cidadania como construcao de vida digna

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CIDADANIA COMO

CONSTRUÇÃO DE UMA

VIDA DIGNA

Palestra proferida para a o público em geral em 28 de setembro de 2011 na Câmara Municipal de Rosário do Sul por Ovídio Mendes, Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

O evento foi promovido pelo Partido da República de Rosário do Sul como entendimento de que, entre os fundamentos da existência de qualquer agremiação política, encontra-se o livre debate de ideias no âmbito das questões que tornam possíveis a existência de sociedades pluralistas e democráticas.

O conteúdo deste livro pode ser reproduzido e distribuído livremente em conformidade com o regulamento “Creative Commons” que estabelece, entre outros itens, a não utilização comercial e a citação do autor e promotores do evento que originaram este livro.

Introdução

A cidadania é um conceito complexo cuja concretização depende de conjunturas sociais definidas. Essas conjunturas, quando abrangem longos períodos de tempo, moldam maneiras particulares de percepção do mundo e da realidade social e são comumente classificadas como personalidades psicológicas das pessoas. Nesse sentido, procurarei aproximar o máximo possível meu discurso para a realidade social brasileira que encontra ressonância na realidade rosariense. Por isso é importante enfatizar, as críticas sociais emitidas no decurso deste encontro não se dirigem especificamente contra qualquer instituição ou pessoas em particular, compondo tão somente um cenário no qual ideias e propostas possam ser situadas. Pessoalmente, não tenho nenhum tipo de compromisso partidário, sendo meus interesses única e exclusivamente de natureza acadêmica.

Rosário do Sul, setembro/ 2011

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Comemoração popular no bairro das Areias Brancas – Rosário do Sul – data: 25/09/2011

Examinemos como determinada conjuntura social molda o caráter de uma pessoa.

Desde a mais tenra idade somos ensinados a pensarmos sobre o tipo de pessoas que almejamos ser quando atingirmos a idade adulta. Mais do que uma simples questão sobre nossa futura personalidade, tal questão envolve uma idealização sobre nosso futuro papel social. Assim, uma criança sonha em ser bombeiro, médico, juiz ou atleta profissional.

O aspecto da idealização que não se revela a uma análise superficial é que ela é dependente do ambiente social em que a criança vive. Por ambiente social se

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entende o conjunto de hábitos e ações que as pessoas exibem no convívio diário e que, na maioria, das vezes, não são identificadas individualmente. O gosto por determinado tipo de alimento, a forma como os mais velhos são vistos, as maneiras de relacionamentos familiares, o modo como se supõe dever ser garantida segurança pública, assim como as demais atividades corriqueiras, formam determinado padrão social de existência extremamente poderosa na formação psicológica da criança. È esse padrão social que servirá de referência na vida adulta e que influirá de forma decisiva na visão de mundo desse adulto e no seu modo de escolha de preferências dentre várias possibilidades.

Se o ambiente da criança, formado pelas condições de bem-estar material de sua família for economicamente pobre, sua visão necessariamente estará impregnada por elementos que revelam tal condição. Talvez a idealização de sua futura profissão se reflita em atividade que requeira menor tempo de educação formal por que, provavelmente, é nesse grupo de atividade profissional que seus familiares se envolvem. Do mesmo modo, em ambiente em que predomine confortável nível de bem-estar econômico este influirá seus membros a optarem por atividades em que o padrão de vida material seja mantido. Tal fenômeno de denomina, em estudos sociológicos, reprodução material das condições de vida.

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Crianças em disputa de torneio de futebol entre comunidades de Rosário do Sul – data: 25/09/2011

Outro aspecto que escapa da análise superficial da idealização oferecida pela criança é que seus elementos se situam no plano do individual, do particular, do privado. Dizem respeito ao papel que o indivíduo desempenha no plano social, papel esse já estabelecido no universo da criança. Inconscientemente, o que a criança propõe é a reprodução do status quo social, ou manutenção do padrão social de relacionamentos predominante e que, em sociedades de cunho predominantemente tradicional e de raízes coloniais, como a nossa, está baseado na hierarquia entre as pessoas do tipo patrão subordinado, rico pobre, poderoso fraco, capaz incapaz.

