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Colonialidade, Subalternidade e Potência dos Ribeirinhos Colatinenses Pós Desastre Ambiental no Rio Doce em 2015. Caroline Vallandro Costa 1 ; Rubiene Callegario Iglesias 2 ; Tawana Maria Oliveira 3 Introdução Após uma era de grandes investimentos em infraestrutura que visaram à aceleração do crescimento das cidades brasileiras a partir da década de 70, podemos observar uma série de conflitos relativos à produção do espaço urbano. Mesmo quando houve planejamento, os resultados da busca por melhores condições de vida nas cidades parecem pequenos diante dos grandes desafios ainda a serem enfrentados. São constatados sérios problemas relativos principalmente à má distribuição de recursos, de bens e serviços e também dos riscos causados pelo acelerado processo de industrialização. Algumas das dificuldades enfrentadas por planejadores desde aquela época ainda são visíveis nas cidades atuais, em situações que não estão restritas apenas a fatores formais: manutenção eficaz do meio urbano, moradia, transporte, criação de lugares para convivência coletiva, entre outros; mas também relativos a fatores simbólicos, culturais, no campo das relações sociais urbanas. Diante deste quadro de promessas da cidade - enquanto espaço democrático, lócus do bem-estar social e da diversidade, há muito não cumpridas - será possível a existência de desenvolvimento sem a dominação desigual sobre a formação dos modos de vida? A multiplicação nas últimas décadas dos debates sobre a distribuição do ônus e benefício social da expansão das cidades acabou por fomentar discussões interdisciplinares sobre o sentido de colonização econômica e 1 Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário do Espírito Santo (UNESC). Mestre em Arquitetura e Urbanismo. Pesquisadora FAPES. 2 Professora dos cursos de Arquitetura e Urbanismo e Engenharia Civil do Centro Universitário do Espírito Santo (UNESC). Especialista em Design de interiores. 3 Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Pesquisadora de iniciação científica do Centro Universitário do Espírito Santo (UNESC).

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Page 1: Colonialidade, Subalternidade e Potência dos Ribeirinhos ... · compartilhamos hoje no Brasil, mesmo após a formação do Estado Nação moderno, e das elaborações legislativas

Colonialidade, Subalternidade e Potência dos Ribeirinhos Colatinenses Pós

Desastre Ambiental no Rio Doce em 2015.

Caroline Vallandro Costa1; Rubiene Callegario Iglesias2; Tawana Maria Oliveira3

Introdução

Após uma era de grandes investimentos em infraestrutura que visaram à aceleração

do crescimento das cidades brasileiras a partir da década de 70, podemos observar

uma série de conflitos relativos à produção do espaço urbano. Mesmo quando houve

planejamento, os resultados da busca por melhores condições de vida nas cidades

parecem pequenos diante dos grandes desafios ainda a serem enfrentados. São

constatados sérios problemas relativos principalmente à má distribuição de recursos,

de bens e serviços e também dos riscos causados pelo acelerado processo de

industrialização. Algumas das dificuldades enfrentadas por planejadores desde

aquela época ainda são visíveis nas cidades atuais, em situações que não estão

restritas apenas a fatores formais: manutenção eficaz do meio urbano, moradia,

transporte, criação de lugares para convivência coletiva, entre outros; mas também

relativos a fatores simbólicos, culturais, no campo das relações sociais urbanas.

Diante deste quadro de promessas da cidade - enquanto espaço democrático, lócus

do bem-estar social e da diversidade, há muito não cumpridas - será possível a

existência de desenvolvimento sem a dominação desigual sobre a formação dos

modos de vida? A multiplicação nas últimas décadas dos debates sobre a

distribuição do ônus e benefício social da expansão das cidades acabou por

fomentar discussões interdisciplinares sobre o sentido de colonização econômica e

1 Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário do Espírito Santo (UNESC). Mestre

em Arquitetura e Urbanismo. Pesquisadora FAPES.

2 Professora dos cursos de Arquitetura e Urbanismo e Engenharia Civil do Centro Universitário do Espírito Santo

(UNESC). Especialista em Design de interiores.

3 Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Pesquisadora de iniciação científica do Centro Universitário do

Espírito Santo (UNESC).

