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Cinco livros do Modernismo brasileiro José Paulo Paes O presente texto foi especialmente escrito para uma história das literaturas latino-americanas, planejada pela profª Ana Pizzarro sob os auspícios da Associação Internacional de Literatura Comparada. A coordenação da parte brasileira da referida história está a cargo dos profs. Alfredo Bosi, Antônio Candido e Roberto Schwarz. Limitações de espaço, próprias de uma obra panorâmica dessa natureza, ajudam a explicar o caráter esquemático do presente texto e a sua destinação a um público não estritamente brasileiro, o predomínio nele do aspecto informativo sobre o interpretativo. Na perspectiva de uma história da invenção de formas literárias, as chamadas grandes obras do Modernismo brasileiro, por meritórias que possam ser, necessariamente aparecem como algo tardias e/ou epigonais em relação às do seu epicentro francês, aquele "umbigo do mundo", a que se referia Paulo Prado no prefácio do Pau-brasil. Os treze anos que separam a realização da Semana de Arte Moderna de 1922 do lançamento do manifesto futurista de 1909, ponto de partida da longa série de proclamações vanguardeiras das três primeiras décadas do século, mostram não ter sido assim tão instantânea quanto pretendia Antônio de Alcântara Machado a repercussão, no Brasil, do "movimento reacionário europeu". Por outro lado, uma vista de olhos ao índice de nomes citados por Mário de Andrade na sua súmula da poética de 22, A Escrava que não é Isaura, logo a perceber tampouco terem sido "independentes entre si" os movimentos desencadeados pela "mesma ânsia de renovação" artística, tanto "na Europa quanto nas duas Américas". As frases entre aspas são ainda de Alcântara Machado, cujo testemunho acerca das idéias e das ilusões do grupo modernista de São Paulo é particularmente significativo por vir de um dos seus primeiros e mais bem dotados seguidores. Todavia, à luz de um projeto de cultura brasileira que começa a se esboçar já no século XVI, a atualidade e a pertinência das principais obras do movimento de 22 passam a primeiro plano, fazendo recuar para os fundos de quadro, por secundária, a questão de sua dívida para com modelos ou antecedentes europeus. Talvez se possa ver, como teorização pioneira desse até então informulado projeto de cultura brasileira, a "lei da obnubilação" formulada por Araripe Júnior num dos aditamentos à sua biografía de Gregorio de Matos (1893). Lei que consistiria em o colono arribado à América portuguesa ter de alijar a sua "bagagem de homem civilizado" e se animalizar, "descendo a escala do progresso psicológico" isto é, revertendo ao estado de barbárie,a fim de poder "concorrer com os primitivos íncolas" 2 , mais bem adaptados do que ele ao habitat selvagem. Outra instância do mesmo esforço de teorização aflora na barbarização empática que, através de 1 MACHADO, A.A. Cavaquinho e saxofone (solos), 1926-1935. Rio de Janeiro, José Olympic, 1940. p. 306. 2 COUTINHO, A. ed. Obra crítica de Araripe Júnior. Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, 1960. v. II, p. 479.

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Cinco livros doModernismo brasileiroJosé Paulo Paes

O presente texto foi especialmente escrito para uma história das literaturaslatino-americanas, planejada pela profª Ana Pizzarro sob os auspícios da AssociaçãoInternacional de Literatura Comparada. A coordenação da parte brasileira da referidahistória está a cargo dos profs. Alfredo Bosi, Antônio Candido e Roberto Schwarz.Limitações de espaço, próprias de uma obra panorâmica dessa natureza, ajudam a explicaro caráter esquemático do presente texto e a sua destinação a um público não estritamentebrasileiro, o predomínio nele do aspecto informativo sobre o interpretativo.

Na perspectiva de uma história dainvenção de formas literárias, aschamadas grandes obras doModernismo brasileiro, por meritóriasque possam ser, necessariamenteaparecem como algo tardias e/ouepigonais em relação às do seuepicentro francês, aquele "umbigo domundo", a que se referia Paulo Pradono prefácio do Pau-brasil. Os trezeanos que separam a realização daSemana de Arte Moderna de 1922 dolançamento do manifesto futurista de1909, ponto de partida da longa sériede proclamações vanguardeiras dastrês primeiras décadas do século,mostram não ter sido assim tãoinstantânea quanto pretendia Antôniode Alcântara Machado a repercussão,no Brasil, do "movimento reacionárioeuropeu". Por outro lado, uma vistade olhos ao índice de nomes citadospor Mário de Andrade na sua súmulada poética de 22, A Escrava que não éIsaura, dá logo a perceber tampoucoterem sido "independentes entre si"os movimentos desencadeados pela"mesma ânsia de renovação" artística,tanto "na Europa quanto nas duasAméricas". As frases entre aspas sãoainda de Alcântara Machado, cujotestemunho acerca das idéias e das

ilusões do grupo modernista de SãoPaulo é particularmente significativopor vir de um dos seus primeiros emais bem dotados seguidores.

Todavia, à luz de um projeto decultura brasileira que começa a seesboçar já no século XVI, aatualidade e a pertinência dasprincipais obras do movimento de 22passam a primeiro plano, fazendorecuar para os fundos de quadro, porsecundária, a questão de sua dívidapara com modelos ou antecedenteseuropeus. Talvez se possa ver, comoteorização pioneira desse até entãoinformulado projeto de culturabrasileira, a "lei da obnubilação"formulada por Araripe Júnior num dosaditamentos à sua biografía deGregorio de Matos (1893). Lei queconsistiria em o colono arribado àAmérica portuguesa ter de alijar a sua"bagagem de homem civilizado" e seanimalizar, "descendo a escala doprogresso psicológico" — isto é,revertendo ao estado de barbárie, — afim de poder "concorrer com osprimitivos íncolas"2, mais bemadaptados do que ele ao habitatselvagem. Outra instância do mesmoesforço de teorização aflora nabarbarização empática que, através de

1 MACHADO, A.A. Cavaquinho e saxofone (solos), 1926-1935. Rio de Janeiro, JoséOlympic, 1940. p. 306.

2 COUTINHO, A. ed. Obra crítica de Araripe Júnior. Rio de Janeiro, Casa de RuiBarbosa, 1960. v. II, p. 479.

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uma citação de Taine, se propõeEuclides da Cunha logo à entrada deOs Sertões. Na noção tainiana do"narrador sincero" empenhado em"sentir como bárbaro, entre osbárbaros" (para pôr em vernáculo oque Euclides deixou em francês, semse dar muita conta da incongruênciadesse respeito tão pouco bárbaro pelaletra do texto alheio), encontrava ele oparadigma do seu próprio esforço de,para além das deformações da suaideologia positivista, discernir averdadeira semântica social deCanudos.

Obnubilação, barbarização — outrostantos nomes para aquele processo demestiçagem ou sincretismo que, numvislumbre de rara lucidez, SílvioRomero enxergou como básico naformação não só da gente masprincipalmente da cultura brasileira.Com os modernistas de 22, o conceitode mestiçagem cultural chegaria aograu máximo de lucidez,transformando-se inclusive embandeira de luta, isso desde oManifesto da poesia pau-brasil de1924, com a sua ênfase no "bárbaro enosso", até o Manifesto antropófagode 1928, onde o "bárbaro tecnizadode Keyserling"3 é dado como pontode chegada da Revolução Caraiba.Nessa promoção culta da barbárie, foidecisivo o impulso aqui recebido damoda primitivista que assolou aEuropa a partir do começo do século eque se veiculou nos seus movimentosartísticos de vanguarda. Na gênese docubismo, a escultura da África negrateve, como se sabe, importânciacomparável à da lição geometrizantede Cézanne. A poesia primitivaafricana, por sua vez, transitou dosexpressionistas alemães para osdadaístas de Zurique que, nas noitadasdo Cabaré Voltaire, se compraziamem declamá-la ao som de tambores. OBrasil não ficou esquecido nessa

voga: em 1918 Paris ouvia a execuçãode dois poemas tupis musicados paravozes femininas e batidas de mãos porDarius Milhaud, o mesmo Milhaudresponsável pela partitura deL'Homme et son désir, texto teatral dePaul Claudel ambientado na florestaamazônica e encenado em 1921 peloBalé Sueco4. Convém ainda nãoesquecer as estreitas ligações dosmodernistas de São Paulo com BlaiseCendrars, cuja Anthologie Nègre de1918 foi um dos marcos doneoprimitivismo literário, a que elenão deixou de incorporar o exóticobrasileiro através de poemas e textosem prosa sobre as experiências desuas viagens ao País.

Entretanto, ao aderir de corpo e almaà voga do primitivo, os vanguardistasde 22 não estavam apenas copiandomais uma moda européia. Estavam eratentando descobrir a identidadebrasileira por um processo deretomada cultural, que Oswald deAndrade explicitou no Manifestoantropófago: "Sem nós a Europa nãoteria sequer a sua pobre declaraçãodos direitos do homem". Referia-seele obviamente ao mito do bomselvagem inspirado pelo índioamericano a Montaigne e Rousseau eque o neoprimitivismo se encarregoude pôr outra vez em circulação.Antônio Cândido acentuou alegitimidade dessa retomada aoobservar que "no Brasil, as culturasprimitivas se misturam à vidacotidiana ou são reminiscências aindavivas de um passado recente", peloque as "terríveis ousadias" sugeridasa artistas plásticos como Picasso eBrancusi ou a poetas como Max Jacobe Tristan Tzara pelas deformaçõese/ou simplificações expressivas daarte primitiva são "mais coerentescom a nossa herança cultural do quecom a deles"5. Primitivo era então umrótulo muito amplo. Abrangia não

Entretanto, ao aderirde corpo e alma à voga

do primitivo, osvanguardistas de 22não estavam apenascopiando mais uma

moda européia.Estavam era tentandodescobrir a identidade

brasileira por umprocesso de retomada

cultural...

