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Apenas uma narrativa (1942) e o modernismo brasileiro, ou de como ‘les voyages (trans)forment la jeunesse’ Cláudia Pazos Alonso (Univ. de Oxford) Resumo A experiência brasileira de António Pedro (1909-1966), artista cosmopolita conhecido pela sua aposta nas dimensões experimentais da modernidade, foi seguramente um dos catalisadores para a sua obra-prima em prosa, Apenas uma narrativa (1942), texto no entanto mais frequentemente aproximado ao surrealismo francês do que ao modernismo brasileiro. Esta comunicação propõe-se investigar o contacto em primeira-mão que Pedro teve com o Brasil em 1941. Para tal, num primeiro momento, debruçar-nos-emos sobre materiais pouco conhecidos ou desconhecidos: entrevistas feitas a Pedro por jornais brasileiros e portugueses da época, duas recensões críticas brasileiras (uma da autoria de António Cândido, outra de Mário de Andrade) e um trecho de Pedro, elaborado no Brasil e dedicado a Jorge de Lima. Num segundo momento, iremos proceder à análise de alguns dos passos de Apenas uma narrativa que apontam para um diálogo intertextual com o modernismo brasileiro, com referências implícitas a Tarsila do Amaral, à antropofagia de Oswald de Andrade e a Macunaíma, com o propósito de refletir acerca da interlocução inovadora deste português cosmopolita com a vanguarda brasileira. palavras-chave: António Pedro; modernismo brasileiro; Macunaíma; relações Brasil-Portugal; surrealismo; Keywords: António Pedro; Brazilian modernism; Macunaíma; transatlantic relations; surrealism; António Pedro (1909-1966), nascido em Cabo Verde, de pais europeus, ficou conhecido pela sua aposta nas dimensões experimentais da modernidade. Escritor, pintor e mais tarde homem de teatro, cuja obra se alimentou do entrecruzar de interesses e práticas artísticas, a sua estadia no Brasil em 1941 teve reflexos na sua obra-prima em prosa, Apenas uma narrativa (1942). Porém, tanto quanto nos foi possível estabelecer, a relação de intertextualidade entre o artista português e o modernismo brasileiro tem sido quase completamente descurada até agora, sendo este texto antes geralmente aproximado ao surrealismo francês. Uma devida apreciação da relação intertextual entre Apenas uma narrativa e Macunaíma terá seguramente sido inibida pelo facto, algo surpreendente, de a primeira edição portuguesa desta última obra apenas datar de 1998. Provavelmente o primeiro a aludir, de passagem, à relação entre António Pedro, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, foi António Cândido, no contexto duma recensão crítica ao romance inaugural de Lispector ([1945], 1992, p.97). Depois dele, apenas Fernando Azevedo parece voltado a ter intuido, de forma explicíta mas também fugaz, que Apenas uma narrativa estava “próximo do Mário de Andrade de “Macunaíma”, no antropofagismo da condição [da vida]” (1979, p.40). Por seu turno, Fátima Marinho (1987) assinala a antropofagia de algumas cenas de Apenas uma narrativa, sem no entanto aprofundar a questão do diálogo com as fontes brasileiras. I. António Pedro no Brasil: “O Português surrealista” António Pedro passou quase um ano no Brasil (1940-41), onde terá chegado em Dezembro de 1940, tal como o próprio relatou na curta nota autobiográfica que compôs em 1955 (1979, p.54). Esta

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Apenas uma narrativa (1942) e o modernismo brasileiro, ou de como ‘les voyages

(trans)forment la jeunesse’

Cláudia Pazos Alonso (Univ. de Oxford) Resumo

A experiência brasileira de António Pedro (1909-1966), artista cosmopolita conhecido pela sua aposta nas

dimensões experimentais da modernidade, foi seguramente um dos catalisadores para a sua obra-prima em prosa,

Apenas uma narrativa (1942), texto no entanto mais frequentemente aproximado ao surrealismo francês do que ao

modernismo brasileiro. Esta comunicação propõe-se investigar o contacto em primeira-mão que Pedro teve com o

Brasil em 1941. Para tal, num primeiro momento, debruçar-nos-emos sobre materiais pouco conhecidos ou

desconhecidos: entrevistas feitas a Pedro por jornais brasileiros e portugueses da época, duas recensões críticas

brasileiras (uma da autoria de António Cândido, outra de Mário de Andrade) e um trecho de Pedro, elaborado no

Brasil e dedicado a Jorge de Lima. Num segundo momento, iremos proceder à análise de alguns dos passos de

Apenas uma narrativa que apontam para um diálogo intertextual com o modernismo brasileiro, com referências

implícitas a Tarsila do Amaral, à antropofagia de Oswald de Andrade e a Macunaíma, com o propósito de refletir

acerca da interlocução inovadora deste português cosmopolita com a vanguarda brasileira.

palavras-chave: António Pedro; modernismo brasileiro; Macunaíma; relações Brasil-Portugal; surrealismo;

Keywords: António Pedro; Brazilian modernism; Macunaíma; transatlantic relations; surrealism;

