autor, apenas o trabalho dos campos e dos engenhos: “além das grandes culturas que só eles fizeram, em

todo gênero de trabalhos figuram como quase únicos braços de que dependia a nossa produção geral”79.

Em suma, para Rocha Pombo, coube à raça negra no passado colonial (e imperial) dupla grande

função:

“ela criou a economia da colônia, sem a qual não se teria fixado aqui o elemento dirigente;

e guardou o território, sem o qual não seria o Brasil o que é hoje.

É evidente que sem a unidade moral em que ficaram as três raças; sem aquele profundo

sentimento da pátria em que elas se identificaram nas horas do perigo; e sobretudo, sem

uma forte capacidade defensiva – é evidente que não teríamos conseguido trazer íntegro e

indivisível, até à sua plena eclosão política, este imenso país”.80

Confiante no futuro do país, inspirado em princípios pacifistas de um mundo pós Primeira Guerra

Mundial e vivendo numa década conturbada de movimentos políticos e sociais, o professor Rocha Pombo

escreveu para seu leitor-aluno do presente, de forma apaixonada, que para além dos sofrimentos e

diferenças existentes entre as raças, houve no passado nacional o interesse maior para com o sentimento de

pátria, surgindo daí a união que constituiu a nação brasileira. Ele buscou neste exemplo do passado a

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referência para o seu projeto de Brasil para os anos 1920, ou seja, uma unidade moral que permitisse a

assinatura de um contrato social que legitimasse e fortalecesse “este imenso país”.

O seu discurso didático não era contra a presença do negro na formação da sociedade brasileira,

mas sim contra a instituição da escravidão como fardo do passado nacional. Para ele, a natureza moral do

africano poderia ser melhor julgada pela História através da maneira como este protestou contra a

escravidão. Rocha Pombo não atribuiu a resistência africana como conseqüência dos excessos cometidos

pelos senhores e feitores, como havia sugerido João Ribeiro, uma vez que este ressaltou o caráter

benevolente da escravidão brasileira em relação à norte-americana.

Assim como João Ribeiro, Rocha Pombo notou que a sorte do negro era muito mais dolorosa que a

do próprio índio na colônia, pois este

“ainda estava na sua terra, e tinha por si, não só a soberania do sertão, como o patrocínio

do missionário, a voz da humanidade, e até a palavra de ordem dos governos.

O negro não teve por si misericórdia de nenhum coração. No seu exílio, nunca teve uma

alma cuja piedade pudesse recorrer nas suas amarguras. Todo aquele mundo, surdo e

fechado, tinha para ele a mesma repulsa que se tem pelo simples animal”81.

Não tendo quem lutasse por eles, os escravos assumiram para si a responsabilidade de resistir.

Mesmo “vencido e degredado”, teve ainda o negro, escreveu enfaticamente Rocha Pombo, alma bastante

para oferecer seu testemunho da sua indignação contra a força. O autor, diante do seu leitor-aluno, parecia

assumir o papel de um padre Antonio Vieira e cobrava da História o reconhecimento das injustiças

cometidas pela escravidão ao “homem de cor”82. Embora necessária à época, a escravidão negra causava

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repulsa aos olhos do professor Rocha Pombo, vivendo num Brasil pós-abolição. Falar da luta escrava, no

seu manual escolar, era valorizar a presença deste elemento racial na composição da nacionalidade:

“Desde o primeiro instante do castigo não soube dissimular o horror da sua imensa

miséria. As fileiras de negros que saiam do interior da África chegavam aos entrepostos

da costa sempre desfalcados pelo suicídio. Durante a espera dos brigues, muitos morriam

de tristeza ou de cólera. Em viagem, no porão do navio, uns enlouquecem, outros

deixam-se morrer de fome e de sede.

À terra desconhecida chegam todos como idiotas.

E então começa o longo noviciado de dor que a raça teve de fazer aqui para chegar à

história.

Primeiro resignam-se espantosamente com a sina.

Depois, vai-se erguendo, hirto e sinistro, a rebater o crime pelo crime. Não haverá talvez

um recanto do país onde não subsista memória de alguma tragédia.

Travara-se a luta. Como o senhor era sempre o mais forte, o negro, ou capitulava

agravando o suplício, ou fugia para as florestas. Era a fase dos quilombos”83.

No seu texto didático, o elemento negro entrou no cenário da história (ocidental) “como idiota”.

Pareceu no primeiro instante reconhecer a sua sina de submissão e martírio. Contudo, já no cativeiro,

revoltou-se, erguendo-se contra a mão senhorial que o submetia á humilhação da escravidão. Fraco diante

da superioridade (racial) do senhor rendeu-se ao castigo ou fugiu para formar quilombos. A escravidão

aparecia no discurso didático de Rocha Pombo como sinônimo de submissão, sofrimento, humilhação.

Não era reabilitadora como escreveu seu colega de ofício, João Ribeiro.

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Para um passado de dor, violência e hostilidade entre as duas raças, o fardo da herança colonial

portuguesa, o autor oferecia um presente de conciliação, ou seja, “o negro concilia-se com o destino para

vencê-lo”84. Ligado no período imperial ao movimento abolicionista, Rocha Pombo ressaltou a importância

do “branco de alma aberta” em prol da justiça da raça submetida:

“E é então que ele vai ver como afinal o branco estava, de alma aberta, a seu lado. A causa

do negro tornou-se causa de toda a nação.

A história, em suma, é feita assim mesmo de tais contrastes. O que andamos fazendo é

isso mesmo: andamos reduzindo cada vez mais o erro e a injustiça”85.

Nessa perspectiva, o êxito da luta escrava contra o cativeiro só ganhou força e legitimidade perante a

História quando se transformou na bandeira da nação, carregada pelos abolicionistas. A escravidão passou,

na leitura do autor, a ser um mal não apenas para o negro, mas para todos, em especial para a imagem que

se deseja imaculada da pátria brasileira.

A missão civilizatória da História, para Rocha Pombo, estaria na luta pela correção do erro e da

injustiça, para construção de uma sociedade pacífica e igualitária. Aos seus leitores-alunos, o autor propôs

um contrato social no presente semelhante ao realizado pelos abolicionistas (brancos) e os escravos

(negros). Um contrato que defendesse acima de todas as diferenças a nação e o futuro brilhante que a

esperava no mundo civilizado do século XX.

A luta do negro contra a escravidão foi retomada pelo autor num outro momento do manual escolar

ao abordar a história dos quilombos dos Palmares. Em sete páginas no décimo primeiro capítulo

(“Palmares. Emboabas e Mascates”), ao contrário de Macedo, Rocha Pombo relatou a trajetória histórica

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percorrida pelo mais famoso levante escravo do período colonial no Brasil, constantemente mencionado

pela tradição de escrita (didática) da História do Brasil86.

Na história da escravidão africana no Brasil colonial, comentou o autor, o século XVII foi marcado

pelo momento em que, “passados os dias dolorosos do banzo”, o negro passou a refletir sobre o seu

infortúnio e a pensar em fugir ao cativeiro embrenhando-se pelas matas. Foi neste momento, portanto, que

nasceu a era dos “temerosos agrupamentos, que desde o começo do referido século se fizeram em todas as

capitanias o terror dos viandantes e das povoações indefesas”87. O cativo, segundo Rocha Pombo,

começou a pagar o crime da escravidão com o crime contra a ordem estabelecida, espalhando o clima de

insegurança e medo entre colonos. Aqui o autor retomou a temática do medo, numa perspectiva próxima

ao que havia feito Macedo, não como um sentimento associado ao presente, mas ao passado distante. A

violência dos quilombolas surgia, no seu manual escolar, em decorrência do mal maior que era a

escravidão.

Rocha Pombo fez referência à existência desses muitos agrupamentos pela colônia, a que se deu o

nome de quilombos, sendo de todos os mais notáveis, “pela extensão que tiveram, os do Palmares, no atual

Estado de Alagoas”:

“Tinha este nome (derivado da abundância de uma palmeiras que se encontravam ali) uma

vasta zona de florestas, quase paralela ao litoral, e à distância de 20 ou 309 léguas da costa,

entre o São Francisco e o cabo de Santo Agostinho. Por ai situaram-se grande número de

quilombos, entre os quais o do Zambi, o das Tabocas, o do Macaco, o do Sucupira”88.

Além de apresentar a localização dos referidos quilombos, ele contextualizou a sua formação com o

momento das invasões holandesas, em 1630. Os intrusos em Pernambuco, iludindo os escravos com

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promessas de liberdade, provocaram uma séria de insurreições nas fazendas. Forçados a defender-se ou a

fugir, os senhores locais não contaram com meios de impor-se contra os escravos. Disso, ressaltou Rocha

Pombo, “se aproveitaram os negros para escapar ao julgo do cativeiro”89. Em pouco tempo, em vários

sítios daquelas florestas, haviam juntado multidões de negros vivendo de maneira pacífica “das suas

lavouras e granjearias”. Com os negros “não repugnavam viver também índios mansos, que por sua vez

fugiam à escravidão”90.

Enquanto perdurou o confronto entre os portugueses e os flamengos, os quilombos naquela região

cresciam e prosperavam. Destacou o autor que chegavam os quilombolas a manter contatos estreitos com

moradores das vilas vizinhas:

“Iam a Porto Calvo, a Serinhaém, a Alagoas, levar os seus produtos em troca de artigos de

que precisavam (armas de fogo, ferramentas, tecidos). Nessas povoações eram os negros

recebidos sem nenhuma desconfiança; e os negociantes eram os primeiros a dar

testemunho da lisura e probidade com que se conduziam aqueles bons fregueses”91.

De acordo com Rocha Pombo, passado o primeiro período de guerra contra os “intrusos”

começaram todos, portugueses e flamengos, a tomarem nota daquela “original anomalia”, que colocava em

perigo o domínio de uns e outros. Ambos, a partir desta constatação, iniciaram incursões contra a

“confederação dos Palmares”92. Deste ponto em diante, o autor passou a descrever a organização social e

política dos quilombos e as diversas incursões realizadas para derrubar Palmares.

Após a expulsão definitiva dos holandeses em 1654, escreveu o autor, os colonos vitoriosos voltaram

logo o ânimo para o problema interno que se criara. A preocupação, neste sentido, era manter a unidade da

colônia, futura nação independente; resolvida a ameaça externa (os holandeses) era necessário pôr fim à

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semente interna da separação (os quilombos de Palmares). Para mostrar o tamanho desta ameaça à ordem

colonial, Rocha Pombo descreveu com riqueza de detalhes os quilombos mais importantes do período: o

do Macaco e Sucupira. Estes fortificados quilombos foram os que começaram a ser hostilizados:

“E muitos dos heróis que vinham da reconquista não se dignaram a tomar agora o

comando de forças dirigidas contra os negros.

Durante vinte anos repetiram-se tentativas infrutíferas contra aqueles dois redutos, onde se

sabia concentrado o maior poder dos quilombolas. Com uma tenacidade admirável,

porém, e um vigor e coragem só próprio de quem defende a pátria, zombaram os negros

de todos os esforços, frustrando nada menos de vinte e cinco expedições até 1674.

Nesta época, entendeu o governador, D. Pedro de Almeida, que não se podia mais adiar

aquela conquista sem grandes prejuízos para a colônia, e até sem riscos muito graves para a

própria soberania portuguesa; pois eram gerais as queixas e reclamos das populações,

expostas á audácia crescente dos negros, vangloriosos daqueles insucessos dos brancos”93.

A seguir, ele discorreu sobre as campanhas conduzidas contra Palmares entre 1675 e 1679. Até que,

diante dos desastres das investidas e aumento do “furor e insolência dos negros”, as autoridades coloniais

perceberam a necessidade de recorrer a novos meios. Ao refletir sobre o gênero de guerra que era preciso

fazer, Rocha Pombo afirmou que as autoridades concluíram que era preciso “confiar a causa a gente afeita

aos processos da caça ao selvagem”. Dessa forma,

“Só mesmo o bandeirante seria capaz de dar cabo daqueles negros, que se haviam

assenhoreado de florestas tão vastas e escusas, e que, pela sua união e disciplina, tanto

como pelos eu número, se tinha tornado mais temeroso que os próprios índios”94.

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Rocha Pombo apresentou ao seu leitor-aluno a figura dos bandeirantes de forma simpática,

comentando que naquela época o extremo norte da colônia já havia sido batido por “aqueles heróicos

aventureiros”, os quais “escreveram uma página única na história da América”95. Entre os nomes

memoráveis da história dos bandeirantes, o autor fez referência ao paulista Domingos Jorge Velho, famoso

por suas conquistas das regiões centrais até os confins do Maranhão. Ele seria o responsável pela conquista

definitiva dos Palmares. Segundo o autor,

“Antes, porém, de partir contra os negros, teve o capitão de ir em socorro do rio Grande

do Norte, em grandes aflições com uma tremenda insurreição de índios”96.

Além de interiorizar e estabelecer as fronteiras da colônia, na leitura do autor, coube aos

bandeirantes, representados por Domingos Jorge Velho, “pacificar” os conflitos por parte de índios e

negros contra a ordem estabelecida97. A bravura do referido bandeirante contra o líder Zumbi e seus

quilombolas foi detalhadamente descrita no manual escolar nas páginas do referido capítulo. Apesar de ter

sofrido reveses nas primeiras incursões, o bandeirante reuniu um contingente de 7000 homens, “provido

de todo material de guerra para um longo assédio”, para pôr fim ao “grande quilombo”98. Deste confronto,

Rocha Pombo, lamentando com Varnhagen, afirmou não ter havido cronista para oferecer informações

precisas. Contudo,

“Nada exagerou Oliveira Martins dando à cidade condenada o nome de Tróia Negra, “o

mais belo e heróico de todos os protestos do escravo”, e cuja história “tem lances de uma

Ilíada”.

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Para que se nos figure toda a grandeza daquele pleito, bastaria recordar que durou o

assédio cerca de três anos, combatendo-se ali quase continuamente, noite e dia. Sem cessar

“foram as muralhas e as portas batidas... sem efeito algum” antes com grandes peradas dos

sitiantes”99.

Depois de muitas lutas e perdas para ambos os lados envolvidos, relatou de maneira dramática Rocha

Pombo, chegava ao fim a “Tróia Negra”. Para o anarquista pacifista das primeiras décadas do século XX,

esboçava-se mais uma página triste do passado colonial, distante do contrato social tão desejado. O crime

dos escravos era fruto do crime maior da escravidão, que degradava a moral dos homens. O episódio de

Palmares era o lamentável exemplo da fissura que poderia separar ao invés de unir. No mesmo cenário da

invasão holandesa, onde Varnhagen e os autores de manuais escolares analisados encontraram a semente

da nacionalidade brasileira, através da união das três raças (o português, o negro e índio) contra o elemento

invasor, Rocha Pombo narrou a tragédia na serra da Barriga:

“Em certo dia, enfim, conseguem, Sebastião Dias e Vieira de Melo, romper as portas que

andavam guardando. Acode então com sua gente Jorge Velho. Dá se o assalto. Os negros

resistem. Mas é inútil o seu esforço. Imensa confusão se faz naquele vasto recinto onde se

confinara a esperança dos míseros. Enquanto alguns morrem combatendo, rendem-se

outros implorando misericórdia (mulheres e crianças principalmente); e o maior número

dos destroçados debandam fugindo para o sertão.

Assim caiu, em 1694, o último reduto dos Palmares, ao cabo de mais de 50 anos de lutas

com que se afrontou a sociedade colonial”100.

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Visto como um evento de desestruturação e ameaça da obra colonial por Macedo, comentado

brevemente por João Ribeiro, ao relatar a história de Alagoas, a história do quilombo de Palmares teria

poucas linhas nos manuais escolares de Joaquim Silva e Borges Hermida. Nenhum dos autores analisados,

nem mesmo os irmãos Nelson e Claudino Piletti e Chico Alencar nos 1980, que descreveria com tanto

pesar a destruição deste quilombo, dedicou tantas páginas para narrar tal fato quanto Rocha Pombo. Para

ele, era necessário relatar eventos como este para fazer justiça à História. Trazer a tragédia de Palmares para

o palco da História era o caminho para o professor do Colégio Pedro II mostrar aos seus leitores-alunos os

males que a colonização portuguesa provocou com a instituição da escravidão e a ausência de um contrato

social entre as partes em nome da pátria. A idéia de um contrato social, mas também racial, estava presente

na obra de Rocha Pombo como um projeto, o que se configuraria, por exemplo, como uma realidade para

Joaquim Silva, vivendo sob o estado forte e centralizador de Getúlio Vargas e amparado no discurso da

“democracia racial”, elaborado por Gilberto Freyre.

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_________________________________________________________________Joaquim Silva

Em História do Brasil para a primeira série ginasial, Joaquim Silva trouxe a temática do elemento negro e da

escravidão, junto com a da catequese, no terceiro capítulo (“A colonização [continuação]”). Para elaborar

suas reflexões sobre a escravidão africana no Brasil, o autor recorreu aos trabalhos de João Ribeiro, João

Pandiá Calógeras, Pedro Calmon, Manuel de Oliveira Lima e Jonathas Serrano101.

Para Joaquim Silva, desde o início da exploração agrícola no Brasil colonial, o português teve a

necessidade de fazer uso de “braços para o trabalho da terra”. A princípio foi buscá-lo entre os índios

(escravidão vermelha), trazidos do interior para o litoral. Contudo, estes logo encontraram a “proteção dos

jesuítas”, defendendo-os contra a prática da escravização. Além disso, citando João Ribeiro, não eram

elemento de muita eficiência.:

“criaturas primitivas, filhos das selvas e dos campos, não resistiam à vida em recintos

fechados como eram as casas dos colonos, nem ao esforço continuo e duro do trabalho

das culturas e dos engenhos; adoeciam e morriam em grande quantidade, quando não

procuravam na fuga a liberdade perdida”102.

Devido à tutela dos jesuítas e à inadaptabilidade do indígena ao trabalho, o autor afirmou que o

colono português recorreu ao elemento africano (escravidão negra). Na África, desde remotos tempos,

havia escravos: “os régulos do continente negro mantinham a escravidão militar e não era difícil conseguir

deles a venda de prisioneiros. Na Europa, conheciam-se escravos negros”103. Feita a escolha pelo tráfico de

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Imagens do Negro

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negros para trabalhar na colônia, o autor começou a descrever as origens dos africanos trazidos para o

Brasil: os primeiros vieram de Guiné; depois, de Angola e de Moçambique.

Quanto ao nível de civilização do elemento negro, Joaquim Silva observou entre os vários tipos

existentes dentro da raça que havia graus diferentes de desenvolvimento. Contudo, em sua grande maioria,

estavam em nível mais elevado que os “nossos selvagens” e em geral, com base nas afirmações de João

Pandiá Calógeras104, conheciam o trabalho com alguns metais, como o ferro; e, ao contrário dos nossos

índios, que eram nômades, eram habituados à vida sedentária. Os elementos da raça africana aprendiam

facilmente o manuseio de ferramentas, “tornando-se hábeis operários”. Muitos conheciam e acreditavam

no Criador – Deus; porém, a maioria era “feiticista”. Em suma, em termos econômicos, eram os braços

mais bem adaptados para o trabalho na colônia. Assim como João Ribeiro e Pandiá Calógeras105, e

diferenciando-se de Varnhagen e Macedo, o autor acreditava que o elemento negro teve grande

importância na vida econômica da terra, ajudando a construir o Brasil106.

A chegada dos “infelizes africanos” à colônia portuguesa nas Américas era, na leitura do autor, por

eles desejada como termo aos

“horrores que padeciam na viagem; a escravidão os esperava, mas os novos senhores

seriam, em sua maioria, menos desumanos que os da África ou dos “tumbeiros” (Navios

negreiros)”107.

Neste trecho, o autor aproximou-se da imagem construída por João Ribeiro sobre a África como

selvagem, a travessia como martírio do negro e o desembarque no Brasil como a redenção, sua

“reabilitação”. Jonathas Serrano, responsável pela reforma do programa da disciplina História do Brasil

durante o governo Vargas e importante referência para o modelo de interpretação histórica criada por

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Joaquim Silva, em Epítome de História do Brasil, dedicou especial atenção para a descrição do martírio vivido

pelo negro na passagem da África para o Brasil, através do Atlântico:

“Do século XVI em diante, filas e filas de negros escravizados, de pesada cadeia ao

pescoço e presos uns aos outros para não fugirem, seguiam rumo da costa, marcados a

ferro em brasa e sob o chicote dos Tumbeiros. Eram comprados, em geral, a troco de

missangas, de pano da costa riscado, de cachaça ou de objetos de aço. Eram levados para

os presídios (Caconda, Ambaca) e depois embarcados nos principais portos (S. Paulo de

Loanda, S. Filipe de Benguela). Atirados no porão de imundos navios, só de vez em

quando podiam subir à coberta para dançar e respirar um pouco de ar puro, que lhes

conservasse a vida. Dizimava-os a bexiga, o sarampo, os maus tratos, a fome. Muitos

preferiam a morte, jogando-se ao mar. A alguns consumia lentamente a saudade da terra, o

Banzo”108.

Após ater-se ao infame comércio, Joaquim Silva passou para a narrativa do cativeiro do escravo

negro no Brasil. Dos mercados onde eram vendidos, estes eram logo levados para o seu destino, “nos

trabalhos da lavoura, dos engenhos, das oficinas”109. Com base no livro de Pedro Calmon, o autor

descreveu em nota de pé de página as diferentes ocupações exercidas pelo africano, de acordo com suas

aptidões:

“Os ‘geges’ seriam preferidos para os serviços domésticos; alcançavam altos preços como

escravos dóceis, e formaram a mais densa população negróide das nossas cidades,

enquanto os pretos de piores qualidades, como os ‘congos’, eram mandados para as

minas e para os campos (...)”110.

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Nos sítios e nas fazendas, relatou o autor, os negros habitavam as senzalas, vastos alojamentos

próximos da casa grande dos senhores, sempre ameaçados de ser castigados pelo chicote do feitor

“impiedoso”. Para os escravos que reincidiam na fuga ou por outras causas eram impostas punições, como

a prisão no tronco e o porte de grossos anéis de ferro ao pescoço. Contudo, segundo Joaquim Silva, o

castigo era aplicado somente quando o escravo negro violava as regras do cativeiro. Na mesma linha

interpretativa de João Ribeiro111 e Jonathas Serrano112, e distante da apresentada por Rocha Pombo sobre a

escravidão, a autor destacou que

“as leis, a índole benévola da maioria dos senhores, inspirados pela religião procuravam

diminuir as durezas do cativeiro; isso, porém, não impedia que os escravos, às vezes, reagir

às torturas a que os sujeitavam”113.

Amparado em Manoel de Oliveira Lima114, Joaquim Silva colocou em nota de pé de página que a

tortura era uma exceção no Brasil, sendo regra ordinária nas colônias inglesas, holandesas e francesas, onde

a abolição significou, em alguns casos, uma separação trágica com que os mártires despedaçaram o laço

(referência à Revolução do Haiti e à Guerra da Secessão nos Estados Unidos): “No Brasil foi uma

separação amigável de que resultou a pacificação dos espíritos”115.

Quando havia excessos no cativeiro, comentou o autor, eram muitos os casos de “vingança dos

pretos maltratados”:

“muitos fugiam das fazendas, trazendo, depois, em sobressalto os viandantes, mas viviam

perseguidos como feras pelos inclementes ‘capitães do mato’. Às vezes os pretos fugidos

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Imagens do Negro

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reuniam-se para viver em comum no recesso da mata, em lugar de fácil defesa ou difícil

acesso: os mucambos ou quilombos.

Em várias capitanias havia desses refúgios de escravos. O mais famoso foram os dos

Palmares, na serra da Barriga (Alagoas), e cuja origem parece datar dos tempos das

invasões holandesas”116.

Portanto, para ele, não era a escravidão que provocava a rebeldia dos negros como defendeu Rocha

Pombo, e sim os excessos cometidos pelos feitores a mando dos senhores. Ao contrário do professor

paranaense, Joaquim Silva, neste manual escolar, optou por passar bem superficialmente sobre a história

dos quilombos no Brasil, em especial Palmares117. Os conflitos entre senhores e escravos apareciam de

forma secundária no seu texto didático, preferindo pensar uma imagem menos nociva e pesada da

instituição da escravidão.

Diferente de João Ribeiro, e agora se aproximando de Rocha Pombo, ele teceu considerações muito

positivas sobre a influência do negro na formação da nacionalidade. Para ele, tendo como referência Pandiá

Calógeras, o escravo negro veio exercer “notável influência” no Brasil:

“não só na vida econômica, mas ainda na constituição do tipo, na formação moral, nos usos, nos

costumes, na linguagem, com a introdução de numerosas palavras, na poesia popular, nos contos, nas

tradições, no ‘folclore’”118.

Esta ênfase na influência do africano na constituição da identidade nacional brasileira foi retomada

com maiores detalhes por Joaquim Silva, nos anos 1960, em sua História do Brasil para o curso médio (primeira e

segunda séries), no terceiro capítulo (“A formação do povo brasileiro”). Vejamos o que o autor, influenciado

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por Jonathas Serrano, acrescentou ao cabedal de conhecimento dos seus leitores-alunos sobre o elemento

negro:

“Dos usos africanos ficaram certas danças (congada, cateretê, esta de origem tupi, mas

modificada pelos africanos) e, na arte culinária, uma série de pratos, como o vatapá, o

caruru, o bobó, o acará ou acarajé, o mungunzá, o cuscuz.

Na poesia e na formação da música popular encontram-se vestígios da influência do

negro, assim como nos contos e na tradição, até na linguagem assinala-se esse influxo, pela

introdução de numerosos termos africanos. As crendices, as superstições do negro,com

sua afetividade, refletiram-se na formação de nossa gente, que herdou dela ‘uma certa

negligência crioula’, uma resignação heróica para suportar a miséria, uma concepção um

pouco fatalista e quiçá leviana da vida, sem grandes preocupações da futuro, o hábito do

trabalho, sem amor mas também sem revolta, e, enfim, a melancolia impressa mais na

música e na poesia do que no estado de alma habitual do povo’ (Jonathas Serrano, História

do Brasil, Rio, 1931, p. 173)”119.

Neste aspecto, Jonathas Serrano e Joaquim Silva aproximaram-se de Rocha Pombo120, ao valorizarem

o concurso do elemento africano na conformação da identidade nacional brasileira. Para os três, ao

contrário de João Ribeiro, a idéia de um contrato social passou pela necessidade da união e harmonia das

raças, deixando as diferenças de lado, em nome de uma causa maior: a pátria. O que era para Rocha

Pombo, vivendo nos tumultuados anos 1920, um projeto a ser construído na era republicana, em Joaquim

Silva constituiu um projeto concretizado com a ditadura Vargas, a partir de 1930, com um Estado

centralizador, forte e deitado no berço esplêndido da “democracia racial”121. Para o autor, próximo ao que

propunha o seu contemporâneo Gilberto Freyre, as sementes da particularidade do Brasil como um país de

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Imagens do Negro

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relações amenas e harmônicas entre as raças encontravam-se no passado colonial: lá estava a marca da

identidade brasileira. Para ambos autores, como acreditava Capistrano de Abreu, o negro trouxe uma “nota

alegre”122 para a formação da nacionalidade do país123.

Esta imagem do negro no teatro da formação da “nossa nacionalidade”, apresentada a partir dos anos

1930 por Jonathas Serrano e Joaquim Silva, ganharia o coro das interpretações apresentadas nos manuais

escolares de Vicente Tapajós, Brant Horta, Antônio José Borges Hermida, Sérgio Buarque entre outros124.

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Imagens do Negro

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______________________________________________________________Borges Hermida

No quinto capítulo (“Brasil, mistura de raças”), do manual escolar de História do Brasil, Antônio José Borges

Hermida, inserido no discurso oficial da “democracia racial”, apresentou suas reflexões sobre a escravidão

africana e sua herança na formação da nacionalidade brasileira.

Num texto sintético e esquemático, o autor tratou de três temáticas relativas à presença do elemento

negro na história do Brasil colonial: escravidão, Quilombo de Palmares e herança africana.

Ao abordar a temática da escravidão africana, Borges Hermida realizou sua descrição a partir do

espaço do engenho de açúcar. Foi, segundo ele, para o trabalho nos engenhos que se iniciou a importação

de africanos.

Quanto ao tráfico negreiro, o autor fez um breve comentário, relatando as péssimas condições em

que eram trazidos os africanos e, para isso, citou a poesia de Castro Alves, o “poeta dos escravos”:

“Embarcados na África, nos porões dos navios, muitos escravos morriam por falta de

alimentação ou por doença; por isso, os navios chamavam-se ‘tumbeiros’, palavra derivada

de tumba ou sepultura.

Na poesia “O Navio Negreiro”, Castro Alves, o Poeta dos Escravos, contou os

sofrimentos que os pobres escravos passavam a viagem para o Brasil.

Os portos brasileiros que mais escravos receberam foram: Salvador; Recife e Rio de

Janeiro”125.

Diferente, por exemplo, de Rocha Pombo e Joaquim Silva, Borges Hermida não se ateve por muito

tempo sobre as origens da escravidão e do tráfico negreiro, partindo direto para os usos da mão-de-obra

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escrava na colônia. No Brasil, contou o autor, “o negro escravo praticou todos os ofícios e serviu até como

criado doméstico”. Muitos escravos tinham conhecimento de mineração, “que haviam aprendido na África.

É de origem africana a bateia, espécie de peneira ainda hoje usada para catar o ouro no fundo dos rios”126.

Contudo, segundo Borges Hermida, foi no engenho que a escravidão prestou serviços maiores à obra

colonial. Os negros eram empregados em trabalhos “nos canaviais; na fabricação do açúcar; nas matas, que

forneciam a lenha para as caldeiras”127. Provavelmente, o uso do engenho como modelo para analisar a

escravidão na sociedade colonial feita pelo autor seja uma influência do cronista do período colonial André

João Antonil128 ou da obra de Gilberto Freyre. Este último, em Casa-grande e senzala, fez suas reflexões sobre

a formação do patriarcado brasileiro a partir da óptica do engenho nordestino129.

No momento seguinte do texto didático, Borges Hermida realizou uma descrição da fazenda de

açúcar e dos lugares ocupados por senhores e escravos:

“O senhor de engenho e a família moravam na casa-grande, quase sempre um sobrado com

grandes aposentos, salões e quartos para hóspedes.

A esposa do senhor (sinhá) e cada filha (sinhazinha) tinham sua escrava particular, de toda

confiança: a mucama. Ela cuidava do quarto e da roupa da sua senhora.

Admitia-se que o leite da mãe escrava era mais forte do que o da branca; assim, era ela

quem amamentava seu filho e do senhor (mãe preta).

No engenho, além da casa-grande e da capela, havia a senzala, onde os escravos dormiam,

sem nenhum conforto e higiene”130.

Ao contrário de Macedo, que via com suspeita e ameaça a figura do escravo doméstico (a mucama),

Borges Hermida, assim como Rocha Pombo, concebeu a figura da mucama como elemento-chave nas

relações entre a casa-grande (senhores) e a senzala (escravos). Ela apareceu nestes dois autores como

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personagens associadas ao mundo da intimidade e afetividade da casa-grande, despertando confiança e

proximidade131.

Borges Hermida não fez referência alguma sobre a situação do cativeiro e, menos ainda, sobre os

castigos praticados contra os escravos negros no eito, dando a entender ao seu leitor-aluno que as relações

entre senhores e escravos eram pacíficas, como se o negro se submetesse sem resistência a sua sina.

Ao optar por não tratar da questão da violência da escravidão, Borges Hermida não explicou o

motivo das fugas escravas e formação de quilombos, dando a entender que isto seria uma exceção no

cenário colonial. Em relação a Palmares, ele comentou somente sobre a sua destruição, na esteira do que

havia feito por Macedo. Este quilombo, localizado “no atual Estado de Alagoas”, segundo o autor,

“resistiu aos brancos durante muitos anos, sendo, afinal, tomado pelo bandeirante paulista

Domingos Jorge Velho.

Nessa ocasião, foi aprisionado e morto o valente chefe negro Zambi. A cabeça levada para

Recife, ficou um poste, em praça pública, para que todos soubessem que ele havia

morrido, pois em Pernambuco os negros afirmavam ser Zambi imortal”132.

Para o seu leitor-aluno, Borges Hermida, conhecido professor da rede pública do Estado do Rio de

Janeiro entre 1947 a 1977, ressaltou o que acontecia com aqueles (os negros) que oferecessem alguma

desordem ao regime instituído (Império Português): o castigo disciplinar e exemplar.

Após passar rapidamente por este evento localizado, o autor encerrou seu texto fazendo referência à

herança africana na colonização e na constituição da identidade nacional brasileira, destacando as

contribuições nos costumes brasileiros por este elemento racial:

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“a religião do candomblé, ainda hoje muito cultuada; certas comidas (vatapá, acarajé) e

temperos (azeite-de-dendê); palavras do vocabulário da língua portuguesa (quitanda,

banana, fubá); a música do batuque, que deu origem ao samba; a dança do maracatu e da

capoeira”133.

Borges Hermida reforçou o contrato social (e racial) firmado entre as raças branca e negra para a

construção da nacionalidade brasileira, destacando, assim como Rocha Pombo e Joaquim Silva, suas

contribuições para com a pátria, desde o período colonial. Com o fim de reforçar esta imagem no final do

capítulo, ele apresentou um pequeno texto sobre os direitos que cabiam a todos os brasileiros,

independentemente de sua origem racial. Para ilustrar que o Brasil era uma terra de reduzidos preconceitos

raciais, o autor relatou, de modo semelhante ao manual escolar de Jonathas Serrano, exemplos de

personagens ilustres negros e mestiços que se destacaram, desde o período colonial até os dias atuais:

Henrique Dias, Antonio Francisco Lisboa (Aleijadinho), José do Patrocínio e Edson Arantes do Nascimento

(Pelé). Nem Borges Hermida, nem Jonathas Serrano incluíram Zumbi, líder dos quilombos de Palmares,

como personagem ilustre da História do Brasil. Tal exclusão explicou-se pelo fato de Zumbi estar

associado a um exemplo de divisão, fragmentação e rebeldia (racial) e não à simbologia de uma

nacionalidade. O negro Henrique Dias lutou ao lado do índio Poty e dos portugueses contra os invasores

holandeses; o mulato Aleijadinho, com suas esculturas barrocas, enriqueceu a cultura brasileira; o

abolicionista negro José do Patrocínio, ao lado da Princesa Isabel – a “redentora” – defendeu o fim da

escravidão que envergonhava a pátria; Pelé, com suas pernas abençoadas, ajudou a transformar a pátria de

chuteiras em Tricampeã Mundial, elevando a imagem do Brasil no cenário dos esportes. Todos eles lutaram

bravamente pela “grandeza do Brasil”, em conjunto com as outras raças, ao contrário de Zumbi que

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representava muito mais um herói racial do que nacional. Neste aspecto, ele não poderia ser indicado a um

lugar de honra no panteão dos heróis nacionais.

