coggiola, osvaldo - a crise global - uma abordagem do periodo de 2007 a 2012

21
Coggiola, Osvaldo - A Crise Global - uma abordagem do periodo de 2007 a 2012 A especificidade da fase atual da crise econômica, iniciada no segundo semestre de 2007 nos EUA, foi a de por em evidência suas consequências em todos os âmbitos da vida política e social, e nas relações internacionais. As suas principais abordagens, porém, possuem um caráter fragmentado. A opinião amplamente majoritária é de que a crise é uma perturbação de um cenário de normalidade. A crise iniciada na década de 1970 inaugurou um longo período de desaceleração da economia mundial, e teve o caminho pavimentado por uma série de crises financeiras: a crise da dívida externa dos países latino-americanos (1982), que se prolongou por toda a década; a crise bancária do sistema de poupança e empréstimos (savings and loans) dos EUA, em 1985, durante o governo Reagan, que custou US$ 500 bilhões; a quebra da bolsa de Nova York (1987);4 o estouro das bolhas acionária e imobiliária no Japão (1990), que fez desaparecer US$ 3,2 trilhões da circulação econômica internacional (5% do PIB mundial), e foi seguido de mais de uma década de recessão, estagnação e deflação no país; a recessão americana de 1990-1991, de oito meses de duração; a crise do sistema monetário europeu e o ataque à libra esterlina 1992) que fez a fama mundial do especulador (“investidor”) George Soros; a crise do México (1994-1995); a crise asiática (1997); a quebra do fundo especulativo Long Term Capital Management, LTCM (1998) nos EUA; a crise russa (1998); a desvalorização do real no Brasil (1999); a crise da Turquia (2001); a crise da Argentina (2001- 2002); o estouro da bolha acionária do Nasdaq (a Bolsa de Valores das empresas de “novas tecnologias”) e a recessão nos EUA (2000- 2001). A partir de 1970, tivemos 17 “eventos de crise” em três décadas e meia, um a cada dois anos, em média; as crises passaram, aparentemente, a ser a norma da evolução econômica mundial, sendo a exceção o sexênio compreendido entre 2002 e 2007. A excepcional expansão econômica desse período concluiu numa crise sem precedentes, surpreendente pelo seu volume, profundidade e

Upload: remo-bastos

Post on 31-Dec-2015

7 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Coggiola, Osvaldo - A Crise Global - Uma Abordagem Do Periodo de 2007 a 2012

Coggiola, Osvaldo - A Crise Global - uma abordagem do periodo de 2007 a 2012

A especificidade da fase atual da crise econômica, iniciada no segundo semestrede 2007 nos EUA, foi a de por em evidência suas consequências em todos os âmbitosda vida política e social, e nas relações internacionais. As suas principais abordagens,porém, possuem um caráter fragmentado.

A opinião amplamente majoritária é de que a crise é uma perturbação de um cenário de normalidade.

A crise iniciada na década de 1970 inaugurou um longo período de desaceleração da economia mundial, e teve o caminho pavimentado por uma série de crises financeiras: a crise da dívida externa dos países latino-americanos (1982), que se prolongou por toda a década; a crise bancária do sistema de poupança e empréstimos (savings and loans) dos EUA, em 1985, durante o governo Reagan, que custou US$ 500 bilhões; a quebra da bolsa de Nova York (1987);4 o estouro das bolhas acionária e imobiliária no Japão (1990), que fez desaparecer US$ 3,2 trilhões da circulaçãoeconômica internacional (5% do PIB mundial), e foi seguido de mais de uma década de recessão, estagnação e deflação no país; a recessão americana de 1990-1991, de oito meses de duração; a crise do sistema monetário europeu e o ataque à libra esterlina 1992) que fez a fama mundial do especulador (“investidor”) George Soros; a crise do México (1994-1995); a crise asiática (1997); a quebra do fundo especulativo Long Term Capital Management, LTCM (1998) nos EUA; a crise russa (1998); a desvalorização do real no Brasil (1999); a crise da Turquia (2001); a crise da Argentina (2001-2002); o estouro da bolha acionária do Nasdaq (a Bolsa de Valores das empresas de “novas tecnologias”) e a recessão nos EUA (2000-2001).

A partir de 1970, tivemos 17 “eventos de crise” em três décadas e meia, um a cada dois anos, em média; as crises passaram, aparentemente, a ser a norma da evolução econômica mundial, sendo a exceção o sexênio compreendido entre 2002 e 2007. A excepcional expansão econômica desse período concluiu numa crise sem precedentes, surpreendente pelo seu volume, profundidade e abrangência.

IMPORTANTE: COMO COMEÇOU A CRISE

A crise começou a evidenciar-se nos países desenvolvidos no final da década de 1960, e ficou declarada em 1971, com o calote internacional dado pelos EUA ao declararem que o dólar nãoseria mais conversível em ouro. A criação da reserva comum de ouro, em 1961, já livrava os EUA de parte da responsabilidade pela manutenção do preço do metal a 35 dólares a onça troy. O passo seguinte foi a renúncia unilateral pelos EUA da obrigação de prover ouro aos compradores privados ao preço de 35 dólares a onça, em 1968. Três anos depois, produziu-se a decisão de fechar o guichê do ouro também aos compradores oficiais (institucionais). Os EUA renunciaram igualmente a suas obrigações informais como país de moeda de reserva ao obstruir o acesso aos seus mercados de capital; a imposição de um aumento tarifário de 10% sobre as importações, em agosto de 1971, mudou as regras que governavam o comércio internacional (a parte exportada da produção mundial passara de 8,5% para 15,8%, entre 1955 e 1974). As reservas em dólar dos demais países, cujos saldos comerciais favoráveis com os EUA tinham crescido espantosamente nas três décadas precedentes, foram transformadas em títulos submetidos à política monetária dos EUA, que repassaram, usando seu domínio da única moeda de troca mundial, a sua própria crise para oTerceiro Mundo e para seus concorrentes no mercado mundial, especialmente para Europa e o Japão.

Page 2: Coggiola, Osvaldo - A Crise Global - Uma Abordagem Do Periodo de 2007 a 2012

A partir de 1973/74, a crise do petróleo (aumento espetacular dos preços) tornou evidente a existência de uma crise econômica geral, e lançou as bases, através dos mercados secundários da divisa americana, para o espetacular desenvolvimento do capital especulativo. [...] Entre 1971 e 1975 aprofundou-se o desemprego em todos os países centrais, sinalizando a desaceleração da economia em geral.

