chatterjee, partha - comunidade imaginada por quem (ok - já traduzida em livro)

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  • 7/22/2019 CHATTERJEE, Partha - Comunidade imaginada por quem (ok - j traduzida em livro)

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    Comunidade imaginada: por quem?1

    Partha Chatterjee

    Apresentao

    Em 1983 apareceu, em ingls, o livro de Benedict Anderson sobre o nacionalismo, onde eleplanta sua polmica tese: as naes correspondem uma construo2. O resultado do livro de

    Anderson foi a proliferao de trabalhos sobre a temtica nacionalista. S em lngua inglesa, at a

    segunda edio em ingls, em 1991, de onde foi traduzida a primeira verso em espanhol 3, dois

    anos mais tarde apareceramNations Before Nationalism (1982), de J. A. Armtrong;NationalRevival

    in Europe (1985), de Miroslav Hrocha; The Etnic Origins of Nations (1986), de Anthony Smith;

    Nationalist Thoughy and the Colonial World (1986), de P. Chatterjee, e Nations and Nationalism

    since 1780 (1990), de Eric Hobsbawn para mencionais apenas alguns dos textos chaves que porseu alcance e poder terico, tm feito caducar grande parte da bibliografia tradicional sobre o tema.

    Em parte, com base nestas obras, uma extraordinrio proliferao de estudos histricos, literrios,

    antropolgicos, sociolgicos, feministas e outros surgiram, unindo os objetos destes campos de

    pesquisa com o nacionalismo e a nao.

    Pouqussimos fenmenos polticos provaram ser to confusos e difceis de compreender como

    o nacionalismo. No existe um consenso estabelecido sobre sua identidade, origem ou futuro.

    Encontramo-nos, por exemplo, no processo de voltar ao sculo XIX cheio de grandes foras

    competitivas e agressivas e cheios de nacionalismos difusos. Ser que o estado-nao perdeu sua

    pertinncia e esgotou seu papel progressista e emancipatrio? Ou ser que o nacionalismo tem sido

    visto sempre envolto em uma lgica militarista e em uma funo tnica exclusivista?

    .....

    I

    Novamente o tema do nacionalismo aparece na agenda de todos os assuntos mundiais. Quase

    que diariamente, os estadistas e os politlogos dos pases ocidentais afirmam que com a queda do

    comunismo (provavelmente querem dizer colapso do socialismo sovitico), o maior perigo para a

    paz mundial o re-surgimento do nacionalismo em alguns pases do mundo. Como atualmente

    qualquer fenmeno tem que ser primeiramente reconhecido como problema antes de chamar a

    ateno dos encarregados em decidir sobre o que deve interessar ao pblico, o nacionalismo parece

    1 Texto retirado de Gopal Balakrishnan (Editor),Mapping the nation, (introduo de Benedict Anderson), Verso,

    Londres, 1996, pp. 214-225.2 Benedict Anderson,Imagined Communities; Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, London, 1983.3 Anderson, B. Comunidades imaginadas, Reflexiones sobre el origen y la difusin del nacionalismo. Fondo de CulturaEconmica, Mxico. 1993.

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    tem sido bem evitado.

    Em todo este tempo, os especialistas, os historiadores do mundo colonial, realizando seu

    trabalho nos arquivos administrativos e na correspondncia oficial dos arquivos coloniais em