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Imagens do Negro

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_____________________________________________________Sérgio Buarque de Holanda

No capítulo “A formação territorial brasileira”, Sérgio Buarque de Holanda, formado em Ciências Jurídicas

pela Faculdade de Direito da rua do Catete, tratou da presença do elemento negro na história do Brasil

colônia. Ao abordar a influência desta raça para a formação da nacionalidade brasileira, o autor pontuou

alguns tópicos analíticos: “grupos e origens dos negros vindos para o Brasil”; “técnicas e artes”; “o que

devemos ao negro”.

Em relação à origem dos negros trazidos como escravos para a colônia portuguesa na América, ele

ressaltou a presença do grupo banto e do grupo sudanese:

“o grupo banto, o mais primitivo, habitava regiões do Congo, Angola, Moçambique,

colônias portuguesas na época do comércio de escravos; o grupo sudanês, reunido em

reinos e principados, habitava a Costa da Mina e a Guiné Portuguesa”134.

Segundo o seu manual escolar, em comparação aos índios brasileiros, os negros eram considerados

mais adiantados, especialmente os do grupo sudanês, que tinham sofrido influência da cultura árabe. Os

negros dos grupos banto e sudanês não eram nômades, ou seja, não tinham o hábito de mudar de lugar

freqüentemente. Eles eram sedentários porque, além de viveram da caça e da pesca, praticavam a

agricultura e a troca e venda de seus produtos. Na sua leitura, próxima à feita por Joaquim Silva, eram bons

para o trabalho na lavoura pois

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“Cultivavam cereais, plantas alimentícias e outras plantas, de onde extraiam fibras para

tecer (algodão) e materiais corantes, como o anil. Conheciam uma espécie de milho e uma

espécie de amendoim (diferentes do milho e do amendoim brasileiros), a banana, algumas

espécies de pimenta, o quiabo, o gergelim, a erva-doce. Extraíam azeite de palmeira, o

dendê, para o preparo dos alimentos, e usavam bebidas fermentadas, feitas de frutos de

palmeira e de grãos”135.

Quanto aos seus hábitos alimentares, Sérgio Buarque afirmou que eram ricos, baseado em vegetais,

leite e carne, uma vez que criavam gado em quantidade. Ao contrário dos índios, eles tinham o costume de

criar animais domésticos como a cabra, o porco e a galinha. Como anotou Joaquim Silva e Borges

Hermida, o autor de Cobra de Vidro destacou o conhecimento dos negros sobre o uso de vários metais,

como o ferro, o cobre e o bronze. Além disso, “trabalhavam o couro e faziam esculturas e objetos

artísticos em marfim, pedra, terracota, madeira e bronze”136.

Em síntese, na leitura do manual escolar de Sérgio Buarque, podemos perceber que o negro era o

modelo de trabalhador ideal para obra colonial. A mão operosa para movimentar as engrenagens dos

engenhos, para arar e cultivar as lavouras, para criar gados nos vastos pastos, para forjar peças e

instrumentos nas oficinas; enfim, para construir a obra colonial portuguesa nas Américas. Junto com a

força de seus braços, trouxe suas cerimônias e danças religiosas movimentadas e coloridas que

enriqueceram o folclore brasileiro.

Na formação do povo brasileiro, enfatizou o autor, havia uma forte dívida ao elemento negro. Para

Sérgio Buarque, uma das principais contribuições do negro foi para os pratos típicos da cozinha do

Nordeste, particularmente da Bahia, onde os escravos foram introduzidos em maior quantidade:

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“Vindo como escravos, e não como homens livres, os negros tiveram de se adaptar à vida

dos senhores brancos. Por isso, os pratos africanos foram recriados aqui, misturando

produtos originários da áfrica com produtos da terra brasileira. O azeite-de-dendê

combinou-se com os pratos de sal, e o coco e o leite de coco ajuntaram-se à maioria dos

doces e dos quitutes. Todos nós ouvimos falar de vatapá, acarajé, xinxim; de doces como

mungunzá, quindim, cocada, pé-de-moleque”137.

A adaptação do negro à vida na colônia, segundo o autor, pôde ser representada pela os pratos

típicos que a raça criou a partir de uma realidade diferente da África. A mistura de tradições não deu

origem apenas a novos pratos para a culinária, mas também a identidade mestiça do brasileiro, amplamente

exaltada depois dos anos 1930, principalmente depois do sucesso da obra de Gilberto Freyre dentro da

intelectualidade nacional e internacional e nos órgãos dos Estado. Navegando na contra corrente de

Varnhagen e Macedo, Sérgio Buarque fez um elogio da importância do negro na construção da identidade

nacional do país. Para ele, os negros foram necessários para a realização do projeto colonial português.

Além do trabalho e da culinária, o autor observou que o negro introduziu na linguagem termos que

continuavam vivos no vocabulário do povo:

“batuque, caçamba, canga, cafuné, caçula, cachaça, cafajeste cachimbo, dengo, mandinga,

marimbondo, mucama, moleque, quitute, quitanda. As mães-pretas inventaram palavras

doces e carinhosas para a linguagem das criancinhas: nenén, dodói, dindinha, tatá, au-

au”138.

Os negros ainda trouxeram uma nota musical alegre para o Brasil através de vários instrumentos

usados na África (agogô, atabaque, berimbau, reco-reco, tamborim, zabumba). O carnaval, neste contexto, seria a

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maior expressividade da influência do negro na cultura brasileira. A partir das imagens criadas por Sérgio

Buarque, percebemos que o negro enriqueceu o banquete da “democracia racial” com sua cozinha e

música.

Ao tratar do quilombo de Palmares, Sérgio Buarque associou seu surgimento à falta de escravos na

colônia e o clima de ausência de ordem por conta das invasões holandesas no século XVII.

De acordo com seu manual escolar, Palmares representou um perigo para os colonos, uma vez que

os negros viviam de assaltos e saques pelas vilas e fazendas vizinhas; além disso, “os negros fugidos faziam

falta à lavoura”139. Por desestabilizar o funcionamento da economia da colônia, o famoso quilombo teve o

destino já conhecido:

“Palmares resistiu durante mais de cinqüenta anos a todas as tentativas de destruição.

Finalmente o governador de Pernambuco, a capitania mais ameaçada por esse quilombo,

obteve a ajuda do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho. À frente de um grande

número de homens, após violentas lutas e um cerco demorado, conseguiu arrasar o

quilombo dos Palmares (1694). Os negros que sobreviveram à luta tiveram que voltar à

escravidão”140.

Com esta frase Sérgio Buarque encerrou seu breve relato sobre o quilombo de Palmares sem ao

menos mencionar as motivações que levaram os escravos a fugirem e formarem quilombos na colônia.

Quanto ao tráfico negreiro e cotidiano do cativeiro na colônia, o autor deixou para o seu leitor-aluno

um silêncio nas páginas do seu manual escolar. O Brasil seria o cenário privilegiado para o encontro das

três raças para formar uma nova identidade: o mestiço. As dores vividas pelos negros durante a viagem entre

a África e o Brasil, amplamente comentadas por João Ribeiro e Rocha Pombo, foram deixadas de lado pelo

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autor. De uma maneira indireta o autor acabou reforçando a imagem do cativeiro ameno destacado por

Joaquim Silva e Borges Hermida, uma vez que não abordou a violência inerente ao regime escravista.

Os manuais escolares de Joaquim Silva, Borges Hermida e Sérgio Buarque tiveram grande circulação

no sistema educacional durante a segunda metade do século, principalmente durante a ditadura militar

implantada pós-1964, e criaram uma imagem didática de um Brasil onde o negro, junto com o índio,

contribuiu cordialmente na obra monumental conduzida pelo branco, o que os militares batizaram de

“Brasil Gigante”. Esta imagem um tanto idílica da formação da sociedade brasileira, receberia crítica

veemente de autores de manuais escolares, como José Dantas, Raymundo Campos, Nelson Piletti e

Francisco Alencar141, a partir do final dos anos 1970, quando se iniciou no país uma luta contra o regime

ditatorial imposto e o modelo de história dele tributário142.

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_________________________________________________________________Nelson Piletti

No Brasil da abertura e da redemocratização dos anos 1980, os irmãos-autores Nelson e Claudino Piletti,

na sua História & Vida – Brasil: da pré-História à Independência, abordaram a temática da escravidão e da

introdução do elemento africano no cenário da sociedade colonial no sétimo capítulo (“O Brasil negro”). O

capítulo tratou, de maneira semelhante aos outros autores, de questões relacionadas ao tráfico negreiro, à

vida dos escravos no cativeiro, à destruição dos costumes africanos, à resistência dos negros (a história do

Quilombo de Palmares) e ao racismo presente no Brasil contemporâneo.

Embora tivesse retomado o eixo-temático consagrado pela tradição didática de escrita da História do

Brasil, os autores tinham uma visão diferente do passado colonial do negro, denunciando a violência da

escravidão e as injustiças cometidas contra a raça africana pelos colonizadores. Assim como Chico Alencar,

os Piletti, influenciados pelos estudos sobre a escravidão e as relações raciais no Brasil da “Escola

Sociológica de São Paulo”143, e trabalhos de militantes negros como Clóvis Moura e Joel Rufino144,

denunciaram o mito da “democracia racial”, defendido por Gilberto Freyre e amplamente difundido nas

páginas dos manuais escolares, como os de Joaquim Silva, Borges Hermida e Sérgio Buarque.

O processo de abertura política, iniciado no final dos anos 1970 e levado adiante na década seguinte,

proporcionou mudanças nos referências que moldavam a sociedade brasileira. Nesse contexto de

proposições de reforma, tomou força, por exemplo, dentro do debate sobre o ensino de História, a questão

étnica e a luta contra o racismo, o preconceito racial e a discriminação145.

Durante os anos de 1980, momento em que os irmãos Piletti e Chico Alencar escreviam seu manual

escolar, como resultado dessas críticas e revisões, a “democracia racial” perdeu o seu domínio

inquestionável na vida nacional. O fato ficou evidente, segundo George Andrews, em primeiro lugar,

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“na retórica altamente revisionista em torno do centenário da emancipação brasileira de

1888, inclusive nas declarações de altas autoridades do governo e figuras políticas; em

segundo, na incorporação de dispositivos anti-discriminatórios grandemente fortalecidos

(em comparação com a Lei Afonso Arinos) na Constituição de 1988”146.

As proposições lançadas pelos mais diferentes setores (como o movimento negro) da sociedade

brasileira e as transformações ocorridas no âmbito da educação, em especial do ensino de História,

presentes nas primeiras propostas curriculares estaduais e municipais e na Constituição de 1988, inauguraram

um novo momento nas discussões sobre a questão racial na educação brasileira.

Os anos de 1990 foram marcados pela intensificação dos debates sobre a questão racial e a

constituição de políticas anti-racistas na sociedade brasileira. Esses debates, de acordo com Celia Marinho

de Azevedo, fundamentais para se coibir a prática do racismo institucional vigente no país, têm sido

acompanhados de diversas propostas de medidas compensatórias, “que visam reverter o quadro de

permanente discriminação e exclusão da população negra em relação aos direitos básicos de cidadania

como educação, saúde, trabalho e lazer”147.

Neste contexto, para os autores da coleção História & Vida, por exemplo, o Brasil das relações

harmônicas entre as raças – “o paraíso racial” – não era um projeto consolidado como se fazia crer. O

contrato social necessário à consolidação de uma sociedade livre e democrática estava ainda por ser

firmado. Neste aspecto, os Piletti retomaram os debates das primeiras décadas da era republicana, em que

estava inserido Rocha Pombo entre outros pensadores da identidade nacional brasileira.

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No capítulo sobre o negro, os autores começaram afirmando que os primeiros habitantes do Brasil

eram os índios, depois vieram os elementos “exóticos”, como diria Capistrano de Abreu, os portugueses e

os negros:

“os portugueses (...) aqui chegaram matando os índios e ocupando suas terras. Quando os

portugueses iniciaram o cultivo da cana-de-açúcar, tentaram escravizar os índios, mas estes

se revoltavam contra a escravidão e, como conheciam bem o país, fugiam para o interior.

Os portugueses, então, partiram para a utilização do trabalho do escravo africano”148.

A partir de uma interpretação negativa do processo de colonização ensejado pelos portugueses no

Brasil, eles introduziram o elemento africano no cenário da História, como mais uma vítima da ganância e

desrespeito. Os Piletti denunciaram as atrocidades cometidas pelos portugueses na África para adquirir

mão-de-obra escrava para as suas colônias:

“Metade dos africanos morria durante a viagem. Muitos de fome, doenças e maus tratos.

Outros de banzo, que era uma espécie de tristeza, de melancolia sem fim, que vinha da

nostalgia, da saudade da sua terra, a África. Para o Brasil foram trazidos pouco mais de 3

milhões de africanos, sendo que os primeiros escravos chegaram aqui por volta de 1550.

Se a esses escravos juntarmos os que forma levados a outras partes – Europa, Estados

Unidos etc. – e os que morreram e foram jogados no mar, veremos que dezenas de

milhões de africanos foram arrancados de suas terras.

A escravização em massa dos africanos significou o despovoamento de regiões inteiras da

África; além disso, destruiu essa população, pois os negros trazidos da África morriam em

grande quantidade na viagem ou, rapidamente, no trabalho escravo”149.

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À exemplo de João Ribeiro, mas fazendo uso de números e estatísticas de mortos, a dupla de autores

descreveu a violência que era o tráfico negreiro, aproximando-se de Rocha Pombo ao denunciar as

atrocidades provocadas pela instituição da escravidão. Para eles, diferentemente de João Ribeiro e Joaquim

Silva, a escravidão não foi nem “reabilitação”, nem “amena” para o negro no Brasil. A escravização, na sua

leitura, foi uma tragédia nos dois lados do Atlântico para a raça negra, sinônimo de despovoamento e

destruição. A dramaticidade utilizada no discurso didático dos autores tinha a intenção de sensibilizar o seu

leitor-aluno para os crimes cometidos contra as vítimas dos colonizadores150.

A opção pelo trabalho escravo no Brasil foi justificada pelos autores com base em critérios

econômicos, pois os colonizadores tinham por meta obter grandes lucros151. Para conseguir tal meta, eles

tinham de gastar o mínimo possível com a força de trabalho:

“Ora, o trabalho escravo ficava muito barato para os colonizadores, pois eles gastavam

uma só vez, na hora da compra; depois não tinham de pagar salário, e as despesas com a

alimentação e a vestimenta dos escravos eram muito pequenas”152.

Para os irmãos Piletti, além da resistência, os índios se mostraram não adaptados para o trabalho

escravo, sendo necessária a opção pelo escravo africano. O africano, segundo os autores da coleção História

& Vida (repetindo as afirmações feitas pelos outros autores) era mais forte e afeito ao trabalho servil153.

Também, ressaltou os Piletti, os portugueses tinham interesses mercantis muito fortes no tráfico negreiro,

um negócio lucrativo154.

Em seguida, os autores relataram como os portugueses começaram a praticar o tráfico de escravos

africanos, associando tal fato às viagens para chegar ao Oriente, dando a volta pelo sul da África a partir do

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século XV. Segundo os Piletti, entre 1415 e 1498, enquanto os navegantes e comerciantes procuravam

avançar mais para chegar às Índias, encontraram uma fonte muito boa de lucro – o tráfico de escravos

africanos:

“Foi em 1441 que eles capturaram o primeiro grupo de negros, nas costas africanas. A

partir de então, o comércio de escravos negros tornou-se uma atividade que aumentou

sempre mais, e que deu muito lucro aos traficantes”155.

Os autores fizeram referência aos meios utilizados pelos portugueses para conseguir cativos no

continente africano. No começo, eram organizadas verdadeiras caçadas, como se os negros fossem

“bichos”: “chegavam, entravam nas aldeias, perseguiam e prendiam seus habitantes”156. Mais tarde, narrou

a dupla responsável pela referida coleção, os traficantes optaram por pagar por eles. Assim como João

Ribeiro, eles notaram que a prática da escravidão era muito comum na África, pois

“Às vezes, os próprios chefes africanos vendiam membros de sua tribo em troca de

tecidos, armas, jóias, tabaco, algodão, aguardente e outras mercadorias. Outras vezes

vendiam prisioneiros de guerra. Nesse caso, os próprios traficantes se encarregavam de

provocar guerras entre as tribos para depois comprar os prisioneiros”157.

Podemos perceber no discurso dos Piletti o destaque dado à astúcia dos portugueses no comércio de

escravos com os chefes africanos. Para eles, os comerciantes obtinham lucros elevados uma vez que

chegavam à África e compravam escravos por preços baixos ou por escambo (troca);

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“vendiam depois os escravos no Brasil por preços altos, ganhando muito dinheiro. No

Brasil, compravam açúcar, tabaco e outros produtos e vendiam muito mais caros esses

produtos em Portugal. Com isso, ganhavam mais ainda. Era o chamado comércio

triangular entre Portugal, África e Brasil”158.

Na abordagem feita pelos Piletti sobre o trafico negreiro na citação acima, identificamos uma leitura

preconceituosa amparada na idéia de níveis de civilização diferentes entre brancos e negros. Um exemplo

disto era a questão do escambo, a conhecida troca feita pelos brancos (portugueses) com os africanos para

adquirir escravos (através da cachaça, fumo de corda, panos, facões etc.), que dava ao leitor-aluno a

impressão de que os africanos eram facilmente “enganáveis”, “ingênuos” e “ignorantes”, pois os autores

não apresentavam nenhuma explicação sobre o que Mairon Valério chamou de “questão da alteridade ou

do relativismo cultural” 159. Dessa forma, no texto didático dos Piletti, a astúcia e a inteligência eram

características presentes aos brancos que manipulavam os negros, provocando até guerras entre as tribos

para depois comprar os prisioneiros.

A travessia do Atlântico da África para o Brasil e para outras partes do mundo, de modo semelhante

ao que descreveu João Ribeiro, Rocha Pombo e Borges Hermida, aparecia como “uma verdadeira tragédia

para os negros”160:

“Eles vinham amontoados e acorrentados, durante meses, nos porões dos navios

negreiros, onde comiam o pouco que lhes davam e, ali mesmo, faziam suas necessidades.

Má alimentação, falta de higiene, doenças e morte, assim era a viagem”161.

Ao contrário de João Ribeiro e Joaquim Silva, os quais acreditavam que findava o martírio da raça

negra ao desembarcar no Brasil, os irmãos Piletti, assim como Rocha Pombo, comentaram sobre o tráfico

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interno na colônia e suas mazelas. Para eles, o inferno do escravo estava apenas no seu começo, se não

sucumbia nas lutas no continente natal, se não morria na travessia do Atlântico, havia ainda as atrocidades

do cativeiro a sua espera no Brasil:

“Quando chegavam ao Brasil, os escravos eram colocados à venda nos mercados, Ficavam

à mostra, em exposição, e eram examinados minuciosamente pelos interessados. O

escravo não era considerado um ser humano, uma pessoa. Era tratado como se fosse uma

mercadoria, uma coisa, menos ainda que um animal”162.

Aos seus leitores-alunos, ainda recém acordados do berço esplêndido, e embalados pelas fábulas do

“paraíso racial”, os professores-autores da coleção História & Vida, mergulhado nos questionamentos

políticos e sociais de seu tempo, deram vazão a todo o potencial de dor de um passado vergonhoso.

Sensibilizados pelas dores da “vítima incapaz” – o escravo acorrentado, os Piletti, à semelhança de um

abolicionista, explodiram num discurso moral contra a escravidão. Neste caso, a estratégia não era derrubar

a instituição da escravidão como o fez João Ribeiro e Rocha Pombo, ambos envolvidos com a campanha

abolicionista, mas no Brasil dos anos 1980, denunciar um passado repleto de injustiças contra a própria

humanidade. Os irmãos-autores não discursavam para escravocratas do século XIX, e sim para crianças e

adolescentes do seu tempo, aqueles em quem eles enxergavam o futuro de uma nação que buscava seu

caminho rumo à cidadania política, civil e social ainda não conquistada.

Talvez no tronco onde os negros pereceram os Piletti visualizassem todos aqueles que ousaram

resistir ao regime ditatorial imposto desde 1964. Brasileiros que sofrearam torturas nos porões da ditadura,

enquanto crianças e adolescentes eram educadas nas escolas para o culto do “Brasil Gigante”, “paraíso

racial”, “país do futuro”. Ao fazerem um acerto de contas com o passado colonial, os autores procuraram

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oferecer lições para o seu presente, momento em que se construía uma outra página da história nacional.

Vejamos na citação abaixo o seu poder de comoção, que muito provavelmente faria um Castro Alves

emocionar-se e causaria arrepios em Varnhagen e Macedo:

“É muito triste ver até que ponto pode chegar a ambição do ser humano e o desrespeito

com relação a seus semelhantes. Em sua sede de lucros, de riqueza, o homem é capaz de

vender outro homem como se fosse um objeto. Sim, porque somos todos iguais, não

importando a cor da nossa pele, ou outra diferença qualquer. Infelizmente, no Brasil, ainda

não conseguimos acabar com a discriminação, e muita gente ainda considera os negros

inferiores: devemos todos lutar contra essa injustiça”163.

Para um aluno, que no primário ouvia e lia histórias sobre o Brasil como “terra sem preconceitos”,

uma mistura feliz de raças a que os manuais escolares de Estudos Sociais, de Borges Hermida, faziam

tantas referências, foi uma mudança de cenário muito rápida chegar na 5a série e ter, através do manual de

História de Piletti, de repente, retratada com cores fortes os horrores da escravidão e do racismo existente

na história da pátria tão exaltada nos rituais das festas cívicas da escola desde a pré-escola. Nas aulas de

História, éramos cobrados a participar da construção de um Brasil mais justo. O paraíso não era o vivido

no dia-a-dia, mas o que nos esperava no futuro, se trabalhássemos lutando contra todas as formas de

atrocidades. Éramos, por nossos mestres, motivados pela leitura dos poemas de Castro Alves e

sensibilizados pela figura heróica de Zumbi dos Palmares. As nossas aulas de História eram um tribunal

onde, a cada dia, era julgado um crime cometido no passado, tendo as informações do manual escolar dos

irmãos Piletti como provas que condenavam os culpados e absolviam os inocentes – o espetáculo da

redenção das vítimas. Falamos, obviamente, de uma situação particular vivenciada por quem escreve este

texto. Não há intenção de afirmar que todas as aulas de História no Brasil, a partir dos anos 1980, passaram

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a ser um espaço de denúncia e crítica aos atos do passado. Talvez existam outras memórias escolares

semelhantes ou diferentes desta, que possam ser narradas sobre esse período onde a história do país

encontrou-se com a história de vida de quem escreve, através de suas lembranças de infância nos bancos

escolares.

Mas, voltemos à leitura dos Piletti sobre a vida dos escravos na colônia. De acordo com a dupla, os

escravos começavam o trabalho ao raiar do dia e só terminavam ao escurecer. Quase não descansavam,

porque aos domingos, em muitos engenhos, cultivavam pequenos roçados para a sua subsistência, tendo

como principal alimento a mandioca. As condições de trabalho dos escravos, ressaltou os autores,

“eram extremamente duras, tanto nos canaviais quanto nas moendas e nas caldeiras. Essas

condições extremamente difíceis e ainda a alimentação insuficiente e de péssima qualidade

faziam com que o tempo de vida em que o escravo podia trabalhar não passasse de dez

anos. Depois de dez anos de trabalho pesado, o escravo estava acabado, doente e, na

maior parte dos casos, morria.

Os escravos vivam e trabalhavam sempre vigiados pelos capatazes e feitores. Os castigos para

qualquer falta, mesmo as mais leves, como chupar um pedaço de cana, eram muito

severos”164.

Os Piletti chegaram a descrever, associada com o uso de ilustrações de Jean Baptiste Debret e Johann

Moritz Rugendas e de fotografias, as diferentes formas de punições praticadas pelos senhores contra os

escravos:

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“tronco – os negros eram presos pelas canelas em pequenas aberturas existentes entre duas

vigas de madeira; ficavam horas e, às vezes, dias imobilizados, o que provocava inchaço

das pernas, formigamento e fortes dores;

bacalhau – espécie de chicote de couro cru, que rasgava a pele; muitas vezes os feitores

passavam sal nos ferimentos, tornando a dor ainda maior;

vira-mundo – instrumento de ferro que prendia mãos e pés;

Outros castigos também aplicados, quando as faltas eram consideradas mais graves, eram a

castração, a amputação de seios, a quebra de dentes com martelo e, em alguns casos, o

emparedamento vivo, isto é, o escravo era fechado vivo numa parede.

Quando fugiam, os escravos eram caçados pelos capitães-do-mato, especialistas em

perseguir e capturar e capturar escravos. O capitão-do-mato recebia certa quantia por

escravo que capturava e devolvia ao senhor”165.

A leitura desta relação de torturas extremamente violentas e de maus tratos, levou-nos a concordar

com Mairon Valério, que o manual escolar dos Piletti, assim como Chico Alencar, acabava por “vitimizar

os escravos” – sujeitos passivos, negando-lhes mais uma vez a participação histórica, “assim como a(s)

sua(s) resposta(s) a estas formas de agressão”166.

Apesar de tocar em alguns pontos de resistência escrava, como por exemplo, a fuga, os Piletti o

fizeram em função da ação branca, ou seja, a fuga só ocorria porque o senhor de escravo havia imposto

uma relação tão brutal no tratamento do negro que é quase uma reação incondicional deste tentar fugir ao

cativeiro. Esta imagem condicionava uma interpretação sobre a escravidão, trazendo à mente do leitor-

aluno uma concepção estereotipada167.

Neste quadro de violência pintado por eles apareceu a denúncia da destruição dos costumes dos

africanos na colônia. Além de serem arrancados de sua terra e trazidos à força para o Brasil como escravos,

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os africanos sofriam uma série de outras agressões relacionadas à suas práticas culturais, pois “as famílias

eram separadas, as tribos desorganizadas, africanos de costumes diferentes, de tribos diferentes, eram

misturados na mesma propriedade”168. Tal desestruturação significou um revés para as tradições dos

diferentes povos que habitavam os continente africano. Na fazenda, na sua leitura, os africanos

escravizados eram forçados a abandonar seus costumes e adotar os costumes impostos pelo seu senhor.

Segundo os autores, com muito custo eles conseguiam manter alguma tradição169. No geral, apontou os

irmãos-autores, os escravos eram submetidos a uma série de mudanças no seu comportamento:

“em lugar dos alimentos com os quais estavam acostumados na África, os africanos eram

obrigados a engolir a comida que o senhor lhes dava; em lugar de suas vestes tradicionais,

ou de nenhuma veste, os africanos eram obrigados a vestir grossos panos de algodão; em

lugar de sua língua nativa, eram obrigados a apreender o português; em lugar do trabalho

livre, o trabalho escravo, de sol a sol, controlado pelo feitor, que castiga severamente

qualquer falta; em lugar da vida familiar e tribal da África, a vida coletiva da senzala: uma

habitação sem divisões, abafada, quase sem janelas; e, lugar de suas religiões africanas, a

religião católica, com missas, batizados, casamentos e outros rituais impostos pelo padre

capelão do engenho”170.

Diante de tanto sofrimento, para eles, reforçando a imagem da escravidão criticada pela historiografia

da escravidão, a partir dos anos 1980171, era impossível não resistir, o escravo teria de reagir à violência do

senhor implacável:

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“Por isso os africanos resistiram como puderam: fugindo, lutando, morrendo. Achavam

preferível morrer, lutando pela liberdade e pelos seus costumes, a morrer trabalhando

como escravos”172.

De acordo com o professores-autores Piletti, quando conseguiam fugir, os negros reuniam-se em

comunidades chamadas quilombos. Havia poucas informações sobre os quilombos, pois os que abordaram

o assunto, em geral brancos, preferiam tratar das sobre das “tropas que iam combatê-los, e não sobre os

próprios quilombos”173, como por exemplo, fizeram Varnhagen e Macedo.

Durante a escravidão, existiram numerosos quilombos. Para os autores de História & Vida, foram

mais de cem espalhados por todo o território colonial, sendo a maior parte localizada no Nordeste

(Sergipe, Alagoas e Bahia), regiões com maior concentração de escravos.

Na sua leitura, o significado maior das fugas foi tentar escapar da escravidão e também do jugo dos

senhores brancos, que tentavam destruir os costumes dos negros:

“eles queriam falar sua própria língua africana, seguir leis de suas tribos, fazer suas festas,

praticar sua religião, trabalhar de sua própria maneira, sem ter de obedecer ao feitor.

Queriam viver em paz”174.

O quilombo era o lugar onde os negros poderiam viver em liberdade. Os seus habitantes, segundo os

autores, cultivavam os alimentos necessários para a sua sobrevivência. Possuíam também pequenas oficinas

onde faziam roupas, móveis e instrumentos de trabalho:

“A vida nos quilombos não era fácil, pois as comunidades estavam sempre sujeitas aos

ataques das expedições enviadas pelos senhores e pelo governo. Por isso mesmo, a maior

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parte dos quilombos teve vida curta. Quando eram destruídos, os negros eram levados de

volta a seus donos e severamente castigados”175.

Após apresentar a maior forma de resistência praticada pelos escravos africanos no Brasil, a dupla de

autores tratou dos mais conhecidos quilombos da época colonial, localizados na serra da Barriga, região

dos atuais Estados de Alagoas e Pernambuco:

“Eram cerca de dez quilombos, unidos sob o nome de Palmares, que resistiram durante

quase todo o século XVII aos ataques do governo e dos senhores de escravos. Palmares

chegou a ter milhares de habitantes negros e seu principal comandante foi Zumbi”176.

Assim como João Ribeiro e Rocha Pombo, os autores apresentaram informações sobre a localização

e organização dos quilombos na serra da Barriga. A leitura da história de Palmares feita pelos Piletti estava

mais próxima da narrativa épica feita por Rocha Pombo. Ao contrário de Joaquim Silva, eles não fizeram

referência à prática de escravidão nos referidos quilombos e dos saques cometidos nas fazendas e vilarejos

próximos pelos quilombolas. Inspirado na interpretação de Eduardo Galeano e de Clóvis Moura, os

quilombos de Palmares eram apresentados como o oposto da sociedade e economia colonial portuguesa –

uma terra de gente livre, de policultura e de fartura de alimentos. Para comprovar esta imagem dos

Palmares, os Piletti apresentaram a seguinte citação retirada do livro de Eduardo Galeano:

“Em plena época das plantações açucareiras onipotentes, Palmares era o único lugar do

Brasil onde se desenvolvia a policultura. (...) Os negros cultivavam o milho, a batata, os

feijões, a mandioca, as bananas e outros alimentos. (...) A abundância de alimentos de

Palmares contrastava com as penúrias que, em plena prosperidade, padeciam as zonas

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açucareiras do litoral. Os escravos que haviam conquistado a liberdade a defendiam com

habilidade e coragem porque compartilhavam seus frutos: a propriedade da terra era

comunitária e não circulava dinheiro no Estado negro”177.

Nesta perspectiva, diferentemente da colônia monocultora, miserável, gananciosa, sem liberdade e

violenta, Palmares aparecia no discurso didático dos autores como um exemplo de sociedade para as

futuras gerações. Um lugar onde se respeitava os princípios básicos de cidadania como liberdade e respeito.

Os irmãos Piletti, assim como Chico Alencar, enfati000zaram a grandiosidade de Palmares para demonstrar

o quão terrível e criminosa foi sua destruição pelas autoridades coloniais e senhores de escravos. Segundo

sua narrativa,

“A Guerra dos Palmares foi uma das mais importantes do Brasil colonial. De 1644,

quando aconteceu o primeiro ataque, até 1695, quando Zumbi foi assassinado, Palmares

foi atacado mais de trinta vezes”178.

Após sucessivas tentativas de destruição dos quilombos da serra da Barriga, sempre vencidas pelos

palmarinos, em 1668, o governador de Pernambuco e os senhores de engenho formaram uma “união

contra Palmares”. O poder de resistência dos habitantes destes quilombos era tão impressionante na escrita

dos Piletti que foi necessário um esforço em conjunto dos coloniais para enfrentá-lo. Todos os anos,

Palmares era alvo de investidas, mas as tropas do governo e dos senhores de engenho “acabavam

derrotadas e Palmares ressurgia mais forte do que antes”179. Diante de tantos fracassos, as autoridades

locais chegaram a firmar um acordo com Palmares, mas a Coroa portuguesa não aceitou o acordo e novos

ataques foram organizados.

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Para pôr termo no confronto, o governador de Pernambuco, segundo os Piletti, após ressaltar os

reveses das tropas coloniais, “resolveu contratar o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho e seus

homens para tentar destruir Palmares”180. Estava traçado o destino de Palmares naquele instante. No início,

como havia relatado Varnhagen, Macedo e Rocha Pombo, os paulistas foram derrotados. Percebendo que

não seria fácil a tarefa, observou a dupla, Domingos Jorge Velho

“Exigiu mais armas, munições e mantimentos do governador. De várias capitanias do

Nordeste foram recrutados homens para participar do próximo ataque a Palmares. Cerca

de 9000 homens partiram para a Serra da Barriga, no início de 1694.

