cidade de olho 35 2014 junho web

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Ano 16 - nº 35 Junho 2014 POA/RS Copa 2014 Novo tempo: navegar o Brasil sem carta náutica Editorial A citação de Daniel Cunha traz uma dimensão interessan- te para explicar como navega- mos. Não há teoria revolucio- nária adequada. Além disto, o que estava colocado como certo em nosso tempo está sendo massivamente questionado (a tomar pelas manifestações de junho), mas ainda não há nada para colocar em seu lugar. O desenvolvimento, inclusive das próprias manifestações, é para qualquer lado, tanto para esquerda como, perigosamen- te, para a direita. A refutação doutrinária tem aberto os flan- cos da política para todos os lados. Mesmo assim, mais do que antes, nada explica melhor a política do que a economia, como diria Mariátegui. A dinâmica social emergente é de crise política e de rebaixa- mento das expectativas (nin- guém espera nada diferente, apesar de tudo). Todos operam os fatos e vivem suas vidas bus- cando os maiores benefícios individuais, apesar da ansie- dade estrutural que isto tem causado. É o “novo tempo do mundo”, nas palavras de Paulo Arantes. Um parêntese: segun- do Arantes, o novo tempo tem o ponto de corte no aparecimento mundial das comunidades za- patistas, em 1994. Eis um sinal para prestarmos atenção. Mas o que se pode esperar deste “novo tempo do mundo”? Se tomamos algo novo por algo inesperado, que não tinha pos- sibilidade de acontecer, mas aconteceu por conta de alguma condição excepcional, vamos a Hegel. Hegel escreveu que algo é revolucionário quando se rea- liza fora das potencialidades do seu próprio desenvolvimento. Virtual é a palavra que utilizou para caracterizar algo sem pro- babilidade de acontecer, algo, portanto, que revolucionaria as condições objetivas de re- alização. Neste sentido, junho de 2013 no Brasil, precedida por outras datas pelo mundo, foi uma tomada de ar. Por certo foi uma agitação política ainda irresponsável, sem autoprote- ção contra ataques e tomadas fascistas, sem direção política definida, mas que começa a colocar na rua uma geração que não conhecia este repertório – e que volta a respirar. Dentro das potencialidades de desenvolvimento (não re- volucionárias, conforme Hegel) os movimentos de moradia, comunitários, sindicais, cam- pesinos, etc., patinam diante de um repertório não dirigista da ação. Alguns, como o Movi- mento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST – com origem no MST) de São Paulo, começam a utilizar as manifestações de massa, dando atestado de que ainda é tempo de aprender com a atualidade. No início de junho de 2014 tomaram uma ponte estaiada entre 15 mil pes- soas, contra a Copa do Mundo e reivindicando moradia popular para quase 40 mil em situação precária. Outros movimentos ainda tentam pegar carona nas agitações de uma forma um tanto desajeitada. É claro, atravessamos um período tão “escabelado” que podemos, inclusive, trans- formar Copa do Mundo em disputa eleitoral, o que para os trabalhadores urbanos ou rurais pouco faz sentido, pois as políticas e programas sociais estão sendo duramente ataca- dos enquanto os poderosos se engalfinham. Problemas reais, como o das pessoas brutaliza- das pelas leis de exceção ou pela dinâmica urbana que a preparação da Copa potencia- liza, estão sufocadas na pauta positiva do crescimento eco- nômico, tanto pela esquerda quanto pela direita. O que pesa na ação de todos, consciente ou inconscientemen- te, em maior ou menor grau, é que a esperança de que algo inesperado (no sentido de Hegel) viesse à tona depois da ditadura militar tornou-se uma farsa já na década passada. Avança-se lentamente em melhorias de infraestrutura, reformas e na erradicação da miséria. Fecha-se um curioso ciclo que iniciado no pós-ditadura, no qual programas de distribuição de renda, de alimentos, de acesso ao saber técnico/universitário ou de cons- trução de casas, antes de estarem consensuados sob a sombra de um estado de bem estar, são tidos como “ameaça comunista” por ideólogos do ódio. Por isto precisamos clareza: a disputa das políticas sociais ainda é estruturante da correla- ção de forças. Afinal, não seria justo transformar os recursos públicos em consciência crí- tica e capacidade de produção autônoma, já que os governos raramente conseguem dar res- postas a tempo para as pre- cariedades sociais, enquanto cresce o ódio de classe? Meios para isto existem. Por exemplo: existem programas sociais do governo federal que permi- tem que movimentos sociais, associações ou cooperativas executem as ações, tais como o Programa de Aquisição de Alimentos ou o Minha Casa Minha Vida Entidades. Mas, para que se transfor- me os recursos públicos em autonomia, é necessário que as organizações desenvolvam urgentemente uma autocrí- tica: operar programas para estruturar-se e se preparar para operar mais programas? Ou acessar estes recursos para beneficiar e autonomizar seus beneficiários, já que os pro- gramas podem desaparecer? O fim está em si mesmo ou na reorganização social do sujeito? Acreditamos que as respos- tas certas às perguntas acima contribuiriam para criar condi- ções para algo inesperado (re- tomando o conceito em Hegel que desenvolvemos antes). Ao contrário da política do “quan- to pior melhor”, para a cisão de classe, quanto mais condições de desenvolvimento humano, melhor. Ainda fica faltando a autocrítica das organizações na operação dos meios, isto é, dos programas. A disputa elei- toral é uma disfuncionalidade necessária para a garantia das condições. Afinal, sabendo que não há nada de novo por enquanto, e tendo em vista o crescimento do ódio à brasileira, queremos criar condições para que? "Certas épocas exigem o abandono de antigos dogmas e a coragem para lançar-se ao mar teórico-prático desconhecido sem as certezas de uma carta náutica previamente navegada. Nossa época, que reúne a crise do capital, a necessidade de uma teoria radical emancipatória e a crise das teorias tradicionais, é uma delas." Daniel Cunha, Sinal de Menos nro. 10, v.11. Kristin Smith/Freeimages