António Pedro (1909-1966), nascido em Cabo Verde, de pais europeus, ficou conhecido pela sua

aposta nas dimensões experimentais da modernidade. Escritor, pintor e mais tarde homem de teatro, cuja

obra se alimentou do entrecruzar de interesses e práticas artísticas, a sua estadia no Brasil em 1941 teve

reflexos na sua obra-prima em prosa, Apenas uma narrativa (1942). Porém, tanto quanto nos foi possível

estabelecer, a relação de intertextualidade entre o artista português e o modernismo brasileiro tem sido

quase completamente descurada até agora, sendo este texto antes geralmente aproximado ao surrealismo

francês. Uma devida apreciação da relação intertextual entre Apenas uma narrativa e Macunaíma terá

seguramente sido inibida pelo facto, algo surpreendente, de a primeira edição portuguesa desta última

obra apenas datar de 1998. Provavelmente o primeiro a aludir, de passagem, à relação entre António

Pedro, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, foi António Cândido, no contexto duma recensão crítica

ao romance inaugural de Lispector ([1945], 1992, p.97). Depois dele, apenas Fernando Azevedo parece

voltado a ter intuido, de forma explicíta mas também fugaz, que Apenas uma narrativa estava “próximo

do Mário de Andrade de “Macunaíma”, no antropofagismo da condição [da vida]” (1979, p.40). Por seu

turno, Fátima Marinho (1987) assinala a antropofagia de algumas cenas de Apenas uma narrativa, sem no

entanto aprofundar a questão do diálogo com as fontes brasileiras.

I. António Pedro no Brasil: “O Português surrealista”

António Pedro passou quase um ano no Brasil (1940-41), onde terá chegado em Dezembro de

1940, tal como o próprio relatou na curta nota autobiográfica que compôs em 1955 (1979, p.54). Esta

estadia e as relações estabelecidas com uma rede de figuras centrais do modernismo brasileiro estão

documentadas em diferentes entrevistas, dadas a jornais contemporâneos e reunidas no arquivo de

António Pedro da Bibioteca Nacional de Portugal1. Durante a temporada que passou no Brasil, Pedro teve

a oportunidade de levar a cabo duas exposições individuais: a primeira, entre 19 de Abril e 6 de Maio de

1941, no Rio de Janeiro no Museu Nacional de Belas Artes (cujo catálogo incluía uma breve nota da

autoria de Jorge de Lima)2; e a segunda, a partir de 4 de Agosto e graças aos seus contactos com a revista

Clima, na galeria Ita, em São Paulo, de cujo catálogo constava um ensaio pelo conhecido poeta italiano

Giuseppe Ungaretti, que na altura se encontrava a viver naquela cidade3.

Numa das primeiras entrevistas que deu à imprensa brasileira, por ocasião da inauguração da sua

exposição no Rio, António Pedro declara “os ‘culpados’ da minha vinda ao Brasil se chamavam Adalgiso

Nery, Tarsila do Amaral, Jorge de Lima, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Portinari, Jorge Amado,

Graciliano Ramos, Lins de Rego” etc. Acrescenta, no entanto, que “Ainda não conheci a todos

pessoalmente. Já conheci outros como Murilo Mendes que estariam na lista se houvera lido em Portugal

sua poesia tão misteriosa e profundamente humana.” (Dom Casmurro19 Abril de 1941).

Na primeira entrevista que António Pedro deu após ter regressado a Portugal (“António Pedro

fala-nos do Brasil e dos brasileiros”, Acção 6 Novembro de 1941), encontramos outro testemunho da sua

extensa lista de contactos brasileiros: do Rio de Janeiro menciona o convívio com Jorge de Lima e Jorge

Amado, sublinhando que também contactou com Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Gilberto Freire, ao

mesmo tempo que frisa a importância de Mário de Andrade e Oswald de Andrade. De São Paulo, destaca

“essa pleiade de rapazes que faz o Clima”, uma geração mais nova que incluía o crítico literário Antônio

Cândido e o crítico de arte Lourival Machado4. Quanto às artes plásticas, Pedro afirma que Segal,

Portinari e em particular Tarsila, eram os seus maiores representantes no Brasil. Esta última oferecia,

segundo António Pedro, “um dos aspectos mais curiosos da pintura moderna do Mundo -- o regresso à

terra depois da experiência cubista”. A temática do regresso à terra ficará justamente patente em Apenas

uma narrativa.

Mais tarde, já na década de 50, e num tom mais memorialístico, a sua curta nota “Autobiografia”

recorda laços de amizade (e não “simples conhecimento ocasional”) com algumas destas figuras (1979,

1 Existem três pastas com recortes de jornais relativos à estadia de Pedro no Brasil na Biblioteca Nacional de Portugal: E5/637; E5/638

e E5/639. 2 “Uma opinião”, BN Esp. E5/594. 3 Ver mais pormenores em Almeida (1976, pp.169-70). O prefácio de Ungaretti foi reproduzido no ano seguinte no primeiro número da

revista cultural de António Pedro, Variante 1 (1942), 65-72. A autobiografia alude ao facto dos quadros de Pedro também terem sido

apresentados na Exposição Industrial de São Paulo. Embora a data da exposição colectiva aí indicada seja a deoutubro de 1942, é mais provável

que a data correcta seja outubro de 1941 (cf Almeida, pp.186-7). 4 Pedro também menciona a professora universitária Gilda de Morais Rocha como autora de contos. Ela viria a tornar-se conhecida como

