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Charles Baudelaire

SOBRE A MODERNIDADE

PAZ E TERRA Coleo Leitura

Editora Paz e Terra, 1996. Editores responsveis: Christine Rhrig e Maria Elisa Cevasco Edio de texto: Thas Nicoleti de Camargo Produo Grfica: Katia Halbe Capa: Isabel Carballo Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Baudelaire, Charles, 1821-1867. Sobre a modernidade o pintor da vida moderna / Charles Baudelaire; [organizador Teixeira Coelho]. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. (Coleo Leitura] ISBN 85-219-01984 1. Arte 2. Arte Histria 3. Baudelaire, Charles, 1821-1867 4 Crtica de arte 5. Pintura 6. Usos e costumes I. Coelho, Teixeira, 1944- II. Ttulo. III. Sries. 96-2061 CDD-709 ndices para catlogo sistemtico: 1. Arte : Avaliao crtica 709 2. Arte : Estudos crticos 709 3. Arte : Histria 709 EDITORA PAZ E TERRA S.A. Rua do Triunfo, 177 01212-010 So Paulo 5P Tel.: (011)223-6522 Rua Dias Ferreira n. 417Loja Parte 22431-050 Rio de Janeiro RJ Tel.: (021) 259-8946 Conselho editorial: Celso Furtado Fernando Gasparian Roberto Schwarz Rosa Freire DAguiar 1996 Impresso no Brasil / Printed in Brazil

ndiceO pintor da vida moderna I - O belo, a moda e a felicidade....................7 II - O croqui de costumes..............................12 III - O artista, homem do mundo, homem das multides e criana....................................14 IV - A modernidade........................................24 V - A arte mnemnica....................................29 VI - Os anais da guerra....................................34 VII - Pompas e solenidades..............................39 VIII - O militar..................................................44 IX O dndi...................................................47 X A mulher.................................................53 XI - Elogio da maquilagem.............................55 XII - As mulheres e as cortess........................61 XIII - Os veculos..............................................67

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O pintor da vida moderna*

I O belo, a moda e a felicidade H neste mundo, e mesmo no mundo dos artistas, pessoas que vo ao Museu do Louvre, passam rapidamente sem se dignar a olhar diante de um nmero imenso de quadros muito interessantes embora de segunda categoria e plantam-se sonhadoras diante de um Ticiano ou de um Rafael, um desses que foram mais popularizados pela gravura; depois todas saem satisfeitas, mais de uma dizendo consigo: Conheo o meu museu. H tambm pessoas que, por terem outrora lido Bossuet e Racine, acreditam dominar a histria da literatura. Felizmente, de vez em quando aparecem justiceiros, crticos, amadores e curiosos que afirmam nem tudo estar em Rafael nem em Racine, que os poetae minores possuem [pgina 7] algo de bom, de slido e de delicioso, e, finalmente, que mesmoTrata-se do desenhista, aquarelista e gravador Constantin Guys (1805- 1892). Artigo includo no volume LArt Romantique, coletnea de artigos de crtica de arte, publicados postumamente em 1869. (N. do T)*

amando tanto a beleza geral, expressa pelos poetas e artistas clssicos, nem por isso deixa de ser um erro negligenciar a beleza particular, a beleza de circunstncia e a pintura de costumes. Devo convir que o mundo, de alguns anos para c, se corrigiu um pouco. O valor que os amadores atribuem hoje aos mimos gravados e coloridos do sculo XVIII prova que houve uma reao na direo reclamada pelo pblico: Debucourt, os Saint-Aubin e muitos outros entraram para o dicionrio dos artistas dignos de serem estudados. Mas eles representam o passado. Ora, hoje quero me ater estritamente pintura de costumes do presente. O passado interessante no somente pela beleza que dele souberam extrair os artistas para quem constitua o presente, mas igualmente como passado, por seu valor histrico. O mesmo ocorre com o presente. O prazer que obtemos com a representao do presente deve-se no apenas beleza de que ele pode estar revestido, mas tambm sua qualidade essencial de presente. Tenho diante dos olhos uma srie de gravuras de modas que comeam na Revoluo e terminam aproximadamente no Consulado. Esses trajes que provocam o riso de muitas pessoas insensatas, essas pessoas srias sem verdadeira seriedade apresentam um fascnio de uma dupla natureza, ou seja, artstico e histrico. Eles quase sempre [pgina 8] so belos e desenhados com elegncia, mas o que me importa, pelo menos em idntica medida, e o que me apraz encontrar em todos ou em quase todos, a moral e a esttica da poca. A idia que o homem tem do belo imprime-se em todo o seu vesturio, torna sua roupa

franzida ou rgida, arredonda ou alinha seu gesto e inclusive impregna sutilmente, com o passar do tempo, os traos de seu rosto. O homem acaba por se assemelhar quilo que gostaria de ser. Essas gravuras podem ser traduzidas em belo e em feio; em feio, tornam-se caricaturas; em belo, esttuas antigas. As mulheres que envergavam esses trajes se pareciam mais ou menos umas s outras, segundo o grau de poesia ou de vulgaridade que as distinguia. A matria viva tornava ondulante o que nos parece muito rgido. A imaginao do espectador pode ainda hoje movimentar e fremir esta tnica ou este xale. Talvez, um dia desses, ser montado um drama num teatro qualquer, onde presenciaremos a ressurreio desses costumes nos quais nossos pais se achavam to atraentes quanto ns mesmos em nossas pobres roupas (que tambm tm sua graa, verdade, mas de uma natureza sobretudo moral e espiritual, e se forem vestidos e animados por atrizes e atores inteligentes, ns nos admiraremos de nos terem despertado o riso de modo to leviano). O passado, conservando o sabor do fantasma, recuperar a luz e o movimento da vida, e se tornar presente. [pgina 9] Se um homem imparcial folheasse uma a uma todas as modas francesas desde a origem da Frana at o momento, nada encontraria de chocante nem de surpreendente. Seria possvel ver, sim, as transies organizadas de forma to gradativa quanto na escala do mundo animal. Nenhuma lacuna; logo, nenhuma surpresa. E se ele acrescentasse vinheta que representa cada poca o pensamento filosfico que mais a ocupou ou agitou, pensamento cuja lembrana

inevitavelmente evocada pela vinheta, constataria a profunda harmonia que rege toda a equipe da histria, e que, mesmo nos sculos que nos parecem mais monstruosos e insanos, o imortal apetite do belo sempre foi saciado. Na verdade, esta uma bela ocasio para estabelecer uma teoria racional e histrica do belo, em oposio teoria do belo nico e absoluto; para mostrar que o belo inevitavelmente sempre tem uma dupla dimenso, embora a impresso que produza seja uma, pois a dificuldade em discernir os elementos variveis do belo na unidade da impresso no diminui em nada a necessidade da variedade em sua composio. O belo constitudo por um elemento eterno, invarivel, cuja quantidade excessivamente difcil determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que ser, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a poca, a moda, a moral, a paixo. Sem esse segundo elemento, que como o invlucro aprazvel, palpitante, ape- [pgina 10] ritivo do divino manjar, o primeiro elemento seria indigervel, inaprecivel, no adaptado e no apropriado natureza humana. Desafio qualquer pessoa a descobrir qualquer exemplo de beleza que no contenha esses dois elementos. Escolho, se preferirem, os dois escales extremos da histria. Na arte hiertica, a dualidade salta vista; a parte de beleza eterna s se manifesta com a permisso e dentro dos cnones da religio a que o artista pertence. A dualidade se evidencia igualmente na obra mais frvola de um artista refinado pertencente a uma dessas pocas que qualificamos com excessiva

vaidade de civilizadas; a poro eterna de beleza estar ao mesmo tempo velada e expressa, se no pela moda, ao menos pelo temperamento particular do autor. A dualidade da arte uma conseqncia fatal da dualidade do homem. Considerem, se isso lhes apraz, a parte eternamente subsistente como a alma da arte, e o elemento varivel como seu corpo. por isso que Stendhal, esprito impertinente, irritante, at mesmo repugnante, mas cujas impertinncias necessariamente provocam a meditao, se aproximou mais da verdade do que muitos outros ao afirmar que o belo no seno a promessa da felicidade. Sem dvida, tal definio excede seu objetivo; ela submete de forma excessiva o belo ao ideal indefinidamente varivel da felicidade; despoja com muita desenvoltura o belo de seu carter aristocrtico, mas [pgina 11] tem o grande mrito de afastar-se decididamente do erro dos acadmicos. J expliquei estas coisas mais de uma vez; estas linhas so suficientes para aqueles que apreciam os exerccios do pensamento abstrato; mas sei que os leitores franceses, em sua maioria, neles pouco se comprazem e eu mesmo tenho pressa de entrar na parte positiva e real de meu tema.

II O croqui de costumes Para o croqui de costumes, a representao da vida burguesa e os espetculos da moda, o meio mais expedito e menos custoso evidentemente o melhor.

Quanto mais beleza o artista lhe conferir, mais preciosa ser a obra; mas h na vida ordinria, na metamorfose incessante das coisas exteriores, um movimento rpido que exige do artista idntica velocidade de execuo. As gravuras de vrias tonalidades do sculo XVIII obtiveram novamente o favor da moda, como eu afirmava h pouco; o pastel, a gua-forte, a gua-tinta forneceram sucessivamente seus contingentes para o imenso dicionrio da vida moderna disseminado nas bibliotecas, nas pastas dos amadores e nas vitrines das lojas mais vulgares. A litografia, desde o seu surgi- [pgina 12] mento imediatamente se mostrou bastante apta a essa enorme tarefa aparentemente to frvola. Possumos, nesse gnero, verdadeiros monumentos. As obras de Gavarni e de Daumier foram com justia denominadas complementos da Comdia Humana. O prprio Balzac, tenho certeza absoluta, no estaria longe de adotar essa idia, pela justa razo de que o gnio do pintor de costumes um gnio de uma natureza mista, isto , no qual entra uma boa dose de esprito literrio. Observador, flneur, filsofo, chamem-no como quiserem, mas, para caracterizar esse artista, certamente seremos levados a agraci-lo com um epteto que no poderamos aplicar ao pintor das coisas eternas, ou pelo menos mais duradouras, coisas hericas ou religiosas. s vezes ele um poeta; mais freqentemente aproxima-se do romancista ou do moralista; o pintor do circunstancial e de tudo o que este sugere de eterno. To do os pases, para seu prazer e glria, possuram alguns desses homens. Em nossa poca atual, a Daumier e a Gavarni, primeiros nomes

que nos vm memria, podem-se acrescentar os de Devria, Maurin, Numa, historiadores das ambguas belezas da Restaurao; Wattier, Tassaert, Eugne Lami este ltimo quase ingls, de tanto amor pelas elegncias aristocrticas e inclusive Trimolet e Travis, cronistas da pobreza e da banalidade quotidiana. [pgina 13]

