circulação e hibridização na ciência florestal imperial ... · acompanhou a “tendência...

17
Circulação e hibridização na ciência florestal imperial: reflorestamento ou silvicultura na Tijuca no final do século XIX Bruno Capilé (PPGHIS/UFRJ) [email protected] Durante séculos as matas do maciço da Tijuca, complexo de montanhas próximas à cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, foram apropriadas por povos pré-cabralinos. Embora não haja indícios de sua permanência, tais grupos indígenas buscavam as florestas próximas ao litoral para caçar e coletar plantas e frutos 1 . A floresta úmida e densa havia sido modificada numa escala pouco impactante até a chegada de europeus no século XVI que buscavam suas madeiras para diversos fins. Em poucos séculos, os usos oficiais primeiro pela coroa portuguesa e depois pela monarquia brasileira e não-oficiais (contrabandistas e afins) deterioraram as matas das montanhas. Madeiras para construção, lenha para fornos ou queimadas para o usufruto da cafeicultura, marcaram as principais intervenções humanas no referido local. As medidas de proteção das árvores para o abastecimento de água da cidade já fizeram-se presentes no início do XIX 2 , porém sem surtir efeito. Tanto a coroa portuguesa quanto o império brasileiro tinham poucos recursos, assim como outros interesses mais diretos, para fazer valer as leis e os decretos 3 . A segunda metade do século XIX representou o início de maiores investimentos estatais no Brasil. Em meio a ferrovias, telégrafos e expedições, o reflorestamento, no que veio a ser chamado Floresta Nacional da Tijuca, tornou-se uma apropriação tanto do governo imperial. Com preocupações com o baixo volume das águas dos rios que matavam a sede da área urbana. Quanto da aristocracia imperial, que flertava com um ambiente mais fresco e sadio do que a pestilenta cidade. Assim, o espaço florestal esteve presente no cenário de circulação e transformação dos saberes que regiram as atividades humanas no ambiente biofísico. O presente texto analisa como os saberes e práticas, que envolveram o plantio de árvores na Floresta da Tijuca, circularam e hibridizaram-se com uma diversidade de outros conhecimentos. O espaço florestal esteve presente 1 SCHEINER, Tereza Cristina Holeta. Ocupação humana no Parque Nacional da Tijuca: aspectos gerais. Brasil Florestal, ano 7, nº 28, Outubro/Dezembro, p. 3-27, 1976 2 Dentre elas destacam-se os decretos de 9 de agosto de 1817 e 17 de agosto de 1818, o Código de Posturas da Câmara Municipal de 11 de novembro de 1838, sobre a proteção das matas nos locais de interesse para o fornecimento de água para a cidade. 3 PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

Upload: others

Post on 31-May-2020

5 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Circulação e hibridização na ciência florestal imperial: reflorestamento ou silvicultura na

Tijuca no final do século XIX

Bruno Capilé (PPGHIS/UFRJ)

[email protected]

Durante séculos as matas do maciço da Tijuca, complexo de montanhas próximas à cidade

de São Sebastião do Rio de Janeiro, foram apropriadas por povos pré-cabralinos. Embora não haja

indícios de sua permanência, tais grupos indígenas buscavam as florestas próximas ao litoral para

caçar e coletar plantas e frutos1. A floresta úmida e densa havia sido modificada numa escala pouco

impactante até a chegada de europeus no século XVI que buscavam suas madeiras para diversos

fins. Em poucos séculos, os usos oficiais – primeiro pela coroa portuguesa e depois pela monarquia

brasileira – e não-oficiais (contrabandistas e afins) deterioraram as matas das montanhas. Madeiras

para construção, lenha para fornos ou queimadas para o usufruto da cafeicultura, marcaram as

principais intervenções humanas no referido local. As medidas de proteção das árvores para o

abastecimento de água da cidade já fizeram-se presentes no início do XIX2, porém sem surtir

efeito. Tanto a coroa portuguesa quanto o império brasileiro tinham poucos recursos, assim como

outros interesses mais diretos, para fazer valer as leis e os decretos3.

A segunda metade do século XIX representou o início de maiores investimentos estatais no

Brasil. Em meio a ferrovias, telégrafos e expedições, o reflorestamento, no que veio a ser chamado

Floresta Nacional da Tijuca, tornou-se uma apropriação tanto do governo imperial. Com

preocupações com o baixo volume das águas dos rios que matavam a sede da área urbana. Quanto

da aristocracia imperial, que flertava com um ambiente mais fresco e sadio do que a pestilenta

cidade. Assim, o espaço florestal esteve presente no cenário de circulação e transformação dos

saberes que regiram as atividades humanas no ambiente biofísico. O presente texto analisa como os

saberes e práticas, que envolveram o plantio de árvores na Floresta da Tijuca, circularam e

hibridizaram-se com uma diversidade de outros conhecimentos. O espaço florestal esteve presente

1 SCHEINER, Tereza Cristina Holeta. Ocupação humana no Parque Nacional da Tijuca: aspectos gerais. Brasil

Florestal, ano 7, nº 28, Outubro/Dezembro, p. 3-27, 1976

2 Dentre elas destacam-se os decretos de 9 de agosto de 1817 e 17 de agosto de 1818, o Código de Posturas da

Câmara Municipal de 11 de novembro de 1838, sobre a proteção das matas nos locais de interesse para o

fornecimento de água para a cidade.

3 PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista

(1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

no cenário de circulação e transformação dos saberes que regiram as atividades humanas no

ambiente biofísico.

A adaptação dos saberes e práticas de botânica, silvicultura, e estudos do clima e do solo, à

realidade local das florestas nas montanhas cariocas realçou um caráter de circulação e hibridização.

Daremos um passo adiante da dicotomização reducionista de compreender o projeto de ciência

florestal do Império, meramente, como um esforço de silvicultura ou de reflorestamento. A retórica

presente nos relatórios ministeriais apontam que os argumentos defendiam muitas perspectivas,

como por exemplo: a proteção das matas para assegurar os rios que abasteciam a cidade, e para

embelezar e refrescar o cotidiano urbano, ou até mesmo vender madeiras como fonte de renda para

o estado monárquico. A centralização dos trabalhos silvícolas dos administradores da Floresta

Nacional da Tijuca esclareceu duas tendências. Manoel Gomes Archer, o primeiro administrador,

dava maior atenção ao plantio e ao cuidado das plantas e era imbuído de um conhecimento

empírico, através de outras experiências de reflorestamento. O segundo, Barão de Escragnolle, se

associou a uma ciência mais tradicional, incorporando obras de profissionais europeus em seus

escritos.

