cladio carvalhaes - kkierkegaad, o poeta desconhecido

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Artigo de Claudio

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    Kierkegaard, Poeta do Desconhecido

    Cludio Carvalhaes

    ResumoEste texto explora o pensamento religioso de Kierkegaard, especialmente a maneira como ele entendeu a noo de f. O salto da f formulado por Kierkegaard envolve o irracional como componente da realizao do risco paradoxal, escolha que se faz no interior da existncia com todos os perigos que acarreta. O autor desenvolve os conceitos de ironia, pseudnimo e paradoxo. Conduz sua anlise do pensamento de Kierkegaard para a concluso de que era um poeta do desconhecido.

    Palavras-chave: Kierkegaard, salto da f, desconhecido

    AbstractThis text explores Kierkegaards religious thought, especially the way he understood the notion of faith. Kierkegaards leap of faith is the embrace of the irrational as a key component for the fulfillment of a paradoxal risk, a choice made within existence with all its dangers. The author works with the concepts of irony, pseudonymous and paradox. He leads his analysis of Kierkegaard thought to the conclusion that he was a poet of the unknown.

    Keywords: Kierkegaard, Leap of faith, unknown

    Introduo

    My song is love unknown.Samuel Crossman (1624-1683)

    H pessoas que no conseguem ter f. Paulo afirma que a f dom de Deus embora nem todos sejam abenoados com tal ddi-

    * Mestre em Cincias da Religio pela UMESP e doutor em teologia pelo Union Theological Seminary e na Columbia University de Nova York, Estados Unidos.

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    va.1 Existem, entretanto, os que no podem crer, mas que tampou-co se consideram descrentes. No so ateus nem crentes. Flutuam entre essas certezas como se fossem dois plos radicais do mesmo eixo. Gostariam de acreditar, mas no podem ou sem poder crer ainda se consideram, assim mesmo, acreditando de certa maneira em alguma coisa.

    Como poderia a idia de Deus e da f segundo a tradio crist ser entendida pelos que esto esquecidos no meio desse incerto terreno religioso, espcie de lamacento fundamento sem fundamento da f? Poderia a religio ajudar esses estranhos fiis? Este ensaio procura encontrar respostas para essas questes nos escritos de Kierkegaard.

    Examino o pensamento religioso de Kierkegaard principalmente sobre a maneira como entendeu a noo de f. Seu conceito de salto de f representa o reconhecimento do irracional como chave para o cumprimento do risco paradoxal abrangendo a escolha existencial com seus perigos, alegrias, desastres e vazio. A f para Kierkegaard no era objetiva, lgica, capaz de ser explicada. Por outro lado, tambm no era considerada ilgica ou resultado de mero fidesmo. Uma vez que a f no podia ser comunicada objetivamente, ele criou a teoria da comunicao indireta para se falar a respeito de Deus, da f e da existncia. Escolhemos trs de seus temas preferidos para analisar neste ensaio: ironia, pseudnimo e paradoxo.

    Esses temas nos ajudam a perceber a maneira como ele cons-tri seu pensamento religioso. Ao se ler o que escreveu, percebe--se aos poucos que no estava interessado em teologia, mas no pensamento religioso. A teologia agora, e mais ainda em sua poca, modo direto de comunicao com contedos fortemente objetivos e lgicos, capazes de explicao racional. No obstante, ao conceber Deus como diferena qualitativa infinita, situava--se ainda na noo do theos cristo. Confessou a respeito de si mesmo: O que eu verdadeiramente sou, como autor, relaciona--se com o cristianismo e com o problema de como se tornar cristo.2 Mas a maneira como ele pensa e fala a respeito de Deus, da f e da existncia humana, leva-o a se situar perto do

    1 A um o Esprito Santo d a mensagem de sabedoria e a outro o mesmo Esprito d a men-sagem de conhecimento. A um o mesmo Esprito d a f (...). (1 Co 12.8 e 9).

    2 Soren KIERKEGAARD. The Point of View, p. 6

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    que se poderia chamar de teo-poeta3 em vez de te-logo. Consi-derava-se poeta acima de qualquer outra coisa.

    Na qualidade de teo-poeta ou, melhor, de poeta do desconhe-cido, sentia-se livre dos sistemas teolgicos que to asperamente criticava. Pode-se explicar porque deveria ser chamado de teo--poeta e no de te-logo. Em geral os telogos partem da razo no interior de redes lgicas especficas e de suas conseqncias, confiando em certa episteme fundamentada ainda nas noes de verdade como relao. O teo-poeta comea com sua existncia e, conquanto se movimente nos domnios da razo, ela ser sempre desviada, com o abandono de suas certezas e com o adiamento constante dos significados. Escreve com paixo, posto que a paixo e o desejo so as foras que lhe movem. Trata-se de paixo pelo desconhecido, com os ouvidos atentos aos sopros do vento sem-pre imprevisveis e sacudidores em vez da estabilidade da Rocha Eterna. Em geral, os telogos, por meio da razo, esto sempre inevitavelmente impondo seus pontos de vista aos outros. At mesmo a tolerncia, quando exercida por alguns telogos, ser sempre imposta, uma vez que a clareza resultante de sua obra sempre far parte do projeto incontido da compreenso da ver-dade. O teo-poeta, por sua vez, comea dos sinais que flutuam livremente sem qualquer preocupao com a verdade e com as certezas. Os telogos buscam falar com clareza a respeito do certo e do errado. O teo-poeta preserva a interioridade dos indivduos no seu auto-julgamento e auto-exame e descreve o que v sem utilizar necessariamente teorias, provas ou postulados. Os telo-gos vivem pela mente. Os teo-poetas tm o corpo que funciona como episteme frgil e passageira. Os telogos tentam nos dizer quem somos e o que devemos pensar sobre ns, sobre o mundo e sobre Deus. Os teo-poetas no tm certezas, mas continuam a escrever sobre o que desconhecem embora fazendo de conta que tudo sabem. Os telogos procuram ser honestos e verdadeiros. Os teo-poetas, como dizia Fernando Pessoa, so fingidores.4 Os telogos esto comprometidos com seus fiis pensamentos, cons-3 O termo teo-poeta usado aqui como lembrete: theos tem aqui a noo dada por Charles

    Winquist em seu livro, Desiring Theology, alm da noo grega considerando-o o desconhe-cido.

    4 O poeta um fingidor. Finge to completamente/ que chega a fingir que dor/ a dor que deveras sente. Fernando PESSOA em O livro do desassossego.

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    trues racionais de suas mentes brilhantes. Os teo-poetas esto comprometidos apenas com os seus sentimentos:

    E os meus pensamentos so todos sensaes. Penso com os olhos e com os ouvidosE com as mos e os psE com o nariz e a boca.Pensar uma flor v-la e cheira-laE comer um fruto saber-lhe o sentido.5

    Os telogos constroem barreiras para estabelecer quem est dentro ou fora de suas comunidades por meio de confisses de f. Os teo-poetas tambm confessam a f. Dessa forma, seguem o conselho de Mrio Quintana: Eu sempre achei que toda confis-so no transfigurada pela arte indecente. Minha vida est nos meus poemas, meus poemas so eu mesmo, nunca escrevi uma vr-gula que no fosse uma confisso.6 Quando lemos as Confisses de Agostinho com cuidado, veremos que sua inveno literria tende para o lado dos teo-poetas.