Pode-se argumentar, e de forma bastante

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razoável, que essa é a ordem natural presente na sociedade brasileira. Novamente, sob a ótica de uma análise superficial, o argumento parece ser confirmado pela experiência cotidiana. Mas, então, cabe a pergunta: por que julgamos essa forma de proceder como “natural”?

A resposta envolve considerável parcela de conhecimento histórico. Politicamente, e apenas para abrangermos a condição brasileira de nação independente, engloba o período imperial e a articulação de uma estratégia capaz de estabelecer a paz entre as províncias de então e plantar as bases de um desenvolvimento econômico sistemático. Não nos esqueçamos que a Revolução Farroupilha data dessa época, iniciada em 20 de setembro de 1835 e finda em 1º de março de 1845.

Pois bem, foi com Paulino José Soares de Souza, Visconde do Uruguai, no denominado Período Saquarema, em meados do século XIX e, portanto, após o término de todas as guerras das Províncias contra o Governo Central, que o Brasil atingiu a estabilidade social requerida pelo desenvolvimento econômico.

E qual a relação desse período com a questão proposta no início desta palestra, de que é “natural” a visão de manutenção de uma dada estrutura social ao longo do tempo? Ora, foi o Visconde de Uruguai o formulador de uma concepção de cidadania que considerava a população brasileira da época como incapaz de identificar corretamente seus verdadeiros interesses. Para Paulino José Soares de Souza, o brasileiro comum não desenvolvera a capacidade de julgar a coisa pública como algo seu e, por isso,

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subordinava seus interesses aos interesses dos grandes proprietários de então. Para Uruguai, o Estado deveria assumir a tarefa de educar a população para a cidadania, tutelando seus interesses até que essa educação estivesse completa. Infelizmente, a noção de Uruguai criou raízes na formação social brasileira, como o demonstram práticas de natureza meramente assistencialista presente nos dias de hoje em nosso ambiente político. Parece que a educação da população brasileira para a cidadania ainda não se concretizou plenamente.

Mas não somente Uruguai via o povo brasileiro sob um prisma negativo. Oliveira Vianna, um dos mais brilhantes pensadores brasileiros da primeira metade do século XX e adepto do governo de Getúlio Vargas, escreveu sobre o cidadão de seu tempo, alinhando-se com o pensamento de Uruguai:

“Espírito público nunca existiu no Brasil. Entre nós, a vida política foi sempre preocupação e obra de uma minoria diminuta, de volume pequeníssimo em relação à massa da população. O grosso do povo, levado às urnas apenas pela pressão dos caudilhos territoriais, nunca teve espírito político, nem consciência alguma do papel que estava representando. No Brasil, (...), não existe povo no sentido político da expressão. E um espírito irreverente exprimiu uma vez este mesmo pensamento dizendo que aqui "povo é uma reunião de homens, como porcada é uma reunião de porcos".

O que falta nos escritos de Oliveira Vianna é que Uruguai reforçou e legitimou, ainda que esse não fosse seu objetivo, a apatia e a indiferença do cidadão ao bem público, já que seus interesses estavam tutelados pelo

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Estado.

Por outro lado, a visão de Uruguai se ajusta com perfeição aos ideais da Revolução Francesa de 1789 sobre o ponto de vista do Estado. Pois foi esta que estabeleceu a cidadania como a característica de o sujeito nascer sob a jurisdição territorial de determinado estado nacional. Daí o conceito de soberania nacional. Mas a revolução francesa não definiu o estado nacional apenas pelo espaço territorial e pela possibilidade desse estado em impor sua vontade por intermédio da força. Complementou a definição do Estado como composto pelos habitantes naturais de seu espaço territorial que lhe deviam certas obrigações, como a não-traição da pátria frentes aos estados estrangeiros. Em troca, uma série de direitos lhes foram garantidos, entre eles o status de cidadão. Observem que, na visão de Uruguai, os brasileiros alcançados pelo status de cidadão, embora não compreendam o pleno alcance do conceito expresso na palavra, dispõem da proteção estatal, concebida como direito contra a dominação política, até que sejam educados na cidadania. Este posicionamento da necessidade da educação para a cidadania não era estranho ao ambiente francês dos anos pré-revolucionários de 1789: basta ler “Emílio ou Da Educação”, do filósofo político Jean-Jacques Rousseau.