III O artista, homem do mundo, homem das multides e criana Quero falar hoje de um homem singular, originalidade to poderosa e to decidida que se basta a si prpria e no busca sequer a aprovao de outrem. Nenhum de seus desenhos assinado, se chamarmos assinatura essas poucas letras, passveis de falsificao, que representam um nome, e que tantos apem faustosamente embaixo de seus croquis mais insignificantes. Porm, todas as suas obras so assinadas com sua alma resplandecente, e os amadores que as viram e apreciaram as reconhecero sem dificuldade na descrio que delas pretendo fazer. Enamorado pela multido e pelo incgnito, C. G. leva a originalidade s raias da modstia. Thackeray, que, como se sabe, interessa-se bastante pelas coisas de arte e desenha ele prprio as ilustraes de seus romances, um dia discorreu sobre G. num folhetim de Londres. G. irritou-se com o fato, como se se tratasse de um ultraje a seu pudor. Ainda recentemente,

quando soube que eu me propunha fazer uma apreciao de seu esprito e talento, suplicou-me, de uma maneira muito imperiosa, que seu nome fosse suprimido e que s falasse das obras como obras de um annimo. Obedecerei humildemente a esse estranho desejo. [pgina 14] Fingiremos acreditar, o leitor e eu, que G. no existe e trataremos de seus desenhos e aquarelas, pelos quais ele professa um desdm aristocrtico, agindo como esses pesquisadores que tivessem de julgar preciosos documentos histricos, fornecidos pelo acaso, e cujo autor devesse permanecer eternamente desconhecido. Inclusive, para apaziguar completamente minha conscincia, vamos supor que tudo quanto tenho a dizer sobre sua natureza, to curiosa e misteriosamente brilhante, justamente sugerido, mais ou menos, pelas obras em questo; pura hiptese potica, conjetura, trabalho de imaginao. G. velho. Comenta-se que Jean-Jacques comeou a escrever aos quarenta e dois anos. Foi talvez por essa idade que G., obcecado por todas as imagens que lhe povoavam o crebro, teve a audcia de espargir tintas e cores sobre uma folha branca. Para dizer a verdade, ele desenhava como um brbaro, como uma criana, irritando-se contra a impercia de seus dedos e a desobedincia de seu instrumento. Vi muitas dessas garatujas primitivas e confesso que a maioria das pessoas capazes de julgar, ou com essa pretenso, teria podido, sem desabono, no adivinhar o gnio latente que habitava esses tenebrosos esboos. Atualmente G., que descobriu sozinho todos os pequenos truques do ofcio e, sem receber conselhos,

realizou sua prpria formao, tornou-se um admirvel mestre sua maneira, conservando da simplicidade inicial apenas o necessrio [pgina 15] para acrescentar s suas mais ricas faculdades um toque desconcertante. Quando ele descobre uma dessas tentativas de sua juventude, rasga-a ou queimaa com uma vergonha das mais divertidas. Durante dez anos desejei travar conhecimento com G., que , por temperamento, apaixonado por viagens e muito cosmopolita. Sabia que durante muito tempo ele fora correspondente de um jornal ingls ilustrado e que nele publicara gravuras a partir de seus croquis de viagem (Espanha, Turquia, Crimia). Vi, desde essa poca, uma quantidade considervel desses desenhos improvisados nos prprios locais e pude ler assim uma crnica minuciosa e diria da campanha da Crimia, melhor do que qualquer outra. O mesmo jornal publicara tambm, sempre sem assinatura, inmeras composies do mesmo autor, inspiradas nos bals e peras recentes. Quando finalmente o conheci, logo vi que no se tratava precisamente de um artista, mas antes de um homem do mundo. Entenda-se aqui, por favor, a palavra artista num sentido muito restrito, e a expresso homem do mundo num sentido muito amplo. Homem do mundo, isto , homem do mundo inteiro, homem que compreende o mundo e as razes misteriosas e legtimas de todos os seus costumes; artista, isto , especialista, homem subordinado sua palheta como o servo gleba. G. no gosta de ser chamado de artista. No teria ele alguma razo? Ele se interessa pelo mundo inteiro; quer saber, compreender, apre- [pgina 16] ciar tudo o

que acontece na superfcie de nosso esferide. O artista vive pouqussimo ou at no vive no mundo moral e poltico. O que mora no bairro Brda ignora o que se passa no faubourg Saint-Germain. Salvo duas ou trs excees que no vale a pena mencionar, a maioria dos artistas so, deve-se convir, uns brutos muito hbeis, simples artesos, inteligncias provincianas, mentalidades de cidade pequena. Sua conversa, forosamente limitada a um crculo muito restrito, torna-se rapidamente insuportvel para o homem do mundo, para o cidado espiritual do universo. Assim, para entrar na compreenso de G., anotem imediatamente o seguinte: a curiosidade pode ser considerada como ponto de partida de seu gnio. Lembram-se de um quadro (e um quadro, na verdade!) escrito pelo mais poderoso autor desta poca e que se intitula LHomme des Foules (O Homem das Multides)? Atrs das vidraas de um caf, um convalescente, contemplando com prazer a multido, mistura-se mentalmente a todos os pensamentos que se agitam sua volta. Resgatado h pouco das sombras da morte, ele aspira com deleite todos os indcios e eflvios da vida; como estava prestes a tudo esquecer, lembra-se e quer ardentemente lembrar-se de tudo. Finalmente, precipita-se no meio da multido procura de um desconhecido cuja fisionomia, apenas vislumbrada, fascinou-o num relance. A curiosidade transformou-se numa paixo fatal, irresistvel! [pgina 17]

Imagine-se um artista que estivesse sempre, espiritualmente, em estado de convalescena e se ter a chave do carter de G. Ora, a convalescena como uma volta infncia. O convalescente goza, no mais alto grau, como a criana, da faculdade de se interessar intensamente pelas coisas, mesmo por aquelas que aparentemente se mostram as mais triviais. Retornemos, se possvel, atravs de um esforo retrospectivo da imaginao, s mais jovens, s mais matinais de nossas impresses, e constataremos que elas possuem um singular parentesco com as impresses to vivamente coloridas que recebemos ulteriormente, depois de uma doena, desde que esta tenha deixado puras e intactas nossas faculdades espirituais. A criana v tudo como novidade; ela sempre est inebriada. Nada se parece tanto com o que chamamos inspirao quanto a alegria com que a criana absorve a forma e a cor. Ousaria ir mais longe: afirmo que a inspirao tem alguma relao com a congesto, e que todo pensamento sublime acompanhado de um estremecimento nervoso, mais ou menos intenso, que repercute at no cerebelo. O homem de gnio tem nervos slidos; na criana, eles so fracos. Naquele, a razo ganhou um lugar considervel; nesta, a sensibilidade ocupa quase todo o seu ser. Mas o gnio somente a infncia redescoberta sem limites; a infncia agora dotada, para expressar-se, de rgos viris e do esprito analtico que lhe [pgina 18] permitem ordenar a soma de materiais involuntariamente acumulada. curiosidade profunda e alegre que se deve atribuir o olhar fixo e

animalmente esttico das crianas diante do novo, seja o que for, rosto ou paisagem, luz, brilhos, cores, tecidos cintilantes, fascnio da beleza realada pelo traje. Um de meus amigos dizia-me um dia que, ainda pequeno, via seu pai lavando-se e que ento contemplava com uma perplexidade mesclada de deleite os msculos dos braos, as gradaes de cores da pele matizada de rosa e amarelo, e a rede azulada das veias. O quadro da vida exterior j o impregnava de respeito e se apoderava de seu crebro. A forma j o obcecava e o possua. A predestinao mostrava precocemente a ponta do nariz. A danao estava consumada. preciso dizer que essa criana hoje um pintor clebre? Eu exortava meu leitor ainda h pouco a que considerasse G. como um eterno convalescente: para completar sua inteleco, considere-o tambm como um homem-criana, como um homem dominado a cada minuto pelo gnio da infncia, ou seja, um gnio para o qual nenhum aspecto da vida indiferente. Dizia-lhe que me desagradava cham-lo de puro artista e que ele prprio recusava esse ttulo com uma modstia mesclada de pudor aristocrtico. Eu o chamaria de bom grado dndi, e teria algumas boas razes para isso; pois a palavra dndi implica uma quintessncia de carter [pgina 19] e uma compreenso sutil de todo mecanismo moral deste mundo; mas, por outro lado, o dndi aspira insensibilidade, e por esse ngulo que G., que dominado por uma paixo insacivel, a de ver e de sentir, se afasta violentamente do dandismo. Amabam amare, dizia Santo Agostinho. Amo

apaixonadamente a paixo, diria G. com naturalidade. O dndi entediado, ou finge s-lo, por poltica e razo de casta. G. tem horror s pessoas entediadas. Ele possui a arte extremamente difcil (os espritos refinados iro me compreender) de ser sincero sem ser ridculo. Poderia condecor-lo com o ttulo de filsofo, que ele merece por vrias razes, se seu amor excessivo pelas coisas visveis, tangveis, condensadas no estado plstico no lhe inspirasse uma certa repugnncia por aquelas que formam o reino impalpvel do metafsico. Vamos reduzi-lo, portanto, condio de puro moralista pitoresco, como La Bruyre. A multido seu universo, como o ar o dos pssaros, como a gua, o dos peixes. Sua paixo e profisso desposar a multido. Para o perfeito flneur, para o observador apaixonado, um imenso jbilo fixar residncia no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espritos independentes, apaixo[pgina 20] nados imparciais, que a linguagem no pode definir seno toscamente. O observador um prncipe que frui por toda parte do fato de estar incgnito. O amador da vida faz do mundo a sua famlia, tal como o amador do belo sexo compe sua famlia com toda as belezas encontradas, encontrveis ou inencontrveis; tal como o amador de quadros vive numa sociedade encantada de sonhos pintados. Assim o apaixonado pela vida universal entra na multido

como se isso lhe aparecesse como um reservatrio de eletricidade. Pode-se igualmente compar-lo a um espelho to imenso quanto essa multido; a um caleidoscpio dotado de conscincia, que, a cada um de seus movimentos, representa a vida mltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida. um eu insacivel do no-eu, que a cada instante o revela e o exprime em imagens mais vivas do que a prpria vida, sempre instvel e fugidia. Todo homem, dizia G. um dia, numa dessas conversas que ele ilumina com um olhar intenso e um gesto evocativo, todo homem que no atormentado por uma dessas tristezas de natureza demasiado concreta que absorvem todas as faculdades, e que se entedia no seio da multido, um imbecil! Um imbecil! e desprezo-o! Quando G., ao despertar, abre os olhos e v o sol flamejante invadindo as vidraas, diz para si mesmo com remorso, com arrependimento: Que ordem imperiosa! Que fanfarra de luz! H muitas horas j, luz em toda [pgina 21] parte! Luz perdida por causa de meu sono! Quantas coisas iluminadas poderia ter visto e no vi! E ele sai! E observa fluir o rio da vitalidade, to majestoso e brilhante. Admira a eterna beleza e a espantosa harmonia da vida nas capitais, harmonia to providencialmente mantida no tumulto da liberdade humana. Contempla as paisagens da cidade grande, paisagens de pedra acariciadas pela bruma ou fustigadas pelos sopros do sol. Admira as belas carruagens, os garbosos cavalos, a limpeza reluzente dos lacaios, a destreza dos criados, o anda das mulheres ondulosas, as belas crianas, felizes por

