colÔnia bella vista - um espaço construído pelas práticas ... · minha nonna com a mesa cheia...

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COLÔNIA BELLA VISTA - um espaço construído pelas práticas sociais dos Imigrantes Italianos em Imbituva/PR: a alimentação como prática de identificação étnica CLEUSI T. BOBATO STADLER 1 Durante minha formação como pesquisadora aprendi que a subjetividade tinha que ficar fora da ciência histórica. Hoje apreendendo novos conceitos e novas metodologias de pesquisa através da história oral, percebo que a subjetividade sempre foi inerente ao indivíduo, ela é uma referência qualitativa do sujeito, faz parte da narrativa e das experiências de vida dos sujeitos. Memória e subjetividade se interligam com a história oral, é preciso então buscar as relações dessa subjetividade, a constituição desses sujeitos nos recortes de uma pesquisa. É preciso tornar a subjetividade um processo de compreensão, uma busca, um ato científico, que nunca foi perdido pela objetividade. Pesquisar sobre os italianos é parar no tempo e lembrar o aroma do café feito pela minha nonna com a mesa cheia de doces e alimentos saborosos, é sentir o gosto do vinho tomado pelo meu pai todos os dias, e principalmente é sentir o gosto da polenta com frango, da macarronada, do bolão de fubá feito pela minha mãe. Essa é a minha motivação, a simplicidade do ser e do viver dos descendentes de italianos. A história da gastronomia dos italianos pertence à memória, as lembranças, ela está no dia-a-dia de seus descendentes imigrantes. A motivação para escrever este artigo, resultante de um capítulo da Dissertação de Mestrado, vem da vontade de compreender o modo simples, a alimentação dos italianos, que refletem o meu desejo de pertencimento a história deste povo. Partindo do pressuposto que o alimento e suas práticas de elaboração podem revelar a identidade étnica de um grupo pretendeu-se compreender como os imigrantes italianos reelaboraram suas tradições e práticas cotidianas através da alimentação, principalmente na elaboração de seus pratos principais, a polenta, o raditi e a macarronada. A delimitação espacial deste estudo foi Ribeira, Colônia Bella Vista e Pinho de Baixo, comunidades localizadas no interior de Imbituva/PR, que apresentam em sua maior parte, uma população constituída por descendentes de imigrantes italianos provenientes do Norte da Itália, em especial do Vêneto e da cidade de Castello Di Godego. 1 SEED/PR e UNICENTRO, Mestre em História e Regiões.

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COLÔNIA BELLA VISTA - um espaço construído pelas práticas sociais dos Imigrantes

Italianos em Imbituva/PR: a alimentação como prática de identificação étnica

CLEUSI T. BOBATO STADLER1

Durante minha formação como pesquisadora aprendi que a subjetividade tinha que

ficar fora da ciência histórica. Hoje apreendendo novos conceitos e novas metodologias de

pesquisa através da história oral, percebo que a subjetividade sempre foi inerente ao

indivíduo, ela é uma referência qualitativa do sujeito, faz parte da narrativa e das experiências

de vida dos sujeitos. Memória e subjetividade se interligam com a história oral, é preciso

então buscar as relações dessa subjetividade, a constituição desses sujeitos nos recortes de

uma pesquisa. É preciso tornar a subjetividade um processo de compreensão, uma busca, um

ato científico, que nunca foi perdido pela objetividade.

Pesquisar sobre os italianos é parar no tempo e lembrar o aroma do café feito pela

minha nonna com a mesa cheia de doces e alimentos saborosos, é sentir o gosto do vinho

tomado pelo meu pai todos os dias, e principalmente é sentir o gosto da polenta com frango,

da macarronada, do bolão de fubá feito pela minha mãe. Essa é a minha motivação, a

simplicidade do ser e do viver dos descendentes de italianos.

A história da gastronomia dos italianos pertence à memória, as lembranças, ela está no

dia-a-dia de seus descendentes imigrantes. A motivação para escrever este artigo, resultante

de um capítulo da Dissertação de Mestrado, vem da vontade de compreender o modo simples,

a alimentação dos italianos, que refletem o meu desejo de pertencimento a história deste povo.

Partindo do pressuposto que o alimento e suas práticas de elaboração podem revelar a

identidade étnica de um grupo pretendeu-se compreender como os imigrantes italianos

reelaboraram suas tradições e práticas cotidianas através da alimentação, principalmente na

elaboração de seus pratos principais, a polenta, o raditi e a macarronada.

A delimitação espacial deste estudo foi Ribeira, Colônia Bella Vista e Pinho de Baixo,

comunidades localizadas no interior de Imbituva/PR, que apresentam em sua maior parte,

uma população constituída por descendentes de imigrantes italianos provenientes do Norte da

Itália, em especial do Vêneto e da cidade de Castello Di Godego.

1 SEED/PR e UNICENTRO, Mestre em História e Regiões.

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Utilizando-se da história oral o principal objetivo foi investigar a comida italiana

presente ainda hoje nos ambientes familiares dos descendentes de italianos e nas festas

folclóricas, como a Festa da Polenta (realizada em Pinho de Baixo) e o Almoço Italiano

(realizado na Ribeira). Para alcançar esse objetivo foram identificados e analisados, o modo

como eram preparados alguns pratos da culinária italiana com destaque para a polenta, a

macarronada e o raditi, que eram degustados junto com o vinho.

Utilizando-se como metodologia principal, a História Oral, foram realizadas 04

entrevistas gravadas em vídeo, sendo os entrevistados descendentes de italianos, dentre eles

um homem e duas mulheres, da segunda e terceira geração, residentes na Ribeira e Colônia

Bella Vista, na cidade de Imbituva. Como observadora participante, acompanhei os eventos,

que são as festas típicas realizadas no Pinho de Baixo e na Ribeira, observando a prática de

elaboração da polenta como manifestação de sua identidade étnica. A fotografia também fez

parte do trabalho, como forma de representar essas vivências e práticas culinárias dos

descendentes dos imigrantes, como o preparo da polenta, do vinho e as festas culturais.

Para compreender como os descendentes de italianos buscam a noção de

pertencimento étnico, no presente, através da alimentação, pretende-se analisar as narrativas

dos descendentes e as memórias que são construídas. A memória em meu entendimento é uma

construção que se faz na troca e na partilha entre o que se viveu no passado e as lembranças

que se buscam no presente.