Esta visão de cidadania estimula uma forma definida de relacionamento social, qual seja o relacionamento sujeito-Estado. O cidadão é concebido como o sujeito passivo detentor de direitos exigíveis a qualquer momento contra o Estado, devendo este satisfazê-los na maior medida possível. Basta ler nossa Constituição Federal de 1988, onde praticamente todos os setores da vida social estão caracterizados sob a

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forma de direitos, como direito à saúde, direito à educação, direito à moradia e assim por diante. Em certo sentido, “naturalizamos” as teses de Uruguai e as praticamos de forma extremada, fazendo dela a concepção de cidadania predominante ainda hoje no Brasil.

Por ser formal e abstrata, a concepção de cidadania focada na relação sujeito-Estado apresenta-se fragmentada, dividindo-se em três vertentes: política, civil e social. A cidadania social, representada em direitos, é a predominante no Brasil e,como já exposto antes, inicia-se com Uruguai e sua visão de tutela dos direitos dos cidadãos por parte do Estado. Contemporaneamente, encontra sua expressão na Constituição Federal de 1988.A cidadania sob ponto de vista político está reduzida à obrigatoriedade do voto, já que inexiste entre nós a tradição de acompanhamento e controle das atividades dos representantes eleitos pelo voto popular. Não raro, a atividade representativa é encarada por muitos representantes democraticamente eleitos, já que baseada no princípio de um cidadão um voto, como oportunidade de conquista de atividade econômica altamente lucrativa e segura, já que os rendimentos de vereadores, deputados e senadores são rendimentos que nada ficam a dever aos seus pares do primeiro mundo, como Estados Unidos, Canadá e Europa. Por não haver acompanhamento das atividades legislativas pelos cidadãos em geral, os detentores da prerrogativa da representação pública agem como verdadeiros “donos do poder”. Fingem ignorar que seus rendimentos são oriundos dos impostos pagos por todos os contribuintes brasileiros, enquanto estes ignoram que, ao não fiscalizarem as ações públicas de seus eleitos, pagam de forma concreta por direitos de que são investidos de

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forma genérica e abstrata. Se alguém duvida de tal fato, verifique, por exemplo, a taxação do imposto de renda a que está submetido quando exerce qualquer atividade econômica de modo não informal. Simultaneamente, tente tornar concreto seu direito de acesso à saúde. Provavelmente, deverá recorrer ao Judiciário e arcar com despesas advocatícias.

A cidadania sob enfoque cívico é praticamente desconhecida entre nós, ofuscada pela cidadania sob forma de direitos sociais. Talvez a explicação para esse desconhecimento possa ser sugerida por uma passagem do livro “O medo à liberdade”, do psiquiatra alemão Erich Fromm, e reforçada pelo passado brasileiro de tutela estatal:

“A fuga da decisão e responsabilidade pessoal é a solução que a maioria dos indivíduos normais [em oposição aos neuróticos] encontra na sociedade moderna. (...) o indivíduo cessa de ser ele mesmo; adota inteiramente o tipo de personalidade que lhe é oferecido pelos padrões culturais e, por conseguinte, torna-se exatamente como todos os demais são e como estes esperam que ele seja. A discrepância entre o eu e o mundo desaparece e, com ela, o temor consciente à solidão e à impotência. Esse mecanismo pode ser comparado ao mimetismo adotado por certos animais para se defenderem: ficam tão parecidos com o meio que os cerca que dificilmente podem ser distinguidos deste. A pessoa que desiste de seu ego individual e converte-se em autômato, idêntico a milhões de outros autômatos em torno dela, não mais precisa sentir-se sozinha nem angustiada. O preço que ela paga, porém, é alto: é a perda de sua individualidade [que,no fim,é sua própria liberdade de agir e transformar o mundo ao seu redor]”

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Esgoto a céu aberto – problema recorrente em Rosário do Sul – data: 25/09/2011

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Rosário do sul é uma cidade rica em exemplos perversos da cidadania social quando extremada em sua prática como acontece no Brasil e que, de certo momento, se situam no contexto dos argumentos de Uruguai, Oliveira Vianna e Erich Fromm até agora citados. Entretanto, tal fato não pode ser imputado exclusivamente aos seus habitantes por que refletem a realidade social do Brasil como um todo. Exemplo eloqüente encontra-se na indagação presente no cartaz que divulga a presente palestra: “Como é possível que crianças, que representam o futuro do Brasil, busquem a satisfação de suas necessidades no lixão público?”. Mas a pergunta poderia ser formulada de modo direto ao nosso próprio conjunto de valores do certo e do errado: “Como não ficamos perplexos quando presenciamos a miséria da vida material de nossos conterrâneos?”

