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Cidade Partida. Ícaro Lira

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Ícaro Lira. Paço das Artes/SP - Temporada de Projetos - 2014. Textos - Ana Luisa Lima e Paulo Miyada. Projeto Gráfico - Fernanda Porto.

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C i d a d e P a r t i d a . Ícaro Lira

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O M i l a g r e

Para a mãe de minha mãe

De tempos em tempos, eles aparecem cheios de parafernálias e perguntas que não sabe-mos responder. E passam a nos seguir o dia inteiro, fazendo caretas por detrás de suas máquinas engatilhadas. Querem saber do que vivemos, como vivemos, e eu aponto para a carcaça da vaca derradeira que não sobreviveu ao último estio. Nunca nos deu leite, mas nos ajudava a carregar nossas pás, enxadas, baldes, e o pouco de comer que colhemos insistindo em semear nesse pedaço esturricado de terra. A pobre me fazia companhia. Quando os ossos começaram a apontar sua morte por debaixo das peles, nem considerei a possibilidade de nos fartarmos com seus restos de carne antes que lhe fosse o fim. Pensei comigo mesma que ela já tinha feito tanto. Nos acompanhou fielmente em todas as lidas. E é toda nossa a penitência dessa vida seca até a chegada do milagre que o beato profetizou.

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A vida debaixo desse céu desanuviado não é feita com palavras. Eles deveriam saber. Que nos levantamos quando amanhã ainda é muito perto de ontem, que é para dar tempo de fazer as muitas léguas até a roça e começar a lavra ao primeiro lumiar. Que é o dia todo de pé, sem sombra e sem trégua. É o sol pesando mais do que o jugo. Todo dia é assim. E a gente se esmaga nesse itinerário. Às vezes acho que temos parentesco mais com a enxada que calejou as mãos do que a vaca que todo dia ao me ver me mugia risonha. São muitos esses que de vez em quando vêm por aqui. Quase nenhum volta. Devem ter muitas perguntas para percorrer. Sabe-se lá o que eles fazem com as respostas por dentro das máquinas.

*

Há tanto tempo que não falamos que é capaz dele ter desaprendido. Eu estou besta comigo mesma de ter acordado disposta a essa falação toda. Fazia dias que não saia da cama. Foi uma fraqueza que me deu.

*

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Pouco depois da última chuva, um desses curiosos cumpriu a promessa de voltar. Foi o único. Nos trouxe comida dentro de latas que nos aliviou a fome por mais de um mês. Ago-ra somos três. Eu, meu filho mais novo e meu marido. Todos os outros se foram, inclusive minha única filha. O rapaz que voltou estava sem barba, o que me fez notar como eram bonitos os brancos dos dentes quando falava com um sotaque que nunca soube de onde. Ele me deu de presente uma mulher desenhada detrás de um vidro. Disse que era uma foto que tinha tirado de mim. Senti uma aflição que me estremeceu a espinha. Porque a mulher do desenho é minha mãe. É igualzinha, só é diferente o cabelo. Como pode isso? Minha mãe morreu eu ainda era muito nova – e esse nem sonhava ter nascido. Mas eu ainda me lem-bro dela. Foi isso que o moço quis dizer quando tirou uma foto de mim? Que ele me tirou a memória?

Cada vez mais a cidade vai ficando nua. Imaginei que fosse mesmo acontecer assim: tudo em alvoroço antes do milagre. Se é que dessa vez, finalmente, se cumpre o que o beato dizia.

*

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Antes de me adormecer, ele segurou minha mão direita e fez uma prece. Quase deixou derramar uma lágrima. Mas a deve ter preservado. Ou a seca também deu conta de estiar seu choro. Além do que, esse magricela sabe de que não gosto de lamento. ‘Inda mais por conta de uma fraqueza. Meu filho logo depois veio se juntar a ele numa ladainha. Achei bonito isso de juntarmos nossa fé toda naquele quarto para agradecer o milagre. Queria ter feito isso na igreja. Mas até o padre saiu de lá. Faz oito meses que foi morar numa cidade vizinha. Disse: vocês devem ir também. A cidade em breve vai se inundar. Nunca vi padre mais besta, fugir com rabo entre as pernas com medo de um milagre. Nunca gostei daquele padre, sempre desconfiei que seu ofício era o da lamentação. Quando a seca castigava, ele inventava uma novena. Mas jamais ouve festa e oração para agradecer uma nuvem branca sequer.