Mello e Souza, o apelido do marido (Antônio Cândido [Mello e Souza]). Pedro representou-a num dos seus quadros, exibido em São Paulo

em 1941 de acordo com Almeida (p.170). Gilda era, curiosamente, sobrinha de Mário de Andrade, acerca de quem viria a publicar uma monografia. Para mais pormenores acerca do peso cultural da geração de Clima (que Oswald de Andrade apelidara na altura de chatos-boys),

ver Almeida.

p.56). Lembra também a intervenção de Carlos Dummond de Andrade no sentido de assegurar a

aquisição de um dos seus quadros para o Museu Nacional do Rio de Janeiro, embora nessa altura ele

ainda nem sequer o conhecesse pessoalmente5. Este gesto é um exemplo da fama de que António Pedro

veio a gozar pouco tempo após ter chegado ao Brasil, fama essa aliás também evidenciada pelo facto da

revista Clima ter patrocinado a exposição em São Paulo, e se ter empenhado na divulgação de Pedro

como escritor no Brasil. Com efeito, logo em 1941 a Clima publicou um texto de apresentação assinado

por Antônio Cândido, que servia de preâmbulo à publicação do poema ‘Invocação para um poema

marítimo” de Pedro, nesse mesmo número da revista (pp.60-1). Já depois de Pedro ter regressado a

Portugal, Cândido publicou uma recensão crítica a Apenas uma narrativa logo em 1942, a que voltaremos

mais adiante, por nos proporcionar novas luzes sobre a génese da obra.

Voltando à imprensa brasileira, ainda em 1941, de acordo com outra fonte, Pedro terá dado em

São Paulo uma fantástica festa “surrealista”, muito regada a álcool que durou até de madrugada: “E

contavam que ele dera uma festa surrealista em seu apartamento onde, num terraço que dá para os

arredores do Mercado Novo, pintores e artistas se divertiram, até 4 horas da madrugada, junto duma

bomba de ‘chopp’ (sic)”, (“O Português surrealista”, Planalto, 15 Agosto de 1941). O título do artigo “o

Português surrealista” chama a atenção pela sua designação explícita de António Pedro como Surrealista,

numa altura em que o surrealismo ainda não fizera escola em Portugal6.

Mais recentemente, críticos como Alçada (1982) têm chamado a atenção para as afinidades entre

Pedro e o Surrealismo francês, em geral, e Breton, em particular. Contudo é importante frisar que Pedro

não subscrevia o surrealismo na íntegra. Na verdade, ele expressou repetidamente algumas reservas,

resumidamente traduzidas pelo seguinte comentário, feito no decorrer da primeira entrevista dada no

Brasil:

O grande apport surrealista, como já disse uma vez, foi a descoberta da sub-consciência que o

automatismo revelava, e, por ela e por ele, o grande encontro do Homem na magia dos seus

símbolos. [...] O que mais me separa dos surrealistas é a aceitação do fato “Arte”, com todas as

suas consequências: controle da inteligência na associação das imagens, aceitação e estudo dos

processos técnicos tradicionais, isto é do resultado da cultura pictural, que os surrealistas, pelo

menos teoricamente negam e condenam como restrição à livre expressão individual. O que deles

me aproxima é o sonho, os dados irracionais como ponto de partida, é o encanto sobre as coisas

duma imaginação baroquisante, delirante se for preciso possível, a única faculdade do espírito

que, com certeza, só o homem possui à face da terra. (Dom Casmurro, 19 Abril de 1941).

Em concordância com esta opinião, a adoção de princípios fundamentais do dito movimento é

feita de forma seletiva em Apenas uma narrativa. Há, sem dúvida nenhuma, a intenção de propor uma

5 O quadro em questão é ‘Nós dois no Brasil’. 6 Para mais comentários acerca do papel pioneiro de Pedro no contexto português, ver Marinho, pp.22-26.

alternativa ao modo racional e lógico dominante - tal como o próprio António Pedro enfatiza no seu

prefácio: “A história que vai ler-se é simples como as plantas e nasceu como elas naturalmente, embora,

como elas, tenha por vezes formas inesperadas. Não tem intenção de provar coisa nenhuma mas, se a

tivesse, seria a de que há uma lógica do absurdo tão verdadeira, pelo menos, como a lógica racional”.

Mas, apesar da sua admiração pela lógica do absurdo, a novela não é inteiramente caótica: em termos de

composição, trata-se de um trabalho de arte consciente, estruturado em dez pequenos capítulos, ao longo

dos quais transparece a intertextualidade que emerge do contacto do autor com o modernismo brasileiro,

como adiante se verá.

