coelho, inocêncio mártires - konrad hesse e peter häberle

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  • 8/22/2019 COELHO, Inocncio Mrtires - Konrad Hesse e Peter Hberle

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    Braslia a. 35 n. 138 abr./jun. 1998 185

    1. IntroduoProferida h mais de um sculo, permanece

    viva e atual a conferncia de Ferdinand Lassallesobre a essncia da Constituio, em que eleidentificava a soma dosfatores reais de poderque regem uma nao com aquelafora ativa eeficaz que informa todas as leis e instituiesjurdicas vigentes, determinando que no pos-sam ser,em substncia, a no ser tal como elasso1.

    Venerada como bblia do sociologismo jur-dico, desde que veio a pblico em 1862, essapalestra virou texto de leitura obrigatria em to-dos os quadrantes do constitucionalismo mo-derno.

    Elogiado por uns e combatido por outros,sem que a ningum seja permitido ignor-lo,esse pequeno-grande ensaio muitas vezes assimilado com tanta naturalidadepelos admi-radores de Lassale, que chega a aparecernasobras desses seguidores sem o necessrio re-

    gistro de paternidade.Descartada a hiptese de plgio, que se re-solveria, se ainda fosse possvel, em sede de

    Konrad Hesse/Peter Hberle: um retornoaos fatores reais de poder

    Inocncio Mrtires Coelho Professor Titularda Faculdade de Direito da Universidade de Braslia.

    SUMRIO

    1. Introduo. 2. Konrad Hesse: limites e possi-bilidades da fora normativa da Constituio. 3. PeterHberle e a racionalizao hermenutica dos fatoresreais de poder.

    INOCNCIOMRTIRESCOELHO

    1 Referindo-se Prssia do seu tempo, Lassalleapontava como fatores reais de poder a que chama-va fragmentos de Constituioa monarquia, a aris-tocracia, agrande burguesia, apequena burguesia, aclasse operria e, dentro de certos limites, tambm aconscincia coletiva e a cultura geral da Nao.Aessncia da Constituio. Traduo de Walter Stn-ner. 2.ed. Rio de Janeiro : Liber Juris,1998. p.11-19.

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    direitos autorais, tem-se a impresso de que osfatores reais de poder independentemente das

    crenas dos seus moradores perambulamcomo fantasmas por todos os cmodos do edi-fcio constitucional.

    Como os inquilinos desse hipottico edif-cio a todo instante se vem a braos com o pro-blema das tenses, melhor diramos dos confli-tos, entre Constituio e realidade constitucio-nal, as idias de Ferdinand Lassalle se impemnaturalmente sua reflexo.

    Despertando-os do sono idealista, aquelasbreves lies de realismo jurdico, na medida emque so assimiladas, lhes ajudam a compreen-der e a racionalizar os conflitos polticos e, poressa forma, a imaginar procedimentos que des-

    cartem as rupturas como nica sada para ascrises institucionais.Nesse aspecto, como veremos afinal, as li-

    es de Lassalle tm o singular efeito de esti-mular os seus discpulos, confessos ou no, aprocurarem sadas para aqueles impasses.

    J que o mestre no admitia as acomoda-es como soluespolticas para os conflitosentre a Constituio escrita e a Constituioreal, e esses conflitos no podem ser ignora-dos nem suprimidos nem muito menos ser re-primidos indefinidamente , no restou aos se-guidores de Lassalle seno a alternativa de pro-curaroutras sadas para esses impasses, fr-

    mulas ou procedimentos jurdico-institucionaisque, na medida do possvel, prevenissem osconfrontos e, nas situaes de crise, pudessemimpedir que, precisamente em razo deles, secumprisse o destino trgico das Constituiesfolha de papel.