    Londres, Paris ou Amsterdam, no se esquecem obviamente como chegou o nacionalismo nas

    colonias. Todos concordam que se trata de um importao da Europa. Os debates dos anos 1960 e1970 nas historiografias da ndia, frica ou Indonsia so do mesmo teor e tm claro quem so os

    responsveis. Estes debates entre uma gerao nova de historiadores nacionalistas e aqueles que

    apelidavam de colonialistas eram fortes e, a mide, quentes, mas foram se relegando com o tempo

    a espaos especializados de algumas reas de estudo e as pessoas os foi esquecendo. Faz dez

    anos, um desses especialistas da rea foi quem uma vez mais formulou a pergunta sobre a origem e

    a expanso do nacionalismo dentro da estrutura de uma histria universal. Benedict Anderson

    mostrou com muita originalidade e sutileza que as naes no eram o produto de condiessociolgicas dadas como a lngua, a raa ou a religio. Foram na Europa, como em todas as partes,

    imaginadas em sua existncia.4 Ele tambm descreveu alguns dos principais formatos institucionais

    por meio dos quais estas comunidades imaginadas adquiriram uma forma concreta, especialmente

    essas instituies que engenhosamente se denominou capitalismo impresso. Tambm afirmou que

    a experincia histrica do nacionalismo na Europa ocidental, na Amrica e na Rssia proporcionou

    aos posteriores nacionalismos um conjunto de formatos modulares dos quais as elites africanas e

    asiticas escolheram os que preferiram.

    Considero que o trabalho de Anderson o mais influente nos ltimos anos para gerar novas

    bases tericas sobre o nacionalismo, uma influcencia que obviamente pertence quase

    exclusivamente aos trabalhos acadmicos. Contrrio desinformao quase extica sobre o

    nacionalismo no Ocidente, nos meios de comunicao, a tendncia terica de Anderson trata com

    toda segurana de abordar o fenmeno como parte da histria universal do mundo moderno.

    Mas tenho uma objeo a fazer a Anderson: se os nacionalismos no resto do mundo tinham

    que escolher sua comunidade imaginada entre certos formatos modulares que Europa e Amrica

    lhes proporcionavam, ento o que eles faziam de sua imaginao? Parece que a historia j tinha

    estabelecido que ns, no mundo ps-colonialista, somos meramente uns consumidores perptuos da

    modernidade. Europa e Amrica, o nicos sujeitos verdadeiros da histria, tm elaborado j em

    nosso nome, no s o roteiro da ilustrao e da explorao colonial, mas tambm o da nossa misria

    e resistncia anti-colonialista. Parece que nossa imaginao tambm deve permanecer colonizada

    para sempre.

    Objeto esta proposta no por razes sentimentais. O fao porque no posso reconcili-lo com

    a evidncia de um nacionalismo anti-colonial. O mais poderoso e tambm o mais criativo acontece

    4 ANDERSON, Benedict.Imagined Communities; Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, London, 1983.

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    com o fato de que a imaginao nacionalista na sia e na frica fixa no somente em uma

    identidade, mas em uma diferena com os formatos modulares das sociedades nacionais propagadas

    pelo Ocidente moderno. Como podemos ignorar isto sem reduzir a experincia do anti-colonialismo

    a uma caricatura de si mesma?

    Para ser justo com Anderson, ele no o nico que tem culpa. O problema reside, estouconvencido agora, em que temos tomado a bandeira do nacionalismo como movimento poltico

    demasiado literalmente e demasiado srio.

    Na ndia, por exemplo. A histria normatizada nacionalista comeou em 1885 com a

    formao do congresso nacional hindu. Poderia-se inferir que a dcada precedente foi um perodo

    de preparao, quando se instituram vrias associaes polticas regionais. Anteriormente, dos anos

    1820 aos 1870, existiu um perodo de reforma social quando a ilustrao colonial comeou a

    modernizar os costumes e instituies de uma sociedade tradicional, e o esprito poltico era demuita colaborao com o regime colonial; quer dizer, o nacionalismo ainda no havia aparecido.

    Esta histria, quando se submete uma anlise sociolgica sofisticada no pode concordar

    com as explicaes de Anderson. Em realidade, como busca imitar sua prpria histria, a histria do

    estado moderno na Europa, a representao do nacionalismo inevitavelmente reafirmar a

    decodificao de Anderson do mito do nacionalismo. Penso, contudo, que como histria, a

    autobiografia do nacionalismo se encontra fundamentalmente debilitada.