    Chamo Kierkegaard de teo-poeta porque sua f baseava-se no amor, na paixo e na impossibilidade de se transformar em aconte-cimento pleno. A f o tema central de seu pensamento a ponto de consider-la presente em todos os seres humanos. No achava que fosse dom oferecido por Deus a alguns, como ddiva predestinada a escolhidos. Entendia a f de maneira mais ampla vendo-a como cria-o humana, tecida nos absurdos e esperanas da vida. Tratava-se de paixo pelo desconhecido, desejo do impossvel e como o escu-deiro da f desejava vencer o invencvel para alcanar o inatingvel. F paixo: apetite pela vida na plenitude, mpeto na direo do alm e desejo pelo impossvel. Localiza-se na religio. A est o lugar dos que querem alcanar o inalcanvel sem a ajuda das certezas. o caminho do impossvel. Essa paixo amor, talvez a mais intensa das paixes humanas. Assim, a f se faz paixo e a religio o lugar dos amantes apaixonados. Em Temor e tremor, diz: A f um assombro e, contudo, nenhum ser humano excludo dela; pois a paixo rene a vida humana e a f essa paixo.7

    5 Fernando PESSOA. O guardador de rebanhos.6 Mnica MONTONE. Nomes gigantescos. Entrevista em www.culturall.com.br/poesia/entrevista-

    do.htm.7 Soren KIERKEGAARD. Concluding Unscientific Postscript. In: Mark C. TAYLOR. Journeys

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    Somente a teo-poesia seria capaz de perceber a f como paixo em vez de logos, de regula ou de lgica. Convm observar que a teo-poesia no evita o uso de logos como palavra porque no po-demos viver sem a linguagem. Alm disso, tal esforo seria intil. Contudo, a teo-poesia no depende do logos nem de qualquer meta narrativa. Em vez disso aspirao, busca ao acaso nos desertos e oceanos onde os traos apagados dos deuses talvez ainda possam ser vistos. A teo-poesia deseja conhecer o desconhecido, com o de-sejo ardente pelo que est alm da transcendncia e da imanncia, nem aqui nem ali nem nas coisas que enganosamente pensvamos ter encontrado. A teo-poesia essa arriscada e apaixonada tarefa, encarregada de alargar os limites de nossa humanidade e de pro-duzir o que se encontra na paixo. Kierkeggard nos sugere na obra Concluding Unscientific Postscritp o que poderia ser essa teo-poesia:

    Se a infelicidade desta poca consiste em ter se esquecido do signi-ficadoda interioridade, no se trata, naturalmente, de resolver o pro-blemaescrevendo para os que gostam de ler, mas ser preciso que os existentesreais sejam representados em suas desiluses, quando tudo lhes parececonfuso. Trata-se de algo diferente de nos sentarmos confortavel-mentejunto lareira e recitar o omnibus dubitandum. Se nossa produoquiser ter algum valor dever sempre estar imbuda de paixo.8

    Este ensaio pretende examinar brevemente a questo da im/possibilidade de Deus para Kierkegaard, tema que aparece tam-bm no centro de algumas preocupaes teolgicas. Para reali-zar essa tarefa vou dialogar com a obra de Steve Shakespeaare, Kierkegaard e a realidade de Deus. A genialidade e a liberdade de Kierkegaard transformaram a teologia de lugar racional e dog-mtico na f existencial dada aos amantes apaixonados at mesmo por Deus. Ele nos conduz do rgido projeto onto-teo-lgico s inesgotveis possibilidades da teo-poesia.

    of Seflhood. Hegel and Kierkegaard, p. 91.8 Ibid.

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    1. O salto da F

    Kierkegaard nasceu na sociedade dinamarquesa vitoriana quando o cristianismo era a religio automtica de todos os seus habitantes. Sendo assim, competia a cada pessoa a tarefa de enten-der na vida adulta os conceitos e a lgica da f crist para, afinal, prestar-lhe homenagem. Esse tipo de cristianismo preocupava ter-rivelmente o jovem Soren Kierkegaard. Treinado para ser pastor na Igreja Luterana da Dinamarca, logo sentiu que essa igreja havia transformado a f crist num conjunto de declaraes e de modos de pensar filosficos destinados a garantir o ingresso na cristanda-de. Fazia da f algo demasiadamente fcil e sem problemas, longe do corao do cristianismo. Para Kierkegaard, A cristandade uma iluso... As pessoas atentas e portadoras de certa clareza de viso ao considerar o que se chama de cristandade mostrar-se-o, sem dvida, seriamente desconfiadas.9 A igreja assumia a tarefa de revestir as afirmaes crists com termos filosficos adequados para tornar o cristianismo verdadeiro e confivel, vivendo assim o conceito hegeliano de cristianismo como se fosse a mais alta forma de conscincia na histria. Mark C. Taylor, declara, de fato, Hegel se tornou o filsofo da cristandade. Em contraposio, Kierkegaard constantemente entendia negativamente tanto o con-ceito de cristandade como a filosofia de Hegel.10

    O ponto de vista de Kierkegaard sobre o cristianismo opunha--se ao ensino da igreja. Criticava a religio fcil da igreja por ser mais intelectual do que existencial. Para ele, esse tipo de filosofia corrompia o cristianismo e afastava as pessoas da religio de Cristo. O hegelianismo deformava a f transformando-a em algo pobre e fcil. A f crist transformava-se numa religio sem dificuldades, sem temor, sem mysterium, sem deciso - constitua-se em sistema de crenas e em tipo de conhecimento em lugar de peregrinao cuida-dosa e cheia de riscos. A f tornava-se num tipo de viagem guiada sem qualquer relao com a existncia real. Como escreveu John D. Caputo: O hegelianismo o outro lado da moeda de Johannes de

    9 Soren KIERKEGAARD..On My Work as an Author, The Point of View. In: The Essential Kierkegaard, p. 457.

    10 Mark C. TAYLOR. Kierkegaards Pseudonymous Authorship. A Study of Time and Self, p. 31.

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    Silentio, porque procura comprar a f pelo menor preo possvel, sem temor e tremor, com o mnimo de esforo e dificuldade, remo-vendo o paradoxo e o terror, o momento da loucura.11

    A crtica de Kierkegaard ao hegelianismo tinha a inteno de aju-dar as pessoas a se tornarem melhores cristos. Achava que era essa a finalidade de seus escritos.12 Contudo, essa melhoria significava a compreenso mais problemtica, mais controvertida, mais complicada e mais dificultosa da f. que, entre outras coisas, Kierkegaard no acreditava em qualquer comunicao direta das pessoas com Deus ou entre a f e Deus. A relao entre Deus e a humanidade era impossvel e o dom da f no envolvia nenhuma reciprocidade possvel.

    Por outro lado, aprendemos com Kierkegaard o paradoxo da f, sua loucura divina capaz de superar qualquer outra loucura, a f aberta para o desconhecido e o salto confiante no abismo. Em Temor e tremor, Kierkegaard recorda a histria do mysterium tremendum perceptvel em Abrao. Nessa histria no se precisa de filosofia. Ao contrrio, Abrao guiado pela f que no pode explicar. Ele a vive em seus prprios ossos. Quando lhe pergun-taram onde estava o cordeiro para o sacrifcio ele simplesmente respondeu: Deus prover. A jornada de Abrao no caminho do sacrifcio de seu filho foi a experincia do horror, da angstia do medo e do tremor. Em face disso, Kierkegaard no podia entender a ausncia desses sentimentos na f crist da Dinamarca de seus dias. Utilizou assim essa experincia de f para denunciar a f segura, opaca e vazia vivida por seus contemporneos.

    Segundo Kierkegaard, a f de Abrao teve dois movimentos: o da resignao infinita e o da f. No primeiro caso, ele se rende totalmente a Deus. Buscou a verdade no no mundo, mas em Deus. Abrao encontrou a verdade quando se ofereceu correndo o risco de tudo perder. Renunciou as exigncias morais, tudo abandonando. Nesse momento, sacrificou Isaque e tambm se sa-crificou. Nas palavras de Johannes de Silentio, esses atos foram cometidos em virtude do absurdo.13 De Silentio chama esse fato

    11 John CAPUTO. Instants, Secrets and Singularities: Dealing with Death in Kierkegaard and Der-rida. In: Martin MATUSTIK; Merold Westphal WESTPHAL (editores). Kierkegaard in Post/Modernity, p. 219.

    12 Soren KIERKEGAARD..On My Work as an Author, The Point of View. In: The Essential Kierkegaard, p. 468.

    13 Soren KIERKEGAARD. Fear and Trembling. In: The Essential Kierkegaard, p. 98.

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    de coragem da f.14 Ao se integrar plenamente com esse gesto de f, Abrao torna-se o cavaleiro da resignao infinita.