Ambos os termos presentes no título deste texto – circulação e hibridização – apontam para

uma ciência interpretada aqui como “a produção de conhecimentos, práticas, instrumentos, técnicas

e serviços”4. Nos sintonizamos com a ideia do pesquisador indiano Kapil Raj sobre circulação,

entendida como “processos de encontro, poder e resistência, negociação e reconfiguração que

ocorrem em interações entre culturas”5. Para Kapil Raj, a circulação não é apenas o movimento,

mas principalmente a transformação dos conhecimentos e práticas quando se deslocam6. Assim,

aproxima-se de Michel de Certeau7 quando afirma que uma ideia que sai de sua área original de

produção e entra em outra, pode se transformar, assim como pode retornar ao ponto de origem

modificada. Ampliando as relações polares entre produtores e consumidores de conhecimento, e

investigando movimento e transformação do produto, em nosso caso, o conhecimento científico.

4 RAJ, KAPIL. Além do Pós-colonialismo... e Pós-positivismo Circulação e a História Global da Ciência. Revista

Maracanan, edição: n.13, p. 164-175, p. 170, dezembro de 2015.

5 RAJ, op. cit.

6 SILVA, Matheus Alves Duarte. Circulação não é fluidez - Entrevista com Kapil Raj. Boletim Eletronico da

sociedade Brasileira de História da Ciência, v. 3, p. 2, 2016. Disponível em

http://www.sbhc.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=944.

7 CERTEAU, Michel de. La invención de lo cotidiano I. Artes de hacer. México D.F.: Universidad Iberoamericana

Biblioteca Francisco Xavier Clavigero, 1996.

Esta circulação ocorre de maneira gradual, por tanto as interações entre diferentes aspectos

das ciências seriam elas mesmas um local de construção e reconfiguração do conhecimento, e não

somente confinar o conhecimento científico em espaços institucionalizados como laboratórios,

universidades, etc. O referido termo nos permite perceber um fluxo aberto que confere agência a

múltiplos atores envolvidos no conhecimento florestal imperial brasileiro – escravos, funcionários

do estado, administrador da floresta, naturalistas e tantos outros. A perpectiva de uma ciência

unidirecional num contexto binário de centro e periferia torna-se inviável nesse aspecto de

circulação – que “permite ver a ciência como sendo coproduzida pelo encontro e pela interação

entre comunidades heterogêneas de especialistas de diversas origens”8. Dessa maneira, livros,

periódicos, palestras, tornam-se nós nessa imensa rede de circulação de conhecimento, que possui

informação localizada no espaço e no tempo.

Stuart McCook desenvolve sua ideia de ciência criolla como uma alternativa para abordar

as atividades científicas transnacionais na América Latina, e “dissolver a forte distinção entre

ciência “imperial” e “nacional”9. Este conceito foi desenvolvido deliberadamente do termo creole –

idiomas híbridos de matrizes europeias e africanas – e do termo espanhol criollo – nascido nas

Américas, mas de ascendência espanhola. Assim, sua ciência criolla seria tanto híbrida quanto

autóctone. Ou seja, para ele, as ideias europeias que chegavam na América Latina transformavam-se

algo local, porém mantendo sua ancestralidade europeia. Mas o conceito de hibridização toma mais

corpo como uma ferramenta epistemológica para este trabalho quando concebemos um maior

alcance desse significado. O termo socionatureza satisfaz em parte nossa abordagem da floresta, e

os saberes e práticas em seu manejo, como algo simultaneamente social e natural, mecânico e

orgânico. Para Swyngedouw, “o processo de produção da socionatureza inclui processos materiais

(edifícios e novos materiais genéticos) bem como múltiplas representações simbólicas e discursivas

da natureza”10. Essa socionatureza possui especificidades locais que implicam em problemas locais

para a construção do conhecimento científico, e soluções locais. Como partidário das ideias de

geografia da ciência de David Livingstone, a ciência é aqui considerada ao mesmo tempo local e

8 RAJ, op. cit., p. 173

9 McCOOK, Stuart George. States of Nature: science, agriculture and environment in Spanish Caribbean, 1760-1940.

Austin: Univertity of Texas Press, p. 5, 2002.

10 SWYNGEDOUW, op. cit: 88

global. A circulação das informações compartilhadas por diferentes atores precisam ser traduzidas,

transformadas, para realidades locais. Transmitir significa transformar11.

Embora a hibridização dos elementos que participaram da construção de diversos

conhecimentos tenha ocorrido, não podemos dizer o mesmo do conhecimento. Este é algo novo, da

qual muitas vezes a hibridização não daria conta. Os saberes e práticas circulam, podendo se

transformar em algo completamento novo. A hibridização está presente na construção desse

conhecimento, onde diferentes agentes participam desse processo. Muitos dos objetos e sujeitos

presentes nesse processo, são agora interpretados nem exclusivamente como objetos, nem como

sujeitos, mas sim como quase-objetos.

No caso da ciência florestal imperial, a circulação do conhecimento na hibridez das

socionaturezas tornam-se uma boa chave de interpretação para compreender aspectos científicos

presentes nos administradores da Floresta Nacional da Tijuca. Por exemplo, interpretamos que

Archer construiu seu conhecimento sobre silvicultura e reflorestamento tanto pela leitura de livros e

a proximidade de conhecimentos de seus escravos e funcionários, quanto da observação da reação

das mudas transplantadas ao ambiente biofísico (chuvas, secas, sol, sombra, vento…). O social e o

natural, separados em algum passado, fundem-se novamente como uma socionatureza, na qual

participa de maneiras diversas na construção do conhecimento. O conhecimento florestal circulou

tanto internamente na rede de Archer, quanto através dos leitores de seus relatórios, como o próprio

Escragnolle. As mudas que morriam com a primeira prática de transplante participaram do

conhecimento de Archer, assim como o funcionário que coletava sementes e plântulas nas florestas.

Estado e dominação da natureza

O crescente desmatamento e os argumentos de necessidade de abastecimento intensificaram

conforme secas mais poderosas e mais frequentes ocorriam, como a de 1843. Muitos propunham a

desapropriação de áreas estratégicas para o fornecimento de água para a cidade, como é o caso de

Manuel de Araújo Porto-Alegre quando vereador em 1854. Este ano representa uma reviravolta nas

questões debatidas nos círculos sociais acadêmicos e políticos, para uma posição mais assertiva e ativa,

particularmente na figura de Luiz Pedreira do Couto Ferraz12, o barão do Bom Retiro.