Segundo Le Goff, a memória é uma “propriedade de conservar certas informações,

remetendo-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o

homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como

passadas” ( LE GOFF, 1994: 423). Assim, a memória é a forma de tornar presente um fato do

passado, através da atividade de recordação. Sendo assim, a memória dos descendentes de

imigrantes italianos da segunda e terceira geração, torna-se imprescindível, pois é através das

entrevistas com esses descendentes que buscaremos confrontar os dados da alimentação

italiana nas comunidades em estudo.

Ao se produzir uma fonte oral, é necessária analisarmos as entrevistas, os

depoimentos, os detalhes narrados pelos depoentes, as lembranças alteradas, a memória do

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grupo. A memória vai contribuir a cada dia para a construção da identidade dos italianos

instalados nas comunidades do interior de Imbituva em estudo. A identidade desse grupo pode

ser compreendida, segundo a narrativa que compuseram suas memórias e que foram

repassadas a seus filhos, netos e bisnetos, através da tradição oral e das práticas sociais

reproduzidas e/ou produzidas nas comunidades, principalmente com a prática da alimentação.

Fonte Oral e Memória

A fonte oral é uma linguagem, uma ação involuntária da memória. Produzir narrativas

não é simplesmente colher relatos, é produzir uma fonte científica, contemporânea, é produzir

uma linguagem. Claro que nesta produção da linguagem é necessário discutir as condições de

produção dos discursos. Os imigrantes italianos, por exemplo, têm uma identidade. Os seus

descendentes não possuem essa mesma identidade, eles recriam e produzem outra linguagem,

baseados em suas memórias e lembranças. Portanto, nós somos parte da linguagem produzida

pela história oral.

A história oral privilegia a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias e

dessa forma ressalta a importância de memórias subalternas que, como parte integrante das

culturas minoritárias e dominadas, se opõe a memória oficial, no caso a memória nacional.

Esse é o diferencial da história oral, ela não tem seu estatuto pronto, ela é produzida pelo

historiador, seus entrevistados e narrativas. É a história oral que gera novas fontes históricas e

a condições de produção dessas fontes.

A memória é um ato, um fenômeno, a lembrança é a prática deste ato, um movimento.

A memória é a representação presente de algo ausente. Ela é produzida no presente e como tal

ela poder ser também uma memória individual ou coletiva. Como defende Halbwachs, a

memória pode ser “coletiva”, exterior e superior aos indivíduos. Para ele, o próprio grupo é

portador de uma “memória ou consciência coletiva” (HALBWACHS, 1990). Halbwachs foi o

primeiro sociólogo que analisou a vinculação entre a maneira específica de um indivíduo

lembrar-se de seu passado e relacioná-lo a seu pertencimento social tendo a interferência das

forças sociais nesse ato de rememoração. Halbwachs, cria seu conceito de “memória coletiva

e defende os “quadros da memória”, que teriam origem social, ou seja, o movimento de

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rememoração é uma reconstrução do passado que é operada pelos indivíduos, mas com a

interferência de forças sociais que pode ser alterada ou manipulada dependendo do que se

quer repassar da identidade desse grupo ou do período histórico rememorado.

Essas narrativas podem ser identificadas através das fontes orais ou história oral que

encontra as diversas lembranças dos entrevistados. Conforme Thompson, toda vez que a

experiência de vida de uma pessoa ou um grupo pode ser usada como matéria-prima para a

História, agrega a narrativa nova dimensão, pois essas lembranças do passado de um modo

geral podem enfatizar as relações com o cotidiano das famílias, do grupo ou da comunidade.

Segundo Alberti, a história oral pode demonstrar como a memória é “essencial a um

grupo porque está atrelada à construção de sua identidade”. Podem surgir depoimentos e

análises diversas sobre um mesmo acontecimento, por isso ela considera a memória mutante.

Ao contar suas experiências, o entrevistado transforma o que foi vivenciado em

linguagem, selecionando e organizando os acontecimentos de acordo com

determinado sentido. [...] O fato de ser uma narrativa oral, que resulta de uma

interação entre entrevistado e entrevistador – uma conversa, podemos dizer -, torna

essa fonte específica em relação a outros documentos pessoais. O que o entrevistado

fala também depende da circunstância da entrevista e do modo pelo qual ele percebe

seu interlocutor. (ALBERTI, 2005: 171).

As fontes orais para o estudo da alimentação na Ribeira e Colônia Bella Vista, como

comunidade italiana, foram relevantes. Os depoimentos contraditórios, ou não,

complementaram-se mutuamente, contribuindo para reconstruirmos o cotidiano gastronômico

por eles vivenciado. Algumas lembranças eram restritas para alguns descendentes, não

totalmente definidas, por isso não podemos considerar uma “memória totalmente coletiva”

para esta comunidade. Temos recortes de lembranças, fragmentos de memória, pois se trata da

segunda e terceira geração dos imigrantes.

Como nos afirma Lucena, “A história oral fornece ao historiador oportunidades de

reconstruir aspectos de personalidades individuais inscritas na existência coletiva, pelo fato de

as fontes orais dizerem respeito à memória” (LUCENA, 1999: 23). Isto quer dizer que a arte

de lembrar é sempre um ato individual, mas que está moldado pela formação de um grupo e

de um meio social. Por isso que as representações são muito importantes também quando se

5

utiliza da história oral, pois elas vão trazer à tona a experiência das pessoas comuns, o modo

como em diferentes tempos e espaços uma determinada realidade social é construída.

O que caracteriza a fonte oral enquanto viva e incompleta, são as infindáveis histórias

de vida dos imigrantes, carregadas de subjetividade, mas que não são exatamente as

representações do passado, porque são adaptadas às reinterpretações atuais, ou seja, ajustadas

as atuais identidades de seus descendentes. Os sonhos, imaginações e realidades misturam-se

na narrativa histórica, de forma que, as imagens do vivido e da memória podem se aproximar

e ao mesmo tempo afastar-se da objetividade.

Numa pesquisa com história oral as narrativas se mesclam em relatos da vida pessoal e

do grupo. Ainda mais quando se trabalha com os descendentes, onde eles escutaram ou

imaginam que seus antepassados viveram daquela forma. Cada entrevistado, ao recordar o

momento vivido, faz uma reinterpretação pessoal ou grupal do vivido, mas também traz a

tona aspectos desconhecidos e de muito significado para a interpretação histórica.