Macaco, a capital de Palmares, foi atacada por todos os lados. Apesar da valentia com que

se defenderam, durante vários dias, os palmarinos não conseguiam resistir à violência do

ataque. A maioria deles morreu lutando. Zumbi, embora ferido, conseguiu fugir. Durante

quase dois anos continuou organizando os escravos da região e atacando os senhores de

engenho e as forças do governo”181.

Embora oferecesse resistência através da liderança de Zumbi, Palmares sucumbiu no final de 1695.

Saiu vitoriosa a astúcia bandeirante, tão ressaltada por Varnhagen, Macedo, Rocha Pombo e Joaquim Silva.

O manual escolar dos irmãos Piletti, a exemplo do de Rocha Pombo, lamentaram a violência praticada em

Palmares: o primeiro, porque acreditava que o crime de Palmares era originário do crime maior da

escravidão e, o segundo, porque este era um exemplo de espaço de liberdade e respeito dentro da colônia

corrompida. Ao contrário dos outros autores, mesmo Rocha Pombo, os Piletti ressaltaram com maiores

detalhes a figura de Zumbi, o líder dos quilombos, reforçando sua imagem heróica, através de sua bravura

e da forma como este morreu lutando por seus ideais. A narrativa da morte de Zumbi aproximava-se

muito, em alguns aspectos da feita em relação a outro herói que se revoltou contra as autoridades coloniais

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– Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes da Inconfidência Mineira. Vejamos como os Piletti relataram o

final destas duas personagens históricas do passado colonial:

Zumbi

“No final de 1695, um amigo de Zumbi foi capturado pelas forças do governo. Foi

torturado até que revelasse o esconderijo do líder da resistência negra. Atacado de

surpresa, Zumbi lutou até morrer. Era dia 20 de novembro, hoje lembrado como o dia da

Consciência Negra.

A cabeça de Zumbi foi cortada e levada para Recife. O governador mandou que fosse

colocada no alto de um poste, onde deveria ficar até se decompor ‘para satisfazer os

ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros, que supersticiosamente o

julgavam imortal’.

Zumbi morreu, mas seus ideais de liberdade permaneceram vivos; novos quilombos foram

organizados e os escravos continuaram lutando pela sua libertação”182.

Tiradentes

“Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi um dos participantes mais destacados do

movimento. Estava sempre viajando pela região, procurando convencer as pessoas a

apoiarem a revolução.

Desta vez, os revolucionários queriam acabar de vez com a dominação portuguesa, com o

regime colonial que oprimia o Brasil. Seus planos eram de proclamar a república, acabando

com o poder do rei; criar uma universidade em Vila Rica; e fundar fábricas em todas as

regiões do Brasil.

Belos planos, mas que foram por água abaixo. É que entre os revolucionários havia um

traidor, um coronel chamado Joaquim Silvério dos Reis. Ele contou tudo ao governador.

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Este, para que a revolta não estourasse, mandou suspender a cobrança dos impostos

atrasados, a derrama. Em seguida mandou prender os principais revoltosos.

Depois de muitos interrogatórios, saiu a sentença: Tiradentes foi condenado à morte e os

outros foram expulsos do Brasil e mandados para a África. No dia 21 de abril de 1792,

Tiradentes foi enforcado e seu corpo cortado em pedaços: a cabeça ficou em Vila Rica e

os membros foram colocados em postes, na estrada que liga Minas ao Rio de Janeiro. Sua

casa foi destruída e sobre a terra jogou-se sal, para que nem as plantas ali crescessem.

Apesar de todas as atrocidades, a chama da liberdade que Tiradentes acendeu não se

apagou. Haveria ainda outras lutas, até que o sonho da independência dos inconfidentes se

tornasse realidade”183.

A partir da construção do fim destes dois heróis feitas pelos Piletti, podemos traçar algumas

comparações para fins analíticos:

Primeiro: os dois pertenceram a movimentos que, de alguma maneira, defendiam idéias de liberdade e

se opunham à ordem estabelecida (autoridades coloniais), tendo o primeiro lutado pela liberdade de uma

raça, os negros, da escravidão e da violência do castigo, o segundo contra a opressão do governo

português, inspirados pela Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade) e a cobrança excessiva de

impostos (a derrama).

Segundo: o primeiro pertenceu a um espaço de resistência (os quilombos) que travava uma luta armada

longa e incansável contra os coloniais durante quase 50 anos, o segundo participou de um grupo de

revolucionários que pretendiam proclamar a república, pondo fim ao poder da coroa sobre a colônia, no

entanto o projeto não foi consumado.

Terceiro: ambos tiveram um papel, de acordo com o autor, de relevância dentro dos movimentos dos

quais faziam parte. Zumbi era o líder dos quilombos de Palmares (de escravos) e Tiradentes era um dos

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participantes mais destacados dos inconfidentes, por estar sempre viajando pela região buscando adesões

para a revolução. Um comandava um grupo (negros escravos fugidos) contra os coloniais no ataque direto,

o outro buscava congregar apoios (na elite colonial) a favor da revolução que iria acontecer.

Quarto: tanto Zumbi quanto Tiradentes foram vítimas de um ato de traição. O primeiro foi entregue

por um amigo que nas mãos dos coloniais, sob tortura, entregou o esconderijo do seu líder, o segundo foi

traído também por alguém de dentro do grupo dos revolucionários, mas este traiu por interesses próprios

(dívidas).

Quinto: os dois foram capturados e tomados como exemplo para colocar fim ao movimento de que

faziam parte. Segundo Piletti, Zumbi e Tiradentes foram assassinados de forma cruel e utilizados como

exemplo do poder da autoridade da Coroa, pois tiveram seus corpos esquartejados e expostos em locais

públicos.

Sexto: os dois tornaram-se símbolos para a posteridade pelos ideais que representavam, seja pela luta

direta no campo de batalha, seja pelos projetos idealizados. Zumbi, um herói racial, Tiradentes, um herói

nacional. Zumbi lutando contra a escravidão de seu povo, Tiradentes defendendo a liberdade da colônia e

proclamação de uma república.

Contudo, embora próximos nos seus destinos trágicos, Zumbi e Tiradentes tiveram destinos

diferentes na constituição da memória histórica, em especial no período republicano. Uma memória

dolorosa e perigosa para o Império, descendente direto do passado colonial português, sob a constelação

da era republicana, Tiradentes encontraria seu lugar no panteão dos heróis nacionais como símbolo do

novo regime. Figura cultuada e amplamente representada no imaginário nacional, recebeu destaque nos

manuais escolares, analisado como o mártir da Inconfidência Mineira, defensor do projeto republicano184.

Sua imagem heróica chegou a se aproximar da história de Jesus Cristo seja em relatos, seja na iconografia185.

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Rocha Pombo, por exemplo, nos anos 1920, ao abordar o tema da Inconfidência Mineira, num relato

dramático, ampliou progressivamente o espaço dedicado a Tiradentes, cuja atuação foi narrada no sentido

de torná-lo o líder da conspiração e o herói sacrificado pela pátria186, o que não era feito com a figura de

Zumbi, rapidamente comentado na parte sobre os quilombos de Palmares. Joaquim Silva, escrevendo no

Estado Novo, ao relatar a luta contra a Coroa portuguesa, apontou a Inconfidência Mineira como seu

ápice, bem de acordo com a tradição republicana. Todo o seu discurso caminhou para a exaltação do

martírio de Tiradentes, sacrificado pela violência e pela crueldade da justiça portuguesa. Sua narrativa sobre

o suplício de Tiradentes estava repleta de sensibilidade:

“Foi longo o processo. Os acusados presos havia já tanto meses, abatidos, fraquejavam:

inocentavam-se ou acusavam-se mutuamente. Mas dentre todos destacava-se, nobre,

impávido com desprendimento, sacrificando-se pelos companheiros que desanimavam, o

grande Tiradentes, que procurava atrair sobre si a maior culpa da malograda conjura.

Finalmente, depois de dois anos, concluiu-se o processo.

A 19 de abril de 1792 foi lida a sentença aos conjurados. Eram condenados à morte os

doze principais chefes e, os outros, a degredo. No dia seguinte, porém, nova sentença

comutava em degredo a pena de morte para todos, à exceção de Tiradentes.

A 21 de Abril de 1792 no Rio de Janeiro subiu sereno à forca, no largo da Lampadosa o

heróico precursor da independência e da república. Morto o Tiradentes, esquartejaram-lhe

o corpo e decapitaram-no. Com seu sangue escreveu-se a certidão do suplício. A cabeça do

herói erguida num poste, em Vila Rica; e os pedaços de seu corpo, salgados, foram

expostos nos lugares que ele mais freqüentava. A casa em que residia foi arrasada; e seus

descendentes declarados infames.

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A lição, duríssima e monstruosa, devia, em sua crueldade, mostrar aos brasileiros do vice-

reino o perigo da rebeldia. Não o conseguiu. Teve o infalível destino contraproducente de

todas as injustiças e violências: serviu para que, na terra pátria, regada com o sangue do

mártir, mais depressa vicejasse a árvore da liberdade”187.

Diante da exaltação da figura de Tiradentes, eleito o representante do sentimento nacional no

passado colonial brasileiro, restou o silêncio ou um papel secundário ao líder dos quilombos de Palmares

por parte da memória oficial nacional do século XX presente nos manuais escolares de História do Brasil.

Zumbi estaria ligado ao heroísmo de uma raça (os negros) e de um modelo de rebeldia que incomodava a

ordem estabelecida. Zumbi seria a lembrança de um passado de conflito racial, uma mácula para o discurso

da “democracia racial”. Zumbi e Palmares não seriam um exemplo para o contrato social, como defendia

Rocha Pombo, necessário à construção da nação brasileira. Eles separavam, não uniam. Tiradentes e a

Inconfidência Mineira uniam, não separavam. Era o interesse nacional (da República) acima de todas as

diferenças. Era a libertação da colônia do jugo da Coroa portuguesa (um projeto nacional).

Na leitura dos Piletti e, em alguma medida, Chico Alencar188, Zumbi e Palmares representavam

exemplos de luta contra as injustiças presentes no passado colonial nacional que precisavam ser exaltados.

Narrar sua história seria denunciar o mito da “democracia racial” e a idéia da escravidão amena e benigna,

tão ressaltada por João Ribeiro e Joaquim Silva. Tiradentes e a Inconfidência Mineira continuariam, para

ele, a ser um exemplo de luta contra a colonização portuguesa e as suas atrocidades.

Para representar a luta pela libertação dos escravos, os manuais escolares analisados elegeram a figura

dos abolicionistas, em especial Joaquim Nabuco189 e a princesa Isabel, a “redentora”, que assinou a Lei

Áurea, em 13 de maio de 1888190, deixando Zumbi e Palmares em segundo plano.

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Ao comentar sobre a idéia de resistência escrava presente nos manuais escolares de História do

Brasil, produzidos nos anos 1980, Mairon Valério afirmou que a fuga e a formação de quilombos citados

no discurso didático possuíam um caráter de heroísmo, passando uma imagem de perfeita resistência, de

uma luta por “ideais de liberdade”:

“Este tipo de reflexão enquadra-se plenamente no modelo ocidental de heroísmo, ou seja,

é o épico de Ulisses, criada por Homero nas clássicas Ilíada e Odisséia, que encanta estes

autores – mostrando assim, como eles enxergam apenas um ‘modelo’ de resistência

branca, incapazes de entrar no universo do negro e falar da resistência cultural, de

resistência no cotidiano (...), só conseguem se atentar para as manifestações de luta que

estão próximas de seu universo cultural completamente ‘branco’”191.

O tipo de análise moral feita por autores na linha dos Piletti realizava, segundo o autor, um

empobrecimento da reflexão histórica crítica, como também possibilitava a formulação de uma

interpretação “de vitimização eterna do negro – ‘o mito do pobre coitado’, que por isso precisa da tutela

branca para poder ajudá-lo a desenlaçar-se da ‘maldade’ do homem branco”192.

Os autores da coleção História & Vida, embora concordassem que a cultura africana tenha sido

subjugada pela cultura portuguesa (branca), no décimo segundo capítulo (“A cultural no Brasil colonial”),

traziam o tópico chamado “as contribuições do negro” onde ele pretendeu mostrar, a exemplo do que fez

Rocha Pombo, Joaquim Silva, Borges Hermida e Sérgio Buarque a importância e a influência que esta raça

legou à nação. Dentro deste tópico, os autores faziam referência às crenças religiosas, às comidas, às danças

e às músicas, ao vestuário e ao vocabulário, heranças presentes no cotidiano, ou seja, o que “sobrou” da

cultura africana. Para a formação da identidade nacional brasileira, o negro trouxe as seguintes oferendas

para o banquete nacional:

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“Vários pratos típicos da Bahia, lugar em que os negros foram mais numerosos, resultaram

da contribuição dos escravos. Entre eles, podemos citar o vatapá e o acarajé. Também

doces, como a cocada, o quindim, o pé-de-moleque e outros são de origem negra.

Muitas palavras de nosso vocabulário têm origem africana: batuque, cachaça, caçula,

cachimbo, dengo, moleque, quitute, quitanda e muitas outras.

Instrumentos musicais ainda hoje utilizados vieram da África: atabaque, berimbau,

tamborim, reco-reco, agogô etc. Da mesma forma certos ritmos de dança e de música

receberam forte influência africana, como o maracatu, a congada, o samba, o frevo etc.

Embora fossem obrigados a seguir a religião católica, os negros não deixavam de lado seus

rituais. Dessa forma, as crenças religiosas africanas misturaram-se com o catolicismo,

formando o que se chama de sincretismo religioso.

Muitas divindades negras, os orixás, foram identificadas com os santos católicos: Oxalá, pai

dos orixás, foi identificado com Nosso Senhor do Bonfim; Xangô, protetor contra os

trovões e tempestades, passou a ser identificado com Santo Antônio ou São João; Ogum é

São Jorge; Iemanjá é Nossa Senhora da Conceição etc. Essas divindades africanas

continuam sendo homenageadas nos terreiros (locais onde são praticadas as religiões de

origem africana, como a umbanda e o candomblé). Em muitas cidades do Brasil,

principalmente na Bahia.

Algumas festas homenageiam ao mesmo tempo divindades africanas e santos católicos: em

1o de janeiro homenageia-se Nosso Senhor do Bonfim e Oxalá; em 8 de dezembro festeja-

se Nossa Senhora da Conceição e Iemanjá”193.

Os irmãos Piletti, ao falarem das contribuições do negro junto com a do português e do índio,

retomaram a necessidade de se consolidar o projeto de nação fundado na convivência entre as três raças.

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Eles não abandonaram a idéia de contrato social, apenas denunciou que ele não estava consolidado na

sociedade brasileira como se imaginava. O rio (o branco) e seus afluentes (o índio e o negro), ou seja, a

matriz esboçada por von Martius estava presente na construção do projeto de nacionalidade proposto

pelos autores da coleção História & Vida.

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Imagens do Negro

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________________________________________________________________Chico Alencar

No terceiro capítulo (“Pau, Pano e Pão”), Chico Alencar, formado em História pela Universidade Federal

Fluminense e mestre em Educação pela Fundação Getúlio Vargas, tratou da presença do elemento negro

na história do Brasil. Neste capítulo, o autor destacou alguns pontos a serem analisados sobre este povo: a

concepção de mundo dos negros africanos; as comunidades tribais e os reinos africanos; o aprisionamento

de negros e a viagem para o Brasil; o cotidiano do cativeiro na colônia; os trabalhos feitos pelos negros; o

trabalho das crianças; a participação do negro na cultura brasileira; a resistência dos negros à opressão e os

quilombos.

De acordo com Chico Alencar, os negros nagô, habitantes de vasta região da África Ocidental,

explicavam dessa maneira a criação do mundo:

No início, só existia Olorum. Olorum é o ar que ocupa todos os espaços, o senhor de todos

os seres e de todos os orixás. Quando decidiu criar a terra, Olorum chamou Obatalá, aquele

que representa o poder masculino. Entregou-lhe a bolsa existência e deu-lhe instruções

para realizar a tarefa.

Obatalá reuniu todos os orixás e encontrou-se com Odudua, o princípio do poder feminino

de onde tudo se origina. Ela lhe disse que só o acompanharia depois de fazer oferendas a

Exu, o grande controlador dos caminhos.

Obatalá não quis esperar Odudua e seguiu em frente. Passou por Exu, que lhe perguntou

pelas oferendas. Obatalá disse que não tinha feito nada e continuou, sem ligar muito. Exu

sentenciou:

- Nada do que Obatalá fizer vai dar certo!

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Imagens do Negro

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Na longa caminhada, Obatalá começou a sentir sede. Quando já não agüentava mais

encontrou uma palmeira, Igi-ope. Abriu seu tronco e bebeu sua seiva. Bebeu tanto que

perdeu os sentidos, ficando estendido no meio da estrada.

Enquanto isso, Odudua cumpria suas obrigações: levou para Exu cinco galinhas, das que

têm cinco deddos em cada pata, cinco pombos, um camaleão e dois mil elos de corrente.

Exu ficou com uma pena da cabeça de cada ave e devolveu a Odudua a corrente, as aves e

o camaleão, todos vivos.

Odudua consultou seus babalaôs (adivinho) e soube que ainda era preciso fazer um sacrifício

aos pés de Olorum. Olorum se espantou vendo que Odudua não tinha seguido com Obatalá.

Mas aceitou a oferenda. Quando abriu a almofada onde sentava, viu, surpreso, que tinha

esquecido de colocar na bolsa da existência um punhado de terra. Então Olorum entregou

a terra nas mãos de Odudua, para que ela levasse até Obatalá.

Odudua encontrou Obatalá dormindo ao pé da palmeira, com os orixás sem saber o que

fazer. Depois de tentar acordá-lo sem conseguir, Odudua apanhou a bolsa da existência e a

devolveu a Olorum. Foi aí que Olorum decidiu passar a nobre tarefa da criação da terra a

Odudua.

Odududa voltou ao lugar onde Obatalá dormia e explicou a situação aos orixás. Eles

seguiram com ela rumo ao ponto determinado por Olorum para a criação da terra.

Lá chegando, Odudua firmou-se nos elos da corrente e deslizou por sobre as águas até o

lugar indicado para lançar a terra. Depois enviou Eyelé, a pomba, para esparramá-la. Eyele

trabalhou muito tempo. Para ajudá-lo, Odudua mandou as galinhas de cinco dedos, que

removeram e espalharam a terra em todas as direções até onde a vista não alcança.

Era preciso saber se a terra estava firme: tarefa para o camaleão! O bichinho colocou

primeiro uma pata, depois, outra, foi tateando até sentir a terra firme sob seu corpo.

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Finalmente foi Odudua. Ela foi a primeira entidade a pisar na terra! Atrás de Odudua vieram

os orixás, reconhecendo a sua autoridade.

Nesse meio tempo, Obatalá acordou. Não achou a bolsa da existência e voltou a Olorum,

muito nervoso. Para acalmá-lo, Olorum transmitiu-lhe o saber profundo e o poder que lhe

permitiria criar todos os seres que povoariam a terra.

Obatalá reuniu alguns orixás e seguiu para a terra. Dessa vez ele não falharia! Criaria as

árvores, os animais, os pássaros, os peixes e os seres humanos!

Odudua recebeu Obatalá com muita delicadeza, pois sabia que ele era importante na criação

da terra:

- Oba áláá, seja bem-vindo! Oba alá (o grande rei) acaba de chegar! Saudações pela viagem

que você acaba de fazer! Ó senhor dos habitantes do mundo!

Odudua e Obatalá ficaram sentados, frente a frente. E os grupos, ligados a um e a outro,

não chegavam a um acordo sobre quem deveria reinar:

- Obatalá é poderoso! É o criador de todos os seres! – diziam uns.

- Mas Odudua chegou primeiro e criou a terra as águas, onde todos moram! – replicavam

outros.

Os atritos foram tantos que explodiu uma guerra, colocando em perigo toda a criação.

Foi então que Orunmilá, mensageiro de Olorum, entrou em ação: usou de toda a sua

sabedoria para apaziguar as duas entidades. Sentou-se de novo face a face, mostrou a

importância da tarefa de cada um deles. Reconfortou Obatalá:

- Você é o mais velho, Odudua apenas o substituiu. Você tem que confirmar a criação.

Não é justo que ponha tudo a perder.

Depois, Orunmilá convenceu Odudua a ser amável com Obatalá:

- Você, como criadora da terra, deve conviver bem com o criador dos seres! Afinal, tudo

lhes pertence!

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Então, Obatalá e Odudua fizeram as pazes. O masculino e o feminino resolveram agir

sempre juntos. Estava garantida a procriação dos seres. E estava assegurada a

continuidade da existência”194.

A partir da história da criação mundo feita pelos orixás195 citada acima, o autor iniciou sua narrativa

sobre as crenças e organização social das comunidades africanas, em especial dos povos que falavam a

língua yourubá. Narrar uma história da criação a partir da óptica africana era uma forma de Chico Alencar

demonstrar sua opção por fazer uma narrativa do ponto de vista do vencido, do oprimido. Surgia das suas

páginas uma África com representações gloriosas e iluminadas, repletas de mitologias e lendas complexas.

Um mundo povoado de histórias fantásticas silenciadas pelo discurso colonizador.

Para ele, em todo o continente africano havia a crença nos orixás, as entidades que reinavam a

natureza:

“Eles estão na água do mar ou dos rios, nas pedras e conchas, nas árvores e matas. E

acompanham tudo e todos - as pessoas, os bichos, as plantas e as aldeias.

- Axé para todos!

A energia da vida se espalhava por toda a comunidade, no seu culto à natureza, ao trabalho

e na lembrança dos antepassados.

- Axé para todos!”196.

Através dos orixás esses povos tinham uma firme ligação entre o mundo real e o mundo sobrenatural,

entre o corpo e o espírito, entre o masculino e o feminino.

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De acordo com o seu manual escolar, na África existiam diversas formas de sociedades. Algumas

tribos possuíam rei, considerado divino, conhecidos como reinos teocráticos. Outras tinham uma

organização semelhante com a dos nativos brasileiros, as comunidades tribais.

Assim como os nativos da América, os povos africanos entravam algumas vezes em confronto, pois

nem sempre o axé da harmonia era forte em se tratando de luta por sobrevivência. Encerrada a guerra,

segundo Chico Alencar, os prisioneiros tinham de trabalhar no lugar dos que haviam sido mortos em

combate. Portanto, tornavam-se escravos da comunidade que os capturava. Todavia, ao contrário do que

fazia os europeus, a vida que os escravos levavam era parecida com a dos homens livres da aldeia:

“trabalhavam lado a lado com eles, não podiam ser vendidos e sua maneira de ser era respeitada”197. Em

outras palavras, segundo o autor, havia uma ética e conduta de respeito no trato dos escravos de guerra.

Chico Alencar, navegando contra a corrente dos demais autores, atribuiu a origem da humanidade ao

continente africano. Na sua leitura,

“Há quase um milhão de anos o deserto do Saara não existia: ali havia uma grande floresta!

E ali surgiram os primeiros grupos humanos. Cientistas descobriram os fósseis num país

do lado oriental, banhado pelo Índico, chamado Quênia”198.

Diferentemente de autores como João Ribeiro e Joaquim Silva, que haviam construído uma imagem

negativa da África, Chico Alencar apresentou ao seu leitor-aluno um continente fantástico, com uma

civilização milenar, composta por povos de diferentes culturas.

Esta imagem iluminada do passado do continente africano apresentada pelo autor de Brasil Vivo,

exceção no universo dos manuais escolares analisados, estava próxima da construída pelo discurso

abolicionista norte-americano no século XIX. De acordo com Celia Marinho de Azevedo, o abolicionista

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Walker, por exemplo, com o objetivo de contradizer a idéia de raça recusou o pressuposto de que a África

enquanto terra das trevas no presente não possuía passado. Com este fim, este abolicionista

“deu os primeiros passo no sentido de escrever uma história da África do ponto de vista

dos africanos oprimidos. No passado, a África havia sido uma terra de luzes porque o

conhecimento, ou seja, as artes e ciências, tiveram origem entre ‘os filhos da África ou de

Cam’, tendo sido ‘levados depois para a Grécia onde progrediram e refinaram-se’, assim

como mais tarde os romanos. Walker acreditava que as artes e as ciências tinham sido

iniciadas pelos africanos por terem sido eles os habitantes do Egito, país normalmente

apontado pelos historiadores como o berço da civilização mundial.” 199

Para Chico Alencar, essa civilização responsável por belas crenças como a de Olorum foi vítima de um

grande massacre a partir do século XV. A chegada das embarcações com os comerciantes europeus trouxe

para a África uma página trágica para a sua história. O continente, berço da humanidade, começou a perder

suas riquezas e sua gente. Até o século XIX, ressaltou o autor, entre mortos e escravizados, o continente

perdeu 10 milhões de pessoas.

Para ele, à semelhança dos irmãos Piletti, a presença européia nesse continente representou um

crime, uma vez que

“Amontoados em porões escuros e abafados, milhares de negros eram forçados a

atravessar o oceano, nos navios dos comerciantes. Eram marcados a ferro no ombro, na

coxa ou no peito e algemados até o navio distanciar-se da costa africana. Mal alimentados

– arroz, um ou outro legume e farinha -, bebendo água salobra e fechados em porões

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escuros e sem ventilação, muitos não resistiam à terrível travessia. Por isso os navios

negreiros eram também chamados de ‘tumbeiros’.

Os brancos europeus, por seu lado, achavam tudo normal e necessário. Para eles, a África

não passava de um ‘lugar onde eram caçados os homens negros’. Caçados na Guiné, em

Angola, no Sudão, em Moçambique, em toda parte, durante mais de três séculos!”200.

Assim como, por exemplo, Rocha Pombo e Piletti, Chico Alencar descreveu com cores muito fortes

suas descrições sobre o tráfico de escravos da África para o Novo Mundo. Além da humilhação de serem

retirados de seu lar, os negros tinham de passar pelas agruras da travessia. Ali começava o inferno desse

povo na história moderna. Para reforçar a imagem dolorosa do infame comércio, o autor procurou relatar

como era o dia-a-dia nos tumbeiros:

“Uma viagem de Angola a Pernambuco durava cerca de 15 dias. Até o Rio de Janeiro, 50

dias. Mas quando havia calmarias, a travessia podia durar meses. Embarcados à força, os

africanos reagiam. Podiam então sentir na carne a violência brutal dos seus opressores,

como bem demonstra o relato de um tripulante de um navio negreiro:

Amarrados ontem os negros mais culpados, isto é, os autores da revolta, pelos quatro

membros e, deitados de bruços em cima da ponte, fizemo-los açoitar. Depois cortamos

suas nádegas, para que melhor sentissem suas faltas. Jogamos depois pólvora, suco de

limão, salmoura e pimenta nas feridas, junto com outras drogas postas pelo cirurgião, para

não dar gangrena.

Isto aconteceu no dia 25 de dezembro de 1738, exatamente no dia de Natal”201.

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Entre a passagem do continente africano para o americano, segundo o autor, os negros deixavam sua

condição de gente para se transformar em “coisa”, “mercadoria”202. O caminho trilhado em séculos de

exploração e morte, numa referência aos orixás feita por Chico Alencar, não era regido por Exu, mas pelo

deus dos comerciantes brancos, o dinheiro. E Orumilá, o mensageiro da paz, não tinha parte naquilo:

“as mulheres separadas dos homens, as crianças dos pais, os irmãos das irmãs. Tudo bem

distante da harmonia entre Odudua e Obatalá”203.

Após abordar a violência do trafico negreiro, o autor fez afirmações sobre o trabalho realizado pelos

escravos na colônia. Para ele, assim como Rocha Pombo e Sérgio Buarque, não haveria obra colonial sem a

presença do elemento negro. Sem ele não haveria açúcar, não haveria ouro, não haveria diamantes. Em

suma, não haveria casa-grande, nem senhor:

“Imensos canaviais. Quem os plantou? Caixas e mais caixas no porto do Recife. Quem

fabricou o açúcar que está dentro delas? Quem as transportou até lá? E o ouro que

enriquecia os nobres europeus, era extraído por quem? Quem arrancava os diamantes das

rochas, penosamente, para que outros brilhassem? Quem fazia as comidas para as grandes

mesas das casas-grandes?204”

De acordo com o seu manual escolar, os negros escravizados atuavam na lavoura de cana-de-açúcar,

tabaco, algodão; nas atividades de preparo do açúcar nos engenhos ou nos serviços de carpintaria,

construção e ferraria; na mineração em atividades relacionadas à localização de minas, identificação de

metais e fabricação de ferro; nos serviços domésticos na casa-grande, estes também

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“transportavam caixotes, bagagens, material de construção, o guarda-chuva de seus

senhores, os leques de suas senhoras... e seus próprios senhores e senhoras, que jamais

podiam se cansar!”205

Para Chico Alencar, no Brasil da época da escravidão, o trabalho do escravo negro era tanto que toda

atividade braçal passou a ser considerada “coisa de negro”. Um branco, segundo o autor, na esteira do que

havia dito Rocha Pombo, fazer uma atividade braçal era rebaixar-se.

A instituição da escravidão era garantida, ressaltou o autor, por leis que transformavam os negros em

objetos de comércio e instrumentos de seus senhores. Estes tinham o poder de vida e morte do escravo

que “deveriam trabalhar como se fossem máquinas: sem parar e, de preferência, sem quebrar”206. Além da

justificativa legal para a escravidão, segundo Chico Alencar, os colonizadores espalharam nas colônias uma

série de idéias que naturalizavam a escravidão. Assim como fizeram com os índios, os colonizadores

europeus ignoraram a história e as tradições dos negros africanos. Eles criaram o discurso da sua

superioridade e da inferioridade dos índios e dos negros alicerçado no pensamento religioso e nas teorias

biológicas. Deus havia feito os colonizadores europeus

“brancos e cristãos, logo, ‘superiores’; já os povos dos outros continentes, por serem

negros, amarelos, vermelhos – e, ainda por cima, não-cristãos – eram ‘inferiores’. No

século passado, eles criaram novos argumentos – ‘científicos’, garantiam – para explicar as

diferenças entre esses povos:

- Os negros e os amarelos não são capazes de criar uma sociedade civilizada, por isso são bárbaros e

selvagens”207.

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Quanto à violência praticada no cativeiro, além dos bolos e chicotadas, a exemplo dos Piletti, Chico

Alencar destacou o uso da argola, ferro em brasa, tronco como instrumentos do mundo de castigos dos

escravos. Ao contrário de João Ribeiro que defendia que o Brasil foi a “reabilitação” do negro, para o autor

de Brasil Vivo, a escravidão foi um crime contra a humanidade. Amparado nas afirmações da época,

observou que a amargura dos negros escravizados podia ser resumida em três pés – pau, pano e pão208:

“O primeiro ‘p’, o da pancada, era garantido pelos feitores, que cumpriam as ordens dos

seus senhores. Os feitores quase sempre exageravam, o que levou o padre Antonil, no seu

livro Cultura e Opulência do Brasil, a ensinar a melhor maneira de castigar!

(...) ouvir os delatados e, convencidos, castigar-se-ão com açoites moderados ou com os

meterem em uma corrente de ferro por algum tempo. Ou no tronco. O certo é que, se o

senhor se houver com os escravos como pai, dando-lhes o necessário para o sustento e

vestido, e algum descanso no trabalho, poderá também depois se haver como senhor, e

não estranharão, sendo convencidos das culpas que cometeram, de receberem com

misericórdia o justo e merecido castigo.

Pano havia... mas, verdade seja dita, bem menos que pau. Panos simples e grossos para a

pouca roupa: para o homem, duas camisas e duas calças por ano, para a mulher, duas saias;

paletó, só quando o senhor era um pouco generoso. Os escravos domésticos vestiam-se

melhor. Se fosse escravo urbano, e o senhor gostasse de ostentar sua riqueza, as roupas

eram de algodão importado. Nunca, porém, podiam usar sedas, nem sapatos. Era

proibido!

Muita pancada, pouco pano, quase nenhum pão. Só o necessário para o sustento, como

recomendava o padre Antonil: farinha, milho, mandioca... Era a comida de todo dia. Às

vezes, uma carne-seca, verduras ou frutas”209.

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O cativeiro no Brasil, diferente do praticado pelas comunidades na África, era injusto e cruel. Aqui

imperava a violência. Para Chico Alencar, fazendo coro com os Piletti, o Brasil não era o paraíso para o

negro. A idéia de escravidão benigna e amena, numa leitura próxima à feita pelos estudiosos da “Escola

Sociológica de São Paulo”, era contestada veementemente210. As senzalas, na sua leitura, eram o oposto das

casas-grandes: “um só cômodo para dezenas de pessoas, umidade, escuridão. Muitas delas eram semi-

enterradas no chão”211.

O seu manual escolar teve a peculiaridade de falar sobre o destino dos filhos dos escravos. Desde

crianças a vida das crianças escravas, enfatizou o autor, era um martírio. As “crias”, como eram

denominadas pelos senhores, tinham uma sina cumprir – o trabalho:

“Domingas descasca mandioca e cata feijão ajudando as mucamas (as escravas domésticas

da sinhá). Tonico tira caroço de algodão para fazer óleo e colhe ervas e frutas no mato.

Dandão leva as trouxas de roupa para as negras lavadeiras. Efigênia serve a mesa da família

senhorial e faz as vontades do sinhozinho, mandão como o pai... Desde os cinco anos a

maioria já começava a trabalhar. Filho de escravo, escravo é”212.

Muitos recém-nascidos, diante de tantas privações e violência, morriam com poucos meses de idade.

Segundo o autor, reforçando a imagem do caráter trágico do cativeiro, três dias depois do parto, as mães

eram obrigadas a voltar ao eito, tendo de carregar os filhos nas costas e amamentá-los durante os serviços

na lavoura.

As crianças quando não eram utilizadas como mão-de-obra, viravam bichinhos de estimação das

sinhazinhas e criadinhos das sinhás. Nas brincadeiras entre o sinhozinho e o pequeno escravo, na leitura de

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Chico Alencar, já estava presente as relações violentas inerentes ao regime escravista. Ali estava marcada as

posições que cada um assumiria na sociedade da época:

“Vejamos os dois amigos moradores de um mesmo engenho: um barbante servindo de

rédea, um galho de goiabeira como chicote. O menino branco ‘cavalga’ o seu ‘moleque’, o

seu ‘alazão’. E quando toma um carão ou leva uma surra do pai, desconta no menino

escravo, o seu saco-de-pancadas...”213.