    Segundo minha leitura, o anti-colonialismo forja seu prprio espao de soberania dentro da

    sociedade colonial, muito antes de iniciar sua batalha poltica dentro do poder imperial. O faz

    dividindo o mundo das instituies e das prticas sociais em dois campos: o material e o espiritual.

    O material o campo do exterior, da economia e do estatal, da cincia e da economia; um campo

    no qual o Ocidente tem ratificado sua superioridade e onde o Oriente tem sucumbido. Ento, neste

    campo, a superioridade ocidental tem sido reconhecida e suas conquistas cuidadosamente imitadas.

    Por outro lado, o espiritual um campo interior que aponta aos aspectos essenciais da identidade

    cultural. Se h algo de triunfo em imitar as conquistas ocidentais no campo material, maior ento

    a necessidade de preservar as caractersticas da prpria cultura espiritual. Considero que a formula

    se converte em um dos fatores bsicos dos nacionalismos anti-coloniais na sia e na frica.5

    Existem diversas implicaes. Primeiramente, o nacionalismo declara ao campo do espiritual

    o seu territrio soberano e se nega a aceitar que o poder colonial intervenha nesse campo.

    Retomando o exemplo hindu, o perodo das reformas sociais esteve conformado por duas fases.

    Na primeira, os reformadores hindus buscaram por meio da ao estatal que as autoridades

    coloniais reformaram as instituies e costumes tradicionais. Na segundo, ainda que no se discutia

    a necessidade de mudana, se apresentou uma forte resistncia que no permitiu que o estado

    5 Este o argumento central do meu livro Nationalist Thought and the Colonial World: A Derivative Discourse?London, 1986.

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    colonial intervisse em assuntos que afetavam a cultura nacional. A segunda fase, segundo mia

    arguio, j constitua a parte do perodo nacionalista.

    Em outras palavras, o estado colonial se mantem fora do campo interior da cultura nacional,

    mas isso no quer dizer que o chamado campo espiritual permanea inaltervel. De fato, a partir

    daqui o nacionalismo lana seu projeto mais poderoso, criativo e historicamente significativo:modelar uma cultura moderna nacional que no de nenhuma maneira ocidental. Se a nao

    uma comunidade imaginada, aqui aonde comea a apresentar uma razo de ser. Este seu

    verdadeiro e bsico espao, a nao j soberana ainda quando o estado continua em mos do

    poder colonial. A dinmica deste projeto histrico completamente esquecida nas histrias

    convencionais nas quais o conto do nacionalismo comea pela conquista do poder poltico.

    Desejo ressaltar vrios aspectos dentro do chamado campo espiritual que o nacionalismo

    transforma no transcurso deste priplo. Me remeterei s minhas ilustraes de Bengala, cuja histriame mais familiar.

    O primeiro destes aspectos a lngua. Anderson acerta ao afirmar que o capitalismo

    impresso o que prov o novo espao institucional para o desenvolvimento da nova lngua

    moderna6. Contudo, as peculiaridades da situao colonial no permitem uma transposio to

    simples dos padres europeus de desenvolvimento. Em Bengala, por exemplo, por iniciativa da East

    India Company e dos missionrios europeus se editaram os primeiros livros no final do sculo

    XVIII e publicaram as primeiras prosas narrativas em comeos do sculo XIX. Ao mesmo tempo,

    na primeira metade deste sculo, o ingls desloca o persa como lngua da burocracia e se mostra

    como o meio mais poderoso de influncia intelectual sobre a nova elite bengals. Apesar disso, o

    momento crucial no desenvolvimento da lngua bengali moderna a metade do sculo, quando a

    elite bilngue desenha um projeto cultural para proporcionar a lngua nativa o aparato lingustico

    necessrio para se converter no idioma apropriado da cultua moderna. Em meio a este projeto

    gerado toda uma rede institucional de imprensa, editoras, jornais, revistas e grupos literrios, por

    fora da responsabilidade e da autorizao do estado e dos missionrios europeus, atravs dos quais,

    a nova, modernizada e padronizada vai tomando forma, a intelligentsia bilngue comea a assumir

    sua lngua com um sentido de pertencia dentro do campo da identidade cultural e de modo a manter

    separada do colonizador intruso. Por consequncia, a lngua se converte em um espao sobre o qual

    a nao tem primeiramente que reafirmar sua soberania para ento a transformar e a adapt-la ao

    mundo moderno.

