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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA FACULDADE DE DIREITO DE CURITIBA GUILHERME DE OLIVEIRA ALONSO A COLABORAÇÃO PREMIADA E OS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO PENAL CURITIBA 2018

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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA FACULDADE DE DIREITO DE CURITIBA

GUILHERME DE OLIVEIRA ALONSO

A COLABORAÇÃO PREMIADA E OS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO PENAL

CURITIBA

2018

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GUILHERME DE OLIVEIRA ALONSO

A COLABORAÇÃO PREMIADA E OS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO PENAL

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito no Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba. Orientador: Prof. Dr. Mateus Eduardo Siqueira Nunes Bertoncini.

CURITIBA 2018

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GUILHERME DE OLIVEIRA ALONSO

A COLABORAÇÃO PREMIADA E OS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO PENAL

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito no Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba. Banca examinadora constituída pelos seguintes professores:

__________________________________________ Prof. Dr. Mateus Eduardo Siqueira Nunes Bertoncini __________________________________________ Prof. Dr. Fábio André Guaragni __________________________________________Prof. Dr. Rodrigo Sánchez Rios _________________________________________ Prof. Dr. Sérgio Fernando Moro __________________________________________Prof. Dr. René Ariel Dotti

Curitiba, 29 de junho de 2018.

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RESUMO

Pelo presente trabalho, pretende-se analisar em que medida a colaboração premiada, tanto em sua previsão legal (sob a égide da Lei nº 12.850/2013), quanto em sua interpretação prática e jurisprudencial, pode ter transformado os fundamentos constitucionais do processo penal no Brasil. Para tanto, serão apresentados: a) a estrutura principiológica do processo penal brasileiro anterior ao referido diploma; b) os fundamentos autorizadores da colaboração premiada, sob as perspectivas da política criminal, da teoria da pena, da criminalidade empresarial e do processo penal (mais especificamente, da justiça penal negocial); c) o modelo de colaboração premiada estabelecido pela lei de organizações criminosas (natureza jurídica, cabimento, legitimidade e procedimento); e d) as mudanças individualizadas que podem ser percebidas da aplicação teórica e prática do instituto, analisando-se a doutrina e a jurisprudência para apresentar conclusões sobre eventuais alterações conceituais dos princípios que regem o processo penal. Dessa forma, pretende-se comparar os dogmas do processo penal pré-colaboração premiada com a sua leitura após a ampla adoção do referido instrumento. Palavras-chave: processo penal, colaboração premiada, princípios constitucionais do processo, direito penal premial, justiça penal negocial.

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ABSTRACT

The purpose of this paper is to analyze how judicial collaboration, both in its legal prediction (under the aegis of Law nº. 12.850 / 2013) and in its practical and judicial interpretation, may have transformed the constitutional principles of the criminal process in Brazil. To do so, the following will be presented: a) the principiological structure of the Brazilian criminal procedure prior to said diploma; (b) the authorizing grounds for the judicial collaboration, from the perspective of the criminal policy, of the theory of punishment, of corporate crime and of criminal proceedings (more specifically criminal bargaining); c) the judicial collaboration model established by the law of criminal organizations (legal nature, suitability, legitimacy and procedure); and d) the individualized changes that can be perceived from the practical application of the institute, analyzing the doctrine and jurisprudence to present conclusions on possible conceptual changes of the principles that govern the criminal process. In this way, we intend to compare the dogmas of the pre-collaboration criminal process with its reading after the wide adoption of this instrument. Key words: criminal proceedings, judicial collaboration, constitutional principles of the process, premiary criminal law, criminal bargaining.

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INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13

1 O PARADIGMA DO PROCESSO PENAL PRÉ-COLABORAÇÃO PREMIADA ... 17

1.1 O FUNDAMENTO EXISTENCIAL DO PROCESSO PENAL ........................... 17

1.2 AS BASES ESTRUTURAIS DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO .............. 19

1.3 O PRINCÍPIO NULLA POENA SINE JUDICIO ................................................ 26

1.4 O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL .................................................................. 32

1.4.1 O PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL ............................................... 41

1.5 O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA ........................................... 43

1.6 OS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA ................... 48

1.7 OS PRINCÍPIOS DA OBRIGATORIEDADE E DA INDISPONIBILIDADE DA

AÇÃO PENAL PÚBLICA ........................................................................................ 53

2. OS FUNDAMENTOS MATERIAIS E PROCESSUAIS DA COLABORAÇÃO

PREMIADA ............................................................................................................... 60