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DE OLHO NA CIDADE - Jornal do Cidade, Centro de assessoria e estudos urbanos. Ano 16 - nro. 35 | Junho de 2014 | POA/RS

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Ano 16 - nº 35

Junho 2014

POA/RS

Copa 2014Novo tempo: navegar o Brasil sem carta náuticaEd

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A citação de Daniel Cunha traz uma dimensão interessan-te para explicar como navega-mos. Não há teoria revolucio-nária adequada. Além disto, o que estava colocado como certo em nosso tempo está sendo massivamente questionado (a tomar pelas manifestações de junho), mas ainda não há nada para colocar em seu lugar. O desenvolvimento, inclusive das próprias manifestações, é para qualquer lado, tanto para esquerda como, perigosamen-te, para a direita. A refutação doutrinária tem aberto os flan-cos da política para todos os lados. Mesmo assim, mais do que antes, nada explica melhor a política do que a economia, como diria Mariátegui.

A dinâmica social emergente é de crise política e de rebaixa-mento das expectativas (nin-guém espera nada diferente, apesar de tudo). Todos operam os fatos e vivem suas vidas bus-cando os maiores benefícios individuais, apesar da ansie-dade estrutural que isto tem causado. É o “novo tempo do mundo”, nas palavras de Paulo Arantes. Um parêntese: segun-do Arantes, o novo tempo tem o ponto de corte no aparecimento mundial das comunidades za-patistas, em 1994. Eis um sinal para prestarmos atenção.

Mas o que se pode esperar deste “novo tempo do mundo”? Se tomamos algo novo por algo inesperado, que não tinha pos-sibilidade de acontecer, mas aconteceu por conta de alguma condição excepcional, vamos a Hegel.

Hegel escreveu que algo é revolucionário quando se rea-liza fora das potencialidades do seu próprio desenvolvimento. Virtual é a palavra que utilizou para caracterizar algo sem pro-

babilidade de acontecer, algo, portanto, que revolucionaria as condições objetivas de re-alização. Neste sentido, junho de 2013 no Brasil, precedida por outras datas pelo mundo, foi uma tomada de ar. Por certo foi uma agitação política ainda irresponsável, sem autoprote-ção contra ataques e tomadas fascistas, sem direção política definida, mas que começa a colocar na rua uma geração que não conhecia este repertório – e que volta a respirar.