A Italianidade através do preparo e sabor dos alimentos

Os imigrantes italianos que vieram para a Colônia Bella Vista, Ribeira e regiões ao

redor, saíram da Itália em 1877 e se estabeleceram na província do Paraná até 1890. A

maioria eram agricultores, de acordo com a memória de seus descendentes. Eles saíram do

Vêneto, norte da Itália, viajaram de navio até o Porto de Paranaguá. De Paranaguá se dirigem

até as hospedarias de Curitiba, algumas famílias seguem para a colônia Alfredo Chaves e

Colônia Dantas, outras para colônia Antônio Rebouças, depois compram terras na região da

Freguesia de Santo Antonio do Imbituva e juntamente com outras famílias formaram a

Colônia2 Bella Vista. Por esse motivo são considerados também como “migrantes” 3.

Após a fundação da colônia, os imigrantes começam o processo de utilização da terra.

Devido à necessidade de produzir inicialmente para a subsistência, provavelmente plantam de

tudo um pouco em pequenas quantidades, além de praticar outras atividades, como a

2 Segundo Giralda Seyferth, o termo “Colônia” designa tanto uma região colonizada ou área colonial demarca

pelo governo em terras devolutas, como também é sinônimo de rural. O termo colônia, também é usado para

designar uma propriedade agrícola. Como também pode relacionar-se a comunidade étnica e não apenas um

referente territorial e socioeconômico. (SEYFERTH, 1990: 25). 3 Migrantes por se deslocarem das colônias que já existiam ao redor de Curitiba.

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exploração da mata. A Sra. Angelina Amábile Alessi4 nos afirmou que: (...) só mato era, uma

mataria, e dai iam plantando as coisas pra comer, pra fazer, pra viver.

Nas terras agrícolas onde se instalavam, os imigrantes italianos procuraram reproduzir

os conhecimentos e as práticas trazidas da Itália, cultivaram cereais, verduras e produziram

vinho. De suas colônias localizadas no interior, dirigiam-se à cidade para a venda do

excedente de sua produção e de outros produtos como manteiga, queijo, doces, ovos, entre

outros. As outras duas atividades principais desenvolvidas por esses imigrantes foram o

cultivo da erva-mate e a extração da madeira. Verificamos que as atividades da agricultura,

produção do vinho, extração da erva-mate e da madeira, também foram realizadas pelos

colonos italianos da Bella Vista, através da entrevista realizada com o Sr. Orlando

Marconato5.

Os imigrantes eram agricultores. Começaram a plantar feijão, arroz, milho. Cada um

tinha sua lavourinha. […] Eles falaram que aqui viviam melhor do que lá (na Itália)

onde eles estavam. De certo, com certeza, eu não lembro bem, com certeza era

menos liberdade que eles tinham lá [...] Todos eles possuíram terras, de tudo um

pouco. Foram trabalhando e fazendo na lavoura, o pouco que iam vendendo, iam

criando uns boizinhos, uns porquinhos e vendendo e fazendo dinheiro e comprando

terra. Era barato e daí compravam erva, trabalhavam com erva-mate naquele tempo

e daí vendiam a erva-mate e compravam 1 alqueire de terra aqui, meio lá.

A erva-mate nativa eles tiravam pra fazer a comercialização? É... E como surgiram

as madeireiras, ali na Bela Vista? As madeireiras surgiram depois de um ponto, eu

era piá, bem pequeno, entrou essas serrarias antiga, de quadro, entrou a Delegrave e

começou a comprar pinheiro, desses proprietários velhos, como do meu avô, assim,

e serrar e foi indo, foi indo, e perdiam metade da madeira, porque o pinheiro

aproveitavam só o que era bem limpo, o que tinha um nozinho ou dois ficava lá no

mato, os monte de tora. Foram limpando, os terreno. Meu avô pagou pra derrubar

pinheiro pra formar erva. Pagou, mandou descascar pinheiro, eu me lembro,

pinheiro grosso, mandou descascar os pinheiros, mas os pinheiros não seca,

descascar um tanto assim os pinheiro, para formar o erval pra produzi a erva-mate.

Cabe ressaltar através da narrativa do Sr. Orlando que a extração da erva-mate, bem

como da madeira, também foi uma estratégia, uma forma de sobreviver a um território

totalmente hostil para os imigrantes. Também, ele relaciona sua narrativa ao presente, pois se

4 Entrevista concedida a Cleusi T. Bobato Stadler pela Sra. Angelina Amábile Alessi, 85 anos, no dia

22/05/2014, na cidade de Imbituva/Pr. 5 Entrevista concedida a Cleusi T. Bobato Stadler pelo Sr. Orlando Marconato, 80 anos, no dia 20/07/2014, na

cidade de Imbituva/Pr. As frases em itálico correspondem à pergunta da entrevistadora. Os vícios de linguagem

como o né, foram retirados da transcrição.

7

pode observar em sua narrativa a crítica ao desperdício da madeira e sua preocupação

ambiental.

No enfrentamento dos primeiros desafios, os primeiros contatos com o novo mundo se

deram, inicialmente, no tipo de agricultura que praticavam e na adoção de novos hábitos

alimentares. A esse respeito podemos verificar na narrativa da Sra. Maria Cecília Alessi6, que

nos mostra que para se alimentar iam às tigüeras7 procurar folhas verdes, para que pudessem

comer com a polenta, a qual trouxe o costume da Itália. “(...) iam pro mato procurar radiche!

Vinha do Mato? Do mato, iam nas tigüeras”8.

No momento em que o imigrante comprava suas terras, ele tinha que se adaptar ao

lugar, derrubar o mato e fazer suas primeiras roças e dessa forma submeter-se a todo um novo

aprendizado, cultivando espécies que para ele eram totalmente desconhecidas. No começo

eles conheceram o feijão preto, abóbora, mandioca, batata-doce e até mesmo a erva-mate. E

aprendendo a cultivar estes alimentos e extrair a erva-mate, passaram a modificar seus hábitos

alimentares, mas sem esquecer-se da polenta.

Se por um lado as famílias numerosas entre os italianos facilitavam o trabalho nas

terras, por outro, essas famílias compostas por vários membros deveriam lidar com os gastos

para alimentar todos os filhos. As dificuldades relacionadas à alimentação estavam

relacionadas tanto pelo estranhamento a alguns alimentos das terras brasileiras, quanto por sua

escassez, pois não havia uma diversidade de alimentos. A alimentação das famílias italianas

perpassava o limite da precariedade.