Estrada de acesso à ponte sobre o rio Ibicuí da Armada e por onde é escoada parte da produção agrícola da cidade – data: 25/09/2011

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Além do aspecto político que, como já destacado, nos mostra como fomos induzidos em determinada conformação social, outra aproximação de uma resposta possível encontra-se na literatura crítica brasileira. Destaco aqui um trecho do livro de Machado de Assis, “Memórias póstumas de Brás Cubas”, situado no capítulo 11 e intitulado “O menino é o pai do homem”. Antes, porém, reforço o título desse capítulo, ”O menino é pai do homem”. Ele se alinha de modo exemplar ao argumento antes defendido no início desta palestra de que as práticas sociais presentes quando da infância de uma pessoa moldam de forma profunda sua personalidade de adulto.

“Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”: e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos de meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza no tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe no dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quanto muito, um – “ai, nhonhô!” - ao que eu retorquia – “Cala a boca, besta!”.

As crianças que procuram no lixo a satisfação de suas necessidades, silenciosas, nada mais são do que

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Prudêncio, o moleque que Quincas Borba, ou a Sociedade brasileira contemporânea, fustigam com o chicote da miséria material, e gritam imersos na fartura do bem-estar econômico: “comam nossos restos, suas bestas!”.

Mas talvez algumas pessoas argumentem que Quincas Borba é tão somente uma obra literária isolada e incapaz de representar o pensamento social brasileiro.

Pois bem, leiam, então, “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”, de Mário de Andrada, publicado em 1928 (o livro de Machado de Assis foi publicado em 1892). Macunaíma é um personagem voltado exclusivamente para satisfação de suas necessidades, sem nenhum tipo de comprometimento com as conseqüências de seus atos. Portanto, um sujeito de índole individualista, amoral e irresponsável, cujo objeto de vida é a satisfação de prazeres volúveis. Crianças que buscam a satisfação de necessidades no lixo provavelmente mereceriam do personagem a seguinte exclamação: “Ainda bem que dispõem do lixo para procurarem o que precisam! Pior se nem do lixo dispusessem.”.

Lembremos que ambas as obras são clássicos da literatura social brasileira e, de alguma forma, foram escritos na forma de críticas a determinados comportamentos de suas épocas que, não necessariamente, deixaram de existir.

Uma segunda resposta à pergunta “Como é possível que crianças, que representam o futuro do Brasil, busquem a satisfação de suas necessidades no lixão público” encontra-se arraigada na visão de

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cidadania enquanto direitos sociais. Por ser uma relação sujeito-Estado, lutamos pela concretização de nossos direitos frente aos órgãos públicos e deles exigimos satisfações. A lógica presente em tais comportamentos é simples: cada um que lute por seus direitos. Se crianças buscam alimentação no lixo, que busquem auxílio junto a Prefeitura ou algum outro instituto público, como, por exemplo, a bolsa família. Assim agindo, fechamos os olhos aos problemas sociais e os configuramos como não pertencentes aos nossos interesses. No fundo, reproduzimos o pensamento de Uruguai contemporizado: se o povo não tem educação cívica e portanto, é cidadão de segunda categoria, a culpa é do Estado que não o educou adequadamente. Então, que exija desse Estado o atendimento de suas necessidades!

Rua do bairro Centenário em Rosário do Sul – data: 25/09/2011

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Se o exemplo de crianças socialmente desprotegidas não for suficiente, podemos tomar outro, também colhido diretamente da realidade rosariense. Tomemos os exemplos de três comunidades geograficamente bastantes próximas e situemos como parâmetros de comparações áreas das proximidades de seus respectivos centros comunitários. São as comunidades do bairro Centenário, bairro COHAB e bairro Adroaldo Rodrigues e Prates.

Bastantes próximos fisicamente, em termos de condições de bem-estar material, estes bairros situam-se quilômetros de distâncias entre si.