    A esse propsito, quem se detiver no examede duas obras contemporneas da maior impor-tncia A Fora Normativa da Constituio,de Konrad Hesse, e A Sociedade Aberta dosIntrpretes da Constituio, de Peter Hberle ,haver de concluir, sem maior esforo, que asfrmulas apresentadas por esses juristas comosolues modernas para aqueles antigos pro-

    blemas, embora de fabricao recente, so asmesmas chaves das mesmas e velhas prises.Por isso, o sucesso que eventualmente pos-

    sam ter alcanado ao empreender a sua fugaparece ter decorrido muito mais da identidade dasfechaduras do que da astcia dos que lograramescapar daquelas prises. que, embora seguin-do caminhos diversos, e no muito diferentes, oque Hesse e Hberle fizeram, ao fim e ao cabo, foiconstitucionalizaros fatores reais de poder, noque se mostraram sensatos e competentes.

    O primeiro, pelo reconhecimento explcito deque a norma constitucional no tem existncia

    autnoma em face da realidade e que, por isso, asua pretenso de eficcia no pode ser separa-da das condies histricas de sua realizao2;o segundo, pela afirmao, como tantas outrasde contedo semelhante, de que no apenas asinstncias oficiais, mas tambm os demais agen-tes conformadores da realidade constitucio-nal porque representam umpedao da publi-cidade e da realidade da Constituio3 devemser havidos como legtimos intrpretes da Cons-tituio.

    Pois bem, tendo diagnosticado as causasdaqueles conflitos entre Constituio e realida-de constitucional, em ordem a concluir que os

    problemas constitucionais no so problemasde direito, mas problemas de poder4, FerdinandLassalle certamente sem ter em vista esse ob-jetivo acabou por ministrar a juristas e cientis-tas polticos os mais eficazes remdios para com-bater as doenas que, vez por outra, acometemat mesmo os mais saudveis organismos insti-tucionais.

    Sob esse ngulo, digamos, teraputico, que nos dispusemos a analisar aqueles dois ex-celentes ensaios, seja por seu indiscutvel va-lor, seja porque seus autores recolocaram naordem - do - dia, em perspectiva temporalmenteadequada, a velha discusso sobre a importn-

    cia dos fatores reais de poder na vida das cons-tituies.Na primeira dessas obras, assumindo posi-

    o declaradamente contrria doutrina de Las-salle da qual, alis, faz um resumo preciso naabertura do seu livro , Konrad Hesse afirmaque as teses daquele ilustre socilogo do direi-to se mostrariam desprovidas de fundamentosepudssemos admitir que a Constiuio contm,ainda que de forma limitada, uma fora pr-pria, motivadora e ordenadora da vida do Es-tado5. Em busca de argumentos para fundamen-tar a autonomia da Constituio jurdica e, as-sim, libert-la das momentneas constelaes

    de poder, Konrad Hesse sinalizou o caminho2 A fora normativa da Constituio. Traduo

    de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre :S. Fabris,1991. p. 14.

    3 Hermenutica constitucional:a sociedade aber-ta dos intrpretes da Constituio : contribuio paraa interpretao pluralista e procedimental da Consti-tuio. Traduo de Gilmar Ferreira Mendes. PortoAlegre : S. A. Fabris, 1997. p. 12 e 33.

    4 A essncia da Constituio, p.49.5 A fora normativa da Constituio, p.11.

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    que se dispunha a percorrer, a partir da seguinteproposio:

    A questo que se apresenta diz res-peito fora normativa da Constituio.Existiria, ao lado do poder determinantedas relaes fticas, expressas pelas for-as polticas e sociais, tambm uma foradeterminante do Direito Constitucional?Qual o fundamento e o alcance dessa for-a do Direito Constitucional? No seriaessa fora uma fico necessria para oconstitucionalista, que tenta criar a su-posio de que o direito domina a vidado Estado, quando, na realidade, outrasforas mostram-se determinantes? Essasquestes surgem particularmente no m-

    bito da Constituio, uma vez que aquiinexiste, ao contrrio do que ocorre emoutras esferas da ordem jurdica, uma ga-rantia externa para execuo de seus pre-ceitos.O conceito de Constituio jur-dica e a prpria definio da Cinciado Direito Constitucional enquanto ci-ncia normativa dependem da respostaa essas indagaes6.

