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LOLITA PILLE Autora de HELL Paris 75016 CIDADE DA PENUMBRA

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Material promocional. © 2008 Éditions Grasset & Fasquelle (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010) Todos os direitos reservados

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LOLITA PILLEAutora de HELL Paris 75016

Nesta sátira a uma sociedade utópicabaseada na premissa da felicidade obri-gatória, em uma atmosfera de policialnoir, a autora faz referências a pesos--pesados da ficção científica, comoGeorge Orwell; Aldous Huxley; WilliamGibson, o fundador do cyberpunk, ePhilip K. Dick, autor de Do AndroidsDream of Electric Sheep?, o livro queinspirou o filme Blade Runner. Cidadeda penumbra é um retrato muito bem--acabado do consumismo e do endivida-mento bancário, do uso indiscriminadode remédios e drogas e da ditadura dafelicidade a qualquer preço. Ao lidarcom esses temas que já assombram opresente, Lolita Pille cria polêmica eaborda o totalitarismo, o racismo, adesinformação, a vigilância big brother,as cibertecnologias e assim, mais umavez, desafia convenções.

Lolita Pille, escritora francesa nascidaem 1982, em Sèvres, formada em litera-tura, é autora de Hell Paris 75016, quechegou às listas de best-sellers no Brasil,e de Bubble Gum, ambos publicadospela Intrínseca.

Bem-vindo à cidade da penumbra! Todos têm direito à Beleza, à

Juventude, ao Conforto Mínimo. Syd Paradyne, tira da série B, barba

de dois dias, alcoólatra, investiga o suicídio de um obeso. O sol não

aparece há muito, muito tempo. A corrupção reina. Aparece uma

garota linda e estigmatizada. Blue tem os olhos azul-metálicos e

segredos inconfessáveis: é uma possibilidade de amor em um mundo

sem esperanças.L

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Em um futuro próximo, sob uma espes-sa camada de nuvens e bruma, vivem os habitantes de Clair-Monde, a cidadeideal em que, para o bem de cada indiví-duo, tudo o que pode ser prejudicial é proibido: os implantes bancários sub-cutâneos controlam os gastos, uma brigada antissuicídios fiscaliza as crisesdepressivas, a compatibilidade sexual é exibida em uma tela-rastreador portá-til, as drogas são vendidas livremente,todos têm direito à cirurgia estética e à juventude quase eterna.

Se não se deseja mais ser feliz, agorahá escolha: viver nos confins da cidade,entre mortos-bancários, drogados, obe-sos, malucos. “Com a Clair-Monde, afelicidade não é mais uma utopia.”

Mas nessa cidade perfeita tambémvive Syd Paradine, um tira cabeça-dura,que está se divorciando e se recusa aseguir as regras da felicidade compulsó-ria, decretada pelo Serviço de Proteçãocontra Si Mesmo, o SPSM. Então, duran-te a investigação do suicídio de um obeso– uma dupla aberração nesse universopadronizado –, Syd percebe que fraudese traições também têm lugar em Clair--Monde, onde o sol jamais brilha.

Tendo como parceira uma estranha ebela criatura chamada Blue, Syd estádecidido a questionar o que é consenso,a resolver o mistério e a salvar a própriapele em meio a um caos apocalíptico.

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LOLITA PILLECIDADE DA PENUMBRATradução de JULIO BANDEIRA

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Copyright © Éditions Grasset & Fasquelle, 2008

T Í T U L O O R I G I NA L

Crépuscule Ville

CA PA E P R O J E TO G R Á F I C O

Victor Burton

D I AG R A M A Ç Ã O

ô de casa

P R E PA R A Ç Ã O

Anna Lee

R E V I S Ã O

Mariana ArcuriTaís Monteiro

C I P-B R A S I L CATA L O G A Ç Ã O-NA-F O N T E

S I N D I CATO NAC I O NA L D O S E D I TO R E S D E L I V R O S. R J

P686c Pille, Lolita

Cidade da penumbra / Lolita Pille ; tradução Julio Bandeira. - Rio de Janeiro : Intrínseca, 2010. 304p. Tradução de: Crépuscule VilleISBN 978-85-98078-96-0 1. Romance francês. I. Bandeira, Julio. II. Título.