Dois processos se desenvolveram paralelamente a partir de meados dos anos 1970, de maneira ora convergente, ora, cada vez mais, contraditória: a valorização cada vez mais fictícia do capital através da especulação financeira, e a reestruturação produtiva, destinada a aumentar o controle e a exploração do trabalho.

O declínio dos empregos no setor da produção fez parte de uma tendência de longo prazo para a substituição de seres humanos por máquinas no local de trabalho. Esse aumento global do desemprego, aparentemente irreversíve l, esteve ligado à operação do sistema financeiro internacional. As mudanças no sistema financeiro mundial, ocorridas a partir do final da década de 1970, exacerbaram os problemas do desemprego global. A primeira delas foi o aumento da mobilidade internac onal do capital como resultado do relaxamento dos controles estatais, o chamado “neoliberalismo”. Este iria, inicialmente, promover um período de crescimento econômico sem precedentes, seguido de uma crise proporcional a esse mesmo crescimento.

As contradições precedentes, porém, não tinham sido resolvidas, sua resolução foi adiada, dando uma sobrevida ao processo de acumulação com predomínio da valorização financeira do capital, que gerou as condições para que as contradições reaparecessem, agravadas. Diversos subprodutos financeiros surgiram, como os derivativos sobre empréstimos imobiliários, que foram empacotados e distribuídos por “fundos de investimento”, perfazendo uma espiral de valorização fictícia do capital que encontrou rapidamente seus limites.6 Na década de 1990, os bancos centrais de vários países utilizaram seus recursos para prestar socorro ao capital financeiro falido, começando pelo México em 1994, onde o governo norte-americano (Clinton) foi obrigado a usar U$ 47 bilhões tirados do tesouro norte-americano para conter o efeito em cadeia da onda especulativa contra os “países emergentes”.

Em 1997, na Ásia, a crise atingiu as moedas da Coréia do Sul, Filipinas, Indonésia e Malásia, que receberam US$ 60 bilhões do FMI. Em 1998, na Rússia, o mesmo FMI entrou com um pacote de U$ 22 bilhões, diante da quebra do país, com a desvalorização do rublo e o calote nos pagamentos externos. Nos EUA, houve a quebra do Long Term Capital Management, um dos maiores fundos de investimento. No mesmo ano, o Brasil sofreu um ataque especulativo, tendo recorrido também aoFMI, que emprestou US$ 41 bilhões supostamente para defender o “câmbio fixo” (o empréstimo foi na verdade usado para salvar os “investidores” expostos no Brasil, financiando a fuga de capitais). Em setembro de 2001, o episódio das Torres Gêmeas. paralisou o mercado mundial. Os bancos centrais injetaram U$ 230 bilhões para dar “liquidez” ao mercado, isto é, para evitar a falência generalizada. E, em dezembro de 2001, explodiu a crise (calote geral) da Argentina. Os “tigres asiáticos” (Cingapura, Hong Kong, Coréia do Sul e Taiwan)tinham em comum o elevado grau de investimento e de poupança, além de mão de obra qualificada, e basearam seu crescimento na poupança interna e na produção de exportáveis. Posteriormente, os investimentos foram alavancados pela entrada de investimento estrangeiro direto. O regime de câmbio fixo atrelado ao dólar estimulava a tomada de empréstimos, mas aumentava a exposição dos países. Quando as exportações caíram devido à valorização das moedas locais, e à recuperação da economia norteamericana, o capital estrangeiro iniciou um processo de saída. A crise explodiu, em 1997,com a flutuação da moeda tailandesa e terminou com a Coréia do Sul; em Hong Kong,a taxa de juros chegou a atingir 200% anuais na tentativa de conter a saída de capitais.

Page 3: Coggiola, Osvaldo - A Crise Global - Uma Abordagem Do Periodo de 2007 a 2012

Na Rússia, em 1998, o processo de abertura e liberalização econômica elevou o déficit orçamentário, que tinha que ser pago com privatizações e elevação da taxa de juros. A queda do preço das commodities, e a desmontagem de parte do parque industrial devido ao fim dos subsídios estatais, além de problemas internos com corrupção, aumentaram o risco para os investidores estrangeiros. O governo russo acreditava ser capaz de manter o câmbio fixo esperando uma recuperação dos preços das commodities, mas foi obrigado a decretar moratória por 90 dias quando surgiram denúncias de corrupção envolvendo o sumiço de US$ 5 bilhões das verbas destinadas pelo FMI e Banco Mundial para combate da crise. As bolsas russas caíram 75%, os bancos não conseguiram atender os depositantes, o Banco Central não conteve a fuga de capitais e apenas queimou reservas internacionais, levando a decretação de 90 dias de moratória, e redução de mais de 25% do PIB de 1999 em relação ao ano de 1998.

A crise russa elevou o Brasil ao status de “bola de vez”, mas a situação do país já vinha se degradando devido à manutenção de juros elevados para atração de capitais estrangeiros; desigualdade de renda e desemprego; abertura comercial generalizada e moeda valorizada, prejudicando as exportações e fraco crescimento mesmo com a renovação do parque industrial; corte de despesas públicas para geração de superávits para financiar a dívida pública interna e externa. O regime de câmbio fixo teve que ser alterado, sendo criado um “regime de bandascambiais” e realizada uma maxidesvalorização do real.

A crise da Argentina, em finais de 2001, foi emblemática pelo fato do país representar um modelo de neoliberalização e de total curvatura ao modelo pregado pelo “Consenso de Washington”: liberalização da economia, privatização e conversibilidade da moeda. A política que mantinha o câmbio fixo e lastreava os passivos monetários à existência de reservas em dólares foi indicada como responsável pela vitória sobrea hiperinflação, além de permitir crescimento conside ável e conseguir vultosos fluxos de investimentos externos. A crise dos países emergentes, entretanto, agravou a vulnerabilidade do país, e a desvalorização do real, moeda do principal parceirocomercial, pôs em xeque não só a economia argentina, mas a continuidade do Mercosul.A incapacidade de pagamento do país tornou-se evidente e os saques bancários, fuga de capitais e de divisas levaram a falência do sistema bancário em dezembro de 2001, com o confisco das poupanças e uma explosão social devido ao aumento drástico do desemprego e miséria.