    Peter Hberle, por seu turno ao que saiba-mos, sem fazer referncia obra de Lassalle, nemsequer s expresesfatores reais de poderoufragmentos de Constituio, que tornaram c-lebre o seu ancestral ilustre , mas obviamente

    premido pela necessidade de constitucionali-zaressas foras sociais, preconiza a constru-o de uma sociedade aberta dos intrpretesda Constituio a partir do reconhecimento deque, alm dos seus intrpretes oficiais juzese tribunais , devem ser admitidos a interpret-la todos os agentes conformadores da realida-de constitucional, todas as foras produtorasde interpretao.

    At que ponto ou em que medida as idiasdesses juristas contemporneos descendem em linha reta ou colateraldas reflexes de Fer-dinand Lassalle sobre osfatores reais de poderoufragmentos de Constituio, o que espera-

    mos esclarecer nas pginas seguintes, a come-ar por Konrad Hesse.

    2. Konrad Hesse: limites epossibilidades dafora normativa da Constituio

    Num trabalho escrito em 1990, um pequenotexto que se destinava, inicialmente, a servir deprefcio citada edio brasileira de A Fora

    Normativa da Constituio, tivemos ensejo deanalisar essa obra de Konrad Hesse precisa-

    mente sob a perspectiva, que lhe imprimiu o seuautor, de confrontar as suas idias sobre a au-tonomia da Constituio jurdica diante da rea-lidade constitucional, com as reflexes de Las-salle sobre a presena dosfatores reais de po-derna vida das constituies.7

    Passados quase dez anos da sua publica-o, acreditamos que, no essencial, ainda semostram consistentes as concluses a que che-gamos naquele estudo, as quais reproduzimosa seguir:

    a) contrapondo-se a uma concepo,digamos, mecanicista das relaes entreas foras sociais e a Constituio jurdi-

    ca, Konrad Hesse nos apresenta cominegvel vantagem sobre o determinismosociolgico de Lassalle , uma aborda-gem que at certo ponto poderamos con-siderardialtica, na medida em que, semdesprezar a importncia das foras scio-polticas no surgimento e na sustentaoda Constituiofolha de papel, postulacomo ponto de partida para a anlisedessas relaes a existncia de um con-dicionamento recprocoentre a Lei Fun-damental e a realidade poltico-social quelhe subjacente;

    b) trata-se de uma postura que, de res-

    to, no apenas foi admitida, como atmesmo chegou a ser enfatizada por nin-gum menos que o velho Engels, quandodisse que os idelogos padeciam de umaignorncia absoluta sobre a ao rec-proca existente entre as normas jurdicase os fatores econmicos, que as engen-dram ou, pelo menos, condicionam;

    c) a par dessa viso dialtica em cujombito, por sua prpria natureza, ele nopoderia desprezar qualquer dos fatoresinteragentes , Konrad Hesse sustentaque a fora normativa da Constituioser tanto maiorquanto mais ampla for a

    convico sobre a inviolabilidade da LeiFundamental e quanto mais intensa for avontade de Constituio;

    d) na medida em que apela para essesentimento constitucional, a construoterica de Hesse faz depender a eficciada Constituio, igualmente, de um fatorde natureza axiolgica, isto , do respei-

    6 Op.cit., p.11-12.

    7 Konrad Hesse : uma nova crena na Constitui-o.Revista de Direito Pblico, n. 96, p. 167-177,out./dez. 1990.

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    to que lhe devotarem os seus destinatri-os, especialmente aqueles que tenham

    poder de fato para viol-la ou destru-la;e) por essa forma, ele despreza ou es-quece o seu ponto de partida, inegavel-mente dialtico, para assumir uma postu-ra nitidamente idealista, porque deslocaa discusso sobre a eficcia da Consti-tuio do plano da condicionalidade fti-ca para o do condicionamento tico, con-vertendo numa questo de f o que mui-tos entendem ser apenas uma questo defora;

    f) essa a razo por que, a nosso ver,os escritos de Hesse encarnam uma novacrena na Constituio, crena que o leva

    a redefinir at mesmo o papel da Cinciado Direito Constitucional, qual atribui atarefa deontolgica de explicitando ascondies sob as quais as normas cons-titucionais podem adquirir a maior efic-cia possvel , realar, despertare pre-servara vontade de Constituio;