10-3317. CDD: 843

CDU: 821.133.1-3

2010 / Todos os direitos desta edição reservados à

Editora Intrínseca Ltda.Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar22451-041 | Gávea | Rio de Janeiro | RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

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Para meu pai

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“Sempre que o gosto amargo do fastio começa a tomar conta de mi-nha boca; sempre que há um novembro úmido e chuvoso em minha alma; sempre que me vejo parar involuntariamente diante das fune-rárias e ir atrás de todos os enterros que posso, e, sobretudo, quando me sinto tão por baixo, que se faz necessário todo um esforço moral para me impedir de sair intencionalmente à rua e derrubar sistema-ticamente o chapéu das pessoas — sei, então, que é chegada a hora de partir o mais rápido possível para o mar. Este é o meu substituto para o cano de um revólver.”

HERMAN MELVILLE, MOBY DICK

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PRIMEIRA PARTEO GRANDE APAGÃO

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Colin Parker desistiu no fi m daquela noite fria de 21 de janeiro. Ele não se lembrava mais da data exata. Mas achava que isso acon-tecera em 21 de janeiro porque a televisão estava o tempo todo mencionando o primeiro aniversário da Guerra Narcótica. Ele se lembrava disso: das entrevistas dos veteranos intercaladas por gravações de campo que arfavam debaixo da trajetória das balas. A noite toda, o pipocar das metralhadoras misturava-se com o da chuva, enquanto ele ia e vinha em seu apartamento, com todos os sentidos agitados tal como um animal enjaulado. Uma atmosfera febril, que geralmente antecede as grandes despedidas, reinou até o amanhecer. Mas Colin Parker não estava de partida. E nunca mais estaria, até sua última viagem.

Ele morria sufocado. Já era surpreendente que houvesse so-brevivido até então. Colin Parker recebera o milagre da morte lenta. Um tubo digestivo em liberdade condicional, que hesitava em desistir e antecipar sua longa agonia vegetal. Às vezes, entre dois porres, era tomado por um acesso de desesperança e pen-sava estar morto. E, se ele já estivesse morto, jamais iria morrer.

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A morte não era aquilo que a gente pensava. Não era um fi m. Era uma condenação à perenidade, uma ida sem volta para uma eternidade de torturas imóveis.

A partir do momento em que começou a perder o controle de seu corpo, cada vez se lembrava menos. Sua percepção alterada pelo abuso de psicotrópicos há muito tinha se livrado da incômo-da noção de tempo. Da mesma forma como não imaginava um fi m para seus tormentos, também era incapaz de presumir sua origem; e se, às vezes, lembranças confusas voltavam, parecia que pertenciam não a uma época passada, mas ao domínio do imaginário, como um lugar utópico, impossível, o qual visitara em sonho, onde tivera uma infância e mulheres, e cujo ar com-partilhara caminhando pelas ruas.

Para começar, seu corpo havia se desenvolvido de uma só vez. Seus membros estavam cobertos de carnes em excesso. Sua bar-riga fi cara pesada, atrasando seu passo, englobando em pouco tempo o peito e os quadris, e seu rosto adquiriu no espelho uma aparência infantil um pouco ridícula. Ele ocupava o espaço de uma maneira diferente. O menor movimento tornava-se penoso. Passava noites em claro, virando de um lado para o outro a fi m de escapar do desconforto que o privava do sono. Ele comprou soníferos. Suas forças arrefeciam. Ficava logo cansado e espera-va ainda mais impacientemente pela hora das refeições.

Depois disso, a forma como o olhavam não era mais a mesma. Sempre provocara indiferença, e isso o magoava. Agora, quem passava por ele o olhava com nojo. Isso o magoava ainda mais. Engolia litros de refrigerantes antidepressivos. Apesar dos repeti-dos avisos de seu Rastreador, cada dia comia mais. Naquela ines-quecível manhã de 21 de janeiro, ele conseguira entrar em apenas um de seus quatro ternos. Calça, colete e paletó cinza-perolado de mescla de lã e lycra. Seu trabalho exigia o uso do terno, e o cinza-perolado, apesar da ameaçadora tensão nas costuras da

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calça, que estava quase arrebentando, era a última esperança de Colin Parker. Às oito e meia, nos corredores do Transdistrital, uma multidão de colegiais de uniforme o azucrinou com as pri-meiras piadinhas do dia. Ele buscou refúgio no banheiro público e constatou, com certo alívio, que a costura havia resistido. Esse episódio, entretanto, serviu para que fi zesse uma ideia daquilo que o destino lhe reservava no caso de a costura estourar.