A crise-revolução na Argentina não foi uma exceção mundial, mas o ponto avançado de um processo geral de aprofundamento das contradições capitalistas internacionais e da luta de classes. A crise mundial - do craque asiático de 1997 à desvalorização da moeda brasileira em janeiro 1999 - levou ao refluxo massivo de capitais dos mercados emergentes, culminando no calote da dívida argentina. O default da dívida pública foi de US$ 155 bilhões, o maior calote soberano da história: a soma total do calote superou US$ 260 bilhões. O retrocesso do Mercosul foi impressionante: o PIB em dólares da região caiu 40%, a soma de seus “riscos-país” chegou a 10.000 pontos, o financiamento externo foi interrompido, o endividamento interno e externo atingiu 500 bilhões de dólares. Em 2002, o comércio entre os quatro países do bloco chegou aos 23 bilhões de dólares, quase 50% abaixo do pico de 41 bilhões de dólares de 1997. A deserção do FMI na crise argentina eliminou o “condão mágico” que, desde a crise mexicana de 1994 (passando pela asiática de 1997, a russa de 1998 e a brasileira de 1999) tinha impedido a generalização da crise financeira.

A crise finalmente atingiu o centro da economia mundial, no mercado das ações das empresas de “novas tecnologias”, as dotcom, que, entre 1998 e 1999, totalizou crescimento de US$ 5 trilhões sem crescimento similar dos lucros das empresas, que muitas vezes sequer tinham ativos reais, representando apenas projetos de negócios montados para IPO ou venda. O estouro da bolha levou ao derretimento de US$ 4 trilhões de ativos financeiros, amplamente repercutidos na redução de investimentos e na desaceleração da economia americana no ano seguinte, potenciada pelos

Page 4: Coggiola, Osvaldo - A Crise Global - Uma Abordagem Do Periodo de 2007 a 2012

atentados de 11 de setembro de 2001 e o fechamento temporário dos mercados financeiros. A crise das dotcom levou à deterioração do crédito, inadimplência no crédito imobiliário, falências pessoais e deflação global. O FED respondeu com corte de juros de cinco pontos percentuais, levando a taxabásica para 1.75% a.a. Nesse momento, eclodiram os episódios de fraude de balanços e falência da Enron, maior vendedora de energia americana, e da Worldcom. Diante da ameaça de propagação das falências, o governo adotou políticas agressivas de aquecimento interno e multiplicador de renda através do setor imobiliário, com redução de juros e nas despesas financeiras. Tais políticas foram decisivas para engendrar um período de elevado crescimento econômico entre 2002 e 2007.

Na fase final de uma crise, a rentabilidade só se recompõe se um processo de depuração de quebras e fusões “limpa” o mercado das empresas menos lucrativas. Na crise pós-1970 não se produziu um craque geral tipo 1929, mas a somatória dos colapsos econômicos acontecidos em quase todos os países periféricos, e em segmentos das economias centrais, pode comparar-se com a “Grande Depressão”. A massificação do desemprego, as ondas de fusões, a reestruturação forçosa de todas as empresas, evidenciam a consumação de um grande processo de perdas, falências e trocas depropriedade. No pós-guerra houve postergação do “saneamento” dos capitais obsoletos, com medidas de resgate instrumentadas pelos Estados.

Os auxílios estatais são habitualmente outorgados aos bancos em perigo, mas também mantêm em pé empresas devedoras e insolventes. Através destes salva vidas demarca-se a crise à órbita financeira e se freia sua extensão à esfera produtiva. A desvalorização de capitais excedentes fica assim adiada, mas também se neutraliza a recuperação plena de taxa de lucro. As fortes convulsões financeiras que se sucederam periodicamente desde o craque da Bolsa de Nova York de 1987 (desvalorizações europeias, Baring Brothers, insolvência no Japão, “efeito tequila” mexicano, criseasiática) popularizaram a interpretação da crise como um fenômeno primordialmente especulativo. Partindo da crítica ao “inchaço da bolha”, convocou-se a “disciplinar o capital financeiro” e a “controlar os movimentos especulativos internacionais”. O objetivo seria impedir que o “capital industrial são” continuasse asfixiado pela “ociosidade financeira” da “economia-cassino”. Produziu-se então uma sequência de crises econômicas, interrompidas por “recuperações” frágeis e curtas. Para confrontar essa tendência, o capital global levou a níveis recordes a acumulação de capital, com elevação das taxas de exploração da força de trabalho (aumento da produtividade) e a potenciação de novas crises. O movimento acelerado surgia da própria crise do capital, e da tentativa de saída através do aumento da sua composição orgânica, aumentando a taxa de mais-valia e, portanto, a taxa de lucro de cada capital, acionando o mecanismo que produz a queda da taxa média de lucro. O movimento principal foi, porém, a valorização fictícia do capital.

A crise (econômica), por outro lado, sendo parte orgânica do ciclo do capital, não é “autônoma”, isto é, não possui completa independência das estruturas institucionais do Estado capitalista, nem das lutas políticas e/ou de classe. Ou seja, as crises possuem sua própria história. As ações e decisões de seus protagonistas influenciam seu desenvolvimento e desfecho. As análises conjunturais, sem deixar de ter importante valor indicativo, se tornam incompreensíveis se não situadas numa perspectiva histórica de longa duração, e de abordagem historicamente comparada e multilateral. A fase atual da crise econômica mundial já produziu terremotos sociais sem precedentes nas sete décadas de pós-guerra, e está também produzindo abalos políticos e geopolíticos através dos quais se processa, potencial e gradativamente, a passagem para uma novaera histórica.

A década de 1990 se caracterizou pela chamada “globalização”, marcada basicamente por: 1)Uma nova liberdade para os fluxos internacionais de capital; 2) A incorporação das antigas “economias socialistas” (URSS e Leste europeu, em primeiro lugar, depois, decisivamente, a China) ao mercado mundial capitalista. No entanto, a reestruturação e “relocalização” capitalista tropeçou nos limites do mercado mundial, revelados progressivamente ao longo da década, que não permitiram realizar

Page 5: Coggiola, Osvaldo - A Crise Global - Uma Abordagem Do Periodo de 2007 a 2012

os níveis de taxa de lucro alcançados de maneira sustentável. Depois de um início eufórico, a década de 1990 foi pautada por crises financeiras inicialmente localizadas, depois cada vez maisprofundas e abrangentes.