De acordo com as narrativas dos entrevistados, a primeira forma de alimentação

trazida por eles da Itália foi à polenta, que era feita de modo bem rústico e artesanal, pois

eram muito pobres e não tinham quase nada para se alimentarem, depois que começaram suas

lavouras é que se alimentavam de feijão, arroz, batatinha e outros alimentos.

6 Entrevista concedida a Cleusi T. Bobato Stadler pela Sra. Maria Cecília Alessi. 85 anos, no dia 03/06/2014, na

cidade de Imbituva/Pr. 7 A tigüera é palavra de origem tupi, que significa: áreas de terra plantadas onde já se fez a colheita, e crescem

plantas esporádicas, e se coloca os animais para pastarem. Uma dessas plantas que cresciam era o radiche. 8 Entrevista concedida a Cleusi T. Bobato Stadler pela Sra. Maria Cecília Alessi, 85 anos, no dia 03/06/2014, na

cidade de Imbituva/Pr.

8

E no começo a alimentação deles era muito pouco, não tinham quase nada?

Era só polenta, eles diziam a saiata, e quando tinham vaca, o formaio, o late!

Quando tinha leite era polenta com leite, quando tinha alface, era polenta com

alface!

E o radiche? Ih! Iam pro mato procurá radiche! [...] Era do meio das tigueras! [...]

Com polenta. A vida deles era muito difícil? De pobre mesmo!

No início os imigrantes tiveram que se adaptar ao que tinham nas matas. Um dos

alimentos que provavelmente eles consumiram foi o pinhão, pois como tinha mata de

araucária, os italianos aprenderam com os moradores locais o uso do pinhão, até iniciarem o

cultivo de suas lavouras. O mais constante nas narrativas dos descendentes é a referência a

polenta feita com a farinha do fubá. Depois de algum tempo, no máximo um a dois anos, eles

começaram a colher o que tinham plantado, como feijão, milho, trigo, arroz e outros produtos

para seu consumo e para a comercialização.

Os primeiros que vieram e se instalaram na Bella Vista, começaram a praticar a

agricultura?Agricultura, milho, feijão, cebola, trigo, tudo, alho, arroz, até meu pai,

começou a fazer um pouco a vida e nós, com linho, linhaça, diziam linho. O meu

nonno, também semeava bastante, um alqueire e meio de linho. Pra que era o linho,

tia? Eles diziam pra nós, dá pra entender que iam pra fora pra fazer fazenda! Pra

fazer tecido! E eles plantavam, eles tinham plantações de uva, também? Não, daí

começou depois de uns anos, dai sim, tudo quase tinha. Pra fazer o vinho? Pra fazer

o vinho, daí vendiam o vinho, iam pra Ponta Grossa vender. Imbituva de primeiro,

era 3 ou 4 casinha. Quando eu casei já era pouca familia que tinha em Imbituva. Eles

tinham algum costume de comida que eles trouxeram da Itália, que eles passaram

pra vocês? O que eles comiam? Feijão, arroz, batatinha, nós não comprava quase

nada, cebola, alho, tudo era plantatinho criolo. Depois que largaram de plantar. E a

polenta?A polenta sempre existiu, já tava a polenta. Eles gostavam. Até era mais a

polenta, o feijão eles comiam, mas era mais a polenta! Era comido todo dia a

polenta? Todo dia! E polenta com o que? Como eles faziam essa polenta? A

polenta, ponhava uma caçarola com água no fogo, quando fervia ponhava sal e daí

pegava uma pazinha, uma tijelinha de farinha e ia lá mexer no fogo. E daí comia

polenta com carne, ovo, com salada, couve, batatinha, tudo essas bóinha a gente

fazia. E o ratiche? O radiche nós cozinhava pra comer. O radiche nós cozinhava.

Mas era comum os italianos comerem?Aham! Era comida sagrada. Sagrada, antiga!

Comida, essa bóia era tudo do tempo do meu nonno, que eu morei 3 anos com ele,

pra ir na escola, no Pinho. Mas a comida que eles faziam era essa, feijão, arroz,

batatinha, um dia trocava, polenta, um dia feijão9.

Não resta dúvida de que a polenta era o principal prato feito pelos italianos da colônia

Bella Vista. Em todas as narrativas, os entrevistados fizeram questão de narrar como era feito

9 Entrevista concedida a Cleusi T. Bobato Stadler pela Sra. Helena Maria Dal Santo, 85 anos, no dia 03/06/2014,

na cidade de Imbituva/Pr.

9

esta polenta e com o que eles comiam, contando detalhes das panelas utilizadas e como as

mammas e nonnas mexiam essa polenta.

É a memória fixada pela prática de fazer a polenta. A polenta leva consciente ou

inconscientemente, os descendentes ao passado. Lembram das mães, das nonnas, fazendo a

polenta. As imagens parecem reais quando estão relembrando, que dizem sentir o gosto da

polenta que as nonnas faziam. E elas ensinavam suas filhas fazerem a polenta, nos mesmos

rituais, com os mesmos utensílios, denotando um valor simbólico para suas descendentes. O

hábito de comer a polenta, passado de geração a geração, colaborou para que os descendentes

de imigrantes italianos da Bella Vista afirmassem sua identidade étnica frente aos demais.

A polenta tinha um significado simbólico para os italianos. Era um costume cotidiano

herdado através das gerações, e como uma alimentação barata se tornou um dos pratos

principais da alimentação dos colonos da Bella Vista e de seus descendentes. Da polenta se

consumia até mesmo os restos e a casca, que após seu cozimento aderia às bordas da caçarola,

como nos narra o Sr. Orlando Marconato:

O senhor estava falando da questão da polenta. Então a primeira comida que eles

trouxeram da Itália, foi o costume de fazer a polenta?É, faziam nos tachos

pendurados na corrente, antes de construir as casas. [...] Eles tinham as misturas [...]

o radiche da capoeira [...] eles comiam, eles tinham as plantação deles, a horta deles

tinham aquele radiche cumprido assim, peludinho. Quantas vezes por semana vocês

ainda fazem a polenta? Aqui a polenta é sempre feita de duas, três vezes por semana

ainda é feito. (esposa: hoje ainda foi feito, só que não é mais no pá que é feito,

assim como era, agora tem a pressão). Como eles faziam a polenta antes?Eles

ponhavam a água fervendo naquele tacho pendurado na corrente, e daí punham o sal

que ficasse no normal da polenta e iam pondo fubá e batendo e iam mexendo até

criar uma casca em volta, só que não podia apurar muito. O que era o panaro que

eles falavam? O panaro nós ainda temos um guardado. O panaro era uma tábua

rendonda assim, com uma cabecinha onde que tinha um furinho, passado um fio,

amarrado ali, enlheado ali que era pra desenlheá ali, pra cortar a polenta. A caçarola

que fosse principal de dois cabinho, no fogão de lenha, na chapa e não dava pra

apurar muito senão queimava antes dela se cozinhar. Daí depois de despejada a

polenta, daí eu fazia minha mãe ponhá a caçarola no ceitaro, onde que tava úmido,

dái o bijú estourava, daí eu comia o bijú.