A infância das crianças negras estava muito distante da vivida pelo pequeno xavante Tsipré e das

crianças nas comunidades africanas:

“Para o menino escravizado a antecipação de sua maioridade significava trabalho pesado

na lavoura e no engenho. Para a mocinha escravizada, rosto bonito, corpo atraente, sua

beleza juvenil servia como objeto sexual... dos seus senhores, dos feitores e até dos

sinhozinhos, que assim tinham suas primeiras experiências sexuais”214.

Exploração do trabalho e sexual era a regra que conduzia a vida das crianças escravas na colônia

criada pelo manual escolar de Chico Alencar. Segundo o autor, desse jeito desigual, resultado de uma

sociedade desigual, surgiram amizades curiosas entre crianças brancas e negras. Amizades que se limitavam

ao tempo da infância. Ao tornarem-se adultos, os amigos de tenra idade, assumiam os seus respectivos

lugares na sociedade. O pensamento escravista era tão agressivo que tornava impossível a convivência

harmoniosa entre brancos e negros; a segregação era o destino de ambos – um tinha nascido para mandar,

ser senhor, ser superior e, o outro, para ser mandado, ser escravo, ser inferior:

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“Ao crescer, o sinhozinho – agora senhor – nem sempre reconhecia o seu velho camarada.

É que os senhores faziam questão de distinguir muito bem o seu lugar na sociedade

escravocrata do lugar ocupado pelos negros: ‘quem você pensa que é?’, ‘onde você pensa

que está’”215

Antes de tecer suas considerações sobre as marcas deixadas pelo negro na formação da identidade

étnica e nacional brasileira, Chico Alencar fez uma pequena reflexão sobre os usos e compromissos da

História. Para isso, inspirado na letra da canção de Chico Buarque e Pablo Milanez, apresentou a seguinte

questão para os seus leitores-alunos:

“O que é a História: ‘carroça abandonada numa beira de estrada’ ou ‘um carro alegre cheio

de um povo contente?’”216

A resposta para esta pergunta, segundo o autor, dependeria de quem escrevia a História, de quem a

fazia e sentia. Em suma, de quem conduzia a carroça ou carro. No caso dos senhores de terra, das

autoridades metropolitanas e padres da Igreja – os colonizadores – a História (das colônias como o Brasil)

parecia-se com uma carroça que servia para trazer negros para serem escravos no Brasil, levar açúcar,

tabaco, drogas da Amazônia, algodão, ouro e outros produtos para a Europa. A partir dessa mentalidade

colonizadora, ele denunciou que

“Se, por qualquer motivo, caía o comércio desses produtos, virava então ‘carroça

abandonada’. Em nenhum momento os donos do Brasil pensavam em produzir para a

população local, ou em desenvolver manufaturas e fábricas na Colônia. O grande negócio

era exportar alimentos, matérias-primas e metais preciosos para a Europa.

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Os senhores de terras e as autoridades metropolitanas eram daquelas pessoas que acham

que as coisas são só de um jeito e não podem ser de outro. Só pensavam em comandar a

produção e em trazer escravos para suas fazendas”217.

Chico Alencar acusou os colonizadores de não terem nenhuma identidade com as suas colônias,

apenas explorando suas terras e gentes. Responsabilizou-os por não terem conduzido a carroça da História

de outra maneira, ou seja, com justiça e respeito. Preocupados em acumular riqueza, não pouparam o solo e

os escravos. Por considerarem-se superiores aos negros, mestiços e índios, os europeus julgavam que a

escravidão era um “bem” que realizavam para a humanidade. Em suma, para o autor, os colonizadores

escreveram uma página lamentável na história das colônias.

Já os negros, pelo contrário, deixaram na história suas marcas, sua contribuição para a obra colonial

(e nacional). Para Chico Alencar,

“Em todas as regiões por onde foram espalhados, os seis milhões de negros trazidos da

África – e seus descendentes brasileiros, chamados crioulos – deixaram suas marcas. No

trabalho, na cultura, nas lutas pela liberdade, na própria cara do nosso povo moreno,

mestiço, preto, cheio de cor.

Assim, o Brasil foi ficando negro rapidamente. E os negros fazendo do Brasil a sua terra,

que amavam, apesar de tudo. Quantos brancos, desses tidos como ‘distintos’, não têm

vergonha de ser brasileiro? Quantos não acham que devemos imitar outros países nos

hábitos alimentares, nas roupas, na música, em quase tudo?

O Brasil ficava negro na língua, graças à influência dos dialetos africanos falados na

Colônia:

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- Ó Iaiá! Falei pro seu caçula Pará com aquele batuque! Quero tira um cochilo antes de ir pra

quitanda, mas com esse banzé todo não tem jeito! O moleque fica pra cá e pra lá, que nem um

camundongo... Só xingando!”218

O Brasil, na sua leitura, assim como ressaltou Borges Hermida e Sérgio Buarque, ficou negro na mesa

das famílias senhoriais, na religião, na dança, na música e nas festas populares. Para esse Brasil negro, Chico

Alencar trouxe a figura centenária do Pai João como símbolo da identidade da nação:

“Quando iô tava na minha terá

Iô chamava capitão

Chega na terá dim baranco

Iô me chama de Pai João

Quando iô tava na minha terá

Comia minha garinha

Chega na terá dim baranco

Cana seca com farinha

Quando iô tava na minha terá

Iô chamava generá

Chega na tera dim baranco

Pega o ceto vai ganha

Dizaforo dim baranco

Nó si póri atura

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Tá comendo, ta drumindo

Manda negro trabaiá

Baranco dize quando more

Jezucris que levou

E o pretinho quando more

Foi cachaça que matou

Baranco dize preto fruta

Preto fruta com razão

Sinhô baranco também fruta

Quando panha casião

Nosso preto fruta garinha

Fruta saco de feijão

Sinhô baranco quando fruta

Fruta prata e patação

Nosso preto quando fruta

Vai Pará na coreção

Sinhô baranco quando fruta

Logo sai sinhô barão”219

Pai João, no trecho acima, era a vítima de uma história de explorações e misérias escrita pelos

vencedores. Chico Alencar, assim com os Piletti, a todo instante trabalhou com uma relação binomial para

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contar sua interpretação sobre a presença do negro na história do Brasil: europeu versus africano;

colonizador versus colonizado; opressor versus oprimido; vencedor versus vencido; senhor versus escravo;

branco versus negro; pobre versus rico. Aos colonizadores europeus brancos, senhores de terras e escravos

no Brasil, coube o papel de vilões nas páginas do manual escolar de Chico Alencar. Já o Pai João

incorporava a vítima colonizada, escravizada, racializada e empobrecida. Era em nome dos “Pais Joões”

(negros) e “Tsiprés” (índios) que o autor de Brasil Vivo escrevia sua nova história da sociedade brasileira. Se

levarmos ao extremo o binômio adotado por Chico Alencar, resumiremos a história da humanidade dentro

da perspectiva bom versus mau, dominadores versus dominados, não havendo nenhuma outra possibilidade

de ser pensar a convivência entre os seres humanos ao longo do tempo e do espaço220.

Além da sua contribuição como trabalhador na colônia e das suas influências na cultura nacional

destacadas, por exemplo, no manual escolar Sérgio Buarque, o autor procurou colocar em relevo a atuação

negro em sua luta pela liberdade, resistindo contra o cativeiro. Para o professor Chico Alencar, não foi só

apenas com pequenos furtos ou envenenamentos, “mau-olhados”, suicídios, que os escravos negros

reagiram à opressão. À semelhança de Piletti, ele elegeu os quilombos como símbolo de resistência escrava

no Brasil colonial. Onde houve opressão, diferente do que escreveu João Ribeiro e Joaquim Silva, houve

resistência: “Onde havia negros trabalhando, lá explodia a revolta!”221. O Brasil, nas palavras do autor,

constituiu a nova pátria dos negros e nela começaram a lutar pela sua liberdade, para a reconstrução da sua

vida em comunidade à moda de sua terra de origem, a África distante:

“– Essa já é nossa terra! Resta conquistar um canto pra viver em paz e liberdade. Uma Angola Janga,

nossa pequena Angola!

Era preciso acabar com a morte dia a dia, sol a sol, pau a pau, que fazia os negros

escravizados agüentarem apenas sete ou oito anos no trabalho pesado.

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– Vamos cortar o mal pela raiz! Vamos fugir das fazendas, sair desse inferno!

E os negros sumiam mundo afora, armados com o que fosse possível: pau, facão, foice,

arma de fogo.

– Não adianta ficar com banzo, não resolve não ter mais filhos! E depois da bebedeira, a escravidão não

continua? Suicídio é covardia!

Os negros guerrilheiros não sentiam mais tanta saudade das suas antigas aldeias. Sua terra

agora era o Brasil. Eles não queriam deixar de procriar, nem buscavam a cachaça como

forma de esquecer o sofrimento. Eles preferiam matar para não morrer!

‘A guerra é a da natureza do mundo’ – diz um provérbio africano.

Era preciso guerrear para reencontrar a harmonia perdida, a guerrilha contra os

dominadores brancos era inevitável. Assim nasceram muitos quilombos, aldeias

organizadas pelos negros que lutavam contra a escravidão”222.

Nenhum escravo negro apático, conformado e submetido foi representado pelo autor de Brasil Vivo.

Mas sim a figura do negro guerreiro, resistente, inconformado com sua condição de cativo. Ao contrário do

paraíso racial de Joaquim Silva, Chico Alencar, à semelhança dos irmãos Piletti, trouxe para o cenário da

história da colônia portuguesa nas Américas a “guerra das raças”, ilustrada pela imagem dos quilombos. Os

quilombos, na sua leitura, não eram um crime decorrente de outro crime maior – a escravidão – como

afirmou Rocha Pombo, e sim uma luta legítima do negro contra a exploração imposta pelos senhores

brancos. A imagem do Brasil colônia e império construída por Chico Alencar era povoada de focos de

resistência escrava:

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Imagens do Negro

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“Bahia, terra de muitos canaviais e plantação de tabaco, século XVI: quilombos do rio

Vermelho, de Itapicuru, do Mocambo, do Papagaio, do rio do Peixe, da Gameleira, do

Tucano.

Minas Gerais, terra do ouro e dos diamantes, século XVIII: o negro Isidoro, ‘o Mártir’,

lidera a formação do quilombo do rio das mortes. Lá se forma também o quilombo do

Buraco do Tatu.

Em Mato Grosso, os negros que fugiam – das bandeiras e das minas – organizaram os

quilombos de Joaquim Teles, do Piolho e do Motuca.

No século XIX, quando o Brasil ficou livre de Portugal, mas os negros continuaram

cativos, os quilombos surgiram em maior número ainda. Em províncias como Pará,

maranhão, Pernambuco, Paraíba, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina

nasciam essas pequenas Angolas!”223

Após citar os vários quilombos que foram surgindo ao longo da história do Brasil desde o século

XVII, Chico Alencar passou a dedicar especial atenção ao mais conhecido de todos focos de resistência

escrava: o quilombo dos Palmares224. Assim como Rocha Pombo, o autor preocupou-se em descrever a história

da formação do famoso quilombo.

Em Palmares, segundo Chico Alencar, os negros foram construindo uma vida diferente da vivida nas

grandes fazendas. Na esteira dos Piletti, ele destacou que a terra, as matas, os rios eram um bem comum,

pertencendo a todos. Era uma comunidade perfeita, diferente do engenho monocultor e escravocrata:

“Cada família tinha um pedaço de terra para cultivar, mas as grandes plantações de milho,

mandioca, cana, batata-doce, feijão, banana, arroz, abóbora, amendoim, fumo e algodão

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eram de todos. Quando os inimigos as destruíam, a tristeza era geral. Quando elas

verdejavam, fruto do trabalho de homens livres, a festa era geral.

Porcos e galinhas eram criados lá também. E pela mata eles encontravam cajueiros,

mamoeiros, goiabeiras, pitombeiras, umbuzeiros, coqueiros e outras árvores frutíferas.

Ferreiros e carpinteiros trabalhavam com muito ânimo.

O sistema familiar africano foi reconstituído. Havia a monogamia – um homem e uma

mulher – um homem com duas ou mais mulheres.

Até soldados das tropas coloniais desertaram para buscar a vida livre e farta do

quilombo!”225

A Palmares forjada por Chico Alencar era um lugar onde os direitos estavam garantidos, tudo era

dividido entre todos, a alimentação era farta e a liberdade era uma prática. Lá os negros puderam

reconstruir suas vidas, tradições, usos e costumes. Mesmo a escravidão presente no quilombo era, na leitura

do autor, diferente da exercida pelos colonizadores portugueses. A escravidão feita pelos palmarinos era

semelhante a que havia nos reinos africanos:

“Os negros escravizados trabalhavam ao lado das mulheres e dos jovens ajudando na

agricultura e nas construções. Alcançariam a liberdade quando se tornassem guerreiros”226.

Ao contrário do que acontecia nas sociedades coloniais, os chefes dos quilombos eram os mais

corajosos e com maior capacidade de liderança. E não os que possuíssem mais riqueza ou poder de impor

suas vontades individuais. Os líderes de Palmares, segundo o autor, eram respeitados por seu povo e não se

furtavam ao dever de defendê-los. Ganga-Muíça era o comandante do valente Exército de Palmares. Este

exército, munido de menos armas que os coloniais, valeu-se dos ataques surpresas, dos perigos da floresta

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e, diversas vezes, do apoio dos donos da mata, os índios. Dessa maneira, o quilombo resistiu quase um

século aos ataques dos colonizadores.

De acordo com o seu manual escolar, os senhores e as autoridades organizaram várias expedições

contra o quilombo de Palmares. Diante da resistência dos guerrilheiros negros, tiveram de recorrer aos

“experimentados” e “obstinados” bandeirantes227.

Ao narrar as incursões dos bandeirantes, ao invés de fazer uma apologia da sagacidade e valentia

destes, Chico Alencar fez referência a sua conduta violenta e desumana. Para ilustrar o caráter implacável

dos bandeirantes, o autor fez as seguintes considerações sobre a figura de Domingos Jorge Velho e

Bartolomeu Bueno do Prado:

“Domingos Jorge Velho, por exemplo, decapitou 200 índios que se recusaram a seguir até

Palmares para atacar o quilombo. Em outra ocasião, vestiu com roupas pestilentas negros

capturados na mata. Depois os deixou fugir, para que contaminassem seus companheiros.

Na região das minas, muitos anos depois, Bartolomeu Bueno do Prado não ficou atrás.

Depois de atacar um reduto negro, retornou a Vila Rica com 3900 pares de orelhas dos

quilombolas do rio das mortes. Orgulhoso do seu troféu, que era também a prova de tão

grande façanha...”228

As autoridades e os chefes de exércitos coloniais eram pintados por Chico Alencar como homens

cruéis, antiéticos e traidores, diferentes dos chefes e guerreiros do quilombo de Palmares, que apesar do seu

ânimo e de sua constância, procuravam selar um acordo de paz e de convivência.

Para o autor, um racha entre lideranças do quilombo causou o seu enfraquecimento. Os quilombolas

estavam fracos e divididos como os brancos na época das invasões holandesas. Por conta desse fato, o

quilombo foi atacado e destruído no final do século XVII. Zumbi, o líder que assumiu o poder depois da

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morte de Ganga-Zumba, foi perseguido e preso por um grande exército organizado para este fim. O líder

negro foi punido exemplarmente pelas autoridades coloniais:

“Levada até Recife, a cabeça de Zumbi foi pendurada ‘no lugar mais público desta praça,

para satisfazer os ofendidos e justamente queixosos. E para atemorizar os negros que

supersticiosamente julgavam esse imortal’.

Essa foi a ordem do senhor governador, que ainda comemorou o feito atirando dinheiro

ao povo pelas janelas e mandando rezar missa solene em ação de graças. Afinal, ‘quem

manda na região, manda na religião’”229.

Embora derrotados no campo de batalha, segundo o autor, para os negros escravizados, o exemplo

de Palmares e Zumbi eram inesquecíveis. Um evento histórico difícil de se esquecer, um exemplo de luta

por liberdade e justiça social que os seus leitores-alunos deveriam se inspirar para construir uma sociedade

democrática e igualitária. Relatar a saga de Palmares contra a escravidão era uma forma de Chico Alencar

denunciar a idéia de “paraíso racial” e escravidão amena como uma mitologia e também a imagem do Brasil

como um país sem preconceitos.

No manual escolar Brasil Vivo, assim como no História & Vida, adotado amplamente nas escolas

brasileiras de ensino de primeiro grau nos anos 1980 e 1990, encontrava-se uma narrativa histórica que não

apenas ressaltava as desigualdades sociais, mas também raciais do país. Uma história que se propunha dos

vencidos; uma história que teria mais a dizer para o Pai João, símbolo da verdadeira alma e caráter nacional, do

que ao Sinhô – representante dos vencedores. Negros, índios e mestiços apareciam como as grandes vítimas de

uma história colonizadora, que enxergava o Brasil como uma “imensa carroça”.

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Imagens do Negro

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_____________________________________________________ “O que devemos ao negro”

Neste capítulo, podemos verificar que as proposições apresentadas por von Martius e Varnhagen sobre o

elemento negro e a escravidão constituíram uma ordem discursiva para a escrita da sua história em livros e

manuais escolares, a partir da segunda metade do século XIX. Temáticas como as justificativas para a

escravidão africana, o tráfico negreiro, o cotidiano do cativeiro, as resistências, os hábitos e costumes, as

particularidades da escravidão brasileira e as influências deste elemento na formação da nacionalidade têm

sido privilegiadas pelos autores na composição das imagens do negro, por exemplo, em seus manuais

escolares. E, neste aspecto também, os autores, dentro de suas particularidades e contextos, não fugiram ao

roteiro elaborado por estes intérpretes do Brasil do século XIX.

As fontes utilizadas pelos autores para forjar suas representações do negro geralmente eram os

relatos dos cronistas do período colonial, em especial, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, de

João Andreoni Antonil, amplamente citado pelos manuais escolares. As obras de Francisco Adolfo

Varnhagen, Manoel de Oliveira Lima, João Capistrano de Abreu, Pedro Calmon, João Pandiá Calógeras,

Gilberto Freyre, Caio Prado Junior e Florestan Fernandes230. Os poemas de Castro Alves também

apareceram como importante lugar de inspiração e referência nos manuais de João Ribeiro e Borges

Hermida. Nos manuais escolares de Piletti e Chico Alencar, o livro As veias abertas da América Latina, de

Eduardo Galeano, tornou-se uma referência emblemática. A partir dos anos 1980, percebemos a presença

de livros paradidáticos como relevantes auxiliares nas construções discursivas sobre o negro. Além disso,

houve o recurso às obras de militantes negros como Clóvis Moura e Joel Rufino dos Santos. A exemplo do

que foi feito com os índios e os portugueses, os autores adotaram os modelos de imagens do negro com

base nos manuais escolares de Joaquim Manuel de Macedo, João Ribeiro, Rocha Pombo e Jonathas

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Imagens do Negro

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Serrano. As iconografias de Jean-Baptiste Debret e Johann M. Rugendas, fotografias, desenhos e charges

foram usadas de maneira expressiva a partir dos anos 1930231.

Ao analisarmos as imagens do negro construídas pelos manuais escolares de História do Brasil,

evidenciamos que este foi representado a partir de cinco eixos-temáticos: origens e classificação; a captura e

o tráfico negreiro; o cotidiano do cativeiro; as formas de resistência; e as contribuições para a formação da

nacionalidade.

De acordo com cada autor, uns tópicos ganhavam destaque em relação aos outros. Alguns chegaram

a ser suprimidos. Por exemplo, no seu manual escolar de instrução primária, Macedo deixou um grande

silencio sobre a presença do negro na história do Brasil, fazendo apenas uma referência breve à tomada do

quilombo de Palmares pelas tropas coloniais.

As origens dos negros vindos para o Brasil foram destacadas por João Ribeiro, Joaquim Silva e Sérgio

Buarque. Todos destacaram a presença maciça de africanos oriundos dos grupos banto e sudanês como

mão-de-obra escrava na colônia.

Em relação à captura e o tráfico negreiro, João Ribeiro, Borges Hermida, os irmãos Piletti e Chico

Alencar apresentaram uma descrição dramática, ressaltando o fato de os negros serem caçados como

animais e trazidos em péssimas condições nos “tumbeiros”. João Ribeiro e Chico Alencar foram os mais

incisivos na crítica moral à prática do tráfico de escravos. Para o primeiro, a travessia era o purgatório dos

negros. Rocha Pombo, diferentemente do outros autores analisados, fez menção aos horrores do tráfico

interno vivido pelos negros no momento da chegada na colônia.

Quanto às representações do continente africano, os autores analisados, quando não faziam

referência, criaram uma representação negativa: terra selvagem, povoada de bárbaros e escura (não-

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civilizada)232. Apenas Chico Alencar trouxe uma visão iluminada do passado da África, ressaltando a

riqueza e as complexidades das culturas e povos que habitavam o continente.

Ao tratar do cotidiano do cativeiro, João Ribeiro, Joaquim Silva e Borges Hermida forjaram uma

imagem amena e não violenta da escravidão conduzida pelos portugueses no Brasil. João Ribeiro, por

exemplo, afirmou que a escravidão foi a reabilitação do negro, pois o havia tirado da barbárie em que

estava enterrado na África.

Já os irmãos Piletti e Chico Alencar enfatizaram o caráter violento e cruel do regime de servidão

imposto aos escravos negros no Brasil. Ambos, inspirados pelas teses de Florestan Fernandes e de seus

pesquisadores233, criticaram o discurso do cativeiro ameno e das relações harmoniosas entre senhor e

escravo. Para Chico Alencar, a travessia do Atlântico era a transformação do negro de ser humano para

coisa, mercadoria.

De acordo com estes dois autores, s formas de resistência dos escravos ao cativeiro violento eram o

banzo, o suicídio e as fugas. Contudo, eram tentativas quase sempre retratadas como frustradas. Além

disso, a resistência estava permeada pelo binômio geral da ação e reação. Na leitura de Silvia Lara, seja no

discurso historiográfico, seja no discurso didático,

“As faltas, crimes e rebeldias escravas aparecem contrapostas aos castigos, punições ou

ações repressivas e/ou vice-versa, sendo freqüente encontrarmos na bibliografia a

afirmação de que a resposta escrava a uma dominação essencialmente violenta era,

também e necessariamente, violenta”234.

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Imagens do Negro

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Entretanto, a principal forma de resistência destacada pelo discurso didático foi a história do quilombo

de Palmares. A história deste quilombo na serra da Barriga foi eleita pelos autores como o grande exemplo de

revolta escrava contra a escravidão no Brasil colonial. Macedo, Rocha Pombo e Sérgio Buarque atrelaram o

seu surgimento ao momento de desestabilidade e desordem das invasões holandesas. Rocha Pombo foi além

e associou sua formação como resultado do crime que era a escravidão. De todos os manuais escolares

analisados, a sua História do Brasil (Curso superior) foi a que mais dedicou especial atenção à trajetória histórica

de Palmares. João Ribeiro, Joaquim Silva e Borges Hermida dedicaram algumas linhas para o assunto.

No geral, os autores se ativeram nos momentos finais do quilombo, ou seja, sua destruição, quando a

ordem e a paz foram impostas pelas tropas coloniais. Os irmãos Piletti e Chico Alencar apresentaram, de

forma romantizada, Palmares como um contraponto de sociedade para os coloniais. As representações de

Palmares destes autores traziam uma terra de liberdade, justiça, igualdade. Lá estavam as sementes do modelo

de cidadania necessários para o Brasil dos anos 1980. Mesmo a escravidão praticada em Palmares era mais

justa que a praticada pelos brancos colonizadores.

Zumbi, no discurso didático dos Piletti, ganhou status de verdadeiro herói nacional - aquele que se

sacrificou em nome de uma causa nobre: a libertação de seu povo. Todavia, Zumbi não conseguiu escapar à

prisão da idéia de raça, cabendo a ele mais a identidade de herói racial do que nacional. Em suma, o líder de

Palmares era mais um herói dos negros do que da nação. As imagens sobre esta personagem histórica nos

manuais escolares de História do Brasil, por exemplo, são lapidares para demonstrar como a noção de raça

tem sido associada muito mais aos negros africanos do que aos índios e europeus.

As noções de civilização, nacionalidade, cultura têm estado ligada a uma identidade européia e branca.

A Europa seria o modelo de normalidade, de humanidade, a régua de medida para o resto (negros, índios,

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Imagens do Negro

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orientais etc.). Na leitura de Gislene dos Santos, o ser negro tem sido, de longa data, investigado, especulado,

demonstrando que formava um fenômeno diferente – um “outro” ou “exótico”:

“Quer por obra da natureza, quer por obra divina, havia se produzido um ser que mereceria

explicação, um ser anormal. Essa explicação tornava-se quase sempre justificativa de sua

inferioridade natural.

A África seria uma terra de pecado e imoralidade, gerando homens corrompidos; povos de

clima tórridos com sangue quente e paixões anormais que só sabiam fornicar e beber.

A cultura diferente desse povo era encarada como signo de barbárie. A vida sexual, política,

social dos povos africanos foi sendo devassada e diminuída diante da vida dos europeus. A

invisibilidade das diferenças entre os vários povos da África fazia com que todos fossem

vistos de uma única e mesma forma: todos são negros.

A Europa ‘civilizada’, branca, era tomada como paradigma para a ‘compreensão’ da cultura

do novo mundo, como se fosse possível fazer um transplante de valores. A biologia será a

chave mestra para esta compreensão e, como já foi dito, fornecerá os elementos pelos quais

a idéia de raça se transformará em racismo científico”235.

Ao abordar o concurso dos negros para a obra colonial e nacional, os autores procuraram trazer as

contribuições da raça “afluente” para o grande “rio” civilizacional (o português colonizador). A primeira

oferenda mencionada foi os pés e braços para o trabalho na colônia. Ao contrário de Varnhagen e Macedo,

João Ribeiro, Joaquim Silva, Sérgio Buarque e os Piletti observaram que a escravidão negra foi necessária para

a concretização da obra colonial portuguesa nos trópicos. Rocha Pombo foi enfático ao afirmar que sem o

negro não haveria colonização do Brasil.

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Para João Ribeiro, Joaquim Silva e Sérgio Buarque, os negros eram melhores trabalhadores que os

índios – rotulados de “maus agricultores” e não afeitos ao trabalho. Segundo Sérgio Buarque, referendando o

que os demais autores haviam dito, os primeiros constituíram o modelo de trabalhador para obra colonial

porque eram sedentários, conheciam a agricultura, criavam animais domésticos, conheciam o uso de metais,

trabalhavam com couro e faziam esculturas e objetos artísticos.

As contribuições do negro para a culinária, o folclore, a língua nacional foram amplamente ressaltados

por Joaquim Silva, Borges Hermida e Sérgio Buarque. O autor de Raízes do Brasil dedicou em seu manual

escolar um item, intitulado “O que devemos ao negro”, só para tratar das contribuições do negro para a

cultura nacional. Os irmãos Piletti e Chico Alencar, embora tivessem denunciado a violência da escravidão

imposta aos negros, não deixaram de reservar um espaço em seus textos didáticos para exaltar a colaborações

deste povo para a formação da identidade nacional brasileira.

Para Rocha Pombo, a escravidão negra trouxe vícios e deturpações na sociedade colonial. A presença

deste elemento racial, no contexto de uma sociedade escravista, representou algumas degenerações e taras

para a identidade nacional que demorariam algum tempo para se dissiparem. Entretanto, o autor concedeu

o título de “agente da nossa riqueza” ao africano na América e foi sob este aspecto que ele se colocava

acima, indiscutivelmente, do elemento indígena. Não lhes coube, afirmou o autor, somente o trabalho dos

campos e dos engenhos, em todo gênero de ofícios figuraram como quase únicos braços de que dependia a

produção geral do Brasil colonial.

Enfim, os negros foram, numa repetição variada do cronista João Antonil, “os pés e as mãos” da

obra colonizadora comandada pelos portugueses na América. A história dos africanos estava, na

perspectiva dos manuais escolares, apenas atrelada à história da escravidão. No teatro da História, a eles

estava reservado o destino da raça – a corrente da qual ainda não se libertaram – de ser escravizado, ser

inferior. A eles, assim como aos índios, era negada a sua condição humana, seja pela violência física, seja

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pela agressão das práticas discursivas que têm naturalizado sua identidade racial com todas as credenciais

necessárias para justificar seu lugar conhecido na sociedade, na história236.

Apesar da historiografia brasileira, atualmente, ter apontado para novos caminhos nos estudos sobre a

escravidão e as imagens do negro dentro da história do Brasil, os autores que têm lidado com a temática no

ensino de História têm observado nos manuais escolares a permanência de idéias preconceituosas,

discriminatórias e estereotipadas do negro237. Aos negros, nas páginas brancas dos manuais escolares

analisados, continua cabendo ainda a função de personagem secundário marginalizado, assistindo a atuação

dos grandes sujeitos históricos em cena, na sua maioria brancos ou coadjuvantes dos brancos238.

Para Marco de Oliveira, por exemplo, o negro na história ensinada prevalecia sendo representado

unicamente por uma lógica que o colocava sempre na mesma condição de seus antepassados escravizados e

dificilmente pelas situações diversas que aparecem na sociedade contemporânea. Havia um lugar e situação

específica para enfocar a população negra:

“o negro escravo no passado, o negro marginal do presente”. Dessa forma, na sua análise,

um dos principais desafios dos currículos e dos livros didáticos parece ser o trabalho com a

diversidade de situações vivenciadas pela população negra. Para tanto, “seria necessário sair

da visão hegemônica predominante, que se não apresenta o negro apenas como escravo ou

vitimado nas condições sociais atuais, cai em artificialismo ao retratar com traços

sobejamente exóticos sua cultura. Seria importante que as narrativas presentes nos livros

didáticos lidassem não apenas com o negro escravo, o negro que vive em condições

precárias de sobrevivência, mas também a riqueza e problemas apresentadas por sua cultura,

por sua atuação social, ou seja, com a multiplicidade de posições que ocupa ao longo da

história”239.

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Em recente pesquisa com uma amostragem de manuais escolares de História do Brasil produzidos nos

anos 1980 e 1990, entre eles o manual escolar da coleção História & Vida, identificamos que os negros

continuavam a aparecer sem nenhum tipo de autonomia. No cenário da história, a hegemonia das “grandes

ações” estava centrada na figura dos heróis nacionais, em sua maioria, brancos. Embora a figura de Zumbi

tivesse ganhado destaque nas discussões, principalmente após as comemorações do “Centenário da

Abolição” (1988), as imagens canonizadas da Princesa Isabel e Joaquim Nabuco continuavam a ocupar

especial destaque nos livros didáticos. A história dos quilombos no Brasil permanecia uma página ainda a ser

escrita240. Mesmo a história do quilombo de Palmares carecia de maiores informações e explicações241. Os

negros, assim como observou Marco de Oliveira, ainda permaneciam figuras marginais no texto didático,

num discurso que, embora defendesse a inclusão, tendia a excluir. Enfim,

“Todos acontecimentos ligados ao negro, durante a História, estão sob a responsabilidade do

branco. A escravidão quem institucionalizou foi o branco, a Abolição também. A abolição

do tráfico aconteceu porque a Inglaterra, as elites locais ou os países hegemônicos quiseram.

Não há nenhum tipo de ressalva nesse sentido nos discursos dos livros didáticos. O branco é

o único agente histórico. Os livros didáticos, nessa perspectiva, não abrem espaços e/ou

possibilidades para outras leituras ou interpretações.”242

Mais do que a comprovação da existência de interpretações históricas sobre o negro permeadas pelo

racismo, discriminação e preconceito nos livros didáticos analisados do período, aquela pesquisa trouxe para a

mesa de debate novos problemas que necessitavam ser tratados com maior profundidade. Problemas que

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incidiam justamente sobre as análises que até então vinham sendo desenvolvidas sobre as representações do

negro no ensino de História.

O primeiro problema estava na ausência de uma análise mais profunda no interior dos próprios textos

didáticos de História do Brasil sobre as representações do negro, assim como dos índios e portugueses.

Faltava um diálogo com os manuais escolares, ou seja, as afirmações, na maior parte das vezes, padeciam da

análise do documento. As afirmações eram feitas sem oferecer dados de pesquisa. Não havia o exercício de

reflexão sobre como estas imagens eram construídas nos manuais escolares de História do Brasil. O limite do

debate estava na denúncia do racismo nas páginas desses livros.

O segundo problema estava presente na falta de aprofundamento do diálogo entre o discurso

historiográfico e o didático no que concernia ao tema proposto. As interpretações históricas que permeivam

o discurso didático eram apresentadas, mas não havia a preocupação de compreensão de como ocorria esta

apropriação discursiva. A leitura feita da relação entre historiografia e manuais escolares parecia automática,

pois o segundo “vulgarizava” o que o primeiro produziu e ponto final. A leitura e a interpretação estavam

fora da esfera do manual escolar didático de História. A preocupação com a historicidade que havia na

produção historiográfica não se fazia presente no caso da produção didática243.

No capítulo que se encerra, verificamos que as imagens do negro, assim como do índio e do português,

presentes nos manuais escolares em diferentes momentos da história da educação do Brasil não foram

apenas reprodução ou “vulgarização” de discursos elaborados em outros lugares. Eles, por exemplo,

também criaram suas versões didáticas sobre a “raça preta ou etiópica”, numa expressão de von Martius, e

povoaram os imaginários de gerações de leitores-alunos com estereótipos e preconceitos sobre aqueles que

não se enquadravam nos modelos de civilização desejados para a humanidade.

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Representações que a cada dia ganham novas leituras e vestimentas, mas que não deixam de criar os

“outros”, os “exóticos”, os “anormais”, as “raças inferiores”, os “pobres coitados” da História; aqueles que

se sentam à margem, quando não são forçados a serem eternamente servos no banquete nacional nos

trópicos, reservado somente para os eleitos. Aqueles que construíram para si o lugar de honra e para os

outros o de submissos.