O principal efeito da “mundialização” (outro neologismo para a chamada “globalização”) foi o desenvolvimento da “economia do rentista (rentier) internacional” ou “Estado assistencial do rentista”: os Estados se endividaram tomando grandes somas emprestadas de instituições financeiras para pagar juros aos rentistas a taxas estabelecidas por outro braço do governo, os bancos centrais. O acúmulo de grandes dívidas públicas conferiu aos interesses financeiros e bancários o poder de ditar a política social e econômica, processo originado na sobreacumulação de capital. Existia um excesso de capital que não conseguia valorização nos moldes “tradicionais”, isto é, por meio da produção crescente de valores, com posterior venda/realização da maisvalianeles contida, em mercados também em expansão. Era preciso encontrar outra esfera para que esse capital produzido em excesso conseguisse valorizar-se.

O processo não era novo, remonta na verdade até o século XIX. Nova era, sim, sua extensão. Quanto mais longa a expansão econômica mundial (e a do segundo pós-guerra foi a mais longa da história da economia capitalista mundial) mais difícil seria para os capitais encontrarem setores em que a composição orgânica do capital fosse mais baixa, portanto mais lucrativos. A concorrência capitalista acentua também a queda nos preços. Quando o valor das mercadorias cai, isso obriga o capitalista a acentuar a extração de mais-valia, limitada pela redução do número de trabalhadores(redução por unidade de capital, não necessariamente em termos absolutos), resultado da adoção de técnicas mais modernas na produção. A diminuição da realização dos lucros não aparece de imediato; é primeiramente um montante de capitais que não serão mais reinvestidos na produção, devido à baixa rentabilidade, que criam um entrave para a reprodução. Esses capitais, desviados do setor produtivo, passam a agir, cada vez mais, de forma especulativa.

No contexto mundial, a apropriação privada do conhecimento, sustentada por meio da imposição do sistema de patentes, aumenta também a defasagem tecnológica entre países periféricos e centrais. A prevalência dessa lógica de funcionamento atua poderosamente na formação de oligopólios e reserva aos países periféricos o papel de fornecedores de matérias-primas e produtos semiacabados, transformando-os em permanentes compradores de tecnologia. A partir de 1994, os acordos viabilizados sob os auspícios da Organização Mundial de Comércio (OMC), referentes a tarifas e trocas e a direitos de propriedade intelectual, são característicos da ordem internacional. Osistema mundial de patentes é um instrumento de controle da ciência e da tecnologia pelo capital, que impede o conhecimento público e a implementação de avanços científicos, privatiza recursos naturais, especialmente nos países periféricos, e faz proliferar um número infinito de patentes inúteis, ou apenas destinadas a exercer controle de determinada área científica ou tecnológica. O novo peso adquirido no mercado mundial por alguns países que se encontravam na sua periferia ou fora dele (os chamados “emergentes”) não eliminou nem atenuou esses problemas, ao contrário,os acentuou, acrescentando à espionagem científica e industrial a questão da “pirataria”, que expressam as contradições da acumulação capitalista e da sua tendência a resolvêlas por meios ilegais, violentos e até bélicos.

Quanto à “governança neoliberal”, é certo que, no período que antecedeu 2007, saíram cada vez mais de cena as despesas governamentais de caráter anticíclico. Mas os bancos centrais e as instituições multilaterais sustentadas com dinheiro público estiveram sempre presentes para garantir a valorização da riqueza privada. Para Paulo Nakatani: “A expansão só foi possível através da transferência de mais-valia produzida em todo o mundo e pela gigantesca expansão do capital fictício, o que mascarou a pressão decrescente da taxa de lucro. Essa é uma das razões pela qual a reduzida taxa de juros nos países capitalistas desenvolvidos como os EUA, Japão e UniãoEuropeia, na última década, não foi capaz de relançar a atividade produtiva. Mesmo as tentativas de

Page 6: Coggiola, Osvaldo - A Crise Global - Uma Abordagem Do Periodo de 2007 a 2012

uma política keynesiana, no Japão, de tornar negativa a taxa real de juros e distribuir renda para estimular a demanda, não foram suficientes para tirá-lo da estagnação. O capital monetário disponível dirigiu-se para a obtenção de ganhos fictícios nos mercados financeiros internacionalizados, mas não deixou de tentar se materializar, principalmente através das fusões e aquisições e das privatizações nos países subdesenvolvidos”. O capital fictício é postulado pelo autor como sinônimo do capital financeiro, para introduzir a (questionável) categoria de “ganho fictício”.

[…] sempre, após uma fase de crescimento, se produz um momento de crise, depois do qual o capitalismo consegue reconstruir novas bases para um novo processo de acumulação, numa sequência infinita, uma espécie de “eterno retorno” da prosperidade (onde subjaz a ideia das crises como eventos localizados, isolados e conjunturais, desequilíbrios momentâneos em um sistema que prontamente se restabeleceria). O caráter histórico do capitalismo desaparece nessa concepção “cíclica” (sendo às vezes o próprio marxismo reduzido a uma mera teoria dos ciclos econômicos), impedindo compreender o caráter diferenciado das crises econômicas como manifestação do declínio da própria produção capitalista. A causa última das crises é a contradição entre o caráter cada vez mais social da produção e o caráter cada vez mais privado da apropriação capitalista.As alterações da última década do século XX na estrutura da riqueza capitalista resumiram-se em: 1) O maior peso da riqueza financeira na riqueza total; 2) O poder crescente dos administradores de ativos mobiliários (fundos mútuos, fundos de pensão, seguros) na definição das formas de utilização da poupança e do crédito (para Aglietta e Berrebi, a atual fase do capitalismo “permite a uma elite financeira, no topo da hierarquia profissional das grandes empresas e das profissões jurídicas e financeiras associadas, capturar a maior parte dos ganhos de produtividade”); 3) A generalização, na maioria dos países, da abertura das contas de capital, dos regimes de taxas flutuantes e do uso dederivativos (que têm o propósito de limitar, assumir ou transferir determinados riscos); 4) As agências de classificação de risco assumiram o papel de tribunais de julgamento da qualidade das políticas econômicas.

A finança direta e “securitizada” (a “securitização” consiste em transformar os créditos de posse das instituições financeiras em títulos negociáveis) ganhou importância central. A desregulamentação rompeu os diques impostos à ação dos bancos comerciais, que voltaram a operar como supermercados financeiros. Essas formas tornadas autônomas “liberam” capital produtivo, que antes deveria gastar tempo nas funções de comércio e de financiamento, ao mesmo tempo em que reduzem o tempo de rotação do capital global, permitindo uma maior produção de mais-valia por capital aplicado, elevando a taxa média de lucro.