    O segundo movimento o da f quando Abrao recebe de volta das mos de Deus o seu filho Isaque. O anjo segura sua mo, surge o cordeiro e Abrao volta para a casa com o filho. A est o paradoxo da f: o cavaleiro da resignao infinita encontra o cavaleiro da f no mesmo momento. Abrao ao mesmo tempo o incrvel cavaleiro da f e o heri trgico, o assassino. Kierkega-ard maravilha-se: No consigo entender Abrao; de certo modo nada posso aprender dele a no ser esse deslumbramento.15

    Para Kierkegaard chega um momento em nossas vidas no qual encontramos esses dois cavaleiros vivendo dentro de ns. Somos chamados a abandonar nossos Isaques, porque esse nome significa tudo na vida de Abrao. Depois de tudo sacrificar, o cavaleiro da resignao infinita aguarda o cavaleiro da f e seu futuro quando as coisas perdidas podero ser retomadas. o que Kierkegaard faz com Regina, o amor de sua vida. D-se com-pletamente a ela, mas, para provar esse amor, ele a renuncia e no se casa com ela. Abrao abandona Isaque e fica esperando por sua ressurreio. Kierkegaard abandona Regina e fica es-perando pelo dia em que a ter. F significa aceitar esse futuro incerto, com paixo, mas tambm como promessa.

    Segundo Kierkegaard, estamos na mesma situao de Abrao: somos chamados a responder a Deus com f e no com a razo. Estamos tambm na mesma situao dos discpulos que viram Je-sus e responderam com f na jornada da felicidade na vida de Jesus. Para ele somos contemporneos dos discpulos, na mesma jornada de felicidade em Jesus. No outro lado desse paradoxo, a razo sempre quer explicar porque deveramos seguir Jesus e em que condies teramos de aceit-lo e de crer nele. O paradoxo exige a f e no a compreenso, pela felicidade na vida de Jesus que no se relaciona com conhecimento, mas com paixo. Para o cristo o que importa a f por meio do processo da interiorida-de. A f , portanto, escndalo e ofensa razo.

    Kierkegaard busca o desabrochar da interioridade da f na sua dialtica da existncia. Desenvolve-se num processo de amadu-

    14 Ibid. 15 Soren KIERKEGAARD. Fear and Trembling. In: The Essential Kierkegaard, p. 95.

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    recimento por meio de trs estgios: esttico, tico e religioso. O esttico constitui-se de raciocnio, percepo e motivao, guiado pelo sensualismo. Os princpios do prazer operam para a superao do tdio da vida. O estgio tico tambm constitudo por racio-cnio, percepo e motivao, mas vai ser guiado pela devoo tica e regra moral universal. Nesse estgio, nossos atos sempre consideram o outro. No estgio religioso, o raciocnio, a percepo e a motivao so orientados pela devoo ao divino. Kierkegaard define dois tipos de religiosidade: o primeiro que considera o que as religies tm em comum e o outro, que a religio apreendida por meio do paradoxo. Para ele, o paradoxo a caracterstica nica do cristianismo. O estgio religioso tem dois lados, interrelacionados. Em primeiro lugar, a possibilidade socrtica da verdade infinita e, depois, a possibilidade do encontro da felicidade no ser finito cha-mado Jesus Cristo. A encarnao da verdade infinita no ser finito de Jesus Cristo a confluncia da objetividade com a subjetividade.

    O ponto central do projeto de Kierkegaard a transio entre esses estgios. Ela no se d automaticamente na forma de con-seqncia lgica de eventos na vida humana, mas por meio de escolha individual, de movimento interno de resoluo pessoal des-tinada a definir o futuro. No se trata de deciso fcil posto que ser sempre cercada de ansiedade, temor e desespero. Essa transio marca a descoberta da verdade interna e a nica maneira para que algum se torne um eu. Tal movimento de interiorizao assustador. Em qualquer transio, as verdades encontradas sempre sero subjetivas, pois a verdade objetiva no jamais possvel. Mas se a objetividade fosse possvel seria sempre incerta e vivida com paixo. Segundo Kierkegaard, o domnio da esfera religiosa no acessvel a todos. Para se ingressar nesse estgio preciso abandonar o mundo finito, viver em isolamento absoluto e resignao infinita no Monte Mori (que significa Deus ver), esperando pela visita de Deus que transformar o seu servo num cavaleiro da f. Mas quem ser capaz de abandonar todas as coisas? Isso o salto da f.

    2. Teoria da Comunicao Indireta

    Para Kierkegaard o centro da mensagem crist o abandono absoluto perante Deus no contexto de um paradoxo sem soluo.

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    Ele no queria baratear o cristianismo como fazia a igreja di-namarquesa. Queria intencionalmente complicar a religio. Mais ou menos como Jesus, nas parbolas, queria falar sem linguagem explcita. No podia falar de outra forma. Na sua teoria da comu-nicao indireta, Kierkegaard desejava falar sem se preocupar com a compreenso direta. Ou melhor, nas palavras de Paul Ricoeur, suas palavras queriam ser uma existncia incomunicvel.16

    Essa filosofia individualista opunha-se totalidade do conheci-mento ensinada pelo hegelianos e outros idealistas alemes. Escrevia a partir de sua experincia individual. Para ele a existncia era mais importante do que o Geist, o Esprito que Hegel achava presente no universo com sua capacidade de tudo abraar, expressar e explicar a subjetividade e a objetividade, o infinito e o finito, o universal e o particular. Por causa dessa mudana de tonalidade e da tentativa de sondar mais profundamente o mbito de sua prpria existncia, Kierkegaard foi considerado por alguns o pai do existencialismo.

    A filosofia de Kierkegaard baseia-se na necessidade de se co-nhecer a existncia do indivduo mais do que a existncia das coisas. Est primeiramente preocupado com as verdades existenciais com a verdade interna do indivduo moldada por revelaes pessoais, escolhas individuais e valores singulares. A verdade para ele, ou melhor, a verdade subjetiva, no podia se submeter a critrios p-blicos nem a escrutnios objetivos. Era coisa profundamente ntima, pessoal e intransfervel. Caputo comenta: O que chamo de Deus, Deus em mim, me chama para que eu seja eu, o eu interior, que Kierkegaard chama de subjetividade.17 A natureza da verdade sub-jetiva exige maior nfase na maneira como se diz a verdade do que no seu contedo. Diz Kierkegaard: A nfase objetiva est no que se diz; a subjetiva, no como se diz (...). Assim, o como da verda-de precisamente a verdade.18 Para Kierkegaard a verdade no objetiva nem dada ao indivduo de modo objetivo. Em vez disso, qualquer verdade precisa atravessar os componentes internos da existncia individual. Trata-se, ento da escolha. Nos aspectos da

    16 Paul RICOEUR. Kierkegaard: a Critical View, p. 1217 John CAPUTO. op. cit, p. 230.18 Soren KIERKEGAARD. Concluding Scientific Postscripts in Philosophical Fragments. In: The

    Essential Kierkegaard, p. 217.

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    vida a deciso pessoal sempre necessria. Da a concluso de que todos somos responsveis por nossa vida e destino.

    Levando esta anlise para leituras mais religiosas, diremos que o como das verdades que afetam nossas vidas e atos. Agimos de acordo com nossas crenas; elas so motivadas por valores e no por fatos. Os fatos so interpretados na contingncia de valores em contextos especficos. A f, portanto, no algo que se possa dar, re-ceber e muito menos entender, mas a chave que apaixonadamente nos ajuda a tomar decises. O salto da f o reconhecimento de que somente a verdade subjetiva pode ser encontrada na subjetividade (onde acontecem as decises) e no na objetividade. Para Kierkega-ard, a deciso subjetividade (...) Somente na subjetividade est a deciso, ao passo que o desejo de objetividade leva mentira.19

    A mudana filosfica que Kierkegaard prope nasce da manei-ra como filosofa. Ela no depende dos contedos de seu pensamento, mas da maneira como escreve e como vive sua vida. Vou me concen-trar na maneira como ele escreve com algumas referncias sua vida. Sua teoria da comunicao indireta baseia-se no uso de pseudnimos, especulaes, parbolas, pardias, recepo e expresso de elementos do corpo, ironia, paradoxos entre outros meios de comunicao.20 Chama-se de poeta e d mais importncia maneira como comunica a verdade (no como) do que no contedo objetivo. No acreditava em sistema de verdades objetivas. Nesse sentido, a teologia no lhe podia ajudar. Preferia a poesia. Posto que as verdades so subjetivas e experimentadas na existncia, a poesia era capaz de ajudar os leitores para a apreenso de seus prprios seres. A poesia no busca certezas. A poesia move-se livremente no terreno ctico onde as palavras so devoradas com paixo e no com conhecimento. Procura mostrar que o comunicvel no comunicvel por meio de trs canais de comunicao indireta: ironia, pseudnimos e paradoxo.