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NOTAS:

1 Karl Friedrich Philipp von Martius, “Como se deve escrever a História do Brasil”, in O estado dos autóctones no Brasil (Belo Horizonte, MG, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1982) p. 103. Monografia publicada originalmente na Revista do IHGB (Rio de Janeiro, tomo 6, 1844) pp. 389-411. 2 Conferir: José Carlos Reis, As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, 2a ed. (Rio de Janeiro, Editora FGV, 1999). 3 Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, Varnhagen: história (São Paulo, Ática, 1979), p. 73-4. Nesta coletânea, organizada por Nilo Odália, foram selecionados excertos do livro História geral do Brasil, de Varnhagen. 4 Ibid., p. 74. 5 Ibid., p. 74. 6 Para uma reflexão cuidadosa sobre a visão da escravidão amena e de paraíso racial em relação ao Brasil no imaginário dos abolicionistas brasileiros e norte-americanos, conferir: Celia Maria Marinho de Azevedo, Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX, (Rio de Janeiro, Paz & Terra, 1987); Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XX) (São Paulo, AnnaBlume, 2003). 7 Conferir: Gilberto Freyre, Casa grande & senzala, 46a ed. (Rio de Janeiro, Record, 2002).

Esta linha interpretativa da história da escravidão dentro da formação da sociedade brasileira, representada por Gilberto Freyre, exerceu forte influência na literatura didática de História do Brasil aplicada nas salas de aula das escolas brasileiras até o final dos anos 1970 e início dos 1980. Segundo Ana Lúcia Moreira, podemos perceber que a “democracia racial”, visualizada por Gilberto Freyre, por exemplo, presente nas páginas dedicadas à escravidão em grande parte dos livros didáticos de História ao longo deste período, induzia os alunos e professores a concluírem que as seqüelas da escravidão não teriam comprometido as relações entre “brancos” e “negros”, “senhores” e “escravos”, possibilitando a continuação da convivência sem conflitos após a Abolição (1888) – quando estes passaram a ser considerados cidadãos com “direitos iguais” [Ana Lúcia Moreira et al, “Reflexões sobre a presença do negro na História brasileira: uma proposta alternativa para a prática pedagógica”, in Anais do II Seminário Perspectivas do Ensino de História (São Paulo, FEUSP/ANPUH, 1996) p. 476].

Na análise de Jaime Pinsky, esta leitura da escravidão explicaria não somente a viabilidade, assim como a particularidade do Brasil multirracial, “cadinho de raças”, mistura generosa que tendia para o “tipo brasileiro”.

Para o referido autor, este foi outro valor que apareceu nos manuais escolares de História: “a idéia de um Brasil sem preconceito racial, onde cada um colabora com aquilo que tem para a felicidade geral. O negro com a pimenta, o carnaval e o futebol; o imigrante com sua tenacidade; o índio com sua valentia. Negando o preconceito, guarda-se o fantasma no armário ao invés de lutar contra ele. O menino negro pobre, duplamente segregado, aprende que além da unidade nacional, formamos uma unidade racial. A história que ele aprende não lhe diz respeito, é a de um Brasil construído na cabeça de ideólogos e não na prática histórica, dentro do qual, afinal, ele vive” [Jaime Pinsky, “Nação e ensino de História no Brasil”, in Jaime Pinsky (org.), O ensino de história e criação do fato, 7a ed. (São Paulo, Contexto, 1994) p. 17]. 8 Gilberto Freyre, O novo mundo nos trópicos (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1971) p. 68.

Quanto à primeira linha interpretativa sobre a escravidão, em diversos livros, em especial o clássico Casa Grande & Senzala [1933] e artigos publicados entre os anos 1930 e 1970, Gilberto Freyre, ao estudar o desenvolvimento da

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temática de um “novo mundo nos trópicos”, construiu a visão de um Brasil como uma terra [quase] livre de preconceito racial, e que poderia servir de espelho para o restante do mundo resolver seus problemas raciais. Para Gilberto Freyre, a formação da sociedade brasileira tem sido um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura européia e a indígena. A européia e a africana. A africana e a indígena. Porém, sobrepondo-se a todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo [Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala, p. 125].

Gilberto Freyre encontrou as origens desse “novo mundo”, segundo George Andrews, na experiência colonial brasileira, e, em especial, na sua experiência supostamente benigna com a escravidão. Ao enfatizar “os níveis relativamente baixos de preconceito racial entre os colonos portugueses no Brasil, e a escassez de mulheres européias na colônia, Freyre argumentou que o Brasil proporcionou o ambiente ideal para a mistura racial entre os senhores europeus e as escravas africanas. A ampla miscigenação ‘dissolveu’ qualquer vestígio de preconceito racial que os portugueses poderiam ter trazido da Europa, ao mesmo tempo produzindo uma grande população de raça miscigenada”.

O produto final desta interpretação do passado colonial brasileiro elaborada por Gilberto Freyre foi a constituição de uma das mais harmoniosas junções da cultura com a natureza e uma cultura com a outra que a América jamais vira. Para Freyre, na leitura de Andrews, “quando o Brasil passou para o século XIX e XX, esta ‘ união harmoniosa’ de negros com brancos formou a base da ‘democratização ampla’ da sociedade brasileira, e sua inexorável ‘marcha para a democracia social’” [George Reid Andrews, Negros e Brancos em São Paulo (1888-1988) (Bauru, SP, EDUSC, 1998), p. 28] 9 Francisco Adolfo de Varnhagen, Varnhagen: história, p. 74-5. 10 Ibid., p. 73. 11 Ibid., p. 114. 12 Ibid., p. 114. 13 Ibid., p. 114. 14 José Carlos Reis, As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, p. 44. 15 Para um estudo sobre as representações dos escravos nos romances de Joaquim Manuel de Macedo, conferir: Sharyse Piroupo do Amaral, “Uma nação por fazer – escravos, mulheres e educação nos romances de Joaquim Manuel de Macedo”, Dissertação de Mestrado em História, Campinas, SP, IFCH/UNICAMP, (2001) capítulo II. 16 Joaquim Manuel de Macedo, As vítimas-algozes – quadros da escravidão, 3a ed. (São Paulo, Editora Scipione, 1991), p. 03. 17 Ibid, p. 03-4. 18 Conferir: Celia Maria Marinho de Azevedo, Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX (Rio de Janeiro, Paz & Terra, 1987); Maria Helena P. T. Machado, Crime e escravidão – Trabalho, luta e resistência escrava nas lavouras paulistas – 1830-1888 (São Paulo, Brasiliense, 1987); O plano e o pânico – Os movimentos sociais na década da abolição, (Rio de Janeiro, Editora da UFRJ/Edusp, 1994); Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte (São Paulo, Companhia das Letras, 1990); Joseli Maria Nunes Mendonça, Entre a mão e os anéis. A Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil (Campinas, SP, Ed. da UNICAMP/Cecult, 1999). 19 Flora Süssekind, “As vítimas-algozes e o imaginário do medo”, in Joaquim Manuel de Macedo, As vítimas-algozes – quadros da escravidão, p. XXII. 20 A imagem do negro como inimigo doméstico do senhor e de sua família descrita por Macedo aproximava-se da criada pelos abolicionistas brasileiros dos anos 1870 e 1880. Conferir: Celia Maria Marinho de Azevedo, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XX), especialmente capítulo III.

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21 Conferir: Celia Maria Marinho de Azevedo, “Imagens da África e da Revolução do Haiti no Abolicionismo dos Estados Unidos”, in Anais da Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro, 116, 1996) pp. 51-67. 22 Flora Süssekind, “As vítimas-algozes e o imaginário do medo”, in Joaquim Manuel de Macedo, As vítimas-algozes – quadros da escravidão, p. XXIV. 23 Joaquim Manuel de Macedo, Lições de História do Brasil para uso das escolas de instrucção primaria, 10a ed. (Rio de Janeiro, H. Garnier, 1907) Lição XXIII – “Guerra Holandeza”. 24 Ibid., p. 224. 25 Conferir: Joaquim Manuel de Macedo, Lições de História do Brasil para o uso dos alunos do Imperial Colégio Pedro II (Rio de Janeiro, B.L. Garnier, 2o vol. 1863) Lição VIII – “Destruição de Palmares”. 26 Como analisou Celia Marinho de Azevedo, “É possível que as relações sempre conflituosas entre senhores e escravos estivessem agora a vivenciar um novo momento histórico, com o espaço da produção tornando-se palco privilegiado das revoltas individuais e coletivas dos negros escravizados. Isto quer dizer que a resistência escrava estaria se concretizando cada vez mais no próprio lugar de trabalho (no eito e no interior das moradias dos senhores), muito mais do que fora dele, tal como nas tradicionais fugas e quilombos” [Celia Maria Marinho de Azevedo, Onda negra, medo branco, p. 181]. 27 Ciro Flávio de Castro Bandeira de Melo, “Senhores da História: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de História na segunda metade do século XIX”, Tese de Doutorado em Educação, São Paulo, FEUSP, (1997) p. 269. 28 Os detalhes sobre a tomada de Palmares foram apresentado pelo autor no manual escolar de História do Brasil para o ensino secundário. 29 Para o autor, ao contrário dos indígenas, que encontraram defensores contra a sua escravidão em padre Vieira e de outros jesuítas, quase não havia registros de qualquer movimento de indignação contra a escravidão africana. 30 João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), 17a ed. revista e completada por Joaquim Ribeiro (Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1960) p. 203. 31 Trata-se da história de Noé, logo após o dilúvio. Noé preparou vinho e embriagou-se, ficando nu dentro de sua tenda. Cam viu o pai despido e comentou o fato com os seus irmãos, que entraram de costas na tenda, cobrindo a nudez do patriarca. A o acordar, Noé foi informado do gesto de seu filho Cam e, irado, o amaldiçoou: “Maldito seja Canaã! Que seja para seus irmãos, o último dos escravos”. Interpretadores bíblicos identificaram os negros africanos como descendentes de Cam, daí carregarem esses a maldição que os atrelou como escravos aos povos descendentes dos outros dois irmãos Sem e Jafet. 32 João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), p. 203. 33 Ibid., p. 203. 34 Ibid., p. 203. 35 Ibid., p. 203-4. 36 Ibid., p. 204. No capítulo II, “Tentativa de Unidade e Organização da Defesa”, item “As três raças. A sociedade”, João Ribeiro resumiu a importância do negro na formação da sociedade brasileira como “o verdadeiro elemento criador do país e quase único”. Para o autor, sem o elemento negro, “a colonização seria impossível, ao menos ao dissipar-se a ilusão do ouro e das pedras preciosas que alevantavam, em grande parte e a princípio, os primeiros colonos. A adaptação dos brancos ao novo clima, como a de certas plantas, exigia esse arrimo donde lhes vinha a vida. Também por outro lado foi o negro o máximo agente diferenciador da raça mista que no fim de dois séculos já se afirmaria a sua autonomia e originalidade nacional” [Ibid., p. 96].

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37 Conferir: Renato da Silveira, “Os selvagens e a massa: o papel do racismo científico na montagem da hegemonia ocidental”, in Afro-Ásia, (Salvador, BA, CEAO/UFBa, n. 23, 2000) pp. 89-145. 38 João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), pp. 204-5. 39 Segundo o autor, “Igualmente entretinham os portugueses de Loanda (que haviam organizado em colônia), grande comércio com o interior, donde desciam os escravos da Angola, isto é, aí embarcados, em geral oriundos das nações dos ausases, bembas, gingas e tembas, os quais (exceto os primeiros) já conheciam a língua portuguesa e eram dóceis e de boa índole. Na região do Norte (Congo e Zaire) não tinham vassalagem os portugueses, mas os navios negreiros penetravam no golfo de Cabinda, onde, ancorados, recebiam os escravos dessas terras; esses são conhecidos no Brasil com o nome de congos ou cabindas e pertencem a nações pela estatura e corpulência inferiores aos outros mencionados; são preferidos para o serviço doméstico.

Do lado oriental, da contracosta, o tráfico é ainda muito importante; os escravos são levados até Moçambique, onde embarcam. Esses pretos são conhecidos com o nome de moçambiques e são da nação macuas e angicos; adaptam-se dificilmente ao serviço no Brasil e a mortandade deles é grande” [João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), p. 204-5]. 40 Ibid., p. 205. 41 Ibid., p. 206. 42 Ibid., p. 207. 43 Ibid., p. 206-7. 44 Ibid., p. 207. 45 “Legiões de homens como a noite/Horrendos a dançar./E ri-se a orquestra irônica e estridente.../E da ronda fantástica a serpente/Faz doudas espirais./Qual num sonho dantesco, as sombras voam.../Gritos, ais, maldições, preces ressoam...” [Castro Alves, “fragmento dos Escravos”, citado por João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), p. 207. 46 Ibid., p. 208. 47 Ibid., p. 208-9. 48 Para Celia Marinho de Azevedo, no artigo “O Abolicionismo transatlântico e a memória do paraíso racial brasileiro”, publicado no periódico Estudos Afro-Asiáticos (30), de 1996, a memória do paraíso racial não era uma invenção recente. O mito da “democracia racial” tem sido tema de diversos trabalhos acadêmicos nas últimas quatro décadas do século XX. Para desvendá-lo, parte-se geralmente dos estudos de Gilberto Freyre, a quem se atribuía uma espécie de autoria intelectual do mito da “democracia racial”. Contudo, segundo a autora, “muitos anos antes que Casa Grande & Senzala, publicada em 1933, apontasse a miscigenação como fator explicativo da suposta tolerância racial vigente na sociedade brasileira, os negros dos Estados Unidos já imaginavam o Brasil como um possível refúgio do racismo que os oprimia em seu país” (p.152). A idéia de que o Brasil tinha constituído uma sociedade paradisíaca em termos raciais, desde os primórdios de sua colonização, foi desenvolvida por abolicionistas dos dois lados do Atlântico, já nas primeiras décadas do século XIX, como parte de um largo esforço comparativo visando à compreensão das diversas sociedades escravistas e dos rumos políticos e sociais da luta pela abolição. O abolicionismo transatlântico, nas palavras de Azevedo, “constituiu os próprios rudimentos de uma história comparada das Américas, dando início, desse modo, à construção da memória do paraíso racial brasileiro” [p.159]. 49 Ciro Flávio de Castro Bandeira de Melo, “Senhores da História”, p. 276. 50 João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), p. 210.

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51 Conferir: Celia Maria Marinho de Azevedo, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XX), especialmente capítulos II, III e IV. 52 João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), p. 268. 53 Ibid., p. 269. 54 José Francisco da Rocha Pombo, História do Brasil (Curso superior), 6a ed. revista e atualizada por Helio Vianna (São Paulo, Edições Melhoramentos, 1952) p. 133. 55 Ibid., p. 134. 56 Ibid., p. 134. 57 Ibid., p. 134. 58 Ibid., p. 134. 59 Ibid., p. 135. 60 Ibid., p. 135. 61 Ibid., p. 135. 62 Em Capítulos de História Colonial (1500-1800), João Capistrano de Abreu, a tratar do elemento negro – chamado de “fator exótico” junto com o português – destacou a sua presença e distribuição no território colonial com base no desenvolvimento das atividades econômicas vividas em diferentes períodos históricos: “Ao português estranho ao continente cumpre juntar o negro, igualmente alienígena. A importação começou desde o estabelecimento das capitanias e avultou-se nos séculos seguintes, primeiro por causa da cultura da cana,mais tarde por causa do fumo, das minas, do algodão e do café. Depois da supressão do tráfico em 1850, o café provocou deslocações consideráveis na distribuição interna; o mesmo efeito produziu a abolição” [João Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial (1500-1800), 7a ed. revista e prefaciada por José Honório Rodrigues (Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Publifolha, 2000) p. 47]. 63 José Francisco da Rocha Pombo, História do Brasil (Curso superior), p. 137-38. Segundo o autor, o declínio da mineração fez volver pouco a pouco a atividade geral para as indústrias agrícolas. O escravo foi passando da lavra para o eito. 64 Ibid., p. 138. 65 Para ilustrar a imagem do escravo como objeto de compra e venda, Rocha Pombo chegou a informar seu leitor-aluno o custo de cada tipo de peça de acordo com uma classificação pautada na origem, aspectos físicos e habilidades: “Quanto à valorização do escravo, basta ver que ainda pelos meados do século XVII custava uma peça da Índia, ou um fôlego vivo (como se dizia em documentos oficiais) na média 100$000 (os molecotes, de 40 a 80$000); e já em princípios do século XIX, o valor de cada indivíduo foi crescendo de 500$ até 2:000$000 e mais. O escravo ladino (já ensinado) valia muito mais que o boçal (chegado recentemente da África). O crioulo nascia já valendo mais. Um moleque inteligente, sabendo algum ofício, arte ou mister, valia dinheiro. Uma jovem mulata, vistosa e prendada, era uma fortuna” [Ibid., p. 135]. 66 Conferir: André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1967). 67 José Francisco da Rocha Pombo, História do Brasil (Curso superior), p. 136. 68 Ibid., p. 136. 69 Ibid., p. 137.

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70 Ibid., p. 137. 71 Circe Maria Fernandes Bittencourt, “Identidade nacional e ensino de História do Brasil”, in Leandro Karnal (org.), História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas (São Paulo, Contexto, 2003) p. 195. 72 Rocha Pombo, nos tempos imperiais, quando era deputado provincial pelo Partido Conservador no Paraná, defendeu a abolição da escravatura e implantação de uma economia local de cunho plenamente capitalista. Defendeu também, segundo Maria Bega,

“projetos de colonização com mão-de-obra européia, como forma de purificação da raça, no mais clássico modelo de darwinismo social. Para ele, a imigração espontânea, feita com o apoio do Estado e escudada na iniciativa privada seria capaz de ‘(...) os elementos da nossa produção agrícola e industrial, [trazendo] (...) novos recursos de educação, costumes mais adiantados, princípios mais fecundos de trabalho, e até deve trazer-nos outro sangue que ao menos renove o temperamento e a índole da nossa raça’ (Gazeta paranaense: 180, 22.4.1882)” [Maria Tarcisa Silva Bega, “No centro e na periferia: a obra histórica de Rocha Pombo”, in Marco Antônio Lopes (org.), Grandes nomes da história intelectual (São Paulo, Contexto, 2003) p. 485]. 73 Intelectuais como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior a partir da década de 1930 lançaram interpretações sobre o Brasil com base na herança da colonização portuguesa e da escravidão, pensando sempre este passado como a “semente” da nacionalidade brasileira. Conferir: Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala (Rio de Janeiro, Record, 2000 [1933]); Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 3a ed. (São Paulo, Companhia das Letras, 1997[1936]); Caio Prado Júnior, Evolução Política do Brasil (São Paulo, Brasiliense, 1986 [1933]); Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia (São Paulo, Brasiliense/Publifolha, 2000[1942]). 74 Para o referido autor, o elemento negro “trouxe uma nota alegre ao lado do português taciturno e do índio sorumbático. As suas danças lascivas, toleradas a princípio, tornaram-se instituição nacional; suas feitiçarias e crenças propagaram-se fora das senzalas. As mulatas encontraram apreciadores de seus desgarres e foram verdadeiras rainhas. O Brasil é inferno dos negros, purgatório dos brancos, paraíso dos mulatos, resumiu em 1711 o benemérito Antonil” [João Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial (1500-1800), p. 48]. 75 José Francisco da Rocha Pombo, História do Brasil (Curso superior), p. 137. 76 Para o autor, “Um veículo mais franco do sangue africano foi a intimidade e que a mulher negra ficou, desde logo, com parte da família branca exatamente mais suscetível de ser influenciada: os filhos do senhor, desde o nascimento até a puerícia, eram entregues à ama e à governante. Em seguida à ama de leite; faziam o resto a ama seca e o pajem” (Ibid., p. 137). Em Casa-grande e senzala, Gilberto Freyre abordou com especial atenção a importância da mulher negra nas relações entre o senhor e escravo. A miscigenação, assim como para João Ribeiro, em Gilberto Freyre aparecia como um conceito-chave para se pensar a identidade nacional brasileira. O manual escolar de João Ribeiro, em Casa-grande e senzala, era obra de referência, constantemente citada. 77 José Francisco da Rocha Pombo, História do Brasil (Curso superior), p. 137-38. 78 Ibid., p. 138. 79 Ibid., p. 138. 80 Ibid., p. 138. 81 Ibid., p. 138. 82 Ibid., p. 139. 83 Ibid., p. 139. 84 Ibid., p. 139. 85 Ibid., p. 139.

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86 Ibid., p. 258. 87 Ibid., p. 258. 88 Ibid., p. 258. 89 Ibid., p. 259. 90 Ibid., p. 259. 91 Ibid., p. 259-60. 92 Ibid., p. 260. 93 Ibid., p. 261. 94 Ibid., p. 263. 95 Ibid., p. 263. 96 Ibid., p. 263. 97 Para Thais de Lima e Fonseca, a atuação dos bandeirantes foi exaltada, romantizada e vista, em alguns momentos, quase como um serviço prestado à pátria brasileira na obra de Rocha Pombo [Thais Nívia de Lima e Fonseca, “Ver para compreender: arte, livro didático e história da nação”, in Lana Maria de Castro Siman & Thais Nívia de Lima e Fonseca, Inaugurando a História e construindo a nação; discursos e imagens no ensino de história (Belo Horizonte, MG, Autêntica, 2001) p. 97]. 98 José Francisco da Rocha Pombo, História do Brasil (Curso superior), p. 263. 99 Ibid., p. 263. 100 Ibid., p. 264. 101 Conferir: João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior); João Pandiá Calógeras, Formação histórica do Brasil, 7a ed. (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1967); Pedro Calmon, História da Civilização Brasileira, 3a ed. aumentada (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1937); Manuel de Oliveira Lima, Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira, 3a ed. (Rio de Janeiro, Topbooks; São Paulo, Publifolha, 2000; O império brasileiro: 1821-1889 (São Paulo, Melhoramentos, 1927); Jonathas Serrano, História do Brasil (Rio de Janeiro, F. Briguiet & Cia. Editores, 1931); Epítome de História do Brasil, 3a ed. (Rio de Janeiro, F. Briguiet & Cia. Editores, 1941). 102 João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), p. 215, citado por Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, 8a ed. (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1951) p. 47. 103 Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, p. 47. 104 João Pandiá Calógeras, A política exterior do Império, p. 30, citado por Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, p. 47. 105 Para Pandiá Calógeras, a partir de um ponto de vista utilitarista, “assim como a solução do índio fora um desastre, a do negro revelou-se preciosíssima e valiosa. Socialmente, estava o africano em nível muito mais alto do que o aborígine americano. Enquanto este se achava mergulhado em peno período neolítico e alcançava apenas o estado fetichista, o negro importado era-lhe de muito superior, conhecia e trabalhava metais, ferro principalmente, possuía uma arquitetura própria, reverenciava tradições e, mesmo, muitos deles eram monoteístas, conquanto a maioria pertencesse ao puro paganismo. Estavam afeitos à vida sedentária e sabiam servir-se de utensílios de modo a fornecerem operários bons e mão-de-obra hábil. (...) Não exagera quem disser que, sob a direção dos brancos, eles realizaram todo o trabalho material e os esforços preciosos para criar e construir o Brasil. Em um caso, mesmo, foram guias dos brasileiros: seu é o mérito da primeira indústria de preparo direto do ferro, nas forjas rudimentares

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de Minas Gerais, fruto natural da ciência prática infusa nesses metalurgistas natos que são os africanos” [João Pandiá Calógeras, Formação histórica do Brasil, p. 25]. Gilberto Freyre, em Casa-grande e senzala, teceu comentários semelhantes sobre a importância do escravo negro na colonização do Brasil: “Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada foram um elemento ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil; degradados apenas pela sua condição de escravos. Longe de terem sido apenas animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura, desempenharam uma função civilizadora. Foram a mão direita da formação agrária brasileira, os índios, e sob certo ponto de vista, os portugueses, a mão esquerda” [Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala, p. 264]. 106 Em outro manual escolar de História do Brasil, elaborado em colaboração com J. B. Damasco Penna, Joaquim Silva, à semelhança a Rocha Pombo, ilustrou a relevância do elemento negro na obra colonial citando o famoso trecho retirado de Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, de João Andreoni Antonil, no qual este diz que os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho [Conferir: Joaquim Silva, História do Brasil para o curso médio (primeiras e segunda séries), 19 ed. (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1966) p. 67]. 107 Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, p. 48. 108 Jonathas Serrano, Epítome de História do Brasil, p. 158-59. Descrição semelhante podemos encontrar no manual escolar História do Brasil (Curso Superior), de João Ribeiro. 109 Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, p. 48. 110 Pedro Calmon, História da Civilização Brasileira, p. 27, citado por Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, p. 48. 111 “Costumes belíssimos instituem-se entre os senhores: como de apadrinhar os remissos ou fugitivos, o que impede o castigo e nenhum senhor viola. O costume de ceder um dia ou dois (sábado ou domingo) a o trabalho do negro é mais tarde confirmado por lei (1700) e também o reconhecimento da propriedade privada do escravo. Outro costume é o de alforrias na pia, o que se fazia com uma espórtula insignificante (de 5 a 50 mil réis), que nunca era recusada: esse hábito era freqüente, sobretudo quando as crianças traziam a pele mais clara” [João Ribeiro, História do Brasil (Curso Superior), p. 222, citado por Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, p. 48]. 112 De acordo com este autor, “as leis portuguesas abrandavam o rigor do cativeiro pelo ensino religioso, pelo batismo e até, algumas vezes, pelo casamento diante do altar, com a permissão dos senhores. Havia ainda a possibilidade do resgate e as alforrias na ocasião do batizado, por exemplo” [Jonathas Serrano, Epítome de História do Brasil, p. 161]. No momento em que Joaquim Silva compunha seu manual de História do Brasil, Gilberto Freyre, em sua Casa-grande e senzala, já divulgava suas interpretações sobre o caráter benévolo do senhor e da escravidão amena no Brasil colonial, alicerces do seu discurso sobre a “democracia racial”, incorporado a partir do Estado Novo para construir uma imagem positiva da nação sem conflitos e com unidade racialmente. 113 Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, p. 48. 114 Manoel de Oliveira Lima, O império brasileiro, p. 144, citado por Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, p. 48. Oliveira Lima inspirou-se muito na obra de João Ribeiro para elaborar suas interpretações sobre o Brasil. Em sua Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira, ele fez menção elogiosa ao historiador João Ribeiro. João Ribeiro, por sua vez, dedicou sua História do Brasil (Curso Superior), ao amigo Oliveira Lima a quem tinha dívidas de gratidão por favores feitos quando da sua viagem à Europa. Conferir: Patrícia Santos Hansen, Feições e fisionomia: a História do Brasil de João Ribeiro (Rio de Janeiro, Access Editora, 2000). 115 Joaquim Silva, História do Brasil para a primeira série ginasial, p. 48. 116 Ibid., p. 48-9. 117 Na sua História do Brasil para o curso médio (primeira e segunda série), Joaquim Silva dedicou no capítulo sobre a formação do povo brasileiro uma longa nota sobre o episódio dos quilombos de Palmares. De maneira semelhante

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ao que fez Rocha Pombo, ele descrevia a localização geográfica dos quilombos, sua organização social política, seus meios de sobrevivência, as lutas de conquista por parte das autoridades locais, as expedições do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho e destruição final com o assassinato do líder Zumbi. O autor, sem o romantismo e empatia de Rocha Pombo, definiu da seguinte maneira a organização do referido quilombo: “A organização dos Palmares era equivalente à dos Estados selvagens dos sertões africanos; lá se tornavam livres os negros que fugiam dos senhores, mas eram escravos que se traziam à força das roças; castigavam-se com morte os que, abandonando Palmares para voltar a seus antigos donos, fossem de novo apanhados” [p. 72]. 118 Ibid., p. 49. 119 Joaquim Silva, História do Brasil para o curso médio (primeira e segunda séries), p. 67-8. 120 Jonathas Serrano, em seu manual escolar, sugeria como leitura o texto “O elemento africano” extraído da História do Brasil (Curso superior), de autoria de Rocha Pombo [Conferir: Jonathas Serrano, Epítome de História do Brasil, pp. 170-71]. Devemos ressaltar que o referido autor era uma referência constante tanto na História do Brasil, quanto no Epítome de História do Brasil, de Jonathas Serrano. 121 Conferir: Luís Reznik, “O lugar da História do Brasil”, in Ilmar Rohloff de Mattos (org.), Histórias do ensino da história no Brasil (Rio de Janeiro, Access Editora, 1998) pp. 67-89. 122 João Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial (1500-1800), p. 48. 123 Gilberto Freyre também fez referência a contribuição do lado “alegre” do elemento negro no colonizador português semelhante a feita por Capistrano de Abreu: “Foi ainda negro quem animou a vida doméstica do brasileiro de sua maior alegria.O português, já de si melancólico, deu no Brasil para sorumbático, tristonho; e do caboclo nem se fala: caldo, desconfiado, quase um doente na sua tristeza. Seu contato só se fez acentuar a melancolia portuguesa. A risada do negro é que quebrou toda essa ‘apagada e vil tristeza’ em que se foi abafando a vida nas casas-grandes. Ele que deu alegria aos são-joões de engenho; que animou os bumbas-meu-boi, os cavalos-marinhos, os carnavais, as festas de Reis,. Que à sombra da Igreja inundou das reminiscências alegres de seus cultos totêmicos e fálicos as festas populares do Brasil; na véspera de Reis e depois, pelo carnaval, coroando os seus reis e as suas rainhas; fazendo sair debaixo de umbelas e dos estandartes místicos, entre luzes quase de procissão seus ranchos por animais – águias, pavões, elefantes, peixes, cachorros, carneiros, avestruzes, canários – cada rancho com o seu bicho feito de folha-de-flandres conduzido à cabeça, triunfalmente; os negros cantando e dançando, exuberantes, expansivos” [Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala, p. 512-13]. 124 Conferir: Vicente Tapajós, História do Brasil, 2a ed. (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1946); F. E. Brant Horta, Minha Primeira História do Brasil: para o 2o e 3o anos das escolas primárias. 16a ed. (Rio de Janeiro, Conquista, 1958); Antonio José Borges Hermida, História do Brasil. 5a série. (São Paulo, Companhia Editora Nacional, s.d.); Sérgio Buarque de Holanda, História do Brasil – Curso Moderno (Das Origens à Independência). 5a série. Estudos Sociais. (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1975). 125 Antonio José Borges Hermida, História do Brasil. 5a série. (São Paulo, Companhia Editora Nacional, s.d.). 126 Ibid., p. 34. Gilberto Freyre escreveu o seguinte sobre os usos feitos do elemento africano na colônia: “O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente preta que lhe fecundou os canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra seca; que lhe completou a riqueza das manchas de massapé. Vieram-lhe da África “donas de casa” para seus colonos sem mulher branca; técnicos para as minas; artífices em ferro; negros entendidos na criação de gado e na indústria pastoril; comerciantes de panos e sabão; mestres, sacerdotes e tiradores de reza maometanos” [Gilberto Freyre, Casa grande e senzala, p. 365]. 127 Ibid., p. 34. 128 Conferir: João Andreoni Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. 129 Conferir: Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala, especialmente capítulo I.

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130 Antonio José Borges Hermida, História do Brasil. 5a série, p. 34. 131 A mulher negra ou mulata apareceu em Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre, como destaque especial na formação étnica brasileira (Conferir: capítulos IV e V). 132 Antonio José Borges Hermida, História do Brasil. 5a série, p. 34. 133 Ibid., p. 35. 134 Sérgio Buarque de Holanda, História do Brasil – Curso Moderno (1. Das origens à Independência), 3a ed. (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1972) p. 68. 135 Ibid., p. 68. 136 Ibid., p. 68. 137 Ibid., p. 69. 138 Ibid., p. 69. 139 Ibid. p. 63. 140 Ibid., p. 63. 141 Conferir: José Dantas, História do Brasil: Dos habitantes primitivos à Independência. Volume 1. 1o grau (São Paulo, Ed. Moderna, 1984); Raymundo Carlos Bandeira Campos, História do Brasil. Volume I. 1o grau (São Paulo, Atual, 1985); Nelson Piletti, História do Brasil: Da Pré-História do Brasil à Nova República (São Paulo, Editora Ática, 1987); Francisco Alencar, Brasil Vivo: Uma Nova História da nossa Gente (Volume 1). 1o grau. 12a ed. (Petrópolis, RJ, Vozes, 1992). 142 Conferir: Selva Guimarães Fonseca, Caminhos da história ensinada (Campinas, SP, Papirus, 1993); Renilson Rosa Ribeiro, “Entre Textos & Leituras: As representações do professor e da história ensinada no discurso histórico das últimas décadas do século XX”, Monografia de Bacharelado em História, Campinas, SP, IFCH/UNICAMP (2001) em especial capítulo I e II. 143 Autores inspirados pelo marxismo, segundo José Carlos Reis, opuseram-se vigorosamente às teses de Gilberto Freyre sobre a escravidão e a sociedade brasileira. A “Escola de Sociologia e Política de São Paulo” ou “Escola Sociológica de São Paulo” – designação atribuída por Charles Wagley a Florestan Fernandes e sua equipe de pesquisadores – que teve intensa produção intelectual nos anos 1960 e 1970, passou a pensar o Brasil com os conceitos de “classe social” e “luta de classes” e “vão se opor à visão idílica do Brasil colonial produzida por Freyre” [José Carlos Reis, As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, p. 59].

Este grupo de pesquisadores correspondeu à segunda linha interpretativa da historiografia brasileira sobre a escravidão, também profundamente arraigada nas páginas dos livros didáticos de história do Brasil a partir do final dos anos 1970.

Florestan Fernandes e seus colaboradores produziram muitos livros e artigos, a partir dos anos 1960, atacando diretamente o “mito” da democracia racial e mostrando a realidade da desigualdade e da discriminação racial no Brasil.