11 LIVINGSTONE, David N. Putting Science in its place: Geographies of Scientific Knowledge. Chicago: The

University of Chicago Press, 2003.

12 Luís Pedreira do Couto Ferraz (1818-1886), barão e visconde do Bom Retiro, teve uma forte vida política e

participou de diferentes grupos. Considerá-lo como rede permite ver sua atuação como: senador, ministro do

Império, membro do IHGB e da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, presidente da Província do Rio de

Um olhar simplório pode nos limitar em abordar Couto Ferraz somente como sua figura política,

já que as principais decisões para o reflorestamento, como a delimitação e desapropriação das terras, se

deram enquanto era ministro dos Negócios do Império entre 1854 e 1856. Mas se o considerarmos como

um nó numa complexa rede que compõe tanto seus círculos sociais e intelectuais, suas ideias, assim

como sementes e mudas, veremos que múltiplas interações o perpassaram. O que reforça a posição de

muitos historiadores13, que o consideram como principal catalizador para o reflorestamento da Tijuca.

José Augusto Pádua, em Um sopro de destruição analisa o pensamento político e científico que

embasaram a proteção das matas no século XIX. Em sua abordagem sobre a tradição intelectual

oitocentista, o autor desenvolve uma trama das continuidades e descontinuidades desses letrados que

remonta ao século XVIII. A crítica do desflorestamento da primeira metade do século XIX

acompanhou a “tendência fisiocrata, progressista e ilustrada que vinha se definindo”14, tendo em

comum um “viés político, cientificista e economicamente progressista”15. Tal tradição teve como

principal veículo de transmissão cultural as instituições científicas e literárias, e sua produção

acadêmica. A geração de pensadores seguinte, em meados do século XIX, também atuavam contra a

destruição das florestas, e argumentava a favor da proteção das matas para clima, rios e beleza

cênica, buscando um uso instrumental racional e comedido do ambiente florestal. Criticavam a

ineficácia do uso do solo, como a falta de saberes e práticas que mantivessem mais árvores em pé.

Criticavam também o regime de trabalho escravo, que transformava o indivíduo desprovido de

liberdade e de conhecimento numa relação direta com a natureza. Uma condição eficiente para o

uso insensato dos ecossistemas florestais. Esses intelectuais participavam e orbitavam um círculo

social que estava ancorado em instituições e associações sob a chancela do Imperador. O que

implicava, mas não determinava, numa “etiqueta de moderação e autocensura”16.

Cláudia Heynemann, em Floresta da Tijuca: natureza e civilização, corrobora Pádua

quando afirma que o reflorestamento se inscreveu no “conjunto de práticas e representações que

Janeiro, presidente do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, e conselheiro de Estado. Circular por esses

coletivos inseriu-o em debates sobre a devastação florestal, a importância do ensino, a silvicultura.

13 HEYNEMANN, Cláudia. Floresta da Tijuca: Natureza e Civilização no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de

Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Comunicação e Informação Cultural, Divisão de

Editoração, 1995. DRUMMOND, José Augusto. O Jardim dentro da máquina: breve história ambiental da Floresta

da Tijuca. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 276-298, 1988. ABREU, op. cit.; PÁDUA, op. cit.

14 PÁDUA, op. cit., p. 174

15 PÁDUA, op. cit., p. 281

16 PÁDUA, op. cit., p. 167

cercaram a ideia de natureza no século XIX no Brasil”17. Estas estavam inseridas num projeto de nação

concebido e esculpido em processos de centralização e consolidação do poder, formação da classe senhorial

e pelos ideais de civilização e progresso, que contrastavam e complementavam o ideário em volta do termo

natureza. Aqui a floresta contrasta com a cidade, elas se complementam não somente pela necessidade de

água, mas também pelas representações do ambiente florestal e pelos anseios de grupos abastados de

vivenciar a exuberância vegetal. A floresta constitui-se como natureza e como cultura, pois a partir dos

saberes e práticas, de uma ciência supostamente universal e de conhecimentos autóctones, as atividades

humanas moldaram o ambiente fluvio-florestal.

Em relatório do Ministério do Império para o ano de 185518, seis anos antes do “início” do

reflorestamento, Couto Ferraz afirmava já existir uma área de 15 hectares onde se plantou 2466 árvores.

Conhecer o território de interesse estratégico para a capital imperial é de suma importância para a política do

governo imperial, e anos mais tarde um importante mapa foi elaborado para o funcionamento do

reflorestamento e para repensar o abastecimento d’água. No ano seguinte, Bom Retiro reafirmou a

necessidade de comprar mais terrenos, porém teve de adiar essa vontade devido a gastos excessivos no ano

de 185519. A saída de Bom Retiro do ministério do Império pode significar conflitos internos sobre o uso dos

recursos, e assim como sofreu influência de acontecimentos externos como os investimentos para a

construção das estradas de ferro que consumiam boa parte do orçamento, em particular a Estrada de Ferro

Dom Pedro II em 1855. Curiosamente, em 1861, o documento de instruções para o funcionamento do

reflorestamento foi desenvolvido pelo recém criado Ministério da Agricultura, Comércio e das Obras

Públicas (1860), chefiado por um homem que também circulava nos grupos sociais de Ferraz e conhecedor

dos benefícios ecológico das florestas: Manoel Felizardo de Souza e Mello20.

Técnicas de Plantio e manejo da flora

Embora hajam relatos de plantios de árvores de maneira sistematizada em outros lugares no

maciço estudado, os esforços mais evidentes de reflorestamento residiram nas Florestas da Tijuca,

primeiro com Manoel Gomes Archer e o Barão d'Escragnolle, e nas Paineiras, sob a administração

de Thomaz Nogueira da Gama. As práticas e metodologias foram descritas no primeiro documento

concernente às atividades florestais, Instruções provisórias para o plantio e conservação das

17 HEYNEMANN, op. cit., p. 23.

18 COUTO FERRAZ, Luiz Pedreira do. Relatório do Ministério dos Negócios do Império. Rio de Janeiro:

Typographia Nacional, 1856.

19 COUTO FERRAZ, Luiz Pedreira do. Relatório do Ministério dos Negócios do Império. Rio de Janeiro:

Typographia Nacional, 1857.

20 PÁDUA, op. cit.

florestas da Tijuca e Paineiras21. Os artigos apontavam as maneiras pelas quais os trabalhos

deveriam ser realizados. Dessas instruções, algumas faziam sentido de um ponto de vista

ecossistêmico e ambiental, outras eram incompatíveis com a realidade dos respectivos locais.