*

Parece que ele estava sabendo que minha cabeça doia tanto que me custava ficar de olhos abertos. Ainda segurando minha mão direita, pesou a sua outra mão na minha testa e de-pois fechou meus olhos pouco depois de eu lhe dizer:– Me leve. O mar.

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*

Hoje acordei tão atordoada que não sei ao certo o quanto dormi. Quando dei por mim, já haviam saído com mais tralhas nas costas do que de costume. Eles ainda iam ali quase no fim da vista, que eram mais de quatro léguas de casa, no sentido contrário do roçado.

*

O sol já ia alto quando terminaram a caminhada de quase dezessete quilômetros em direção à praia que não tinha mar. Um de um lado, resmungava cansaço e empurrava com mais força do que devia. O segundo, do lado oposto, em silêncio, apenas meneava a cabeça tentando fazer daquilo instruções suficientes. Puseram os dois os pés na água morna e se-guiram açude adentro até a altura dos quadris. Com alvoroço, o primeiro, ao subir, rasgou o antebraço na madeira áspera que contornava a embarcação estreita que oscilou bêbada em sopapos bruscos. O segundo esperou o barco se apaziguar antes de alçar-se com firmeza e se colocar na parte inferior onde adormeciam os remos.

Nos primeiros quarenta minutos, deixaram-se levar pelo sussurro do vento que os condu-zia para norte. Era lá que encontrariam algo que deveria lhes parecer um esquálido rio,

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disseram. Foi o tempo de se desfazer de algum cansaço e procurar no alforje um pouco de farinha e melaço para calar a fome. Quando as águas começaram a se tornar turvas, o pai, que estava junto aos remos, pôs-se ao centro e os fez descansar sobre suportes de metal, um de um lado, outro de outro. Iniciou seus movimentos compassados, quatro por quatro. Cada pausa era a chance de retomar o fôlego e contemplar, na superfície calma, as circun-ferências côncentricas que ganhavam diâmetros e se interseccionavam.

A paisagem por ali nunca se modificava. O odor acre arrefecia quanto mais distante das margens. O sol já estava perto de se pôr. O trajeto se deu num sem diálogo. O pai cada vez mais encorporado dos remos como se fossem seus próprios braços. O filho em sua inquie-tude, procurava manter-se ocupado tornando em pequenos rasgos os vestidos da mãe. Um vento quente e seco os abraçou em uma sensação de torpor. Mais um pouco avistariam a bandeira branca. Desenharam um arco sobre a água avermelhada, aproximaram-se da margem, desceram. Arrastaram a embarcação por poucos metros e a fizeram inclinar sobre duas hastes de madeira. Aquela arquitetura lhes serviria de abrigo. A existência dali em

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diante deveria estabelecer-se por recurso próprio. Os arredores teriam que dar um jeito de oferecer todo tipo de provisão: saciar fome, sede e a necessidade de banho.

O filho ficou para trás quando o pai lhe tomou o alforje das mãos e seguiu irresoluto sem parecer se importar com a direção. Não demorou para que as fendas do caminho come-çassem a se agravar. Parou. Pesou sobre seus joelhos e pôs-se a remendar o solo com os vestidos em farrapos.

*

No mesmo dia em que ganhei o desenho de minha mãe, o rapaz me trouxe também o de-senho do mar. Quando o beato profetizou nossa sorte, esqueceu de dizer se seria antes ou depois que as árvores nasceriam em pelotões.

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ANA LUISA LIMA

Crítica de arte e pesquisadora do tema: literatura e artes visuais – imagem e narrativa, participou da concepção e desenvolvimento do projeto Carta de Intenção – Edição Campinas, residência de experimentação da escrita em artes visuais, Proac-SP, 2013. Co-curadora do projeto “Poemas aos homens do nosso tempo – Hilda Hilst em diálogo”, Programa Rede Nacional Funarte 9ª edição, 2013. Editora da revista Tatuí (PE) desde 2006. Atualmente, faz parte do grupo de crítica do Centro Cultural São Paulo.

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C a n u d o s : U m a e d e z c i d a d e s

Mil setecentos e alguma coisa quando uma aldeia ao norte da Bahia nasce como se sem pretensões de futuro ou história. Empresta da fazenda mais próxima seu nome: Canudos.