Dentro das potencialidades de desenvolvimento (não re-volucionárias, conforme Hegel) os movimentos de moradia, comunitários, sindicais, cam-pesinos, etc., patinam diante de um repertório não dirigista da ação. Alguns, como o Movi-mento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST – com origem no MST) de São Paulo, começam a utilizar as manifestações de massa, dando atestado de que ainda é tempo de aprender com a atualidade. No início de junho de 2014 tomaram uma ponte estaiada entre 15 mil pes-soas, contra a Copa do Mundo e reivindicando moradia popular

para quase 40 mil em situação precária. Outros movimentos ainda tentam pegar carona nas agitações de uma forma um tanto desajeitada.

É claro, atravessamos um período tão “escabelado” que podemos, inclusive, trans-formar Copa do Mundo em disputa eleitoral, o que para os trabalhadores urbanos ou rurais pouco faz sentido, pois as políticas e programas sociais estão sendo duramente ataca-dos enquanto os poderosos se engalfinham. Problemas reais, como o das pessoas brutaliza-das pelas leis de exceção ou pela dinâmica urbana que a preparação da Copa potencia-liza, estão sufocadas na pauta positiva do crescimento eco-nômico, tanto pela esquerda quanto pela direita.

O que pesa na ação de todos, consciente ou inconscientemen-te, em maior ou menor grau, é que a esperança de que algo inesperado (no sentido de Hegel) viesse à tona depois da ditadura militar tornou-se uma farsa já na década passada. Avança-se lentamente em melhorias de infraestrutura, reformas e na

erradicação da miséria. Fecha-se um curioso ciclo que iniciado no pós-ditadura, no qual programas de distribuição de renda, de alimentos, de acesso ao saber técnico/universitário ou de cons-trução de casas, antes de estarem consensuados sob a sombra de um estado de bem estar, são tidos como “ameaça comunista” por ideólogos do ódio.

Por isto precisamos clareza: a disputa das políticas sociais ainda é estruturante da correla-ção de forças. Afinal, não seria justo transformar os recursos públicos em consciência crí-tica e capacidade de produção autônoma, já que os governos raramente conseguem dar res-postas a tempo para as pre-cariedades sociais, enquanto cresce o ódio de classe? Meios para isto existem. Por exemplo: existem programas sociais do governo federal que permi-tem que movimentos sociais, associações ou cooperativas executem as ações, tais como o Programa de Aquisição de Alimentos ou o Minha Casa Minha Vida Entidades.

Mas, para que se transfor-me os recursos públicos em

autonomia, é necessário que as organizações desenvolvam urgentemente uma autocrí-tica: operar programas para estruturar-se e se preparar para operar mais programas? Ou acessar estes recursos para beneficiar e autonomizar seus beneficiários, já que os pro-gramas podem desaparecer? O fim está em si mesmo ou na reorganização social do sujeito?

Acreditamos que as respos-tas certas às perguntas acima contribuiriam para criar condi-ções para algo inesperado (re-tomando o conceito em Hegel que desenvolvemos antes). Ao contrário da política do “quan-to pior melhor”, para a cisão de classe, quanto mais condições de desenvolvimento humano, melhor. Ainda fica faltando a autocrítica das organizações na operação dos meios, isto é, dos programas. A disputa elei-toral é uma disfuncionalidade necessária para a garantia das condições.

Afinal, sabendo que não há nada de novo por enquanto, e tendo em vista o crescimento do ódio à brasileira, queremos criar condições para que?

"Certas épocas exigem o abandono de antigos dogmas e a coragem para lançar-se ao mar teórico-prático desconhecido sem as certezas de uma carta náutica previamente

navegada. Nossa época, que reúne a crise do capital, a necessidade de uma teoria

radical emancipatória e a crise das teorias tradicionais, é uma delas."

Daniel Cunha, Sinal de Menos nro. 10, v.11.

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DE OLHO NA CIDADE

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Direito à moradia

Na cidade de Porto Ale-gre, milhares de famílias têm o seu direito à moradia adequada violado por conta dos projetos e obras urbanas executadas para a realização da Copa do Mundo 2014 na cidade. A “oportunidade única” da Copa impõe seu tempo, criando legislação de exceção, decretando leis, instrumentalizando progra-mas para moradia e atrope-lando comunidades.