3 ANDRADE, O. Manifesto da poesia pau-brasil. Manifesto antropófago. In: — .Dopau-brasil à antropofagia e às utopias. Rio, Civilização Brasileira/MEC, 1972.(manifestos, teses de concurso e ensaios). A "Falação" de Pau-brasil é uma versãoresumida e modificada do Manifesto da poesia pau-brasil; nas citações que se seguem,ambas as versões são utilizadas.

4 Apud Serge Fauchereau, La revolution cubiste. Paris, Denoel, 1982. p. 91.5 CÂNDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo,

Nacional, 1965. p. 145.

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apenas culturas tradicionais já extintascomo a etrusca, a egípcia e a daGrécia pré-clássica, ou ainda vivas,como as da África negra, da Oceaniae das Américas, mas também a culturapopular contemporânea, especialmenteas expressões de arte naive tão carasaos cubistas, fossem os quadros doDouanier Rousseau ou os espetáculosde circo, a música de café-concerto ouo romance-folhetim, a cuja leituraApollinaire, aficcionado de Fantomas,reputava "uma ocupação poética domais alto interesse"6. O primitivo,outrossim, se aproximava da criançana medida em que com ela partilhavada mesma mentalidade pré-lógica,categoria de base da antropologia deLévy-Brühl bem conhecida de Mário ede Oswald de Andrade. Ainfantilidade é, reconhecidamente, umdos traços da arte moderna. Nodadaísmo, por exemplo, RenatoPoggioli discerniu uma "intransigentepuerilidade, um extremoinfantilismo"7; a seu ver, a exaltaçãoda espontaneidade infantil,característica de boa parte da arte devanguarda, aponta para uma regressãopsicológica ligada de perto à relaçãoconflituosa entre filhos e pais.Relação que o choque de geraçõespróprio da dinâmica da histórialiterária vai constituir em dialética, aopassadismo dos pais ou antecessoresopondo-se ao vanguardismo dos filhosou sucessores. Dessa síndromeregressiva da vanguarda sãocomponentes essenciais o gosto pelaarte como jogo ou brincadeira, dondecontestá-la pela sátira e a paródia àseriedade da arte acadêmica, tantoquanto a nostalgia da inocência oupureza da infância, a que buscaremontar pela recusa damá-consciência que considerainseparável da lógica e da moralburguesas.

Curioso observar que, no Modernismobrasileiro, a volta ao primitivo e aoinfantil configurava um itinerário

inverso ao dos seus modelosestrangeiros. Por ter como motivaçãoo fastio, quando não a desistência dosvalores da civilização ocidental, oprimitivismo das vanguardaseuropéias punha à mostra o seucaráter de fuga ao familiar rumo doexótico. O dos modernistas brasileirosde 22 significava, ao contrário, abusca das raízes remotas, esupostamente mais autênticas, de suaprópria cultura. Daí que a regressãoque eles gostosamente empreendiamem verso e prosa fosse menos a umainfância individual do que a umainfância nacional. Antes de evocar noPrimeiro Caderno do Aluno dePoesias, de 1927, a sua meninicepaulistana, Oswald de Andraderevisitara antes, em Pau-brasil, de1925, a infância histórica de suapátria com a "alegria da ignorânciaque descobre"8. Também a pletora deadivinhas, frases-feitas, parlendas etrava-línguas do folclore infantilusada por Mário de Andrade emMacunaíma para narrar as andançasdo seu herói-síntese ecoa-lhe,isomorficamente, a matreirice demoleque, primeiro das trilhas do mato,depois das ruas de São Paulo.

O remonte às origens históricas danacionalidade, ao momento mítico doencontro do índio com o europeu,eqüivalia a um banho lustral para arecuperação daquele "estado deinocência" do primitivo e da criançaque um dos incisos do Manifesto dapoesia pau-brasil de 1924 aproximavado estado de graça. Como todainocência a posteriori, a doprimitivismo modernista tinha osentido crítico de uma reduçãofenomenológica. Sentido aliásdiscernível desde o indianismoneoclássico, onde a ingenuidade doiroquês de Voltaire pode ser vistacomo uma espécie de estratagemaeidético para desmascaramento deembustes ideológicos, tanto quanto oera, no indianismo romântico, acontraposição da nobreza moral do

6 FAUCHEREAU, op. cit., p. 107.7 POGGIOLI, R. The theory of the avant-garde. Trad. G. Fitzgerald. Cambridge, Mass.,

Harvard University Press, 1968. p. 62. Ver também p. 35 e 107.8 ANDRADE, O. Falação. In: CAMPOS, H. org. e introd. Poesias reunidas O. Andrade.

São Paulo, Difel, 1966. p.68.

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selvagem à amoralidade utilitária deseus colonizadores. Assim também,chegados ao presente depois de suaviagem de ida e volta ao Cabralismo,puderam os modernistas de São Paulo,com a "alegria da ignorância quedescobre", iniciar a crítica da herançacolonial que ainda lhes embargava opasso à altura de 1922. Então, nascomemorações do primeiro centenárioda independência política do Brasil, aretórica cívica, pela sua própriavacuidade, pôs bem à mostra o atrasomaterial e cultural em que vegetava oPaís. Voltado, porém, mais para oestético do que para o político ou osocial (e o esquematismo dahermenêutica histórico-sociológica doRetrato do Brasil, de Paulo Prado,antes parece confirmar do quedesmentir pela exceção um pendorgeneralizado), o grupo de 22 só seocupou das mazelas culturaisdecorrentes dessa incômoda herança.Empenhou-se em denunciar-lhe abacharelice, o "lado doutor" dapedagogia jesuíta continuado pelasfaculdades de Direito, e o verbalismoque lhe é congênito, o "falar difícil"da língua culta submissa à normagramatical lusitana. Foi neste pontoque, espicaçados pelas naturaisafinidades do primitivo com o popular

exploradas pelo cubismo europeu, osprimitivistas brasileiros deram omelhor de si ao renovar radicalmenteo código literário. Voltando as costasà erudição e à gramática, foram buscarno melting pot da cultura popular docampo e da cidade a língua "semerudição", a língua "natural eneológica" que, forjada pela"contribuição milionária de todos oserros", veio enfim amalgamar semfissuras o "como falamos" ao "comosomos" e dar voz própria ao homembrasileiro. No domínio da língua, foisem dúvida com o Modernismo que aliteratura brasileira conquistou emdefinitivo a sua autonomia.

Para concluir a dialética dasvanguardas, que pedem sempre aopassado remoto o aval das inovaçõescom que contestam o passadoimediato, alcança explicarsatisfatoriamente o paradoxo de osprimitivistas de 22, tão nostálgicosdos tempos cabralinos, terem nãoobstante os olhos voltados para ofuturo. Tanto assim que, fazendotabula rasa do que ficou a meiocaminho desses dois extremos -.Do omeio caminho do período colonial edo período que, embora sepretendesse já nacional, guardavatantos resquícios daquele —

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propuseram-se eles a conjugar semcontradição a inocência da barbáriereconquistada à sabedoria pragmáticada tecnologia da modernidade parapoderem ser com isso os "brasileirosda nossa época"9.

É de se esperar que esta brevíssimaincursão pelos pressupostos do que sepoderia chamar uma teoria doModernismo de 22 tenha bastado parapôr em relevo quão grande foi arefração sofrida pelas influências dasvanguardas européias, ao passarempelo prisma de um projetoobnubilador ou antropofagia) decultura brasileira que, ao menosvirtualmente, era anterior à revoluçãomodernista. Cumpre ter sempre emmente o grau dessa refração para sepoder estimar no seu justo valor ocontributo das principais obrasgeradas pelo movimento. Ao limitar acinco o número das que irão ser aquidiscutidas, atentou-se sobretudo noseu caráter de abridoras de caminhosnovos, caminhos que obras posterioresdos mesmos ou de outros autores,ainda que de mérito comparável, sófizeram alargar.

II

Em Paulicéia Desvairada (1922), deMário de Andrade, cronologicamenteo primeiro livro modernista publicadono Brasil, a refração naturalizadora seconfina ainda ao domínio dopersonalismo, sem chegar a apontarpara um projeto comum. A propósitodesse livro, costuma-se falar da

influência do unanimismo deVerhaeren e Jules Remains,perceptível também em Há uma Gotade Sangue em cada Poema... (1917),o livro de estréia do autor. No caso dePaulicéia Desvairada, a influênciadeles sofre uma refração que se fazsentir, quando mais não seja, naintromissão constante do Eu líriconum tipo de discurso que, por aspirarà expressão daqueles "sentimentosunânimes"10 citados por Romains notítulo do seu artigo-manifesto de1905, refugia do pessoal. SendoVerhaeren e Remains poetas da faseintervalar entre o fim do Simbolismo eo advento das vanguardas, nãoestranha que, ao escolher um verso doprimeiro para epigrafar o "Prefáciointeressantíssimo" de PaulicéiaDesvairada, Mário de Andrade sedesculpasse ali de "estar tão atrasadodos movimentos artísticos atuais". Defato, em comparação com o atualizadoelenco de autores modernisticamentecanônicos citados em A Escrava quenão é Isaura, os trazidos à colação noprefácio de Paulicéia Desvairada,onde Marinetti e Cocteau ainda seacotovelam ecleticamente com VictorHugo e Bilac, mostram que amodernice dele estava em processo deformação.