viverem e estarem bem vestidas; resumindo, a vida universal. Se uma moda, um corte de vesturio foi levemente transformado, se os laos de fita e os cachos foram destronados pelas rosetas, se a mantilha se ampliou e o coque desceu um pouquinho na nuca, se a cintura foi erguida e a saia alargada, acreditem que a uma distncia enorme seu olhar de guia j adivinhou. Um regimento passa, ele vai talvez ao fim do mundo, difundindo no ar dos bulevares suas fanfarras sedutoras e difanas como a esperana; e eis que o olhar de G. j viu, inspecionou, analisou as armas, o porte e a fisionomia dessa tropa. Arreios, cintilaes, msica, olhares decididos, bigodes espessos e graves, tudo isso ele absorve simultaneamente; e em alguns minutos o poema que disso resulta estar virtualmente composto. E sua alma vive com a alma desse [pgina 22] regimento que marcha como se fosse um nico animal, altiva imagem da alegria na obedincia! Mas a noite chegou. a hora estranha e ambgua em que se fecham as cortinas do cu e se iluminam as cidades. Os revrberos se sobressaem sobre a prpura do poente. Honestos ou desonestos, sensatos ou insanos, os homens dizem consigo: Enfim, acabou-se o dia! Os plcidos e os de m ndole pensam no prazer e todos acorrem ao lugar de sua preferncia para beber a taa do esquecimento. G. ser o ltimo a partir de qualquer lugar onde possa resplandecer a luz, ressoar a poesia, fervilhar a vida, vibrar a msica; de todo lugar onde uma paixo possa posar diante de seus olhos, de todo lugar onde o homem natural e o homem convencional se mostrem numa beleza

estranha, de todo lugar onde o sol ilumina as alegrias efmeras do animal depravado! Foi, com certeza, uma jornada bem empregada, pensar certo leitor que todos conhecemos. Todos tm talento suficiente para preench-la da mesma maneira. No! Poucos homens so dotados da faculdade de ver; h ainda menos homens que possuem a capacidade de exprimir. Agora, hora em que os outros esto dormindo, ele est curvado sobre sua mesa, lanando sobre uma folha de papel o mesmo olhar que h pouco dirigia s coisas, lutando com seu lpis, sua pena, seu pincel, lanando gua do copo at o teto, limpando a pena na camisa, apressando, violento, ativo, como se temesse que as [pgina 23] imagens lhe escapassem, belicoso, mas sozinho e debatendo-se consigo mesmo. E as coisas renascem no papel, naturais e, mais do que naturais, belas; mais do que belas, singulares e dotadas de uma vida entusiasta como a alma do autor. A fantasmagoria foi extrada da natureza. Todos os materiais atravancados na memria classificam-se, ordenam-se, harmonizam-se e sofrem essa idealizao forada que o resultado de uma percepo infantil, isto , de uma percepo aguda, mgica fora de ser ingnua!

IV A modernidade Assim ele vai, corre, procura. O qu? Certamente esse homem, tal como o descrevi, esse solitrio dotado de uma imaginao ativa, sempre viajando atravs do

grande deserto de homens, tem um objetivo mais elevado do que o de um simples flneur, um objetivo mais geral, diverso do prazer efmero da circunstncia. Ele busca esse algo, ao qual se permitir chamar de Modernidade; pois no me ocorre melhor palavra para exprimir a idia em questo. Trata-se, para ele, de tirar da moda o que esta pode conter de potico no histrico, de extrair o eterno do transitrio. Se lanarmos um olhar a nossas exposies de quadros modernos, ficaremos espantados com a tendncia geral dos [pgina 24] artistas para vestirem todas as personagens com indumentria antiga. Quase todas se servem das modas e dos mveis do Renascimento, como David se servia das modas e dos mveis romanos. H, no entanto, uma diferena, pois David, tendo escolhido temas especificamente gregos ou romanos, no podia agir de outra forma seno vesti-los moda antiga, enquanto os pintores atuais, escolhendo temas de uma natureza geral que podem se aplicar a todas as pocas, obstinam-se em fantasi-los com trajes da Idade Mdia, do Renascimento ou do Oriente. Evidentemente, sinal de uma grande preguia; pois muito mais cmodo declarar que tudo absolutamente feio no vesturio de uma poca do que se esforar por extrair dele a beleza misteriosa que possa conter, por mnima ou tnue que seja. A Modernidade o transitrio, o efmero, o contingente, a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutvel. Houve uma modernidade para cada pintor antigo: a maior parte dos belos retratos que nos provm das pocas passadas est revestida de costumes da prpria

poca. So perfeitamente harmoniosos; assim, a indumentria, o penteado e mesmo o gesto, o olhar e o sorriso (cada poca tem seu porte, seu olhar e seu sorriso) formam um todo de completa vitalidade. No temos o direito de desprezar ou de prescindir desse elemento transitrio, fugidio, essas metamorfoses so to freqentes. Suprimindo-os, camos forosamente no vazio de uma beleza abstrata e [pgina 25] indefinvel, como a da nica mulher antes do primeiro pecado. Se vestimenta da poca, que se impe necessariamente, substituirmos uma outra, cometemos um contra-senso s desculpvel no caso de uma mascarada ditada pela moda. Assim, as deusas, as ninfas e as sultanas do sculo XVIII so retratos moralmente verossmeis. Sem dvida, excelente estudar os antigos mestres para aprender a pintar, mas isso pode ser tosomente um exerccio suprfluo se o nosso objetivo compreender o carter da beleza atual. Os planejamentos de Rubens ou de Vronse no nos ensinaro a fazer chamalote, cetim rainha ou qualquer outro tecido de nossas fbricas, entufado, equilibrado pela crinolina ou pelos saiotes de musselina engomada. O tecido e a textura no so os mesmos que os da antiga Veneza ou os usados na corte de Catherine. Acrescentemos tambm que o corte da saia e do corpete absolutamente diferente, que as pregas so dispostas de acordo com um novo sistema, que os gestos e o porte da mulher atual do a seu vestido uma vida e uma fisionomia que no so as da mulher antiga. Em poucas palavras, para que toda Modernidade seja digna de tornar-se Antigidade,

necessrio que dela se extraia a beleza misteriosa que a vida humana involuntariamente lhe confere. a essa tarefa que G. se dedica em particular. Anteriormente afirmei que cada poca tinha seu porte, seu olhar e seu gesto. sobretudo numa vasta galeria [pgina 26] de retratos (a de Versalhes, por exemplo) que se torna fcil verificar essa proposio. Mas ela pode estender-se mais amplamente. Na unidade que se chama nao, as profisses as castas e os sculos introduzem a variedade, no somente nos gestos e nas maneiras, mas tambm na forma concreta do rosto. Tal nariz, tal boca, tal fronte correspondem ao intervalo de uma durao que no pretendo determinar aqui, mas que certamente pode ser submetida a um clculo. Essas consideraes no so suficientemente familiares aos retratistas; e o grande defeito de Ingres, em particular, querer impor a cada tipo que posa diante de seus olhos um aperfeioamento mais ou menos compulsrio colhido no repertrio das idias clssicas. Em semelhante matria, seria fcil e mesmo legtimo raciocinar a priori. A correlao perptua do que chamamos alma com o que chamamos corpo explica perfeitamente como tudo o que material ou emanao do espiritual representa e representar sempre o espiritual de onde provm. Se um pintor paciente e minucioso, mas dotado de uma imaginao medocre, em vez de pintar uma cortes do tempo presente, inspira-se ( a expresso consagrada) em uma cortes de Ticiano ou de Rafael, muito provvel que far uma obra falsa, ambgua e obscura. O estudo de uma obra-prima daquela poca e daquele gnero

no lhe ensinar nem a atitude, nem o olhar, nem o trejeito, nem o aspecto vital de uma dessas criaturas que [pgina 27] o dicionrio da moda sucessivamente classificou, com nomes grosseiros ou maliciosos, de impuras, mulheres sustentadas, loureiras e mundanas. A mesma crtica aplica-se rigorosamente no estudo do militar, do dndi ou mesmo dos animais, co ou cavalo, e de tudo quanto compe a vida exterior de um sculo. Ai daquele que estuda no antigo outra coisa que no a arte pura, a lgica e o mtodo geral. De tanto se enfronhar nele, perde a memria do presente; abdica do valor dos privilgios fornecidos pela circunstncia, pois quase toda nossa originalidade vem da inscrio que o tempo imprime s nossas sensaes. O leitor compreende antecipadamente que eu poderia comprovar facilmente minhas asseres atravs de numerosos outros objetos que no a mulher. Que diriam, por exemplo, de um pintor de marinhas (levo a hiptese ao extremo) que, tendo de reproduzir a beleza sbria e elegante do navio moderno, atormentasse seus olhos estudando as formas sobrecarregadas, retorcidas, a popa monumental de um navio antigo e os velames complicados do sculo XVI? E o que pensariam de um artista a quem tivessem incumbido de fazer o retrato de um puro-sangue, clebre nas solenidades do turfe, se ele fosse confinar suas contemplaes nos museus, se se contentasse em observar o cavalo nas galerias do passado, em Van Dyck, Bourguignon ou Van der Meulen? [pgina 28] G., guiado pela natureza, tiranizado pela circunstncia, enveredou por um caminho

completamente diferente. Comeou contemplando a vida e s muito tarde se esforou para aprender os meios para express-la. Disso resultou uma originalidade extraordinria, na qual o que pode restar de brbaro ou de ingnuo aparece como nova prova de obedincia impresso, como lisonja verdade. Para a maioria dentre ns, sobretudo para os homens de negcios, aos olhos de quem a natureza existe apenas em suas relaes de utilidade com seus negcios, o fantstico real da vida acha-se singularmente embotado. G. absorve-o continuamente e dele tem a memria e os olhos repletos.