Várias são as entrevistas que dão testemunho da admiração que António Pedro sentia por Mário

de Andrade. Numa delas, chega mesmo a revelar que “Um dos seus grandes sonhos é há muitos anos

fazer o “Macunaíma”, de Mário de Andrade, em desenho animado. Mas não passou de projeto” (O dia, 6

Agosto de 1941. Esta revelação deixa bem patente a predisposição visionária de Pedro, uma vez que só

mais tarde (1969) Macunaíma haveria, efectivamente, de ser convertido em filme. Uma semana depois,

Mário de Andrade teceu um comentário extenso aos quadros de António Pedro, de forma geral laudatório

e perpicaz, embora com algumas reservas em relação a momentos de simbologia considerada fácil demais

ou de individualismo mais exacerbado (Diário de São Paulo, 12 Agosto de 1941)7. Tal não impediu a

continuação do apreço de Pedro por Mário de Andrade, documentada no espólio deste último que contém

algumas peças de Pedro8. Mais ainda, de regresso a Portugal, Pedro continuaria a professar a

publicamente a importância de Mário, declarando na entrevista portuguesa à Acção mencionada acima: “é

não só o autor de ‘Macunaíma’, a mais interessante fantasmagoria que se publicou em português […],

como é, a justos títulos, o crítico e o mentor da juventude”.

A referência ao papel de Mário como mentor não é casualidade pois, caso mais provas fossem

necessárias, o prefácio de Apenas uma narrativa invoca explicitamente a autoridade do brasileiro,

referindo que este pôs um ponto final no interminável debate sobre o que é que podia ser considerado um

romance, ao defender de forma categórica que o autor deverá ter sempre a última palavra: “Romance é

aquilo que o seu autor resolveu designar assim” (1978, p.16). Na verdade, uma vez que na prática

Andrade tinha usado a sua prerogativa de autor para evitar atribuir o título de “romance” ao seu

Macunaíma -- preferindo antes, e apenas tardiamente, a denominação de “rapsódia”, a partir da segunda

edição (1937) --, esta afirmação não estará porventura isenta de intenção paródica. Mas sempre permite a

Pedro classificar o seu minúsculo Bildungsroman como um romance.

7 Raul Antelo (2004) comenta em mais pormenor a natureza das críticas de Mário aosquadros de Pedro. 8 Existem duas cartas de Pedro a Mário. No ps da primeira, sem data, Pedro despede-se, agradecendo o artigo de Mário (MA-C-

CPL5646). A segunda data de 22 de outubro de 1941, já foi enviada de Lisboa (MA-C-CPL5647). Existe também um bilhete, sem data mas ao que tudo indica posterior, com pedido de colaboração, provavelmente para a Variante (MA-C-CPL5646). Uma outra carta, anterior a todas estas,

permite-nos confirmar a probabilidade de Pedro ter privado pessoalmente com Mário, pois trata-se de uma carta de recomendação de Nita

Brandão dirigida a Mário, em 19 de maio de 1941 (MA-C-CPL1457). Refira-se ainda a título de curiosidade, que do espólio consta também um guache de Pedro, intitulado ‘Bicho Verde’, com data de 1940 (MA-0582).

Tudo nos leva a crer que a temporada no Brasil impulsionou a composição de Apenas uma

narrativa. No entanto, há dados que permitem afirmar que o período de gestação da novela foi

seguramente mais longo. Em particular, o capítulo V já fora publicado quase integralmente (à exceção

dos dois parágrafos finais), em 1939, com a curiosa designação de “conto irracional” (Juventude, p.21) 9.

O mais curioso é que aí comparece a indicação, entre parênteses, de que pertence ao “livro em preparação

Antropofagia e outros contos”. Ou seja, a noção de “antropofagia” já fazia parte do universo e

vocabulário de Pedro antes da estadia no Brasil. É muito possível que Pedro já nessa altura conhecesse o

‘Manifesto Antropófago’ (1928) de Oswald de Andrade. De qualquer modo a familiariedade de Pedro

com o conceito de canibalismo também pode ser explicada através do seu contacto com a vanguarda

artística em Paris. O ‘Manifeste Cannibale’, de Picabia -- que Oswald aliás ‘devorou’ no seu Manifesto

Antropófago --, remontava a 192010, sendo que, com Pedro e muitos outros, Picabia fora um dos

signatários do Manifeste Dimensioniste de 1935. Por outro lado, podem-se encontrar motivos

canibalísticos em vários quadros surrealistas da década de trinta (‘Canibalismo de Outono’, de Dali, de

1936 é apenas um exemplo) e esta tendência também está presente em alguns dos quadros de Pedro

completados antes do período passado no Brasil, nomeadamente “Repasto Imundo” (1939) ou “A Paz

Inquieta” (1940).

Dito isto, o efeito dinamizador que o clima cultural do Brasil teve para Pedro é corroborado por

um texto em prosa, de uma página, publicado em Dom Casmurro a 26 de Abril de 1941, o qual em termos

estilísticos e temáticos parece ser uma quase condensação temática de Apenas uma narrativa. A primeira

frase deste texto, intitulado “Última folha de um diário de viagem – De António Pedro ao Jorge de Lima”,

faz referência à chegada ao Rio de Janeiro: “Quando eu cheguei à cidade rolou-me a cabeça nos pináculos

e nos vales e foi um espectáculo maravilhoso”. Pedro refere também o Carnaval e a estátua de Cristo Rei

no cimo do Corcovado e, no desenho que antecede o Capítulo I de Apenas uma narrativa, pode-se detetar

uma alguma parecença entre os traços de Adão e os do Cristo Rei brasileiro.