Escrito em parágrafos curtos, delinguagem incisiva, como convém àdos manifestos, o "Prefáciointeressantíssimo" era uma espécie deata de fundação do Desvairismo,escola ou movimento cujo âmbito de

9 As expressões entre aspas, ao longo de todo este parágrafo, são do "Manifesto dapoesia pau-brasil" (Oswald de Andrade, op. cit., nota 3). A última delas pertence aoseguinte trecho: "Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, demecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos.Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem compreensão de apoio. Sempesquisa etimológica. Sem ontologia". Estas idéias, que serão retomadas por Oswald deAndrade no Manifesto antropófago sob a fórmula do "bárbaro tecnizado deKeyserling" e desenvolvidas amplamente em "A crise da filosofia messiânica" (Dopau-brasil à antropofagia e às utopias, op. cit., nota 3), têm a ver com o conflito filhos xpai subjacente à psicologia das vanguardas. No Modernismo brasileiro de 22, o conflitoassume conotação própria: a superação da polaridade bacharel x patriarca apontada porLuís Martins na geração abolicionista-republicana pela polaridade engenheiro xbacharel característica da geração que assistiu à (e participou da) industrialização doPaís. "Engenheiros em vez de jurisconsultos" é o que significativamente reclama oManifesto da poesia pau-brasil.

10 No "Prefácio interessantíssimo" de Paulicéia desvairada (in: ANDRADE, M. Poesiascompletas. São Paulo, Martins, 1955. p. 21), o poeta fala expressamente em "almacoletiva".

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atuação se esgotou ali. Para justificaro título do livro e o nome da escola aque servia de ilustração prática,explicava o poeta: "Quando sinto aimpulsão lírica escrevo sem pensartudo o que o meu inconsciente megrita". Não é difícil perceber nisto omagistério do automatismo psíquicoiniciado pelos dadaístas esistematizado depois pelossurrealistas, assim como o cultoliterário do desvario — alegorizada poruma maiúscula simbolista, "minhaLoucura" será a musa do poeta aolongo do livro — tem possivelmentealgo a ver com as sete "chansons defou" da primeira parte de Les Villestentaculaires de Verhaeren,confessadamente o autor de cabeceirade Mário de Andrade no ano em quecompôs Paulicéia Desvairadas11. Aoapresentar-se "como louco" no"Prefácio interessantíssimo", o poetaaceitava por antecipação o rótulodepreciativo que lhe seria pespegadopelos filisteus. A eles haveria porcerto de parecer adoidada eincompreensível a "ordem imprevistadas comoções, das associações deimagens, de contactos exteriores"que, para poder cantar o "seuinconsciente", Mário de Andraderegistrava nos seus versos, tãodiscrepantes de tudo quanto haviasido feito até ali na poesia brasileira,ainda que parecessem tímidos emcomparação com os primeiros poemasdadaístas. Tivera ele um antegosto dareação filistina quando do escândaloprovocado pelo aparecimento, em1921, do artigo de Oswald deAndrade "O meu poeta futurista", noqual era reproduzido um dos poemasde Paulicéia Desvairada. O "Prefáciointeressantíssimo" faz referência aosinconvenientes pessoais trazidos aMário de Andrade por esse escândalo,e a virulência com que, em peçascomo "Ode ao burguês", "A caçada","Colloque sentimental" e "Asenfibraturas do Ipiranga" é versada aoposição entre artista e burguês,revela tratar-se menos da exploraçãode um topos da arte de vanguarda quede um desabafo de ordem íntima.

O desvario da linguagem inovadorado poeta paralelizava o desvario davida trepidante da metrópole por elecelebrada. Mediante o uso sistemáticodo que, no "Prefáciointeressantíssimo", ele chamava de"verso harmônico" e "polifoniapoética" — um verso formado depalavras futuristicamente emliberdade, sem ligação gramaticalentre si, a vibrarem no seuinsulamento como a harmonia de umacorde irresoluto; uma polifoniaverbal conseguida pela superposiçãode frases soltas, as mais das vezeselípticas por escamoteamento doverbo — tentava ele suscitar o mesmoefeito de simultaneidade do "tumultodesordenado das muitas idéias" a seatropelarem no cérebro num momentode especial comoção. Para dar contade tal comoção e do tumulto interiorpor ela engendrado, abusava o poetainclusive de notações gráficas comoas reticências e o ponto deexclamação, de uso extensivo já entreos simbolistas. Só que, em PaulicéiaDesvairada, as reticências visavam adar força de ressonância à palavra emsi, liberta das sujeições sintáticas,enquanto o ponto de exclamação era aimagem icônica de uma subjetividadeteatral a admirar-se de suas própriasvisões e introvisões.

A simetria, desde o nível de umateoria da composição, entre atumultuosa interioridade do poeta e anão menos tumultuosa exterioridadeda sua Paulicéia anuncia-se no versode abertura do primeiro poema dolivro:

São Paulo! comoção da minha vida...

Trata-se, contudo, de uma simetriadialética, inscrita mais na ordem dapolaridade de contrários que doalinhamento de semelhanças. Se, peloque dão a entender poemas de efusãolírica como "Inspiração", "Paisagemnºl ou "Tristura", é de amor arelação entre o poeta e a cidade,outros poemas como "Os cortejos","A escalada" ou "Ode ao burguês"mostram a dose de rancor subjacente atal efusão. O tema da metrópole

O desvario dalinguagem inovadora

do poeta paralelizava odesvario da vida

trepidante dametrópole por ele

celebrada.

11 Cf. M. Bandeira, org. e pref. Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira. Rio,Simões, 1958. p. 293.

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moderna aparece em PaulicéiaDesvairada com o mesmo sentido quetem na poesia de Baudelaire eReverdy, onde, segundo MortimerGuiney, é "símbolo da matéria fria,estática e indiferente, criada pelohomem na sua tentativa de estabeleceruma ponte entre si e o mundo exterior(...) do insucesso da humanidade anteo problema da incompatibilidade entreespírito e matéria"12. Essa relaçãoproblemática é marcada, na estilísticade inovação de Paulicéia Desvairada,pela freqüência com que advérbios einfinitivos são substantivados pelaanteposição de artigo: "os sempres","os aplaudirás", "os tambéns", "osmuito-ao-longes", "nos jamais" etc.Aponta semelhante recurso para umaespécie de reificação da circunstância,indicativa de um malogro do Eu emavir-se com ela, de um desencontroentre a magnitude do desejo e a escalado possível. Outrossim, o fato de asubstantivação se fazer sempre noplural envolve a idéia de fatal edesalentadora repetitividade, além deevidentemente contrastar com asingularidade do Eu: na gramáticapoética do livro, a primeira pessoa dosingular e suas marcas, pronomes eflexões verbais, corporificam ainferioridade do poeta, ao passo que aterceira do plural é a máscara dacidade e de seus mandatários:

Paulicéia - a grande boca de ml dentes.

A essa pessoa múltipla, ou "almacoletiva", diz respeito a pluralizaçãoconstante de substantivos quasesempre abstratos por via dos quais, aomesmo tempo em que mapeia os seusdilemas interiores, vai o poetadesenhando o perfil moral da suadesvairada Paulicéia. Perfil de cunhofortemente crítico nos poemas quetematizam o conflito entre os valoresantagônicos do Eu e do Eles. É o casode "A escalada", cuja metáfora debase, a cidade como um "morro deambições", se prolonga na do calvário("crucificações da honra") que opoeta, falando consigo mesmo numasegunda pessoa de tom ironicamente

admonitório, incita-se a escalar apóster-se livrado dos "fardos" de seusescrúpulos idealistas ("Estes milquilos de crença") para,Hermes-Pança, poder chegar eletambém ao "sol sonante" dosplutócratas. Em "Tietê", o rio daoutrora aventura bandeirante aparecedegradado em mero local decompetições de natação: o advérbio"esperiamente", no segundo verso,deriva do nome de um clube esportivoentão freqüentado por imigrantesenricados ou descendentes deles, ajulgar pelos dois versos em italiano naúltima estrofe.

A imagem da Paulicéia, como espaçode opulencia financeira e refinamentomundano, iterativa em "Rua de SãoBento", "O domador", "A caçada","Paisagem nº 2", condensa-se norefrão " — Futilidade, civilização" quefecha cada uma das quatro estrofes de"Domingo", com o seu staccato denotações coloquiais compondo umquadro sarcasticamente descritivo. Omesmo registro sarcástico, que chegaà virulência política em "O rebanho"e "Ode ao burguês", pervaga decomeço a fim "As enfibraturas doIpiranga", o texto mais ambicioso dolivro. Nesse "oratório profano", osvários estratos da sociedade paulistana— escritores e artistas acadêmicos,milionários e burgueses, operariado egente pobre — alternam coralmentesuas vozes com as das JuvenilidadesAuriverdes, ou seja, o grupomodernista, e da Minha Loucura,figuração simbólica daindividualidade do poeta. Lançandomão de recursos como a monotoniadas rimas repetitivas ou o contrasteentre fórmulas prosaicas e metáforasalambicadas, "As enfibraturas doIpiranga" compilam um catálogo dechavões do senso comum, dapatriotada e do academismo, de parcom certos cacoetes do próprioidioleto modernista, para fazer ouvirem plenitude o registro paródico queserá a marca de fábrica doModernismo brasileiro em sua faseheróica.