    Aqui as influncias formais das lnguas e das literaturas europeias modernas no produziram

    efeitos similares. Por exemplo, no caso dos novos gneros literrios e das convenes estticas nos

    quais as influncias europeias delineavam indubitavelmente o discurso explcito crtico, tambm se

    6 Anderson, Imagined Communities, pp.17-49.

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    considerava que as convenes europeias no era as adequadas para avaliar a produo literria em

    bengali. At hoje ainda existem alguns vazios evidentes entre os termos da crtica acadmica e os do

    exerccio literrio. Para dar um exemplo, analisarei um grama bengali.

    O drama constitui o gnero literrio moderno menos elogiado no campo esttico pelos crticos

    da literatura bengali, ainda que o gnero com maior audincia dentro da elite bilngue. Quandoapareceu em sua forma moderna em meados do sculo XIX, o drama bengali possua dois modelos:

    o drama moderno europeu como o desenvolvido de Shakespeare at Moliere, e o virtualmente

    esquecido corpus do drama snscrito, o qual tem recuperado atualmente sua excelncia clssica

    devido aos elogios dos estudiosos orientalistas europeus. Os critrios literrios que

    presumivelmente incluram o novo drama dentro do domnio privilegiado da cultura nacional

    moderna era, por tanto, delineados pelos formatos modulares provenientes da Europa. Mas as

    prticas representativas de uma nova instituio como o pblico teatral no permitiram que essescritrios se aplicassem para obras escritas para o teatro. As convenes que permitiriam que um

    drama triunfasse nos cenrios de Calcut eram muito diferentes das aprovadas pelos crticos

    segundo as tradies do drama europeu. At hoje essas tenses no foram resolvidas. O que exerce

    como a corrente teatral pblica em Bengala Ocidental ou em Bangladesh o teatro urbano

    moderno, nacional e claramente diferencivel do teatro popular. O primeiro produzido e

    consistentemente patrocinado pelos literatos urbanos da classe mdia. Ainda assim, suas

    convenes estticas no cumprem com os padres estabelecidos pelos formatos literrios adotados

    da Europa.

    Ainda com a novela, esse famoso artifcio nacionalista dentro do qual a comunidade est feita

    para viver e amar dentro de um tempo homogneo7, os formatos modulares tampouco passam

    bem. A novela foi o principal gnero por meio do qual a elite bilngue bengali criou uma nova prosa

    narrativa. Era bvia a influncia no desenho desta prosa dos modelos do ingls moderno e do

    Snscrito clssico. Tambm, na medida em que o gnero tem ganhado popularidade, de se

    observar a frequncia com que os novelistas bengals tem mudado das formas convencionais

    autorais at o uso do discurso corrente em suas obras. Ao ler a alguns dos novelistas de Bengala, a

    mide difcil determinar se se est lendo uma novela ou um drama. Tendo criada uma linguagem

    moderna para sua prosa de acordo com os formatos modulares convencionais, os autores, na busca

    pela verdade artstica, evidentemente se viram na necessidade de se separar, na medida do possvel,

    da rigidez dessa prosa.