Como era de se esperar num reflorestamento, as plantações ocorriam “especialmente nos

claros das florestas existentes”22, buscando desenvolver uma cobertura vegetal abrangente que

ampliasse os serviços ecossistêmicos das florestas para os rios e bacias (basicamente, proteção e

manejo do solo). Nesse preâmbulo dos trabalhos na mata, e na década inicial, a preocupação com os

rios e o abastecimento de água direcionaram os interesses no manejo florestal. Conforme pode-se

observar no terceiro artigo que instruía para que a plantação começasse de ambos os lados das

margens das nascentes com a distância entre árvores de 25 palmos (5,5m). O argumento de matas

para águas era presente nos discursos das instituições que contribuíram para a transformação da

floresta, conforme abordado no capítulo anterior.

Tem-se demonstrado até à saciedade que é necessário cobrir de arvoredos as

nascentes d'água, que abastecem a cidade do Rio de Janeiro e seus arrabaldes para evitar

que os volumes das aguas continue a decrescer; e a experiência feita aqui na Tijuca

confirma de modo eloquente aquela demonstração: porque todos as nascentes d'água que

tem sido coberta de arvoredos, ou tem aumentado de volume, ou tem-se conservado sem

diminuição23.

Comum nas atividades pioneiras, algumas dessas normas foram desenvolvidas sem

questionamentos de ordem prática de pessoas que conheciam o cotidiano desse tipo de atividade. A

mais desconcertante foi o método de plantio inicial. Primeiro roçava-se o mato para preparar o

terreno, em seguida as covas eram abertas com a distância necessária. Haviam dois tipos de

problemas, o primeiro, segundo o artigo três das Instruções, era que a plantação era feita em linhas

retas paralelas entre si, numa clara racionalização do ambiente biofísico por parte de uma

idealização da natureza pelo governo imperial e de ideologias vigentes24. O segundo, estava na

obtenção das primeiras mudas que eram retiradas das redondezas, e transplantadas com altura entre

21 Assinado pelo ministro Manoel Felizardo de Souza e Mello, e inscrito como Portaria nº 577 de 11 de dezembro de

1861.

22 Artigo 2 das Instruções.

23 ARCHER, Manoel Gomes. Relatório do Administrador da Floresta Nacional da Tijuca. Anexo DD EE11 do

Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas do ano de 1873. Rio de Janeiro:

Typographia Nacional, p. 7, 1874.

24 Aparentemente, e felizmente, Archer não seguiu essa norma, já que o referido padrão não dá para ser percebido.

Mas, é provável que durante a substituição das mudas mortas, Archer tenha descumprido essa regra.

1,10m e 1,30m. Esse tamanho pressupõe uma arvoreta de alguns anos de idade25 com um certo grau

de desenvolvimento e já com um enraizamento maduro ao longo do solo. Retirar, mesmo com

extremo cuidado, esses indivíduos dessa maneira, comprometia a saúde do vegetal, resultando na

morte de muitos. Miguel Antonio da Silva, redator da Revista Agrícola do Imperial Instituto

Fluminense de Agricultura, escreve em seu artigo Silvilcultura Brasileira: Trabalhos da Floresta

Nacional da Tijuca, que

As árvorezinhas sendo tiradas dos arredores, às vezes de grande distância, de

terrenos alcantilados e escabrosos, onde a custo se ia ter, chegavam ordinariamente ao solo,

onde deviam ser plantadas, em estado de mau trato, que lhes avizinhava muito o termo de

sua existência, como de fato se verificava pela grande mortalidade que sofriam as mudas,

transplantadas nestas condições26.

Este processo foi seguido de 1862 até 1868, quando Archer percebera sua improdutividade

devido a alta mortalidade, e reorganizou a estrutura da administração que poderia realizar

sementeiras e viveiros mais eficientes. Durante este intervalo, das mais de 45 mil árvores plantadas

quase 24 mil sobreviveram, tendo morrido 21 mil. Ou seja, uma mortalidade de 46% dos indivíduos

plantados. A partir desse momento plantas de 1 palmo e 1 palmo e meio de altura (0,22m a 0,33m)27

eram transplantadas para cestos de taquara. Indivíduos com o sistema de raízes menos entranhado e

que permite maiores sucessos no transplante. Muitos dos indivíduos provenientes de doações de

mudas e sementes, que eram cultivadas nas sementeiras das florestas, foram para estes cestos antes

do plantio definitivo, em processos que serão descrito mais adiante. Em 1867, ainda no sistema de

mudas maiores transplantadas, haviam quase 30 mil árvores. O crescimento fica perceptível no ano

de 1871 com mais de 45 mil, e torna-se evidente em 1873 quando quase 62 mil, e em 1876, com 68

mil árvores.

Archer em muito contribuiu para o amadurecimento e sistematização dos trabalhos

elaborados nos primeiros anos da Floresta da Tijuca. Em seu relatório anual de 187228 apresentado

ao Ministério da Agricultura em 1873, descreveu processos de maneira mais detalhada e com novas

considerações pertinentes, dos que os presentes nas Instruções Provisórias. Os saberes autóctones

25 Miguel Antonio da Silva, comenta em indivíduos de 8 a 15 anos de idade.

26 SILVA, Miguel Antonio da. Silvicultura Brasileira: Trabalhos da Floresta Nacional daTijuca. Revista Agrícola do

Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, Rio de Janeiro, n. 5, v. 1, p. 29-33, setembro, p. 29-30, 1870

27 Equivalente a plantas entre 1 e 2 anos de idade.

28 ARCHER, Manoel Gomes. Serviço Florestal da Tijuca. Anexo W do Relatório do Ministério da Agricultura,

Comércio e Obras Públicas do ano de 1872. Rio de Janeiro: Typographia Commercial, 1873.

produzidos pelo Major e seus trabalhadores foram coligidos e organizados num documento que

seria base para muitos trabalhos florestais posteriores. Archer aponta que tem adquirido

conhecimentos práticos com o tempo e experiência sobre as plantas e qualidade do terreno,

resultando num “feliz resultado”29.

Circulação material e imaterial: a obtenção de sementes e mudas

Segundo as Instruções Provisórias de 1861 e o relatório de Archer de 1872, o trabalho nas

sementeiras consistia na aquisição de sementes de árvores de lei, no preparo de canteiros que seriam

semeados, na semeadura e no cuidado e no tratamento das sementes germinadas. A obtenção de

sementes e mudas foi se especializando a tal ponto que um mesmo empregado era incumbido de

adquirir sementes nas matas de Guaratiba e nas vizinhanças da Tijuca e Paineiras30. Milhares de

espécimes de mais de 20 espécies foram coletadas e transportadas para os viveiros das florestas.