12 GUINEY, M. Cubisme et littérature. Genebra, Georg & Cie S.A., 1972. p. 81.

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O caráter coral do último poema dePaulicéia Desvairada, discrepante dopersonalismo da maior parte dos que oantecedem, aponta já para um projetotranspessoal, de grupo. Em pólooposto, "Colloque sentimental" nosdá a expressão mais reveladora dadialética do amor: rancor próprio dosubjetivo de Paulicéia Desvairada,assim como a de amorihumor o serádo visual de Pau-brasil. Na mesmalinha do "Noturno" do Cambuci, cujacondição de bairro popular é conotadapelo grito do vendedor de batataassada e pelo violão do "mulato corde oiro", a condição aristocrática deHigienópolis nos anos 20 ressalta dosflagrantes ora descritivos ora alusivoscom que "Colloque sentimental" lhefixa, em meio à noite paulistana, obrilho das mansões com, lá dentro, ascasacas de seus condes e os ombrosnus, o rouge pecaminoso e adulterinode suas grandes damas. Há umaostensiva nota de crítica social nessesflagrantes — como o "rio de lágrimas"proletárias escorrendo de sob asportas das mansões —, mas ela nãoobsta a que o elocutor do poema,identificado pelo "eu" elíptico doprimeiro verso, confesse no mesmotom expiatório de "Religião", poemaque se segue imediatamente a"Colloque sentimental", suainvencível atração por aquelas"Babilônias dos [seus] desejos maisbaixos" que, embora sentindo-seexcluído, ele culposamente percorrecom os "pés chagados nos espinhosdas calçadas". Não vem ao casoapontar eventuais nexos de simetriadas equações amonrancor eamor: humor com as diferenças dostatus social dos autores de PaulicéiaDesvairada e Pau-brasil à altura emque escreviam esses livros inaugurais.Nem explicar por aí eventuais atitudesde estranhamento ou à-vontade emrelação ao apoio recebido pelo grupode 22 do patriciado paulista, quetantas vezes o acolheu em suas

mansões de Higienópolis. O queimporta, acima de tudo, é adiversidade dos resultados literáriosdas ditas equações e o alargamentoassim trazido ao espectro da expressãomodernista.

III

Conquanto o famoso epigrama"amor: humor" só vá aparecer noPrimeiro Caderno do Aluno dePoesias Oswald de Andrade (1927) —o qual, não obstante o título, é narealidade o segundo livro de poemasdo autor — ele já presideimplicitamente a poética de Pau-brasil(1925). Não tanto a teorizada nosversículos de "Falação", variantecondensada do Manifesto pau-brasil,como a dedutível dos poemas que aela se seguem. A extremada concisãodesses poemas levou Paulo Prado, noprefácio do livro, a chamar-lhes"comprimidos, minutos de poesia",glosando assim, talvez sem o saber,um dito de Tristan Tzara, que falouem "comprimido de linguagem"13 aoreferir-se ao lugar comum usado pelospoetas cubistas com propósitosemelhante ao das colagens dasegunda fase, a fase sintética, dapintura cubista. O magistério docubismo literário e pictórico é de restoperceptível em Pau-brasil, não mais,porém, do que o alto grau deinventividade demonstrado pelo seuautor no aproveitar-lhe as instigaçõespara fundar uma "poética daradicalidade"14 com justeza aliapontada por Haroldo de Campos.Para se ter a medida dessaradicalidade, é ilustrativo cotejar ospoemas brasileiros de Feuilles deroute, de Blaise Cendrars15, compeças de temas semelhantes dePau-brasil. Nestas, muito mais quenaqueles, a redução ao mínimo dosnexos gramaticais, a constante elipsedo verbo, os deslocamentosqualificativos e os jogos

13 FAUCHEREAU, op. cit., p. 138.14 CAMPOS, H. org. Poesias reunidas ... op. cit., (ver introdução).15 Cotejo ainda mais ilustrativo se feito com base na tradução desses poemas para o

português realizada por Teresa Thiériot que consta em: Blaise Cendrars, Etc... etc...(um livro 100% brasileiro). São Paulo, Perspectiva, 1976.

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paronomásicos e alusivos não sódinamizam a elocução como a fazemdistanciar-se do lógico rumo aoanalógico.

Além de estimular-lhe a capacidade defixar em linhas rápidas de caricatura oessencial do que pretendiarepresentar, a síntese cubista abriu osolhos do poeta de Pau-brasil para oespetáculo do cotidiano."Escapulário", a peça de abertura dolivro, vale como uma espécie de suadivisa ou programa:

No Pão de AçúcarDe Cada DiaDai-nos SenhorA PoesiaDe Cada dia

Aí estão in nuce alguns dos principaisartigos de fé da arte poéticaoswaldiana. A paródia do textolitúrgico é visualmente sublinhadapelo uso de maiúsculas de reverência,sendo que, em nível semântico, o jogoalusivo convida a ler o virtual por sobo literal: a poesia de cada dia étambém o pão de cada dia. Não o pãotout court que mata a fome, mas o pãode massa mais fina que, além dematá-la, lisonjeia o paladar: mais bemse percebe a ironia destacomplementação do utilitário pelohedonístico ou estético quando sepensa na virtude da frugal idade tãoencarecida nos textos de edificaçãoreligiosa. Todavia, o fundamental é aparódia ser acionada peloaproveitamento de um lugar comumda geografia turística nacional que,em outro poema do mesmo livro,"Noite no rio", assume tambémcaráter litúrgico pela sua homologiade contornos com o manto triangularda Virgem tal como representada naiconografia: "O Pão de Açúcar/ÉNossa Senhora da Aparecida/Coroadade luzes".

O lugar comum é a pedra de toque docotidiano por cristalizar-lhe, numafórmula ready-made, a consubstancialmesmice ou falta de novidade: a vidade todos os dias como repetição,rotina. Situa-se ela, portanto, nosantípodas da literatura, a qual temantes a ver com a novidade da matériaou expressão, quer em prosa (novela

vem de nova ) quer em verso (opoético é o contrário do prosaico).Daí que, ao privilegiar o lugar comume ao tematizar o cotidiano, a poesia dePau-brasil se colocassedeliberadamente no campo daantiliteratura. Poder-se-ia inclusiveconsiderá-la, historicamente, o avessoda dicção parnasiano-simbolista, ondelinguagem e tema elevados eram depraxe e de rigor. Mas por sob anegatividade paródica de Pau-brasilcorre um permanente fio depositividade: humor é amor. Aovoltar-se para o cenário cotidiano, opoeta não quer vê-lo com os olhos darotina. Propõe-se antes vê-lo com osolhos novos da "ignorância quedescobre", mesmo porque "a poesia éa descoberta/das coisas que eu nuncavi", lição por ele aprendida do seufilho de dez anos, conforme está ditonum dos poemas do livro, 3 de maio.Ver o já-visto como nunca-vistoequivale a inverter radicalmente asregras do jogo, fazendo do cotidiano oespaço da novidade e do literário oespaço da rotina ou convenção.

O enternecimento irônico(amor: humor) com que o poeta secompraz em rever o dia-a-dia pararevitalizar-lhe os estereótipos é típicoda ignorância ou inocência assumida aposteriori. Nela, à surpresa infantilcom o nunca-visto, subjaz amá-consciência adulta do já-visto,donde a sua ironia ou duplicidade devisão. Ela dá sinal de si em "História

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do Brasil", a primeira das novesecções temáticas em que se dividePau-brasil. Ali, trechos de prosa decronistas coloniais, Caminha,Gandavo, d'Abeville e outros, sãodispostos em forma de versos a fim demelhor ressaltar o pitoresco dodeslumbramento pueril deles ante àssingularidades e maravilhas do NovoMundo. Esta utilização da técnica decolagem é sui generis por utilizarmaterial historiográfico em vez dematerial contemporâneo, os recortesde jornal, fragmentos de conversação,letras de canções etc., a que os poetascubistas costumavam recorrer. Dignade nota, ainda, a recorrência detécnica semelhante em "Secretário dosamantes". O título dessa sexta secçãode Pau-brasil foi tirado das brochuraspopulares de modelos de cartas deamor, e os seis breves poemas que acompõem podem ser vistos como umaespécie de paródia das cantigasd'amigo: a elocução é de igual modoassumida pela mulher, mas a misturacoloquial de expressões de carinhocom observações práticas ironiza emcerta medida a sentimentalidadecostumeira do gênero. Neste caso,também, limitou-se Oswald deAndrade a dar forma de versos atrechos de cartas que lhe foramescritas pela pintora Tarsila doAmaral, então sua mulher 16.