Toda essa narrativa nos mostra o valor simbólico que tinha a polenta enquanto

alimento para os colonos italianos da Bella Vista e também os utensílios que usavam.

Como foi narrado pela Sra. Helena Dal Santo, a polenta estava todos os dias na mesa

dos italianos da Bella Vista, faziam o revezamento das misturas, mas a polenta não podia

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faltar. Com o cultivo de outros produtos, eles modificaram um pouco seus hábitos

alimentares, mas a polenta não faltava à mesa do italiano.

O gosto pela polenta foi transmitido culturalmente às famílias venetas e trazendo

consigo esse hábito, procuraram adaptar-se a Colônia Bella Vista e suas terras no cultivo de

outros produtos, mas principalmente no cultivo do milho. Trouxeram algumas sementes do

cereal, mas adquiriram outras nas regiões onde se estabeleceram. O importante era cultivarem

o milho que daria o alimento básico para sua sobrevivência. A polenta representava uma dieta

de vigor, de sustento, de manutenção de uma tradição alimentar, carregada de simbolismo.

Para os imigrantes italianos da Colônia Bella Vista, a manutenção do costume de comer

polenta significa manter os laços com sua origem italiana.

Segundo Piffar, o preparo da polenta tinha todo um ritual específico:

A polenta preparada pelos imigrantes italianos obedecia aos seguintes passos. Em

uma panela especial de ferro ou tacho de cobre, chamada de caliero, era colocada a

água e o sal. Esperava-se a água começar a ferver, quando se juntava a farinha de

milho lentamente. O fubá escorria entre os dedos da mão esquerda, enquanto na mão

direita ficava uma pá de madeira, “mêscola”; com ela, mexia-se a polenta até obter

boa consistência, ficando sobre o fogo em média de uma hora. Ao adquirir boa

consistência, a polenta é retirada do fogo e despejada sobre um tablado de madeira,

o “panaro”; em seguida, é arrumada em forma de um bolo e uma pequena pá, a

“paleta”, já molhada em água fria, é passada sobre a polenta para deixá-la lisinha.

Era tradição cortá-la com barbante sempre no sentido das bordas para o centro e

depois servi-la. (PIFFAR, 2006).

Podemos observar que a mesma forma de preparo da polenta era feito na Colônia

Bella Vista, inclusive com os mesmos utensílios, variava muitas vezes a forma como se

pronunciava as palavras, mas o significado era o mesmo. O ritual de fazer a polenta e cortá-la

com o barbante era o mesmo, pois os italianos diziam que não podiam cortar a polenta com a

faca que tirava o sabor, era somente com o barbante. E a polenta era feita com o fubá amarelo,

mas depois veio outras variações como o fubá branco, produzido no Brasil.

Para Balhana, na mesa do colono italiano aparece a polenta simples, sem molho ou

acompanhamentos. Mas além da polenta apenas cozida, que se consumia em maior escala,

comia-se a polenta torrada (poenta brustolà), que substituía o pão.

11

Polenta torrada é a polenta simples que uma vez cortada em fatias é colocada sobre a

chapa ou grade do fogão até formar uma crosta torrada. Também é costume fazer

uma espécie de polenta doce (pinza), a qual é servida com o café da merenda. Leva

no seu preparo apenas fubá, açúcar, um pouco de leite ou água, e um ou dois ovos,

bem como uma pitadinha de bicarbonato. Misturados os ingredientes, a massa é

colocada em uma assadeira ou forno, ou ainda em uma frigideira sobre o fogo, e

com a tampa recoberta de brasas para assar. (BALHANA, 1978: 112-113).

D. Angelina Amábile Alessi10, lembra da pinza, ela faz referência a um bolo doce de

massa crescida que eles chamavam de pinza: “É o bolão de massa crescida. Em italiano

diziam - a pinza. A pinza é um bolão. Era um bolão de fubá, era a pinza, que dizia em

italiano”.

A polenta era tão comum nas famílias italianas que o primeiro alimento dado às

crianças era a polenta bem mole com leite. Elas comiam polenta com leite, de manhã, ao meio

dia e a tarde11. Era um alimento que sustentava. Se não comiam a polenta comiam a farinha de

milho com leite, uma variação do milho, o bijú. Na narrativa da Sra. Laura C. Bobato12 e seu

marido Davi Bobato, eles contam como era moída a farinha e feito o fubá:

Sr. Davi: [...] comiam feijão, plantavam o arroz, semeavam o trigo, plantavam milho

e dai fazia o fubá. Levava num moinho para moer aquele milho para fazer a polenta.

Sra. Laura: E tinha o monjolo, para fazer a farinha de milho. Eles punham o milho

num saco e dentro da água, água corrente, aquela água limpa, daí tiravam aquele

milho depois que tava 3-4 dias, enxugavam, daí macetavam no monjolo. E o

monjolo tinha uma parte que quando entrava a água ele baixava e socava lá. Depois

eles tinham um tipo de forninho [...] dai eles pegavam...

Sr. Davi: Eles ponhavam aquela farinha e tinha fogo embaixo e saia aquele bijúzão

embaixo. Nós até ia lá pra comer aquele bijú, ganhar aqueles bijú grande {riso}.

Não tem farinha melhor do que a de monjolo!

Primeiramente eles moíam a farinha em Irati, depois na colônia Bella Vista, uma das

famílias, os Moletta (ao lado do lago dos Moletta), construíram um moinho para moer o

milho. Dessa forma faziam a farinha de milho e o fubá para toda a colônia. A moagem

custava barato, era cobrada por quilo e os colonos tinham o direito de levar a casca do milho

10 Entrevista concedida a Cleusi T. Bobato Stadler pela Sra. Angelina Amábile Alessi, 85 anos, no dia

22/05/2014, na cidade de Imbituva/Pr. 11 Uma lembrança que não sai das minhas recordações da infância está relacionada à polenta. Quando já estava

freqüentando a escola, com uns 6 anos, eu e minha irmã levávamos para o lanche da tarde, o pão com doce. Mas

uma prima nossa levava polenta com queijo. Nosso maior prazer era trocar o pão com doce pela polenta com

queijo. Porque comer polenta, segundo nossos pais e avós, demonstrava o “ser italiano”. 12Entrevista concedida a Cleusi T. Bobato Stadler pela Sra. Laura Clementina Bobato, 84 anos, no dia

25/05/2014, na cidade de Imbituva/Pr.