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cultural, que ainda enfrentam muitas das “ex-colônias” na tentativa de se adequarem

às lógicas globais vigentes. Esta relação hegemônica na produção dos modelos de

cidades pós-industriais será aqui problematizada tendo em vista o campo dos

"estudos pós-coloniais" e também a partir da década de 80 e 90 na América Latina

com a contribuição do grupo de estudos subalternos latino-americanos, e com seu

rearranjo na formação do grupo Modernidade/Colonialidade.

Segundo Luciana Ballestrin os estudos pós-coloniais surgem com a identificação de

“uma relação antagônica” entre colonizador e colonizado (BALLESTRIN, 2013:91).

Após a independência das colônias, antes oficialmente conduzidas por grandes

potências, os novos países em formação encontraram-se como que fragmentados

por conflitos internos, muitas vezes gerados pela tentativa forçosa de união entre

suas populações, costumes e linguagens (algumas vezes de grupos rivais), para

conformar um sentido de ‘nação’, de coesão, de certa uniformidade, que deveria

levar em conta uma identidade cultural única. Interlocutores compostos pelas “elites”

locais, anteriormente dominados, mas relativamente próximos aos dominadores,

eram então responsáveis por dar sequência à regulamentação política e cultural dos

países, e também a defenderem a soberania e a posse de seu território. Esta

mudança relativamente arrebatada da relação colonial para a ‘independência’

revelou a manutenção de alguns modelos de dominação apreendidos fora dos

costumes tradicionais anteriores às colônias, dificultando os processos de formação

de identidades locais.

Os que continuaram subalternos - aqueles cuja voz não pôde ser ouvida como

colocado por Spivak (2010), foram alvo constante dos pesquisadores e intelectuais

pós-coloniais, que segundo a mesma autora também geraram outras relações de

dominação ao reproduzirem discursos hegemônicos “essencializados”, a partir de

um ponto de vista europeu etnocêntrico, reduzindo possibilidades de

aprofundamentos importantes pela concessão da visibilidade à voz dos próprios

sujeitos estudados, ou seja, contribuíram para a manutenção das invisibilidades

discursivas (SPIVAK, 2010:43).

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Podemos considerar que estas relações de subalternidade ainda estão presentes

em diversas instâncias das relações sociais, econômicas e territoriais que

compartilhamos hoje no Brasil, mesmo após a formação do Estado Nação moderno,

e das elaborações legislativas que conformam o discurso democrático, como a

Constituição Federal da República de 1988 e suas atualizações seguintes.

Para Anibal Quijano (2002), o fim das colônias não significou o fim das “relações de

colonialidade”, mas sim a transformação das mesmas em outros tipos de

dominação. O autor elucida um dos mais importantes desafios na formação das

relações sociopolíticas contemporâneas, o fato de que “estas relações de

dominação e exploração não são sempre claras, muito menos sistêmicas ou

orgânicas” (QUIJANO, 2002:07). É como se a conformação das identidades globais

modernas, o livre mercado, e as possibilidades de desenvolvimento confundissem a

apreensão das dominações inerentes aos seus projetos ditos democráticos.

Assim como para Milton Santos (2002), acredita-se que dentro de uma sociedade

em que os fluxos de informação global são tão velozes que nem sempre chegam a

ser verificados, é necessário identificar de maneira cautelosa e dedicada, de que

forma as experiências e dinâmicas urbanas são afetadas por esses fluxos, como

interferem nas relações de reciprocidade na produção de alteridade (SANTOS,

2002:317).

Neste contexto, buscamos entender a produção dos espaços urbanos para além dos

determinismos e dicotomias históricas como as noções de público e privado, centro

e periferia, global e local, homem e natureza, que devem ser evitados. Observamos

cada vez mais iniciativas que despolitizam o campo de ação das camadas

subalternas que constroem a cidade. Procura-se aqui compreender os territórios

urbanos como uma complexidade relacional, não facilmente decifrável, muito menos

por mecanismos fixos de regulação territorial, e mais como uma desconstrução de

fronteiras e limites, que serão aqui estudados.

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O maior desastre socioambiental do Brasil

A ruptura da barragem de rejeitos do Fundão no município de Mariana-MG em 2015

culminou na maior tragédia ambiental do Brasil até a presente data. Relatório

preliminar do IBAMA – Instituto Brasileiro (2015) registrou como impactos imediatos:

mortos, desabrigados, 663 quilômetros de água contaminada na bacia do Rio Doce,

ao menos 1.469 hectares de terras destruídas, invasão do mar pela “lama” de

rejeitos na costa do Espírito Santo, 4 municípios atingidos, entre eles algumas áreas

de preservação permanente (APPs).