Porto Alegre é reconhecida internacionalmente pelas inúmeras inovações no âm-bito da gestão democrática e participativa da política ur-bana, bem como dos avanços constitucionais em termos do direito à cidade e à moradia adequada, tendo como marco a experiência do Orçamento Participativo. Apesar disto, o governo local vem prati-cando uma série de políticas urbanas “às avessas”, que se intensificam na conjuntura da realização da Copa do Mundo.

Exemplos disso são o bô-nus moradia e o aluguel

social como alternativas à política habitacional. Estes instrumentos implemen-tados em caráter emergen-cial devido à necessidade primordial de cumprir os cronogramas da Copa do Mundo levaram o governo a iniciar remoções de comu-nidades inteiras, porém sem previsões reais de iniciar o reassentamento das famílias.

De acordo com dados di-vulgados pelo Departamento Municipal de Habitação de Porto Alegre (DEMHAB), em 2010 a cidade possuía 486 ocupações irregulares, com um total de 75.656 domicílios. Considerando--se a mesma média, de 3,82 habitantes por domicílio, encontrada em aglomerados subnormais levantados pelo Censo de 2000 do IBGE, chega-se a uma população de 288.891 habitantes, o que significaria 21,46% da população ou 17,1% dos domicílios em situação de habitação irregular.

Este quadro de progressivo

A Copa do Mundo e a Moradia

ComunidadesTotal de famílias

atingidasNº de famílias já

removidas/reassentadasAções Públicas

Vila Dique 1.476 922Remoção/reassentamento

para o Conjunto Habitacional Porto Novo

Vila Nazaré 1.291Nenhuma

até o momentoRemoção/reassentamento

Atingidas pela duplicação da Avenida Tronco

1.525 420 Bônus Moradia

180 Aluguel Social

108 Indenizações

TOTAL 708

Ocupação 20 de Novembro

50 50Bônus Moradia /Aluguel

Social

Atingidas pelo Programa Integrado Sócio Ambiental

1.680 188 Remoção/reassentamento

600 Bônus Moradia

122 Regularização Fundiária

TOTAL 910

TOTAL GERAL 6.022 2.590

Tabela | Processo de remoção e os números de famílias ameaçadas ou já atingidas em seu direito à moradia

Fontes:

http://www2.portoalegre.rs.gov.br/demhab/default.php?p_secao=104

http://www.abc.habitacao.org.br/wp-content/uploads/2013/05/Vila-Dique-Aeroporto-DEMHAB-POA.pdf

http://www2.portoalegre.rs.gov.br/portal_pmpa_novo/default.php?p_noticia=168211&CONTRATO+PARA+1.300+MORADIAS+DA+VILA+NAZARE+SERA+ASSINADO+AMANHA

http://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/dia-a-dia/noticia/2013/06/duplicacao-da-avenida-tronco-em-ritmo-lento-na-capital-4166399.html

http://www2.portoalegre.rs.gov.br/smgae/default.php?reg=5&p_secao=65

http://www2.portoalegre.rs.gov.br/demhab/default.php?p_noticia=169406&DIRETOR+DO+DEMHAB+PARTICIPA+DE+SEMINARIO+EM+BRASILIA

http://www2.portoalegre.rs.gov.br/cs/default.php?reg=169415&p_secao=3&di=2014-05-16

aumento da moradia precária tem sido intensificado com os megaempreendimentos implementados na cidade no último decênio, em especial os vinculados à Copa 2014. Isso porque o bônus moradia e o aluguel social são solu-ções emergenciais que não resolvem o real problema ha-bitacional de nenhuma famí-lia, promovendo inclusive a intensificação dos problemas habitacionais.

Entenda um pouco mais do problema

O aluguel social permite à família viver, por tempo indeterminado, num aparta-mento alugado pela prefeitura num valor de 500,00 reais mensais. Este instrumento

deixa as famílias a mercê da prefeitura que não oferece o aluguel social dentro de um quadro planejado de pra-zos de realocação familiar. A qualquer momento o governo pode oferecer-lhes uma única alternativa de reassentamento e a família será obrigada a aceitá-la. Não existe um pla-nejamento e tampouco um trabalho de organização social das famílias no novo local.