Segundo Silvia Lara, embora os autores dos anos 1940 “tenham mencionado em suas obras a coisificação do negro, associada à discriminação racial e à crueldade dos senhores, foi somente no final dos anos 1950 que os estudos de Roger Bastide e Florestan Fernandes sobre as relações entre negros e brancos deram início à revisão sistemática das teses sobre a “democracia racial” e a benevolência da escravidão brasileira. Foi sobretudo a partir dos anos 1960 que tomou corpo a idéia de que a maior benignidade da escravidão brasileira, comparativamente às outras regiões escravistas, era mais um mito que realidade, especialmente com a publicação de diversas monografias sobre várias regiões do Brasil no século XIX e sobre as relações raciais na colônias. Os trabalhos de Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Emília Viotti da Costa, Stanley Stein, Charles Boxer e, alguns anos mais tarde, de Suely Robles Reis de Queiroz apontaram o recurso dos senhores à violência física e às punições corporais como formas básicas de

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controle da massa escrava e de manutenção do regime escravocrata, da dominação senhorial e do trabalho escravo organizado” [Silvia Hunold Lara, Campos da violência (Rio de Janeiro, Paz & Terra, 1988) p. 99-100].

Para uma reflexão sobre as diferentes interpretações sobre a escravidão no Brasil a partir de um diálogo entre discurso historiográfico e didático, conferir: Renilson Rosa Ribeiro, “As letras que segregam: racismo, historiografia e livro didático”, in O negro em folhas brancas: ensaios sobre as imagens do negro nos livros didáticos de História do Brasil (últimas décadas do século XX). Coleção Cadernos da Graduação n. 2 (Campinas, SP, IFCH/UNICAMP, 2002) pp. 35-68. 144 Conferir: Clóvis Moura, Os quilombos e a rebelião negra, 7a ed. (São Paulo, Brasiliense, 1983); Joel Rufino dos Santos, História do Brasil (São Paulo, Marco, 1979). 145 Conferir: Marco Antonio Oliveira, “O negro no ensino de História: temas e representações”, Dissertação de Mestrado em Educação, São Paulo, FEUSP (2000). 146 George Reid Andrews, “Democracia racial brasileira (1900-1990): um contraponto americano”, in Estudos Avançados (São Paulo, USP, 11 [30], 1997) p. 105. 147 Celia Maria Marinho de Azevedo, “Cotas raciais e universidade pública brasileira: uma reflexão à luz da experiência dos Estados Unidos”, in Projeto História (São Paulo, EDUC, n. 23, nov. 2001) p. 348. 148 Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da pré-História à Independência. 1o grau, 3a ed. (São Paulo, Ática, 1990) p. 76. 149 Ibid., p. 76-7. 150 Neste sentido, os Piletti aproximaram-se da narrativa de Eduardo Galeano, em As veias abertas da América Latina, 6a ed. (Rio de Janeiro, Paz & Terra, 1979). Aliás, trechos do livro de Galeano foram amplamente citados no capítulo do manual escolar da dupla. Para Mairon Valério, em textos como o dos irmãos Piletti, havia uma evidente tentativa de se criar a catarse aristotélica (recurso retórico preconizado primeiramente pelo filósofo grego Aristóteles, que visa desenvolver nos receptores do discurso emoções, comovendo-os, despertando ‘paixões’) em cima do quadro da escravidão, “o que acaba por deflagrar vitimização tão grande do negro que o torna apenas ‘alvo’ das atrocidades dos brancos” [Mairon Escorsi Valério, “Retratos... A imagem do negro nos livros didáticos da década de 1980”, in Renilson Rosa Ribeiro (org.), O negro em folhas brancas, p. 74]. 151 Para a formulação de uma interpretação histórica pautada em aspectos econômicos, provavelmente os autores utilizou-se das obras de Caio Prado Junior e Celso Furtado. Na bibliografia arrolada no final do seu manual escolar, os Piletti citaram os seguintes livros destes autores: Celso Furtado, Formação econômica do Brasil, 8a ed. (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1968); Caio Prado Junior, Evolução política do Brasil e outros estudos, 5a ed. (São Paulo, Brasiliense, 1985); História econômica do Brasil, 12a ed. (São Paulo, Brasiliense, 1970). Devemos lembrar que a partir dos anos 1950 e 1960, sob inspiração do nacional-desenvolvimentismo, o ensino de história voltou-se especificamente para as temáticas econômicas. O reconhecimento do subdesenvolvimento brasileiro levou ao questionamento da predominância da produção agrícola-exportadora e à valorização do processo de industrialização. Nesse momento, destacou-se o estudo dos ciclos econômicos, sua sucessão linear no tempo – cana-de-açúcar, mineração, café e industrialização – e, exclusivamente, a História de cada centro econômico regional que era hegemônico em cada época. A ordenação sucessiva e linear indicava a determinação histórica de que o desenvolvimento só seria alcançado com a industrialização. Conferir: Elza Nadai, “O ensino de História: trajetória e perspectivas”, in Revista Brasileira de História (São Paulo, vol. 13, n. 25/26, set. 1992/ago. 1993), pp. 143-62; Renilson Rosa Ribeiro, “O saber em discurso, projetos e leis: A história ensinada no Brasil entre o II pós-guerra e a ditadura militar”, in ETD – Educação Temática Digital (Campinas, SP, vol. 04, n. 02, jun. 2003) pp. 17-34. 152 Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da pré-História à Independência. 1o grau, p. 77.

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153 Para uma crítica desta visão construída da escravidão indígena e negra, conferir: Nicholas Davies, “As camadas populares nos livros didáticos de história do Brasil”, in Jaime Pinsky (org), O ensino de história e a criação do fato, pp. 93-104. 154 Segundo Mairon Valério, este tipo de justificativa para escravidão africana em detrimento da indígena dava margem a dois tipos de interpretações problemáticas: “primeiramente, o índio resistiu, entretanto o negro aceitou o trabalho e o modo de vida implantando pelo branco (europeu); ou seja, isso pode ser interpretado como ‘fraqueza’ cultural negra além de dar a entender também a idéia de fácil subjugação do negro, que não resiste, mas aceita. A segunda interpretação fica atrelada a uma explicação que reduz a ação a ação histórica aos brancos, pois eram eles quem lucravam e usufruíam os benefícios trazidos com o tráfico e a escravidão (análises presas ao aspecto econômico) – a explicação nega a participação histórica dos negros no processo de implantação da escravidão” [Mairon Escorsi Valério, “Retratos... A imagem do negro nos livros didáticos da década de 1980”, in Renilson Rosa Ribeiro (org.), O negro em folhas brancas, p. 70]. 155 Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da pré-História à Independência. 1o grau, p. 77. 156 Ibid., p. 77. 157 Ibid., p. 77. 158 Ibid., p. 78. 159 Mairon Escorsi Valério, “Retratos... A imagem do negro nos livros didáticos da década de 1980”, in Renilson Rosa Ribeiro (org.), O negro em folhas brancas, p. 71. 160 Para ilustrar os horrores do tráfico de escravos, segundo eles, “um crime muito lucrativo”, reproduziu um trecho do livro de Eduardo Galeano, descrevendo o infame comércio [Conferir: Eduardo Galeano, As veias abertas da América Latina, p. 91-2, citado por Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da pré-História à Independência. 1o grau, p. 78]. 161 Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da pré-História à Independência. 1o grau, p. 78. 162 Ibid., p. 78. 163 Ibid., p. 78. 164 Ibid., p. 79. 165 Ibid., p. 80. Para exemplificar as crueldades da escravidão, os Piletti recorreram a um trecho do romance de José Lins do Rego, Menino de engenho, 21a ed. (Rio de Janeiro, José Olympio, 1976) p. 88-9. 166 Mairon Escorsi Valério, “Retratos... A imagem do negro nos livros didáticos da década de 1980”, in Renilson Rosa Ribeiro (org.), O negro em folhas brancas, p. 71. 167 Assim, de acordo com Silvia Lara, “quando hoje se fala na escravidão, a primeira imagem que vem à cabeça é a de um homem negro, com o corpo marcado de chicotadas, acorrentado ou preso a um tronco, submetido a uma exploração sem limites por parte de senhores brancos, cruéis e desumanos: é a imagem do escravo coisificado, totalmente subjugado ao poder implacável do senhor, incapaz de qualquer ação autônoma a não ser deixar de ser escravo, suicidando-se ou fugindo para os quilombos” [Silvia Hunold Lara, “Trabalhadores escravos”, in: Trabalhadores – Escravos, 2a ed. (Campinas, SP, AEL/UNICAMP, n. 01, 1991) p. 11]. 168 Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da pré-História à Independência. 1o grau, p. 81. 169 Este tipo de quadro histórico apresentado pelos autores estava nitidamente amparado por uma historiografia que enquadra todo o processo de escravidão dentro das esferas de ação das estruturas sócio-econômicas capitalistas. Esta analise amplamente divulgada pelos estudiosos da “Escola Sociológica de São Paulo” criava uma imagem onde: “a escravidão teria destituído os escravos da sua humanidade”. Os trabalhos de Florestan Fernandes e seus

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pesquisadores apontaram o recurso dos senhores à violência física e às punições corporais como formas básicas de controle da massa escrava e de manutenção do regime escravocrata, da dominação senhorial e do trabalho escravo organizado [Conferir: Celia Maria Marinho de Azevedo, Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX, p. 175-80]. 170 Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da pré-História à Independência. 1o grau, p. 81. 171 O questionamento desta interpretação pode ser evidenciado a partir do desenvolvimento de pesquisas voltadas à identificação e análise da ação dos escravos no processo de superação do cativeiro. Pesquisadores como João José Reis (1986), Celia de Azevedo (1987), Silvia Lara (1987), Sidney Chalhoub (1990), Flávio Gomes (1995), Robert W. Slenes (1999), entre outros, por meio de diferentes abordagens, contestaram a passividade dos negros, compreendendo-a como uma construção histórica datada. Com base na análise de diferentes situações e realidades históricas, estes estudos buscaram demonstrar que os escravos tiveram, através de motivações próprias, um relevante papel no desmonte da escravidão no Brasil. Conferir: Celia Maria Marinho de Azevedo, Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX (Rio de Janeiro, Paz & Terra, 1987); Silvia Hunold Lara, Campos da Violência – escravos e senhores na Capitânia do Rio do Janeiro (1750-1808) (São Paulo, Paz & Terra, 1988); Sidney Chalhoub, Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão (São Paulo, Companhia das Letras, 1990); Flávio dos Santos Gomes, Histórias de Quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – século XIX (Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995); Robert W. Slenes, Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil sudeste, século XIX (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999). 172 Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da pré-História à Independência. 1o grau, p. 81. 173 Ibid., p. 81. 174 Ibid., p. 82. 175 Ibid., p. 82. 176 Ibid., p. 82. 177 Eduardo Galeano, As veias abertas da América Latina, p. 96, citado por Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da pré-História à Independência. 1o grau, p. 82. 178 Ibid., p. 82. 179 Ibid., p. 83. 180 Ibid., p. 83. 181 Ibid., p. 83. 182 Ibid., p. 83. 183 Ibid., p. 130-32. 184 De acordo, com Thais Fonseca e Lima, os republicanos, após 1889, operaram uma inversão significativa na abordagem dada à Inconfidência Mineira, elevada agora à condição de movimento símbolo da luta republicana. A figura de Tiradentes foi entronizado como seu herói e mártir, numa construção de fundamentação religiosa bastante evidente. Os livros didáticos, até pelo menos, meados do século XX, manteriam essas construções, parte importante das concepções educacionais da época, de formação cívica e moral das crianças e jovens brasileiros. Civismo e moral – não obstante a progressiva laicização dos conteúdos de ensino – estabeleciam o laço entre política e religião, visível também no discurso político, sobretudo entre as décadas de 1930 e 1940. Conferir: Thais Nívia Lima e Fonseca, “Da infâmia ao altar da pátria: memória e representações da Inconfidência Mineira e de Tiradentes”, Tese de Doutorado em História Social, São Paulo, FFLCH/USP (2001).

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185 Conferir: José Murilo de Carvalho, A formação das almas. O imaginário da República no Brasil (São Paulo, Companhia das Letras, 1990) capítulo III. 186 José Francisco da Rocha Pombo, História do Brasil (Curso superior), p. 327-34. 187 Joaquim Silva, História do Brasil para o curso médio (primeira e segunda séries), p. 95-6. 188 Chico Alencar atribuiu maior destaque para a história dos quilombos de Palmares do que propriamente a figura de Zumbi. 189 A imagem heróica dos abolicionistas como os “homens” que possibilitaram a “libertação escrava” foi também profundamente divulgada pelos livros didáticos. No entanto, é preciso observar que eles foram os responsáveis por propostas de controle social sobre os ex-escravos com o objetivo de devolver aos fazendeiros esta mesma força de trabalho que lhes escapava pelas mãos, porém, na condição de mão-de-obra assalariada. Ainda hoje os abolicionistas são considerados heróis por um número significativo de historiadores, especialmente por aqueles devotos de “São Nabuco”, de acordo com o artigo de Celia de Azevedo, “Quem Precisa de São Nabuco” (Estudos Afro-Asiáticos, ano 23, n. 01, jan./junho 2001, pp. 85-97), apresentado no evento Brasil: Que 500 são esses?, promovido pelo Centro Acadêmico de Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas – 20-21 de junho de 2000. No entanto, segundo Celia Marinho de Azevedo, inúmeros abolicionistas como Joaquim Nabuco, embora “comovidos” com a situação difícil do negro escravo, dirigiam a sua propaganda exclusivamente para os escravocratas, compartilhando com a preocupação em preservar o negro à disposição dos proprietários dos meios de produção. Conferir também Celia M. M. de Azevedo, “Imagens da África e da Revolução do Haiti no Abolicionismo dos Estados Unidos e do Brasil”, in Anais da Biblioteca Nacional, p. 51-66. 190 Conferir: Robert Daibert Junior, “Isabel, a ‘redentora dos escravos’: um estudo das representações sobre a princesa”. Dissertação de Mestrado em História, Campinas, SP, IFCH/UNICAMP (2001). 191 Mairon Escorsi Valério, “Retratos... A imagem do negro nos livros didáticos da década de 1980”, in Renilson Rosa Ribeiro (org.), O negro em folhas brancas, p. 75. 192 Ibid., p. 76. 193 Nelson & Claudino Piletti, História & Vida. Brasil: da pré-História à Independência. 1o grau, p. 118. Em relação às práticas religiosas, os autores trabalharam com uma imagem preconceituosa que enxergava o sincretismo como uma adesão dos ídolos africanos ao catolicismo, ou seja, quem se submeteu foram as religiões negras, pensando sempre a mistura de práticas religiosas a partir do referencial cristão (trazido pelos portugueses). 194 Francisco Alencar, Brasil Vivo: Uma nova história da nossa gente (Volume 1). 12a ed. (Petrópolis, RJ, Vozes, 1992) p. 44-5. 195 A lenda de Olorum e da criação do mundo foi retirada pelo autor no livro Os Nagô e a Morte, de Juana Elbein dos Santos (Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 1977) p. 61-4. 196 Francisco Alencar, Brasil Vivo: Uma nova história da nossa gente (Volume 1), p. 46. 197 Ibid., p. 46. 198 Ibid., p. 46. 199 Célia Maria Marinho de Azevedo, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX), p. 127. 200 Francisco Alencar, Brasil Vivo: Uma nova história da nossa gente (Volume 1), p. 46. 201 Ibid., p. 47. 202 Ibid., p. 47. 203 Ibid., p. 47.

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204 Ibid., p. 48. 205 Ibid., p. 48. 206 Ibid., p. 50. 207 Ibid., p. 51. 208 Para ilustrar o quadro de violência da escravidão praticada contra os negros, o autor fez uso da iconografia de Jean-Baptiste Debret e Johann M. Rugendas e charges do cartunista Claudius Ceccon. 209 Francisco Alencar, Brasil Vivo: Uma nova história da nossa gente (Volume 1), p. 53. 210 A “Escola Sociológica de São Paulo”, segundo Ana Lúcia Moreira, ao apresentar a imagem do escravo vítima indefesa da violência e irracionalidade da escravidão, vulgarizada nas páginas dos livros didáticos, amplamente, a partir do final dos anos 1970 e início da década seguinte, embora tenha contribuído para a denúncia do legado negativo da escravidão e do preconceito racial, acaba por destituir do negro a sua vontade própria, sua condição de agente histórico: “a escravidão teria destituído os escravos da sua humanidade [devido a sua violência]. Não mais a inferioridade biológica, mas a cultural: a vivência do escravo o torna incapacitado para certas vivências que não as da escravidão”.

Na sua leitura, assim como Fernandes e seus pesquisadores, o livro didático e o sistema escolar, ao colocarem o negro na posição marginal – de “escravo coisa”, “massa de manobra”, “excluído”, “vítima indefesa”, “incapacitado”, “aríete”, entre outras expressões presentes nos trabalhos destes autores – contribuem para a construção de uma imagem negativa e condenada do negro e seus descendentes e também para a “evasão” da criança negra, uma vez que esta não se identifica com o universo construído em páginas brancas. [Ana Lúcia Moreira et al, “Reflexões sobre a presença do negro na História brasileira: uma proposta alternativa para a prática pedagógica”, in Anais do II Seminário Perspectivas do Ensino de História, p. 476]. 211 Francisco Alencar, Brasil Vivo: Uma nova história da nossa gente (Volume 1), p. 53. 212 Ibid., p. 54. 213 Ibid., p. 55. 214 Ibid., p. 55. 215 Ibid., p. 55. 216 Ibid., p. 55. 217 Ibid., p. 55. 218 Ibid., p. 56. 219 Ibid., p. 57. 220 Devemos ressaltar que há uma contradição nessa visão dualista da história, pois os conceitos de dominantes e dominados automaticamente delegam a ação histórica aos rotulados de dominantes – os dominados são apenas nesta situação, fruto da ação dos primeiros. Conferir: Paulo Celso Miceli, “Por outras histórias do Brasil”, in Jaime Pinsky (org.), O ensino de história e a criação do fato, p. 38-40. 221 Francisco Alencar, Brasil Vivo: Uma nova história da nossa gente (Volume 1), p. 58. 222 Ibid., p 58. 223 Ibid., p. 58. 224 Para compor sua representação sobre a história do quilombo dos Palmares, Chico Alencar recorreu as seguintes obras: João Felício dos Santos, Ganga Zumba (Rio de Janeiro, Edições de ouro, 1970); Joel Rufino dos Santos, O que é

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racismo? (São Paulo, Ed. Brasiliense, 1980); Décio Freitas, Palmares: A guerra dos escravos (Rio de Janeiro, Edições Graal, 1978); Clóvis Moura, Rebeliões da senzala (Quilombos, insurreições e guerrilhas) (Rio de Janeiro, Ed. Conquista, 1972). 225 Francisco Alencar, Brasil Vivo: Uma nova história da nossa gente (Volume 1), p. 59. 226 Ibid., p. 60. 227 Ibid., p. 61. 228 Ibid., p. 61. 229 Ibid., p. 61. 230 A discussão sobre as imagens do negro nos manuais escolares de História produzidos no Brasil principalmente na segunda metade do século passado nos remete à análise das principais interpretações e debates historiográficos desenvolvidos sobre a escravidão no mesmo período. Estas interpretações historiográficas, de uma forma ou de outra, têm influenciado a leitura dos autores de livros didáticos da área de História no que concerne a esta temática.

De maneira geral, de acordo com Ana Lúcia Moreira, os manuais escolares de História do Brasil têm sofrido influência da historiografia fundamentada em dois extremos: “por um lado, segundo os estudos de Gilberto Freyre, a visão de uma escravidão revestida de um caráter paternalista, indicando uma escravidão menos violenta do que em outros países da América, e por outro lado, com os estudos da Escola de Sociologia e Política [de São Paulo], a desmistificação da escravidão amena com a teoria do ‘escravo coisa’, destituído de vontade, onde a humanidade era recuperada apenas através da rebeldia extrema” [Ana Lúcia Moreira et al, “Reflexões sobre a presença do negro na História brasileira: uma proposta alternativa para a prática pedagógica”, in: Anais do II Seminário Perspectivas do Ensino de História, 1996, p. 476].

Estas duas posturas interpretativas, a dos estudos de Gilberto Freyre e os da “Escola Sociológica de São Paulo” – representada por Florestan Fernandes e seus pesquisadores, inserem-se no debate sobre o caráter “brando” ou “cruel” da escravidão no Brasil. 231 Para uma análise da iconografia sobre as representações do negro nos manuais escolares de História, conferir: Marco Antonio de Oliveira, “O negro no ensino de História: temas e representações”, p. 104-16. 232 Para Celia Marinho de Azevedo, o tema do passado glorioso da África era desconhecido dos abolicionistas brasileiros, cujo discurso tem influenciado na escrita da história sobre a presença do negro no Brasil:

“Se a África porventura viesse à mente, era sempre em termos de miséria, ignorância e feiúra. A África era irremediavelmente a terra das trevas.

O problema a que os abolicionistas brasileiros constantemente se referiam era que a África havia exportado seus vícios para o Brasil, juntamente com milhares de escravos. (...)

A ‘africanização’ do Brasil era portanto uma herança que ‘a mãe-pátria’, Portugal, havia impresso como ‘uma nódoa’ em todos os aspectos possíveis da sociedade brasileira, incluindo-se aqui a língua, as maneiras sociais, a educação. A africanização era portanto o conjunto dos vícios africanos que circulavam, juntamente com os escravos, no Brasil” [Celia Maria Marinho de Azevedo, Abolicionismo: estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX), p. 136-37]. 233 Florestan Fernandes e Gilberto Freyre apresentaram divergências quanto à natureza do impacto da escravidão no Brasil. Ao contrário de Gilberto Freyre, para quem a escravidão tinha exercido uma influência positiva sobre o desenvolvimento social e cultural brasileiro, Florestan Fernandes e seus pesquisadores enxergaram a escravidão como profundamente destrutiva e nociva, tanto por suas vítimas imediatas quanto pelo futuro da sociedade brasileira como um todo. Longe de ter qualquer efeito potencialmente democratizante, a escravidão foi um sistema inerentemente autoritário que implantou o preconceito e um forte senso de superioridade racial nos corações e espíritos dos brancos brasileiros.

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Além disso, Florestan Fernandes culpou a escravidão por negar às suas vítimas os básicos direitos e liberdades humanas e por mantê-las como trabalhadores analfabetos e não especializados. Para o autor, no livro A integração do negro na sociedade de classes [3a ed. (São Paulo, Ática, 1978 – 2 volumes)], a desintegração do regime escravista e senhorial deu-se no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistências e garantias que os protegessem durante o processo de transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram desobrigados da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou outra qualquer instituição assumissem incumbências especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. O liberto encontrou-se convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, ainda que não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva.

Em linhas gerais, para Florestan Fernandes a escravidão mutilou os negros como povo e os privou completamente da capacidade de competir com os brancos na disputa do século XX por empregos, educação e sustento. De acordo com o autor, na análise de George Andrews, em decorrência disso, longe de lhes oferecer o direito aos frutos da sua participação como membros de uma “democracia racial”, “após a emancipação o legado da escravidão continuaria a marginalizar e excluir os afro-brasileiros através dos fatores duais de sua própria incapacidade e da hostilidade e do preconceito dos brancos” [George Reid Andrews, Negros e Brancos em São Paulo (1888-1988), p. 30].

Ao analisar o estado contemporâneo das relações raciais no Brasil, Florestan Fernandes defendeu a tese da herança da escravidão como causa principal da incapacidade dos negros de competir com os brancos em pé de igualdade na sociedade competitiva de classes. Para ele, os negros não se integraram à sociedade brasileira pós-Abolição, não por causa da discriminação, e sim devido ao analfabetismo, à desnutrição, à criminalidade, à incapacidade de atuar como trabalhador livre – as heranças da escravidão.

Para os pesquisadores tributários desta perspectiva de análise enunciada por Florestan Fernandes, a revisão sistemática das teses da benevolência e suavidade da escravidão era justificada não somente pela realidade da escravidão ser dura, bárbara e cruel, mas também pela própria violência inerente ao sistema escravista, constituindo uma de suas principais formas de controle social e manutenção. 234 Silvia Hunold Lara, Campos da Violência – escravos e senhores na Capitânia do Rio do Janeiro (1750-1808), p. 344. 235 Gislene Aparecido dos Santos, A invenção do “ser negro” (um percurso das idéias que naturalizaram a inferioridade dos negros) (São Paulo; Rio de Janeiro, EDUC; Pallas; FAPESP, 2002) p. 55. 236 Conferir: Celia Marinho de Azevedo, “Para além das ‘relações raciais’: por uma história do racismo”, in Josué Pereira da Silva et al (orgs.), Crítica contemporânea (São Paulo, AnnaBlume/FAPESP, 2002) p. 129-48. 237 Estudos recentes, através de novos aparatos teórico-metodológicos e de diferentes fontes documentais, têm apresentado outras interpretações sobre a atuação dos negros na resistência contra a escravidão. Novas leituras, por exemplo, podem ser encontradas sobre a história dos quilombos e da participação ativa dos negros na luta pela abolição. Conferir: Renilson Rosa Ribeiro, “As letras que segregam: racismo, historiografia e livro didático”, in Renilson Rosa Ribeiro (org.), O negro em folhas brancas, pp. 35-68. 238 Esta imagem do negro como personagem marginalizado ou secundário presente nas páginas nos manuais escolares, por exemplo, pode ser encontrada na interpretação apresentada no livro Da senzala à colônia, de Emília Viotti da Costa (São Paulo, Brasiliense, 1989), sobre o processo de Abolição no Brasil. A autora atribuiu importante papel para a atuação dos abolicionistas no processo de emancipação dos escravos, cabendo a estes últimos participação secundária nos momentos finais. 239 Marco Antonio de Oliveira, “O negro no ensino de História: temas e representações”, p. 170. 240 Para uma análise dos debates sobre as representações das datas cívicas de 13 de maio e 20 de novembro, conferir: Micenio Santos, “13 de maio, 20 de novembro: uma descrição da construção de símbolos raciais e nacionais”. Dissertação de Mestrado, IFCS/UFF, (1991).

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241 Apesar dos estudos sobre a resistência escrava terem enfatizado a análise dos grandes quilombos, rebeliões e insurreições, Pedro Paulo Funari observou que estes ainda são muito incipientes e marcados por leituras superficiais e preconceituosas. Para o autor, a história dos quilombos no Brasil, por exemplo, ainda precisa ser contada.

Inspirado pelas proposições lançadas pela Arqueologia Histórica e pelo estudo da cultura material, Pedro Paulo Funari trouxe para o cenário dos debates historiográficos e arqueológicos novas propostas de investigação e de interpretação da história dos quilombos escravos nas Américas.

Procurando superar as dificuldades de fontes escritas sobre os quilombos, o autor tem defendido a necessidade de ampliação do conceito de documento histórico, abrindo perspectivas para o uso de fontes não-escritas, como por exemplo, cerâmicas, e a possibilidade de se “deslocar a atenção, originalmente centrada na cultura material da elite, para aquela do povo e tratar de questões relativas ao racismo, etnicidade, gênero e opressão” [Pedro Paulo Funari, “A cultura material e a construção da mitologia bandeirante: problemas da identidade nacional brasileira”, in Revista Idéias (Campinas, SP, 2, 1, 1995) p. 37). Muito mais do que criticar os estudos produzidos sobre os quilombos, Funari propõe-se a buscar outras formas de interpretar e narrar sua história.

Nesse contexto da moderna Arqueologia Histórica é que o autor e outros pesquisadores têm repensado o maior e mais conhecido quilombo das Américas (constantemente citado nos manuais escolares): Quilombo de Palmares.

Para saber sobre as pesquisas sobre o quilombo de Palmares nos últimas décadas, conferir: Pedro Paulo A. Funari, “A arqueologia e a cultura africana nas Américas”, in Estudos Ibero-Americanos (Porto Alegre, RS, XVII, n, 1991) pp. 61-71; “A ‘República de Palmares’ e a arqueologia da serra da Barriga”, in Revista da USP (São Paulo, n. 28, 1996), pp. 06-13; “A arqueologia de Palmares: sua contribuição para o conhecimento da história da cultura afro-americana”, in Studia Africana (Barcelona, 9, 1998) pp. 175-88; “O estudo arqueológico de Palmares e a sociedade brasileira”, in África (São Paulo, n. 20/21, 2000) pp. 93-103. 242 “O negro em folhas brancas: racismo e ensino de História”, in Renilson Rosa Ribeiro (org.), O negro em folhas brancas, p. 107. 243 Conferir: Kazumi Munakata, “Produzindo livros didáticos e paradidáticos”, Tese de Doutorado em Educação, PUC/SP (1997); Circe Maria F. Bittencourt, “Livros didáticos entre textos e imagens”, in O saber histórico na sala de aula, 2a ed. (São Paulo, Contexto, 1998) pp. 69-90.

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___________________________________Algumas Considerações

PARA ALÉM DAS COLÔNIAS IDENTITÁRIAS

“O manual [escolar] continua a ser autoritário. Camufla o modo de produção das representações

que fornece, a sua relação com os arquivos, com um meio histórico, com as problemáticas

contemporâneas que determinam a sua fabricação, etc. Por outras palavras, o manual fala da

História, mas não mostra a sua própria historicidade. Através deste défice metodológico, impede

ao estudante a possibilidade de ver como tudo se origina e de ser ele próprio produtor de História e

de historiografia. Impõe o saber de uma autoridade, quer dizer, uma não-História. Ao nível dos

manuais há, pois, um grande trabalho a fazer para introduzir o estudante, como actor, na cidade

historiográfica. Então o manual poderia ser o cavalo de Tróia de um fazer da História e de fazer

a História.”

Michel de Certeau,

A nova história.

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____________________________________________Histórias didáticas, histórias do Brasil

Ao tomar como norte as observações feitas pelo historiador Michel de Certeau, numa conversa com

Philippe Ariès, Jacques Le Goff, Emmanuel Le Roy Ladurie e Paul Veyne, na mesa redonda “A História –

um paixão nova”, apresentamos uma reflexão sobre as possibilidades de leitura dos manuais escolares ou

livros didáticos – como usualmente são denominados – que podem auxiliar as pesquisas no campo da

história da educação, em especial, na área de história do ensino de História.

Para dar conta da compreensão do objeto manual escolar, por exemplo, há uma exigência de análises

ligadas, de um lado, à educação e ao ensino e, de outro, à História e ao discurso historiográfico. Estas

preocupações, de acordo com os interesses e perguntas do profissional da História, têm aberto caminhos

para diferentes recortes e perspectivas de investigação. Perguntas, recortes, escolhas, documentos são

instrumentos que auxiliam o historiador nas suas peregrinações pelo mundo do saber histórico.

Nas pesquisas que se têm se debruçado sobre a análise do cotidiano escolar, a utilização do texto didático

continua sendo um elemento central, merecedor de estudos mais aprofundados, que permitam a

compreensão das questões relativas a ele.

A amplitude de temas e problematizações que podem ser formulados a partir dele tem transformado

este objeto polêmico e complexo, com perspectivas de análise diversas, envolvendo diferentes áreas do

saber. Neste universo múltiplo de olhares (leituras) podemos encontrar educadores, historiadores,

lingüistas, semiólogos, entre outros profissionais, preocupados em investigar questões ligadas à sua gênese,

à sua continuidade e suas transformações, aos seus usos e práticas na produção e reprodução de

conhecimento, aos valores e ideologias, aos estereótipos e preconceitos de seus conteúdos.

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Estudos que abordam questões ligadas à sua fabricação – o livro como objeto, mercadoria que sofre

as influências de contingências sociais, econômicas, técnicas, políticas e culturais como qualquer outra e

que percorre os caminhos da produção, distribuição e consumo. Outros estudos que enveredam para a

história dos autores dos livros didáticos, vasculhando o cotidiano daqueles que escrevem suas páginas1.

Enfim, podemos encontrar diferentes leituras, peregrinações, pela cidadela dos livros escolares.

A escolha dos manuais escolares de História do Brasil como fonte privilegiada de investigação na

nossa oficina amparou-se nas nossas preocupações vinculadas ao campo da história cultural, em especial,

para os trabalhos que se dedicam a fazer a história do livro e do impresso e os que têm como foco de

interesse a história das disciplinas e do livro escolar. Nesta incursão pelo tema, situamos o estudo do tema

no âmbito das questões relacionadas à história do livro, explorando as contribuições teóricas e conceituais

fornecidas pelos seus historiadores, procurando interligar as questões dos manuais escolares como objeto

cultural com as que se referem ao texto escolar e à disciplina História.

O manual escolar, como podemos verificar neste trabalho, justificou-se também como objeto rico de

pesquisa por constituir-se como espaço privilegiado de disputas políticas de constituição de identidades.

Nele, há diferentes personagens e modelos de interpretações em jogo – o jogo das identidades. Assim como o

currículo, o manual escolar é lugar, espaço, território. Objeto de relações de poder por ser trajetória,

viagem, expedição, percurso na formação de gerações de leitores-alunos. Ele é autobiografia, nossa vida,

nosso curriculum vitae: neste espaço fabrica-se nossa identidade. O manual escolar é texto, discurso,

documento. É um documento de identidade, uma colônia identitária; objeto de desejo de vários grupos,

projetos e políticas2. Suas páginas são espaços de políticas. Elas não são a História do Brasil, mas nela são

esboçadas as histórias desta comunidade imaginada, de múltiplas definições e leituras, batizada de Brasil.

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Os manuais escolares, assim como as escolas, existem dentro de um complexo contexto político e social.

Precisam, portanto, ser considerados em seu aspecto de produto, como resultado da interação de um

conjunto de normas, disposições e políticas culturais3.

Os livros de texto possuem já uma longa história. Há séculos conhecido no mundo ocidental,

converteu-se em parte fundamental da educação e do ensino, a ponto de quase esquecermos que estão ali.

Era como se fosse impossível imaginar um projeto de educação que não tivesse a sua presença: o império do

escrito, do texto.

Esta observação tem nos oferecido algumas pistas para pensarmos nosso objeto de estudo: a

longevidade do livro de texto escolar; a sua presença norteadora nas atividades do ensino e um processo de

naturalização nas perspectivas que não se detêm no seu aspecto de objeto sócio-cultural e histórico.