12

para os seus animais. Levavam em torno de 5 a 10 quilos de milho e trocavam por 5 quilos de

fubá.

Além da polenta outro alimento bastante consumido pelos italianos era o macarrão.

Mas era um luxo poucas vezes permitido, no início da colônia. Segundo a Sra. Helena, o

macarrão já existia, mas era feito em casa. Algumas famílias o chamavam de “pasta”, outros

não. O macarrão era utilizado também nas sopas, principalmente na de feijão ou de legumes,

que eles chamavam de “menéstra”13. Além do cuque de massa crescida, um bolo doce

preparado com farofa por cima. Lembro todos os detalhes de minha mãe e nonna preparando

estes alimentos e inclusive ajudando-as a fazer todos os sábados o macarrão caseiro e o cuque,

para ter aos domingos e servir as visitas.

O macarrão eles faziam? O macarrão sempre existia. Mas feito em casa.

Eles chamavam de pasta, também? Não sei como chamavam o macarrão, pegava a

farinha, 3-4 ovo que queria, e água morna e batia com garfo, bem, depois amassava,

fazia aquela bola, pegava um pau redondo assim e espichava aquele roletão. Dai nós

amontoava bem e picava. Assim que eles faziam. E dai deixava secar? Secava,

aquela rodona, em cima de uma mesa com toalha ali e dai depois que tava meio

sequinha aquela massa, porque não podia deixar bem dura, tinha que ser uma

quantia, dai picava e fazia o macarrão, picava bem fininho pra sopa. Dai fazia sopa

de feijão com macarrão, sopa de arroz, com macarrão. Como se chamava a sopa de

feijão com macarrão? Era a menéstra? Menéstra! Aham, a sopa preta, com o feijão.

E o cuque, era a cucha que eles falavam? Era o cuque que nós falava, assim pegava

3-4 ovo que queria, açúcar, uma pitinha de sal, e leite e batia bem batidinho aquele,

depois ponhava farinha, amassava e deixava num latão, ponhava numa forma e

faziam um açúcar, com pouco de azeite doce, em cima, pra fazer esfarelar, fazia

assim o cuque. Era o cuque de massa crescida? De massa crescida, sempre existia

só aquele cuque, ninguém tinha como agora. Agora é só bolo e fazia uma folhona

assim, aquele cucão!14

Segundo a narrativa do Sr. Orlando Marconato, o macarrão era comida de domingo,

com carne de frango e a polenta. Eles nos conta que sua mãe fazia os chamados “panos de

13 A menéstra ou minestra é uma sopa feita com o caldo do feijão preto. Geralmente se faz com a sobra do feijão

do almoço. Amassava esse feijão, passava na peneira, formando um caldo grosso no qual se acrescentava arroz

ou macarrão e legumes se desejasse. Comiam essa menéstra com polenta. No início para os primeiros imigrantes

era a comida juntada como diziam, pois misturavam tudo numa panela só e faziam a sopa. 14 Entrevista concedida a Cleusi T. Bobato Stadler pela Sra. Helena Maria Dal Santo, 85 anos, no dia

03/06/2014.

13

macarrão”, que era uma massa enrolada para ser cortada e não podia furar ou esfarelar, senão

o macarrão não teria a mesma qualidade para o cozimento. Ele ainda possui o rolo de estender

o macarrão que sua mãe e nonna utilizavam.

Tudo feito macarrão na casa, era posto a farinha numa bacia, e quebrado os ovos ali

e ia mexendo e pondo os pouco de água ali e fazia aquela bola de massa, amassava

bem na mão ali na bacia, quando ela se juntava, que tava uma bola de massa ligada,

dai punha na mesa. Ainda tem o pau de estender macarrão aqui. Daí estendia na

mesa. Minha mãe fazia o pano de macarrão, fazia grande o pano e ficava fininho, era

dificil ela furá aquele pano de macarrão que furasse em algum lugar assim como

rasgasse. Daí fazia no sábado pra no Domingo comer uma bacia de macarrão com o

frango e a polenta. Era comida do domingo, o frango, a polenta e o macarrão.

A farinha para fazer o pão, o cuque vinha da mesma forma que o fubá para fazer a

polenta. Faziam o pão, a broa caseira, de acordo com a qualidade da farinha, se era de

primeira, segunda ou terceira qualidade. Claro que o pão branco, de farinha de trigo, só na

época da colheita do trigo, ou em ocasiões especiais, como festas, dias santos, ou casamentos.

Nos dias comuns era a broa de centeio, ou chamado o pão preto, como nos conta D. Helena:

E daí faziam pão em casa? Em casa, é. Daí moia o trigo, maiava na malhadeira. De

primeiro pegava uma ripa, um pau, outra vara mais curta e dai massetava no terreiro,

o trigo. Trigo e feijão também, saia lá no chão. Dava 3 ou 4 alqueire, só latada, 5-10,

era um caixãozão que eles mediam e ponhavam 5-6-7 saco e pro Irati, pro Irati com

os cavalinhos, carregado no carro e fazer aquela farinha. E dai fazia farinha de 3

tipos, de primeira, segunda e terceira. E dai nós fazia pão, fazia broa, daquele era

uma broa, tão boa!

Outros alimentos eram cultivados pelos colonos, principalmente os temperos, alho,

cebolas e espécies vegetais, alface, agrião, rúcula, repolho, vagem e principalmente o

radiche.15 Nas hortas dos descendentes encontramos também um cantinho para as ervas,

destinados aos chás utilizados pela medicina caseira, que aprenderam com suas nonnas, tais

como: alecrim, capim-cidreira, melissa, malva, tanchagem, boldo, espinheira-santa, carqueja,

hortelã e muitas outras espécies. As nonnas constantemente passavam suas receitas de chás

para as filhas e para a comunidade ajudando a acabar com muitas dores, quando não tinha

15 O radiche possui várias formas de escrita, podemos encontrar raditi, radite ou radiche. Existem também várias

espécies de radiche nas hortas dos descendentes de imigrantes italianos. A chicória é uma espécie de radiche que

eles cozinhavam, picavam bem e refogavam com cebola para comer com polenta.