Esgoto corre em rua do bairro Centenário em Rosário do Sul – data 25/09/2011

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O Centro Comunitário do bairro Centenário é uma construção em ruínas, ruas desprovidas de qualquer tipo de infraestrutura que se transformam em lodaçais em épocas de chuvas e esgoto que corre a céu aberto. Tal não se percebe nas redondezas dos outros dois centros comunitários. Pelo contrário, são construções que demonstram pleno funcionamento. Coincidência ou não, as casas próximas de tais instituições demonstram maior poder aquisitivo de seus moradores em relação ao bairro Centenário.

Sob ponto de vista constitucional, tal fenômeno constitui flagrante violação do art. 1°, inciso III, combinado com os artigos 3°, inciso IV, e art. 23, inciso IX, todos da Constituição Federal de 1988. Em conjunto, esses dispositivos legais garantem a dignidade da pessoa humana e a igualdade no bem estar de todos, vedando expressamente qualquer forma de discriminação, além de incluírem os municípios como agentes aptos e capazes de cumprirem o mandamento constitucional.

Novamente, podemos repetir a pergunta anterior devidamente contextualizada: “Como é possível que pessoas, que representam o presente do Brasil, não tenham suas necessidades básicas de habitação digna atendidas?”

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Instalações do “Centro Comunitário” do bairro Centenário em Rosário do Sul – data: 25/09/2011

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Centro Comunitário da COHAB em Rosário do Sul – data: 25/09/2011

Centro Comunitário do bairro Adroaldo Rodrigues e Prates – data 25/09/2011

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A resposta também pode ser análoga à anterior, desde que contextualizada: a cidadania social está fundada na visão individualista do sujeito reivindicando seus direitos frente ao Estado. Nesse contexto, sujeitos com condições econômicas melhores podem exercer, em melhores condições, pressões por atendimento de seus direitos. Ironicamente, se reproduzimos a visão de Uruguai sobre a incapacidade da população em compreender o significado do conceito de cidadania, também reproduzimos a razão pelo qual pensava dessa forma: os órgãos públicos atendem mais prontamente os direitos daqueles que julga, politicamente, mais adequado atender. Teoricamente, cidadãos com melhores padrões econômicos possuem maior poder de influência social do que cidadãos mais pobres e, portanto, são atendidos preferencialmente. Juridicamente iguais, em razão de preceito da Constituição Federal de 1988, art. 5º, economicamente as pessoas não possuem a mesma capacidade de reivindicação de direitos. Daí a afirmação pertinente de que a grande falha da cidadania social é o incentivo à configuração de cidadãos amorais e apolíticos – abismos de bem-estar sociais são concebidos como procedimentos naturais e apagados das consciências que deveriam nortear as atuações políticas sob ótica da cidadania.

Por predominar a versão do cidadão amoral e apolítico, não se percebem as consequências das clivagens sociais tornadas possíveis pela cidadania social. Ao criarem-se polos de exclusão social pelo baixo padrão de bem-estar material criam-se as condições das futuras tensões sociais. Excluídas dos benefícios do progresso material, parece razoável o argumento de que a revolta e o ódio social disseminem-se com relativa facilidade, principalmente, entre os jovens dessas

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comunidades. Entre a exclusão e a busca de solução na criminalidade o percurso é menos longo do que na luta contra o preconceito e a ascensão social. São recentes os exemplos do Comando Vermelho no Rio de Janeiro e o Primeiro Comando da Capital sem São Paulo. Os membros dessas facções criminosas são, em sua esmagadora maioria, jovens pobres de comunidades carentes e favelizadas. Talvez não soe estranho o fato de que, em Rosário do Sul, alguns jovens de comunidades carentes tenham, como ponto de referência de suas residências, a localização do presídio estadual. E apenas com alerta, esse presídio, com capacidade para 88 detentos, conforme consta no portal da Superintendência dos Serviços Penitenciários do Rio Grande do Sul, conta com 100 detentos, ou aproximadamente 12% além de sua capacidade máxima.