Em outros termos, podemos incorrer no risco de encará-lo como um dado a-histórico ou como um

objeto que possa ser descartado facilmente, condenado por erros, equívocos e simplificações. Podemos

transformar o livro (escolar) num refém de um pensamento autoritário e obcecado pela busca da verdade,

da essência, da narrativa ideal.

Neste aspecto, ele pode ser vítima de um olhar inquisidor, que procura julgá-lo, muitas vezes por trás de

uma retórica da compreensão, dentro dos binômios verdade versus mentira, bem versus mal, belo versus feio. Uma

prática que ao invés de compreender como se forjam os discursos, procura rotular, marcar os manuais

(livros didáticos) com venenos, selos e carimbos ou simplesmente os condenarem às chamas da fogueira

purificadora. Uma maneira, como tem justificado os inquisidores (comissões de avaliação ministeriais e

pesquisadores do tema – as vozes de autoridade), de preservar a alma pura e inocente dos pobres leitores-

alunos indefesos.

O caráter de permanência e a visão de “banalidade” geralmente relacionada aos manuais escolares

silenciam discursos que expõem a complexidade e o movimento de um processo de diferentes dimensões.

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Por muitas vezes temos a impressão que os próprios estudiosos da história do livro têm se esquecido da

historicidade de seu objeto e principalmente das práticas de leitura, rendendo saudações e discursos

apologéticos em nome da causa da verdade, este baú de moedas de ouro escondido no fundo do mar da

história. Eles mesmos parecem garantir a integridade do discurso de senhores da verdade dos autores dos

textos didáticos, uma vez que disputam com estes a condição de tutores do saber verdadeiro, de

progenitores da real, completa, definitiva e justa História do Brasil4.

Talvez falte a estes aprender a lição do General Fedina, no conto “Um General na Biblioteca”, de

Ítalo Calvino, de que diante dos livros não há lugar para um inquisidor/censor, mas sim leitores. Depois de

tempos mergulhados na biblioteca, os livros que antes eram o amargo veneno da boa sociedade

constituiram-se, aos olhos do velho general e de seus soldados, em doce antídoto, alimento para a vida (o

oprimido dentro do opressor estava livre):

“A ordem chegou à biblioteca quando o espírito de Fedina e de seus homens se debatia

entre sentimentos opostos: por um lado, estavam descobrindo a todo instante novas

curiosidades a serem satisfeitas, estavam tomando gosto por aquelas leituras e aqueles

estudos como nunca antes teriam imaginado; por outro, não viam a hora de voltar junto

das pessoas, de retomar contato com a vida, que agora lhes parecia muito mais complexa,

quase renovada aos olhos deles; e, além disso, a aproximação do dia em que deveriam

deixar a biblioteca enchia-os de apreensão, pois teriam de prestar contas de sua missão, e,

com todas as idéias que andavam brotando em suas cabeças, não sabiam mais como sair

dessa enrascada”5.

Um livro, um texto só existe se houver leitores para lhes atribuírem sentidos, interpretações. Um

livro sozinho não criará monstros, subversivos ou cordeiros do mal. Talvez falte a estes a coragem de

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enxergar a incoerência de uma prática opressiva e fechada de tratar os livros e os leitores, e render-se, como

Fedina, aos encantos de uma prática de múltiplas facetas e sem pegadas.

Pois como nos lembrou Michel de Certeau, numa passagem do livro A invenção do cotidiano – Artes de

fazer,

“Longe de serem escritores, fundadores de um lugar próprio, herdeiros dos lavradores de

antanho – mas, sobre o solo da linguagem, cavadores de poços e construtores de casas -,

os leitores são viajantes: eles circulam sobre as terras de outrem, caçam, furtivamente,

como nômades através de campos que não escreveram, arrebatam os bens do Egito para

com eles se regalar. A escrita acumula, estoca, resiste ao tempo pelo estabelecimento de

um lugar, e multiplica a sua produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura não se

protege contra o desgaste do tempo (nós nos esquecemos e nós a esquecemos); ela pouco

ou nada conserva de suas aquisições, e cada lugar por onde ela passa é a repetição do

paraíso”6.

Eis o encontro do mundo do leitor com o mundo do texto.

A leitura de um livro, para Circe Bittencourt, tem sido um ato contraditório e estudar seu uso é essencial

para o historiador compreender a dimensão desse objeto cultural7.

A história do livro, ao ampliar o seu objeto e sua definição, está se transformando numa atividade

central para se entender a produção, a transmissão e a recepção dos textos, de todos os tipos e formas que

lhes sirvam de suporte. Nas últimas décadas, quando a história social tem deslocado seu olhar das

estruturas para as práticas, os estudos sobre os objetos impressos têm demonstrado seu interesse naqueles

que os escreveram e fabricaram, que os venderam e manipularam para pensar de uma nova perspectiva a

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relação entre os textos, as formas que se oferecem à leitura e os usos ou as interpretações que os dotam de

sentido8. Nesta perspectiva, as pesquisas de Roger Chartier9 têm nos oferecido encaminhamentos, ou

melhor, táticas para aprofundar a análise das relações existentes entre gêneros textuais, formas editoriais e

práticas de leitura.

Ao debruçar-se sobre os problemas e condições de uma história do livro, Roger Chartier destacou

três pólos que definiram o espaço desta história: a análise dos textos, a partir de suas estruturas e objetivos;

a história do livro, com todas as formas que toma o escrito; e o estudo das diferentes práticas associadas a

esses objetos ou de suas formas produzindo usos e significações diferenciadas. O processo no qual as obras

ganharam sentidos possuí uma relação triangular – entre o texto, o objeto que lhe serve de suporte e as

práticas que estão ligadas a este10.

A nossa pesquisa pode ser situada no primeiro pólo apresentado por Roger Chartier – a análise dos

textos – mas tomou como pressuposto que uma compreensão global dos movimentos de construção do

manual escolar necessita ter como referenciais as outras dimensões que participam do processo.

A compreensão da posição do autor precisa perceber o livro como a forma de um espaço de relações,

que não permite que se fale sobre o texto em abstrato, como objeto existente fora dos objetos escritos que

permitem sua leitura, e sim de um objeto que resulta de um conjunto de elementos materiais que compõem

o livro – a tinta, o papel, a letra, a imagem. A produção textual é movida pela ação de um processo

complexo de relações de poder dos contextos sócio-históricos – pensados numa relação dialógica entre

diferentes textos (não concebemos o contexto como uma realidade estática, verdadeira, que autoriza ou

desautoriza a análise) –, que limitam, restringem e condicionam esta produção11.

Essa produção, portanto, tem a marca da historicidade, de suas condições de possibilidade (muitas

vezes silenciadas e invisíveis perante o olhar do historiador). Tomamos como ponto de partida, em nossa

peregrinação pelo mundo dos livros, que o manual escolar de História do Brasil necessita ser analisado a

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partir da problematização de quais condicionantes, pressões e possibilidades foram mais atuantes, ou seja,

quais os discursos que obtiveram mais solidez e continuidade, ou, na outra margem, de que maneira foram

possíveis transgressões ou invenções?

Ainda tomando Roger Chartier como referência, devemos pensar que a leitura não pode ser vista

como uma abstração, como um processo universal e a-histórico. A leitura tem histórias. Nossa leitura dos

manuais escolares tem sua própria historicidade. Aqui não há espaço para a retórica da neutralidade. A leitura

teve e tem formas e práticas diversas em diferentes lugares sociais e históricos. Como destacou Michel de

Certeau,

“Quer se trate do jornal ou de Proust, o texto só tem sentido graças aos leitores; muda

com eles, ordena-se conforme códigos de percepção que lhe escapam. Ele só se torna

texto através de sua relação com a exterioridade do leitor, por um jogo de implicações e de

ardis entre duas expectativas combinadas: aquela que organiza um espaço legível (uma

literalidade) e aquela que organiza uma diligência, necessária à efetuação da obra (uma

leitura)”12.

Os leitores são artistas e arteiros: eles criam quadros múltiplos a partir de seus lugares e experiências ao

ler, mas também subvertem, como crianças travessas, não se submetem às intenções dos autores de textos ou

dos que produzem os livros, embora convivam com as coações de uma política que procura fixá-los na

trajetória segura e tranqüila para uma boa e correta leitura. (In)felizmente o muro não é tão alto e a rua

continua a exercer seus encantos... E Cherazade (a História), queremos crer e fazer crer, continuará a nos

brindar com as mais fantásticas narrativas sobre as aventuras (e desventuras) humanas, na esperança de nos

libertar da dor e do ressentimento do nosso dia-a-dia (aquele Sultão embrutecido que existe dentro de cada

um de nós).

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Num estudo dirigido por Alain Choppin13, os manuais escolares foram analisados em diferentes

perspectivas e temáticas diversas: o livro escolar como objeto, o seu conteúdo, sua seleção e

regulamentação; como instrumento pedagógico; como pesquisa e conservação. Poderíamos pensar neste

artefato do cotidiano escolar como um lugar de memória, para usar uma expressão de Pierre Nora14.

Enfoques como os apresentados por Alain Choppin mostraram que o texto escolar não se reduziu a

um suporte de conteúdo educativo apenas, um instrumento pedagógico para métodos de ensino-

aprendizagem. Como observou o autor, ele constituiu-se num produto fabricado e comercializado,

dependente das técnicas de edição e das leis do mercado e um vinculo de políticas e cultura, que se tornou

mais importante por ser destinado às novas gerações, de maneira ampla e generalizada. A pluralidade de

roteiros de viagem pela história do livro didático tem feito dele uma fonte inesgotável de interesse para os

historiadores, sociólogos, lingüistas, não somente de educadores. Cada um, a partir de seu lugar e suas

preocupações, pode esboçar olhares diversos sobre o mesmo objeto. Os manuais escolares constituíram

um tipo de literatura complexa, um cenário onde tem atuado vários sujeitos (autores, especialistas, editores,

autoridades, professores, alunos e pais), cujas motivações diferem de um grupo para outro e dentro de cada

um dos grupos.

As pesquisas sobre o manual escolar no ensino da História foram durante muito tempo renegadas,

deixadas na penumbra da marginalidade. Podemos afirmar que o impulso para a produção de estudos mais

aprofundados e intensos sobre o assunto só foi dado a partir de pesquisas produzidas sobre a história do

livro por pesquisadores como Michel de Certeau15, Roger Chartier16, Robert Darnton17 entre outros nomes.

Autores que, dentro de diferentes tendências, demonstraram o caráter ambíguo e a importância do livro

como elemento de diferenciação social e cultural na sociedade ocidental. Estudos que não apenas inovaram

a história do objeto, mas também das práticas de leituras.

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O livro, de acordo com Roger Chartier, buscou sempre instaurar uma ordem; fosse a ordem de sua

decifração, a ordem no interior da qual ele deve ser entendido ou, mais, a ordem almejada pelo olhar da

autoridade que o encomenda ou permite a sua publicação e circulação18.

Devemos ter em mente que o uso do manual escolar ou livro didático, por si só, já constituía uma

maneira de assegurar maior controle sobre as atividades escolares. No Brasil, ao longo do Império, foi

motivo de debates e de muita preocupação por parte das autoridades educacionais o fato de existir

impressos e manuscritos quaisquer no espaço das escolas. Dessa forma, era considerado que o

fornecimento de compêndios às escolas elementares poderia evitar os perigos das crianças, os futuros

súditos da nação, terem contato com leituras não recomendadas pelo discurso da moral e dos bons

costumes da boa sociedade19.

A escola, templo destinado oficialmente à aprendizagem da cultura letrada, à produção do saber da

leitura e da escrita, sofreu desde o começo o veto e a censura a qualquer leitura que não fosse a estabelecida

oficialmente e reconhecida pela tradição, esta entidade superior. Se percorrermos as narrativas literárias e

biografias de diversas épocas da nossa história encontraremos relatos de punições feitas a alunos que

ousaram levar para escola ou ler escondido livros ou manuscritos, vistos como perigosos porque estavam

fora da lista prevista e prescrita pela escola e sociedade20.

Ao acompanhar a história do livro no Brasil, Circe Bittencourt observou que a insistência, por parte

de legisladores, sobre a necessidade de uniformização do ensino para toda a nação, foi uma constante em

todo o período imperial. Desta maneira, os livros escolares foram sempre vistos como possibilidade de

garantir este projeto de unificação da cultura escolar em todo o território brasileiro. Esta defesa voraz da

uniformização do ensino foi realizada com grande força pelos liberais do final do Império e do alvorecer da

República, tanto em relação ao ensino primário quanto ao secundário.

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Para a autora, tal política centralizadora e unificadora do ensino ocorreu mesmo com a aparente

descentralização legal do ensino pelo Ato Adicional de 1834. Em geral, os assuntos educacionais seguiram

as determinações do governo imperial na legislação de cada província que pouco realizou variações ao

longo do século XIX. O caráter central do manual escolar nas práticas escolares apontou como esta

presença sempre esteve permeada por uma política disciplinar e ao poder instituído, durante toda nossa

história educacional21.

As reformas educacionais da primeira metade do século XX, em especial, durante o período da

ditadura de Getúlio Vargas, acentuaram a posição dos livros didáticos no processo de ensino e,

conseqüentemente, no seu controle. A partir deste momento, eles passaram a desempenhar papel

fundamental como mediadores entre o Estado e a sociedade, legitimando o regime vigente de governo e

consolidando as principais características do ensino de história. A construção de uma moral nacional, tendo

a história ensinada como seu portador e os manuais escolares como seus instrumentos, era garantida pela

existência da Comissão Nacional do Livro Didático, criada em 1938, e responsável pela “pureza” e

“purificação” do conteúdo dos textos didáticos adotados nas escolas22.

Tal política de fiscalização se fez presente, com diferentes nuances, na história das políticas de

educação e dos manuais escolares no Brasil até os dias mais recentes. Basta nos lembramos da censura

imposta pela ditadura militar pós-196423. Mais recentemente poderíamos citar as polêmicas em cima das

comissões de avaliação dos livros didáticos, implantadas pelo Ministério da Educação (MEC), durante

governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002)24.

As intervenções, em diferentes contextos políticos, sociais e culturais da história do país, das

autoridades do Estado em relação ao uso do livro escolar têm configurado um amplo quadro de ações bem

definidas e articuladas, que vão desde as normas para a confecção do livro didático, definindo quem

poderia ser o autor; seu conteúdo e com que fins, até os critérios para a adoção do livro escolar e de suas

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práticas na escola por alunos e professores. O manual escolar, podemos inferir, exigiu ao longo do tempo a

constituição de legislações que o normatizasse, restringisse, censurasse e proibisse, seguida de

determinações pedagógicas sobre o melhor método: quando usar o livro, como e com que objetivos

específicos.

Fonte de investimento e, ao mesmo tempo, de preocupação, este objeto colonizador sempre suscitou e

tem suscitado debates dentro e fora das instituições (ministérios, secretarias, escolas, editoras,

universidades) sobre a sua importância na constituição de identidades – um locus privilegiado de jogo de

identidades.

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____________________________________________________A ordem (didática) das raças

Embora as narrativas fantásticas de Cherazade nos tentassem a rumar para outros campos mais aprazíveis, a

história das práticas de leitura, tão reivindicada por Michel de Certeau e Roger Chartier, não foi nosso

objeto de analise. Nosso tapete mágico alçou vôo por territórios mais áridos, lugares onde as identidades não

podiam planar pelo ar em busca de novas experiências.

Ao longo desta pesquisa nós tivemos a preocupação de analisar as maneiras como o discurso da raça

tem sido apropriado pelo discurso didático dos manuais escolares de História adotados nas escolas

brasileiras desde a segunda metade do século XIX até o final do último século.

Ao construir suas representações do índio, português e negro, percebemos como os manuais

escolares, em diferentes contextos, fizeram uso do instrumento conceitual da raça para fabricar identidades

estáticas, fechadas e padronizadas destes grupos.

Os textos didáticos analisados, ao adotar o discurso da raça como importante instrumento na

construção do discurso histórico, estabeleceram lugares identitários e hierarquizados para a complexidade

de imagens e práticas culturais que têm marcado a história dos seres humanos. Para eles, era impossível

pensar a noção de humanidade sem recorrer às ferramentas conceituais da raça, nacionalidade, gênero,

classe entre outras. Era como se a humanidade só pudesse ser imaginada a luz destes conceitos, em muitos

casos, naturalizados. Não havia historicidade no trato destes termos identitários e muito menos da própria

disciplina histórica.

Os manuais escolares, ao longo do tempo, criaram e instituíram como uma “vontade de verdade”25,

uma ordem discursiva raciológica para a narrativa histórica. Através das regras da escritas estabelecidas e

ditas necessárias – uma operação de poder - para a sua validação como discurso histórico, eles foram forjando

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uma interpretação do passado brasileiro que deveria povoar o imaginário de crianças e jovens, o

denominados futuros cidadãos da pátria, figura de retórica geralmente aclamada em falas políticas e nos

documentos institucionais.

Ao escrever suas histórias, dentro dos limites do texto escritos e das regras discursivas do ofício, os

autores realizaram escolhas, recortes, classificações e hierarquizações para determinar as identidades raciais

para a população que formou a “comunidade imaginada” Brasil. Este país teve, na sua leitura, sua

constituição no cruzamento das três raças (proporcional ao grau de civilização de cada uma): índios,

portugueses e negros.

Ao tomar esta tríade racializada como uma verdade inquestionável, os manuais escolares foram

determinando os lugares e a sua ordem na fabricação de um passado para o Brasil colonial e nação.

Criaram no passado de dominação portuguesa (1500-1822), como podemos perceber neste estudo, uma

colônia identitária onde cada uma das raças foi definida, padronizada, comparada e classificada de acordo

com seus níveis de civilização - tendo os portugueses (europeus e brancos) como padrão de humanidade e

civilização superior. Ao definir os lugares ocupados por estes grupos nas páginas dos manuais escolares de

História, delimitados pelo conceito de raça, os autores foram determinado também os lugares sociais e

políticos que estes deveriam assumir na sociedade contemporânea.

Condenados pelo discurso raciológico presente no discurso histórico, seres humanos, transformados

em raça vermelha e negra, foram conduzidos à posição de submetidos e escravizados – cidadão de segunda

categoria – por apresentarem níveis inferiores de civilização e de desenvolvimento dentro de uma escala

padrão, onde no topo estava a raça branca (português).

Na nossa opinião, o discurso da raciologia, arraigada implícita e explicitamente nos manuais escolares

analisados, não se limitou, pois, a descobrir, a descrever, a explicar a realidade da existência de raças: a dita

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“teoria” estava irremediavelmente implicada na sua produção. Ao descrever as raças (índios, portugueses e

negros), esta “teoria”, de certa maneira, inventou-as. As raças descritas supostamente pelo pensamento

raciológico foram e são, efetivamente, um produto de sua criação.

Nesse ponto, concordamos com Tomaz Tadeu da Silva, ao acreditarmos que fizesse mais sentido não

falar em teorias, mas em discursos ou textos. Ao deslocarmos a ênfase do conceito de teoria para o seu

discurso, a nossa perspectiva de análise tem procurado ressaltar precisamente o envolvimento das

descrições lingüísticas da “realidade” em sua produção:

“Uma teoria supostamente descobre e descreve um objeto que tem uma existência

independente relativamente à teoria. Um discurso, em troca, produz seu próprio objeto: a

existência do objeto é inseparável da trama lingüística que supostamente o descreve”26.

Para retornar ao exemplo do uso do conceito de raça nos manuais escolares de história do Brasil, um

discurso raciológico não se restringiria a representar uma coisa que seria a raça, que existiria antes desse

discurso e que está ali, apenas à espera de ser descoberto e descrito. Um discurso sobre a raça nos manuais

escolares, por exemplo, mesmo que pretendesse somente descrevê-lo “tal como ele realmente é”, o que

efetivamente faria era criar uma noção particular de raça. Em outras palavras,

“A suposta descrição é, efetivamente, uma criação. Do ponto de vista do conceito pós-

estruturalista de discurso, a ‘teoria’ está envolvida num processo circular: ela descreve

como uma descoberta algo que ela próprio criou. Ela primeiro cria e depois descobre, mas,

por um artifício retórico, aquilo que ela cria acaba aparecendo como uma descoberta.”27

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Podemos ver como isso funciona no discurso didático28. Os manuais escolares, ao descreverem a

sociedade brasileira como formada por raças, procuraram pensar o conceito de raça como um elemento

natural e necessário para se explicar e organizar a humanidade. As maneiras de ser, sentir e pensar dos

individuas estava pautada pela raça, ou seja, era ela que determinaria os traços físicos, mentais e sociais das

pessoas. Ela definiria o modo de ser cada um e sua realidade. A raça, de certa forma, seria o motor da

história.

Ao tomar como verdade a existência de índios, brancos e negros, para os autores, dentro de uma

tradição (inventada) de escrita da história, qualquer outro discurso ou texto fora deste modelo seria uma

falácia, uma farsa. Seja para celebrar ou condenar a idéia de “paraíso racial”, eles nunca abandonaram a raça

como conceito norteador da história da humanidade. Era como se o conceito fosse previamente dado e

não inventado. Falou-se da história da atuação de índios, portugueses e negros na história do Brasil, mas

nunca se fez uma história da invenção destas categorias racializadas para classificar, dominar e controlar a

humanidade.

No caso dos manuais escolares, há ainda um agravante: ainda se tem pensado estes objetos do cotidiano

escolar como apenas reprodutores ou vulgarizadores de um saber produzido em outros lugares. Eles não são

percebidos como um dos espaços políticos de construção, por exemplo, de uma interpretação raciológica

da história. As pesquisas ainda têm se preocupado em analisar as imagens construídas de índios e negros a

partir do binômio verdade-mentira. Como se possível fazer uma descrição das referidas raças nos moldes da

verdadeira realidade existente lá fora. A lógica de funcionamento estaria presa a “noção tradicional de

teoria”, descrita por Tomaz Tadeu da Silva, ela teria a missão de descobrir e descrever o que,

verdadeiramente, é a raça29.

Da nossa perspectiva de discurso, todavia, não há nenhum discurso “lá fora” que se possa chamar

verdadeiramente de “raça”. O que os manuais escolares, cada a sua maneira, fizeram foi forjar uma noção

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particular de raça para definir e classificar a humanidade. Aquilo, à titulo de ilustração, que eles

denominavam índios, portugueses e negros passou, na sua lógica de pensamento, a ser as raças formadoras

da nacionalidade brasileira. Para um número considerável de escolas, de professores, de estudantes, de

autoridades educacionais e outros autores de manuais escolares, aqueles que estes textos didáticos definiram

como “raças formadoras” tornaram-se uma realidade.

Aqui não houve a preocupação de se fazer o esforço de separar afirmações sobre a realidade de

asserções sobre como deveria ser a realidade. Os discursos didáticos, assim como os discursos sobre eles,

estão recheados de prescrições sobre como as coisas deveriam ser. Tal dispensa de se pensar dentro desta

lógica foi explicitada da seguinte maneira:

“Da perspectiva da noção de discurso, estamos dispensados dessa operação, na medida em

que tanto supostas asserções sobre a realidade quanto asserções sobre como a realidade

deveria ser têm ‘efeitos de verdade’ similares. Para dizer de outra forma, supostas asserções

sobre a realidade acabam funcionando como se fossem asserções sobre como a realidade

deveria ser. Eles têm o mesmo efeito: o de fazer com que a realidade se torne o que elas

dizem que é ou deveria ser.”30

Os manuais escolares, os currículos31, os livros em geral são sempre o resultado de uma escolha, de

uma seleção – de um universo amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte que vai

construir, precisamente, o discurso didático sobre as raças.

A nossa preocupação maior ao analisar estes discursos sobre a raça tem de trilhar o tortuoso, mas

necessário, caminho de buscar compreender o como e o por que determinados conhecimentos foram

privilegiados em detrimento de outros para a fabricação da narrativa sobre passado colonial brasileiro. Este

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roteiro escolhido de trabalho aproximou-se de algumas perguntas necessárias para se entender e atuar neste

admirável (louco) mundo em que vivemos:

Ao descrever estes sujeitos racializados, que tipo de pessoa que estes manuais escolares

consideram ideal? Qual o tipo de ser humano desejável para um determinado tipo de

sociedade? Quais atributos são privilegiados como constituinte de uma civilização

superior? Quem e o que define quem são os “nós” e os “outros”?

Nas nossas discussões diárias, quando pensamos em discursos sobre a raça pensamos apenas em

conhecimento, esquecendo-nos de que o conhecimento que constitui, por exemplo, os manuais escolares

está, de forma central e vital, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos ou deixamo-nos

tornar: na nossa identidade, na nossa subjetividade. Enfim, nas nossas maneiras de ser, sentir e interpretar

o mundo e a nós mesmos.

E fazemos este alerta por crer que estes textos colonizadores de identidades são, antes de tudo, uma

questão de poder e que os estudos sobre eles, na medida em que almejam dizer o que estes textos devem

ser, não podem furtar-se, numa pretensa neutralidade, de envolver-se em questões de poder. Portanto,

selecionar é um exercício de poder. Privilegiar um tipo de conhecimento como o da existência biológica,

social ou cultural de raças é um exercício de poder. Destacar, entre as múltiplas possibilidades, um modelo

raciológico de identidade ou subjetividade como sendo o referencial perfeito é um exercício de poder. O

poder, ao contrário do que se pensava, não destrói, mas produz32.

As diferenças produzidas pelo uso dos discursos sobre a raça presente nos manuais escolares

analisados por nós não são encaradas como dados naturalizados. Ela é produto de um processo lingüístico

e discursivo do qual os manuais escolares fazem parte. As diferenças apresentadas pelos autores entre

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índios, portugueses (brancos) e negros não podem ser entendidas fora dos processos lingüísticos de

significação. É produzida discursivamente. Além disso,

“a diferença é sempre uma relação: não se pode ser ‘diferente’ de forma absoluta; é-se

diferente relativamente a alguma outra coisa, considerada precisamente como ‘não-

diferente’. Mas essa ‘outra coisa’ não é nenhum referencial absoluto, que exista fora do

processo discursivo de significação: essa ‘outra coisa’, o ‘não-diferente’, também só faz

sentido, só existe, na ‘relação de diferença’ que a opõe ao ‘diferente’. Na medida em que é

uma relação social, o processo social, o processo de significação que produz a ‘diferença’

se dá em conexão com relações de poder. São as relações de poder que fazem com que a

‘diferença’ seja avaliado negativamente relativamente ao ‘não-diferente’. Inversamente, se

há sinal, sem dos termos da diferença é avaliado positivamente (o ‘não-diferente’) e o

outro, negativamente (o ‘diferente’), é porque há poder.”33

Nesta linha de interpretação presente nos manuais escolares, índios e negros (os diferentes, os

outros) afastaram-se ou aproximaram-se dos portugueses, vistos como os brancos, – os portadores de

civilização (os não-diferentes, o nós). Estes sempre apontados como os que detinham a astúcia, a inteligência.

No caso do discurso didático, os atributos diferenciadores estavam no campo do desenvolvimento político,

econômico, social e cultural. Os portugueses, filhos da Europa civilizada, eram superiores ao resto (índios,

negros e asiáticos) porque tinham F (Fé), L (Lei) e R (Rei/Estado)34.

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_______________________________________________Para além das colônias identitárias

A identidade racial ou étnica, desde o seu nascedouro, tem se constituído uma questão de saber e poder35.

A própria história do conceito mais fortemente carregado e polêmico, o de raça, tem estado intimamente

ligada às relações de poder que criaram oposições entre o homem branco europeu e as populações das

regiões por ele colonizados36.

Firmado ao longo do século XIX, como uma forma de classificação supostamente científica da

diversidade de grupos humanos, com base em características físicas e biológicas, o conceito de raça, no

século seguinte, principalmente após os eventos traumáticos do Holocausto durante a Segunda Guerra

Mundial, tornou-se crescentemente desacreditado37.

A moderna genética, por exemplo, demonstrou que não havia nenhum conjunto de critérios físicos e

biológicos que autorizasse a divisão da humanidade em qualquer número de raças. A mesma prerrogativa

servia para o conceito de etnia. De acordo com Tomaz Tadeu da Silva,

“Até mesmo a oposição que freqüentemente se faz entre ‘raça’ e ‘etnia’ perde, dessa

perspectiva, o sentido. Em geral, reserva-se o termo ‘raça’ para identificações baseadas em

caracteres físicos como a cor da pele, por exemplo, e o termo ‘etnia’ para identificações

baseadas em características supostamente mais culturais, tais como religião, modos de vida,

língua etc. A confusão causada por essa problemática distinção é tão grande que em certas

análises ‘raça’ é considerado o termo mais geral, abrangendo o de ‘etnia’, enquanto que em

outras análises é justamente o contrário. Na primeira perspectiva, as etnias seriam

subconjuntos de uma determinada raça; na segunda, a ‘etnia’ seria mais abrangente que

‘raça’ por compreender, além das características físicas definidoras da raça, também

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características culturais. Dadas as dificuldades dessa distinção, grande parte da literatura

simplesmente utiliza os dois termos de forma equivalente.”38

Para o Tomaz Tadeu da Silva, o que a discussão sobre raça e etnia tem mostrado é justamente o

caráter cultural e discursivo de ambos os conceitos. O fato de que o conceito de raça não tenha nenhum

referencial físico, biológico, real, não o transforma menos real em termos culturais e sociais. Em suma, não

o redime de sua função classificadora e hierarquizante da humanidade.

Um exemplo ilustrativo da dubiedade envolvendo o uso destes dois termos e da força vigorosa da

raça pôde ser evidenciado no manual escolar de História de Joelza Rodrigue39. De acordo com esta autora,

em primeiro lugar, a raça existia de fato para entender a diversidade humana:

“Raça é um conjunto de características genéticas que aparecem com maior freqüência em

uma população, distinguindo-a de outras. Assim, o que distingue as raças são diferenças

genéticas, isto é, características transmitidas pelos genes a cada geração. Isto significa que é

inadequado falarmos em ‘raça de guerreiros’, ‘raça nobre’ ou ‘raça de músicos’, porque

esses atributos são adquiridos em sociedade.”40

Na leitura que fazemos de seu texto percebemos que a autora acreditava que o problema não era a

noção de raça, uma vez que esta foi cientificamente comprovada pela análise imparcial do código genético

humano. A adoção inadequada desta noção para rotular as pessoas ou povos para fins de inferiorização e

dominação não era uma atitude da ciência, mas da sociedade. Em outras palavras, a ideologia se fazia

presente apenas na sociedade, e as instituições científicas estavam fora deste cenário, numa posição

privilegiada, isenta – um lugar de verdade.

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Em segundo lugar, na sua opinião, as características culturais (língua, religião, tradições, valores etc.)

identificavam etnias, e não raças. A raça estaria, portanto, atrelada ao discurso científico, e etnia ao discurso

da cultura. No seu discurso didático, ficou evidente ao leitor-aluno que estes dois campos não poderiam se

misturar e que a humanidade só seria compreensível mediante estes dois conceitos.

Embora tivesse afirmado que a humanidade pertencesse à mesma espécie, “a Homo sapiens sapiens,

surgida há cerca de cem mil anos no sudeste da África”41, Joelza Rodrigue reafirmou a real existência das

raças para explicar a nossa diversidade, mesmo não tendo informações seguras para tal afirmação:

“De alguma maneira e em algum momento da evolução humana, as raças surgiram e – o

que é mais importante – foram se modificando. As raças não são fixas ao longo da

História, as migrações, as guerras e as conquistas têm provocado a mistura de raças e,

portanto, na espécie humana, não há nem nunca existiram raças puras.”42

Em suma, segundo a autora, não era a raça que criou o racismo. A existência das raças, incontestável

no seu discurso didático, não tinha nenhuma relação com as práticas racistas vividas pela humanidade. O

problema estava no uso político, ideológico e não-científico feito do termo pela sociedade. A raça tem sua

base científica comprovada, o racismo não:

“Não há nenhuma base científica para uma classificação geral das raças em uma escala de

superioridade. Todos os argumentos usados pelos racistas sobre raças ‘superiores’ e

‘inferiores’ são facilmente desmascarados pela ciência. Não existe, por exemplo, nenhuma

relação entre raça e inteligência ou entre raças e personalidade.

O racismo não tem base científica, mas, sim política. Os preconceitos são, na verdade,

meras desculpas para justificar guerras de conquista e extermínio de populações. Ainda

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hoje, a ideologia racista está presente, especialmente entre aqueles que buscam um bode

expiatório para suas próprias fraquezas ou para os problemas sociais que não conseguem

entender. Nesse sentido, a educação e a cultura são armas eficientes contra o racismo, a

serem utilizadas pelos governos para evitar a violência.”43

Na visão de mundo de Joelza Rodrigue, o problema estava no racismo e não na raça. A noção de

raça, uma identidade inata da humanidade, tinha sido descoberta no seio seguro da ciência – a senhora neutra

e verdadeira, que sempre soube agir sem ideologia, subjetividade e política, ou seja, sem seres humanos. E a raça

saia mais uma vez ilesa de qualquer olhar questionador.

Nenhum dos autores de manuais escolares analisados na nossa pesquisa foi tão contundente e direto

na defesa da noção de raça como motor da nossa história como Joelza Rodrigue. Para os que pensam que

estamos falando de um manual escolar antigo, muito antigo, devemos lembrar que este foi fruto deste

começo do século XXI. Para os que acreditam que a raça estava desacreditada, aqui temos um lembrete

povoando o imaginário de professores e alunos de escolas brasileiras.

Na interpretação de autores como Paul Gilroy, nos Estados Unidos, e Celia Marinho de Azevedo, no

Brasil, raça e etnia não podem ser consideradas constructos sociais e culturais fixos, dados, definitivamente

estabelecidos como têm aparecido, por exemplo, nos manuais escolares de História do Brasil, por nós

analisados.