V A arte mnemnica A palavra barbrie, que talvez tenha aparecido com excessiva freqncia nos meus escritos, poderia induzir algumas pessoas a acreditarem que se trata, neste caso, de alguns desenhos informes, aos quais to-somente a imaginao do espectador sabe transformar em coisas perfeitas. Seria me compreender erroneamente. Quero falar de uma barbrie inevitvel, sinttica, infantil, que muitas vezes permanece visvel numa arte perfeita (mexicana, egpcia [pgina 29] ou ninivita) e que resulta da necessidade de ver as coisas de maneira ampla, e de, principalmente, consider-las no seu efeito de conjunto. No suprfluo observar aqui que muitas pessoas acusaram de barbrie todos os pintores cujo olhar sinttico e abreviador Corot, por exemplo,

que se dedica inicialmente a traar as linhas principais de uma paisagem, sua ossatura e sua fisionomia. Assim, G., traduzindo fielmente as prprias impresses, marca com uma energia instintiva os pontos culminantes ou luminosos de um objeto (podem ser culminantes ou luminosos, do ponto de vista dramtico), ou suas principais caractersticas, algumas vezes inclusive com um exagero til para a memria humana; e a imaginao do espectador, submetendo-se por sua vez a essa mnemnica to desptica, v com nitidez a impresso produzida pelas coisas sobre o esprito de G. O espectador aqui o tradutor de uma traduo sempre clara e inebriante. Existe um elemento que acrescenta muito fora vital dessa traduo lendria da vida exterior. Refirome ao mtodo de desenhar de G. Ele desenha de memria, e no a partir do modelo, salvo em casos (a guerra da Crimia, por exemplo) em que h necessidade urgente de tomar notas imediatas, rpidas, e de fixar as linhas principais de um tema. Na verdade, todos os bons e verdadeiros desenhistas desenham a partir da imagem inscrita no prprio crebro, e no a partir da natureza. Se nos fizerem obje- [pgina 30] e quanto aos admirveis croquis de Rafael, de Watteau e de muitos outros, diremos que so notas muito minuciosas, verdade, mas simples notas. Quando um verdadeiro artista chega execuo definitiva de sua obra, o modelo lhe ser mais um embarao do que um auxlio. H casos at em que homens como Daumier e G., acostumados h muito a exercitar sua memria e a povo-la de imagens, tm as faculdades principais perturbadas e como que

paralisadas diante do modelo e da multiplicidade de detalhes que ele comporta. Estabelece-se assim um duelo entre a vontade de tudo ver, de nada esquecer, e a faculdade da memria, que adquiriu o hbito de absorver com vivacidade a cor geral e a silhueta, o arabesco do contorno. Um artista que tem o sentimento perfeito da forma, mas acostumado a exercitar sobretudo a memria e a imaginao, encontra-se ento como que assaltado por uma turba de detalhes, todos reclamando justia com a mesma fria de uma multido vida por igualdade absoluta. Toda justia acha-se forosamente violada, toda harmonia destruda e sacrificada; muitas trivialidades assumem importncia, muitos detalhes sem importncia tornam-se usurpadores. Quanto mais o artista se curva com imparcialidade sobre o detalhe, mais aumenta a anarquia. Se for mope ou presbita, toda hierarquia e toda subordinao desaparecem. um acidente que aparece constantemente nas obras de um de nossos [pgina 31] pintores mais em voga, cujos defeitos, alis, so to bem apropriados aos da multido que contriburam singularmente para sua popularidade. Adivinha-se a mesma analogia no exerccio da arte do ator, arte to misteriosa, to profunda, vtima nos dias de hoje da confuso das decadncias. Frdrick Lemaitre desempenha um papel com a amplitude e a grandeza do gnio. Por mais que sua criao esteja semeada de detalhes luminosos, permanece sinttica e escultural. Bouff compe os seus papis com uma mincia de mope e de burocrata. Nele tudo brilha, mas nada transparece, nada quer ser guardado pela memria.

Assim, na execuo de G. evidenciam-se duas coisas: a primeira, um esforo de memria ressurreicionista, evocadora, uma memria que diz a cada coisa: Lzaro, levanta-te; a outra, um fogo, uma embriaguez de lpis, de pincel, que se assemelha quase a um furor. o medo de no agir com suficiente rapidez, de deixar o fantasma escapar antes que sua sntese tenha sido extrada e captada; o pavor terrvel que se apodera de todos os grandes artistas e que os faz desejar to ardentemente apropriarem-se de todos os meios de expresso para que jamais as ordens do esprito sejam alteradas pelas hesitaes da mo; para que finalmente a execuo, a execuo ideal se torne to inconsciente, to fluente quanto a digesto para o crebro do homem sadio que acabou de jantar. G. comea por leves indicaes a lpis, que apenas indicam a posio que [pgina 32] os objetos devem ocupar no espao. Os planos principais so indicados em seguida por tons em aguada, massas de incio coloridas vagamente, levemente, porm retomadas mais tarde e carregadas sucessivamente com cores mais intensas. No ltimo momento, o contorno dos objetos definitivamente delineado com tinta. A menos que j os tenhamos visto, no se pode imaginar os efeitos surpreendentes que G. consegue obter com esse mtodo to simples e quase elementar, que tem a incomparvel vantagem de, em qualquer etapa de sua progresso, cada desenho parecer suficientemente acabado; algum dir que isso um esboo, se se quiser, mas um esboo perfeito. Todos os valores se encontram em perfeita harmonia, e se G. quiser levlos adiante. eles se encaminharo decididamente para

o aperfeioamento desejado. Ele prepara desse modo vinte desenhos ao mesmo tempo com uma petulncia e alegria encantadoras, divertidas at mesmo para ele, os croquis empilham-se e superpem-se s dezenas, s centenas, aos milhares. De vez em quando G. percorre-os, folheia-os, examina-os, e depois escolhe alguns, nos quais aumenta mais ou menos a intensidade, carrega as sombras e clareia progressivamente as zonas luminosas. G. dedica uma imensa importncia aos fundos, que, vigorosos ou evanescentes, sempre so de uma qualidade e de uma natureza apropriadas s figuras. A gama de tons e a harmonia geral so estritamente observadas, com um [pgina 33] gnio que provm mais do instinto do que do estudo. Pois G. possui naturalmente o talento misterioso do colorista, verdadeiro dom que o estudo pode desenvolver, mas que , por si mesmo, creio, incapaz de criar. Para resumir em poucas palavras, nosso singular artista exprime ao mesmo tempo o gesto e a atitude solene ou grotesca dos seres e sua exploso luminosa no espao.

VI Os anais da guerra A Bulgria, a Turquia, a Crimia e a Espanha foram grandes festas para os olhos de G., ou melhor, para os olhos do artista imaginrio que convencionamos chamar de G.; pois lembro-me de vez em quando que prometi a mim mesmo, para tranqilizar mais sua modstia, supor que ele no

existia. Compulsei os arquivos da guerra do Oriente (campos de batalha juncados de restos mortais, carroas de materiais, embarques de gado e de cavalos), quadros vivos e surpreendentes, decalcados na prpria vida, elementos de um pitoresco precioso que muitos pintores famosos, colocados nas mesmas circunstncias, teriam negligenciado imprudentemente; no entanto, destes excluirei naturalmente Horace Vernet, verdadeiro jornalista em vez de pintor essencial, com quem G., artista mais delica- [pgina 34] do tem afinidades visveis, se quisermos consider-lo apenas como arquivista da vida. Posso afirmar que nenhum dirio, nenhum relato escrito, nenhum livro exprime to bem, em todos os seus detalhes dolorosos e em sua sinistra amplitude, a grande epopia da guerra da Crimia. O olhar vagueia sucessivamente pelas margens do Danbio, pelas margens do Bsforo, pelo cabo Kerson, pela plancie de Balaklava, pelos campos de Inkermann, pelos acampamentos ingleses, franceses, turcos e piemonteses, pelas ruas de Constantinopla, pelos hospitais e por todas as solenidades religiosas e militares. Uma das composies que mais se gravaram em meu esprito a Conscration dun Terrain Funbre Scutari par lvque de Gibraltar (Consagrao de um Cemitrio em Scutari pelo Bispo de Gibraltar). O carter pitoresco da cena, que consiste no contraste da natureza oriental circundante com as atitudes e os uniformes ocidentais da assistncia, expresso de uma maneira fascinante, sugestiva e cheia de fantasia. Os soldados e os oficiais tm esses ares indelveis de

gentlemen, resolutos e discretos, que os distinguem at o fim do mundo, at nas guarnies da colnia do Cabo e nas feitorias da ndia: os pastores ingleses lembram vagamente meirinhos ou agentes de cmbio que tivessem vestido barrete e cabeo. Aqui estamos em Schumla, nas propriedades de Omar Pax: hospitalidade turca, cachimbos e caf; todos os visi- [pgina 35] tantes esto acomodados em divs, ajustando em seus lbios cachimbos longos como sarabatanas, cujos fornilhos repousam a seus ps. Aqui, os Kurdes Scutari (Curdos em Scutari), tropas estranhas cujo aspecto faz pensar em uma invaso de hordas brbaras; ali, soldados turcos, no menos peculiares com seus oficiais europeus, hngaros ou poloneses, cuja fisionomia de dndis contrasta estranhamente com o carter barrocamente oriental de seus soldados. Vejo um desenho magnfico onde emerge uma nica personagem, grande, robusta, com ar ao mesmo tempo pensativo, despreocupado e audacioso; grandes botas lhe chegam acima dos joelhos; seu uniforme militar est escondido sob um pesado e largo casaco completamente abotoado; atravs da fumaa do charuto, ela perscruta o horizonte sinistro e brumoso; um dos braos ferido sustentado por uma gravata servindo de tipia. Embaixo, leio estas palavras rabiscadas a lpis: Canrobet ou the battle field of lnkermann. Taken on the spot. Quem esse cavaleiro, de bigodes brancos, com uma fisionomia to intensamente desenhada, que, com a cabea erguida, d a impresso de sorver a terrvel poesia de um campo de batalha, enquanto seu cavalo,

farejando a terra, procura um caminho entre os cadveres amontoados, pernas para o ar, faces crispadas, em estranhas atitudes? Embaixo do desenho, num canto, pode-se ler estas palavras: Myself at Inkermann. [pgina 36] Entrevejo Baraguay-dHilliers, com o comandante-em-chefe do exrcito otomano passando em revista a artilharia em Bchichtash. Raramente vi um retrato militar mais verossmil, burilado por mo mais arrojada e inteligente. Um nome, sinistramente ilustre desde os desastres da Sria, aparece minha vista: Achmet-Pacha, Gnral en Chef Kalafat. Debout Devant sa Hutte, avec son tat-majo, se Fait Presenter Deux Officiers Europens (Achinet Pax, General-de-exrcito Kalafat, em P Diante de sua Tenda, com seu Estadomaior. Recebendo a Apresentao de Dois Oficiais Europeus). Apesar do volume de sua pana turca, Achmet Pax tem, na atitude e no rosto, o grande ar aristocrtico que geralmente pertence s raas dominadoras. A batalha de Balaklava aparece vrias vezes nessa curiosa coletnea, e em diferentes aspectos. Entre os mais surpreendentes, eis a histrica carga da cavalaria cantada pela trombeta herica de Alfred Tennyson, poeta da rainha: uma multido de cavaleiros se precipita numa velocidade prodigiosa em direo do horizonte, entre as pesadas nuvens da artilharia. Ao fundo, a paisagem cortada por uma linha de colinas verdejantes. De vez em quando, quadros religiosos repousam o olhar entristecido por todo esse caos de plvora e

essas turbulncias mortferas. No meio dos soldados ingleses de diferentes armas, entre os quais se sobressai o pitoresco uniforme dos escoceses de saia, um pastor anglicano l o [pgina 37] ofcio do domingo; trs tambores, o primeiro apoiado sobre os outros dois, lhe servem de plpito. Na verdade, difcil traduzir unicamente atravs de palavras esse poema composto de mil croquis, to imenso e complexo, e exprimir a exaltao que se desprende de todo esse pitoresco coligido, freqentemente doloroso, mas jamais lacrimejante, em algumas centenas de pginas, cujas mculas e ranhuras testemunham, a seu modo, a perturbao e o tumulto em meio a que o artista ali depositava suas lembranas do dia. tardinha, o correio levava para Londres as notas e desenhos de G.; e muitas vezes este entregava ao correio mais de dez croquis improvisados em papel pelure, aguardados impacientemente pelos gravadores e assinantes do jornal. Ora so retratados os hospitais ambulantes onde a prpria atmosfera parece doente, triste e pesada, onde cada leito contm uma dor; ora o hospital de Pra, onde vejo, conversando com duas irms de caridade, altas, plidas e rgidas como figuras de Lesueur, um visitante vestido com desleixo, designado por esta estranha legenda: My bumble self. Agora em veredas speras e sinuosas, juncadas de restos de um combate j antigo, seguem lentamente alguns animais, mulas, asnos ou cavalos, que carregam em seus flancos, em dois grosseiros assentos, feridos lvidos e inertes. Na copiosa neve, camelos de peitoril majestoso, cabea

erguida, conduzidos por trtaros, arrastam provises [pgina 38] ou munies de vrias espcies: todo um universo guerreiro, vivo, atarefado e silencioso; so acampamentos, bazares, onde se expem amostras de todas as mercadorias, espcies de cidades brbaras improvisadas para o momento. Atravs dessas barracas, nesses caminhos pedregosos ou nevados, nesses desfiladeiros, circulam uniformes de vrias naes, mais ou menos deteriorados pela guerra ou alterados pela adjuno de volumosas pelias e de pesados calados. pena que este lbum, espalhado agora em vrios lugares e cujas pginas preciosas foram retidas pelos gravadores encarregados de traduzi-las ou pelos redatores do Illustrated London News, no tenha cado sob os olhos do imperador. Imagino que ele teria examinado com complacncia e no sem certo enternecimento os feitos e os gestos de seus soldados, todos expressos minuciosamente, dia a dia, desde as aes mais extraordinrias at as tarefas mais triviais da vida, por essa mo de soldado-artista, to firme inteligente.