De forma mais contudente, o último parágrafo do texto dedicado a Jorge de Lima, lido

retrospectivamente, parece constitutir uma versão preliminar do remate de Apenas uma narrativa, uma

vez que o destino do narrador apresenta semelhanças com o regresso ao solo nativo por parte do

protagonista do posterior ‘romance’ de 1942:

Sabes? Depois desta viagem só poderei fazer outra viagem. Sinto já nos ossos meu cansaço de

fim de mundo e aqui este sol vai amadurecer-me a carne por completo. Depois será lindíssimo o

meu fim. Hei-de procurar uma planície sem sombras. Hei-de plantar-me no meio, enorme, como

uma doença da terra. Depois escorregar-me-ão as feições até ao chão. Ficarei aí como uma

9 Devo esta preciosa informação e várias as outras contidas neste artigo a Bruno Silva Rodrigues, a quem agradeço a leitura atenta do meu

texto com comentários sempre argutos. 10 Ambos manifestos foram reproduzidos em Ruffinelli e Rocha (2011).

mancha até às primeiras chuvas. Se vieres por esse tempo colhe num vaso alguns torrões. Devem

servir para fazer crescer as orquídeas e os fetos. (Dom Casmurro, 26 de Abril de 1941)

O título escolhido para este texto (Última folha de um diário de viagem), faz lembrar o título de

uma anterior colecção de poesia, de 1929, de inspiração cabo-verdiana, Diário. Poderá por isso indiciar,

segundo cremos, a conclusão dum ciclo. Na verdade, de forma retrospectiva, podemos argumentar que a

declaração que o último parágrafo encerra, “Sabes? Depois desta viagem só poderei fazer outra viagem”,

prenuncia a aventura seguinte de António Pedro: uma moderna ‘viagem na minha terra’ ensaiada em

Apenas uma narrativa, como início e conclusão no Minho.

Last but not least, Antônio Cândido na revista Clima 11 (1942), faz uma longa recensão a Apenas

uma narrativa. Logo a princípio, indica que, já em 1941, ou seja antes da obra vir a lume, assistira a uma

leitura de passagens desse livro, tendo também recebido uma versão dactilografada dessas ‘narrativas’

(p.88). O plural, que Cândido usa repetidamente (não se tratando portanto de uma gralha), leva-nos a crer

que se trate justamente de excertos do livro então em preparação Antropofagia e outros contos. Podemos

conjeturar que este permaneceu inédito por ter sido entretanto reaproveitando como texto-base para

Apenas uma narrativa. Ou seja, as várias narrativas soltas de que Cândido tomou conhecimento em 1941

vieram posteriormente a adquirir um fio condutor em Apenas uma narrativa, como se depreende do facto

do crítico mencionar que a obra lhe “aparece agora construída segundo um nexo subitamente tão claro

pela ligação operada entre as suas partes” (p.90, itálicos meus). Por isso não é de surprender que Cândido

frise sobretudo no seu artigo a lucidez artística de Pedro ‘que lembra, no delírio, a realidade mais alta do

artista ordenador” (p.91). Embora Cândido não se refira a tal, talvez a transformação dos contos em

‘romance’ ajude a explicar o título: no fim de contas, na versão publicada, temos realmente apenas uma

narrativa e já não vários contos avulsos.

II. A história entre a paródia e o déjà vu

Dado que a narrativa curta “Última folha de um diário de viagem”, claramente inspirada pela

estadia de Pedro no Brasil, parece ter funcionado como pre-texto para (trans)formar Antropofagia e

outros contos em Apenas uma narrativa, convém determo-nos numa análise mais detalhada da

intertextualidade que o livro estabelece com o modernismo brasileiro. Breton abrira Nadja com a

pergunta retórica “Qui suis-je?”, sugerindo dessa forma que a sua demanda pertencia ao foro individual,

ao contrário de Macunaíma, onde por detrás do motivo da busca há um significado colectivo simbólico,

patente na frase de abertura: “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente”

(sublinhado nosso). À primeira vista, a história de Pedro parece ser sobretudo uma viagem individual,

desde o nascimento do protagonista anónimo até ao momento em que este regressa à sua terra natal,

Caminha, para encontrar o seu fim aparente. O uso predominante da primeira pessoa também confere um

tom mais subjectivo à narrativa, tal como havia acontecido com Nadja. No entanto, seguindo a deixa de

Macunaíma, Pedro não abriu mão de repensar questões em torno do conceito de nação, no contexto da

ditatura salazarista (e da segunda guerra mundial que então deflagrava). Além disso, depressa verificamos

a existência de outras características que Pedro vai retomar da sua leitura de Macunaíma nomeadamente a

atmosfera delirante e o tom humorístico (este último ausente de Nadja).

Da mesma forma que o significado colectivo simbólico de Macunaíma se inicia com o seu

nascimento, as origens do protagonista português também se inserem numa linhagem mítica,

explicitamente paródica: a vila de Caminha surge no seguimento da auto-combustão dum plantador,

Adão, tornando-se depois o local onde nasce o narrador. Se recordarmos a famosa declaração de Homi

Bhabha de que “as nações, tal como as narrativas, perdem as suas origens nos mitos do tempo e só

encontram plenamente os seus horizontes no olho da mente” (1990), observamos que aqui os

antecedentes de Caminha (e, por extensão, também os do protagonista a quem a vila dará origem) são

apresentados como uma criação do foro do maravilhoso, que engloba as incongruências inerentes aos

mitos da origem. Aliás Pedro, ao fechar o capítulo inicial com o seguinte comentário acerca de Adão, não

hesita em assinalar que o início da narrativa fora afinal um falso início, assim desconstruindo o relato

tradicional bíblico do Génesis: “Não é, no entanto, verdade que fosse o primeiro homem. Antes e depois

dele já havia este sabor a vazio que enche o mundo duma inquietação sem remédio” (1978, p.29).