Retornando ao início desta apresentação, quando narrado o Ideal de visão da criança sobre seu futuro, antes de nos perguntarmos sobre qual a resposta ideal a ser esperada, necessitamos estabelecer uma ferramenta de trabalho que facilite a tarefa de encontrarmos uma resposta possível. Essa ferramenta poder ser representada na palavra “conceito”. Mas o que é um “conceito”? Conceito é uma idéia claramente delimitada e apta a receber algumas características que reduzem seu campo de abrangência para torná-la mais clara e precisa. Por exemplo, Rosário do Sul é banhado por dois rios, o Santa Maria e o Ibicuí da Armada. Podemos considerar o conceito de “rio” como aplicável a ambos e compreendemos perfeitamente o significado do que seja “rio”, embora não façamos distinção entre um rio e outro. Porém, se dizemos rio Santa Maria, estamos tornando o conceito mais claro e preciso, ou menos sujeitos as dúvidas sobre sua identificação. E, se emitirmos a frase

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“Rio Santa Maria da praia das Areias Brancas”, tornamos ainda mais preciso o conceito, por que agora voltamos nossos pensamentos para um trecho específico do rio e ignoramos o restante de sua extensão.

Estabelecemos uma ferramenta de trabalho, ou ideias expressas por intermédio de conceitos, mas ainda não sabemos como utilizá-la. Vamos então testá-la.

Podemos conceituar uma cidade como uma organização social, ou sociedade. O conceito de sociedade pode ser subdividido em outros conceitos relacionados, como bairros, vilas e escolas. Cada uma dessas subdivisões continua sendo expresso por uma ideia, ou conceito, e, por poderem ser pensadas como sociedades específicas, não alteram o conceito original expresso na ideia de sociedade. O bairro é a sociedade de moradores de determinado lugar, enquanto a escola é uma sociedade de estudantes.

Pois bem, agora parece que podemos obter uma resposta razoável para o ideal de uma criança quanto a sua atuação futura ser adequada ou não. O ideal de uma criança representa um conceito em potencial, passível de se tornar concreto. Qualquer que seja o conteúdo desse conceito, um elemento deve estar necessariamente presente. Esse elemento é a compreensão de que o exercício de qualquer atividade deve ser considerado em seu significado social baseado na compreensão de que se insere em um conceito maior ao qual está obrigatoriamente conectado. Essa conexão se dá pela compreensão de que a vida em sociedade se funda na participação colaborativa de todos na produção da riqueza também em sociedade e que é injusto e imoral algumas pessoas se apropriarem de parcelas

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significativamente maiores dessa riqueza em detrimento de outras. Um comerciante rosariense não obtém sucesso em seu negócio exclusivamente por que zela por seu empreendimento, mas por que seus clientes confiam na qualidade de seus produtos e os compram. Esse comerciante depende de seus clientes. Do mesmo modo, um advogado, um médico ou um político dependem da participação de outras pessoas para que prosperem em suas atividades. Por esse motivo, de fundamental importância, a riqueza disponível para cada sociedade é coletivamente produzida. Ora, se é coletivamente produzida, por que algumas pessoas são excluídas de seu usufruto?

Algumas pessoas são excluídas por que persiste, em nossa sociedade, uma grave deficiência em nossa formação moral. Ao concentrarmos todos os esforços no aumento da riqueza individual, em detrimento do bem estar social, assumimos posições amorais. O problema é que a dimensão moral da vida social é um fenômeno de natureza exclusivamente humana e sentimentos morais são os fundamentos do exercício da cidadania. Assim, a medicina, por exemplo, não pode ter por paradigma a simples geração de renda para o médico, mas a visão de que, em primeiro lugar, seu objeto é a preservação da vida independente da posição social do paciente. O direito tem por fundamento a manutenção da paz social e esta somente se realiza quando existe justiça na distribuição da riqueza social. No mesmo sentido, química, biologia, física, matemática, etc, se aplicam do mesmo modo tanto ao sujeito pobre quanto ao sujeito rico.

Colocada em outros termos, a ideia ora expressa realça o fato de que o mundo humano é diferente do