As cidades brasileiras, assim como grande parte da América Latina, têm sido

diretamente afetadas por processos de apropriação de mercados industriais globais,

que exploram suas bases ambientais materiais e imateriais, com a promessa não

cumprida de um ‘desenvolvimento sustentável’. Às promessas somam-se uma série

de efeitos danosos ao meio ambiente urbano, que é aqui entendido na relação entre

sociedade e natureza, referente às práticas tradicionais dos seres humanos para

manutenção da vida nas cidades, seus deslocamentos cotidianos e suas

necessidades de subsistência. As dinâmicas econômicas mineradoras estão nesta

pesquisa sendo abordadas como atividades impactantes que, além de fragilizarem o

meio ambiente que exploram, não conseguem compensar os efeitos das suas

dinâmicas de apropriação. A atividade extrativista mineradora tem especialmente

contribuído para a extinção de práticas culturais históricas exercidas por populações

ribeirinhas.

Segundo Henri Acselrad “as tramas urbanas têm se mostrado, no Brasil,

atravessadas por dinâmicas de despolitização e construção de consensos

destinadas a ativar a competição interurbana por investimentos internacionais (...)”

(2012:10). A citação do livro “Cartografia social e dinâmicas territoriais: marcos para

o debate” relata em poucas linhas alguns dos paradigmas enfrentados sobre a

produção dos espaços urbanos: “consensos, despolitização, competição”. Estas três

características, colocadas por Acselrad como inerentes à “trama” das relações

sociais no meio urbano guiarão o eixo temático das reflexões aqui propostas. O

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trabalho se dedica, portanto, à visibilização das realidades ribeirinhas impactadas, e

à politização do debate acerca das possibilidades de compensação dos danos

socioambientais e das suas permanências como grupos subalternos.

Como mapear danos que estão pré-identificados pelos agentes promotores ou não

impactados pelo desastre? Diversos relatos de moradores ribeirinhos de Colatina

revelam a falta de cuidado por parte dos órgãos responsáveis pela compensação no

ato da abordagem e entrevista, que por vezes não traduz em uma comunicação

efetiva, capaz de atribuir valor às perdas que são relevantes para os sujeitos

impactados. Esse panorama de dissensos sugere que a metodologia de abordagem

feita junto ao grupo seja uma importante via de debates para pensar as

possibilidades de compensação de danos nem sempre cartografados.

O levantamento e a visibilização de dados acerca dos impactos socioambientais

decorrentes do rompimento da barragem de rejeitos em Minas Gerais (2015) são

aqui entendidos como os meios politizadores deste debate. Como vias à uma

educação não hegemônica que envolva a comunidade nos processos que a

constroem. Além disso, pretende-se aqui analisar o panorama da produção de

conflitos socioambientais levando em consideração os modos de vida: cultura, fazer,

saber, crenças, ou seja, elementos que constroem a identidade cultural dos

ribeirinhos visibilizando os dissensos encontrados no levantamento de danos por

meio de cartografias sociais, segundo o método já aplicado e publicado pelo Instituto

de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional- IPPUR/UFRJ, no Rio de Janeiro

(ACSELRAD, 2012).

Epistemologia da narrativa colonial.

A narrativa tem como prerrogativa um contexto vivenciado pelo narrador ou por

alguém, e outro percurso que remete às escolhas do narrador para contar

determinada história. Em nenhuma dessas instancias haverá imparcialidade, seja na

forma de olhar, seja na forma de narrar. Nas sociedades urbanas que sobrepõem

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diversidades sociais e fluxos informacionais, em diferentes velocidades,

problematizar a posição e a duração dos olhares torna-se imprescindível.

Ao permitir os reposicionamentos do olhar, e admitir as complexidades das relações

espaço-temporais, as cartografias sociais são importantes subsídios epistêmico-

metodológicos para experimentação, dissolução e ressignificação de relações de

colonialidade. Algumas delas podem ainda existir junto às instituições da

modernidade, onde o conhecimento científico busca afirmação de suas forças

cognitivas, com linguagens específicas (SANTOS, 2002).