Usada com freqüência ao longo dolivro, a colagem, notadamente detextos de anúncios, serve a fins desátira por assim dizer documental, jáque, por cortejar o favor do público, oreclame acaba por lhe revelarobliquamente a psicologia e osvalores. Entretanto, quando se a vêmcom textos naifs, a sátira oswaldianadeixa entrever uma indisfarçávelponta de enternecimento com aingenuidade popular. Foi o que, nãosem lhe opor alguns reparos, assinalouMário de Andrade em Pau-brasil: "O.de A. se aternurou sem crítica portudo o que é do povo"17. Esseenternecimento paródico está por trás

da fidelidade com que é registrada em"Carnaval" e "O ginásio", porexemplo, a linguagem a um só tempoempolada e canhestra dasproclamações dos ranchos cariocas edos volantes de propaganda deespetáculos populares como o do"tenor boxeur Romão Gonçalves". Éela ainda que explica a atração, domesmo poeta cosmopolita que emcontrabando dirá trazer no coração"Uma saudade feliz/de Paris", pelasimplicidade da vida nas cidadezinhasdo interior de São Paulo e MinasGerais celebradas em "RP l" e"Roteiro das Minas". Uma delas lhevai inspirar o admirável "ditirambo"("Meu amor me ensinou a sersimples/Como um largo de igreja") enos letreiros das modestas casas decomércio de outra "nova iguaçu",enxergará ele alvíssaras do país sempecados sonhado pela nostalgia dostempos idílicos do Cabralismo, assimreverentemente grafado commaiúscula inicial na abertura de"Falação". Na linguagem, nas festas enos costumes da vida popular do seutempo o poeta reencontra o mesmobárbaro nosso das origens cabralinas.Pois este é o próprio genius loci a quedevemos a originalidade nativa capazde redimir-nos do pecado da adesãoacadêmica do Brasil doutor para quepossamos ser enfim os brasileiros denossa época.

É bem de ver que, em Pau-brasil, opendor primitivista e popularescoconvive, sem contradição, com o cultomodernista do progresso. Culto queressalta em alguns dos poemas de"Lóide brasileiro", a última secção dolivro: no "canto de regresso à pátria",parodiando Gonçalves Dias, diz-nos opoeta que deseja voltar para "oprogresso de São Paulo", e em"Recife", tanto ou mais do que asrelíquias históricas, encantam-no osguindastes e chaminés da cidade,"Baluarte do progresso". É menosinsólita do que pode parecer estasimbiose da barbárie e do

16 Cf. AMARAL, A. Tarsila — sua obra e seu tempo. São Paulo, Perspectiva, 1975. v. I,p. 75.

17 Apud Telé Porto Ancona Lopez, Mário de Andrade: ramais e caminho. São Paulo,Duas Cidades, 1972. p. 170.

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primitivismo com o progresso e atecnologia. Aos olhos dos defensoresmais ferrenhos da cultura ditahumanística, a idolatria moderna datécnica sempre se afigurou, no fundo,a emergência de uma nova barbárie. Ese se tiver em mente que o Manifestoda poesia pau-brasil se voltasobretudo contra a erudição e abacharelice "humanísticas" de nossaformação histórica, não fica difícilentender o apreço de Oswald deAndrade, no Manifesto antropófago,pelo "bárbaro tecnizado deKeyserling".

Um último aspecto de Pau-brasil quenão pode passar sem registro é a suavisualidade e, correlatamente, a suaimpessoalidade, já que ali nos fala opoeta menos de si que do mundo à suavolta. Isso mau grado ele se terproposto, em "Falação", uma"perspectiva de outra ordem que avisual". Referia-se, no caso, ao visualmeramente fotográfico da "argúcianaturalista", em troca da qual aspiravaà nova visualidade da "síntese"cubista. Esta, ele a soube realizar,pioneiramente e melhor do queninguém entre nós, por via da felizconjunção da paródia, da colagem edo lugar comum revitalizado, "apoesia de cada dia", no quadro deuma poética de amor: humor. E ocontraste entre a impessoalidade delae o personalismo subjetivo dePaulicéia Desvairada dá fé nãoapenas da amplitude do projetomodernista em sentido estrito comodas futuras aporias da nossamodernidade em sentido lato.

IV

Quando se passa da poesia para oromance de Oswald de Andrade,está-se passando de arte que buscaesconder a sua mestria por trás de umaestudada simplicidade para arte quetimbra em alardear-se o tempo todocomo tal, apontando um dedo enfáticopara a sua própria máscara18.Asceticamente, a poesia pau-brasilalmejava ser uma simples

"apresentação dos materiais" emestado bruto, no que se contrapunha,de caso pensado, à poesia suaantecessora "emaranhada na cultura"e nos "cipós das metrificações"19. Jáa prosa de arte das MemóriasSentimentais de João Miramar (1924)prazerosamente se entrega às"violências maravilhosas da cor",conforme lhe está dito no prefácio, demodo a não deixar dúvidas quanto àsua primazia de iniciadora daexpressão modernista em nossa ficção.A justificativa desta dualidade deposturas estilísticas talvez esteja nacircunstância de, como poeta, Oswaldde Andrade ter estreado já modernista,enquanto Os Condenados, seuprimeiro romance, publicado emborano mesmo ano da Semana de ArteModerna, é visivelmente um livropré-modernista. O "gongorismoverbal da escrita"20 nele denunciadopor Antônio Candido o define desdelogo como um produto típico do artnouveau literário.

À adjetivação frondosa de quem, porfocalizar a vida sob as lentes de umpatetismo à D'Annunzio, se esmeravaem realçar-lhe operisticamente astintas, sucede a preocupação do"estilo telegráfico e a metáforalancinante" anunciados desde oprefácio das Memórias Sentimentaisde João Miramar como fruto da"nova revolução" em prol de "umalíngua modernista". Língua que,distinguindo-se pela novidade dessesrecursos da tradição arte-novista,desta herdara contudo o mesmoimpulso ornamental. Quando se falaem ornamento, está-se implicitamentefalando em excesso outransbordamento do significante sobreo significado, como se aquele setornasse em certa medidaindependente deste. No caso deMiramar, tal relativa independência éconfirmada pelo fato de, após umaviagem a Paris onde travouconhecimento mais íntimo com asnovas modas artísticas, ter oromancista modernizado radicalmenteo estilo de uma primeira versão mais

18 Expressão usada por Roland Barthes algures em O grau zero da escritura.19 Frases de "Falação" em Pau-brasil... op. cit.20 CÂNDIDO, A. Brigada Ligeira. São Paulo, Martins, s.d. p. 16.

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Lá é evidentemente aEuropa, a França emparticular, de onde o

Brasil importavaentão quase todos os

refinamentosmodernos...

conservadora do livro, datada de191721. Era como se, invertendo oexemplo clássico que Paulo Pradoinvocava no prefácio de Pau-brasil,para expressamente desmenti-lo com anovidade tanto de fundo quanto deforma da poesia ali enfeixada, o seuautor, agora doublé de romancista,passasse a fazer versos novos sobrepensamentos antigos.

Não é assim tão descabido falar emversos a propósito de Miramar. Namedida em que se distanciava do idealde uma "prosa pura" sonhado porAntônio de Alcântara Machado,incorria ele no equívoco da "prosalírica" que o mesmo AlcântaraMachado verberara como prosa que"não é prosa"22. Salta à vista tendero estilo de Miramar mais àexuberância lírica do que àobjetividade prosaica. Nele semultiplicam as metáforas de impacto("o vento batia a madrugada como ummarido"), as rimas e aliteraçõesconsecutivas ("sapos sapeiam sapassopas"), as metonimias violentas("sons lestos de campainhasancoraram o navio"), os oxímoros("escada subia quedas"), asonomatopéias semantizadas ("o grilo /Triste tris-tris-triste"), os lancestrocadilhescos ("bandos de bondesiam para as bandas da Avenida"), osdeslocamentos qualificativos ("asbarbas alemãs de um médico"), asalterações de regência verbal ("maltaescabriavam salas brancas"), asnominações grotescas ("Miss Piss","Pindobaville")23. Mas o queparticularmente se faz notar é o gostofuturista do telegráfico e doneológico, um manifesto nasistemática omissão de conectivosgramaticais, em especial artigos, e ooutro na freqüente verbalização deadjetivos ou substantivos(norte-americanava,guardanapavam). Se aqueles outros

recursos de expressão podem servistos como manifestações mais oumenos gratuitas de ludismo poético,estes dois últimos estão intimamenteligados à semântica do livro. Otelegráfico ecoa isomorficamente otema da viagem, nele central, e dacorrelata dialética entre o Lá e o Cáemblematizada no nome do seuprotagonista, um Miramar de olhossempre postos no mar de embarques,nunca de desembarques. O neológico,por sua vez, articula a fala de umdesejo que, na exasperadamultiplicação dos signos da modernicecosmopolita de Lá, busca umacompensação simbólica para oprovincianismo da atrasada vida deCá. Lá é evidentemente a Europa, aFrança em particular, de onde o Brasilimportava então quase todos osrefinamentos modernos, entre eles aânsia de uma liberdade sexual queOswald de Andrade iria exprimir maisde uma vez nas suas inacabadasmemórias Um Homem sem Profissão(1954): "Tudo isso vinha confirmar aidéia de liberdade sexual que doiravao meu sonho de viagem, longe dapátria estreita e mesquinha, daqueleambiente doméstico onde tudo erapecado. (...) Na Europa, o amor nuncafoi pecado. Não era preciso matarpara possuir uma mulher. Não havia lásanções terríveis como aqui pelocrime de adultério ou sedução. Enfimo que existia era uma vida sexualsatisfatória, consciente e livre"24.