Este personagem, curiosamente, teve seu nome registrado somente nos quadros de pagamento dos

funcionários, sem nenhuma menção ao seu trabalho e os tipos de conhecimentos. A função

desempenhada e os saberes tradicionais sobre plantas, associados à coleta e cuidados com sementes

e mudas, foram desconsiderados da narrativa nos relatórios. Apenas algumas menções anônimas,

quando mencionado, foram relatadas, como: o “empregado especialmente incumbido de adquirir

sementes” por Archer31; ou “aquele zeloso empregado”32, pelo Escragnolle. Muito provavelmente

este funcionário foi José Justino da Silva que, através de uma notícia de assalto registrado no Jornal

do Commércio, podemos esboçar um pouco sobre o ocorrido. Como precisava seguir para

Guaratiba, pela manhã, no primeiro trem33, para sua coleta de plantas, quis aproveitar o fim do dia

no centro da cidade. Interessado em economizar o que iria gastar no pernoite, aceitou dormir em

casa de um rapaz que acabara de conhecer. Horas mais tarde este “colega” roubava-lhe, com mais

29 ARCHER, 1874, p. 4.

30 Os viveiros e as sementeiras da floresta da Tijuca foram elaborados já em seu início. Em Paineiras, os esforços

iniciais eram empregados principalmente na conservação e construção de caminhos, e no policiamento das matas.

Anos mais tarde, em 1870, Nogueira da Gama empreendeu a organização das sementeiras e viveiros para o

reflorestamento nas Paineiras. Deixando, em grande parte, de receber as sementes provenientes da Tijuca.

31 ARCHER, Manoel Gomes. Serviço Florestal da Tijuca. Anexo W do Relatório do Ministério da Agricultura,

Comércio e Obras Públicas do ano de 1872. Rio de Janeiro: Typographia Commercial, p. 3, 1873.

32 D'ESCRAGNOLLE, Gastão. Relatório da Floresta da Tijuca. Anexo MACOP 1874. 10-01-1875. P. 4 pdf 57

33 Possivelmente o trajeto a ser percorrido por José Justino era de trem até a estação de Sapopemba (atual Estação de

Deodoro), de lá algum transporte pela Estrada de Santa Cruz. O ramal de Santa Cruz e sua estação final somente

foram inaugurados no ano de 1878, seis anos depois do ocorrido.

três integrantes, seus 18$000 réis e um bilhete de loteria. Dinheiro que provavelmente não era

integralmente de José Justino, já que seus vencimentos mensais eram de 45$000 e descontados por

falta34.

Além da obtenção direta de sementes e mudas, muitos vegetais foram doados por atores

que, junto a José Justino da Silva, faziam parte de uma rede de circulação de plantas e

conhecimentos sobre florestas e silvicultura. A grande maioria foi enviada para o reflorestamento da

Tijuca. Os vegetais transplantados estavam inscritos numa gigantesca teia de distribuição de

alcance, literalmente, planetários – duas espécies comumente plantadas vieram do outro lado do

mundo!: Jaqueira (Artocarpus heterophyllus Lam.), da Índia, e Eucalipto (Eucalyptus sp.), da

Austrália. As plantas que chegaram ao maciço da Tijuca eram de origem diversa. Algumas poucas

espécies de fora do bioma da Mata Atlântica, chamadas de exóticas, e grande parte constituinte

dessa flora, as nativas.

A circulação de mudas e sementes provenientes de doações foi um costume muito presente

nos primórdios da história da silvicultura brasileira, nas décadas de 1870 e 1880. Os humanos por

trás dessa dispersão biogeográfica atuaram ativamente na busca e na oferta desses espécimes em

diferentes momentos, formando uma verdadeira rede técnico-científica em prol de uma ciência

florestal. Olhar para a circulação material e imaterial nos permite “ver a ciência como sendo

coproduzida pelo encontro e interação entre comunidades heterogêneas de especialistas de diversas

origens”35. Os espaços desta circulação de sementes é multidimensional, incluindo instituições bem

delineadas como o MACOP, o IIFA, o Jardim Botânico, e os reflorestamentos; consideramos

também os “locais” difusos que são difíceis de serem delimitar, como as relações interpessoais entre

homens de ciência, de política e de negócios36.

Cuidados no crescimento das plantas.

Os cuidados nas sementeiras asseguravam indivíduos saudáveis que vão para os viveiros

para se desenvolverem com um espaçamento mais adequado. Os trabalhos consistiam no fabrico de

cestos de taquara e seu preparo para as mudas, e no plantio e manejo das plantas nos cestos. A ideia

de elaborar novos recipientes, que ocorrera em 1869, para o desenvolvimento do vegetal tornou-se

34 PERIGO das más companhias. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 01 de maio de 1872, p.4.

35 RAJ, op. cit.

36 RAJ, op. cit.

bastante produtiva. Archer apontou que pouquíssimas mudas eram perdidas no processo de

transplante das sementeiras para os viveiros e destes eram plantadas juntamente com os cestos nos

locais definitivos. Tal processo foi incorporado no reflorestamento das Paineiras a partir do ano de

1871, quando pela primeira vez Thomaz Nogueira da Gama utilizou tal processo no plantio de 2280

mudas em cestos37. No ano anterior, o Inspetor Geral celebrava o início da produção de mudas

através das primeiras sementeiras nas Paineiras.

A Taquara é um bambu nativo da América do Sul que, dentre as diferentes espécies, a mais

comum é a Bambusa taquara. O uso da Taquara foi incorporado de diversas culturas dos povos

indígenas pelos portugueses e outros europeus. Utilizando o bambu para cestos, peneiras, cordas,

cercas, etc. Em diferentes artigos da Revista Agrícola, vemos que na segunda metade do século

XIX, o seu uso já era generalizado nos cultivos de café38, nos experimentos de amora39 para

alimentar o bicho da seda, coar o mate40, e em outros vegetais. Ou seja, a iniciativa de utilizar

Taquara para cestos nos trabalhos da floresta da Tijuca fazia parte de um movimento mais amplo e

uso e divulgação da gramínea como matéria-prima local indispensável. A instituição que mais

realizava modificações estruturais na área da capital imperial, Inspetoria Geral de Obras Públicas,

recebia ofertas de fornecimento e materiais diversos. Dentre estes haviam cestos grandes de Taquara

com preços que variavam de 600 a 700 réis41. No entanto, os trabalhos das florestas contaram com a

construção destes cestos com bambus provenientes de seus arredores, onde foram plantados 308

indivíduos em 186242.