Nos estudos sobre a produção de conhecimento espacial se faz cada vez mais

necessário identificar de maneira cautelosa e dedicada, o modo como os discursos

dominantes podem influenciar as práticas urbanas, como interferem nas relações de

reciprocidade, de alteridade e de comunicação. A busca incessante por outras

formas de olhar, pelo horizonte do outro, reside no interesse em conhecer seus

diferentes arranjos, peculiaridades das relações de produção do espaço

(LEFEBVRE, 2006), e pode ser uma alternativa aos mecanismos de dominação da

linguagem e do conhecimento.

Em Colatina, as dinâmicas dos impactos ambientais junto à comunidade ribeirinha

ativadas pelas indústrias têm sido historicamente o principal vetor de conflitos.

Enquanto a cidade cresce em ritmo acelerado, as dinâmicas mercadológicas

aumentam a exploração sobre o rio, impactando sua capacidade e vazão. Com isso

interferem diretamente nas dinâmicas socioambientais da região com aterros,

dragagens, e poluição, que são parte da história da cidade até os dias atuais. Além

de alterarem a vida e a paisagem em benefício das dinâmicas do mercado global,

não contribuírem de maneira eficaz para o prometido ‘desenvolvimento urbano’.

Este é apenas um exemplo das dificuldades que enfrentam as minorias urbanas

economicamente ‘invisíveis’ da cidade, desafios que influenciam diretamente a

permanência ou não das populações e suas práticas culturais tradicionais – como as

atividades ribeirinhas. Considerando a importância histórica e cultural deste ofício,

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viabilizador de dinâmicas sociais de apropriação do espaço urbano, acredita-se ser

necessário um melhor entendimento das relações de força que influenciam suas

possibilidades de resistência, já que o desinteresse pelo tema nos projetos de

compensação de danos tende à invisibilidade dos conflitos, à despolitização do

grupo e ao desaparecimento da atividade.

““a mancha que ficou na sociedade não se apaga”. Fonte: Tiago, proprietário de horta, 2018.

Entrevistas feitas em campo iniciadas em 2018, durante a elaboração do projeto de

pesquisa e iniciação científica que trata desse tema4, moradores ribeirinhos alegam

que os mecanismos de compensação não têm sido eficientes. A frase de Tiago,

proprietário de horta às margens do rio Doce em Colatina, evidencia a dificuldade de

manutenção do ofício pós desastre ambiental. Segundo ele algumas questões não

podem ser compensadas, como a dificuldade de vender os produtos de sua horta

devido à “má fama” de sua localização.

Logo após a passagem da lama no município, pai e filho pretendiam continuar

atuando nas feiras e entregas nos supermercados, porém sem sucesso. As pessoas

têm rejeição pelas hortaliças produzidas no município, na hora de comprar logo

perguntam se são produzidas em Maria das Graças, bairro atingido. Devido a essa

fama não compram, preferem hortaliças que são plantadas em Santa Maria de

Jetibá, outro município que não fora atingido pela lama.

Outra situação complexa narrada por ribeirinhos é relatada por Diego. Sua família

morava em um terreno nas proximidades do Rio Doce e tinha a pesca como um dos

meios de renda. No ano de 2015, propriamente no período do rompimento da

barragem, Diego se encontrava desempregado e ajudava sua família na pesca. Com

a chegada da lama não se podia mais pescar, não podia ter contato com a água e a

onde se encontrava a horta e outras plantações utilizada para consumo próprio foi 4 Ecologia e Planejamento na Coexistência Socioambiental de Colatina-ES. Cartografia de Impactos a Partir do

Rompimento da Barragem de Rejeitos no Rio Doce (2018-2020). Apoio FAPES.

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invadida pela lama. Depois de mais ou menos 10 dias que a lama havia passado, a

horta e as demais plantações que ali se encontravam começaram a morrer.

Após 6 meses do desastre, a família decidiu ir ao local atingido para ver como a

região se encontrava, e queimar o que havia morrido. O contato com local não foi

realizado antes pois os moradores tinham medo de fazer contato com os rejeitos de

lama. Após o trágico acontecimento a família nunca mais plantou onde a lama

passou e apenas o pai do Diego continuou na pesca, porém com um volume de

peixes muito reduzido e a venda precária, pois as pessoas passaram a ter medo de

consumir os peixes do rio Doce.