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mundo natural, por que construído coletivamente de acordo com vontades de sujeitos que vivem em sociedade. Por ser forjado coletivamente, todas as pessoas, em maior ou menor grau, mas de modos qualitativamente importantes, participam no processo de construção social. Por isso, necessariamente, fazem jus à repartição da riqueza socialmente produzida de modo que a segregação seja evitada. Tal abordagem da cidadania rompe com a concepção baseado no binômio sujeito-Estado e se fundamenta no binômio sujeito-sujeito. Aquela assume que o sujeito é incapaz de construir seu próprio mundo sem tutela estatal; esta defende que as experiências individuais, sejam no erro ou acerto, constituem as bases para que as pessoas possam criar e defender seus legítimos interesses, estabelecendo uma comunidade de cidadãos responsáveis e não súditos passivos. Pela experiência, as pessoas não apenas sabem quais são seus reais interesses, mas os conhecem e tais interesses, muitas vezes conflitantes com os de outras pessoas, integram-se, pelo respeito ao pensamento e objetivos alheios, na configuração psicológica de cada indivíduo. Diferentes visões não se tornam predominantes ou segregadas por diferenças nas posições sociais de seus adeptos, mas pela compreensão de que ideias conflitantes são fenômenos normais entre pessoas e que, no fundo, são ideais que somente se concretizam pelo engajamento na transformação da realidade social. São os mesmos conceitos que, tão somente, acolhem características diferentes.

Devido à tradição da cidadania baseada no binômio sujeito-estado no Brasil, a concepção da cidadania baseado no binômio sujeito-sujeito requer a re-invenção de cada participante. Em termos psicológicos,

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essa reinvenção significa o auto questionamento sobre a qualidade de vida, em termos de realização pessoal, até experimentada. A resposta, seja ela qual for, requer autenticidade, sem temor à angústia ou à solidão. Senão for afirmativa,então o sujeito precisa agir de modo honesto consigo mesmo e perguntar-se: “Qual o tipo de vida que julgo ideal e sob quais condições?”. O primeiro passo para o engajamento na transformação, ou re-invenção, foi dado, por que teve por objeto a própria personalidade do sujeito. Por ser processo e não fato isolado, tal fenômeno requer espaços de tempo diferentes para cada indivíduo. Essa re-invenção exige do sujeito a capacidade de compreensão do ambiente em que está inserido e a clara definição de quais são seus objetivos no campo da participação social. Em outras palavras, exige a elaboração de um modelo de ideal social expresso no empenho intelectual de compreensão e conhecimento de seu ambiente comunitário. De posse desse mapa social, é preciso determinar as ferramentas de trabalho. Talvez seja necessária uma revolução na maneira de encarar os desafios.

No caso das crianças que buscam a satisfação de suas necessidades no lixão público, a noção de cidadania enquanto sujeitos capazes de envolverem-se e agirem na construção de uma sociedade julgada como ideal e baseada na igualdade de oportunidades requer que às crianças sejam dadas oportunidades de frequência escolar e de amparo às suas necessidades vitais. A sociedade não poder basear-se em projetos de desenvolvimentos utilitaristas, aqui entendidos como considerando apenas o ponto de vista de uma das partes envolvidas. A realidade social das crianças, considerada no contexto de sua inserção familiar, seja em termos de recursos, disposições cognitivas e psicológicas para a

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vida não-segregada, não pode ser ignorada. O que se requer, no mínimo, é que ocorram mobilizações sociais e instituições nos moldes de, por exemplo, organizações não governamentais, sejam implementadas e tenham por objeto a coordenação de esforços para que pessoas extremamente carentes sejam apoiadas em seus esforços contra a miséria absoluta. Apenas a título de exemplo, nos Estados Unidos é prática comum a mobilização de estudantes devidamente treinados para o desenvolvimento de atividades sociais. Tal tipo de experiência, inclusive, é requisito obrigatório de currículos para muitas empresas de destaque no mercado de trabalho.

Mas a cidadania baseada nas relações interpessoais, ou no binômio sujeito-sujeito, não diz respeito somente à superação de problemas existentes. Por estar apoiada na capacidade de o cidadão participar ativamente na construção de um modelo julgado ideal de sociedade, entre seus atributos inclui-se a possibilidade da mobilidade social, aqui entendida como a oportunidade de as pessoas atingirem padrões considerados mais elevados de bem estar material. E aqui novamente Rosário do Sul representa excelente exemplo.

Rosário possui uma das mais belas praias do Rio Grande do Sul e que serve de motivo para exploração da indústria do turismo. Esse fato pode ser claramente apreendido pelo conceito “Rio Santa Maria das Areias Brancas”, como já expresso anteriormente. Pode ser ampliado para o conceito de “rios” ao englobar o rio ibucui.

A cidade possui quatro escolas de ensino médio, o

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Plácido de Castro, a Professora Carolina Argemi Vazquez, o Deputado Ruy Ramos e o Fronteira. Englobemos tais escolas sob o conceito de “Colégio”.