***

Na última década antes de principiar o século XX, a aldeia cresce vertiginosamente e recebe uma nova alcunha: Belo Monte. Para melhor aguardar uma futura graça divina, despossuídos do nordeste do país decidiam construir o seu presente por si mesmos, longe da guarda dos antigos senhores – de engenho – e dos novos flagelos – tributários. Sobe-ranos em sua submissão a senhores ausentes – Deus e o Rei – aglutinaram-se em torno de Antônio, transformando a terra, trabalhando o homem e vivendo a luta, esta última que se repetiu uma, duas, três e quatro vezes. Conheceram a ira dos novos flagelos instigados

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pelos antigos senhores. Mais rápido do que cresceu, a cidade foi destruída, deixada como ruína manchada de sangue, cinzas e pólvora.

***

Mesmo com todo o sangue e todas as cabeças cortadas, das mais de vinte mil pessoas mas-sacradas sobrou o que chamamos de sobreviventes – incluindo os soldados republicanos que deixaram-se ficar nos arredores das ruínas. Mais de dez anos depois, refundaram a cidade de Canudos, agora carregada por histórias, mas novamente sem promessa de futuro.

***

Pouco antes da Segunda Guerra Mundial, o sonho desenvolvimentista inundava a imagem populista do país e acabou por prometer inundar, também, Canudos. O sertão não virou mar, mas a antiga/nova cidade foi substituída, já durante a ditadura militar, por um açude, pro-messa de abundância para a região. A região, bem, não se tornou tão abundante, mas um novo vilarejo cresceu durante a construção da barragem. Cocorobó era o nome da fazenda que foi emprestado à barragem e depois ao vilarejo, mas, quando este cresceu um pouco e virou cidade, na década de 1980, resolveu exumar o título de Canudos, impregnado com ainda mais história e, aparentemente, menos futuro.

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Com pouca terra fértil, a Canudos que iniciou o século XXI é magra. Guarda algumas raquí-ticas lembranças em memoriais improvisados e na conversa fiada dos mais velhos. Pouco planta, pouco produz. A principal fonte de renda para muitos dentre os que não debanda-ram dali são as bolsas-auxílio do governo federal. O tempo passa enquanto os moradores colhem os frutos secos das decisões de Floriano Peixoto, Getúlio Vargas, Collor, Lula e tantos outros.

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Contra os prognósticos mais prováveis, Canudos adentrou a segunda década do século XXI como uma promessa de futuro. Com os planos do novo governo federal – interessado em reestabelecer uma imagem populista e desenvolvimentista no país após todo o sofrimento dos jogos olímpicos – a cidade possui uma obra arquitetônica de excelência em construção (o Museu da Seca projetado pelo escritório da mais famosa arquiteta iraquiana na histó-ria), um sítio de grande potencial turístico (o Parque Canudos, antiga Estação Biológica aprimorada com duas montanhas russas e um teleférico) e um setor produtivo em ascen-são: a agricultura industrial promovida com o aproveitamento da água do açude (após as intervenções técnicas que transformaram o pH básico da água na região). A população tem

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crescimento positivo após muitos anos de envelhecimento e retração, o que incentiva tam-bém novos lançamentos imobiliários ao pé do açude, sobre as ruínas de Canudos Velho.

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A crise econômica dos anos 2070 fez-se sentir por todo o nordeste do país, deixando a cidade de Canudos em suspensão. Com a quebra da indústria de agricultura e a retração do turismo, entraram em colapso as linhas de crédito e financiamento onipresentes nos novos lançamentos do Bairro Novo de Canudos Velho – foi o que desencadeou o fechamento do principal banco da região e a demolição de diversas obras em construção.

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Alguns anos antes de encerrar o milênio, no aniversário da destruição de Canudos/Belo Monte, um grupo de jovens idealistas resolve promover uma nova peregrinação à cidade. Eles passam direto pelas cidades fantasmas deixadas em torno do açude e constroem um deck flutuante sobre as águas, em torno da torre da igreja submersa que ainda se via em épocas de seca. Aplicando todos os saberes aprendidos nas grandes cidades sobre viver e comer de forma saudável e contando com um sistema de autogestão, os jovens conseguem implantar um sistema de piscicultura no açude. Forma-se uma cidadela alternativa e espe-

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rançosa sobre seu futuro, decidida a sustentar-se como uma comunidade autossuficiente, isolada dos desmandos de um país dividido pelos incessantes conflitos civis.