    O desejo de construir uma forma esttica moderna e nacional, e que as vezes se diferenciava

    da ocidental, se viu refletida nas formas um pouco exageradas e sofisticadas do comeo do sculo

    XX, na chamada Escola de Arte de Bengala. A partir destas iniciativas se criou, na primeira

    7 Ibid., pp. 28-40.

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    instancia, um espao institucional para os artistas profissionais modernos hindus para divulgao,

    exibio e impresso das obras de arte e para a formao de um pblico versado nas novas normas

    estticas. Esta agenda tambm se viu acompanhada pela construo pela construo de um espao

    artstico modernizado impregnado de um calor ideolgico e quente para uma arte que era

    indiscutivelmente hindu e muito diferente da ocidental8

    . Ainda que o estilo peculiardesenvolvido pela escola de Bengala para uma nova arte hindu no tardou muito, o proposto

    fundamentalmente por esta iniciativa todavia tem vigncia no que concerne a criar uma arte que

    pudesse se considerar moderna e ao mesmo tempo se reconhecer como hindu.

    Junto com as instituies do capitalismo impresso, se fundou uma rede de escolar

    secundrias. Uma vez mais, o nacionalismo buscou manter sob sua tutela este espao muito antes de

    que o poder estatal tivesse se convertido em um assunto de discrdia. Em Bengala, desde a segunda

    metade do sculo XIX, a nova elite foi a encarregada de realizar um esforo nacional para abrirescolar em toda a provncia e criar assim uma literatura conforme. Junto com o capitalismo

    impresso, as escolas secundrias provinham os espaos necessrios para gerar uma literatura e uma

    linguagem novas, generalizadas e normatizadas,por fora do controle estatal. S assim, ao ase abrir

    estes espaos fora do controle estatal e dos missionrios europeus, foi que se permitiu s mulheres ir

    escola. Durante este perodo, final do sculo, a Universidade Calcut tambm deixou de ser uma

    instituio de educao colonial e se converteu em uma instituio marcadamente nacional com seu

    prprio currculo, faculdade e recursos9.

    A famlia tambm era outro dos espaos do campo interior na cultura nacional. O

    planejamento aqui da autonomia e das diferenas era muito mais dramtico. A crtica europeia que

    considerava a tradio hindu como selvagem foi centrada durante muito tempo em suas prticas e

    crenas religiosas, especialmente no que se relacionava com o tratamento s mulheres. A fase inicial

    das reformas sociais por meio dos controles coloniais tambm se concentrou nesses aspectos.

    Durante esta fase, este espao foi considerado bsico para a tradio hindu. O movimento

    nacionalista comeou a lutar pelo controle disso. Diferente dos primeiros reformadores, os

    nacionalistas no estavam dispostos a permitir que o poder colonial legislasse sobre as reformas da

    sociedade tradicional. Afirmavam que somente a nao poderia ter o direito de intervir em tais

    aspectos fundamentais de sua identidade cultural.

    E ocorreu que o seio familiar e o papel da mulher sofreram mudanas substanciais no

    ambiente nacionalista da classe mdia. Indubitavelmente se formou um novo tipo de ordem

    patriarcal, mas que exigia explicitamente que fosse diferente ordem da famlia ocidental. A

    8 A histria deste movimento artstico tem sido estudado recentemente em detalhe por Tapati Guha-Thalkurta, TheMaking of a New Indian Art: Artists, Aesthetics and Nationalism in Bengal, 1850-1920, Cambridge 1992.9 Ver Anilchandra Banerjee, Years of Consolidation: 1883-1904; Tripurari Chakravarti, The University and theGoverment: 1904-24, and Pramathanath Banerjee Reform and Reorganization: 1904-24, in Niharranjan Ray andPratulchandra Gupta, (eds.)Hundred Years of the University of Calcutta, Calcutta 1957, pp. 129-78, 179-210 e 211-318.

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    nova mulher tinha que ser moderna, mas mantendo todos os caracteres da tradio nacional e, por

    tanto, ser diferente da mulher ocidental.