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acesso à medicina tradicional. Outra espécie que existia constantemente nas casas dos

italianos é a arruda, pois segundo as nonnas, elas quando colocadas atrás da orelha, ajudavam

a tirar o ar do olho e o mau-olhado.

Outros alimentos eram consumidos pelos italianos. Eles ao se estabelecerem na

colônia começaram a comer carne de caça, depois compraram vacas, cabritos, porcos,

galinhas e foram formando seus potreiros de animais para a subsistência e também para a

venda. Tinham a disposição, leite, manteiga, queijo, ovos e verduras. Eles foram

influenciados, mas também influenciaram com seus hábitos alimentares. Na narrativa do Sr.

Orlando Marconato, vemos a influência da feijoada aprendida com os que já moravam na

região:

Daí quando era matado um porco era feito as lingüiça, daí fumaçeada a linguiça e

posto o toucinho na salmoura numa gamela de madeira, como eu tenho ainda aí, a

gamela. Na gamela posto 4 a 5 dias ali na salmoura, no sal. Daí erguer ele em cima

da vara, fumaçar aquele toucinho, dai faziam aqueles couro, tiravam aqueles couro

do toicinho assim, pra cozinhar no feijão, pra comer de mistura, as orelhas do porco,

os pés do porco.

A carne de porco era mais comum eles comerem no dia a dia, inclusive utilizando-se

da banha para o cozimento dos alimentos, mas a carne de gado era mais rara, geralmente para

dias de festas e casamentos, assadas no espeto de madeira que faziam das árvores do mato.

Para os italianos da Bella Vista, o vinho sim era um ponto de referência de suas

identidades. Faz parte da memória e das lembranças de seus descendentes como eram

cultivadas as videiras e feito a fabricação do vinho. Alguns ainda possuem os quintos de

fermentação do vinho e ainda produzem o vinho para sua comercialização. Na Itália o

consumo do vinho era privilégio das classes mais abastadas, mas na Colônia Bella Vista, o

cultivo das videiras e a fabricação do vinho passaram a ser propagados como símbolo

identitário dos italianos. Até hoje seus descendentes fabricam e comercializam na cidade de

Imbituva, o vinho feito pelos italianos.

Todos os entrevistados nos narram a fabricação do vinho e sua importância na Bella

Vista, mas a narrativa do Sr. Orlando Marconato é a mais completa.

15

Era feito aqui. O vinho eu conheci meu pai fazendo vinho aqui. Daí, depois que eles

estavam aqui, eu fiz também. Era colhido a uva e passado, limpado as uvinha verde

tudo, tirado as uva verde, as podre, que ficasse a uva limpa e dai passado na

máquina de roletinho pra partir tudo a uva, daí posto na tina, como eu tenho a tina aí.

Posto dentro da tina e de acordo como era a quantia de vinho, se desse cinco quinto

de vinho, no cálculo da medida, posto açúcar dentro e dai mexia quatro, cinco dia,

seis, duas, três vezes por dia, daí depois parava de mexer, que ele ficasse 8 dia, 7-8

dia. Ele subia pra cima, ele parava de ferver porque ele fervia de derramar se a

vasilha fosse pequena, daí ele parava de ferver, a gente ia lá e tirava um caitho, vê se

tava limpo, bonito, daí tava na hora de tirar. Tirava e punha no quinto. Ele ferve 40

dias, pra dai lacrar o quinto, se fosse para deixar guardado. Numa vasilha boa, bem

lavada, bem limpa. Dai, naquele tempo, garrafão não existia quase, existia litro,

garrafa. Daí ponha nas garrafas, nos litros, dai depois foi vindo o garrafão e daí

punha nos garrafão. Eu não faço, não tem mais parreira, tem umas parreira aí mas

não dá mais nada. Tudo eles faziam, a maioria deles tinham parreiral aí na colônia.

É o vinho e a polenta. No casamento o vinho era a bebida que tava em primeiro

lugar. Meu nonno e a minha mãe aqui eu ainda alcancei, eu era piá, eles não usavam

copo de vidro, usavam a tijelinha de louça. Daí você chegava aqui, ia te dá um vinho

pra tomar era na tijelinha de louça. Na tigela.[...]

A produção de vinho na colônia Bella Vista foi destaque no relatório apresentado ao

Sr. Dr. Carlos Cavalcanti de Albuquerque, Presidente do Estado do Paraná, do ano de 191216.

Neste relatório consta que a cultura do vinho era muito desenvolvida, existiam 200 mil pés de

videiras e exportavam anualmente a média de 500 pipas de vinho para Guarapuava,

Prudentópolis, Ponta Grossa e Imbituva. Os irmãos Santo Alessi e Antonio Alessi,

exportavam por ano 70 pipas de vinho, sendo que o preço do quinto do vinho era de 40$000

réis. A renda da safra de cada ano era de 100.000$000 réis.

A polenta e o vinho representam a reconstrução da identidade dos italianos da Ribeira

e Bella Vista, que é constantemente reafirmada pelos seus descendentes no seu cotidiano. As

práticas e alimentos do passado são transformados em símbolo de italianidade na atualidade.

Podemos perceber essas transformações na maneira como os primeiros imigrantes

faziam seu prato principal de alimentação – a polenta – e como hoje ela se reinventa e se

transforma numa Festa da Polenta, totalmente diferente da forma como era produzida, mas

também cria identidades, pois vai estabelecer os vínculos com seus descendentes.

16 Relatório apresentado ao Presidente do Estado do Paraná, Sr. Dr. Carlos Cavalcanti de Albuquerque, pelo Sr.

Ernesto Luiz de Oliveira, Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Indústria do Paraná, no

ano de 1912, onde o Inspector da Industria Vegetal, David de Souza Camargo, relata sua visita a Colônia Bella

Vista. Fonte: Arquivo Público do Paraná. p. 43

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Festas Gastronômicas: Festa da Polenta e Almoço Italiano

Os descendentes da Ribeira e Colônia Bella Vista, sempre se consideraram e

identificaram como italianos e queriam ser reconhecidos como tais. Através das práticas

culturais e cotidianas esses colonos podem conhecer sua história e serem reconhecidos em sua

italianidade.