Não é descabido trazer à colação estetexto autobiográfico para iluminaraspectos do texto ficcional: um eoutro coincidem repetidas vezes,como mostrará qualquer leituracomparativa de Um Homem semProfissão e Miramar. Neste, apósnarrar a infância e adolescência doseu herói, demora-se o romancista emdescrever-lhe a viagem pela Europa,de volta da qual Miramar desposa uma

21 Cf. AMARAL, A. op. cit., p. 77 e 99.22 Cf. MACHADO, A. Cavaquinho e saxofone ... op. cit., p. 341.23 ANDRADE, O. Memórias sentimentais de João Miramar. Rio de Janeiro, Civilização

Brasileira, 1971. (Obras completas, 3ª ed., v. II).______. Serafim Ponte Grande. Rio deJaneiro, Civilização Brasileira, 1971. (Obras completas, 2ª ed., v. II).

24 ANDRADE, O. Um homem sem profissão: memórias e confissões. Rio de Janeiro,José Olympic, 1954. p. 122. (lº v., 1890-1919, sob as ordens de mamãe).

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prima rica, herdeira de fazendas decafé. O restante do livro é consagradoa pormenorizar-lhe as aventurasextraconjugais e boêmias em SãoPaulo, Santos e Rio, culminadas noseu divórcio, a que se seguem asmortes sucessivas da sogra e daesposa. Este anticlimax faz da filhaúnica de Miramar herdeira dos bensmaternos e garante a ele a vida sempreocupações materiais de que o seuhedonismo não podia abrir mão.Combinado à similitude de títulos, amenção do hedonismo traz à mente doleitor das Memórias Sentimentais deJoão Miramar a lembrança dasMemórias Póstumas de Brás Cubasdaquele Machado de Assis que, aolado de Euclides da Cunha, era tudoquanto, na literatura brasileira,interessava ao autor de Um Homemsem Profissão, segundo aliconfessa25. A despeito dasextremadas diferenças de tempohistórico e projeto criativo, háalgumas semelhanças entre os doislivros. Em Brás Cubas talvezaprendesse, Oswald de Andrade, atécnica dos capítulos curtos comtítulos as mais das vezes irônicosutilizada em Miramar, depois emSerafim Ponte Grande (1933). E tantoo herói machadiano quanto ooswaldiano parecem ter sido talhadosno mesmo pano para, cada qual à suamaneira, figurar o tipo do gozadorelegante e cínico que, num textoautobiográfico, se distrai a fixar osridículos, pecados e fraquezas alheios,por eles obliquamente justificandouma moral de interesse próprio. BrásCubas se dá ao trabalho de explicitaras justificativas nas pachorrentasreflexões a que naturalmente oconvida o seu eterno ócio de defuntosem mais nada por viver; as tropeliasboêmias de João Miramar não lhedeixam tempo livre para refletir sobreelas, só para vivê-las; tire quem quisera moral da fábula. Tirando-a,percebe-se que aponta menos para asfeições intemporais de um caráter àTeofrasto do que para o rostohistórico de um patriciado agrícola,cujo cosmopolitismo bem viajado mallhe escondia a condição semicolonial.

Do que há de bifronte nesse rostohistórico dá testemunho imediato, noplano das homologias, o transbordo damodernice mais que futurista do estilode Miramar por sobre aconvencionalidade da sua matériaficcional, que faz lembrar a doromance cosmopolita e fútil deMorand, Dekobra ou Guido deVerona. Com duas ressalvas: a de otrabalho de linguagem de Miramar sermuito mais avançado do ponto devista estético, e a de ter sido livroescrito num diapasão satírico que nãoteme ir até o bufo. Estas ressalvasapontam, por sua vez, para duasdireções diversas, identificadas nomea culpa que Oswald de Andradeantepôs ao Serafim Ponte Grandecomo prefácio. Penitencia-se ele de,nesse romance e no Miramar, ter feitoliteratura de vanguarda na ilusãoburguesa de "colocar a literaturanova-rica da semicolônia ao lado doscustosos surrealismos imperialistas".Mas reconhece, porém, no seuvanguardismo, "uma fonte sadia, osarcasmo", que lhe permitiu servir "àburguesia sem nela crer". Com isso,podia aliviadamente concluir, nomesmo prefácio, terem sido seus doisromances modernistas não apenas um"índice cretino, sentimental epoético" das veleidades cosmopolitasda burguesia cafeeira de São Paulo,mas também o seu "necrológio". Umnecrológio em grande estilo, aindaque feito de vers nouveaux sur despensers antiques.

VI

No "Prefácio interessantíssimo", cujapublicação antecedeu de dois anos ado Manifesto da poesia pau-brasil,Mário de Andrade já caracterizava osmodernistas como os "primitivos deuma nova era". Mas fazia questão deressaltar que, ao escrever os poemasde Paulicéia Desvairada, buscarafugir do "primitivismo vesgo einsincero" para só reter, das hipótesesacerca dos "primitivos das eraspassadas", aquilo que o pudesse levara uma "expressão mais humana e livrede arte". Seis anos depois, com a

25 Ibid., p. 119.

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publicação de Macunaíma, parece eleter deixado definitivamente de partequaisquer reservas anteriores paramergulhar fundo na voga primitivista.Era o que dava a entender acircunstância de a figura do herói dolivro e grande parte das peripécias alinarradas terem sido tomadas deempréstimo à mitologia ameríndia, apar de o registro coloquial em que foiescrito estilizar a fala popular.Macunaíma apareceu no mesmo anoem que Oswald de Andrade divulgava(maio de 1928) o seu Manifestoantropófago. Mário de Andradesublinhou, na época, tratar-se de meracoincidência, visto a primeira versãodo livro datar de 1926; o certo, noentanto, é que ele respondia ao mesmoclima de idéias do manifesto, afora oqual, aliás, Oswald de Andrade nãoproduziu nada de reconhecivelmenteantropófago. Em matéria de criaçãoliterária, portanto, a Antropofagia selimitou praticamente a Macunaíma eCobra Norato, poema de Raul Bopp,só em 1931 recolhido em livro.

A designação de "rapsódia",introduzida a partir da segunda ediçãode Macunaíma, para definir-lhe aforma narrativa, pode ser entendida,literariamente, no sentido de imitaçãodo estilo de compor dos rapsodos oucantadores populares e, musicalmente,

no sentido de fantasia livre eexuberante sobre motivos folclóricos.As duas acepções são pertinentes. Aprimeira é ilustrada, na linguagem dolivro, pela freqüência de enumerações,refrões, frases rimadas ou aliterativas;pelo aproveitamento sistemático delocuções tradicionais e parlendasinfantis; pelo recurso iterativo aoprovérbio e à hipérbole; peloà-vontade com que o mágico e o realse entremesclam. Tudo isso dentro doespírito lúdico de quem se encantassemais com o fluxo da própria fala doque com a coerência da exposição,espírito no qual se faz reconhecívelum pendor retórico herdado pelohomem do povo de seus antepassadosíndios. Ao dar cidadania literária àfala popular, tentava Mário deAndrade, como ele próprio diz na"Carta pras icamiabas" (cap. IX),transpor o fosso que separava o"brasileiro falado" do "portuguêsescrito". Por isso não há emMacunaíma a diferença de registroelocucionário que havia na ficçãoregionalista, sua antecessora, entrepersonagem e narrador: este assume,sem mais diferença de estatuto social,a voz e a persona daquele.

Tampouco se percebem aqui ospropósitos de registro localista queanimavam o regionalismo. A fantasiarapsódica combina agora livrementeentre si, na mesma tapeçaria dedeliberado desenho transregional,motivos folclóricos provindos dasdiversas regiões do País. Dessetransregionalismo dão prova, no nívelda efabulação (onde, por repetitivas,assumem categoria de procedimentoformal), as correrias do herói e seusperseguidores e/ou perseguidos portodos os quadrantes do País, numamovimentação cuja rapidez fabulosaoblitera as distâncias de ordem quergeográfica quer cultural. Aexuberância da fantasia rapsódicaultrapassa livremente os limites daparáfrase para invadir os da invenção:o rol de episódios míticos tradicionaisé enriquecido de episódios novos, masconsubstanciais deles, como se ainventiva do escritor se folclorizassepor contaminação. É o que avulta noslances em que usos e artefatos da vidamoderna são explicados por via mítica

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(por exemplo, o caso da onça viradaem automóvel no cap. XIV), àmaneira dos contos etiológicos. Dadaa anterioridade temporal do texto deMacunaíma, sería descabido quererver em lances tais ilustraçõesfabulares de postulados do Manifestoantropófago. Mas não há como fugir àevidência de terem sido inspiradospela mesma preocupação deestabelecer o nexo deconsubstancialidade entre primitivo eatual que, para os modernistas de 22,se fazia o penhor de serem eles osverdadeiros "brasileiros de nossaépoca".