VII Pompas e solenidades A Turquia forneceu igualmente a nosso caro G. admirveis motivos de composies: as festas do Baram, es- [pgina 39] plendores profundos e cintilantes, ao fundo das quais aparece, como um sol plido, o tdio permanente do sulto defunto:

alinhados esquerda do soberano, todos os oficiais da ordem civil; sua direita, todos os da ordem militar, o primeiro deles Said Pax, sulto do Egito, ento em Constantinopla; cortejos e pompas solenes desfilam em direo pequena mesquita prxima do palcio, e, no meio dessas massas, funcionrios turcos, verdadeiras caricaturas de decadncia, esmagando seus magnficos cavalos sob o peso de uma obesidade fantstica; as pesadas viaturas compactas, espcies de carruagens Lus XIV, douradas e adornadas pelo capricho oriental, das quais surgem, s vezes, olhares curiosamente femininos, no estrito intervalo que as faixas de musselina grudadas no rosto deixam aos olhos; as danas frenticas dos bailarinos do terceiro sexo (jamais a expresso burlesca de Balzac foi mais aplicvel do que no caso presente, pois, sob a palpitao daquelas refulgncias tremulantes, sob a agitao daquelas amplas roupas, sob aquela ardente maquilagem das faces, olhos e sobrancelhas, naqueles gestos histricos e convulsivos, naquelas longas cabeleiras esvoaando sobre os rins, seria difcil, para no dizer impossvel, adivinhar a virilidade); e, finalmente, as mulheres galantes (se contudo se pode pronuncia a palavra galanteria a propsito do Oriente), geralmente compostas de hngaras, valquias, judias, polonesas, gregas e armnias, j que, num governo desptico, so as [pgina 40] raas oprimidas, e entre estas sobretudo as fadadas ao maior sofrimento, que fornecem mais contingentes prostituio. Algumas dessas mulheres conservaram os trajes nacionais, os jalecos de mangas curtas bordados, as echarpes sinuosas, as calas largas, as babuchas dobradas, as

musselinas listradas ou lameladas, e todo o ouripel do pas natal; as outras, e so as mais numerosas, adotaram o signo mais peculiar da civilizao, que para a mulher invariavelmente a crinolina, conservando, no entanto, numa parte do traje, uma leve recordao caracterstica do Oriente, o que faz com que dem a impresso de parisienses que se tivessem fantasiado. G. pinta admiravelmente o fausto das cenas oficiais, das pompas e solenidades nacionais, no de modo frio e didtico, como os pintores que vem nessas obras apenas fardos lucrativos, mas com todo o ardor de um homem apaixonado pelo espao, pela perspectiva, pela luz que envolve ou explode e se fixa em gotas ou em centelhas nas asperezas dos uniformes e dos trajes de corte. La Fte Commmorative de lIndpendance dans la Cathdrale dAthnes (A Festa Comemorativa da Independncia na Catedral de Atenas) oferece um curioso exemplo desse talento. Todas essas pequenas personagens, cada qual no seu devido lugar, tornam mais profundo o espao que as contm. A catedral imensa e decorada com tapearias solenes. O rei Oto e a rainha, em p sobre um estrado, vestem o costume tradi- [pgina 41] cional, que trajam com uma naturalidade maravilhosa, como para dar testemunho da sinceridade de sua adoo e do mais refinado patriotismo helnico. A cintura do rei est cingida como a do mais garrido combatente, e sua saia alarga-se com todo o exagero do dandismo nacional. Diante deles, caminha o patriarca, um ancio de costas curvadas, grande barba branca, cujos pequenos olhos so protegidos por

culos verdes, que traz em todo o seu ser os sinais de uma consumada fleuma oriental. Todas as personagens que povoam essa composio so retratos, e um dos mais curiosos, pela estranheza de sua fisionomia to pouco helnica quanto possvel, o de uma dama alem, postada ao lado da rainha e fazendo parte de seu servio. Nas colees de G. encontra-se freqentemente o imperador dos franceses, cuja figura ele soube reduzir, sem prejuzo da verossimilhana, a um croqui infalvel, executado com a segurana de uma rubrica. Ora o imperador passa tropas em revista, galopando e acompanhado por oficiais cujos traos so facilmente reconhecveis, ou por prncipes estrangeiros, europeus, asiticos ou africanos, a quem presta, por assim dizer, as honras de Paris. Outras vezes ns o vemos imvel, montado num cavalo cujos ps so to firmes quanto os quatro ps de uma mesa, tendo sua esquerda a imperatriz em trajes de amazonas e, sua direita, o pequeno prncipe imperial, usando um barrete de pele e mantendo-se com porte militar sobre um cavali- [pgina 42] nho eriado como os pneis que os artistas ingleses costumam colocar em suas paisagens; algumas vezes sumindo nas alamedas do Bois de Boulogne num turbilho de luz e de poeira; outras vezes, caminhando lentamente sob as aclamaes do faubourg Saint-Antoine. Uma dessas aquarelas me fascinou particularmente por seu carter ferico. Na extremidade de um camarote de uma riqueza pesada e principesca, a imperatriz aparece numa atitude tranqila e repousada; o imperador curva-se ligeiramente, como que para melhor apreciar

o teatro; embaixo, dois soldados da guarda imperial, em p, numa imobilidade militar e quase hiertica, recebem sobre os brilhantes uniformes os reflexos da ribalta. Atrs da faixa de luz, na atmosfera ideal do palco, os atores cantam, declamam, gesticulam harmoniosamente; do outro lado estende-se um abismo de luz vaga, um espao circular cheio de figuras humanas em todos os andares: o esplendor e o pblico. Os movimentos populares, os clubes e as solenidades de 1848 forneceram igualmente a G. uma srie de composies pitorescas, a maior parte delas gravada pelo Ilustrated London News. H alguns anos, depois de uma estada na Espanha, muito profcua para seu talento, G. comps tambm um lbum do mesmo gnero, do qual vi apenas alguns fragmentos. A displicncia com a qual ele d ou empresta seus desenhos muitas vezes o expe a perdas irreparveis. [pgina 43]

VIII O militar Para definir uma vez mais o gnero de temas preferido pelo artista, afirmaremos que a pompa da vida, tal como ela se oferece nas capitais do mundo civilizado, a pompa da vida militar, da vida elegante, da vida galante. Nosso observador est sempre infalivelmente a postos em toda a parte onde fluem os desejos profundos e impetuosos, os Orinocos do corao humano, a guerra, o amor e o jogo; em toda

parte onde se agitam as festas e as fices que representam esses grandes elementos da felicidade e do infortnio. Mas ele mostra uma predileo muito acentuada pelo militar, pelo soldado, e acredito que essa propenso se deve no somente s virtudes e qualidades que passam forosamente da alma do guerreiro para sua atitude e seu rosto, como tambm ao paramento vistoso com que sua profisso o reveste. Paul de Molnes escreveu algumas pginas to encantadoras quanto sensatas sobre a coqueteria militar e sobre o sentido moral da indumentria cintilante com que todos os governos se comprazem em vestir suas tropas. G. assinaria de bom grado essas linhas. J falamos do idiotismo da beleza particular de cada poca e observamos que cada sculo possua, por assim dizer, sua graa particular. Pode-se aplicar a mesma observao s profisses; cada qual extrai sua beleza exterior [pgina 44] das leis morais s quais submetida. Em algumas, essa beleza ser marcada pela energia; em outras, trar os sinais visveis do cio. como o emblema do carter, a inscrio da fatalidade. O militar, considerado em sua generalidade, tem sua beleza, como o dndi e a mulher galante a tm, de gosto essencialmente diferente. Alguns acharo natural que eu negligencie as profisses em que um exerccio exclusivo e violento deforma os msculos e marca o rosto com um sinal de servido. Acostumado s surpresas, o militar raramente se surpreende. Ento, nesse caso, o sinal particular da beleza ser uma despreocupao marcial, mescla singular de placidez e de audcia;

uma beleza que decorre da necessidade de estar pronto para morrer a cada minuto. Mas o semblante do militar ideal dever trazer a marca de uma grande simplicidade; pois, vivendo em comunidade como os monges e os estudantes, habituados a se descarregarem das preocupaes quotidianas da vida a respeito de uma paternidade abstrata, os soldados so, em muitos aspectos, to ingnuos como as crianas; e, como elas, estando o dever cumprido, divertem-se com facilidade e preferem as diverses violentas. Acredito no estar exagerando ao afirmar que todas essas consideraes morais brotam naturalmente dos croquis e das aquarelas de G. Deles nenhum tipo militar est ausente e todos foram captados com uma espcie de alegria entusiasta: o velho oficial de infantaria, srio e triste, mor- [pgina 45] tificando o cavalo com sua obesidade; o belo oficial de Estadomaior, uniforme cintado, remexendo os ombros, curvando-se sem timidez sobre a poltrona das senhoras, e que, visto de costas, evoca os insetos mais esbeltos e elegantes; o zuavo e o atirador, que manifestam em seu porte um excessivo carter de audcia e de independncia, e como que um sentimento mais vivo de responsabilidade pessoal; a desenvoltura gil e alegre da cavalaria ligeira; a fisionomia vagamente professoral e acadmica dos corpos especiais, como a artilharia e a engenharia, freqentemente confirmada pelo aparato pouco guerreiro dos culos: nenhum desses modelos, nenhum desses matizes negligenciado, e todos so sintetizados, definidos com o mesmo amor e o mesmo esprito.