Por outro lado, existe uma luta pela implantação de ensino universitário em Rosário do Sul. Representemos esse ideal pelo conceito “inclusão”, em referência à inclusão de jovens na elevação do nível educacional e consequente maiores oportunidades de inserção no mercado de trabalho. Pois bem, a união desses três conceitos, “rios”, “colégio” e ”inclusão” permite a re-invenção do conceito de educação predominante em Rosário se pensarmos do seguinte modo: vivemos em uma época em que o estudo e preservação dos recursos naturais adquiriu suma

Rio Ibicuí da Armada na altura da ponte em Rosário do Sul – Data 25/09/2011

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importância. Rosário explora, sob a indústria do turismo, a beleza das praias do Rio Santa Maria, enquanto o rio Ibicuí é, praticamente, um rio “invisível” para as pessoas.

Ora, se pensarmos a possibilidade de instalação de centros de estudos avançados para os alunos do ensino médio sobre, por exemplo, a diversidade da vida presente nos dois rios ou a influência do turismo sobre os sistemas ecológicos dos rios, estamos revolucionando o modo como o ensino de diversas disciplinas são realizadas nos colégios de ensino médio e, simultaneamente, promovendo a integração entre alunos de diferentes instituições e aumentado o nível da qualidade do ensino.

Outros benefícios dessa abordagem é a melhor compreensão dos impactos da atividade humana sobre o meio ambiente e a criação de argumentos que reforcem as justificativas para implantação do sistema universitário na cidade. Neste sentido, exemplos de aprendizagens multidisciplinares podem ser facilmente relacionadas: português na escrita de relatórios científicos, inglês na leitura de artigos técnicos correlatos e que reflitam casos semelhantes abordados em outros países, química no estudo das transformações sofridas pelos rios ao longo do tempo, física na compreensão dos movimentos das águas e matemático no estabelecimento de modelos que permitam a predição da ação das águas em períodos de chuvas intensas. Com início no ensino médio, a integração entre aprendizagem e resultados concretos são fundamentos suficientes para o estabelecimento de faculdades em diversas áreas do conhecimento, como ciências biológicas e engenharia ambiental, ou especializações em nível de pós-graduação, como direito ambiental.

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Rio Ibicuí da Armada na altura da ponte em Rosário do Sul – Data 25/09/2011

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Lixão público em Rosário do Sul – Data 25/09/2011

Outras opções também se apresentam seguindo a mesma linha de raciocínio recém exposta, como a criação de centros de estudos para identificação dos impactos ambientais do lixão público sobre o ecossistema que o rodeia, já que, próximo ao lixão existe uma represa e diversas famílias com pequenas criações de bovinos que se alimentam de pastagens ali existentes. Apenas como hipótese, parece razoável o estudo de viabilidade econômica de uma usina de reciclagem frente aos prejuízos decorrentes da contaminação do solo.

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Entorno do lixão público em Rosário do Sul, com a represa, habitações populares e animais domesticados pastando - Data 25/09/2011

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Entorno do lixão público em Rosário do Sul, com a represa, habitações populares e animais domesticados pastando - Data 25/09/2011

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Finalizando, a concepção de cidadania que se procurou defender nesta palestra é aquela denominada de cidadania democrática, em que pessoas são concebidas como atores sociais aptos a emitirem opiniões claras e razoáveis sobre a sociedade em que vivem, transformarem essas opiniões em conhecimentos, formarem um ideal de sociedade a ser alcançado e trabalharem no sentido de concretizarem esse ideal.

Pessoas que vivem em sociedades democráticas são cidadãos ativos que atuam e se empenham responsavelmente nas três faces da cidadania: política, civil e social. Posto em outras palavras, as pessoas se veem a si próprias como importantes e habilitadas a participarem do desenvolvimento da sociedade em que vivem. Por isso ser a cidadania democrática também concebida como cidadania plena, em detrimento de uma concepção de cidadania ainda presente no Brasil e baseada quase que exclusivamente na presença de direitos.

Por fim, agradeço pela presença de todos e pela gentileza e educação em ouvirem atentamente esta palestra. Espero, com profunda sinceridade, ter contribuído para uma melhor compreensão do conceito de cidadania.