Deste prisma, a transposição dasaventuras de um herói folclórico dalongínqua Amazônia para as ruasmetropolitanas de São Paulo ganhaoutro sentido que não o de meraexploração das possibilidades cômicasdo anacronismo. Como se sabe, Máriode Andrade foi buscar, às lendasameríndias colhidas pelo etnógrafoalemão Koch-Grünberg no norte doBrasil e na Venezuela, o material debase da sua rapsódia, queposteriormente enriqueceria comelementos de outras numerosas fontese com matéria de sua própriainvenção. O enredo de Macunaímagira em torno da viagem empreendidapelo herói epônimo e seus irmãosJiguê e Maanape, desde a beira doUraricoera, onde ele havia nascido eonde se tornara imperador daMata-Virgem, depois do seucasamento com Ci, rainha dasamazonas, até São Paulo. O motivo daviagem é encontrar a muiraquitã outalismã da felicidade que ele perdera eque lhe fora presenteado por Ci antesde ela, inconformada com a morte deseu filho com Macunaíma, subir parao céu e converter-se numa estrela. Otalismã extraviado estava agora empoder do mascate Venceslau PietroPietra, avatar do gigante Piaimã.Depois de numerosas aventuraspicarescas por São Paulo e Rio, ondese passa o principal da narrativa, o

herói consegue recuperar a muiraquitãe volta para o mato de onde viera.Mas a sua tribo havia sidoentrementes liquidada por umaepidemia e seus dois irmãos tambémnão tardam a morrer. Solitário eabúlico, Macunaíma já não teminteresse pelas coisas. Nova perda dotalismã por culpa do engodo de umauiara que o atraíra para dentro d'águatira-lhe o último meio de devolveralgum sentido à sua vida, pelo queele, despedindo-se do mundo, ascendeao céu e se transforma numaconstelação.

Ao escolher para protagonista de suarapsódia um herói folclórico cujonome significava "o grande malvado"e em cuja personalidade a soma dosdefeitos sobrepujava bastante a dasqualidades, Mário de Andrade nãoescondia um propósito de crítica que osubtítulo de "o herói sem nenhumcaráter" dado a ela só fazia realçar.De começo, alegando tratar-se de um"livro de pura brincadeira",negou-lhe a condição de símbolo dohomo brasilicus nele vista por Tristãode Ataíde, um dos seus primeirosresenhadores. Isso porque, noentender do autor de Macunaíma,símbolo implicava uma "totalidadepsicológica" de todo ausente do seuherói ou anti-herói, de quem tirara"propositalmente o lado bom dobrasileiro" a fim de poder torná-louma "sátira"26. Enquanto símbolonegativo, o protagonista deMacunaíma compendia os traçospsicológicos essenciais que PauloPrado (a quem o livro está dedicado)recenseou em Retrato do Brasil comoresultantes dos percalços da formaçãohistórica da nacionalidade: a ambiçãoda riqueza fácil, a lascívia sem freio,o individualismo anárquico, a carênciade espírito de cooperação, ahipertrofia da imaginação, aloquacidade, a facilidade de decorar,as alternativas de entusiasmo e apatia,a indolência, a melancolia difusa.

26 As citações entre aspas, de declarações de Mário de Andrade, foram colhidas nosescólios de ordem crítica incluídas por Telê Porto Ancona López na 2ª e 3ª partes desua edição crítica de Macunaíma. Rio, LCT, (Biblioteca Universitária de LiteraturaBrasileira). p. 265 e 336.

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A falta de caráter dobrasileiro,

personificada porMacunaím a, adviria

da sua insistência emfugir dos valores

telúricos do trópicoonde vive e em tentar

adaptar-se, com isso sedescaracterizando...

Traços eles todos negativos, própriosde uma visão crítica do caráter e darealidade nacionais que timbrava emdistanciar-se o quanto pudesse daufania a que desde sempre se apegaracerto patriotismo tanto mais inócuoquanto acrítico. Se bem semelhantecatálogo de traços esteja longe de darconta da personalidade contraditória emúltipla de Macunaíma — seria precisoacrescentar-lhe no mínimo os traçosconexos de esperteza, prazer demistificar e dom da improvisação —são o bastante para destacar, nacriação individual, o débito para comum ideário de grupo. O lado meninoou moleque do herói mário-andradinoinculca-lhe de pronto uma figuraçãoda irreverência infanto-juvenil comque as vanguardas costumam reptar arespeitabilidade do Establishment.

No artigo em que recenseouMacunaíma quando do seulançamento em 1928, lembravaTristão de Ataíde, a propósito da"Carta pras icamiabas", as Cartaspersas2 7 . Mas isso de passagem,sem se demorar no paralelo.Desenvolvido, ele levarianecessariamente a uma similitude defunções entre as proezas deMacunaíma em São Paulo, clímax danarrativa, e o confronto iluministacivilização x primitividade de queL'ingénu de Voltaire é o paradigmano terreno da prosa de ficção.Também a gesta paulistana do heróido Uraricoera serve para pôr emrelevo mais a presteza com que ele seintegra no mundo tecnológico do quesua estranheza ante os prodígios dele.Mal chegado à Paulicéia, ei-lo quedecifra, à luz do pensamento mítico,um mistério que o pensamento lógiconão conseguira nunca decifrar: "AMáquina era que matava os homensporém os homens é que mandavam naMáquina". Isso aconteciasimplesmente porque eles "não tinhamfeito dela uma Iara explicável masapenas uma realidade do mundo"28.Vale dizer: tinham-na deixado ficar naordem desumana do real em vez de

integrá-la na ordem humana do mítico.E da superioridade desta sobre aquelaé sinal seguro a facilidade com que,logo em seguida a essas reflexões,Macunaíma consegue transformarmágicamente seu irmão Jiguê numamáquina-telefone a fim de ligar "Próscabarés encomendando lagosta efrancesa". Não só alcança, pois, umdomínio demiúrgico da máquina comoa põe a serviço da satisfação imediatados seus desejos, em vez de ficar àmercê do capricho dela, como oscivilizados.

À primeira vista, este passo, e outrossemelhantes, parecem indicar arecorrência, sob a forma de realizaçãofictiva, do ideal do selvagemtecnizado de Keyserling que oManifesto antropófago propunha sob aforma de postulado. A suposição teriaa respaldá-la a reconhecida influênciadas idéias de Keyserling acerca dohomem novo das Américas sobre opensamento de Mário de Andrade.Delas, porém, as que mais de pertolhe interessaram foram as relativas àsignificatividade da indolênciatropical (donde o moto famoso deMacunaíma: "Ai que preguiça") e danecessidade de sintonia entre o"Konnen" e o "Sein", entredesenvolvimento material edesenvolvimento espiritual29. Elas olevaram a uma crítica da noção deprogresso, principalmentetecnológico, em função daincompatibilidade de valores entrecivilização européia e civilizaçõestropicais. A falta de caráter dobrasileiro, personificada porMacunaíma, adviria da sua insistênciaem fugir dos valores telúricos dotrópico onde vive e em tentaradaptar-se, com isso sedescaracterizando, aos valores de umacivilização não-tropical como aeuropéia. Essa traição ao genius lociestá alegoricamente representada emdois episódios do livro. Nocapítulo VIII, o herói, conquanto sehouvesse comprometido em desposaruma das filhas de Vei, figuração

27 Ibid., p. 338.28 Id. ibid., p. 38.29 LOPEZ, T.P.A. Mário de Andrade: ramais ... op. cit., p. 111-16.

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mitológica do Sol, acaba seenrabichando por uma varina, isto é,uma portuguesa vendedora de peixe.E no capítulo XVIII, último do livro,ele vence o receio da água fria paraatirar-se nos braços da Uiara da lagoa:quando volta à margem, está tododesfigurado. O significado de ambosos episódios foi explicado mais tardepor Mário de Andrade. No primeiro,ao recusar "uma das filhas da luz",Macunaíma (e com ele o Brasil)renegava o exemplo "das grandescivilizações tropicais, China, Índia,Peru, México, Egito, filhas do calor"para se amulherar equivocadamentecom "o Portugal que nos herdou osprincípios cristãos-europeus". Nooutro episódio, Vei ou "a regiãoquente solar" se vinga da traiçãocontra ela cometida fazendo "aparecera uiara que destroça Macunaíma". Eeste não consegue realizar-se,"adquirir um caráter", pelo que,frustrado, "vai pro céu, viver 'o brilhoinútil das estrelas' "30.

Já não se está mais, como se vê, noclima de otimismo utópico do segundomanifesto de Oswald de Andrade,com a sua Revolução Caraíbapromovida pelo bárbaro tecnizadoque antropofagicamente aproveitaria,do progresso europeu, só amaquinaria, deixando-lhe de parte asidéias e as outras paralisias. Dir-se-iaque o desfecho melancólico da fábulade Macunaíma, com o seu anticlimaxde derrota e desistência, leva emdireção oposta. Configura antes oepitafio do sonho antropófago, a suaautocrítica antecipada, essa fábula doíndio dominador das máquinas da urbeindustrial que, por não se encontrarmais a gosto nela nem na selva natal aque baldadamente regressa, desiste deviver. No que lembra madameBovary, menos, herói sem nenhumcaráter que é, a grandeza moral dela.E como a Antropofagia assinala o fimdo ciclo histórico do Modernismo de22, Macunaíma vale implicitamentepor um balanço das suas consecuções,de que é uma das mais altas, tantoquanto de suas ilusões, a que serve deesplêndido mausoléu.