Tenho neste momento diante dos olhos uma dessas composies de aspecto geral verdadeiramente herico, que representa a frente de uma coluna de infantaria; talvez esses homens estejam acabando de voltar da Itlia e tenham feito uma parada nos bulevares face ao entusiasmo da multido; talvez acabem de realizar uma longa marcha pelas estradas da Lombardia; no sei. O que visvel, plenamente inteligvel, o carter firme, audacioso, mesmo em sua tranqilidade, de todos esses rostos crestados pelo sol, pela chuva e pelo vento. Eis a uniformidade de expresso gerada pela obedincia e pelas dores suportadas em comum, o ar resignado [pgina 46] da coragem testada pelas longas fadigas. As calas arregaadas e presas nas polainas, os capotes manchados de poeira, vagamente desbotados, todo o equipamento, enfim, assumiu ele prprio a indestrutvel fisionomia dos seres que vm de longe e viveram estranhas aventuras. possvel dizer que todos esses homens esto mais solidamente apoiados sobre os rins, mais firmemente instalados sobre os ps, manifestando mais firmeza do que os outros homens so capazes. Se Charlet que sempre buscou esse tipo de beleza e que tantas vezes o encontrou tivesse visto esse desenho, teria ficado singularmente impressionado.

IX O dndi

O homem rico, ocioso e que, mesmo entediado de tudo, no tem outra ocupao seno correr ao encalo da felicidade; o homem criado no luxo e acostumado a ser obedecido desde a juventude; aquele, enfim, cuja nica profisso a elegncia sempre exibir, em todos os tempos, uma fisionomia distinta, completamente parte. O dandismo uma instituio vaga to estranha quanto o prprio duelo; muito antiga, j que Csar, Catilina e Alcebades nos deram alguns modelos brilhantes; generalizada, j que Chateaubriand a encontrou nas florestas e [pgina 47] beira dos lagos do Novo Mundo, O dandismo, instituio margem das leis, tem leis rigorosas a que so estritamente submetidos todos os seus adeptos, quaisquer que forem, alis, a audcia e a independncia de seu carter. Os romancistas ingleses, mais do que outros, cultivaram o romance de high life, e os franceses, que como Custine quiseram escrever especialmente romances de amor, tiveram o cuidado, de incio e muito judiciosamente, de dotar suas personagens de fortunas bastante considerveis para pagarem sem hesitao todas as fantasias; em seguida, dispersaramnas de qualquer profisso. Esses seres no tm outra ocupao seno cultivar a idia do belo em suas prprias pessoas, satisfazer suas paixes, sentir e pensar. Possuem, a seu bel-prazer e em larga medida, tempo e dinheiro, sem os quais a fantasia, reduzida ao estado de devaneio passageiro, dificilmente pode ser traduzida em ao. Infelizmente bem verdade que, sem o tempo e o dinheiro, o amor no pode ser mais do que uma orgia de plebeu ou o cumprimento de um

dever conjugal. Em vez da fantasia ardente ou sonhadora, torna-se uma repugnante utilidade. Se falo de amor a propsito do dandismo, porque o amor a ocupao natural dos ociosos. Mas o dndi no visa o amor como um fim em si. Se referi ao dinheiro, porque o dinheiro indispensvel aos que cultuam as prprias paixes; mas o dndi no aspira ao dinheiro como [pgina 48] a uma coisa essencial; um crdito ilimitado poderia lhe bastar: ele deixa essa grosseira paixo aos vulgares mortais. O dandismo no sequer, como parecem acreditar muitas pessoas pouco sensatas, um amor desmesurado pela indumentria e pela elegncia fsica. Para o perfeito dndi essas coisas so apenas um smbolo da superioridade aristocrtica de seu esprito. Por isso, a seus olhos vidos antes de tudo por distino, a perfeio da indumentria consiste na simplicidade absoluta, o que , efetivamente, a melhor maneira de se distinguir. Que , pois, essa paixo que, transformada em doutrina, conquistou adeptos dominadores, essa instituio sem leis escritas, que formou uma casta to altiva? antes de tudo a necessidade ardente de alcanar uma originalidade dentro dos limites exteriores das convenincias. uma espcie de culto de si mesmo, que pode sobreviver busca da felicidade a ser encontrada em outrem, na mulher, por exemplo, que pode sobreviver, inclusive, a tudo a que chamamos iluses. o prazer de provocar admirao e a satisfao orgulhosa de jamais ficar admirado. Um dndi pode ser um homem entediado, pode ser um homem que sofre; mas, neste

ltimo caso, ele sorrir como o Lacedemnio mordido pela raposa. V-se que, sob certos aspectos, o dandismo assemelha-se ao espiritualismo e ao estoicismo. Mas um dndi nunca pode ser um homem vulgar. Se cometesse um cri- [pgina 49] me, talvez no se degradasse; mas, se esse crime tivesse uma causa trivial, a desonra seria irreparvel. Que o leitor no se escandalize com essa gravidade no frvolo, que se lembre que h uma grandeza em todas as loucuras, uma fora em todos os excessos. Estranho espiritualismo! Para os que so ao mesmo tempo seus sacerdotes e suas vtimas, todas as condies materiais complexas a que se submetem, desde o traje impecvel a qualquer hora do dia e da noite at as proezas mais perigosas do esporte, no passam de uma ginstica apta a fortificar a vontade e a disciplinar a alma. Na verdade, eu no estava totalmente errado ao considerar o dandismo como uma espcie de religio. A regra monstica mais rigorosa, a ordem irresistvel do Velho da Montanha, que recomendava o suicdio a seus discpulos inebriados, no eram mais despticas nem mais obedecidas do que essa doutrina da elegncia e da originalidade, que impe igualmente a seus ambiciosos e humildes seguidores homens muitas vezes cheios de ardor, de paixo, de coragem e de energia contida a frmula terrvel: Perinde ao cadaver!* Mesmo que esses homens sejam chamados indiferentemente de refinados, incrveis, belos, leesComo um cadver! Expresso usada por Incio de Loiola nas Constituies e com a que prescreve, aos Jesutas, a disciplina e obedincia aos superiores, excetuando-se as objees de conscincia. (N, do T)*

ou dndis, [pgina 50] todos procedem de uma mesma origem; todos participam do mesmo carter de oposio e de revolta; todos so representantes do que h de melhor no orgulho humano, dessa necessidade, muito rara nos homens de nosso tempo, de combater e destruir a trivialidade. Disso resulta, nos dndis, a atitude altiva de casta, provocante inclusive em sua frieza. O dandismo aparece sobretudo nas pocas de transio em que a democracia no se tornou ainda todo-poderosa, em que a aristocracia est apenas parcialmente claudicante e vilipendiada. Na confuso dessas pocas, alguns homens sem vnculos de classe, desiludidos, desocupados, mas todos ricos em fora interior, podem conceber o projeto de fundar uma nova espcie de aristocracia, tanto mais difcil de destruir pois que baseada nas faculdades mais preciosas, mais indestrutveis, e nos dons celestes que nem o trabalho nem o dinheiro podem conferir. O dandismo o ltimo rasgo de herosmo nas decadncias; e o tipo de dndi encontrado pelo viajante na Amrica do Norte no invalida de forma alguma esta idia: pois nada impede de se supor que as tribos a que chamamos de selvagens sejam os resqucios de grandes civilizaes desaparecidas. O dandismo um sol poente; como o astro que declina, magnfico, sem calor e cheio de melancolia. Mas infelizmente a mar montante da democracia, que invade tudo e que tudo nivela, afoga dia a dia esses ltimos representantes do orgulho humano e despeja vagas de es- [pgina 51] quecimento sobre os vestgios desses prodigiosos mirmides. Na Frana, os dndis tornam-secada vez mais raros, enquanto entre

nossos vizinhos, na Inglaterra, o estado social e a constituio (a verdadeira constituio, a que se exprime pelos costumes) deixaro por muito tempo ainda um lugar aos herdeiros de Sheridan, de Brummel e de Byron, se por acaso surgirem alguns que sejam dignos deles. O que pde parecer ao leitor uma digresso, na verdade no chega a s-lo. As consideraes e os devaneios morais que sugerem os desenhos de um artista so, em muitos casos, a melhor traduo que o crtico possa fazer deles; as sugestes fazem parte de uma idia-me, e, mostrando-as sucessivamente, pode-se lev-la a emergir. Ser preciso dizer que G., quando desenha um de seus dndis, d-lhe sempre seu carter histrico, at mesmo lendrio, ousaria dizer, se no se tratasse da poca presente e de coisas consideradas geralmente como levianas? justamente essa leveza de atitudes, essa segurana nas maneiras, essa simplicidade no ar de dominao, esse modo de vestir uma casaca e de conduzir um cavalo, essas atitudes sempre calmas, mas revelando fora, que nos fazem pensar, quando nosso olhar descobre um desses seres privilegiados em quem o belo e o temvel se confundem to misteriosamente: Aqui talvez esteja um homem rico, mas, com maior probabilidade, um Hrcules sem emprego. [pgina 52] O tipo da beleza do dndi consiste sobretudo no ar frio que vem da inabalvel resoluo de no se emocionar como um fogo latente que se deixa adivinhar, que poderia mas no quer se propagar. E o que essas imagens expressam com perfeio.

X A mulher O ser que , para a maioria dos homens, a fonte das mais vivas e mesmo admitamo-lo para a vergonha das volpias filosficas dos mais duradouros prazeres; o ser para o qual, ou em benefcio do qual, tendem todos os seus esforos; esse ser terrvel e incomunicvel como Deus (com a diferena que o infinito no se comunica porque cegaria ou esmagaria o finito, enquanto o ser de que falamos s incompreensvel por nada ter a comunicar, talvez); esse ser em quem Joseph de Maistre via um belo animal cujos encantos alegravam e tornavam mais fcil o jogo srio da poltica, para quem e por meio de quem se fazem e se desfazem as fortunas, para quem, mas sobretudo devido a quem os artistas e os poetas compem suas jias mais delicadas; de quem derivam os prazeres mais excitantes e as dores mais fecundantes; a mulher, numa palavra, no somente para o artista em geral, e para G. em particular, a [pgina 53] fmea do homem. antes uma divindade, um astro que preside todas as concepes do crebro masculino, uma reverberao de todos os encantos da natureza condensados num nico ser; o objeto da admirao e da curiosidade mais viva que o quadro da vida possa oferecer ao contemplador. uma espcie de dolo, estpido talvez, mas deslumbrante, enfeitiador, que mantm os destinos e as vontades suspensas a seus olhares.

No , digo eu, um animal cujos membros, corretamente reunidos, fornecem um perfeito exemplo de harmonia; no sequer o tipo de beleza pura, tal como pode sonh-lo o escultor nas suas mais severas meditaes; no, isso no seria ainda suficiente para explicar seu misterioso e complexo fascnio. Winckelmann e Rafael no nos so de nenhuma utilidade aqui; e estou persuadido que G., apesar de toda a extenso de sua inteligncia (que se diga isto sem ofend-lo), desprezaria uma obra da estaturia antiga se tivesse que perder por isso a ocasio de saborear um retrato de Reynolds ou de Lawrence. Tudo que adorna a mulher, tudo que serve para realar sua beleza, faz parte dela prpria; e os artistas que se dedicaram particularmente ao estudo desse ser enigmtico adoram finalmente todo o mundus muliebris quanto a prpria mulher. A mulher , sem dvida, uma luz, um olhar, um convite felicidade, s vezes uma palavra; mas ela sobretudo uma harmonia geral, no somente no seu porte e no movimento de seus membros, mas [pgina 54] tambm nas musselinas, nas gazes, nas amplas e reverberantes nuvens de tecidos com que se envolve, que so como que os atributos e o pedestal de sua divindade; no metal e no mineral que lhe serpenteiam os braos e o pescoo, que acrescentam suas centelhas ao fogo de seus olhares ou tilintam delicadamente em suas orelhas. Que poeta ousaria, na pintura do prazer causado pela apario de uma beldade, separar a mulher de sua indumentria? Que homem, na rua, no teatro, no bosque, no fruiu, da maneira mais desinteressada possvel, de um vesturio

inteligentemente composto e no conservou dele uma imagem inseparvel da beleza daquela a quem pertencia, fazendo assim de ambos, da mulher e do traje, um todo indivisvel? Parece-me que esta a ocasio de retomar certas questes relativas moda e aos adereos, que apenas indiquei no comeo deste estudo, e de vingar a arte do vestir das calnias ineptas com que a atormentam certos amantes muito equvocos da natureza.