    g) neste ponto reside, seno a origi-nalidade, pelo menos o aspecto mais sig-nificativo do seu pensamento, porque aoexaltar o valor intrnseco da Constituio,ele lhe atribui um relativo grau de auto-nomia em face da realidade, e ao proclamara necessidade de que ela se ajuste s con-

    dies histricas da sua realizao, ajuda aviabilizar a sua energia normalizadora.Por tudo isso, descontados os exageros da

    assertiva, ousamos dizer que so irms gmeas,embora com rostos diferentes, a crena de Kon-rad Hesse e a descrena de Ferdinand Lassallena fora normativa da Constituio.

    3. Peter Hberleea racionalizaohermenutica dos fatores reais depoder

    Como ponto de partida para as suas refle-xes sobre a necessidade de se construir umasociedade aberta de intrpretes da Constitui-

    o, Peter Hberle assenta algumas premissas,que desenvolve e detalha ao longo da sua ex-posio:

    A teoria da interpretao consti-tucional esteve muito vinculada a ummodelo de interpretao de uma socie-dade fechada. Ela reduz, ainda, seu m-bito de investigao, na medida que seconcentra, primariamente, na interpreta-o constitucional dos juzes e nos pro-cedimentos formalizados.

    Se se considera que uma teoria dainterpretao constitucional deve enca-

    rar seriamente o tema Constituio e re-alidade constitucional, ento h de seperguntar, de forma decidida, sobre osagentes conformadores da realidadeconstitucional.

    O conceito de interpretao recla-ma um esclarecimento que pode ser as-sim formulado: quem vive a norma acabapor interpret-la ou pelo menos por co-interpret-la; toda atualizao da Consti-tuio, por meio da atuao de qualquerindivduo, constitui, ainda que parcialmen-te, uma interpretao constitucional.

    Para uma pesquisa ou investigao

    realista do desenvolvimento da interpre-tao constitucional, pode ser exigvel umconceito mais amplo de hermenutica: ci-dados e grupos, rgos estatais, o sis-tema pblico e a opinio pblica (...) re-presentam foras produtivas de interpre-tao; eles so intrpretes constitucio-nais em sentido lato, atuando nitidamen-te, pelo menos, como pr-intrpretes. Por-tanto, impensvel uma interpretaosem o cidado ativo e sem as potnciaspblicas mencionadas.

    Todo aquele que vive no contextoregulado por uma norma e que vive com

    este contexto , indireta ou, at mesmodiretamente, um intrprete dessa norma.O destinatrio da norma participante ati-vo, muito mais ativo do que se pode su-por tradicionalmente, do processo herme-nutico.

    Como no so apenas os intrpre-tes jurdicos da Constituio que vivem anorma, eles no detm o monoplio dainterpretao da Constituio8.

    Traadas essas diretrizes e esclarecido, peloprprio Hberle, que no possvel fixar-se emnumerus clausus o elenco de intrpretes daConstituio obviamente no mbito de uma

    sociedade aberta, pluralista e democrtica

    , eleidentifica alguns desses tradutores no-oficiaisdo texto constitucional.

    Sem prejuzo da precedncia que atribui jurisdio constitucional at porque reconhe-ce que a ela compete dar a ltima palavra sobrea interpretao, Hberle afirma que devem serreconhecidos como igualmente legitimados a

    8 A sociedade aberta dos intrpretes da Consti-tuio, p.12-15.

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    interpretar a Constituio os seguintes indiv-duos e grupos sociais:

    1) o recorrente e o recorrido, no re-curso constitucional, como agentes quejustificam a sua pretenso e obrigam oTribunal Constitucional a tomar uma po-sio ou a assumir um dilogo jurdico;

    2) outros participantes do processo,que tm direito de manifestao ou deintegrao lide, ou que so convoca-dos, eventualmente, pela prpria Corte;

    3) os rgos e entidades estatais, as-sim como os funcionrios pblicos, agen-tes polticos ou no, nas suas esferas dedeciso;

    4 ) os pareceristas ou experts;