Devido as consequências da tragédia e por estar desempregado, Diego não tinha

mais como pescar e ajudar na renda da família, se mudou da casa em que morava

para a o centro da cidade de Colatina em busca de trabalho. Devido sua saída, o

dono do terreno demoliu a casa em que Diego morava, pois se encontrava em uma

situação precária. Diego relata que guarda muitas lembranças na memória da casa

em que morava e que hoje não existe mais.

Nestes pequenos exemplos de microdinâmicas urbanas podem ser elucidados

diversos desafios enfrentados por outros países no contexto Latino-americano

quando da expansão de seus mercados industriais globais e por consequência

expulsões de grupos sociais de seus lugares de origem. Assim também

problematiza o Grupo Latino Americano de Estudos Subalternos (1998), que no seu

manifesto inaugural provoca:

“El modo capitalista de producción adquiere uma configuración global que

sobrepasa lo puramente nacional, internacional o multinacional. No son los

estados territoriales quienes jalonan la producción, sino corporaciones

transnacionales que se pasean por el globo sin estar atadas a ningún

territorio, cultura o nación en particular” (Grupo L. de E. S.,1998:05).

No caso das populações ribeirinhas, os conflitos gerados têm sido claramente

subjugados. As governanças locais procuram alternativas de apaziguamento para a

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sua retirada imediata, encarado a circulação dos barquinhos como apropriação

problemática. Para agravar o quadro, muitas vezes construções discursivas acabam

por imprimir certo grau de responsabilidade às populações afetadas, (ZHOURI,

2008:99) que por sua vez ainda pouco demonstram poder de reação significativa

frente a todas instâncias de dominação a que estão sujeitas. Como se realmente

existisse a possibilidade de comunicação entre as populações fragilizadas e os

mecanismos de regulação oficial do espaço. Aí podemos identificar um outro

problema: “a retórica como topologia e como persuasão” (SPIVAK, 2010:35). Como

pode o Estado “falar em nome do subalterno” através da escolha dos modos de

compensação, sem desenvolver um entendimento mais profundo das questões

sociais?

Como estes desafios têm influenciado diretamente toda a rede de relações urbanas,

seja pela configuração dos problemas ambientais, econômicos ou estruturais,

acredita-se que uma maior atenção deva ser direcionada para as metodologias de

compartilhamento horizontal dos saberes. A produção do conhecimento pela

linguagem científica dominante é um ponto a ser questionado, já que para haver

conhecimento, há que se ter comunicação (SANTOS, 2002:317). Este é outro

problema paradoxal do discurso da globalização: a imposição das linguagens que se

configuram como excludentes e dificilmente alcançadas por todos, podem configurar

estratégias de dominação que “não são neutras, estão atravessadas por violentas

inclusões e exclusões de todo o tipo” (Grupo L. de E. S.,1998:07).

Estes debates epistemológicos são cada vez mais observados a partir da década de

50, e em 1970 Foucault destaca-se com “A ordem do Discurso”, ao questionar as

noções de caos, acaso e incertezas dentro das ciências legitimadas. Mas poucos

autores chegam a analisar aspectos polêmicos na produção dos conhecimentos das

ciências sociais – como os que estão no campo das subjetividades, sensações, dos

aspectos imateriais cambiantes e contraditórios, ainda a serem investigados. Contra

os abismos das “ciências duras” Boaventura de Souza Santos afirma:

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“À luz do que foi dito anteriormente, ficamos com a ideia de que, a

menos que defronte com uma resistência ativa, o pensamento

abissal continuará a auto reproduzir-se, por mais excludentes que

sejam as práticas que origina. Assim, a resistência política deve ter

como postulado a resistência epistemológica. Como foi dito

inicialmente, não existe justiça social global sem justiça cognitiva

global”. (SANTOS, B. S., 2007: 20)

A ideia de associação entre a história do colonialismo e a produção de

subalternidade nas cidades contemporâneas é mostrar de que formas esta relação

de dominação histórica continua acontecendo em determinados níveis, mesmo

quando invisibilizadas ou diluídas pela velocidade dos efeitos da globalização. Como

a história não é fixa, ela incorpora temas e acontecimentos a todo tempo, faz sentido

buscar um melhor entendimento sobre a noção de “um outro espaço-tempo”, que

parece cada vez mais confuso com o advento da pós-modernidade, onde “(...) o

mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em um determinado

lugar têm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande

distância” (HALL 2001:69). Isso também aconteceu ao longo do rio Doce, onde uma

única empresa devastou diferentes estados, populações, culturas e modos de vida.