Quanto a Caminha, embora dum ponto de vista histórico o Norte de Portugal esteja associado ao

nascimento da nacionalidade portuguesa, a localização factual do berço da nação é, historicamente, dada

como Guimarães, e não Caminha. Para além disto, a tristeza perene que o texto atribui a Caminha

enfraquece a noção de nascimento de uma nação gloriosa. No final do século XIX, o Norte também

ocupou um lugar predominante em alguns dos últimos romances de Eça de Queirós. A Ilustre casa de

Ramires, em particular, contém uma profunda reflexão acerca da nação portuguesa, ao evidenciar o efeito

paralisador do peso da história sobre um aristocrata celibatário. Também António Pedro desmistifica tal

peso, embora o faça dum modo mais paródico, ao esclarecer que o solar do protagonista “cheirava sempre

a todos os mortos que estiveram cerimoniosamente lá dentro, em câmara ardente, desde a fundação da

monarquia” (p.34). Por outras palavras, levando as premissas de Eça de Queirós até à sua conclusão

lógica, Pedro não se acanha em negar a possibilidade de qualquer narrativa fundacional, o que, em última

análise, acabará por levar à impossibilidade dum final em moldes clássicos.

Neste contexto, a nossa atenção recai sobre as mutações que o protagonista vai sofrendo ao longo

da narrativa. No capítulo IV, as suas metamorfoses são detalhadas numa extensa enumeração que ocupa

quase duas páginas. A lista decerto pode ser interpretada como um exemplo da prática surrealista, uma

espécie de escrita automática, ou mais precisamente, nas palavras de José-Augusto França, um semi-

automatismo (1965, p.29). Além disso também convoca a questão da pluralidade do eu, já anteriormente

enaltecida pela geração modernista portuguesa, nomeadamente nas vertiginosas odes de Álvaro de

Campos. Porém a verdade é que as sucessivas incarnações do protagonista de Pedro também o

aproximam uma vez mais de outro antepassado literário, Macunaíma, cujas transformações apontavam

para a hibridez do próprio Brasil.

Se em Breton o papel da mulher homónima era determinante para a identidade do ‘eu’, muito

embora a consumação sexual do relacionamento não seja descrita, no texto de Pedro a presença de Lulu

acaba por funcionar de forma bem diferente. No decorrer das suas viagens, o protagonista da história

portuguesa, embora menos sexualmente ativo do que o seu precursor brasileiro, vive também algumas

experiências eróticas, nomeadamente no capítulo VIII com uma mulher “vestida de branco e linda”, cujos

olhos depressa se transformam em monstruosos orgãos sexuais que ameaçam devorá-lo: “Ela queria

continuar a beijar-me mas os bichos comiam-me os olhos até que me foi possível morder um, cheio duma

raiva que me possuiu todo. Fiquei cheio de sangue e de medo” (pp.83). O medo de perder a vista foi

abordado por Freud no contexto duma análise de ‘O Homem de Areia’ de Hoffman como o medo da

castração, e corresponde, por isso, a um dos elementos desfamiliarizantes, ou seja insólitos, repetidamente

presente em Apenas uma narrativa11. Porém o que nos cabe aqui notar é que este encontro sexual ocorre

num país distante e exótico, o México. Esta localização parece funcionar como uma transposição do

Brasil, se atentarmos melhor na descrição da paisagem: “Sei que me parecia no México, onde nunca

estive, por causa dos cactos e do sol” (p.83). Na verdade, a descrição equivale a uma quase ekphrasis da

mais famosa tela de Tarsila do Amaral, Abaporu, que consiste numa figura primitiva solitária, justamente

com o sol e um enorme cacto em último plano. Recordemos que este título, atribuído por Oswald de

Andrade (então marido de Tarsila), significa em tupi “comedor de homens”, e que o Manifesto

Antropófago incluíria uma reprodução de Abaporu12.

Este episódio canibalístico está longe de ser caso único no texto. Com efeito, no capítulo

seguinte, o capítulo IX, o narrador não desperdiça a oportunidade de satirizar as expectativas sociais

através da descrição jocosa que faz dum copo-de-água (por ocasião do casamento do narrador com Lulu)

onde os convidados acabam por se comerem uns aos outros. A imagem convoca o duplo sentido da

palavra “comer” em português, a qual tem conotações sexuais. Mas, por outro lado, dado que esta

devoração surge na sequência da ekphrasis de Abaporu, é difícil não a interpretar através da lente da

antropofagia brasileira.

Na verdade, prosseguindo por essa senda, é possível descortinar em dois outros momentos de teor

canibalístico, ambos situados no capítulo VII, alusões à antropofagia brasileira. O protagonista, em busca

11 Para mais pormenores acerca do uso de elementos desfamiliarizantes ver Rodrigues (2013). 12 Note-se, aliás, que após o seu regresso a Portugal, Pedro divulgou um desenho inédito do célebre ‘Abaporu” de Tarsila sua revista Variante, no número de 1943.

daquilo a que chama “céu” e “Deus” (uma busca reminiscente daquela que ocupa o próprio Macunaíma

na fase final da sua história), sobe ao cimo da Arga, uma montanha perto de Caminha, apenas para se

deparar com uma sucessão alucinante de descobertas insólitas, num templo que, de modo anacrónico,

contém um écran de cinema.