Alguns descendentes dos colonos italianos estão organizando manifestações culturais,

como a Festa da Polenta, na comunidade do Pinho e o Almoço Italiano, na Ribeira. Através

destas festas os descendentes de italianos representam a identidade de seu grupo, de sua etnia

e as formas de adaptações que criaram ao se estabelecer em sua colônia. Buscam apresentar e

comercializar seus produtos agrícolas, objetos ornamentais, alimentação (vinho, lingüiças,

queijos, doces e bolachas), feitos artesanalmente pelas “nonnas e mammas”, assim como

apresentam, músicas e danças realizadas pelo grupo folclórico “Chiaro di Luna”, de Pinho de

Baixo.

Na Festa da Polenta, é realizada a representação do momento em que a “nonna”

despeja a polenta no panaro, bem como os trajes folclóricos e danças. São servidas somente

comidas consideradas italianas: polenta, macarrão, raditi, saladas, molhos, doces, e demais

representações italianas.

O almoço italiano realizado na comunidade da Ribeira foi organizado apenas duas

vezes, 2013 e 2014. A diferença é que no almoço italiano começa com uma missa na igreja

realizada pelo Bispo da Diocese de Ponta Grossa, com a participação dos “noninhos” da

comunidade e de todos os descendentes de italianos da Bella Vista e da Ribeira. Mas da

mesma forma que ocorre na festa da polenta, há a participação do grupo Chiaro di Luna como

também venda de vinho, alimentos produzidos na colônia (lingüiças, queijos, bolachas),

produtos agrícolas.

Conclusão

17

O presente artigo teve por objetivo destacar a alimentação italiana como um elemento

gastronômico de cultura, no caso a polenta, o vinho e o raditi, destacando-os como símbolo de

sua italianidade na Ribeira, Colônia Bella Vista e Pinho de Baixo.

Para os imigrantes italianos destas comunidades, em sua maioria da região do Vêneto,

as dificuldades de adaptação ao novo território e aos hábitos alimentares brasileiros

auxiliaram na formação deste grupo étnico. Passaram a se identificar como italianos ao

construírem sua identidade étnica. E nesta construção trazem consigo não só a esperança, mas

também, os hábitos alimentares, a gastronomia, com a polenta, a macarronada e o raditi, bem

como o consumo do vinho. E são justamente esses hábitos que resistem às transformações

ocorridas diante de uma nova vida. É na alimentação que encontram toda uma simbologia,

uma forma de identificação, de expressão cultural. Para eles, a polenta, o macarrão e o raditi,

também assumem a sua representatividade, pois principalmente a polenta, foi o alimento que

saciou a fome dos colonos ao começar uma nova vida. Hoje a polenta para os descendentes de

italianos tornou-se uma comida do dia-a-dia, mas também, uma comida típica, um elemento

simbólico que caracteriza o italiano, pois é através da memória que ela se mantém.

É a memória do grupo de descendentes dos italianos que dá continuidade a essa

tradição e fortalece a identidade do grupo. Ela não faz separação entre o passado e o presente.

Pois a memória individual se alimenta da memória coletiva e dão continuidade as tradições.

Por isso que a história oral, através das entrevistas, foi fundamental para entendermos o

significado da alimentação atribuído pelos italianos no seu cotidiano. Era muito comum os

entrevistados se referirem a polenta e ao raditi, como o único alimento a terem para consumir,

nos tempos de carência. E como eram adquiridos esses alimentos, sendo a polenta o único

alimento a dar inclusive as crianças quando pequenas. Percebemos desta forma o valor dado a

este alimento e a simbologia que ele representa para este grupo.

Quando recordam das nonnas e mammas fazendo a polenta e dos nonnos fazendo o

vinho é como se fossem transportados para o tempo presente, ultrapassando o passado. Essas

lembranças acabam transformando-se numa história do grupo contada por eles mesmos,

tornando-se a sua história. Junto com essas memórias, vem o valor simbólico dos

instrumentos utilizados para fazer a polenta como o tacho grande onde é feita a polenta, e a pá

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de madeira usada para mexer a polenta impedindo que ela embolotasse durante seu cozimento

ou os tachos, tinas e tinaços para fazer o vinho. Outro instrumento importante era o barbante

para cortar a polenta depois de pronta, porque a faca tirava o sabor daquela deliciosa polenta

feita com tanto carinho e dedicação para a família e amigos e a tijela onde se tomava o vinho.

É interessante observar que não foi só a figura das nonnas e mammas que se

destacaram nas entrevistas. São elas as responsáveis pela transmissão das práticas do fazer a

polenta, mas é a figura do nonno principalmente na Ribeira o responsável por transmitir o ato

de comer a polenta como uma tradição passada de uma geração para outra. As famílias que

ainda possuem pessoas mais idosas, como o nonno e a nonna, ainda continuam a fazer polenta

todos os dias, mas outras famílias já a fazem apenas uma ou duas vezes na semana,

acompanhada com algum tipo de molho e a polenta frita ou assada, somente quando é sobra

do dia anterior.

Os imigrantes italianos da Colônia Bella Vista e Ribeira faziam só a polenta, ela

acompanhada com molho e raditi, a polenta assada na chapa e a polenta doce, chamada de

pinza. A polenta frita, é um hábito da atualidade, feito pelos seus descendentes.

Os descendentes de italianos da Ribeira, Bella Vista e Pinho de Baixo, estão em busca

deste sentimento de pertencimento ao grupo italiano que conserva heranças do passado,

através da sua gastronomia, organizando as festas típicas dos italianos: Festa da Polenta e

Almoço Italiano. Ao realizarem estas Festas, participam, também, da manutenção desta

herança do passado o grupo folclórico Chiara di Luna. Recordam o passado, e encontram um

espaço de sociabilidade, onde famílias vão saborear a comida dos italianos e desfrutar de um

ambiente familiar, reforçando sua italianidade.

Ao oferecer o seu prato típico, a polenta, o raditi, a macarronada, estão demarcando

seu espaço e, ao mesmo tempo, recebendo neste lugar delimitado outros grupos. A identidade

italiana é então fortificada e destaca-se o seu valor simbólico.

A Festa da Polenta e Almoço Italiano representam momentos em que os descendentes

vênetos compartilham seus principais valores: Família, Trabalho, Religião e Alimentação,

com a comunidade. A alimentação através da polenta, do raditi da macarronada, transformou

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a Ribeira, Bella Vista e Pinho de Baixo em “lugares de memória”, como nos escreveu

Halbwachs, se tornou a história dos italianos de Imbituva.

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