O sucesso do uso de cestos nas sementeiras foi evidente e seu uso intensificado ao longo dos

anos. A produção de cestos na década de 1870, mesmo com lacunas dessa informação em seis anos,

37 BARRETO, Francisco de Regos Barros. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do

ano de 1871. Rio de Janeiro: Typographia americana, 1872.

38 REVISTA AGRÍCOLA do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura. Agricultura prática: cultura geral do

cafeeiro (continuação). v. 13, n. 1, p. 89-97, março de 1882.

39 REBOUÇAS, André. Memória para o desenvolvimento da apicultura e da sericultura no Brazil por Charles

Stanislas Mongeon-Quétigny. Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, v. 7, n. 3, p. 101-

125, setembro de 1876.

40 SOARES, Antonio Joaquim de Macedo. O Matte do Paraná: noticia escripta e oferecida à Comissão Central da

Exposição do Paraná. Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura. V. 6, n. 4, p. 168-185,

dezembro de 1875

41 GALVÃO, Manuel da Cunha. Diretoria das Obras Públicas e Navegação. Diário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,

de 10 de novembro de 1861, p. 3.

42 Na realidade, no relatório do Ministério da Agricultura deste ano não houve especificação de qual espécie de bambu

foi plantada. Sugere-se que tenha sido alguma espécie de taquara, devido aos interesses de usar a gramínea.

somou-se mais de 30 mil cestos na Tijuca. Nas Paineiras o somatório da produção neste intervalo

foi de mais de 3 mil cestos. Porém, muitos mais foram feitos, já que ainda neste mesmo período

quase 10 mil plântulas foram alocadas em cestos. Muitos destes substituíram outros que haviam

sido degradados ou rachados pelo tempo, pela falta de habilidade ou pelos cuidados com o bambú.

Ao que tudo indica, Archer se empenhou mais no manejo dos indivíduos vegetais

diretamente, além de ter plantado muito mais do que Escragnolle e da Gama, nas Paineiras, juntos.

Sua ciência florestal era empírica, e provavelmente incorporou saberes de seus escravos e

funcionários. Ao comentar sobre o sucesso do sistema de sementeiras e viveiros com cestos, Archer

admitia em seu último ano, 1874, que: para este “feliz resultado, não tem concorrido pouco o

conhecimento prático que tenho adquirido, com o tempo e a experiência, da qualidade do terreno e

de adubos próprios para cada espécie de árvores”43. Milhares de indivíduos recém-brotados das

sementeiras eram transferidos anualmente para os viveiros, como, por exemplo, 11.091 em 1872,

10.259 em 1873. Gastão d’Escragnolle reconheceu o trabalho de Archer frente às dificuldades do

ambiente, da falta de pessoal e de recurso44.

Conforme sua própria declaração, Archer desenvolvia suas técnicas segundo sua própria

experiência e tempo. Em sua época, as covas para o plantio definitivo já eram fundas (1m) e

preparadas com adubo vegetal. O reviramento do solo aerava sua estrutura, permitindo a passagem

de água e ar por entre os grãos minerais. Escragnolle, diferente da ciência florestal de base

empiricista de Archer, estava sintonizado com as ciências produzidas na Europa. As pesquisas na

área de química de solos de Humphry Davy (1778-1829) e Justus von Liebig (1803-1873) haviam

se aperfeiçoado bastante, tendo muitos destaques para experimentos. Estes e outros conhecimentos

estavam circulando entre livros, periódicos e instituições científicas da Corte oitocentista45.

Escragnolle se vale desses conhecimentos para auxiliar seu trabalho e de seus homens.

Com tão minguado número de trabalhadores tenho-me limitado a arborizar mais

elevados e os mais estéreis, abrindo covas profundas que ficam expostas por algum tempo à

43 ARCHER, Manoel Gomes. Relatório do Administrador da Floresta Nacional da Tijuca. Anexo DD EE11 do

Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das Obras Públicas do ano de 1873. Rio de Janeiro:

Typographia americana, p. 4, 1874.

44 D'ESCRAGNOLLE, Gastão. Relatório da Floresta da Tijuca. Anexo do Relatório do Ministério da Agricultura, do

Comércio, e das Obras Públicas do ano de 1874. Rio de Janeiro: Typographia Americana, p. 3, 1875.

45 CAPILÉ, Bruno; SANTOS, Nadja Paraense dos. A química no melhoramento da produção agrícola e sua

divulgação na Revista Agrícola. In: LOPES, Maria Margaret; HEIZER, Alda. Colecionismo, práticas de campo e

representações. Campina Grande: EDUEPB, 2011.

ação benéfica do ar e da luz, e assim vão criando um depósito de fertilidade que nutre a

planta em seus primeiros anos. As inúmeras vantagens que alcança o silvicultor assim

procedendo são manifestas. Com efeito, os trabalhos de sábios como Boussingault, Saint-

Claire Deville, Barral e muitos outros não deixam a menor dúvida que o ar e as águas da

chuva disseminam sobre a superfície da terra quantidades consideráveis, muito mais do que

vulgarmente se pensa, de matérias gasosas, líquidas, salinas e outras substâncias

fertilizantes. É preciso porém que a terra esteja preparada para absorver os gases, os

líquidos, o calor e a luz e para só reter o que convém. Consegue-se plenamente este

resultado pelo sistema há pouco indicado. Desse modo aproveita-se os recursos oferecidos

pela natureza em toda a parte, recursos antes tais que, sabendo-se tornar manifestas as suas

energias de ordinários latentes, dispensam-nas no mais das vezes o ter de recorrer a gastos,

elevadíssimos no caso do estabelecimento que tenho a honra de dirigir, de compra e

transporte de materiais estranhos ao solo em que se opera46.

Uma primeira interpretação desta modalidade de abrir covas e deixá-las abertas nos leva a

supor que não seria eficaz, já que o dessecamento do solo iria prejudicar o conjunto de

microrganismos que mantém o solo vivo. Afirmar que as chuvas cairiam ou explicitar a necessidade

de absorver líquidos não garante que a água de fato se faça presente. Acontece que esta estratégia

tem de estar associada a momentos oportunos de abertura de covas, como antes de uma época de

chuvas no final primavera carioca. Incorporar técnicas científicas supostamente universais não

eximiria o agricultor, ou silvicultor, de sofrer as consequências localmente. O preparo do solo

através da abertura prévia das covas foi uma iniciativa exclusiva de Escragnolle e não foi observado

em outras administrações. Suas leituras de pensadores europeus tem uma grande influência neste

fato. Diferente de Archer, que apostava na adubação vegetal de cada cova, Escragnole, imbuído de

uma corrente técnico-científica do solo e pela necessidade de economizar recursos, exigia apenas a

abertura de grandes covas. Mesmo assim, ao longo dos anos e com o insucesso dessa abordagem, o

discurso se mantém presente.