Chegou atrasado ao escritório, Torre Clair-Monde. A maioria dos colegas já estava às suas mesas. Sentiu os olhares cravados nele enquanto atravessava os espaços transformados em cam-po minado. O amor que dedicava ao seu trabalho lhe provocou um pouco de raiva. Redigiu cinco apresentações de produto para xampus que lavam a seco e cremes de beleza reparado-res. Os textos eram concisos e respeitavam as fi guras impostas, enriquecendo-as com um toque de humor totalmente pessoal. O comitê, sem dúvida, iria aprová-los do jeito que estavam. Colin Parker sentiu um orgulho que foi imediatamente estragado por um estalo no meio das pernas. Oito ou dez pontos, não mais que isso, tinham arrebentado, mas Colin Parker sentiu, daquele mo-mento em diante, que estava fodido. Era uma questão de segun-dos. Ao menor movimento brusco, ao menor suspiro, a costura estouraria debaixo dele e ele acabaria de cuecas, à mercê dos olhares. Então, a indiferença polida que reinava no departa-mento de comunicação dos cosméticos Clair Derm se tornaria um murmúrio de linchamento. Ele seria apontado, às gargalha-das. Tirariam fotos, que então circulariam de um Rastreador para outro, acompanhadas de legendas demolidoras. Talvez até lhe jogassem um grampeador na cara. Depois, as risadas aca-bariam sendo substituídas por um frio desprezo. Cansados da nova presa, trocariam elogios entre si por serem, comparados a ele, tão bem-dotados. Colin Parker esperou pelo fi nal do dia sem ousar respirar. Às sete da noite, seus colegas seguiram em bando

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para os elevadores. Só quando o departamento fi cou completa-mente deserto, ele se mandou com passos miúdos. Pegaria um táxi para voltar para casa.

Na calçada da Torre Clair-Monde, dois táxis recusaram-se a levá-lo. Ele insistiu com o motorista do segundo automóvel, amea çou dar queixa. O taxista se exaltou e respondeu que o carro dele não era um vagão de gado, arrancou subitamente e o que havia sobrado do terno cinza perolado fi cou todo lambuzado de lama. Colin Parker desistiu da ideia do táxi sem, contudo, pen-sar em se aventurar pelas ramifi cações do Transdistrital, repletas de gente. Decidiu voltar a pé. As ruas estavam escuras e ele tinha o hábito de andar colado aos muros. Quando chegou ao Texaco Boulevard, aconteceu o que mais temia. Com lycra ou sem lycra, as calças de Colin Parker acabaram com as costuras totalmente abertas. Faltavam ainda quinze minutos de caminhada até seu apartamento, na Torre Alegria. Ele sentia frio, estava com fome e tinha vontade de urinar. Estava sozinho, no meio da rua, metido em seu terno rasgado. Diante dele, um anúncio de jeans exibia, em todo o comprimento da fachada de um prédio, a silhueta esguia de um homem atlético. Parecia que o homem lhe dera uma piscadela vitoriosa e Colin Parker se escondeu num ponto de ônibus para chorar. De fato, aquele homem havia vencido. E ele, Colin Parker, tinha defi nitivamente perdido.

Ele chorou a noite toda. Quebrou os objetos que eram frágeis. Quebrou o espelho do banheiro batendo nele com o controle re-moto, soltando gritos estridentes. Bebeu quase um litro de desti-lado e o dobro de refrigerante antidepressivo. Lá pelas quatro da manhã, começou a pensar em acabar com sua vida. Procu-rou, em vão, por um meio indolor. Preferiu acabar com a vodca. Quando adormeceu, as lâmpadas halógenas dos postes já refl e-tiam a aurora através das persianas.

Ele sabia que não iria mais trabalhar.

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A cidade tratava bem seus prisioneiros. Colin Parker solicitou ajuda fi nanceira alegando “inaptidão crônica para o trabalho devido a uma deformidade categoria A”. Um médico foi visitá-lo e tentou lhe receitar uma reconstituição plástica. Ele recusou, era direito seu. O médico atestou a categoria para as autoridades competentes, que lhe concederam uma pequena pensão mensal. Uma soma sufi ciente para cobrir os gastos com alimentos e bebi-das, sua conexão com a internet, a TV a cabo e a eletricidade. Ele tinha um Rastreador graças ao qual podia fazer seus pedidos, um receptor isotérmico para encaminhar tais pedidos, um robô doméstico com oitenta e dois por cento de autonomia. Tinha um videotitã e acesso a três mil canais, cuja função holograma lhe permitia projetar seu alter ego escolhido em programas do gê-nero “aqui o herói é você”, uma função que ele esperava ansio-samente que fosse ativada para os canais pornográfi cos. Graças ao seu controle remoto universal, ele podia, sem sair da cama, direcionar a tela, modifi car o brilho, mexer as venezianas, per-seguir o robô.