Neste contexto de crise do Estado-Nação, e do próprio conceito de nação, Ajurn

Appadurai usa o conceito de “translocalidades” enquanto um desafio à construção

de “geografias morais” (APPADURAI, 1997:33). Para o autor, localidades são

“mundos da vida constituídos por associações relativamente estáveis, histórias

relativamente conhecidas e compartilhadas e espaços e lugares reconhecíveis e

coletivamente ocupados” que entram em conflito com os projetos de controle da vida

pública do Estado-Nação (APPADURAI, 1997:34). Este controle é exercido muitas

vezes quando se impõe dinâmicas de valorização de indústrias e grandes empresas

internacionais em contextos de riscos socioambientais, vastamente espalhados pelo

território brasileiro.

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No contexto da cidade aqui estudada podem ser percebidos alguns sintomas desta

dominação: ao legitimar a exploração abusiva dos recursos naturais com atividades

extrativistas, no monopólio concedido às empresas multinacionais; ao tentar

setorizar a cidade em zonas de morar, de trabalhar, de lazer, que padronizam usos;

ao minimizar a importância de práticas históricas como o ofício ribeirinhos

pescadores e demais populações subalternas. Aqui, portanto, já não podemos mais

falar de efeitos apenas locais, há que se entender uma dinâmica muito mais ampla e

complexa de apropriação de recursos espaciais, informacionais, humanos, entre

outros, que escapam às fronteiras tradicionais entre cidades e municípios - geram

impactos amplos e alteridades sociais reprimidas.

Por Uma Metodologia Antropológica no Campo do Planejamento Urbano.

A produção do espaço enquanto tema comum à várias disciplinas e a importância do

entendimento sobre as relações sociais na conformação de seus territórios

demonstra que este pode ser um campo interessante para exercitar uma confluência

interdisciplinar. Para isso, entende-se que deve haver uma ampliação dos cânones

da ciência com relação às realidades espaciais, e uma pesquisa interdisciplinar,

contra as imposições do conhecimento científico etnocêntrico.

Não estamos aqui buscando uma verdade absoluta sobre a conformação dos

espaços nas cidades brasileiras contemporâneas, mas sim falando de um lugar

específico, repleto de alteridades e múltiplos pontos de vista. Estamos falando,

assim como na antropologia, de um lugar que é experiência etnográfica, ou seja, sua

narrativa ou interpretação pode ser múltipla, porque aceita a variedade de pontos de

vista sobre o mesmo contexto, todos abertos à contestação. Pretende-se aqui fazer

um convite ao debate, à multiplicidade dos encontros e assim buscar a visibilidade

dos conflitos existentes no espaço subalternizado.

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Ash Amim em “Telescopic Urbanism And The Poor” critica as interpretações globais

rasas sobre os desafios na conformação dos espaços relacionais contemporâneos e

problematiza a prática interdisciplinar como estratégia para a ampliação do

“telescópio urbano”, reconhecendo as necessidades do desenvolvimento humano, e

a importância das minorias invisíveis economicamente na microescala, identificando

a sua relação com as macroescalas. Segundo ele é preciso “reforçar a sinergia entre

o crescimento, equidade e sustentabilidade, através de intervenções apropriadas no

ambiente construído, econômico e cultural da cidade?” (AMIN, 2013:02).