    A histria do nacionalismo como movimento poltico tendeu a se centrar principalmente na

    luta pelo domnio do exterior, no domnio material do estado. Isto algo diferente do que tenho

    sublinhado. tambm uma histria na qual o nacionalismo no tinha outra opo se no escolherum formato da galeria dos modelos apresentados pelos estados-nao europeus e americanos. Por

    consequncia, a diferena aqui no constitui um critrio vlido no domnio do material.

    No campo material, o nacionalismo iniciou seu percurso (recordemos que j tinha proclamado

    sua soberania no campo espiritual) se inserindo em uma nova esfera pblica conformada pelos

    processos e formas do estado moderno (neste caso colonial). No comeo, a tarefa do nacionalismo

    consistia em vencer a insubordinao das classes mdias colonizadas, isto , desafiar as normas das

    diferenas coloniais no mbito do estado. Devemos recordar que o estado colonial no foi ainstituio que ativou os formatos modulares do estado moderno nas colonias; melhor seria dizer

    que se encarregou de nos permitir a normalizao dos propsitos do estado moderno j que uma

    de suas premissas de controle consistia em manter as normas da diferena colonial; em outras

    palavras, preservar a alienao dos grupos de controle.

    Como as instituies do estado moderno foram desenhadas durante a colonia, especialmente

    na segunda metade do sculo XIX, a classe dominante europeia achou necessrio estabelecer por

    meio da promulgao de leis, da burocracia, da administrao da justia e do reconhecimento pelo

    estado de um espao legtimo da opinio pblica as precisas diferenas entre governantes e

    governados. Se iria permitir os hindus legislar, poderiam eles julgar os europeus? Era bom o fato

    dos hindus ingressarem no servio civil aprovando os mesmos exames que os britnicos graduados?

    Se os peridicos europeus na ndia possuam liberdade de imprensa, poderia se aplicar o mesmo aos

    peridicos locais? Ironicamente, se converteu em uma tarefa histrica do nacionalismo, apesar de

    insistir em suas prprias marcas distintivas no cultural com respeito ao Ocidente, exigir que no

    podiam existir regras diferenciadoras no controle do estado.

    Eventualmente, com acrescente influncia dos polticos nacionalistas, este controle se tornou

    mais extensivo e internamente diferenciado, finalmente assumindo as caractersticas formais de um

    estado nacional, ps-colonial. Os fatores predominantes desta autodefinio, pelo menos na ndia

    ps-colonial, provem da ideologia do estado moderno liberal e democrtico.

    De acordo com esta ideologia liberal, agora o pblico se distingua do privado. Se era exigido

    ao estado que protegesse a inviolabilidade de sua prpria idiossincrasia com respeito s

    caractersticas dos demais, a legitimidade do estado ao desempenhar estas funes tinham que

    versar garantida por sua neutralidade em estabelecer diferenas pessoais, raciais, de lngua,

    religiosas, de classe, de casta, etc.

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    O problema estava no fato de que a liderana moral e intelectual da elite nacionalista operava

    no campo constitudo por um conjunto bastante especfico de diferenas: entre o espiritual e o

    material, o interior e o exterior, o bsico e o superficial. Esse espao to controvertido onde o

    nacionalismo tinha proclamado sua soberania e dentro do qual tinha imaginado sua verdadeira

    comunidade, no era coextensivo nem coincidente com o espao construdo pela distino entre opblico e o privado. No primeiro campo, o projeto hegemnico do nacionalismo duras penas

    podia fazer das diferenas de lngua, religio, classe ou casta um assunto de imparcialidade em si

    mesmo. O projeto era de que uma normatizao cultural, como Anderson explicava; projetos

    hegemnicos em toda parte, mas com uma grande diferena: tinha que escolher seu espao de

    autonomia a partir de uma posio de subordinao um regime colonial que tinha de seu lado

    recursos justificatrios mais universais gerados pelo pensamento social posterior Ilustrao.