O mundo exterior, por outro lado, não tinha mais nada para lhe oferecer, exceto alguns encontros infrutíferos com indivíduos que não pareciam ser seus semelhantes, uma vez que seus olha-res insistentes o lembravam penosamente de que fugia à regra.

Em casa, era ele quem determinava as regras. Sozinho, permanecia digno, desocupado, finalmente livre. Decidiu que iria descansar por um tempo. Trancou a porta e escondeu a chave. Na tela, o apresentador anunciou a enésima tentativa de purificação celeste, a morte suspeita de Lila Schuller, al-guns delitos dos mortos-bancários, o primeiro aniversário da Guerra Narcótica.

Estirou-se sobre a cama e pediu um contrafi lé de quatrocen-tos gramas com batata frita e molho béarnaise, duas pizzas de pimentão, uma omelete, uma porção de pato ao curry, um litro

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de sorvete de creme, um pacote de macarons, dois litros de refri-gerante Euphore Light sabor gengibre e quatro travesseiros, me-dindo sessenta e cinco por sessenta e cinco centímetros. No canal Luz das Estrelas, era anunciado um fi lme com Lila Schuller na matinê, seguido da retransmissão de sua necropsia.

Colin Parker suspirou de alegria, aumentou o volume ao mes-mo tempo que abençoava a Cidade e o Progresso que lhe esta-vam sendo fi nalmente oferecidos; ele estava pronto para come-çar a viver.

E viveu, segundo seus votos, mais de dez anos.Estendido toda a noite, todo o dia, os olhos chumbados na tela,

o controle remoto ao alcance da mão, ele comia. Ele comia o tempo todo, sem parar, sem prazer. Pouco importava se a comida estava quente ou fria, boa ou ruim, crua ou cozida, sólida, líqui-da, fresca, viva, vencida, nojenta. O que importava era o gesto mecânico da colher até as mandíbulas, as mandíbulas traba-lhando, o estômago em ação. Engolir o sufi ciente para enganar, na incapacidade de preencher, o vazio que crescia dentro de si. Para aplacar suas entranhas transformadas em Fúrias, que não paravam com suas exigências. Seu corpo o possuía, tornara-se escravo de seu aparelho digestivo. Logo, não havia nem dia, nem noite, nem tempo. O vício contumaz desfez os ciclos que punham ordem no tempo para recriar sua própria alternância de sacie-dade fugaz, de eterna frustração, até durante o sono, até mesmo no momento preciso em que era satisfeito. A fome o supliciava mesmo no instante em que estava comendo.

O primeiro ano foi tranquilo; o segundo, indiferente; o ter-ceiro, difícil. A partir do quarto ano, sua memória começou a fi car confusa, seu espírito, a enfraquecer. Ele continuava a en-gordar. Dormia sentado, com medo de sufocar durante as raras horas de sono. Sua solidão tornava-se cada vez menos susten-tável. As doses maciças de antidepressivos que ele se autoad mi-

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nistrava para suportar a si mesmo devastavam seu sistema nervoso. Tinha pesadelos, sonhava com fl uidos orgânicos pal-pitantes, com slogans publicitários hipnóticos, com aves de ra-pina que lhe arrancavam as vísceras. Ele se perdia numa inós-pita não zona, onde, enlouquecido pela privação, acabava por se autodevorar. Uma noite, sonhou que as carniças com que se alimentara haviam ressuscitado em seu ventre e estavam se de-batendo. Acordou sobressaltado, os punhos cerrados, o abdô-men moído pelos golpes que se autoinfl igira para eliminar os monstros imaginários.