VIAntônio Alcântara Machado fezparte do grupo da Revista deAntropofagia, mas o seu compromissocom a moda primitivista, pelo quedele dão notícia os contos de Brás,Bexiga e Barra Funda (1927), pareceter sido sui generis. Talvez nemconviesse falar de primitivismo no seucaso, não fosse a circunstância de orótulo também se poder aplicar àsmanifestações mais ingênuas da vidapopular contemporânea: como já sedisse, ela tinha tanto interesse para oscubistas franceses quanto a dos povos"selvagens" propriamente ditos. Aoenfileirar os nomes dos três bairrospobres de São Paulo, onde se fixaramos imigrantes italianos que não forampara a lavoura de café ou delaconseguiram alforriar-se, o título doprimeiro livro de contos de AlcântaraMachado já punha de manifesto suasintenções, de resto confirmadas nadedicatória dele ao "triunfo dos novosmamalucos", entre os quais estavamincluídos os modernistas Menotti delPicchia, Anita Malfatti e VictorBrecheret. Explicava o prefácio dolivro que os novos mamalucos ou"intalianinhos" resultavam do ulterioringresso, na obra de miscigenação das"três raças tristes" formadoras danacionalidade brasileira, da nova raça"alegre" vinda da Itália no bojo dostransatlânticos modernos.

Alegria e modernidade eramingredientes canônicos do movimentode 22, mas, a julgar pelarepresentação desfavorável doimigrante italiano na prosa de ficçãode Oswald e Mário de Andrade, não oera a simpatia para com os novosmamalucos e seus maiores. EmMiramar, o "intalianinho" Chelininiacaba por se revelar um escroque queascende socialmente através decasamento de interesse com a sogra doprotagonista; mais adiante, italianosenriquecidos no comércio e naindústria vão aparecer mancomunadosa agiotas "turcos" para, comfinanciar-lhe a estroinice dos filhos ougenros-famílias como o próprio

30 ANDRADE, M. Macunaíma, op. cit., p. 325.

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Miramar, levarem o patriciadocafeeiro à ruína. Em Macunaíma, porsua vez, o ogre ou vilão Piaimãassume o nome e a personalidade doitaliano Venceslau Pietro Pietra,regatão ou mascate dos riosamazonenses que vem roubar a umfilho da terra seu bem mais precioso, amuiraquitã da felicidade.

Nos contos de Alcântara Machado, ositalianos e os "intalianinhos" sãovistos por outra ótica. A minuciosaatenção posta pelo contista noregistrar-lhes os torneios deexpressão, o modo de vestir e decomportar-se, os ambientes ondeviviam e conviviam, as metas eambições que lhes norteavam aconduta, revela por si só, para além daescrupulosidade do simples repórtersem "partido nem ideal", que, noprefácio do Brás, Bexiga e BarraFunda, ele diz ser uma indisfarçávelempatia de visão. Esta se voltavamenos para imigrantes bem sucedidoscomo o cav. uff. Salvatore Melli, oindustrial do conto "A sociedade", doque para gente humilde como o garotode rua de "Gaetaninho", acostureirínha de "Carmela", ocobrador de ônibus de "Tiro de guerranº 35", o barbeiro de "Amor esangue", a menina pobre de"Lisetta", o órfão matreiro de "Notasbiográficas do novo deputado" eassim por diante. Não é argumentocontra a autenticidade da empatia devisão tais "aspectos da vidatrabalhadeira" dos ítalo-brasileiros (afrase aspeada é ainda do prefácio dolivro) terem sido observados sob alente da caricatura, do outro lado daqual se poderia discernir, igualmentedeformado pelo vidro de aumento, oolhar de superioridade entrecompassiva e curiosa do paulistabem-nascido. O mesmo traçocaricatural está presente nos contos deLaranja da China (1928), cujospersonagens nada têm deítalo-paulistas, mas ostentamsobrenomes lidimamente portugueses.

O gosto da caricatura eraindissociável do espírito de 22 eAlcântara Machado o cultivouregularmente nos seus contos, nascrônicas de viagem de Pathé-Baby(1926) e nos artigos de jornalpostumamente reunidos emCavaquinho e Saxofone (1940). Numdesses artigos, importantes pelo quedão a conhecer de suas opiniõesacerca da literatura e da vida, ele sedebruça sobre a arte de Voltolino,caricaturista ligado ao grupomodernista. Ao analisá-la parece estarfalando de sua própria arte decontista, como quando observa queVoltolino, por ter o "lápis desgracioso(...) caricaturava melhor oshumildes", em especial os da colôniaítalo-paulista a que pertencia e ondese travava a "luta surda (...) entre osque para cá vieram enriquecertrazendo no fundo da trouxa, entreroupas remendadas e caçarolasfuradas, todo o peso das tradições desua raça, e os filhos que delesnasceram aqui, livres dos preconceitosancestrais, crescendo e se afirmandobrasileiros em absoluta identidadecom o solo e com o meio"31.

O lápis de caricaturista de AlcântaraMachado era também desgracioso namedida em que fugia de caso pensadoda sedução arte-novista do ornamento,a que pela sua própria exuberância,folclórico-coloquial num caso,mais-do-que-futurista noutro, nemMacunaíma nem Miramar souberamesquivar-se. Diferentemente deles, onarrador de Brás, Bexiga e BarraFunda cultivava a virtude da "securatelegráfica" e a punha a serviço da"obra literária de movimento"32 queele via confundir-se vantajosamentecom a reportagem. Daí não temerapresentar os seus contos como "umjornal" que se contentava em apenasnoticiar a vida: "Não comenta. Nãodiscute. Não aprofunda"33. Numoutro artigo de Cavaquinho eSaxofone Alcântara Machado opõe oromancista ao repórter para tomardecididamente o partido deste último:

31 MACHADO, A.A. Cavaquinho e saxofone ... op. cit., p. 250-51.32 Ibid., p. 379.33 Id. Brás, Bexiga e Barra Funda/Laranja da China. São Paulo, Martins, s.d. p. 31.

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"O romancista está espiando paradentro, bem no fundo. A vida quevive na luz é o repórter o único afixar. Fixar por um minuto"34. Ominuto de vida é fixado nos contos deBrás, Bexiga e Barra Funda por umatécnica de síntese que parece haverrecrutado seus recursos na caricatura,no jornalismo e no cinema. Daprimeira vem a economia de traçoscom que o caráter de cada personagemé esboçado; do segundo, a fatualidadedo enfoque e a direitura do modo denarrar; do último, a montagem daefabulação em curtos blocos outomadas descontínuos. A técnicanarrativa de Alcântara Machadodeixaria inclusive uma marcaindelével no conto brasileiro,rastreável desde Marques Rebelo atéDalton Trevisan.

Mas o essencial a destacar na citaçãohá pouco feita do texto sobreVoltolino é a luta surda travada entreo imigrante italiano e os"intalianinhos" dele aqui nascidos.Não só porque ilustra outra instânciado conflito filhos x pai, típico da artede vanguarda em geral e doModernismo de 22 em particular,como porque traz outra vez à baila otópico da obnubilação oubarbarização, da mestiçagem ouantropofagia cultural, que é o pontode fuga de todo o projeto modernista.Desse tópico, o último conto de Brás,Bexiga e Barra Funda constitui umaboa ilustração: o barbeiro Zampinettivai abandonando o seu antigochauvinismo italiano à medida queenriquece em São Paulo; termina porser cabo eleitoral do PRP e por senaturalizar brasileiro tão logo seufilho Bruno se forma em Direito.

A imigração italiana assinalou, nocampo, o fim do trabalho escravo e,na cidade, o crescimento da indústria,a que forneceu primeiro mão-de-obrae mais tarde alguns dos seus capitãesna figura de imigrantes aqui

enriquecidos. Num dos artigos deCavaquinho e Saxofone, ao mesmotempo que reconhece esse contributo,Alcântara Machado cuida desublinhar, não fosse paulista deprimeira hora: "A mão de obra emparte é estrangeira. A iniciativa porémtem sido sempre paulista. (...) Oscueras somos nós paulistas. Bastaatentar no nosso poder formidável deabsorção"35. O "triunfo dos novosmamalucos" marcava, pois, umavitória do genius loci que vinhacoroar o processo histórico brasileiroinaugurando-lhe a fase propriamenteséculo XX, quando ao caldeamentedas três raças tristes se veio juntar aalegria italiana. Era a liquidação damelancolia índia, do banzo africano eda saudade lusa, trindade colonial emque o busilis parece estar no segundomembro. Isso porque, mesmorecalcado, o ideal doembranquecimento crescente dobrasileiro parece ter sempre estadosubjacente ao sonho modernista:Macunaíma nasce preto, mas assimque pode se torna branco. Estaria aíuma das razões inconfessas daempatia de Alcântara Machado pelosnovos mamalucos... brancos? Épergunta que permanece em aberto equem se disponha algum dia afechá-la não poderá dispensar-se deler, em Cavaquinho e Saxofone, ostrês artigos em que o autor anotousuas entusiasmadas impressões daArgentina. Num deles,significativamente intitulado "Onde ohomem o é", ocorre esta passagemnão menos significativa: "O branconão quer se tisnar de negro nem deamarelo e repele, com indisfarçávelrepugnância, convencido da suasuperioridade, a parte negra e mulatada população brasileira. (...) Comsangue europeu do sul, do norte,inclusive judeu, aqui se está formandouma raça de ombros largos, estaturaalta, saudável, sólida, igualmente feitapara o trabalho e os chamadosprazeres da vida".

34 MACHADO, A.A. loc. cit.35 Op. cit., p. 74.

José Paulo Paes é ensaísta, poeta, tradutor e professor-visitante do IEA no segundosemestre de 1988.