As formas clássicas do capital fictício, analisadas por Marx em O Capital, são a dívida pública e as ações. A primeira diz respeito a títulos que representam um volume de dinheiro, emprestado originalmente ao Estado, em função de gastos realizados no passado. Como o próprio Estado não financiou esses gastos, naquele momento foi obrigado a lançar títulos de dívida pública. Trata-se de capital fictício, pois os títulos representam capital gasto no passado; a soma emprestada originalmente ao Estado já não existe. A segunda forma clássica são as ações, que representam direito sobre a apropriação futura da mais-valia, e se constitui sobre a expectativa/especulação de um lucro (ou dividendo) futuro. O valor desses papéis oscila em função das flutuações das taxas de juros de curto prazo; geralmente, a cotação dessas ações é superior ao valor do capital produtivo em que foi transformado o dinheiro, e oscila com relativa independência especulativa frente a ele.

Essas oscilações e essa independência aumentaram de modo espetacular depois da crise de meados da década de 1970. A etapa seguinte, que se desenvolveu principalmente a partir de 2002, consistiu em “fusionar” certo número de créditos para fazer deles uma linha de obrigações negociáveis. Os títulos assim “manufaturados” podem ser vendidos nos mercados, em pequenos pacotes, aos diversos investidores institucionais ou fundos especulativos que quiserem comprá-los. Na

Page 7: Coggiola, Osvaldo - A Crise Global - Uma Abordagem Do Periodo de 2007 a 2012

proporção em que crescia o apetite pelo risco, os rendimentos caiam de forma generalizada. Os investidores corriam para os mercados onde os diferenciais ainda eram atraentes, fomentandoo chamado carry trade entre os ativos de baixo rendimento dos países centrais e o rendimento mais elevado dos países periféricos. A riqueza “de papel” passou a se multiplicar de modo relativamenteindependente da valorização dos ativos produtivos, das chamadas “variáveis reais”, mas se trata de um processo em que todos os atores estão envolvidos, inclusive a “corporação produtiva” que incorporou a meta financeira em seus objetivos. A nova era passou a caracterizar-se pela reprodução conjunta produtivo/ especulativa do capital. Cada capitalista passou a reproduzir, conjuntamente, seu capital de forma produtiva e também financeira. Não existe mais a figura do capitalista industrial puro, contra o qual estaria oposto um puro especulador. Eles se interpenetram e, no limite, são um só.

O capitalista industrial (onde existisse só com seu capital aplicado à indústria) é levado a, de forma crescente, aplicar suas sobras de caixa, seu capital de giro, em atividades financeiro-fictícias (fundos de investimento, dívida pública, ações, derivativos, hedge) para aumentar a taxa de lucro global do seu negócio. Logo em seguida, não serão mais apenas as “sobras”, mas a própria decisão dessa repartição, acumulação produtiva/ acumulação financeira, que será condicionada pelas condições da reprodução/ rentabilidade financeira. Uma vez construída essa máquina de valorização financeira, ela tende a permanecer e se fortalecer, alterando as condições de reprodução ampliada.Ou seja, nem mesmo um novo período de acumulação produtiva “virtuosa” levaria ao desmonte dessa máquina especulativa. Pelo contrário, sua permanência é critério cada vez mais importante do cálculo da valorização global de cada capital, e fator que permite a reprodução do capital.

Os mercados de capital executaram cada vez mais as funções de intermediação do sistema bancário. Este, por sua vez, migrou do terreno dos bancos comerciais, que concedem empréstimos de longo prazo a clientes e mantêm relacionamento duradouro com a clientela, para atividades típicas de bancos de investimentos. Uma série de novos produtos financeiros complexos foram “derivados” dos tradicionais títulos, ações, commodities e câmbio. Assim nasceram os “derivativos”, dos quais os mais conhecidos são opções, futuros e swaps.

A “revolução informática” na computação e nas comunicações permitiu a criação de transações complexas, especialmente de produtos derivativos, e a negociação, 24 horas por dia, de enormes volumes de ativos financeiros. Surgiram novos atores, especialmente fundos de hedge e fundos privados de investimento em participações.[...]Os fundos de hedge desempenham as funções clássicas de especulador e arbitrador (aquele que explora desníveis entre mercados), em contraste com os tradicionais fundos de longo prazo, como os fundos mútuos, cujos recursos sãoinvestidos em ações ou bônus.

crise de 2008 - subprime

O governo norte-americano decidiu intervir com planos de aquecimento da economia, para evitar um efeito dominó que atingiria as empresas de todo o mundo: adotou políticas de aquecimento do mercado interno, com “efeito multiplicador de renda”. O setor escolhido para a realização dos incentivos foi o setor imobiliário, que recebeu políticas de redução na taxa de juros e nas despesas financeiras, além de induzir os intermediários financeiros a incentivar os clientes a investir no setor através de garantias do governo. Os investidores internos e externos (principalmente bancos)viam segurança em investir em um setor que possuía garantias do governo dos EUA. Com este sistema operante, o mercado de crédito imobiliário foi expandido para uma “demanda reprimida” de baixo poder aquisitivo. O lastro destes empréstimos concedidos a partir do plano do governo, oscréditos ditos subprime, era realizado totalmente em títulos negociáveis no mercado financeiro. Estes títulos eram “securitizados” e posteriormente “derivados” em intermináveis graus no mercado de valores norte-americano. A “securitização” permitiu aos títulos sua transformação em títulos

Page 8: Coggiola, Osvaldo - A Crise Global - Uma Abordagem Do Periodo de 2007 a 2012

livremente negociáveis, que passaram a ser vendidos para outros bancos, instituições financeiras,companhias de seguros e fundos de pensão pelo mundo afora, sistema julgado com o mais alto patamar de segurança pelas agências mundiais. A economia norte-americana conheceu um boom na primeira década do novo século.