    19 Ibid, p. 202 e 206.20 Pensadores como Derrida citam o uso que Kierkegaard faz de algumas partes do corpo como

    os olhos e os ouvidos. Cf. The Ear of the Other: Otobiography, Transference, Translation. Texts and Discussions with Jacques Derrida. Lincoln and London, University of Nebraska Press, 1985. No recente filme de Kirby Dick e Amy Ziering Kofman, Derrida, Derrida fala da impossibilidade do envelhecimento dos olhos, a partir de uma declarao de Kierkegaard em Either/Or, a Fragment of Life. Kierkegaard escreveu: (...) pois o olho, eternamente jovem, eternamente ardente, que v possibilidades em toda parte, citado em Soren KIERKEGA-ARD. The Essential Kierkegaard, p. 45.

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    Cludio Carvalhaes

    3.Ironia

    Emprega a ironia para tornar as coisas confusas e difceis de compreenso. Ironia a tentativa de estabelecer no-relaes entre a forma do discurso e o contedo de sua mensagem. modo de jogar com os significados literrios e ilusrios das palavras. Assim, joga no apenas com pardias, oxmoros, sarcasmo, sugestes, exa-geros e falsidades, mas tambm com significados previsveis inver-tendo contedos bvios. Para esse fim, utiliza-se de mtodos usados por Scrates e Jesus que recusam claridade total sobre temas parti-culares. Nem todas as pessoas entendiam imediatamente o que eles diziam. Em seu livro, O conceito de ironia, Kierkegaard estuda Scrates como modelo de ironia. Chama-o de excntrico e de poe-ta cmico.21 Com o seu mtodo da maiutica, Scrates nunca dizia realmente o que pensava. Ao contrrio, propunha questes a seus discpulos at que no tivessem mais argumentos e, aps, mandava--os embora vazios. O propsito desse mtodo consistia em ensinar os estudantes a aprender a partir de seus prprios contedos e capacidades, sem confiar inteiramente na prpria sabedoria. Seme-lhantemente, as parbolas de Jesus no eram para ser entendidas, mas, talvez, para inspirar assombro. Como se l no evangelho de Lucas: (...) aos outros, eu falo em parbolas, para que vendo no percebam e ouvindo, no entendam.22

    Em O conceito de ironia aparecem os principais conceitos que Kierkegaard desenvolver mais tarde. Define ironia da seguinte ma-neira: O elemento prprio do irnico , de um lado, a enorme variedade dos acontecimentos. De outro, o fato de que sua passa-gem pelo real etrea e flutuante. Est constantemente junto ao cho, e enquanto o verdadeiro reino da idealidade -lhe estranho e, portanto, no chegou a ele, parece-lhe estar sempre partindo.23

    A ironia tem a ver com a pardia e com o riso, com a con-templao e com a reflexo bem como com a excentricidade e com o real. Trata-se de infinito jogo de possibilidades, poderoso instrumento de crtica, de suspenso, de ampliao ou de reduo da realidade na qual se vive e do lugar e condio no mundo. Joga 21 Soren KIERKEGAARD. The Essential Kierkegaard, p. 23.22 Lc 8.10.23 Soren KIERKEGAARD. The Essential Kierkegaard, p. 454.

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    Kierkegaard, Poeta do Desconhecido

    com a presena e com a ausncia do contedo e das mltiplas possibilidades do sujeito, desmanchando o real e criando novas maneiras de ver pela via da negatividade. Continua Kierkegaard:

    A ironia certa qualificao da subjetividade. Nela, o sujeito mostra-se negativamente livre, uma vez que a realidade que lhe daria contedo no est l. Sente-se livre das obrigaes que a realidade dada impe sobre o sujeito. Por estar negativamente livre, sente-se suspenso. No h nada que lhe amarre. Mas essa mesma liberdade, essa suspenso, d-lhe certo entusiasmo por estar intoxicado, por assim dizer, pela infinidade de possibilidades. Se precisar de qualquer consolo por causa das coisas que destruiu, pode recorrer s enormes reservas encontradas na possi-bilidade. Contudo, no se abandona a esse entusiasmo: apenas nele se inspira e se alimenta para a tarefa da destruio.24

    Sua ironia tambm servia para criticar o seu tempo e lhe oferecer correes. Escreveu nos seus dirios: Minha tarefa con-siste em prover corretivos existenciais por meio da apresentao potica das idias despertando o povo para a ordem estabelecida, com a qual colaboro ao criticar todos os falsos reformadores e as oposies nocivas que essas mesmas idias podem interceptar.25

    A ironia, assim, era poderoso instrumento do trabalho de Kierkegaard. Esse mtodo mais confundia do que esclarecia, buscando o imprevisvel e jogando constantemente com os signi-ficantes. Procurava confundir os leitores para comunicar indire-tamente verdades subjetivas. Nas obras de Kierkegaard, s vezes nos achamos; s vezes nos sentimos completamente perdidos.

    4.Pseudnimos

    Kierkegaard emprega pseudnimos para chamar os leitores ao dilogo, em estilo socrtico. Trata-se do uso da maiutica com a finalidade de suscitar idias, rplicas e consideraes. Por esse meio pretende levar os leitores a perceber suas idias bem como as deles. Ricoeur entende que a existncia incomunicvel de Kierkegaard transparece em seus pseudnimos que so especula-

    24 Ibid, p. 29.25 Soren KIERKEGAARD. Journals and Papers No 708, Papier X4 A 15, Kierkegaards Pseud-

    onymous Authorship. A Study of Time and Self, p. 369.

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    tivos: Ningum jamais conseguiu transferir a autobiografia para mitos pessoais como ele (...) por meio de seus personagens elabo-rou certo tipo de personalidade fictcia para ocultar e dissimular sua existncia real. Tal estilo potico... no pode se situar nos limites ou escopos da comunicao comum.26

    Kierkegaard admitia que seus escritos eram mentirosos e que sua autoria no tinha autoridade:

    Desde o comeo tenho constantemente me divertido dizendo que nunca tive autoridade. Sempre me considerei mero leitor de livros: nunca autor. Assim, nas obras em que uso pseudnimos no existe nenhuma palavra de minha autoria. No tenho opinio sobre essas obras a no ser como terceira pessoa. No conheo seu significado a no ser como leitor nem a mais remota relao com elas, por que es-sas coisas so impossveis quando se trata de comunicao duplamente refletida. Qualquer palavra que fosse a pronunciada em meu nome seria bom exemplo de arrogncia e se vista dialeticamente incorreria na culpa de estar destruindo o pseudnimo.27

    A noo de autoria na obra de Kierkegaard subentende que o autor permanece incgnito. Ele aquele que ningum conhece e que, por isso, no pode influenciar os leitores em suas decises e orientaes. Quando o leitor no conhece o autor, relaciona-se apenas com as diferentes representaes do pseudnimo. Livra-se, assim, de se afetar de maneira especfica, no caso, pela vida pessoal de Kierkegaard. Os leitores so deixados a ss com o pseudnimo, forados a decidir a respeito de sua verdade subjetiva por meio dessa influncia indireta. Por esse meio, o pseudnimo quer apre-sentar mundos ideais para o leitor, descrevendo diferentes egos em diferentes estgios da vida. Mark C. Taylor diz que Kierkegaard por meio de representaes ideais de diferentes pontos de vista faz com que o leitor esclarea a compreenso de si mesmo.28 Da mesma forma, os catorze escritos de Kierkegaard assinados com pseudni-mos queriam expressar diferentes pontos de vista. Achava que o

    26 Paul RICOEUR. Philosophy After Kierkegaard. In: op. cit, p. 12.27 Soren KIERKEGAARD. On My Work as an Author, The Point of View. In: The Essential

    Kierkegaard, p. 454.28 Mark C. TAYLOR. op. cit., p. 30.