Os terrenos da floresta exaustos de húmus por imprudentes e condenáveis

derrubadas (...), exige a abertura de grandes covas nos lugares onde se pretende plantar. []

O silvicultor que tentasse, sem esta precaução, arborizar vertentes áridas e escarpadas como

estas da Tijuca, veria os seus esforços e despesas perdidos. Os trabalhos de sábios como

Boussingault, Saint Claire Deville, Barral e muitos outros demonstram que o ar e as águas

da chuva disseminam sobre a superfície da terra quantidades consideráveis de materiais

gasosos, líquidos, salinos e outras substâncias fertilizantes47.

Um grande impasse na química agrícola havia ocorrido na Europa poucas décadas atrás,

quando Liebig e Jean-Baptiste Boussingault (1802-1887) propunham visões antagônicas. O debate

46 D’ESCRAGNOLLE, op. cit., p 3.

47 D’ESCRAGNOLLE, Gastão. Informações acerca do serviço da Floresta Nacional da Tijuca. Março de 1886.

Arquivo Nacional. BR RJANRIO TA 0.0.185

foi analisado e publicado na Revista Agrícola pelo seu redator, Nicolau Joaquim Moreira, em 1884

e 1889. De um lado, os Azotistas48 incumbiam o nitrogênio como o principal responsável pela

nutrição vegetal. O solo seria o amparo e os minerais, os estimuladores. Ou seja, o nitrogênio era o

alimento das plantas. Boussingault influenciou a escola de pensamento dos Azotistas, que era

antagônica a de Liebig, chamada de escola Mineralista. Para ele o nitrogênio tinha um papel

secundário, sendo os minerais do solo, o principal alimentador vegetal49. Acontece que, segundo a

interpretação das ciências atuais, o nitrogênio disponível para os vegetais não é o atmosférico, mas

sim uma variação molecular que se encontra no solo. Um fato curioso é que Liebig havia sido

influenciado por Boussingault, que executou trabalhos sobre o teor de nitrogênio em diferentes

plantas e a afirmava que o valor de um fertilizante era proporcional ao seu teor de nitrogênio50.

Liebig ainda em vida, e após observar diversos experimentos em química de solos, buscou uma

posição mais conservadora.

Liebig, em 1842, declarava que o azoto acha-se sempre em quantidade suficiente

no solo, e que a cultura não o pode esgotar; que a fertilidade de um terreno depende

unicamente dos elementos minerais, em caso algum dos azotados. Boussingault combateu

estas ideias; estabeleceu o papel preponderante do azoto que, na sua opinião, deve servir

para dar a medida da atividade dos estrumes. M. M. Lawes e Gilbert apoiaram essa opinião

em experiências diretas, e, após numerosas controvérsias, Liebig, em 1860 abandonou suas

ideias demasiado absolutas51.

Alguns argumentos e interesses no reflorestamento

Dentre os diversos interesses do governo imperial pela silvicultura carioca apontamos como

mais recorrentes a busca por um clima mais saudável, a necessidade de abastecer a cidade com

água, o proveito das madeiras úteis para a construção, e o embelezamento das montanhas. Os

sonhos de uma silvicultura brasileira hibridizavam-se na relevância de um reflorestamento e seus

serviços ecológicos estéticos, assim como o uso racional de árvores como recurso.

Os discursos dos administradores, inspetores e ministros eram heterogêneos e complexos.

Muitos destes defendiam mais de um interesse no amparo às matas, porém é possível perceber que

48 Azoto era como o nitrogênio era comumente chamado nessa época.

49 MOREIRA, Nicolau Joaquim. Prefacio. In: ZALUAR, A.E. Elementos de Chimica e Physica Agricolas. Revista

Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, v. 15, n. 1, p. 3-4, 1884.

50 BROCK, William. Justus von Liebig: The Chemical Gatekeeper. Cambridge University Press, 1997.

51 REVISTA AGRÍCOLA. Nutrição das Plantas. Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura. v.

20, n. 3, p. 41-53, p. 51, 1889.

muitas vezes a linguagem empregada reforçava um único tipo de interesse. A década de 1860 foi

marcada por uma retórica de proteção das matas para amparar as nascentes d’água. Sobre as

Paineiras, Oliveira Bulhões também reconheceu essa mesma importância e profetizou que as águas

do rio Carioca ficariam “barrentas nas estações de chuva” devido ao desmatamento que crescia na

região. Repetia em seus relatórios a importância da desapropriação de terrenos próximos a

nascentes “que tem de servir ao abastecimento público”52. Em 1863, o ministro da agricultura,

Manoel da Cunha Galvão, apontou diferentes serventias das árvores, como: purificar o ar,

embelezar o solo, dar sombra e madeiras de construção, e lenha para o fogo. Mas, foi nos benefícios

aos rios que Galvão destacou sua retórica.

Se tenho encarado a vantagem das matas debaixo destes pontos de vista, o que

direi em relação aos mananciais d’água? É sabido que as árvores prendem as nuvens, que

elas conservam a umidade e frescura do solo, e por conseguinte tem uma influência

manifesta sobre a abundância e frescura dos mananciais53.

A relação com o clima esteve frequentemente atrelada à proteção dos rios. As florestas

seriam recursos manejáveis para regular o clima local, e a silvicultura seria a ferramenta ideal para

este fim. Miguel Antonio da Silva escreveu um artigo na Revista Agrícola sobre a silvicultura

brasileira em 1870, em especial sobre os trabalhos na floresta da Tijuca. Afirmava primeiramente a

“utilidade das florestas nas cercanias da cidade”, que possuía o benefício “inestimável” de regular

as chuvas, “cuja frequência e regularidade” as matas operam54. E depois, quando critica a

“imperfeição das obras” que recolhem as águas dos rios, recordava como o reflorestamento

“tenderia a aumentar de volume com as florestas que cobrissem suas nascentes”55. Esse periódico

tinha como um de seus principais objetivos a divulgação de novos conhecimentos sobre os usos do

solo56. Outros trabalhos sobre silvicultura, de um total de 11 artigos de 688, também reconheciam as

52 OLIVEIRA BULHÕES, Antonio Maria de. Relatório da Inspecção Geral das Obras Públicas. Anexo K do Relatório

do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das Obras Públicas do ano de 1867. Rio de Janeiro: Typographia do

Diario do Rio de Janeiro, p. 8, 1868.