Com a redução da taxa de juros e, especialmente, com a securitização, que “difundia” o risco para o mercado, o crédito ao consumidor passou a crescer. Entre 2000 e 2005, o valor de mercado de imóveis cresceu mais de 50%, e houve um boom de novas construções. Metade do crescimento do PIB norte-americano no primeiro semestre de 2005 esteve ligado ao setor imobiliário, fosse diretamente, por meio de construção de casas e consumo relacionado, como compra de mobília nova, ou indiretamente, pelo consumo com o dinheiro obtido com o refinanciamento de hipotecas. Foi verificado um aumento vertiginoso nos valores dos imóveis de 2004 para 2007, com taxa decrescimento anual superior a 10%. Ao se registrarem elevações tão grandes nos preços dos imóveis, as dívidas contraídas também aumentavam, tornando as hipotecas mais longas ou mais caras aos bolsos dos clientes. Os empréstimos imobiliários feitos por instituições americanas foramrevendidos para financistas organizados em fundos de investimento, fundos de pensão e hedge funds, que encontravam garantia nas prestações dos imóveis e, em último caso, no próprio valor dos imóveis, que passaram a se elevar consideravelmente com a especulação. Uma “inovação” teve lugar quando a operação passou a ocorrer com hipotecas para tomadores de “alto risco” – os subprime borrowers. O percurso da “inovação financeira” tomou rumo mundial sob o comando dos “grandes atores do mercado”. Os empréstimos inicialmente eram reagrupados em títulos caucionados em hipotecas (Mortgage-Backed Securities – MBS) que possuiam um mercado secundário altamente líquido e dinâmico nos Estados Unidos. […] financeiras dos bancos de investimento eram confeccionadas para clientes específicos, nunca comercializadas abertamente. Segundo Richard Beales, “se colocou a questão sobre se de fato hedge funds, investment banks e até fundos de pensão e grupos de seguro sabiam o quanto valiam os títulos que eles detinham”.

O boom interno dos EUA continuou, baseado na expansão do mercado imobiliário. [...] A desregulamentação acelerada das décadas de 1990 e 2000 permitiu o crescimento rápido das empresas independentes de empréstimos hipotecários (a Federal Reserve reconheceu que não podia fiscalizá-las ou controlá-las). Em sentido amplo, subprime (do inglês subprime loan ou subprime mortgage) é um crédito de risco, concedido a um tomador que não oferece garantias suficientespara se beneficiar da taxa de juros mais vantajosa (prime rate). Em sentido mais restrito, o termo é empregado para designar uma forma de crédito hipotecário (mortgage) para o setor imobiliário, surgida nos Estados Unidos e destinada a tomadores de empréstimos que representam maior risco. Esse crédito imobiliário tem como garantia a residência do tomador e, muitas vezes, vinha acoplado à emissão de cartões de crédito ou a aluguel de carros. Subprime é a taxa de juros aplicada a pessoas com crédito ruim. As características desses empréstimos são cruéis. O tomador não precisa comprovar renda, seus juros são mais altos (no mínimo 2% a mais, em relação às taxas prime) e, frequentemente, lhe eram oferecidas prestações menores nos dois primeiros anos. Dessa forma, reduzia-se a inadimplência no início e deixava o tomador sem condições de pagar depois. Não era um mau negócio para os bancos, desde que o preço das casas continuasse aumentando”. O subprime era, na verdade, um sistema de confisco das pequenas poupanças e da população mais pobre.

No caso dos créditos subprime,30 a taxa inicial podia ser atraente (teaser rate), ou seja, inferiorà taxa fixa de um empréstimo normal. Para os credores, os empréstimos subprime eram considerados como individualmente arriscados - mas, coletivamente, seguros e rentáveis.A estimativa de rentabilidade baseava-se em uma hipótese de alta regular do preço dos imóveis, o que vinha acontecendo nos EUA desde 1945. Assim, se um devedor se tornasse inadimplente, era sempre possível revender a propriedade com lucro. Essas dívidas só eram honradas mediante sucessivas “rolagens”, o que foi possível enquanto o preço dos imóveis permaneceu em alta. Essa

Page 9: Coggiola, Osvaldo - A Crise Global - Uma Abordagem Do Periodo de 2007 a 2012

valorização contínua dos imóveis permitia aos mutuários obter novos empréstimos, sempre maiores, para liquidar os anteriores, em atraso - dando o mesmo imóvel como garantia. As taxas de juros eram pós-fixadas – isto é, determinadas no momento do pagamento das dívidas. Quando os juros dispararam, com a consequente queda do preço dos imóveis, houve inadimplência em massa.Metade dos “proprietários” só o eram no nome, pois possuiam, muitas vezes, apenas 10% do valor real de suas casas.

A deflagração das guerras do Iraque e do Afeganistão aumentou os gastos armamentistas, estimulando assim um crescimento generalizado da indústria militar e dos setores ligados ao provimento das Forças Armadas. Essas medidas conseguiram suavizar a crise de 2001-2002, mas só adiaram as contradições do capitalismo norteamericano, elevando o endividamento das empresas, dos consumidores e do Estado. Os EUA procuraram ampliar os limitados objetivos da “guerra contra o terror” até uma completa colonização do Oriente Médio, incluindo o Golfo Pérsico e a Ásia Central, consideradas como regiões estratégicas não só para a produção e o transporte de petróleo,mas também para o controle político daquilo que seus estrategistas chamam de “tabuleiro euro-asiático”.23 Em 2005, as despesas militares dos Estados Unidos atingiram a soma de 500 bilhões de dólares, o equivalente às despesas militares do resto do mundo.

O ambiente regulatório ao longo desses anos inspirou-se nos Acordos da Basileia, compostos por índices de capital em relação aos ativos, segundo tipos de riscos, por agências de classificação de risco, por modelos de autogestão armados pelos grandes players bancários, pela supervisão “a distância” por parte dos bancos centrais, e pela suposta disciplina de mercado na prática da transparência das informações. Os bancos centrais deixaram solta a capacidade do sistema em criar riqueza financeira em escala global, com significativa participação direta e indireta dos bancos através de organizações paralelas. Essas organizações especiais, e os instrumentos financeirosexóticos, ficaram conhecidos como shadow financial system. Um mundo de capital fictício a operar, fora dos balanços dos bancos, fora da vista das autoridades monetárias, em autoexpansão descontrolada, mas funcional às necessidades de valorização do imenso capital excedente acumulado no mundo.

Para Aglietta e Berreri, a “demanda dinâmica” necessária para o crescimento dos EUA não poderia provir dos países emergentes (China, Índia, Brasil), onde a distribuição de renda e as relações entre cidade e campo freiam o crescimento do consumo interno, e onde os excedentes externos garantem o financiamento dos déficits dos EUA. A demanda “também não poderia ter como origem as rendas salariais, cujo crescimento é fraco. Ela provém das rendas distribuídas aos acionistas e à elitedirigente, mas sua massa global é insuficiente para sustentar uma demanda agregada em crescimento rápido. A resposta a esse dilema encontra-se no poder de expansão do crédito. É aí que o capitalismo contemporâneo encontra a demanda que permite realizar as exigências do valor acionário. Esse mecanismo atinge seu paroxismo nos Estados Unidos. Empurrando para o alto os preços dos ativos patrimoniais, o crédito desconecta o consumo da renda disponível”. Isto provocava uma tendência a gerar, “em intervalos próximos, crises financeiras cujo epicentro é os EUA”.