Seus sonhos e os cardápios de suas refeições eram, essencial-mente, os acontecimentos que a partir daquele momento consti-tuíam sua existência. Se bem que, de maneira marginal, ele não escapava aos preceitos e era compelido a realizar todos os dias os onze minutos de confi ssão compulsória. De manhã e à noite, numa hora determinada, seu Rastreador tocava e a Voz lhe fa-zia a pergunta consagrada: “Estimado Assinante, como estás?” As respostas de Colin Parker variavam segundo as substâncias ativas. Às vezes, em plena viagem de refrigerante com ópio, Co-lin Parker começava a entoar uma canção brasileira que falava de insensatez. Algumas notas bastavam para se lembrar de sua mãe. Dela, restava quase nada. Apenas uma derradeira imagem com cores esmaecidas devido às evocações. A mãe voltava do bar, onde trabalhava, com a primeira claridade do amanhecer. Ela se sentava diante da casa, diante do mar, com uma garrafa e um copo. Colocava um disco e virava o som para o horizonte. Ela se embebedava até o meio-dia. Era sempre o mesmo disco, um ritmo de bossa nova infi nitamente triste. Então todos os litorais foram evacuados, a sombra encobriu a Cidade e a mãe partiu. E Colin Parker fi cou sozinho. A solidão de Colin Parker. Várias vezes, Co-lin Parker digitava por conta própria a tecla C de Confessionário e, horas a fi o, fi cava repetindo que estava só. Quando a chamada

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da Grande Central o pegava em plena crise ansiolítica, suas con-fi ssões se limitavam a enumerar as coisas que havia comido ou que pensava comer. Nesse estado, em que nada importava, Colin Parker se considerava quase feliz. Mas tais momentos de enlevo, à medida que seu corpo se habituava aos remédios, foram fi can-do cada vez mais raros. Ele aumentou as doses. Variou os tipos. Fez misturas. Toda vez que conseguia recuperar seu alívio, era sempre por um curto período, até que o refrigério desaparecesse de novo. Ele atingiu doses cujo preço, para qualquer um, seria a morte. Mas o efeito que tinham nele era o de uma leve sonolên-cia. Passou da codeína para os hipnógenos, dos hipnógenos para as benzodiazepinas, dos benzos aos antidepressivos, dos antide-pressivos aos psicofármacos. Dos psicofármacos para a heroína legal. Da heroína legal para os comprimidos de ópio.

Ficou no ópio.Foi tomado pela demência ao longo do quinto ano. Pode ser

que todas aquelas drogas o tivessem deixado maluco. Pode ser também que o mal estivesse adormecido nele há muito tempo e que a droga apenas o tivesse feito desabrochar. Tinha dias que Colin Parker estava convencido de que um parasi-ta havia tomado conta de seu corpo. Em várias ocasiões, ele o descrevera durante a confissão como uma “besta de pesa-delo, um animal infame com o apetite de um barril furado e dentes longos como facas”. Colin Parker acreditava que esse parasita tinha a intenção de implodi-lo. Apesar de sua força extraordinária, o animal tinha um calcanhar de Aquiles que Colin Parker achava possível explorar para vencê-lo. A besta era alérgica a vinagre. Mesmo seu assistente social tendo ga-rantido que seu organismo certamente não abrigava nenhum animal desse tipo, Colin Parker começou a beber dois litros de vinagre por dia. Disso resultaram terríveis dores gástricas que o convenceram da ineficácia de sua estratégia defensiva.

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As dores de barriga eram, é claro, um golpe do parasita. Colin Parker resolveu partir direto para a amputação.

Foi na manhã do dia 26 de maio que começou a rasgar suas carnes. Devido à infl uência dos opiáceos, só sentiu a dor vinte e cinco minutos depois. Tivera tempo de realizar, no próprio corpo, um orifício de alguns centímetros de profundidade. Des-maiou quando viu o sangue, um sangue borbulhante de um ver-melho-lava. Ele permaneceu em coma por seis dias inteiros.

Acordou sôfrego, com as ideias clarifi cadas pela sangria e com um apetite de ogro. Estavam reunidas as condições propí-cias para a remissão.

E, fi nalmente, foi a televisão que o salvou.Durante cinco anos, Colin Parker nunca havia parado de en-

gordar. Agora, parecia feito de um só bloco. Mesmo que acredi-tasse, a cada quilo que ganhava, ter atingido seu limite — aque-le que não poderia alcançar sem que explodisse —, seu corpo parecia capaz de dilatar-se ao infi nito. Sua pele fi cara azulada. Suas veias incharam por baixo da pele. Ele tinha escaras. Estava fi cando cada vez mais fraco, caía em ruína, seu coração batia em rendição e seus membros chumbados recusavam-se ao me-nor movimento, mas nada disso tinha importância, uma vez que a tela da TV estava lhe restituindo tudo. Na penumbra do cômo-do, com as venezianas fechadas, em seu abandono, em sua negra solidão, a tela da TV lhe havia oferecido a luz. E ele corria sem fôlego pelas margens dos oceanos que lhe tinham sido proibidos, enfi ando os pés até o tornozelo no calor da areia, redescobrindo suas pernas. Era capaz até de voar cortando o ar, os olhos fe-chados, ébrio do vento que lhe fustigava a fronte, até o coração das nuvens em um céu alumbrado. Ele que havia sofrido, numa vida inteira de misérias, os ultrajes dos outros sem ousar respon-der-lhes, calava agora suas bocas com socos e mordidas, fazendo seu sangue jorrar até que eles gritassem por piedade. Em segui-