XI Elogio da maquilagem H uma cano, to trivial e inepta que no se deveria cit-la num trabalho com algumas pretenses de seriedade, mas que traduz muito bem, em estilo de opereta, a [pgina 55] esttica das pessoas que no pensam. A natureza embeleza a beleza! presumvel que se o poeta pudesse falar em francs, teria dito: A simplicidade embeleza a beleza!, o que equivale a esta verdade, de um gnero completamente inesperado: O nada embeleza aquilo que . A maior parte dos erros relativos ao belo nasce da falsa concepo do sculo XVIII relativa moral. Naquele tempo a natureza foi tomada como base, fonte e modelo de todo o bem e de todo o belo possveis. A negao do pecado original contribuiu em boa parte para a cegueira geral daquela poca. Se todavia consentirmos em fazer referncia simplesmente ao fato visvel, experincia de todas as pocas e Gazette des Tribunaux, veremos que a

natureza no ensina nada, ou quase nada, que ela obriga o homem a dormir, a beber, a comer e a defender-se, bem ou mal, contra as hostilidades da atmosfera. ela igualmente que leva o homem a matar seu semelhante, a devor-lo, a seqestr-lo e a tortur-lo; pois mal samos da ordem das necessidades e das obrigaes para entrarmos na do luxo e dos prazeres, vemos que a natureza s pode incentivar apenas o crime. a infalvel natureza que criou o parricdio e a antropofagia, e mil outras abominaes que o pudor e a delicadeza nos impedem de nomear. a filosofia (refiro-me boa), a religio que nos ordena alimentar nossos pais pobres e enfermos. A natureza (que apenas a voz de nosso interesse) manda abat-los. Passemos [pgina 56] em revista, analisemos tudo o que natural, todas as aes e desejos do puro homem natural, nada encontraremos seno horror. Tudo quanto belo e nobre o resultado da razo e do clculo. O crime, cujo gosto o animal humano hauriu no ventre na me, originalmente natural. A virtude, ao contrrio, artificial, sobrenatural, j que foram necessrios, em todas as pocas e em todas as naes, deuses e profetas para ensin-la humanidade animalizada, e que o homem, por si s, teria sido incapaz de descobri-la. O mal praticado sem esforo, naturalmente, por fatalidade; o bem sempre o produto de uma arte. Tudo quanto digo da natureza como m conselheira em matria de moral, e da razo como verdadeira redentora e reformadora, se pode transpor para a ordem do belo. Assim, sou levado a considerar os adereos como um dos sinais da nobreza primitiva da alma humana. As

raas que nossa civilizao, confusa e pervertida, trata com naturalidade de selvagens, com um orgulho e uma enfatuao absolutamente risveis, compreendem, tanto quanto a criana, a alta espiritualidade da indumentria. O selvagem e o baby provam por sua aspirao ingnua em relao a tudo o que brilhante, s plumagens multicores, aos tecidos cintilantes, majestade superlativa das formas artificiais sua averso pelo real, e testemunham, dessa forma, sua revelia, a imaterialidade de sua alma. Ai daquele que, como Lus XV (que foi no o produto de uma verdadeira civi- [pgina 57] lizao, mas de uma recorrncia de barbrie), leva a depravao ao ponto de apreciar apenas a simples natureza!* A moda deve ser considerada, pois, como um sintoma do gosto pelo ideal que flutua no crebro humano acima de tudo o que a vida natural nele acumula de grosseiro, terrestre e imundo, como uma deformao sublime da natureza, ou melhor, como uma tentativa permanente e sucessiva de correo da natureza. Assim, observou-se judiciosamente (sem se descobrir a razo) que todas as modas so encantadoras, ou seja, relativamente encantadoras, cada uma sendo um esforo novo, mais ou menos bem-sucedido, em direo ao belo, uma aproximao qualquer a um ideal cujo desejo lisonjeia incessantemente o esprito humano insatisfeito. Mas, para serem verdadeiramente apreciadas, as modas no devem ser consideradas como coisas mortas; seria o mesmo que admirar os trapos pendurados, frouxos eSabe-se que a sra. Dubarry, quando queria evitar receber o rei, tinha o cuidado de passar ruge. Era um sinal suficiente. Ela fechava assim a sua porta: era embelezandose que evitava o real discpulo da natureza.*

inertes como a pele de So Bartolomeu, no armrio de um vendedor de roupas usadas. preciso imagin-los vitalizados, vivificados pelas belas mulheres que os vestiram. Somente assim compreenderemos seu sentido e esprito. Se, por conseguinte, o aforismo Todas as modas so encantadoras o escandaliza como [pgina 58] excessivamente absoluto, diga e estar certo de no se enganar: todas foram legitimamente encantadoras. A mulher est perfeitamente nos seus direitos e cumpre at uma espcie de dever esforando-se em parecer mgica e sobrenatural; preciso que desperte admirao e que fascine; dolo, deve dourar-se para ser adorada. Deve, pois, colher em todas as artes os meios para elevar-se acima da natureza para melhor subjugar os coraes e surpreender os espritos. Pouco importa que a astcia e o artifcio sejam conhecidos de todos, se o sucesso est assegurado e o efeito sempre irresistvel. O artista-filsofo encontrar facilmente nessas consideraes a legitimao de todas as prticas empregadas em todos os tempos pelas mulheres para consolidarem e divinizarem, por assim dizer, sua frgil beleza. O catlogo dessas prticas seria inumervel; mas, para nos limitarmos quilo que nossa poca chama vulgarmente de maquilagem, quem no v que o uso do p-de-arroz, to tolamente anatematizado pelos filsofos cndidos, tem por objetivo e por resultado fazer desaparecer da tez todas as manchas que a natureza nela injuriosamente semeou e criar uma unidade abstrata na textura e na cor da pele, unidade que, como a produzida pela malha, aproxima imediatamente o ser

humano da esttua, isto , de um ser divino e superior? Quanto ao preto artificial que circunda o olho e ao vermelho que marca a parte superior da face, embora o uso provenha do ms- [pgina 59] mo princpio, da necessidade de suplantar a natureza, o resultado deve satisfazer a uma necessidade completamente oposta. O vermelho e o preto representam a vida, uma vida sobrenatural e excessiva; essa moldura negra torna o olhar mais profundo e singular, d aos olhos uma aparncia mais decidida de janela aberta para o infinito; o vermelho, que inflama as mas do rosto, aumenta ainda a claridade da pupila e acrescenta a um belo rosto feminino a paixo misteriosa da sacerdotisa. Assim, se sou bem compreendido, a pintura do rosto no deve ser usada com a inteno vulgar, inconfessvel, de imitar a bela natureza e de rivalizar com a juventude. Alis, observou-se que o artifcio no embelezava a feira e s podia servir a beleza. Que se atreveria a atribuir arte a funo estril de imitar a natureza? A maquilagem no tem por que se dissimular nem por que evitar se entrever; pode, ao contrrio, exibir-se, se no com afetao, ao menos com uma espcie de candura. Aqueles a quem uma pesada gravidade impede buscar o belo mesmo em suas mais minuciosas manifestaes, autorizo de boa vontade a rirem de minhas reflexes e a assinalarem nelas a pueril solenidade; nada em seus julgamentos austeros me afeta; contento-me em me remeter aos verdadeiros artistas, assim como s mulheres que receberam ao

nascer uma centelha desse jogo sagrado com que gostariam de iluminar-se por inteiro. [pgina 60]

XII As mulheres e as cortess Assim G., tendo-se imposto a tarefa de buscar e explicar a beleza na Modernidade, apraz-se, em representar as mulheres muito enfeitadas e embelezadas por todas as pompas artificiais, seja qual for o meio a que pertenam. Alis, na coleo de suas obras, como no fervilhamento da vida humana, as diferenas de casta e de raa, sob qualquer aparato de luxo com que as pessoas se apresentem, saltam imediatamente aos olhos do espectador. Ora aparecem jovens da mais seleta sociedade, iluminadas pela claridade difusa de uma sala de espetculo, recebendo e refletindo a luz com seus olhos, jias, espduas, resplandecentes como retratos no camarote que lhes serve de moldura. Umas, graves e srias; outras, louras e vaporosas. Umas exibem com uma aristocrtica displicncia um colo precoce; outras exibem com candura um busto de rapaz. Mordiscam o leque, o olhar vago ou fixo, so teatrais e solenes como o drama ou a pera que fingem escutar. Ora vemos elegantes famlias passeando indolentemente nas alamedas dos jardins pblicos, as mulheres, com um ar tranqilo, caminhando lentamente, braos dados com os maridos, cujo aspecto slido e satisfeito revela uma fortuna realizada e o contentamento de si. Aqui a aparn-