O crescimento do mercado imobiliário, com base nesse tipo de financiamento, propiciou a elevação dos preços dos imóveis, o que, por sua vez, em um efeito autoexpansivo, possibilitou o refinanciamento das hipotecas de uma forma que o montante refinanciado de recursos permitia tanto o pagamento dos débitos anteriores quanto recursos adicionais utilizados para novas aquisições de imóveis, impulsionando ainda mais o efeito expansivo de elevação dos preços dos imóveis, o crescimento do mercado hipotecário, e a elevação do endividamento dos tomadores de empréstimos. Esse processo implicava o crescimento do consumo das famílias americanas, em função da alta do mercado imobiliário, expressa nos maiores preços dos imóveis. O crescimento da economia americana, e da economia mundial como seu reflexo, teve como base esse processo de

Page 10: Coggiola, Osvaldo - A Crise Global - Uma Abordagem Do Periodo de 2007 a 2012

espiral “virtuosa”: riqueza (imobiliária) – consumo – produção – emprego –renda – riqueza – consumo.Os preços imobiliários aumentaram mais de 300%, saltando de 62 em 1987 para 189 em 2007 (com base em 2000=100). Com o processo de securitização e as “inovações financeiras” introduzidas no período, o boom do mercado residencial virou um frenesi, de modo que a taxa média de elevação dos preços dos imóveis foi de 6,4% ao ano no período 2000-2005, com o pico em 2005, quando os preços das residências sofreram uma elevação da ordem de 14%. Na medida em que o mercado foi se aquecendo, os imóveis foram se valorizando, abrindo aos mutuários mais uma possibilidade: o “financiamento da diferença”. Assim, um cidadão norte-americano quetivesse financiado um imóvel de US$ 200 mil, cujo valor de mercado tivesse aumentadopara US$ 300 mil, poderia tomar mais US$ 100 mil emprestados, dando como garantiaa mesma casa. Com esses recursos adicionais, os clientes inadimplentes podiam não sópagar suas prestações como também consumir mais. Esse sistema funcionava baseadono aumento de longo prazo do valor dos imóveis. A elevação dos preços dos imóveispermitia a ampliação dos empréstimos para novas compras de imóveis, que voltavam aelevar os preços dos imóveis, e assim por diante.

A renegociação permitia uma liberação de dinheiro que era gasta com bens deconsumo como carros, viagens, entre outros. Os norte-americanos estavam gastandoo dinheiro em bens de consumo. Mas os juros nos EUA começaram a subir e levaramas taxas de hipoteca a patamares próximos a 8% ao ano. Supondo que o contrato fosse com taxa variável, como a maior parte dos contratos nos EUA, a prestação tenderiaa subir nessas condições. Nessa ciranda financeira o problema não era a taxa de jurossubir ou descer, mas sim se o preço dos imóveis parasse de aumentar. Nesse caso, obanco não teria mais interesse em refinanciar e acabaria por tomar o imóvel do devedor.É claro que não eram todos os devedores que tinham problemas com o refinanciamentode suas hipotecas, mas boa parte estava obrigada a viver com uma prestação maior doque poderia pagar, o que o fazia reduzir o consumo de outros bens.32O sistema era insustentável, pois não estava se criando valor e sim especulandocom o valor dos imóveis. O governo estadunidense fomentara um mercado secundáriode hipotecas capaz de tornar líquidos contratos de longo prazo, sob o comando detrês instituições: Government National Mortage Association, Federal National MortageAssociation e Federal Home Loan Mortage Corporation. Todo esse sistema altamenteespeculativo foi construído com garantias públicas diretas ou indiretas. Foi através dasmesas dessas três instituições públicas que foi revendido para o sistema global, desde2002, um estoque de títulos subprimes de aproximadamente US$ 1,3 trilhão.Mas a “nova arquitetura financeira” não poderia, simples e eternamente, setornar independente da arquitetura real da indústria da construção civil e dos preçosde novas casas no mercado imobiliário dos EUA. E essa evolução dos preços das casas,da mesma forma que a evolução dos preços em geral das mercadorias industrializadas,acaba finalmente determinando a tendência à elevação da taxa de juros das hipotecas ea luz vermelha para as operações dos bancos. Enquanto o ciclo de alta na liquidez e nocrédito internacional resolvia os problemas de liquidez dos tomadores de empréstimos,essa bolha especulativa apresentou um caráter supostamente “virtuoso” para a economiaamericana e mundial. Mas com o aumento da taxa de juros de curto prazo de 1%para mais de 5% e depois, para valores que se aproximavam de 10%, muita gentedeixou de pagar as prestações. Foi a partir de 2004 que os limites desse processo artificial de valorização do capital começaram a se manifestar, com o inicio do processo de alta da taxa de juros americana. Entre 2004 e 2006 a taxa de juros subiu de 1% para 5,35%. Mas o crescimento das concessões de hipotecas no mercado subprime, e o aumento do consumo de luxo dos investidores estrangeiros, compensaram momentaneamente o efeito do aumento da taxa de juros.

Começou a inadimplência em massa dos clientes mais frágeis. A crise foi revelada ao público a

Page 11: Coggiola, Osvaldo - A Crise Global - Uma Abordagem Do Periodo de 2007 a 2012

partir de fevereiro de 2007. Os processos de despejo de moradias atingiram 180 mil só no mês de julho de 2007, duplicandoem um ano. Eles ultrapassaram o milhão em agosto, concluindo com 2 milhões de despejos nesse ano. A mesma “arquitetura financeira” que fora criada para espalhar o risco e perpetuar o sistema especulativo agora transmutava sua função, para ser uma poderosa agente espalhadora do prejuízo.