Em primeiro lugar, o écran, inequívoco sinal de modernidade (americana?) no templo, no qual

está a ser projectada a imagem de uma mulher loira, torna-se ainda mais incongruente devido ao facto de

ser em seguida justaposto a duas imagens mais tradicionais do velho mundo europeu, primeiro um mapa-

múndi, que ocupa o chão da nave central, e depois, na parte de trás desse templo, dentro dum caixote, um

quadro do século XV, da autoria de Andrea Mantegna, – a “Lamentação de Cristo Morto” –, descrito

através da seguinte ekphrasis: “Aquele quadro de Mantegna que tem um Cristo Morto na estranhíssima

postura que se conhece. Os pés enchem todo o primeiro plano e, depois, tudo se estreita, cabendo em

pouquíssimo espaço, por causa da deformação perspectiva, o corpo todo até à cabeça, quase no intervalo

dos pés” (pp.75-6).

Em segundo lugar, ao lado do quadro encontra-se uma outra caixa, a qual por seu turno aloja dois

pintores “gêmeos e iguais, ambos pintores e pederastas, quase ruivos de loiros” (p.76), cujos quadros se

refletem simetricamente. Como tal, podemos concluir que são desprovidos de originalidade individual.

Para além disto, a esterilidade artística dos dois irmãos é constituída por uma descrição humorística que

realça a sua subserviência perante o mestre italiano: “Em certa ocasião, um dos irmãos levantou-se e foi

lamber a palma dos pés do quadro de Mantegna” (pp.76-7). À primeira vista, António Pedro está assim a

denunciar ludicamente as limitações da alta cultura europeia (note-se a aparência ariana dos gêmeos

“quase ruivos de loiros”). Tal propósito de denúncia pode explicar, no final da cena, o sumir dos quadros

dos dois irmãos, que não merecem ser preservados por serem derivativos: “desvaneceram-se, por inúteis”

(p.77). Aliás, o próprio templo é apresentado como sendo vulnerável à deterioração, visto que “se

desfolhou em folhas amarelas” (p.77).

Contudo, tal não explica a inclusão nesta descrição de um ritual antropofágico no qual um dos

irmãos mata a mulher loura e consome metade do seu corpo, deixando a outra metade para o irmão

comer. Assim sendo, não será possível ler esta “útima cena” por outro prisma e interpretar os dois irmãos

como caricaturas dos dois Andrades, os quais, por coincidência, partilhavam o apelido, apesar de não

serem da mesma família, e tinham publicado os dois monumentos do modernismo brasileiro exactamente

no mesmo ano, em 1928? É verdade que nenhum deles era louro ou de características europeias (Mário

era mestiço), mas a imagem caricatural de irmãos homossexuais pode remeter indiretamente para a

acusação de efeminação dirigida por Oswald a Mário, que conduziu ao afastamento entre os dois

Andrades. E não será então possível ver na mulher loira que é devorada, a sombra de Tarsila (pese

embora a sua conhecida cabeleira negra), cujo “Abaporu” de 1928, fora, de certo modo, regurgitado por

Oswald de Andrade logo em seguida? O relato do consumo da mulher loira pelos gêmeos poderia até ser

interpretado como uma forma lúdica de encenar a célebre frase de abertura do Manifesto de Oswald: “Só

a Antropofagia nos une”.

Por outro lado, dado que este capítulo termina com a imagem fantasmagórica dum pássaro

solitário, descrito como carnívoro (“Pendia-lhe do bico uma pasta de sangue” (p.77)), é tentador pensar

que se possa tratar de uma auto-representação de Pedro, projectado no écran numa espécie de mise em

abyme, consciente de ter canibalizado a posteriori os seus três pares brasileiros. Mais ainda, Pedro cria

uma estranha sensação de déjà vu no próprio seio de Apenas uma narrativa, visto que o pássaro

carnívoro, presente no final, serve de motivo à ilustração e respectiva legenda no início do capítulo,

pairando assim do princípio ao fim deste capítulo13.

Convém talvez lembrar que os pássaros carnívoros são uma imagem recorrente nos quadros que

Pedro pintou nesta fase. “Sentimento na planície”, por exemplo, uma das suas composições criadas

justamente no Brasil em 1941, mostra um pássaro gigante a planar no céu, sobre um casal que se abraça.