Em Against Race, Paulo Gilroy afirmou que o humanismo liberal foi contaminado por uma história

em que seus defensores se deixaram envolver pelo poder biopolítico do pensamento racial. Neste aspecto,

ele destacou a importância de filósofos iluministas como G. W. F. Hegel, Immanuel Kant, Jean-Jacques

Rousseau na construção da noção de raça. Para Hegel, por exemplo, em A filosofia da história, o continente

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africano era um lugar impossível de se estabelecer uma sociedade civil, exatamente por causa da presença

de raças inferiores, os africanos:

“Se voltarmos nossa atenção em seguida para a categoria da constituição política, veremos

que a natureza inteira desta raça é tal que impede a existência de arranjo nesse sentido. O

ponto em que se encontra a humanidade nesta escala é o de mera volição sensual com

energia de vontade; por isso leis espirituais universais (por exemplo, aquela da moralidade

da Família) não podem ser reconhecidas aqui.”44

Esta visão sobre as populações africanas, anotou Paul Gilroy, era compartilhada também por

Immanuel Kant, na obra Observação sobre os sentimentos de beleza e de sublime:

“Os negros da África não têm por natureza nenhum sentimento superior à frivolidade. O

sr. Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo de um negro que tenha mostrado

talentos, e assegura que entre as centenas de milhares de negros que foram transportados

de algum lugar de seus países, embora muitos tenham sido colocados em liberdade, ainda

assim nenhum foi jamais encontrado que apresentasse qualquer outra coisa de grande em

matéria de arte e ciência ou qualquer outra qualidade elogiável, embora entre os brancos

alguns continuamente ascendam das mais baixas ralés, e por meio de talentos superiores

ganham respeito do mundo. A diferença entre estas duas raças de homem é tão

fundamental, e parece ser tão grande com relação às capacidades mentais quanto na cor”45.

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Estes trechos retirados das obras destes filósofos iluministas, segundo o autor, foram de vital

relevância para mostrar como a consolidação do discurso raciológico moderno dependeu do

entrelaçamento da ilustração e do mito46.

De acordo com Paul Gilroy, para se alcançar uma “concepção alternativa de humano”, proposta

norteadora de sua obra, fazia-se urgente enfatizar a necessidade de um acerto de contas com a idéia de raça,

sempre posta entre aspas por ele, e com a história da raciologia em suas exigências destrutivas daquilo que

havia de melhor na modernidade em termos de esperanças e recursos47.

Ao denunciar, como notamos na introdução desta pesquisa, o caráter exclusionista da modernidade

liberal e de seu discurso humanista como uma grande fraude da história, o autor o fez não para reforçar o

poder da raça como uma categoria necessária para explicar o desenvolvimento histórico e social humano.

Para ele, reconhecer o poder da raciologia, entendido no seu texto como um termo abreviado para uma

variedade de modos de pensar reducionistas e essencializantes de caráter biológico e cultural, constituiu-se

numa tarefa fundamental para confrontar o contínuo poder da raça para reger as experiências sociais,

econômicas, culturais e históricas da humanidade48.

As identidades (raciais), segundo Paul Gilroy, ao serem naturalizadas e tidas como essências puras,

têm ganhado a forma de ilhas de particularidades, entre as quais a comunicação e a possibilidade de troca têm

se tornado cada vez mais difíceis:

“Quando a identidade se refere a uma marca indelével, ou a um código de alguma forma

escrito nos corpos daqueles que a carregam, a alteridade só pode ser uma ameaça. A

identidade é assim um destino latente. Vista ou não vista, estando na superfície do corpo

ou enterrada profundamente em suas células, a identidade divide para sempre um grupo de

outro que não compartilhe dos traços particulares escolhidos, que se tornam base para a

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tipologia e a avaliação comparativa. Não sendo mais um lócus para a afirmação da

subjetividade ou da autonomia, a identidade se modifica. Sua movimentação revela um

desejo profundo pela solidariedade mecânica, a serialidade e a hiper-similaridade. O

escopo da ação individual diminui até desaparecer. As pessoas se tornam portadoras das

diferenças que a retórica da identidade absoluta inventa e as convida para celebrar. Em vez

de comunicativos e capazes de fazer escolhas, os indivíduos são vistos como passageiros

obedientes e silenciosos que se movem por uma paisagem moral achatada em direção aos

seus destinos fixos, aos quais suas identidades essenciais, seus genes e as culturas fechadas

que eles criam os têm relegado para sempre.”49

Para Celia Marinho de Azevedo, pensando o caso da escravidão negra, não podemos falar de uma

história das raças e das “relações raciais”50, mas sim uma história do racismo. Segundo a autora, ao

consideramos que o tráfico de africanos pelos comerciantes europeus e sua subseqüente escravização em

terras americanas abriu paulatinamente o caminho para a invenção da idéia de raça, também grafada por ela

entre aspas, estaríamos então percebendo a emergência histórica do racismo como uma prática discursiva

que se instituiu no alvorecer da modernidade no século XVI e que se desenvolveu em termos sistemáticos,

já dentro do campo das chamadas ciências biológicas e humanas, durante o século XIX e primeira metade

do século passado:

“Por prática discursiva entendo o processo de racialização dos escravos africanos e seus

descendentes na América no plano da linguagem do cotidiano e das ciências, ou seja, o

processo mais geral de delimitação de grupos humanos a partir da designação significativa

de algumas características fenotípicas básicas como cor de pele, textura dos cabelos, traços

fisionômicos, assim como a sua vinculação respectiva com distintos níveis mentais. Desse

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modo, o discurso sobre a ‘raça’ instituiu-se no cotidiano e também no mundo das ciências

biológicas e humanas a partir desse processo de escravização de africanos transportados

massivamente pelos traficantes europeus para a América.”51

Por dependerem justamente de um processo histórico e discursivo de construção da diferença, como

salientou Celia Marinho de Azevedo, os conceitos de raça e etnia estão sujeitos a um constante processo de

mudança e transformação. Eles não são, portanto, conceitos a-históricos.

Na teoria social contemporânea52, segundo Tomaz Tadeu da Silva, a noção de diferença, tal qual a de

identidade, não tem sido considerada um fato, nem uma coisa estável e estática. A diferença, assim como a

identidade, só tem razão de ser num processo relacional:

“Diferença e identidade só existem numa relação de mútua dependência. O que é (a

identidade) depende do que não é (a diferença) e vice-versa. É por isso que a teoria social

contemporânea sobre identidade cultural e social recusa-se simplesmente descrever ou

celebrar a diversidade cultural. A diversidade tampouco é um fato ou uma coisa. Ela é o

resultado de um processo relacional - histórico e discursivo - de construção da

diferença.”53

É por meio do vínculo entre conhecimento, identidade e poder que as temáticas da raça, por

exemplo, têm ganhado seu texto no discurso curricular. O texto curricular, aqui entendido de forma ampla

- os livros didáticos e paradidáticos, as lições orais, as diretrizes curriculares oficiais54, os rituais cívicos

escolares, as datas festivas e comemorativas - estão repletos de narrativas nacionais, étnicas e raciais.

Essas narrativas históricas geralmente têm celebrado os mitos da origem nacional (descobrimento do

Brasil em 1500), confirmam o privilégio das identidades dominantes (a colonização portuguesa

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submetendo o índio e escravizando o negro) e tratam das identidades dominadas como exóticas ou

folclóricas (ao falar das contribuições do índio e do negro para a formação da nacionalidade brasileira).

Em termos de representação do discurso racial, como podemos verificar em nossa pesquisa, o texto

curricular, em especial os manuais escolares de História do Brasil, tem conservado, de maneira evidente, as

marcas da herança colonial. O manual escolar, assim como o currículo, constitui-se com um texto racializado

por excelência. Para Tomaz Tadeu da Silva, a temática da raça e da etnia

“não é simplesmente um 'tema transversal'; ela é uma questão central de conhecimento,

poder e identidade. O conhecimento sobre raça e etnia incorporado no currículo não pode

ser separado daquilo que as crianças e os jovens se tornarão como seres sociais.”55

A questão central diante desta situação torna-se, portanto: como desconstruir o texto racial dos

manuais escolares, como questionar as narrativas hegemônicas de identidade que constituem o discurso

didático?

Uma possível estratégia de análise do discurso da raça no ensino de história seria buscar incorporar,

por exemplo, os manuais escolares numa perspectiva crítica, amparada nas proposições de desconstrução

das narrativas e das identidades nacionais, étnicas e raciais que têm sido elaboradas nos campos teóricos do

pós-estruturalismo, dos Estudos Culturais e dos Estudos Pós-coloniais.

Esta estratégia não realizaria uma simples operação de adição, por meio da qual o texto didático se

transformaria “multicultural” pelo acréscimo de informações superficiais sobre outras culturas e

identidades. Não haveria a pretensão de fazer uma política de ação afirmativa designando espaços

proporcionais para cada grupo identitário (índios, portugueses e negros), procurando sempre prescrever os

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seus limites e particularidades através do uso do conceito de raça, seja na sua variação biológica, seja na sua

variação sócio-cultural.

De acordo com Celia Marinho de Azevedo, nas recentes controvérsias em torno da introdução da

cota racial nas universidades e na esfera pública em geral, podemos evidenciar que os termos raça e racismo

têm aparecido de tal maneira entrelaçados que se torna praticamente impossível imaginar a possibilidade de

se combater o racismo sem ao mesmo tempo afirmar o pressuposto da existência efetiva da raça negra, por

exemplo. Nesta linha de pensamento, segundo a autora, identificamos três passagens bem definidas:

“1. os negros brasileiros constituem um grupo diferente da população brasileira (ora se diz

grupo racial, ora etnia);

2. o racismo reproduz e perpetua as desigualdades de raça;

3. o grupo racial negro tem sido atingido pelo racismo.”56

A partir destas três premissas básicas, observou Celia Marinho de Azevedo, a conclusão indicou uma

única porta de saída para a sociedade:

“o único modo de se combater o racismo seria definir políticas de ação afirmativa que

estabeleçam cotas raciais para contemplar positivamente o ‘grupo racial negro’. É a

chamada ‘discriminação positiva’, ou num outro termo mais cordial, a criação de

oportunidade para a raça negra’.”57

Já na sua leitura, com a qual nos aproximamos, o raciocínio apresentado seria outro:

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“o racismo não deriva da raça, ou melhor, da existência objetiva da raça, seja em termos

biológicos ou culturais. O racismo se constituiu historicamente em diferentes contextos

sociais do mundo moderno, sistematizando-se como uma prática discursiva à medida em

que as teorias raciais científicas impuseram a noção de raça como VERDADE. Este

processo de racialização das pessoas que compõem uma dada sociedade alcança pleno

sucesso sobretudo quando conta com o apoio formal do Estado na construção de uma

ordem racial explícita.”58

Ao invés de celebrar a pureza da raça para a construção de identidades fechadas e fixas através de

cotas didáticas, buscando sempre expurgar os impuros, rotulados de mestiços, uma pesquisa ou uma aula de

História, na nossa percepção, precisaria tratar a diferença como uma questão histórica e política. Não se

pretende simplesmente cultuar a diferença e a diversidade, mas de questioná-las, problematizá-las.

Para Patrícia Chagas, inspirada pelos escritos de Paul Gilroy, as ciências sociais, nesse contexto, têm

de assumir a tarefa de mostrar que as identidades não são coisas, mas processo que estão sob constante

movimento e renegociação:

“Isso demanda que se desafie a reificação e a essencialização das identidades e não mais

aceitar a idéia de que um dado grupo teria uma identidade básica caracterizada a partir de

uma essência definidora. Penso que as noções de ‘raça’ e etnia que compõem a construção

das identidades não devem ser vistas como opostas à noção de classe, mas como

elementos que se combinam no interior de estruturas de representações perpassadas pelas

relações de poder. Dessa forma, a cultura deixa de ser vista como algo fechado que os

grupos carregam e do qual se utilizam para se definir, passando a ser sempre considerada

em relação a ordem vigente de poder.

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É necessário lembrar que o que une os negros transnacionalmente é a experiência do

racismo e da opressão, e mesmo isto se dá de forma diferenciada, criando conseqüências

também distintas para a construção das identidades étnicas negras. Forjar uma ‘identidade

comum africana’, ou mesmo afro-referenciada, para todos os negros do mundo é não olhar

para toda a trajetória percorrida desde a época da escravidão até os dias de hoje, é ignorar o

sistema de criações culturais e trocas simbólicas que sempre se deram e eternamente

existirão não apenas entre os negros, mas entre todos os povos da história da

humanidade.”59

Ao profissional da História, envolvido com esta temática, segundo Tomaz Tadeu da Silva, faz-se

necessário tecer os seguintes questionamentos ao enfrentar este jogo de identidades presente nos mais

diversos espaços da nossa sociedade:

“Quais são os mecanismos de construção das identidades nacionais, raciais, étnicas? Como

a construção da identidade e da diferença está vinculada a relações de poder? Como a

identidade dominante tornou-se a referência visível através da qual se constroem as outras

identidades como subordinadas? Quais são os mecanismos institucionais responsáveis pela

manutenção da posição subordinada de certos grupos étnicos e raciais?”60

Uma leitura ou construção do texto didático inspirada em torno desse tipo de indagações evitaria a

redução do multiculturalismo a uma mera questão de informação. Um manual escolar à luz desta

problemática deixaria de ser folclórico para se tornar profundamente político. Não seria apenas um

depositário de identidade prontas, mas um objeto instituído com fabricador de identidades. Portanto, um

espaço de disputas políticas e de relações de poder.

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Ao enfrentarmos os textos escolares a partir de teorias sociais que questionam a construção social da

raça e da etnia também evitaríamos pensar a questão do racismo de maneira simplista.

Em primeiro lugar, segundo o autor, o racismo não pode ser apenas concebido como uma questão

de preconceito individual.

“O racismo é parte de uma matriz mais ampla de estruturas institucionais e discursivas que

não podem simplesmente ser reduzidas a atitudes individuais. Tratar o racismo como

questão individual leva a uma pedagogia e a um currículo centrados numa simples

‘terapêutica’ de atitudes individuais consideradas erradas. O foco de uma tal estratégia

passar a ser o ‘racista’ e não o ‘racismo’. Um currículo crítico deveria, ao contrário, centrar-

se na discussão das causas institucionais, históricas e discursivas do racismo. É claro que as

atitudes individuais devem ser questionadas e criticadas, mas sempre como parte da

formação social mais ampla do racismo.

Tratar o racismo como questão institucional e estrutural não significa, entretanto, ignorar

sua profunda dinâmica psíquica. A atitude racista é o resultado de uma complexa dinâmica

da subjetividade que inclui contradições, medos, ansiedades, resistências, cisões. Aqui,

torna-se útil a compreensão pós-estruturalista da subjetividade como contraditória,

fragmentada, cindida e descentrada. O racismo é parte de uma economia do afeto e do

desejo feita, em grande parte, de sentimentos que podem ser considerados ‘irracionais’.

Como conseqüência, um currículo anti-racista não pode ficar limitado ao fornecimento de

informações racionais sobre a 'verdade' do racismo. Sem ser terapêutico, um currículo anti-

racista não pode deixar de ignorar a psicologia profunda do racismo.”61

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Numa análise como a que propomos a partir das sugestões de Tomaz Tadeu da Silva, a questão do

racismo não pode ser entendida sem recorrer ao conceito de representação. Nos estudos produzidos

majoritariamente sobre o racismo nas práticas escolares, por exemplo, o que se tem contraposto ao racismo

é uma “imagem verdadeira” da identidade inferiorizada. O racismo seria, nesta óptica, fundamentalmente

uma descrição falsa da verdadeira identidade que ele descreve de forma distorcida62.

Na crítica cultural recente, assim como procuramos fazer em nossa pesquisa, os discursos sobre a

raça e o racismo não se tratam somente de uma questão de verdade versus mentira, mas de uma questão de

representação que, por sua vez, não pode em nenhuma hipótese ser desvinculada das relações de poder. As

representações são sempre inscrições, ou seja, construções lingüísticas e discursivas dependentes de

relações de poder:

“O oposto da representação racista de uma determinada identidade racial não é

simplesmente uma identidade ‘verdadeira’, mas uma outra representação, feita a partir de

outra posição enunciativa na hierarquia das relações de poder. Um currículo crítico que se

preocupasse com a questão do racismo poderia precisamente colocar no centro de suas

estratégias pedagógicas a noção de representação tal como definida pelos Estudos

Culturais. Essa noção permitiria deslocar a ênfase de uma preocupação realista com a

verdade para uma preocupação política com as formas pelas quais a identidade é

construída através da representação.”63

Instigados pelas propostas de Paul Gilroy e desejosos de sair dos castelos kafkianos, viemos diante dos

leitores-possíveis deste estudo ressaltar que para se construir novos problemas, temáticas e abordagens na

escrita da história não podemos encarar os textos escolares (leis, currículos, manuais escolares entre outros)

numa abordagem essencialista, por exemplo, da questão da identidade étnica e racial. Não é suficiente

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evitar apenas as formas mais visíveis de essencialismo, como aquelas fundamentadas no discurso biológico.

É necessário, para não dizer urgente, questionar também formas mais sutis de essencialismo, como aquela

que se faz presente por meio do essencialismo cultural.

Apesar de seus defensores dizerem que não pretendem reduzir a identidade étnica e racial a seus

aspectos biológicos, o seu essencialismo cultural ainda concebe a identidade como a expressão de alguma

propriedade cultural intrínseca dos diferentes grupos humanos. Nesta maneira de ver o mundo e as

pessoas, a identidade, embora com a vestimenta cultural, tem sido vista como fixa e absoluta, fortemente

presa na geografia e a genealogia, por exemplo.

Para nós, a concepção de identidade que cremos como necessária para construir um mundo para

além das linhas de exclusão tem de ser histórica, contingente e relacional. Ela prefere o movimento das

ondas do mar a ter suas raízes fincadas na terra. São as narrativas criadas e recriadas pela bela Cherazade (a

História) a cada noite para evitar a morte, o fim trágico, mas também para libertar o Sutão, embrutecido e

paralisado, da escravidão do ressentimento e do medo de viver, de ousar, de ir além.

A história precisa deixar de ser refém nas masmorras totalitárias para sair, quem sabe resgatada por

Alladim, voando pelo mundo novo a descobrir num tapete mágico.

Não podemos, entretanto, perder de nosso pensamento que a história não apenas liberta, como

queremos crer, mas também pode aprisionar na sua escritura, fabricando verdadeiras colônias de identidades,

como por exemplo, as narradas nas páginas dos manuais escolares de História do Brasil, aqui objeto de

reflexão.

Antes de por um ponto final (provisório) nesta história, precisamos guardar os seguintes conselhos

deixados por Stephen Jay Gould e Edward W. Said, necessários para os que se propõem pensar projetos de

humanidade,

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“Passamos por este mundo apenas uma vez. Poucas tragédias podem ser maiores que a

atrofia da vida; poucas injustiças podem ser mais profundas do que ser privado da

oportunidade de competir, ou mesmo de ter esperança, por causa da imposição de um

limite externo, mas que se tenta fazer passar por interno.”64

“Hoje em dia, ninguém é uma coisa. Rótulos como indiano, mulher, muçulmano ou

americano não passam de pontos de partida que, seguindo-se uma experiência concreta,

mesmo que breve, logo ficam para trás. O imperialismo consolidou a mescla de culturas e

identidades numa escala global. Mas seu pior e mais paradoxal legado foi permitir que as

pessoas acreditassem que eram apenas, sobretudo, exclusivamente brancas, pretas,

ocidentais ou orientais. No entanto, assim como os seres humanos fazem sua própria

história, eles também fazem suas culturas e identidades étnicas. Não se pode negar a

continuidade duradoura de longas tradições, de moradias constantes, idiomas nacionais e

geografias culturais, mas parece não existir nenhuma razão, afora o medo e o preconceito,

para continuar insistindo na separação e distinção entre eles, com o se toda a existência

humana se reduzisse a isso. A sobrevivência, de fato, está nas ligações entre as coisas; nos

termos de Eliot, a realidade não pode ser privada dos ‘outros ecos [que] habitam o jardim’.

É mais compensador – e mais difícil – pensar sobre os outros em termos concretos,

empáticos, contrapontísticos, do que pensar apenas sobre ‘nós’. Mas isso também significa

não tentar dominar os outros, não tentar classificá-los nem hierarquizá-los e, sobretudo,

não repetir constantemente o quanto ‘nossa’ cultura ou país é melhor (ou não é o melhor,

também). Para o intelectual, há valor mais do que suficiente para seguir adiante sem

precisar disto.”65

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Mais do que lutarmos por aqueles que são privados de seus sonhos, precisamos permitir que outros

tantos percebam que podem sonhar. Que há ainda possibilidades de criar novas maneiras de ser, conhecer

e sentir o mundo para além das colônias identitárias.

Campinas, Inverno de 2004.

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NOTAS:

1 Conferir: Circe Maria F. Bittencourt, “Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar”, Tese de doutorado em História Social, São Paulo, FFLCH/USP (1993). 2 Para uma reflexão sobre o conceito de identidade no mundo pós-moderno, conferir: Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, 7a ed. (Rio de Janeiro, DP&A, 2002); Tomaz Tadeu Silva, Documento de Identidade: Uma introdução às teorias do currículo, 2a ed. (Belo Horizonte, MG, Autêntica, 2001). 3 Conferir: Kazumi Munakata, “Produzindo livros didáticos e paradidáticos”, Tese de Doutorado em Educação, São Paulo, PUC/SP (1997). 4 Exemplos de estudos nesta linha de pensamento podem ser citados: Maria de Lourdes Chagas Deiró (Nosella), As belas mentiras. A ideologia subjacente aos textos didáticos, 12a ed. (São Paulo, Moraes, s.d.); Maria Laura P. Barbosa Franco, O livro didático de História do Brasil. A versão fabricada (São Paulo, Global, 1982); norma Abreu Telles, Cartografia Brasilis ou: está história está mal contada (São Paulo, Edições Loyola, 1984); Nicholas Davies, “O livro didático de história: Ideologia dominante ou ideologias contraditórias?”, Dissertação de Mestrado em Educação, Niterói, RJ, UFF (1991). 5 Ítalo Calvino, Um general na biblioteca (São Paulo, Companhia das Letras, 2001) p. 78. 6 Michel de Certeau, A invenção do cotidiano – Artes de fazer (Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 1994) p. 269-70. 7 Circe Maria F. Bittencourt (orga.), O saber histórico na sala de aula, 2a ed. (São Paulo, Contexto, 1998). 8 Conferir: Márcia Abreu (orga.), Leitura, história e história da leitura (Campinas, SP, Mercado das Letras/ALB/FAPESP, 1999). 9 Conferir: Roger Chartier, A História Cultural: entre práticas e representações, especificamente a Introdução. 10 Ibid., p. 13-28 11 Conferir: Dominick LaCapra, “Rethinking Intellectual History”, in Dominick LaCapra e Steven L. Kaplan (eds), Modern European Intellectual History: Reappraisals and New Perspectives (Ithaca, Cornell University Press, 1983). 12 Michel de Certeau, A invenção do cotidiano – Artes de fazer, p. 270. 13 Alain Choppin (dir.), Le manuel scolaire en cent références, (Paris, Institut National de Recherche Pédagogique, 1990). 14 Pierre Nora, “Entre Memória e História: a problemática dos lugares”, in Projeto História (São Paulo, n. 10, dez. 1993) pp. 07-28. 15 Conferir: Michel de Certeau, A escrita da história, 2a ed. (Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 2000); A invenção do cotidiano – Artes de fazer (Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 1994); Cultural no plural (Campinas, SP, Papirus, 1995). 16 Conferir: Roger Chartier, A História Cultural: entre práticas e representações (Lisboa, DIFEL, 1990); A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII, 2a ed. (Brasília, DF, Ed. da UnB, 1999); Práticas de Leitura (São Paulo, Estação Liberdade, 1996). 17 Conferir: Robert Darnton, O grande massacre dos gatos e outros episódios da história cultural francesa (Rio de Janeiro, Edições Graal, 1986); Boemia literária e revolução: o submundo das letras no antigo regime (São Paulo, Companhia das Letras, 1987); O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução (São Paulo, Companhia das Letras, 1990). 18 Roger Chartier, A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII, p. 11-2.

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19 Conferir: Ilmar R. Mattos (org.), Histórias do ensino da História no Brasil (Rio de Janeiro, Access, 1998). 20 Um exemplo ilustrativo deste universo de censura da leitura no espaço da escola poderia ser encontrado no romance O Ateneu, de Raul Pompéia. 21 Conferir: Circe Maria F. Bittencourt, Pátria, Civilização & Trabalho (São Paulo, Edições Loyola, 1990). 22 Para saber sobre o ensino de história durante a era Vargas, conferir: Luis Reznik, “Tecendo o amanhã (A História do Brasil no ensino secundário: programas e livros didáticos, 1931 a 1945)”, Dissertação de Mestrado, Niterói, RJ, IFCS/UFF (1992). 23 Para saber sobre o ensino de História durante o regime militar imposto no Brasil pós-1964, conferir: Antonio S. Almeida Neto, “O ensino de História no período militar: práticas e cultura escolar”, Dissertação de Mestrado em Educação, São Paulo, FEUSP (1996); Luis Fernando Cerri, “Ensino de História e nação na propaganda do ‘Milagre Econômico’”, Tese de doutorado em Educação, Campinas, SP, FE/UNICAMP (2000); Maria do Carmo Martins, “A história prescrita e disciplinada nos currículos escolares: quem legitima esses saberes?”, Tese de Doutorado em Educação, Campinas, SP, FE/UNICAMP (2000). 24 Conferir: Kazumi Munakata, “História que os livros didáticos contam, depois que acabou a ditadura”, in Marcos César de Freitas (org.), Historiografia Brasileira em Perspectiva (São Paulo, SP, Contexto/EDUSF, 1998) pp. 271-96. 25 De acordo com Michel Foucault, a vontade de verdade, como outros sistemas de exclusão, presente na ordem dos discursos,

“apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedade de sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas ela é também reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído. Recordemos aqui, apenas a título simbólico, o velho princípio grego: que a aritmética pode bem ser o assunto das cidades democráticas, pois ela ensina as relações de igualdade, mas somente a geometria deve ser ensinada nas oligarquias, pois demonstra as proporções na desigualdade.

Enfim, creio que essa vontade de verdade assim apontada sobre um suporte e uma distribuição tende a exercer sobre os outros discursos – estou sempre falando de nossa sociedade – uma espécie de pressão e como que um poder de coerção. Penso na maneira como a literatura ocidental teve de buscar apoio, durante séculos, no natural, no verossímil, na sinceridade, na ciência também – em suma, no discurso verdadeiro” [Michel Foucault, A ordem do discurso, 8a ed. (São Paulo, Edições Loyola, 2002) p. 17-8. 26 Tomaz Tadeu da Silva, Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo, 2a ed. (Belo Horizonte, MG, Autêntica, 2001) p. 12. 27 Ibid., p. 12. 28 Tomaz Tadeu da Silva fez uso desta discussão a partir do exemplo do currículo ou do discurso curricular [Ibid., p. 12]. 29 Ibid., p. 13. 30 Ibid., p. 13. 31 Para uma pesquisa sobre os currículos de História adotados no sistema educacional brasileiro nos anos 1980 e 1990, conferir: Renilson Rosa Ribeiro, “Entre Textos & Leituras: As representações do professor e da história ensinada no discurso histórico das últimas décadas do século XX”, Monografia de Bacharelado em História, Campinas, SP, IFCH/UNICAMP (2001). 32 Conferir: Michel Foucault, Microfisica do poder, 15a ed. (Rio de Janeiro, Edições Graal, 2000).

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33 Tomaz Tadeu da Silva, Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo, p. 87. 34 Conferir: Guilhermo Giucci, Sem fé, lei ou rei: Brasil 1500-1532 (Rio de Janeiro, Rocco, 1993). 35 Conferir: Michel Foucault, História da sexualidade I: a vontade de saber, 15a ed. (Rio de Janeiro, Edições Graal, 2003). 36 Conferir: Edward Said, Orientalismo: A invenção do Oriente pelo Ocidente (São Paulo, Companhia das Letras, 1990). 37 Confeir: Christian Delacampagne, L’invention du racisme – antiqué et moyen age (Paris, Fayard, 1983); Une histoire du racisme. Des originis à nos jours (Paris, France-culture, 2000); Robert Miles, Racism (Londres e New York, Routledge, 1989). 38 Tomaz Tadeu da Silva, Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo, p. 101. 39 Joelza Ester Rodrigue é formada bacharel em História pela Universidade de São Paulo, professora de História da rede particular e de cursinhos pré-vestibulares e fez mestrado em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 40 Joelza Ester Rodrigue, História em documento: imagem e texto, 7a série (São Paulo, FTD, 2001) p. 263. 41 Ibid., p. 263. 42 Ibid., p. 263. 43 Ibid., p. 263. 44 “Turning our attention in the next place to the category of political cosntitution, we shall see that the entire nature of this race is such as to preclude the existence of any such arrengement. The atandpoint of humanity at this grade is mere sensous volitition with energy of will; since universal spiritual laws (for example, that of the morality of the Family) cannot be recognised here.” [citado em Paul Gilroy, Against Race: Imagining political Culture Beyond the Color Line (Cambridge, The Belknap Press of Harvard University Press, 2000), p. 56]. 45 “The negroes of Africa have by nature no feeling that rises above the trifling. Mr. Hume challenges anyone to cite a single example in which a Negro has show talents, and assertas that among the hundreds of thousands of blacks who are transported elsewhere from their countries, although many have been set free, still not one was ever found who presented anything great in art ou science or any other praiseworthy quality, even though among the whites some continually rise aloft the lowest rabble, and through superior gifts carn respect in the world. So fundamental is the difference between these two races of man, and it appears to be as great in regard to mental capcities as in color.” [citado em Ibid., p. 58-9]. 46 Ibid., p. 59. 47 Ibid., p. 30. 48 Ibid., p. 72. 49 “When identity refers to na indelible mark or code somehow writen into bodies of its carriers, otherness can only be a threat. Identity is latent destiny. Seen or unseen, on the surface of the body or burieddeep in its cells, identity forever sets one group apart from others who lack the particular, chosen traits that become the basis of typology and comparative evolutaion. No longe a site for the affirmation of subjctivity and autonomy, identity mutates. Its motion reveals a deep desire for mechanical solidarity, seriality, and hpirsimilarity. The scope for individual agency dwildles and then disappers. People become beares of the differences that the rhetoric of absolute identy invents and then invites them to celebrate. Rather than communicating and making choices, individuals are seen as obedient, silent passengers moving across a flattened moral landscape toward the fixed destinies to which their essential identities, their genes, and the closed cultures they create have consigned them once and for all” [Ibid., p. 104].

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50 A autora, em entrevista para a Zoom: Atualidades para vestibulares, em 2003, fez as seguintes considerações sobre os termos raça, relações raciais e racismo:

“Não é errado se falar em racismo, porque temos uma história carregada de racismo em vários países do mundo, no Brasil inclusive. Eu defino meu campo de estudo como uma história do racismo. Não defino meu campo de estudo como uma história das relações raciais, pois eu não acredito que existam raças de fato, dividindo a humanidade. Eu não reconheço a existência de raças, logo eu não reconheço a noção de raça. A noção de raça é uma noção inventada pelos cientistas.

Muito antes dos cientistas inventarem essa noção as relações entre os escravos negros vindos da África para as Américas e os brancos eram, em sua maioria, relações conflituosas. Com isso, começa haver um olhar discriminador em relação aos negros. Os cientistas se alimentaram desses conflitos, dessas discriminações do dia-a-dia, e a partir daí teorizaram as raças. Então, todo esse movimento das relações cotidianas e do discurso científico sobre as raças, constrói isso que eu defino como uma história do racismo ao longo dos tempos. A gente pode definir uma história do racismo em relação aos negros desde o início da escravidão negra até o atual momento. Sem dúvida, essa história do racismo ganha muita força no século XIX por causa dessas teorias científicas sobre raça. Então eu não trabalho com essa noção sobre raças. Raça para mim deve estar sempre entre aspas.”

Conferir: “Entrevista: Celia Maria Marinho de Azevedo”, in Zoom – Companhia da Escola (2003).

URL: < http://www.ciadaescola.com.br/zoom/materia.asp?materia=141> - acessado em 13 de maio de 2003. 51 Celia Maria Marinho de Azevedo, “Para além das ‘relações raciais’: por uma história do racismo”, in: Josué Pereira da Silva et al, Crítica contemporânea (São Paulo, AnnaBlume; FAPESP, 2002), p. 136. 52 Conferir, por exemplo, Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, 7a ed. (Rio de Janeiro, DP&A, 2002). 53 Tomaz Tadeu da Silva, Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo, p. 101. 54 A Constituição Federal de 1988, por exemplo, no capítulo III (Da Educação, da Cultura e do Desporto), seção II (Da Cultura), artigo 215, fez as seguintes afirmações quanto a formação étnico-racial na construção da nacionalidade brasileira:

“O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º. O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

§ 2º. A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.” 55 Tomaz Tadeu da Silva, Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo, p. 102. 56 Celia Maria Marinho de Azevedo, “Cota racial e Estado: abolição ou direito de ‘raça’?”, in Anti-racismos e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo (São Paulo, AnnaBlume, 2004) p. 31. 57 Ibid., p. 31. 58 Ibid., p. 31-2. 59 Patrícia de Santana Pinho Chagas, “Em busca da Mama África: identidade africana, cultura negra e política branca na Bahia”, Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Campinas, SP, IFCH/UNICAMP (2001) p. 91. 60 Tomaz Tadeu da Silva, Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo, p. 102. 61 Ibid., p. 102-03.

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62 Para uma leitura das pesquisas desenvolvidas sobre o racismo no ensino nesta linha de raciocínio, em especial nos livros didáticos, conferir: Fúlvia Rosemberg et al, “Racismo em livros didáticos brasileiros e seu combate: uma revisão da leitura”, in Educação & Pesquisa (São Paulo, vol. 29, n. 01, jan./jun. 2003) pp. 125-46. 63 Tomaz Tadeu da Silva, Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo, p. 103-04. 64 Stephen Jay Gould, A falsa medida do homem, 2a ed. (São Paulo, Martins Fontes, 1999), p. 13. 65 Edward W. Said, Cultura e Imperialismo (São Paulo, Companhia da Letras, 1995), p. 411.

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____________________________________________Bibliografia

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