    5) os peritos e representantes de inte-resses, que atuam nos tribunais;6) os partidos polticos e fraes par-

    lamentares, no processo de escolha dosjuzes das cortes constitucionais;

    7) os grupos de presso organizados;8) os requerentes ou partes nos pro-

    cedimentos administrativos de carterparticipativo;

    9) a media, em geral, imprensa, rdioe televiso;

    10) a opinio pblica democrtica epluralista, e o processo poltico;

    11) os partidos polticos fora do seu

    mbito de atuao organizada;12) as escolas da comunidade e as

    associaes de pais;13) as igrejas e as organizaes religi-

    osas;14) os jornalistas, professores, cien-

    tistas e artistas;15) a doutrina constitucional, por sua

    prpria atuao e por tematizar a partici-pao de outras foras produtoras de in-terpretao9.

    guisa de esclarecimento sobre a atuaohermenutica dessas foras produtoras de in-

    terpretao, Peter Hberle sustenta que deveser considerado intrprete da Constituio tan-to o cidado que formula um recurso constitucio-nal, quanto o partido poltico que prope umconflito entre rgos ou contra o qual se ins-taura um processo de proibio de funciona-mento10.

    Nessa perspectiva, como pr-intrpretes daLei Fundamental, realizam atos de interpretaoconstitucional tanto os atores da cena poltica,quanto os protagonistas do debate judicial, namedida em que, uns e outros, atuam no mbitode processos que so conformados pela Cons-tituio.

    Como as suas opinies, direta ou indireta-mente, influenciam a jurisdio constitucional,em cujo mbito atuam institucionalmente, essesintrpretes adjuntos chegam a ser to importan-tes quanto os titulares da interpretao consti-tucional.

    Mais ainda, se admitirmos, como sustentaHberle, que toda atualizao da Constitui-o, por meio da atuao de qualquer indiv-duo, constitui, ainda que parcialmente, umainterpretao constitucional antecipada11,parece lgico reconhecermos com apoio emGadamer que essa pr-comprenso social,embora extra-oficial, da maior relevncia para

    a compreenso estatalda Constituio.Dado que, por outro lado, esses indivduose grupos desempenham, simultaneamente, quera funo de agentes conformadores da realida-de constitucional, quer a de foras produtorasde interpretao, no seria exagerado dizermosque, por essa forma, eles interagem com a Cons-tituio, cuja essncia se manifesta na experi-ncia da sua aplicao.

    Nessa perspectiva tal como anotamos comrelao crena de Konrad Hesse nafora nor-mativa daConstituio , parece-nos evidentea influncia das reflexes de Lassalle tambmsobre as idias de Peter Hberle acerca da soci-

    edade aberta dos intrpretes da Constituio. que, apesar das diferenas de enfoque edas preferncias por nomes, tanto o velho mili-tante socialista, quanto o jovem constitucionalis-ta liberal condicionam a eficcia das constitui-es manuteno da sintonia entre o seu textoe a realidade que elas pretendem conformar;

    9 Comparando-se os diversos agentes confor-madores da realidade constitucional, da extensa lista

    de Hberle, com os poucos fatores reais de poderapontados por Lassalle, talvez se possa dizer que elaconstitui uma especificao daquele ncleo inicial ouuma determinao histrica decorrente do desenvol-vimento social e do aprimoramento do regime demo-crtico tendencialmentepluralizante e individuali-zador, em tudo semelhante ao processo de consci-entizao dos direitos humanos, em cujo mbito aevoluo consiste, precisamente, na especificao denovos direitos a partir de um ncleo essencialque,dialeticamente, vai se adensando e se expandindo emsempre renovadas especificaes. Cf., a propsito,

    Bobbio, Norberto.A era dos direitos. Rio de Janeiro :Campus, 1992. p.62-63 e 127-128.

    10 Op. cit., p. 23-24.11 Op. cit., p.13-14.

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    entre a superestrutura jurdica e a infraestruturasocial; entre a Constituiofolha de papele as

    foras sociais, quaisquer que sejam as suasdenominaes fatores reais de poder, frag-mentos de Constituio, agentes conformado-res da realidade constitucionalouforas pro-dutoras de interpretao.