O bônus moradia é ofere-cido à família em valor equi-valente a uma unidade do Programa Minha Casa Minha Vida, descontando-se o valor do terreno, totalizando R$ 52.000. Este valor está imen-samente abaixo do valor de mercado, não só da moradia que a família possuía antes, mas de moradias regulariza-

“Não é apenas a moradia enquanto um objeto físico de quatro paredes, um teto, mas a moradia como possibilidade de acesso aos meios de vida, à água, a toda infraestrutura, à educação, à saúde.”

Raquel Rolnik, Relatora do Direito à Moradia Adequada da ONU

Felipe
Typewritten text
Bruno Galvão / chargesbruno.blogspot.com

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Junho de 2014

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O caso da Vila Dique

Ao iniciar a retirada de parte da vila a

prefeitura não levou em consideração os

impactos sofridos pelos moradores rema-

nescentes: casas foram derrubadas e canos

abertos, proliferando animais peçonhentos e

aumentando os problemas sanitários na vila

para aqueles que ficavam. Os moradores do

novo Conjunto Habitacional também tiveram

que enfrentar inúmeros problemas, pois o

reassentamento foi realizado sem a instalação

dos equipamentos comunitários, desprovidos

assim de escola, creche e posto de saúde.

Tempos depois a prefeitura deslocou os

equipamentos comunitários da antiga vila

para o novo conjunto habitacional, deixando

as famílias que não foram reassentadas sem

o acesso a estes serviços básicos.

Agravante desta situação é que depois

de iniciadas as intervenções governamentais

junto às comunidades foi constatado que as

obras do aeroporto não eram essenciais à

Copa, sendo retiradas da Matriz de Respon-

sabilidade. Cerca de 600 famílias ainda se

encontram na Vila Dique, tendo que pegar

dois ônibus para poder acessar o posto de

saúde e vivendo em situação de extrema

precariedade, sem saber dos seus destinos.

As casas de passagem foram utilizadas na

remoção da Vila Dique e significaram um total

desrespeito às famílias, que a este modelo

foram impostas. Eram casinhas pequenas

de madeira, sem banheiro. Foram instalados

banheiros químicos pela prefeitura, que eram

usados coletivamente. Cerca de 21 casas fo-

ram implantadas no local do reassentamento

da Vila Dique e, agora, estão novamente sen-

do utilizadas na Vila Liberdade. A prefeitura

usa este exemplo como ameaça às famílias de

outras localidades para que aceitem o aluguel

social e o bônus moradia, já que as casas de

passagem são humilhação ainda maior que a

aceitação destes instrumentos.

Remoção

das em geral. Portanto, esse instrumento somente poster-ga o problema habitacional na medida em que a família, de posse deste valor, irá buscar outra sub-habitação e seguirá em situação de vulnerabilida-de social.

Crise habitacional mundial

Conforme constatado por Raquel Rolnik1, ao longo dos seus seis anos de mandato como Relatora Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada, existe hoje uma crise habitacional mundial que atinge as populações mais pobres. A vulnerabi-lidade quanto ao direito de posse resulta na perda de suas casas para dar lugar a grandes projetos relacionados a me-gaeventos esportivos. Ainda segundo a relatora, no Brasil quem tem título de proprieda-de consegue ser indenizado. Mas quem está vinculado ao território onde vive por outras formas recebe, na melhor das hipóteses, uma indenização pela benfeitoria. Isto signi-fica mais pessoas sem teto, mais produção de moradias precárias, mais exposição à vulnerabilidade, mais viola-ções de direitos.

Em Porto Alegre, as ocu-pações irregulares, em sua grande parte, são habitadas por comunidades bastante antigas que reivindicam há tempos uma política de ur-banização e de regularização fundiária. Todavia, a opor-tunidade de obtenção deste direito veio acompanhada pelo interesse de realização de grandes obras de infra-estrutura urbana. Assim, os projetos governamentais não visam garantir o direito à moradia para essas famílias, mas sim em como viabilizar a ampliação do aeroporto, a duplicação de uma avenida,

o projeto de saneamento, etc., os quais têm no seu caminho as vilas e seus mo-radores. Assim sendo, a polí-tica habitacional se impõe de maneira arbitrária colocando as famílias em uma situação de ameaça para locais dis-tantes da região de origem, sem considerar os laços com o território, as relações de vizinhança, de amizades e os núcleos familiares.