No entanto, a presença do pássaro carnívoro no final do capitulo VII porventura lembra implicitamente o

epílogo de Macunaíma, onde a única memória que sobrevive depois de o herói se ter tornado uma

constelação estéril no céu é a dum papagaio, que conta a história ao narrador antes de voar em direcção a

Lisboa. Ao contrário do papagaio que surge no desfecho de Macunaíma, contudo, o pássaro não

corresponde à última imagem do texto português14. E embora o protagonista de Apenas uma narrativa

regresse ao seu respectivo ponto de origem tal como o seu predecessor, a sua transfiguração final está

longe de ser idêntica. Na verdade, o destino de cada um distingue-os de forma significativa. O triste fado

de Macunaíma, que vira estrela, fixo no céu, com um “brilho inútil”, é caracterizado por Madureira como

“uma espécie de espacialização do permanente silêncio, típico dum genocídio, que é repetido (ou ecoado)

no epílogo do romance” (p.97). Já o protagonista de Pedro, depois de se metamorfosear em lua e colidir

com uma estrela “de olhos míopes e inúteis” (possivelmente uma vez mais uma paródia de Macunaíma),

funde-se com a paisagem do Minho.

Como recorda Madureira, o autor de Macunaíma lamentara, em carta de 1942, o final

melancólico da sua obra: “tudo nos últimos capítulos foi escrito no meio de uma grande agitação e

tristeza… Nas duas ou três vezes que reli aquele final… fui dominado pela mesma tristeza e pelo mesmo

desejo amoroso de que não tivesse sido assim” (2005, p.93). Ao invés, a fusão com a paisagem minhota

13 No que toca à sensação de déjà vu note-se ainda, que o capítulo anterior (VI) também já incluía uma cena com outro pássaro ameaçador

“Com um pé apoiado em cada lado do meu corpo, estava um corvo preto enorme” (p.69). Para uma leitura do simbolismo desta imagem, ver

Rodrigues (2013), pp.62-3.

14 No entanto, no penúltimo capítulo de Apenas uma narrativa fica patente o modo como qualquer relato é suscetível de circular de

continente em continente, das colónias (Bombaim) ao centro metropolitano (Londres) e de lá novamente para um outro local (Havana), ecoando

talvez o espalhar da história de Macunaima pelo Brasil fora, por via escrita graças ao narrador, e posteriormente rumo à Europa por via oral graças ao papagaio.

deve, sem dúvida, ser lida como uma alternativa mais positiva, nomeadamente uma figuração que aponta

para uma eventual reconciliação, operada através de uma reintegração cósmica. Ou seja, em vez de uma

disjunção entre céu e terra, no caso de Apenas uma narrativa, a morte metafórica é prelúdio para a

renovação, num processo de transformação cíclica.

Para terminar, não é possível deixar de referir que a questão da renovação cíclica é visualmente

convocada, no limiar da primeira edição de Apenas uma narrativa, pela ilustração da capa (da autoria do

próprio Pedro).15 Colocado sobre o fundo verde (sendo que, em Portugal, o verde é cor de esperança), o

desenho da capa prenuncia a fusão entre o corpo e a paisagem. A imagem também salta à vista

retrospectivamente, por se tratar duma re-elaboração do quadro de Mantegna, criando um efeito de déjà

vu16. Longe de imitar cegamente o seu precursor, Pedro opera literal e metaforicamente uma viragem de

180º, ao representar um corpo deitado, mas agora com a cabeça em primeiro plano, e numa perspectiva

que se expande em direcção à paisagem. Assim, na versão de Pedro, a interpenetração do homem e da

natureza permite ultrapassar o sentimento de luto pesado presente na formulação original, passando a

sugerir morte e vida em simultâneo. A ilustração é, de facto, dinâmica: quer seja apreendida como um

corpo inserido no contexto mais alargado do cosmos ou como um ser humano a engendrar a paisagem,

deixa transparecer a ideia de movimento.

Conclusão

As viagens além-fronteiras foram deveras formativas para Pedro. No decorrer da sua multifacetada

trajetória artística, o consumo sui generis de paradigmas pioneiros oriundos da chamada periferia (o

Brasil) por parte deste artista cosmopolita, como se lê nas entrelinhas de Apenas uma narrativa, sobrepôs-

se afinal a uma apropriação de movimentos vanguardistas, como o surrealismo, vindos do chamado centro

(a França). A estadia no Brasil ajudou Pedro a (trans)formar os seus contos visto que, ao interagir com o

potencial criativo da prática antropofágica, o escritor, qual pássaro carnívoro, digeriu algumas das obras

mais significativas do modernismo brasileiro. Assim sendo, estes contos, alguns ideados antes da sua

vivência brasileira, foram posteriormente refundidos com aquilo a que Cândido argutamente se refere

como ‘aquela qualidade raríssima de conseguir imprimir ao material da emoção um ritmo necessário’

(1942, p.90), para desembocarem na poderosa síntese que é Apenas uma narrativa. O resultado é uma

narrativa que encerra uma proposta textual e visual verdadeiramente única no espaço semi-periférico das

letras portuguesas da primeira metade do século vinte, ou seja, num espaço cultural aberto pela

15 A capa foi reproduzida em Rodrigues (2013), p.53. 16 A natureza deliberada desta intertextualidade é confirmada pela existência de um outro desenho, ligeiramente diferente, para a capa de

Apenasuma narrativa, Essa versão estabelece um diálogo mais óbvio com Mantegna, no pormenor dos pés, que deixam de estar presentes na

versão

final. Ver Catálogo da 1.ª Exposição dos artistas ilustradores modernos, ocorrida em Lisboa e Porto em Abril-Maio de 1942.

mundividência de Pedro às confluências entre a velha Europa e o novo mundo -- espaço imaginário de

(re)criação artística afinal sempre em trânsito.

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