    O resultado destes formatos autnomos da imaginao da comunidade foi, e continua sento,absorvido pela histria do estado ps-colonial. Neste radicam as causas de nossa misria ps-

    colonial: no nossa incapacidade para desenhar novos formatos de comunidade moderna, seno

    nossa submisso ante as novas formas de estado moderno. Se a nao uma comunidade

    imaginada e se as naes devem assumir os papis de um estado, ento nosso aparato retrico nos

    deve permitir falar de comunidade e de estado ao mesmo tempo. Mas considero que nosso aparato

    terico atual no nos permite.

    Um pouco antes de sua morte, Bipinchandra Pal (1858-1932), o grande lder do movimento

    Swadeshi em Bengala e protagonista do congresso pr-gandiano, descreveu a residncia onde se

    alojavam os estudantes em Calcut durante sua juventude:

    As residencias dos estudantes em Calcut, nos meus tempos de estudante que fazcinquenta ou sessenta anos, eram como pequenas repblicas e se manejavam comnormas notadamente democrticas. Tudo era decidido pelo voto da maioria.Mensalmente se elegia o diretor para todo o mson e ele se encarregava detramitar todos os deveres dos residentes junto com a administrao dos alimentos edos utenslios da residncia... Com frequncia se rogava um bom administradorque aceitasse sua re-eleio, enquanto que os bagunceiros tinham que pagar do seuprprio bolso por uma m administrao, ento evitavam ocupar esta posiohonrosa. qualquer disputa entre os membros era resolvida por uma Corte de residentese nos sentvamos, lembro, noite atrs de noite para analisar ocaso. E nunca adeciso desta corte se viu desobedecida ou questionada. E todos faziam cumprira deciso ao residente culpado. Todos ameaavam esse membro com a expulso ese ele se negasse, o faziam pagar com toda a mesada... E tal era a fora da decisodo grupo que soube de casos de castigo a um residente que depois de uma semanade ter sido expulso, seu semblante parecia como se estivesse recuperado de umagrave enfermidade...O grupo de residentes estava composto dos chamados ortodoxos, os brmanes, eoutros heterodoxos comprometidos com a nossa repblica. Se fosse estabelecido

    uma norma que proibisse trazer alimentos residncia, os membros da ortodoxiahindu cumpriam, ainda que ficava muito claro que fora da residncia se podiacomer e fazer qualquer coisa. Assim nos sentamos livres ainda para ir ao Great

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    Eadtern Hotel, aonde muitos de ns comeamos a frequentar.10

    O interessante desta descrio no a viso exageradamente romntica de um esquema em

    miniatura de autogovernar a nao, seno o uso reiterativo de expresses institucionais da cvica e

    moderna Europa poltica (repblica, democracia, unanimidade, eleio, corte...) para descrever um

    conjunto de atividades em aspectos materiais e a mide incongruentes com este tipo de sociedade

    civil. O tema de uma compromisso nos hbitos alimentcios se baseava realmente no em um

    princpio de delimitao do pblico com respeito ao privado, e sim na ciso entre o interior e o

    exterior; o espiritual como um espao onde a unanimidade tinha que prevalecer, enquanto que o

    exterior era s uma amostra da liberdade individual. Apesar do voto unnime de toda a residncia,

    a fora que determinava a unanimidade no campo interior no era o procedimento de votao que

    estabelecia que os indivduos se comportavam como um todo, e sim o consenso de uma comunidade

    institucionalmente inovadora (porque depois de tudo, a residncia de Calcut era algo semprecedentes na tradio) e internamente diferenciada e sem dvida uma comunidade que se

    impunha sobre os membros individuais.