É exatamente este cenário que temos presenciado em Porto Alegre por conta das obras da Copa. Milhares de famílias porto-alegrenses estão ameaçadas ou já tive-ram seus direitos humanos violados por ações do poder público municipal que privi-legiam os interesses da inicia-tiva privada. Fica a pergunta: a “oportunidade única” de desenvolvimento econômico e social é para quem?

O quadro na página ao lado traz dados atualizados sobre o processo de remoção e os números de famílias ameaçadas ou já atingidas em seu direito à moradia.

Habitar é uma necessi-dade crucial de qualquer indivíduo e é primordial o entendimento disso por par-te da sociedade para comba-ter as indiferenças frente às desigualdades no acesso aos bens e serviços. A moradia hoje é um desses bens, cujo acesso é controlado pelo mercado, quando, na verda-de, a moradia é a base funda-mental para que as famílias possam estruturar sua vida de modo a ter condições de acessar outros serviços bási-cos como saúde, educação, trabalho, segurança e lazer.

A Copa do Mundo e a Moradia

Este texto foi elaborado com contribui-ção da cientista social Gabrielle Araújo, mestranda em sociologia na UFRGS

1http://www1.folha.uol.com.br/colunas/ raquelrolnik/2014/03/ 1422950-quem-tem-lugar-nas-cidades.shtml

A Vila Dique fica localizada no extremo nor-

te de Porto Alegre, nas margens do Aeroporto

Internacional Salgado Filho. A sua existência

remonta à década de 1950, quando algumas

famílias se mudaram, do interior e de outras

vilas da cidade, para um terreno desocupado

que ficava situado entre dois diques, dando

origem, assim, ao nome da comunidade. As

primeiras famílias foram atraídas pela grande

quantidade de fábricas de papelão que exis-

tiam naquela localidade. Ao longo do tempo,

principalmente entre os anos de 1980 e 1990,

diversas famílias foram se instalando na vila

em busca da oferta de trabalho. Atualmente,

a maioria dos moradores exerce um trabalho

informal de triagem de resíduos, tendo como

principal fonte de renda a venda de materiais

recicláveis.

Desde sua origem a Vila Dique caracteriza-

-se por um conjunto de moradias em situação

precária, na sua maioria, construídas com pe-

daços de madeira. A situação compartilhada

de acesso escasso aos serviços básicos e à

infraestrutura urbana levou os moradores a

se organizarem e construírem estratégias de

sobrevivência, constituindo, assim, relações

comunitárias para a conquista negociada

com a prefeitura de energia elétrica, posto

de saúde e creche. Há mais de dez anos a

comunidade tem reivindicado o direito à

moradia digna.

O reassentamento das famílias da Vila Di-

que é o processo mais longo de remoção na

cidade. Iniciado em 2009, com a transferência

de 48 famílias para o Conjunto Habitacional

Porto Novo, local escolhido pelo DEMHAB

para as novas moradias, ainda não existe

previsão para acabar.

Removidas para o início da ampliação da

pista do Aeroporto Salgado Filho, as implicações

do início desta remoção tomaram as dimensões

mais diversas possíveis de violação de direitos

humanos. Seus problemas tiveram início com o

cadastramento dos moradores, realizado pelo

Departamento Municipal de Habitação (DE-

MHAB) no ano de 2005. Nestes dez anos muitos

dos que eram considerados filhos, se casaram,

tiveram filhos e constituíram seus próprios nú-

cleos familiares. Todavia, estes “desdobramen-

tos familiares” não estão contemplados pela

política habitacional, provocando uma situação

de incerteza quanto ao destino dessas famílias.