    Apesar ou em razo dessassemelhanasdebase, impe-se assinalar as diferenas que es-tremam as duas abordagens, quando mais noseja para que se evite o anacronismo de julgar opassado sob a perspectiva do presente e, a par-tir dessa distoro visual, manifestar espantodiante dafalta de imaginao dos nossos an-tepassados, at mesmo daqueles mais intuiti-vos12.

    Nessa ordem de preocupaes, de se re-gistrar que Ferdinand Lassale, preso a umsocio-logismo extremoe vivendo numa sociedadefe-chada e homognea, no conseguiu vislumbrarsadas institucionais para os choques entre aConstituiojurdica e a Constituiosocial, aponto de afirmar que

    onde a Constituio escrita no corres-ponder Constituio real, irrompe ine-vitavelmente um conflito que imposs-vel evitar e no qual, mais dias menos dias,a Constituio escrita, afolha de papel,sucumbir necessariamente, perante aConstituio real, a das verdadeiras for-

    as vitais do pas13

    .J o mesmo no ocorreu com Peter Hberleque, luz da experincia acumulada desde Las-salle e favorecido pelo ambiente saudvel deuma sociedade aberta epluralista, pde ima-ginarprocedimentos que se mostram aptos aresolver aqueles impasses exatamente porqueimplicam a assimilaodasforas vitais do pasno processo de traduo/formulao da vonta-de constitucional.

    Firme na convico de que no existe norma

    jurdica, seno norma jurdica interpretada; quea norma s vigora na interpretao que lhe atri-

    bui o aplicador legitimado a dizer o direito; eque a norma no o pressuposto, mas o resul-tado da sua interpretao verdades contem-porneas que soariam a blasfmias sob o rei-nado de Montesquieu e que, certamente, con-denariam morte quem ousasse proclam-las ,cuidou Peter Hberle de abrirjanelas herme-nuticas para que os agentes conformadoresda realidade constitucional, asforas vivas dopas, a que se referia Lassalle, pudessem entrarno processo constitucional formal e, por essavia, viessem a participar do especfico jogo-de-linguagem no qual se decide com eficciacontra todos e efeito vinculante qual o verda-

    deiro sentido da Constituio.Estrategicamente apresentados como sim-ples pr-intrpretes da Constituio ou, no m-ximo, como seus intrpretes coadjuvantes, pe-las mos de Hberle esses agentes conforma-dores da realidade constitucional, ao fim e aocabo, desempenham o papel de co-autores daConstituio integrallaw in action e law inbooks , daquela constituio que, na concreti-tude da sua aplicao, se mostra vigente, eficaze legtima.

    Esse o crdito, digamos,pessoale intrans-fervel, que h de ser lanado na conta de PeterHberle, um crdito que se mostra ainda mais

    significativo quando consideramos que as suasidias, alm de legitimarem o dissenso herme-nutico e racionalizarem as divergncias de in-terpretao no marco do Estado de direito, ain-da colaboram para desarmamento dos conten-dores polticos e o aprimoramento da convivn-cia democrtica.

    No por acaso, embora sem insistir nesseponto, Hberle nos fala do dilogo jurdico aque so compelidas as cortes constitucionais,isto , daquela busca de entendimento a queso necessariamente conduzidos todos os par-ticipantes da interlocuo constitucional, valedizer, os intrpretes oficiais da Constituio e

    as outrasforas produtoras de interpretao.Hermeneuticamente assimiladas, se foremdevidamente consideradas, e na medida em queo sejam, essasforas pluralistas da sociedadepodero transformar-se em fatores de mudanae, conseqentemente, de estabilizao social.

    que, semelhana das grandes corrente-zas, que em princpio no devem ser represa-das, mas que podem ser canalizadas para fertili-zar o solo e/ou prevenir eroses, osfatores re-ais de poder, embora potencialmente confliti-

    12 Sobre a falta de conscincia de que o progressohumano comparvel a uma corrida de revezamen-to, da qual todos os membros da equipe participam

    necessariamentee, na medida das suas foras, cola-boram para o resultado comum, vale relembrar aspalavras de Hegel, para quem tudo o que somos,somo-lo porobra da histria e o patrimnio da razoauto-consciente que nos pertence, no surgiu sempreparao, nem cresceu s do solo atual, antes secaracterizando como herana ou, mais propriamen-te, como resultado do trabalho de todas as geraesprecedentes do gnero humano. Introduo hist-ria da filosofia. Traduo de Antonio Pinto de Car-valho. Coimbra : A. Amado, 1980. p.38.