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    pseudnimo era excelente para acentuar posies, situaes e teses. Criava uma pessoa potica (...).29

    Com os pseudnimos pensava criar meios para dizer que a ver-dade objetiva era impossvel uma vez que diferentes autores repre-sentavam vrias expresses subjetivas do mundo e de si mesmos. Desafiava assim os leitores a ver o mundo por meio de particularida-des, por meio de vises de autores irreconhecveis, permitindo que o leitor tambm decida subjetivamente sobre o que lhe era oferecido e representado. Queria, assim, pulverizar a idia monoltica do Geist hegeliano e da idia totalizadora da cristandade, destruindo as bases das representaes puras e abrindo brechas para novos modos de compreenso. Queria ressaltar tambm nossas feridas e oferecer sig-nificados indecidveis, diferentes estgios de vida, meras contingn-cias e inmeras verdades interiores impossveis de realizao.

    Kierkegaard era poeta e assim se considerava. Relembra o poe-ta portugus, Fernando Pessoa, que criou trs pseudnimos alm de seu nome prprio para produzir sua vasta obra potica. Fernando Pessoa foi quatro poetas num s: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, l-varo de Campos e ele mesmo, todos diferentes uns dos outros. Cada qual tinha habilidades, identidades, singularidades e interesses espe-cficos. Por meio de modos divergentes ou receptivos cada um deles apreendia o mundo com sentidos diferentes, com vozes distintas e perspectivas dissonantes. Cada qual mostrava maneiras singulares de compreenso, anlises prprias e respostas incongruentes para as mesmas questes. Conseguiam manter suas subjetividades e as prprias decises sobre suas verdades. Representavam o esforo de Fernando Pessoa de demonstrar a existncia de diferentes modos de apreenso, de entendimento e expresso do mundo.

    5.Paradoxo

    Segundo Kierkegaard no existe f sem paradoxo. A f capaz de ser entendida no f. Para Johannes de Silentio, um de seus pseudnimos, Abrao foi o verdadeiro cavaleiro da f. Entretanto, quando menciona Abrao, mostra-se tambm chocado com o que

    29 Soren KIERKEGAARD. Papier X1 510, in Armed Neutrality and An Open Letter. In: Ki-erkegaards Pseudonymous Authorship. A Study of Time and Self, p. 55.

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    fez. Sua admirao acompanhada de forte crtica. Como foi esse homem capaz de sacrificar o prprio filho e acreditar, ao mesmo tempo, que o recuperaria? E pior, como fora capaz de matar o prprio filho? Faz o seguinte comentrio a respeito de Abrao: Humanamente falando, ele era louco e podia ser compreendido por ningum. Contudo, dizer que ele era louco ainda pouco (...). Ele foi maior do que todos os outros por causa de seu poder refor-ado pela impotncia, por causa de sua sabedoria cujo segredo era a tolice, por causa de sua esperana baseada na insanidade, e por causa de seu amor que acabava sendo o dio de si mesmo.30

    Kierkegaard chama a condio de Abrao de loucura divina. A insanidade de Abrao salva por sua ligao com o divino, re-presentada por sua f impossvel. Ele pode falar a linguagem divina compreensvel apenas por Deus. Agia em favor do indivduo em detrimento do universal, abandonando a tica em nome do fim teleolgico. No se pode entender o ato de Abrao nem valid-lo nem mesmo atur-lo. Contudo, existe algo em sua ligao com o divino que insiste em mostrar que seu ato no simples negao, mas plenamente paradoxal. Para ser um cavaleiro da f preciso carregar o fardo das prprias escolhas e atos sempre envolvidos em paradoxos, ambigidade, medo e tremor. Nada se pode esconder do assim chamado plano ou projeto racional e geral de Deus para a vida. Johannes diz: A f esse paradoxo (...) o indivduo no consegue se tornar inteligvel aos outros. As pessoas imaginam que o indivduo possa se tornar inteligvel aos outros indivduos no mes-mo caso (...). Mas o cavaleiro da f nada pode fazer pelos outros. O indivduo s se torna um cavaleiro da f quando assume o fardo do paradoxo. No seu caso no se pode pensar em companheirismo.31

    A teologia tanto na poca de Kierkegaard como na nossa pro-cura explicar a f para superar a ansiedade dos paradoxos e oferecer verdades racionais e relacionais. At mesmo o que se chama mistrio da f deve ser decifrado. A teologia com sua ao performtica, tanto por meio de livros como de liturgias, no pode deixar a f insegura, vaga e cheia de paradoxos. Os sacramentos, por exemplo, considerados espaos privilegiados da habitao do sagrado, onde o paradoxo mais se manifesta com suas contradies, por meio de

    30 Soren KIERKEGAARD. Fear and Trembling, p. 86.31 Ibid. pp. 81-82.

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    explicaes racionais so dados aos crentes por meio de formas bem ordenadas e de contedos racionais. A teologia valoriza na relao entre os fiis e os sacramentos o modo prprio, a celebrao correta e as crenas adequadas a fim de que os participantes possam utiliz--los, entend-los e deles fruir. Segundo Kierkegaard essa maneira de fazer teologia e de viver a f idlatra e nega o que a f deveria ser. Para quebrar esse sistema codificado, Kierkegaard que sempre foi um inimigo dos sistemas32 acentua o carter paradoxal da f, ensinando que ela no pode ser entendida, desafiadora, assustadora e completa-mente impossvel de ser vivida em qualquer ato litrgico. Ele vai to longe em seu projeto que Paul Ricoeur chegou a dizer que seu cristia-nismo seria impossvel de ser praticado: Certamente, o cristianismo que ele descreve to extremo que ningum poderia pratic-lo.33

    Para Kierkegaard a f condio existencial e no a conseqn-cia de pensamento racional ou de compreenso especfica. Ela no pode ser demonstrada objetivamente. Como diz Richard Kerney: A f existencial um projeto lanado com dvida, ansiedade e desejo. S pode ser assumida pelos indivduos solitrios quando acreditam no chamado divino mesmo sem qualquer evidncia objetiva para apoi-la. Ser sempre absurda, mas, assim mesmo, f.34 Os fiis podem expressar as razes de sua f, mas no podem test-las obje-tivamente nem prov-las racionalmente. Ela s pode ser explicada s expensas de sua incerteza, inadequao e irracionalidade. A f deve ser vivida. O crente encontra a verdade em sua interioridade e sente--se vontade para dizer como Abrao, Deus prover, sem saber exatamente de que maneira ser a proviso divina. A f no preci-sa de entendimentos racionais de contedos ou de fundamentao objetiva da verdade. Ela precisa de escolha apaixonada, da jornada interior da vida humana onde o fiel se d inteiramente e depois tudo recebe de volta. O salto da f a paixo pelo desconhecido, desejo de se jogar no abismo, na eternidade e em Deus. A f reconhece os perigos e a fragilidade de sua empresa mas, no obstante, se joga.

    Richard Kerney assim se refere razo e f em Kierkegaard: para o cavaleiro da f no h possibilidade de conhecimento no importando se a escolha religiosa tenha sido objetivamente verdadei-

    32 Mark TAYLOR. op. cit., p. 23.33 Paul RICOEUR. op. cit., p. 13.34 Richard KEARNEY. The Wake of Imagination. Toward a Postmodern Culture, p. 202.

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    ra ou falsa. por isso que a representao da f desenhada por ele o salto no escuro submetido ao risco e incerteza.35 Abrao jogou--se no desconhecido por causa do absurdo e perdeu o equilbrio:

    Acreditava em virtude do absurdo; no estava em jogo nenhum cl-culo humano. Foi absurdo que Deus depois de ter feito sua exigncia tivesse voltado atrs. Ele subiu montanha. Mesmo no momento em que a lmina de sua faca brilhou ele ainda acreditava que Deus no exigiria, afinal, o sacrifcio de Isaque (...). Acreditava em virtude do absurdo, pois qualquer clculo humano j havia sido abandonado.36

    A f vive em virtude do absurdo, e o absurdo no tem explica-o. Carrega em si o irracional e a impossibilidade de ouvir. A partir de suas razes, ab surdus significa tornar-se surdo. A f deixa de lado as explicaes racionais. No as ouve. Vive pela capacidade de de-safiar e de no entender. Vive de ter esperana contra a esperana.