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Junho de 2014

DE OLHO NA CIDADE

Órgão de divulgação do Cidade - Centro de Assessoria e Estudos Urbanos | Rua Antão de Farias, 50 - Bairro Bom Fim - CEP 90035-210 - Porto Alegre/RS | Fone/Fax 51 3264 3386 www.ongcidade.org [email protected] | Conselho Editorial: Cecília Esteve, Delma Vargas, Felipe Drago e Márcia Tolfo. Jornalista responsável: Marta Resing MTB 5405/RS Edição de arte: Rosana Pozzobon 3388 9118 Fotolito e Impressão: Comunicação Impressa Tiragem: 1.000 exemplares Circulação dirigida e distribuição gratuita Apoio: KZE/MISEREOR

DE OLHO NA CIDADE

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Banco de Dados apresentará violações de direitos humanos, criação de atos de exceção e conflitos urbanos

Banco de Dados Megaeventos: acontecimentos públicos ligados à Copa e às Olimpíadas

Com o objetivo de mapear os acontecimentos públicos ligados à Copa FIFA 2014 e às Olimpíadas 2016, a ONG CIDADE está colaborando no projeto Banco de Dados Me-gaeventos e Direitos Huma-nos no Brasil, numa parceria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto de Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), subsidiando o projeto com dados e notícias de Porto Alegre a partir de 2013.

O projeto coleta, sistema-tiza e armazena informações das 12 cidades-sede da Copa em um Banco de Dados que

deverá abranger os anos de 2013 a 2018. A plataforma de pesquisa é formada por seis módulos interligados e permite o cruzamento de in-formações entre eles, o que contribuirá com pesquisas futuras. Os seis módulos que formam a plataforma são: eventos relacionados aos Megaeventos; projetos e obras; violações de direitos humanos; conflitos urbanos; atos de exceção; relação de entidades e pessoas físicas ligadas de forma relevante aos megaeventos.

O Cidade alimenta a pla-taforma através de notícias

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Parceria do Cidade com a UFRGS

O Cidade firmou, recentemente, parceria com a Univer-

sidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), de Apoio

Técnico à Rede de Comunidades Autogestionárias, através

da vinculação da Ação de Extensão, coordenada pelo pro-

fessor João Farias Rovati, da Faculdade de Arquitetura, ao

projeto da Rede de Comunidades Autogestionárias, do qual

o Cidade faz parte.

A ação tem dois objetivos principais:

Aproximar o trabalho da Rede de Comunidades Autoges-

tionárias do meio acadêmico, trazendo para dentro da Uni-

versidade a reflexão e o estudo sobre esta inovadora prática

de promoção de comunidades autogeridas que trabalha com

atores, territórios e políticas reais, o que tem grande potencial

de qualificação da extensão universitária;

Aproximar o meio acadêmico da Rede de Comunidades

Autogestionárias, construindo a Rede com maior embasa-

mento teórico, qualificando seu desenvolvimento a partir

do saber acadêmico.

Desde junho deste ano, a Rede passa a ser assistida por um

grupo de extensão coordenado pelo prof. João Rovati e por dois

bolsistas de graduação do curso de Arquitetura e Urbanismo.

Os resultados da parceria já são visíveis, desde seminários or-

ganizados dentro do âmbito da Rede até eventos acadêmicos

vinculados à temática da autogestão em fase de planejamento.

Através da extensão universitária, a UFRGS vem cumprir

seu papel junto à sociedade, proporcionando a construção de

conhecimento junto aos movimentos sociais, comunidades

e entidades da sociedade civil, estendendo seu campo de

atuação àqueles que não fazem parte do âmbito acadêmico.

O que é a Extensão Universitária

A Extensão faz parte do tripé universitário junto do Ensino

e da Pesquisa. Enquanto o Ensino se ocupa da formação de

novos quadros de profissionais que satisfaçam as necessida-

des da sociedade, e a Pesquisa se ocupa da busca de soluções

e inovações dentro dos campos de conhecimento que a

Universidade abrange, a Extensão é o braço que conecta o

Ensino e a Pesquisa diretamente à sociedade. A Extensão tem

duplo papel, o de disseminar o conhecimento acadêmico

entre comunidades, entidades e sociedade civil e também

o de aproximar a realidade desta sociedade aos estudos

acadêmicos desenvolvidos na Universidade.

Drops

da mídia oficial e da mídia alternativa de Porto Alegre, sobre os temas do Banco de Dados, enfocando três as-suntos: violações de direitos humanos, criação de atos de exceção e conflitos urbanos. Também estão sendo ma-peados os projetos e obras relacionados aos assuntos enfocados e seus atores.

A instituição conta tam-bém com a colaboração de dois bolsistas da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUC/RS) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), para a execu-ção do trabalho.

Conheça e faça sua pesquisa em http://www.bancomegaeventos.ippur.ufrj.br/