Todo parecia funcionar bem até Federal Reserve, em 2005, aumentar a taxa de juros do crédito disponível pelo mercado, onerando de forma insuportável os limites do mercado imobiliário, e criando uma onda de inadimplência, atingindo primeiro os pequenos proprietários de imóveis financiados e cujas oportunidades de safar-se eram impossíveis. O aumento da inadimplência deveu-se ao reajuste das taxas de juros do financiamento para o nível das taxas de juros de mercado, que ocorreu exatamente no momento em que as taxas de juros básicas dos EUA estavam subindo. Os bancos começaram a retomar as casas dos inadimplentes. A grande oferta de imóveis resultantefez baixar bruscamente os preços e deixou evidente que bancos, corretoras, companhias imobiliárias, companhias de seguros e investidores em geral não só não conseguiriam obter lucros, como teriam pesadas perdas sobre o capital investido.

A variação dos preços dos metais mais consumidos na produção industrial mostrava a relação entre eles (e das matérias primas em geral) e a evolução do ciclo econômico, o processo de superprodução de capital e tendência à queda da taxa geral de lucro das diferentes economias industrializadas. Não se tratava de uma onda especulativa gerada autonomamente na esfera financeira e no mercado internacional de divisas, mas de uma crise gerada na esfera da produção e manifestada na esfera da circulação. O controle das fontes e das rotas de comércio dessas matérias consumidas na indústria capitalista global foi o principal motivo das guerras e ameaças militares arquitetadas pelas potências, EUA em primeiro lugar, nas áreas dominadas do mundo (AméricaLatina, Ásia, Leste Europeu, África, Oriente Médio).34 No longo prazo, o aumento da extração e do volume dessas matérias primas, a regularidade dos fluxos de transporte em direção aos principais centros industriais e a redução dos seus preços, são condições imprescindíveis para amortecer a queda da taxa geral de lucro, no encerramento de cada ciclo econômico periódico, evitar a crise geral, e relançar um novo período de expansão e um novo ciclo econômico. Na primeira década do século XXI, o potencial da crise era proporcional ao gigantesco aumento da economia mundial e da sua complexidadegerados imediatamente antes.

Nada se comparou à injeção de fundos públicos equivalentes a 40% do PIB mundial no falido setor financeiro e industrial do “Primeiro Mundo”. Os Estados capitalistas entregaram cerca de 25 trilhões de dólares às grandes empresas e bancos falidos. O Government Accountability Office (órgão do Congresso dos EUA) descobriu que o Tesouro norte-americano entregou 16 trilhões de dólares em empréstimos secretos às grandes empresas, mais que um PIB dos EUA entregue secretamente aos grandes bancos.

Em junho de 2010, conheceu-se o resultado de uma auditoria realizada pelo Government Accountability Office no Banco Central dos EUA (FED), a primeira que sofreu a instituição desde que foi criada (1913), que revelou que entre 1º de dezembro de 2007 e 21 de julho de 2010, o FED concedeu empréstimos secretos a grandes corporações e empresas por 16 trilhões de dólares, uma cifra superior ao PIB dos EUA e à soma dos orçamentos do governo federal nos últimos quatro anos. Desse total, cerca de três trilhões foram destinados a socorrer grandes empresas e entidades financeiras na Europa e na Ásia. O resto foi orientado para o resgate de corporações estadunidenses, encabeçadas pelo Citibank, o Morgan Stanley, Merrill Lynch e o Bank of America. O segredo bancário e comercial, alma do negócio, foi transferido naturalmente para o Estado.

Page 12: Coggiola, Osvaldo - A Crise Global - Uma Abordagem Do Periodo de 2007 a 2012

o ft adverte:“Os consumidores brasileiros parecem estar sobrecarregados, gastando maisque um quarto de suas rendas para o pagamento de empréstimos - nível superior aoverificado nos Estados Unidos no período anterior à crise de 2008”

Um estudo da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, de 2011, apontou que 64%, em média, das famílias que vivem nas 27 capitais do país tinham dívidas. No mesmo período, em 2010, o endividamento era de 61%. Há capitais nas quais o endividamento é quase absoluto. Curitiba, por exemplo, tem 88% das famílias endividadas; seguida por Florianópolis, cujo índice é de86%. Ou seja, quase nove entre 10 famílias estão endividadas nessas capitais. O valor médio da dívida aumentou quase 18%: de R$ 1.298 para R$ 1.527 mensais. Segundo um estudo da LCA Consultores, o total da dívida das pessoas físicas chegou a R$ 653 bilhões. Em dezembro de 2009, a dívida das famílias estava em R$ 485 bilhões.

A CPI da Dívida Pública, concluída em 2010 na Câmara, comprovou que as altas taxas de juros foram o principal fator responsável pelo contínuo crescimento da dívida pública, a qual se se multiplica em função de mecanismos e artifícios meramente financeiros, bem como da incidência de “juros sobre juros”. O BC informou à CPI que para estabelecer as taxas de juros consulta “analistas independentes” em reuniões periódicas, fundamentando a definição da Selic pelo Comitê de Política Monetária (Copom) com estimativas sobre a evolução futura da inflação, evolução de preços e taxa de juros. A CPI requereu ao BC os nomes dos participantes dessas reuniões: 95% deles fazia parte do “setor financeiro”.

A globalização do capital financeiro, associada com o processo da restauraçãocapitalista na China e Rússia, não abriu uma saída de largo prazo à crise do capital, mascriou um oceano de dívidas que cobriram o planeta como bombas-relógio. No período2002/06, a espiral da crise foi desviada e dois motores interconectados, a expansão docrédito nos EUA e o crescimento industrial da China, conduziram ao crescimento daeconomia mundial. Os dois motores começaram depois a parar, e o primeiro explodiuem 2007-2008. A contração da economia mundial tenta eliminar a massa de capitalexcedente que obstrui o processo de acumulação capitalista. O colapso do mercadosubprime nos Estados Unidos desatou uma avalanche internacional de quebrase uma contração global do crédito, seguidos por uma subida sideral e, depois, poruma dramática queda nos preços do petróleo e das matérias-primas, mas, sobretudo,por uma queda e uma recessão sincronizadas da economia mundial. As três décadasde globalização do capital financeiro terminaram em catástrofe. A crise, consideradahistoricamente, não é conjuntural ou cíclica, como aquelas que no pós-guerra foramchamadas de “recessões” (1948-49; 1952-53, 1957-58, 1960-61, 1966-67, 1970-71), mas uma crise que atingiu limitações estruturais do capitalismo: no pós-guerra ocapital usou as possibilidades do gasto armamentista, da formação de capital fictício, dodesenvolvimento artificial das nações atrasadas com vistas à criação de mercados paraexportar seus capitais e mercadorias. O capital mundial fez isso de modo sistemático eesgotou seus recursos nesse plano.