    Das profundezas e da superfcie de ns mesmos, a f (ltima esfera da existncia) toma nossa vontade, corpo e desejos e nos ajuda a saltar no abismo de Deus. compromisso existencial li-berto de argumentos filosficos e de verdades lgicas, situada no paradoxo sem soluo da loucura e da divindade. Nesse funda-mento movedio, ela a afirmao do estranho e o salto apaixo-nado no desconhecido. O salto da f o paradoxo. o que diz Kierkegaard: O paradoxo exige f, no compreenso. Quando a compreenso e o paradoxo se encontram no momento quando a compreenso se apaga e o paradoxo oferece o terceiro indeter-minado, que o lugar desse encontro (...) o que acontece a a paixo feliz para a qual daremos agora um nome, embora para ns no se trate de nome. Chamaremo-la de f.37

    6. Kierkegaard e a Im/possibilidade de um Deus real

    Minha interpretao tentou at aqui achar um lugar onde Kierkegaard no pudesse ser chamado nem de realista nem de anti--realista. Mas, na verdade, este ensaio pendeu mais para o carter

    35 Ibid, p. 203.36 Soren KIERKEGAARD. Fear and Trembling, pp. 46-47.37 Ibid.

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    anti-realista do que para o outro, o realista. Ele podia acreditar na transcendncia de Deus, embora sem express-la com clareza, por-que no havia verdade objetiva para ser apreendida ou entendida. Tambm no havia qualquer comunicao direta da existncia de Deus nem a respeito dela. Por outro lado, no nego a possibilidade da existncia do Deus transcendente no pensamento religioso de Kierkegaard. Seus escritos so bastante ambguos e do lugar a diferentes interpretaes principalmente a respeito de suas idias sobre a realidade de Deus.

    Steven Shakespeare, jovem filsofo britnico, tem se empe-nhado com muito interesse para entender a idia de Kierkegaard a respeito de Deus, no meio dos debates antigos e atuais a respeito do realismo e do anti-realismo.38 No escopo deste ensaio vamos nos limitar ao dilogo com os principais temas de seu pensamento. Brevemente, defino realismo como a interpretao teolgica e filo-sfica de Deus na qual sua existncia ou transcendncia no cabem nos limites humanos. O anti-realismo a interpretao teolgica/ filosfica de Deus baseada na premissa de que ele criao dos ideais humanos. Shakespeare leva cuidadosamente em considera-o diversas perspectivas sobre realismo e anti-realismo em sua interpretao da posio de Kierkegaard a respeito dessas duas possibilidades. Nesse debate, prope uma, terceira posio, de certa forma entre as duas que chamaremos de realismo tico.39 O realismo tico depende do anti-realismo ao afirmar que a f religiosa no questo de conhecimento nem de conceituao, e que no existe acesso imediato a Deus.40 Sobre o realismo, diz que Kierkegaard, adotaria o argumento de que a f religiosa no pode ser reduzida a simples lembrete de certos ideais humanos. A linguagem a respeito de Deus nos abre para a alteridade que no podemos eliminar ou usar segundo nossa vontade.41 Ao desenvolver seu argumento, Shakespeare corre sempre o risco de perder o equilbrio que ele tanto anuncia entre as duas opes j mencionadas. s vezes, Shakespeare supervaloriza o realismo, e perde o surd (irracionalidade) sempre necessrio e presente no

    38 Steven SHAKESPEARE. Kierkegaard, Language and the Reality of God.39 Ibid, p. 22.40 Ibid.41 Ibid, p. 23.

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    pensamento de Kierkegaard, deixando de lado a insustentvel le-veza de Deus. Shakespeare entende que no podemos, a nosso bel prazer, dispor da alteridade de Deus porque ele insondvel. No podemos simplesmente reduzi-lo ao mbito dos ideais hu-manos. Contudo, quando se leva em considerao a perspectiva realista, como Shakespeare, fica aberto o domnio das construes humanas. No se trata meramente de nossa vontade, mas da linguagem. As limitaes em relao para com Deus so sempre impostas por ns e no podemos escapar delas. Deus s ser Deus se ns, humanos, abandonarmos as tentativas de categoriz-lo ou de entend-lo por meio de nossa linguagem ou de outras media-es. Sempre que juntamos a Deus qualquer palavra e a transfor-mamos em fala, mesmo que paradoxal ou irnica, transformamos Deus num dolo.

    Ao final de seu livro, Shakespeare amplia os limites em ambos os lados, dizendo que seu realismo tico tenta limitar qualquer leitura direta de Deus, seja realista ou anti-realista. Parece retomar aqui a impondervel leveza do argumento e da impossibilidade do conhecimento de Deus. Por outro lado, e esse seu problema, ain-da acredita que Deus possa ser conhecido. Diz: Deus conhecido por meio dos paradoxos do pensamento e pela prtica da comu-nicao libertadora representada pelo texto. Deus conhecido nos modos do discipulado que a f nele possibilita (...).42 Relaciona a possibilidade de Deus (sua alteridade) com o que chama de sinais libertadores. Neste ponto perde tambm a sutileza do lugar onde Deus habita, fazendo com que ele esteja presente e, portanto, pos-svel. Vai, assim, do terreno livre da desconstruo para o funda-mento perigosamente estabelecido do dogmatismo. Acredito que chamaria isso de momento de deciso, de mudana, no desejo de captar o risco da deciso. Se for assim, no pode se esquecer de que qualquer deciso ser sempre tica, baseada nas contingncias humanas e jamais algo tomado da reificao de Deus. Quando isso acontece Deus se torna vtima do dogmatismo.

    Creio que a existncia de Deus no pode ser defendida nem pelo realismo nem pelo anti-realismo. Ao separarmos esses dois domnios, restaria ainda a tnue, apagada e deformada linha onde Deus habitaria em ausncia. Essa linha o testemunho no do

    42 Steven SHAKESPEARE. op. cit., p. 178.

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    Deus que Shakespeare sugere,43 mas da impossvel possibilidade de Deus. Quando algum afirma qualquer conhecimento de Deus, transforma-o em dolo. Como diz Derrida, Deus o possvel que se faz possvel.44 Por causa disso vivemos com temor e tremor. Deus sempre o futuro absoluto e, como o Messias no judasmo, est sempre por vir. Kierkegaard nos mostra que estamos tambm sempre no processo (heideggeriano) de vir a ser, como Deus. Mas quando trazemos Deus para o presente ns nos tornamos idla-tras. Na qualidade de discpulos do Deus impossvel, nos transfor-mamos em nmades errantes em terra incgnita, procurando os fragmentos de Deus em nossas decompostas construes. O amor apaixonado pelo desconhecido sustenta nossa peregrinao.

    Embora Shakespeare teologize sobre o Deus possvel, con-segue, assim mesmo, deixar aberto o crculo da interpretao. Faz-nos lembrar do auto-desfiguramento de Deus e da necessria desconstruo das reflexes totalizadoras. Cita Mark C. Taylor que ao interpretar o Deus de Kierkegaard nunca deixa claro se se trata de um outro nome para a diffrance moral ou se reconhece a possibilidade da graa e do amor transcendentes.45

    A conscincia do totalmente outro deve vir de outra parte; da prpria alteridade, `Deus`. Trata-se do nome imprprio para a exterioridade absoluta que resiste qualquer interiorizao ou lem-brana (...). Como a diferena que precede todas as diferenas, o Desconhecido, para sempre irreconhecvel, a condio tanto da possibilidade como da impossibilidade da razo.46

    O Deus de Kierkegaard descrito acuradamente nesta pas-sagem, sustentando a impondervel leveza de Deus bem como a linha tnue, apagada e constantemente desaparecendo na qual Deus realiza a possibilidade da impossibilidade. No nos cabe co-nhecer o Deus no qual Kierkegaard acreditava. Mas seus escritos parecem nos dar o caminho perfeito para a fala (im)prpria a respeito de Deus que estamos chamando de teo-poesia.

    43 Ibid, p. 27.: God must not be proved but witnessed to. 44 Jacques Derrida. Apud, John D. CAPUTO. On Religion, p. 10.45 Steven SHAKESPEARE op. cit., p. 236.46 Ibid.