    13 A essncia da Constituio, p. 41-42.

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    vos, quando chamados a operar no marco doEstado de direito redirecionam as suas energias

    e, ao invs de subverterem as instituies de-mocrticas, acabam se tornando peas essenci-ais para a formao e preservao da unidadepoltica, a que do consistncia e legitimidade.

    Nesse sentido, mesmo forados a uma cita-o relativamente extensa, achamos que vale apena transcrever esta passagem de Hesse:

    Formao da unidade poltica nosignifica a produo de um harmnico es-tado de conscincia geral, nem em qual-quer hiptese a eliminao das diferen-as sociais, polticas ou de natureza ins-titucional e organizativa, mediante um ni-velamento total.Essa unidade inima-

    ginvel sem a presena e a relevnciados conflitos na convivncia humana.Os conflitos impedem a rigidez, o estacio-namento em formas superadas; constitu-em embora no apenas eles a foramotriz sem a qual no ocorreriam as trans-formaes histricas. A ausncia ou a re-presso dos conflitos pode conduzir aoimobilismo, que supe a estabilizao doexistente e sugere a incapacidade deadaptao s situaes de mudana e criao de formas novas. Chega ento umdia em que a ruptura com ostatu quo sefaz inevitvel e a comoo se torna mais

    profunda. Pois bem, importante no so-mente que haja conflitos, mas tambmque esses conflitos surjam regulados eresolvidos. No o conflito, enquantotal, que contm a forma nova, e sim o re-sultado a que ele conduz. Por si s, o con-flito no permite o viver e o conviver hu-manos. Por isso, o problema no darlugar aos conflitos e seus efeitos, mas

    garantir (...) a formao e a preservaoda unidade poltica, sem ignorar ou repri-

    mir os conflitos em nome dessa unidadee sem sacrific-la em nome desses confli-tos14.

    Que significam, afinal, as chamadas muta-es constitucionais ? Nada mais, nada menosque a expresso hermenutica dos fatores re-ais de poder, vale dizer, das foras produtorasdas novas leituras de um mesmo texto constitu-cional. Onde se assimilam os conflitos institu-cionais ese acolhem as mutaes constitucio-nais deles decorrentes, no resta espao paraerupes inconstitucionais.

    Que Peter Hberle sabe disso, ningum temdvida, assim como ningum acredita que, ao

    desenvolver as suas idias sobre a necessida-de de se abrir a interpretao constitucionalaos agentes conformadores da realidade cons-titucional, no lhe tenha aparecido ou reapa-recido... o eterno fantasma dosfatores reaisde poder.

    Em concluso, a despeito da sua inegvelimportncia e do enorme crdito a que tem direi-to esse importante jurista, ns achamos que,bem examinado, no se mostra to original oseu projeto de construo de uma sociedadeaberta dos intrpretes da Constituio.

    que, descendentes hermenuticas das re-flexes de Lassalle, as idias que inspiram esse

    projeto possuem o mesmo cdigo gentico dosfatores reais de poder, que h mais de um scu-lo aquele pensador poltico isolou no seu labo-ratrio de pesquisas sociais e identificou comoa essncia da Constituio.

    Por isso que, embora disfarado com tra-jes hermenuticos, acreditamos ter visto o fantas-ma de Ferdinand Lassalle perambulando pela so-ciedade aberta dos intrpretes da Constituio.

    14 Escritos de Derecho Constitucional. Madrid :Centro de Estudios Constitucionales, 1983. p. 9:Concepto y cualidad de la Constitucin.

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