    Mas o uso de Bipinchandra dos termos parlamentares para descrever as atividades

    comunitrias dessa residencia como se fosse uma nao, no devem se entender como uma

    informalidade. Sua linguagem constitui um indicativo das implicaes reais do dois discursos e dos

    dois campos da poltica. Esta tentativa se nota na recente historiografia hindu para abord-los como

    os domnios da poltica de elite e da poltica dos subordinados11

    . Mas uma das consequnciasrelevantes deste enfoque historiogrfico tem sido precisamente a mostra de que cada domnio no

    somente atuava em oposio e limitado pelo outro, e sim que atravs desta confrontao, tambm se

    configurava o esquema poltico do outro. Por tanto, a presena do populista ou dos elementos

    comunitrios na ordem liberal constitucional do estado ps-colonial no se assume como um signo

    da inautenticidade ou desonestidade da elite poltica; seria bem mais um reconhecimento por parte

    da elite dominante da presena tangvel de um espao da poltica dos subordinados sobre a qual

    devia se impor ou tambm negociais de acordo com suas propostas, com o fim de conseguir alguns

    acordos. Alem disso, o campo da poltica dos subordinados se convertia com o tempo ou se

    adaptava aos formatos caractersticos institucionais da elite dominante. Por consequncia, o

    relevante aqui no a simples demarcao e identificao de dois espaos em sua prpria

    delimitao que o que primeiramente se requeria para romper com os clamores totalizantes de

    uma historiografia nacionalista. A tarefa agora determinar, em suas historicidades mutuamente

    condicionadas, os esquemas especficos que surgiram, por um lado, no espao definido pelo projeto

    10 Bipinchandra Pal,Memories of My Life and Times, Calcutta 1932, reprinted 1973, pp. 157-60.11 Representado pelos vrios ensaios em Ranajit Guha, ed., Subaltern Studies, vols 1-6, Delhi 1982-90. The

    programmatic statement of this approach is in Ranajit Guha. On Some Aspects of the Historiography of ColonialIndia. In: Guha, (ed) Subaltrn Studies vol.1, Delhi 1982, pp. 1-8.

  • 7/22/2019 CHATTERJEE, Partha - Comunidade imaginada por quem (ok - j traduzida em livro)

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    hegemnico a modernidade nacionalista; e por outro, nas inmeras resistncia fragmentadas at

    esse projeto normalizador.

    Este o exerccio que desejo realizar. Como problema poderia ser o de estabelecer limites

    dessa suposta universalidade do regime moderno de controle e com as disciplinas do conhecimento

    da ps-ilustrao, poderia parecer que este trabalho tenta ressaltar mais uma vez um ceticismohindu (ou oriental). No obstante, o propsito de meu trabalho muito mais complexo e

    consideravelmente mais ambicioso. Inclui no s a identificao dos esquemas discursivos que

    tornaram possvel essas teorias sobre o ceticismo hindu, e sim tambm uma demonstrao de que as

    condies apresentadas realmente implicam em alguns fatores foradamente limitados ainda nos

    formatos supostamente universais do regime moderno de poder.

    Esta ltima demonstrao nos possibilita estabelecer que os clamores universalistas da

    filosofia ocidental moderna se encontram tambm limitadas pelas contingncias do controle global.Em outras palavras, o universalismo Ocidental como o mesmo ceticismo Oriental s podem ser

    assinalados como uma forma particularmente mais rica, diversa e diferenciada da conceitualizao

    de uma nova ideia universal. Isto nos permite conceber no s a possibilidade de pensar em uma

    forma nova de comunidade moderna, que, como expliquei, a experincia asitica e africana tem

    tentado desde seu comeo, mas decididamente pensar em novos formatos de um estado moderno.

    O projeto ento, consiste em reclamar para ns, aqueles uma vez colonizados, a liberdade de

    imaginao. Clamores, como sabemos bem, s podem se fazer como resposta em um espao de

    poder. As investigaes apontaro necessariamente a campos especficos disciplinrios a marca de

    uma pergunta no contestada. Alem disso, advogar por algo fragmentrio a este respeito tambm,

    ainda que no surpreendente, gerar um discurso fragmentado. redundante fazer uma apologia a

    isto.