O desafio que se coloca diante da paisagem da cidade, entendida para além dos

seus aspectos materiais, é a identificação dos cenários consensuais fictícios,

projetados como veículo de manipulação do conhecimento acerca das dinâmicas e

especificidades dos lugares. Esta ‘alienação espacial’ muito interessa às lógicas

hegemônicas de dominação do uso dos espaços, onde se percebem consecutivas

tentativas de padronização e simplificação global. Como colocado por Quijano, e

bem elucida os contextos das cidades portuárias no Brasil:

“(...) se trata de uma reconcentração mundial do controle da

autoridade pública, em escala global. E este é, do meu ponto de

vista, o fenômeno novo mais destacado da chamada “globalização”

do atual padrão de poder mundial”. (QUIJANO, 2002:08)

Este estranhamento também pode ser percebido na escala do pequeno e adensado

centro urbano de Colatina, às margens do rio Doce. A produção espaço urbano

consensualmente voltada para as dinâmicas industriais e para o crescimento

econômico imperam diante de qualquer outra dinâmica tradicional que atrapalhe a

manutenção da ordem vigente. A população local e suas alteridades, costumes e

ofícios são cada vez mais dependentes e cooptados ao estabelecimento de relações

padronizadas, pouco autônomas de preferência pouco politizadas. Percebe-se que

não é do interesse dos organismos oficiais de regulação deste espaço que os

debates sobre a compensação ambiental sejam fomentados.

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Diante disso é preciso que os planejadores urbanos entendam de perto as

possibilidades de produção de conhecimentos espaciais para além das

simplificações hegemônicas, aceitando as dificuldades e complexidades de se

trabalhar em uma ótica de contradições e dissensos. Estas tensões estimulam

desejos por novas possibilidades de Planejamento e um melhor embasamento

diante das especificidades dos conflitos locais. Se faz premente um maior

compromisso com a visibilidade destas relações em desequilíbrio na tentativa de

“decolonizar” à luz de Mignolo (2008), Quijano (2002) e Ballestrin (2013), as relações

de produção dos espaços coletivos.

Por ser difícil entender o que está implícito historicamente na dominação de cada

realidade específica, sendo a brasileira uma das mais complexas, é importante

encontrar métodos de levantamento e análise que entendam por que estas injustiças

muitas vezes acontecem legitimadas direta ou indiretamente pelo Estado. Por isso

parecem interessantes as abordagens etnográficas que valorizam a presença das

“vozes antes não ouvidas” (SPIVAK, 2010), uma abordagem do sujeito, que

problematiza outros tipos de conhecimento. Abordagem trabalhada por esta

pesquisa.

Entre os processos de gestão e produção dos espaços sempre foi um desafio lidar

com os interesses e desejos de múltiplos atores, com diferentes origens,

conhecimentos e habilidades individuais. Contra as tentativas de silenciamento e

despolitização, buscamos iniciativas que desconstroem os consensos acerca das

relações socioambientais, para reunir informações antes não percebidas e para

entender como o ônus e o benefício da urbanização e do dito “desenvolvimento” são

distribuídos.

Concorda-se com Canclini ao entender que os dissensos na cidade são potenciais

enquanto movimento contrário às tentativas de padronização global. É preciso

politizar os espaços com métodos que tentem evitar “esta visão conciliadora” do

pensamento científico etnocêntrico, o que pode levar a uma “redefinição da esfera

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política” enquanto embates que envolvem as relações sociais (CANCLINI,

2012:135).

A prática etnográfica há muito problematizada pela antropologia e as “etno-

cartográficas” da geografia humana são duas importantes contribuições para os

estudos espaciais que envolvem populações afetadas e o contexto da produção do

espaço urbano. Esta pesquisa buscou problematizar as possibilidades de

contribuição destas metodologias para a o planejamento urbano, e acreditamos que

essa relação multidisciplinar poderá produzir trocas de conhecimento que

qualificarão a comunicação entre pesquisadores e sujeitos, na medida em que as

diferentes linguagens dos diferentes atores do campo sejam “mediadas a ponto de

realmente haver uma comunicação entre eles” (ACSELRAD, 2012), de modo a

acentuar pontos de vista anteriormente desconsiderados ou subalternizados.

Essas questões quando trazidas para as relações acadêmicas de produção do

conhecimento evidenciam a necessidade cada vez maior de uma autocrítica

epistemológica, que estude a conformação das paisagens urbanas enquanto

relações complexas, para além das definições materiais, visualmente apreendidas,

enquanto dinâmicas espaciais e sociais repletas de invisibilidades, que esta

pesquisa buscou evidenciar. Acredita-se que antropologia e a Geografia Humana

têm muito que acrescentar neste sentido, ao problematizar suas metodologias de

forma autocrítica, ao entender que a linguagem da produção do conhecimento

científico no campo social precisa ser revista.

REFERÊNCIAS:

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