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    7. Kierkegaard e a Poesia do Desconhecido

    Kierkegaard pode ser definido como telogo e filsofo. Mas ele mesmo se definia como poeta: Eu sou apenas um poeta... eia, so-mente um poeta... eu amo tanto esta vida terrena.47 Bem podemos cham-lo de teo-poeta porque seus escritos so todos religiosos. Mas esta no ser a nica razo para assim classific-lo. Chamamos de teo-poeta o que no se sente capaz de defender os mesmos signifi-cados por muito tempo e que mescla o divino com o humano por meio de palavras feridas, sem saber exatamente como definir esses termos e atmosfera. Nessa tarefa descentralizada de fazer poesia, s vezes o teo-poeta busca o duplo, s vezes convoca as sombras, os espelhos partidos e os fantasmas assombrosos. A teo-poesia uma conexo perdida irresolvida, incapaz de realizar adequadamente o projeto religioso do religare. Ele se embate sem fim com esse religa-re, sabendo de antemo que jamais ser capaz de realiz-lo.

    Lemos no Dirio de Kierkegaard: O potico a trama divina da existncia puramente humana (...) o cordo com o qual o divi-no se amarra existncia (...).48 O teo-poeta tenta entrar na exis-tncia em sua opacidade e na sua mistura de desastre e sublimidade, buscando o duplo. A teo-poesia a exposio metonmica de nossos excessos e faltas, o olhar fraturado sobre o abismo, a realizao de nossa tontura em face do vazio. a disperso de nossos tesouros sobre o semblante de nossos desgarrados corpos pulsantes, o terror da vida inevitvel e deslumbrante com seu desespero e fascnio.

    Kierkegaard, como teo-poeta, tenta superar a onto-teo-logia sem pretender preencher os possveis vazios, sabendo que sempre vivemos entre eles. No busca apreender a essncia das coisas por meio de palavras, como se fazia antes de Ado e Eva ou antes do mito da caverna de Plato ou ainda entre o iluminismo e a moder-nidade. A teo-poesia supera (ou pelo menos, tenta) a onto-teo-logia. Mas, como Kierkegaard, precisa utilizar palavras: quebradas, usadas, perdidas, impossveis e repetidas. Palavras com vida prpria sem re-laes esperadas nem significado. As palavras so tambm veculos de mudana, de transformao e das possibilidades das impossibi-lidades. As coisas so carregadas pelas palavras por meio do calei-47 Paul RICOEUR. op. cit., p. 24.48 Paul RICOEUR. op. cit., p. 24.

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    Kierkegaard, Poeta do Desconhecido

    doscpio de hermenuticas arbitrariamente escolhidas. A conexo se faz possvel em obscuros momentos revelatrios e em revelaes imanentes. Tais momentos levam o teo-poeta, como Kierkegaard, a se opor ao que tenta unificar o pensamento, a perpetuar verdades, a estabilizar pontos de vista, com a finalidade de sacudir as assim chamadas evidncias a servio do controle que reificam crenas e interpretaes. O teo-poeta procura no mundo sua paixo (f) e brilho entre as sombras de nossas runas e das migalhas de nossa luz. Nesse sentido, o teo-poeta exatamente a mesma coisa que Foucault disse certa vez a respeito dos intelectuais: Sonho com o intelectual capaz de destruir evidncias e universalismos, que nas inrcias e limites do presente, situa e marca os pontos fracos, as aberturas e as linhas de fora que incessantemente o abalam, que no sabe muito bem para onde est indo nem o que pensar ama-nh porque encontra-se totalmente atento ao presente (...).49

    Peo permisso para fazer um jogo de palavras. O teo-poeta como Calvino, no o famoso Joo Calvino, pregador moralista de Genebra, incapaz de ser poeta nem teo-poeta, mas do outro Calvi-no que foi amigo de Hobbes e que dizia: Entendo que o propsito de escrever consiste em inflar idias fracas, obscurecer o raciocnio pobre e inibir a clareza.50

    A teo-poesia no poesia a respeito de Deus. Tem a ver com a potica dos deuses e de Deus ou, como dissemos no incio, com o desconhecido. Ela nos relembra da fuga dos deuses e da perma-nncia de sua ausncia. Sente saudades dos deuses que fugiram da terra causando enorme hiato em nossa condio humana. Somen-te o poeta pode nos ajudar a viver nessa ruptura e nesse vazio, como Hlderlin que conseguiu perceber a fuga dos deuses de nosso mundo. Somente eles podem ver o movimento dos deuses. Os teo-poetas podem ver atravs da fratura das guas as sombras dos deuses fugitivos pelos nossos cus vazios. Heidegger descreveu o papel do poeta e a situao humana nestes termos: O poeta um semi-deus, entre os deuses e seu povo, situando-se a onde se decide quem o homem e onde ele habita.51

    49 Michel FOUCAULT. Foucault Live. Michel Foucault. 50 Bill WATERSON. The Calvin and Hobbes Tenth Anniversary, p. 184.51 Martin HEIDEGGER. Hlderlin and the Essence of Poetry. In: Michel INWOOD. A Heidegger

    Dictionary, p. 170.

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    A teo-potica uma forma de se fazer a/teologia. Essa teologia feita com palavras, mas sem a lgica cartesiana. No busca idias claras, consistncia, o cerne da questo nem momentos decisivos para o pensamento. No porque no o queira, mas porque co-nhece sua impossibilidade. Em vez disso, trata-se da busca sem fim pelo desconhecido que s aparece ocultando-se e s se oculta nesse aparecimento, surpreendendo-nos. a busca da palavra impossvel capaz de melhor traduzir a palavra indizvel.

    O Deus da teo-potica limitado por suas palavras. Como disse T. S. Elliot, S posso dizer que fomos, mas no posso dizer onde, a teo-potica a/teologia, sem Deus, arriscando-se nos domnios re-ligiosos da existncia, onde nos encontramos a ss com o Deus que no conseguimos ouvir, ver nem mesmo crer, mas sem qual no po-demos viver. Essa relao ser sempre amorosa e aterradora. Como disse Caputo brilhantemente: Estamos nas mos de Deus e no sabe-mos o que ele quer, qual seu prazer, coisas que esto secretamente veladas em silncio. No vemos nem sabemos o que Deus quer, pois se o soubssemos ele no seria Deus, isto , o totalmente outro.52

    O teo-poeta peregrina em terras desconhecidas com seu instrumento: sua paixo e amor pela vida. O lugar do teo-po-eta a religio considerada futuro absoluto, como diz Caputo:

    Esse futuro imprevisvel e nos tomar de surpresa, vindo como um ladro de noite (...) (1 Ts 5.2) abalando nossos horizontes tranqilos com as expectativas que cercam o presente (...). Com o futuro absoluto, digo, aportamos pela primeira vez na praia do religioso entrando na esfera da paixo religiosa, alcanando uma categoria distintamente religiosa (...). Cruzamos a fronteira dos mtodos racionais de planeja-mento, nos arriscando no tipo de coisa que deixa nervosos os gerentes das empresas, uma vez que nos arriscamos numa terra desconhecida.53

    Kierkegaard abriu a porta para os teo-poetas. Esses no pre-cisam estar a servio do logos. Em vez disso, podem jogar sem decidir com o logos ao acaso, e assim ajudaro o jogador a in/definir sua prpria deciso e escolher o risco a tomar.54

    52 John CAPUTO. Instants, Secrets and Singularities: Dealing Death in Kierkegaard and Der-rida. Kierkegaard in Post/Modernity, p. 220.

    53 John CAPUTO Instants, Secrets and Singularities: Dealing Death in Kierkegaard and Der-rida. Kierkegaard in Post/Modernity, pp. 8-10.

    54 Ibid, p. 216.

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    Kierkegaard, Poeta do Desconhecido

    Kierkegaard esse excessivo teo-poeta que no podia imagi-nar nada menos do que o impossvel. Seu amor comandou seus escritos, sua paixo levou-o a equacionar o poder incontrolvel da paixo com a f. dele que aprendemos que a religio para os amantes!55 O Deus excessivo de Kierkegaard torna possvel ao poeta o Deus impossvel.