[pgina 61] ia opulenta substitui a distino sublime. Meninas magrelas, com saias rodadas, parecendo mulherzinhas graas aos gestos e atitudes, pulam corda, brincam com arcos ou visitam-se ao ar livre, repetindo assim a comdia dada em casa pelos pais. Emergindo de um mundo inferior, orgulhosas de aparecerem enfim sob as luzes da ribalta, as jovens dos pequenos teatros, delgadas, frgeis, ainda adolescentes, agitam suas formas virginais e doentias fantasias absurdas, que no so de poca alguma e que as enchem de contentamento. porta de um caf, apoiando-se nos vidros iluminados por todos os lados, exibe-se um desses imbecis, cuja elegncia feita pelo alfaiate e a cabea, pelo barbeiro. A seu lado, com os ps apoiados sobre o indispensvel tamborete, est sentada sua amante, mulher bastante leviana, a quem no falta quase nada (esse quase nada quase tudo, a distino) para parecer uma grande dama. Como seu belo companheiro, ela tem todo o orifcio da pequena boca ocupado por um charuto desproporcional. Esses dois seres no pensam. Ser que eles at mesmo olham? A menos que, Narcisos da imbecilidade, contemplem a multido como um rio que lhes devolve a imagem. Na verdade, existem bem mais para o prazer do observador do que para o prprio prazer. Eis, agora, abrindo suas galerias plenas de luz e de movimento, esses Valentinos, Cassinos, Prados (outrora [pgina 62] Tvolis, Idlias, Folias, Pafos), esses cafarnauns onde a exuberncia da juventude ociosa se manifesta livremente. Mulheres que exageraram a moda, a ponto de lhe alterar a graa e

lhe destruir a inteno, varrem faustuosamente os soalhos com a cauda de seus vestidos e a ponta de seus xales; vo e vm, passam e repassam, abrindo os olhos espantados como os dos animais, dando a impresso de nada verem, mas examinando tudo. Sobre um fundo de luz infernal ou de aurora boreal, vermelho, alaranjado, sulfuroso, rosa (o rosa revela uma idia de xtase na frivolidade), algumas vezes violeta (cor preferida das abadessas, brasa que se apaga por trs de uma cortina de azul), sobre esses fundos mgicos, imitando diversamente os fogos de Bengala, eleva-se a imagem variada da beleza equvoca. Aqui majestosa, l delicada; ora esbelta, franzina at, ora ciclpica; ora pequena e vivaz, ora pesada e monumental. Ela inventou uma elegncia provocante e brbara, ou ento aspira, com maior ou menor felicidade, a simplicidade de praxe na melhor sociedade. Caminha, desliza, dana e rodopia com seu peso as crinolinas bordadas que lhe servem ao mesmo tempo de pedestal e de contrapeso. Lana o olhar por debaixo do chapu, como um retrato em sua moldura. Representa perfeitamente a selvageria na civilizao. Ela tem sua beleza que lhe vem do mal, sempre desprovida de espiritualidade, mas por vezes matizada de uma fadiga [pgina 63] que simula a melancolia. Ela dirige o olhar ao horizonte, como animais caando; mesma exaltao, mesma distrao indolente e tambm, s vezes, mesma fixidez de ateno. Espcie de bomia errante nos confins de uma sociedade regular, a trivialidade de sua vida, que uma vida de astcia e de combate, vem luz fatalmente atravs de seu invlucro majestoso.

Aplicam-se a ela justamente estas palavras do mestre inimitvel, La Bruyre: H em algumas mulheres uma grandeza artificial ligada ao movimento dos olhos, a um menear de cabea, maneira de andar, que no vai muito longe. As observaes relativas cortes podem, at certo ponto, aplicar-se atriz, pois ela tambm uma criatura de aparato, um objeto de prazer pblico. Mas aqui a conquista, a presa, de natureza mais nobre e mais espiritual. Trata-se de obter a considerao geral, mediante no s a pura beleza fsica, mas tambm atravs de talentos de uma ordem mais rara. Se de um lado a atriz se aproxima da cortes, por outro assemelha-se ao poeta. No nos esqueamos de que, alm da beleza natural, e mesmo da artificial, h em todos os seres um idiotismo de profisso, uma caracterstica que se pode traduzir fisicamente em feira, mas tambm numa espcie de beleza profissional. Na galeria imensa da vida londrina e parisiense, encontramos os diversos tipos da mulher errante, da mulher revoltada em todos os nveis: inicialmente a mulher [pgina 64] galante, na flor da idade, arrogando-se ares aristocrticos, orgulhosos ao mesmo tempo de sua juventude e de seu luxo, no qual ela pe todo o seu engenho e toda a sua alma, levantando delicadamente com dois dedos uma ampla faixa de cetim, de seda ou de veludo que esvoaa sua volta, e avanando o p pontiagudo, cujo calado excessivamente ornado bastaria para denunci-la, na falta da nfase um pouco viva de toda a sua indumentria; seguindo a escala, descemos at as

escravas, que so confinadas em pocilgas freqentemente decoradas como bares; desditadas, mantidas sob a mais severa tutela, e que no possuem nada de seu, nem mesmo o excntrico adorno que lhes serve de condimento beleza. Entre estas, algumas exemplos de uma enfatuao inocente e monstruosa exibem na atitude e nos olhos audaciosamente erguidos a felicidade evidente de existirem (na verdade, por qu?). s vezes assumem sem querer poses de uma audcia e nobreza que fascinariam o estaturio mais delicado, se este tivesse a coragem e o esprito de colher a nobreza em toda a parte, mesmo na lama; outras vezes exibem-se prostradas em atitudes desesperadas de tdio, em indolncias de botequim, com um cinismo masculino, fumando cigarros para matar o tempo, com a resignao do fatalismo oriental; espalhadas, espojadas sobre os canaps, e saia arredondada atrs e na frente num duplo leque, ou penduradas em equilbrio sobre os [pgina 65] banquinhos e cadeiras; pesadas, taciturnas, estpidas, extravagantes, com os olhos vtreos devido aguardente e com as frontes arqueadas pela obstinao. Descemos at o ltimo degrau da espiral, at o foemina simplex do satrico latino. Ora vemos se destacar, sobre o fundo de uma atmosfera onde o lcool e o tabaco misturaram seus vapores, a magreza inflamada da tsica ou as curvas da adiposidade, essa hedionda sade de cio. Num caos brumoso e dourado, insuspeitado pelas castidades indigentes, agitam-se e convulsionam-Se ninfas macabras e bonecas vivas cujo olhar infantil deixa escapar uma

claridade sinistra, enquanto atrs de um balco repleto de garrafas de licores se emproa uma gorda megera, cuja cabea, amarrada num leno sujo que projeta na parede a sombra de suas pontas satnicas, faz pensar que tudo o que consagrado ao mal est fadado a ter chifres. Na verdade, no foi para deleitar meu leitor nem para escandaliz-lo que coloquei diante de seus olhos Semelhantes imagens; num ou noutro caso, teria sido faltar-lhe com o respeito. O que as torna preciosas e as consagra so os inumerveis pensamentos que despertam, geralmente severos e sombrios. Mas, se, por acaso, algum impudente procurasse nessas composies de G., espalhadas em quase toda parte, a ocasio de satisfazer uma curiosidade mals, previnoo caridosamente que nada encontrar que possa excitar uma imaginao doente. Encontrar apenas [pgina 66] o vcio inevitvel, isto , o olhar do demnio emboscado nas trevas, ou a espdua de Messalina resplandecendo sob a luz; nada, a no ser arte pura, isto , a beleza particular do mal, o belo no horrvel. E at, para reafirm-lo de passagem, a sensao geral que emana de todo esse cafarnaum contm mais tristeza do que graa. O que confere beleza particular a essas imagens sua fecundidade moral. So ricas em sugestes, mas em sugestes cruis, speras, que minha pena, embora acostumada a lutar com as representaes plsticas, talvez s insuficientemente tenha traduzido.

XIII Os veculos Assim prosseguem, cortadas por inumerveis ramificaes, essas longas galerias do high life e do lowe life. Emigremos por alguns instantes para um mundo, se no puro, pelo menos mais refinado; respiremos perfumes, no mais salutares, talvez porm mais delicados. J disse que o pincel de G., como o de Eugne Lami, era maravilhosamente capaz de representar as pompas do dandismo e a elegncia da perfidez. As atitudes do rico lhe so familiares; ele sabe, com um leve trao de pena, com uma segurana infalvel, representar a segurana do olhar, do gesto e da pose que, nos seres privilegiados, resulta da monoto- [pgina 67] nia na felicidade. Nessa srie particular de desenhos reproduzem-se, sob inmeros aspectos, os incidentes do esporte, as corridas, as cenas de caa, os passeios nos bosques, as ladies orgulhosas, as frgeis misses, conduzindo com uma mo segura os corcis de uma pureza admirvel de garbo, coquetes, brilhantes, eles prprios caprichosos como mulheres. Pois G. conhece no somente o cavalo em geral, mas dedica-se tambm com xito a exprimir a beleza particular dos cavalos. Ora so as paradas e, por assim dizer, os acampamentos de numerosas carruagens em que alados sobre as almofadas, sobre os bancos e sobre os tetos, jovens esbeltos e mulheres com roupas excntricas, permitidas pela estao, assistem a qualquer solenidade do turfe que se desenrola ao longe; ora um cavaleiro galopa graciosamente ao lado de uma

caleche descoberta, e seu cavalo parece, por seus movimentos, saudar sua maneira. O veculo leva a galope, numa alameda zebrada de sombra e luz, as beldades reclinadas como numa barca, indolentes, escutando vagamente os galanteios que lhe chegam aos ouvidos e abandonando-se preguiosamente brisa do passeio. O casaco de pele ou a musselina lhes chega ao queixo e transborda como uma onda por cima da portinhola. Os criados esto rgidos e perpendiculares, inertes, uns parecidos com os outros: sempre a efgie montona e sem relevo do servilismo, pontual e disciplinada; sua caracte- [pgina 68] rstica a de no terem nenhuma. Ao fundo, o bosque verdeja ou se inflama, cobre-se de eflorescncias luminosa ou escurece conforme a hora e a estao. Seus recantos enchem-se de brumas outonais, de sombras azuis, de raios amarelos, de cintilaes rseas ou de estreitos fachos de luz que cortam a obscuridade como golpes de sabre. Se as inumerveis aquarelas relativas guerra da Crimia no nos tivessem mostrado a capacidade de G. como paisagista, estas com certeza seriam suficientes. Mas aqui j no se trata dos campos dilacerados da Crimia, nem das margens teatrais do Bsforo; encontramos as paisagens familiares e ntimas que formam o adorno circular de uma grande cidade, em que a luz cria efeitos que um artista verdadeiramente romntico no pode desdenhar. Um outro mrito que no intil observar aqui o conhecimento notvel dos arreios e da carroaria. G. desenha e pinta uma viatura, e todas as espcies de

viaturas, com o mesmo cuidado e a mesma facilidade que um consumado pintor de marinhas pinta todas as espcies de navios. Toda a sua carroaria perfeitamente ortodoxa; cada parte est no seu devido lugar e no h nada a corrigir. Seja qual for a posio ou a velocidade em que ela for lanada, uma viatura, como um navio, recebe do movimento uma graa misteriosa e complexa, dificlima de registrar. O prazer que o olhar do artista dela recebe decorre, ao que parece, da srie de figuras geomtricas que esse [pgina 69] objeto, j to complicado navio ou carruagem , engendra de forma rpida e sucessiva no espao. Podemos apostar com toda certeza que, dentro de alguns anos, os desenhos de G. se tornaro arquivos preciosos da vida civilizada. Suas obras sero procuradas pelos curiosos tanto quanto as dos Debucourt, dos Moreau, dos Saint-Aubin, dos Carle Vernet, dos Lami, dos Devria, dos Gavarni, e de todos esses artistas excelentes que, por terem pintado somente o familiar e o belo, no deixam de ser, a seu modo, srios historiadores. Vrios deles fizeram inclusive muitas concesses ao belo e introduziram algumas vezes em suas composies um estilo clssico alheio ao tema; vrios arredondaram voluntariamente os ngulos, aplainaram as asperezas da vida, amorteceram-lhe as fulgurantes exploses. Menos hbil do que estes, G. tem um mrito profundo que lhe peculiar; desempenhou voluntariamente uma funo que outros artistas desdenharam e que cabia sobretudo a um homem do mundo preencher. Ele buscou por toda a parte a beleza passageira e fugaz da

vida presente, o carter daquilo que o leitor nos permitiu chamar de Modernidade. Freqentemente estranho, violento e excessivo, mas sempre potico, ele soube concentrar em seus desenhos o sabor amargo ou capitoso do vinho da vida. [pgina 70]

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