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da, mudava de programa e reencontrava suas mulheres, belas como lembranças retifi cadas, todas aquelas que o rejeitaram e aquelas que ele inventava, para depois transar com uma após a outra, sem brochar; e nunca havia imaginado que as mulheres pudessem berrar daquele jeito.

Ele era um justiceiro, um herói, um super-homem, o bonzão, estava mais vivo do que nunca em forma de pixels em movimen-to na tela redentora, a tela-espelho que lhe devolvia o rosto que ele sabia rejuvenescido, remodelado, virgem de todas as dores, belo como o cartaz de publicidade 3x 3 no muro em frente. E os olhos abertos do verdadeiro Colin Parker perscrutavam as pro-fundezas do espelho encantado, piscando incrédulos, diante do espetáculo lastimável de um homem enorme e feio, visível em ângulo morto no outro lado do cômodo.

Por fi m, na noite do Grande Apagão, quando Colin Parker se deu à morte, ele estava justamente começando a melhorar.

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Nesta sátira a uma sociedade utópicabaseada na premissa da felicidade obri-gatória, em uma atmosfera de policialnoir, a autora faz referências a pesos--pesados da ficção científica, comoGeorge Orwell; Aldous Huxley; WilliamGibson, o fundador do cyberpunk, ePhilip K. Dick, autor de Do AndroidsDream of Electric Sheep?, o livro queinspirou o filme Blade Runner. Cidadeda penumbra é um retrato muito bem--acabado do consumismo e do endivida-mento bancário, do uso indiscriminadode remédios e drogas e da ditadura dafelicidade a qualquer preço. Ao lidarcom esses temas que já assombram opresente, Lolita Pille cria polêmica eaborda o totalitarismo, o racismo, adesinformação, a vigilância big brother,as cibertecnologias e assim, mais umavez, desafia convenções.

Lolita Pille, escritora francesa nascidaem 1982, em Sèvres, formada em litera-tura, é autora de Hell Paris 75016, quechegou às listas de best-sellers no Brasil,e de Bubble Gum, ambos publicadospela Intrínseca.

Bem-vindo à cidade da penumbra! Todos têm direito à Beleza, à

Juventude, ao Conforto Mínimo. Syd Paradyne, tira da série B, barba

de dois dias, alcoólatra, investiga o suicídio de um obeso. O sol não

aparece há muito, muito tempo. A corrupção reina. Aparece uma

garota linda e estigmatizada. Blue tem os olhos azul-metálicos e

segredos inconfessáveis: é uma possibilidade de amor em um mundo

sem esperanças.

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Em um futuro próximo, sob uma espes-sa camada de nuvens e bruma, vivem os habitantes de Clair-Monde, a cidadeideal em que, para o bem de cada indiví-duo, tudo o que pode ser prejudicial é proibido: os implantes bancários sub-cutâneos controlam os gastos, uma brigada antissuicídios fiscaliza as crisesdepressivas, a compatibilidade sexual é exibida em uma tela-rastreador portá-til, as drogas são vendidas livremente,todos têm direito à cirurgia estética e à juventude quase eterna.

Se não se deseja mais ser feliz, agorahá escolha: viver nos confins da cidade,entre mortos-bancários, drogados, obe-sos, malucos. “Com a Clair-Monde, afelicidade não é mais uma utopia.”

Mas nessa cidade perfeita tambémvive Syd Paradine, um tira cabeça-dura,que está se divorciando e se recusa aseguir as regras da felicidade compulsó-ria, decretada pelo Serviço de Proteçãocontra Si Mesmo, o SPSM. Então, duran-te a investigação do suicídio de um obeso– uma dupla aberração nesse universopadronizado –, Syd percebe que fraudese traições também têm lugar em Clair--Monde, onde o sol jamais brilha.

Tendo como parceira uma estranha ebela criatura chamada Blue, Syd estádecidido a questionar o que é consenso,a resolver o mistério e a salvar a própriapele em meio a um caos apocalíptico.

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