    Paul Ricoeur parece ter encontrado a melhor maneira de definir Kierkegaard. Escreve:

    O pensador subjetivo diante de Deus, o puro contemporneo de Cristo, sofrendo a crucifixo com ele, sem igreja, sem tra-dio, sem ritual, s pode existir fora da histria. Eu sou o poeta do religioso, confessa, e me parece que devemos lev-lo a srio. Mas que ser que realmente quer dizer? provvel que nunca o saberemos. Kierkegaard situa-se em algum espao entre os estgios, nos interstcios e nas transies, como certo tipo de sinopse dos estgios esttico e religioso, omitindo o estgio tico (...). Kierkegaard no se encaixa em nenhuma categoria.56

    Com Kierkegaard chegamos ao domnio da religio sem qual-quer necessidade de dogmas ou de aceitao de uma f confessio-nal. Aprendemos com ele que no preciso relacionar Deus com crenas corretas, atitudes formais ou confisses de f, mas ver e realizar a f como paixo que nos leve ao desconhecido e nos aju-de a contemplar epifanias da escurido como cantou o salmista:

    Certamente as trevas me cobriro e a luz ao meu redor tor-nar-se- noite.57

    Concluso: Religio para Amantes

    Os que no acreditam no que diz a f confessional a respeito de Deus compartilham com o evangelho de Tom e esto sempre envergonhados de sua falta de f. Mas esses, proibidos de entrar no reino de Deus por causa disso, tratam do assunto com paixes extravagantes e maneiras sem graa. Contudo, todos so includos

    55 John D. Caputo utiliza esta definio no seu livro On Religion, demonstrando clara influncia de Kierkegaard.

    56 Paul RICOUER. op. cit., p. 13. 57 Salmo 139. 7-11.

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    por Kierkegaard no mbito da f. Ningum vive sem ela. A f uma maravilha e nenhum ser humano excludo dela; a paixo rene a vida humana e a f paixo.58 Volta-se para os que no podem crer de maneira adequada, e desmancha o significado da f, declarando que ela no certeza nem conhecimento, mas paixo e amor que sustentam a vida. Nesse amor todos so includos: os pa-ralticos, os esmoleiros, os incrdulos, os sem igreja, os malditos, os abominveis, os pecadores, os perdedores, os loucos e at mesmo os que amam em demasia. A religio , na verdade, para os amantes, para os que buscam ser impossivelmente cavaleiros da f.

    Aqueles que desejam viver pela f precisam estar no clima da mudana: Enquanto o pensamento objetivo investe tudo nos resultados e ajuda a humanidade a se enganar copiando resultados e respostas, o pensamento subjetivo investe tudo no processo da transformao (...) os que existem esto sempre no processo de vir a ser.59 No a razo que nos faz ter f. Como diz Mark C. Taylor, Kierkegaard nos oferece uma fenomenologia do esprito alternativa, na qual examina a dinmica do eu individual no mo-vimento para a f.60

    O maior paradoxo e a maior ironia da vida de Kierkegaard que no conseguiu viver pelos prprios padres. Diz Ricoeur: No foi suficientemente sedutor como Don Juan para ser esteta. Nem teve xito na vida tica: no se casou e no teve filhos nem manteve suas despesas exercendo uma profisso. Foi, assim, exclu-do da existncia tica descrita pelo Juiz Wilhelm em Ou/ou.61

    Tambm falhou no estgio esttico. Mesmo se entregando a Regina e a abandonando, confessou nos seus dirios que no possua suficiente f para se casar com ela. Escreveu: Se eu tivesse f, teria permanecido com Regina. No obstante, assim mesmo foi um cavaleiro da f. No poderia ter vivido sem a f que lhe permitiu dar o pulo na vida desconhecida sem ela. Abandonou sua amada Regina e ao contrrio do que aconteceu com Abrao, nunca conseguiu t-la de volta. Regina casou-se com outro e ele morreu antes dela se tornar viva.

    58 Soren KIERKEGAARD. Fear and Trembling. In: The Essential Kierkegaard, p. 101.59 Ibid, p. 191.60 Mark C. TAYLOR. op. cit.61 Paul RICOEUR. op. cit., p. 13.

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    Kierkegaard, Poeta do Desconhecido

    Nos domnios da f, que so os mesmos dos que erram nos desertos, participamos todos na histria de Abrao. Derrida chama a ateno para esta importante interpretao de Kierkegaard da histria de Abrao: talvez no possamos ter a f de Abrao, mas podemos participar no mesmo paradoxo da responsabilidade.62 Os infiis, principalmente os amantes, buscam poesia e vo atrs dos teo-poetas: poemas sobre o desconhecido, indizvel e sobre um certo sobre: palavras ardendo e flamejando em volta do sagrado, levando-nos para perto do fogo consumidor do Deus impossvel. Nessa busca, vive-se no mundo livre de associaes, de circunstn-cias contingentes, de momentos fugidios de verdades frgeis e frag-mentadas, provisrias e imaginadas. Danamos na beira do abismo, balanando os nossos ps. Nas margens do abismo onde Deus talvez viva, arrumamos nossas camas e dormimos, pois temos conscincia do risco. Contudo, no h outra sada alm dessa. Como diz Kierke-gaard, o estgio religioso nos leva a saltar e isso que tentamos fazer porque temos f apaixonada suficiente para acreditar que se cairmos, Deus, se tanto, talvez nos venha ao encontro.

    Para finalizar este ensaio vou citar dois possveis teo-poetas para junt-los a Kierkegaard e a mim mesmo. Comeo com Jaci Maraschin, poeta brasileiro:

    Quoniam iniquitatem meam ego cognosco

    ouo uma voz intermitenteque no se ouve e que me chamano silnciopercorre as minhas veias como fogoe desarruma as vsceras

    parece um canto de mulherno fundo do oceano

    essa inaudita voz que apenas sinto um calafrioque vai escorregando devagarpelos cabelosat se transformar numa alameda

    tapo os ouvidos com a escurido

    62 Jacques DERRIDA. Donner la Mort. In: John CAPUTO. Instants, Secrets and Singularities: Dealing Death in Kierkegaard and Derrida. Kierkegaard in Post/Modernity, p. 220.

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    e a voz apenas um zumbidoque vai subindo e vai descendopor entre os decibis da incompreenso63

    E para terminar, este poema de Rainer Maria Rilke:

    Quem, se eu gritar, me ouviria dentre a hierarquia dos anjos?E se por acaso algum deles me tomasse de repente em seu corao, eu pereceria diante de sua tremenda existncia.Pois a beleza no seno o comeo do terror que dificilmente su-portamos, e assim a admiramos porque calmamente nos desdenha querendo nos destruir. Todos os anjos so terrveis. Assim me contenho e engulo o apelo enganoso dos escuros soluos.Ah, quem ento poderemos usar?No os anjos nem os homens, e os animais astutos percebem que no nos sentimos muito bem no mundo que tanto explicamos.Talvez na ladeira da colina algumas rvores ainda permaneam para ns, para que as vejamos dia aps dia. As alamedas do passado nos deixaram, bem como a deformada fidelidade dos velhos hbitos to agradveis para nsque no queriam nos abandonar64.

    Bibliografia

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    KEARNEY, Richard Kearney. The Wake of Imagination. Toward a Postmodern Culture. London, Routledge, 1988.

    KIERKEGAARD, Soren. The Point of View. London, New York, Toronto, Oxford University Press, 1939.

    63 Melodia do amor e da morte em Veneza, 2001, ainda no publicada.64 RILKE, Rainer Maria. Duino Elegies. P.3.

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    Kierkegaard, Poeta do Desconhecido

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    MONTONE, Mnica Montone. Nomes gigantescos, grande entrevista. In: www.culturall.com.br/poesia/entrevistado.htm

    RICOEUR, Paul. Philosophy After Kierkegaard. In: Jonathan Re and Jane Chamberlain (editores). A Critical View. Oxford & Maden: Blackwell Publishers, 1998.

    RILKE, Rainer Maria. Duino Elegies, Trans. C.F. MacIntyre. Berkley, Los Angeles, London: University of California Press, 1961.

    SHAKESPEARE, Steven. Kierkegaard, Language and the Reality of God. Ashgate Publishing Company, 2002.

    TAYLOR, Mark C. Taylor. Kierkegaards Pseudonymous Authorship. A Study of Time and Self. Princeton, New Jersey, Princeton University Press, 1975.

    WATERSON, Bill Waterson, The Calvin and Hobbes Tenth Anniversary. Kansas City, Andrews and McMeel, University Press Syndicate Company, 1995.