53 GALVÃO. Manoel da Cunha. Relatório do Ministério da Agricultura, do Comércio, e das Obras Públicas do ano

de 1862. Rio de Janeiro: Typographia Paula Brito, p. 74, 1863.

54 SILVA, Miguel Antonio da. Silvicultura brasileira: trabalhos da Floresta Nacional da Tijuca. Revista Agrícola Do

Imperial Instituto Fluminense de Agricultura. Rio de Janeiro, n. 5, p. 29-33 setembro, p. 31, 1870

55 SILVA, op. cit., p. 32.

56 CAPILÉ, Bruno. A mais santa das causas: a Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura

(1869-1891). Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História das Ciências das Técnicas e

Epistemologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010; BEDIAGA, Begonha. Marcado pela

própria natureza: o Imperial Instituto Fluminense de Agricultura – 1860-1891. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014

vantagens das matas. Em As florestas não secam o solo57, artigo transcrito do periódico francês

Journal de l’Agriculture, o alemão Julius von Sachs descreve uma experiência sobre o

dessecamento no sol e na sombra e conclui que “a evaporação é três vezes menos rápida dentro do

bosque do que a descoberto”58. E depois lista as vantagens das florestas: conservam a umidade;

resfriam o local, pois “todo o líquido que passa ao estado gasoso produz absorção de calórico”59;

mantém as nascentes; impede os ventos de secar o solo; bloqueiam o impacto direto da chuva;

condensam os nevoeiros.

Em artigo sobre Florestas em março de 188260, uma aula feita no Museu Nacional, Nicolau

Moreira associou o desmatamento ao impacto direto da luz solar que aquecia e reduzia a frequência

de chuvas e o volume dos rios. Segundo ele, as “partes subterrâneas” das árvores consolidavam “os

flancos das montanhas”, evitando, dessa maneira, a formação de torrentes e enchentes61. Defendia

também que as árvores regulam a temperatura e a umidade, purificam o ar sem nunca incorporarem

“corpos organizados como são os miasmas”62, e, mais uma vez, regula o “regime de nossos rios”63.

Essas funções ecológicas das florestas estiveram também associada aos interesses econômicos de

uso racional das madeiras. Moreira escrevia que a importância de “estabelecer (...) uma rotação de

florestas e de culturas seria melhorar o solo, centuplicar a produção e conservar em suas justa

proporção a fecundidade da terra com as necessidades do homem”64.

Defendo uma pluralidade dessas ideias e afirmar que os reflorestamentos sofreram

influência de seus múltiplos personagens e seus múltiplos interesses. Uma forte característica é que

foi elitizado e aristocrático, mas, ao mesmo tempo também foi uma extensão de instituições

57 SACHS, Julius von. As florestas não secam o solo. Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de

Agricultura. Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, p. 41-46, Abril, 1875

58 SACH, op. cit., p. 41.

59 Idem. A teoria calórica pressupunha a existência de um fluido invisível e inodoro (calórico) que causavam as

mudanças de temperatura: a substância do calor. Desenvolvida como proposta para explicar as deficiências da teoria

do flogisto (outra teoria sobre substância do calor), o calórico foi abandonado como teoria após a elaboração da

termodinâmica que associava o calor ao movimento cinético e não a uma substância específica. Conforme

BENSAUDE-VINCENT, Bernardette; STENGERS, Isabelle. A History of Chemistry. Harvard University Press,

1996.

60 MOREIRA, Nicolau Joaquim. Economia rural: florestas – sua influência. Revista Agrícola do Imperial Instituto

Fluminense de Agricultura. Rio de Janeiro , v. 13, n. 1, p. 177-184 , março 1882.

61 MOREIRA, op. cit., p. 178.

62 MOREIRA, op. cit., p. 180.

63 MOREIRA, op. cit., p. 182.

64 MOREIRA, op.cit., p. 187.

científicas que desenvolviam um projeto tropical de silvicultura, hibridizado com os ideais de

proteção ambiental do reflorestamento. Essas mobilizações andam em paralelo aos termos

convencionais de preservação e conservação, onde o primeiro pressupõe uma área totalmente

protegida e sem a presença humana, e o segundo permite um uso racional de alguns recursos,

mediante um plano de manejo. Esquivamos de uma comparação direta e anacrônica desses termos,

mas reconhecemos proximidades nos discursos de mais de cem anos e alguns de nossa atualidade,

conforme verão ao longo deste capítulo, onde os discursos protecionistas andavam lado a lado com

propostas de uso racional das madeiras-de-lei.

Considerações finais

Os conhecimentos científicos institucionalizados, circulados em livros e artigos por

diferentes personagens de nossa trama, articularam-se com os saberes autóctones produzidos por

agentes locais, muitos tributários de tradições indígenas e africanas. Promover uma perspectiva de

circulação dos saberes e práticas fortalece protagonistas comumente esquecidos pela historiografia

clássica, como foi o caso de José Justino da Silva.

Permite perceber também que estes conhecimentos são desenvolvidos através de outros

conhecimentos que estão circulando em diferentes espaços. Eles podem se modificar, adaptando-se

à híbrida realidade da socionatureza local. Conforme as modificações no manejo florestal propostas

por Manoel Archer em 1869. Ao observar a altíssima mortalidade de jovens árvores, o primeiro

administrador propõe duas mudanças: o uso de cestos de taquara como etapa intermediária que

assegurava mais estabilidade à vida do vegetal; obtenção de plântulas menores nas matas vizinhas,

gerando menor dano ao complexo sistema radicular que não crescera muito. Esses são exemplos de

uma apropriação crítica dos saberes, o que levou a um novo conhecimento que começou a circular

no reflorestamento das Paineiras e na continuidade administrativa de Escragnolle.

No entanto, nem toda apropriação de saberes foi eficiente. O caso de Escragnolle ter

preparado as covas abrindo-as previamente, foi um caso de falta de um senso crítico. Desconsiderar

o clima do Rio de Janeiro, com alta quantidade de irradiação solar, gerou a consequência de expor o

solo ao dessecamento, comprometendo os benéficos microorganismos locais.

A hibridez da socionatureza – com seus costumes, quantidade de chuvas, crenças, exposição