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Com o passar dos anos, Canudos Sobre as Águas, como foi chamada, cresceu e conso-lidou-se como lugar de encontro para toda a juventude do Brasil e da América do Sul desejosa de construir suas próprias condições de soberania. Agora, além do deck flutuante sobre o açude, a cidade conta com a ocupação intensiva do esqueleto de concreto e ferro deixado pela obra nunca concluída do Museu da Seca e, também, das infraestruturas antes abandonadas do Parque Canudos. Trabalho, habitação e lazer, respectivamente, transforma-ram esses lugares com o mínimo investimento e a máxima concatenação de esforços. Em toda parte, fala-se de Canudos e seu ideal. A imagem de Antônio Conselheiro foi reinven-tada como símbolo gráfico, estampando a nota de maior valor da nova moeda única da América do Sul.

***

Mais uma vez, há luta, agora entre as famílias fundadoras da nova cidade. O crescimento econômico na quarta década do século XXII alimentou conflitos ideológicos e financei-

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ros entre as linhagens responsáveis pela maior rede de produção de proteína animal do nordeste brasileiro. Após centenas de processos legais, os conflitos tomaram as ruas, resultando em uma balbúrdia que poderia ser identificada como princípio de uma guerra civil. Em uma atitude desesperada, a frente mais idealista do conflito resolveu implodir as barragens que mantinham represadas as águas do açude original de Canudos e dos outros oito açudes construídos com apoio do governo estadual. A inundação tomou toda a região, matando mais de trezentas mil pessoas e criando o maior lago artificial do planeta onde outrora havia apenas o solo seco do sertão.

***

Cinquenta anos depois da tragédia, as famílias dos sobreviventes transformam um povoado em uma nova cidade, chamada, simplesmente, Canudos. Há mais de duzentos quilômetros e quatrocentos anos do assentamento original, vive-se com recursos paupérrimos, graças aos programas de suporte à miséria promovidos pelas agências humanitárias internacionais. Sem futuro, a população só teme uma coisa: estar destinada a guardar mais história.

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PAULO MIYADA

Coordenador do Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake desde 2011. Arquiteto e urbanista pela FAU-USP, onde realizou seu mestrado na área de História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo. Trabalhou como assistente de curadoria da 29a Bienal de São Paulo (2010), compôs a equipe curatorial do programa Rumos do Itaú Cul-tural 2011-13 e foi curador das exposições coletivas “Em Direto” (novembro de 2011) e “É Preciso Confrontar as Imagens Vagas com os Gestos Claros” (setembro de 2012), ambas na Oficina Cultural Oswald de Andrade, entre outras.

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Ícaro LiraCanudos-Bahia, 2012-2014 C

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ÍCARO LIRA

Artista Visual, Editor e Investigador, com pesquisa desenvolvida no âmbito do Documentá-rio Experimental. Estudou Cinema e Vídeo na Casa Amarela-UFC, Fortaleza-CE, Montagem e Edição de Som, pelo Instituto de Cinema Darcy Ribeiro-RJ e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage-RJ participou dos Programas Fundamentação e Aprofundamento. Recente-mente ganhou o Prêmio Honra ao Mérito Arte e Patrimônio do IPHAN–MINC e o Prêmio de Residência Artistica da Fundação Joaquim Nabuco. Participou de diversas residências de Arte no Brasil e na América Latina como do Capacete Entretenimentos, Terra UNA, Nuvem, La Ene(Argentina) e Atelier Subterrânea entre outras. Atualmente desenvolve pesquisa para a 3 Bienal da Bahia com pesquisa Sobre Canudos. http://cargocollective.com/icarolira

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AGRADECIMENTOSPAULA BORGHI, BEATRIZ LEMOS, PAULO MIYADA, ANA LUISA LIMA, SOFIA CAESAR, LUCAS SARGENTELLI E BRUNO JACOMINO.

PROJETO GRÁFICOFERNANDA PORTO

REALIZAÇÃO

C i d a d e P a r t i d a . PAÇO DAS ARTES - TEMPORADA DE PROJETOS 2014

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