2.1 A COLABORAÇÃO PREMIADA E A DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL .......... 60

2.1.1 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO INSTRUMENTO DE POLÍTICA

CRIMINAL ........................................................................................................... 60

2.1.2 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO CAUSA DE REDUÇÃO OU

EXCLUSÃO DA PENA........................................................................................ 64

2.1.2.1 AS TEORIAS ABSOLUTAS ................................................................ 67

2.1.2.2 AS TEORIAS RELATIVAS ................................................................. 70

2.1.2.3 TEORIAS MISTAS OU UNIFICADAS ................................................. 76

2.1.3 A REPARAÇÃO DO DANO COMO TERCEIRA VIA DO DIREITO PENAL

............................................................................................................................ 76

2.3 A CRIMINALIDADE EMPRESARIAL E SUA COMPLEXIDADE PROBATÓRIA

............................................................................................................................... 79

2.4 A JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL ....................................................................... 91

2.4.1 A JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA94

2.4.2 A JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL NA ITÁLIA ............................................ 100

3 A COLABORAÇÃO PREMIADA DA LEI Nº 12.850/2013 ................................... 106

3.1 AS CONVENÇÕES DE PALERMO E MÉRIDA ............................................. 106

3.2 A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA ANTECEDENTE ........................................... 109

3.2.1 A LEI Nº 8.072, DE 25 DE JULHO DE 1990 ............................................ 110

3.2.2 A LEI Nº 9.034, DE 3 DE MAIO DE 1995 ................................................ 111

3.2.3 A LEI Nº 9.080, DE 19 DE JULHO DE 1995 ............................................ 112

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3.2.4 A LEI Nº 9.613, DE 3 DE MARÇO DE 1998 ............................................ 113

3.2.5 A LEI Nº 9.807, DE 13 DE JULHO DE 1999 ............................................ 114

3.2.6 A LEI Nº 12.683, DE 8 DE JULHO DE 2012 ............................................ 118

3.3 A ESTRUTURA LEGAL ................................................................................. 119

3.4 A NATUREZA JURÍDICA ............................................................................... 124

3.4.1 ASPECTO ETIMOLÓGICO ..................................................................... 125

3.4.2 NATUREZA PROCESSUAL PENAL: MEIO DE OBTENÇÃO E FONTE DE

PROVA ............................................................................................................. 125

3.4.3 NATUREZA PENAL: SISTEMA DE BENEFÍCIOS PENAIS .................... 128

3.4.4 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO INSTRUMENTO DE DEFESA .. 129

3.4.5 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO ATO NEGOCIAL COMPOSTO 131

3.5 OS SUJEITOS DA COLABORAÇÃO ............................................................. 132

3.5.1 O PAPEL DO COLABORADOR NO PROCESSO ................................... 132

3.5.2 OS LIMITES DE ATUAÇÃO DO ADVOGADO ........................................ 134

3.5.3 A LEGITIMIDADE CONCORRENTE DA POLÍCIA .................................. 136

3.6 PROCEDIMENTO .......................................................................................... 144

3.6.1 A NEGOCIAÇÃO ..................................................................................... 145

3.6.2 A PROPOSTA E A CELEBRAÇÃO DO ACORDO .................................. 147

3.6.3 A HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL ................................................................ 150

3.6.4 O JUÍZO DE EFICÁCIA ........................................................................... 154

3.6.4.1 A SENTENÇA ................................................................................... 155

3.6.4.2 A EFICÁCIA E A EFETIVIDADE DO ACORDO ................................ 155

3.6.5 A RESCISÃO DO ACORDO .................................................................... 157

3.7 O SISTEMA DE BENEFÍCIOS E OBRIGAÇÕES........................................... 160

3.7.1 A AMPLITUDE DOS BENEFÍCIOS E OBRIGAÇÕES ............................. 161

3.7.2 O MOMENTO DE CONCESSÃO DOS BENEFÍCIOS ............................. 165

4 O PROCESSO PENAL BRASILEIRO PÓS-COLABORAÇÃO ........................... 168

4.1 AS POSSÍVEIS TENSÕES PRINCIPIOLÓGICAS A PARTIR DE ACORDOS

REALIZADOS ...................................................................................................... 168

4.1.1 OS CASOS ANALISADOS ...................................................................... 168

4.1.1.1 PAULO ROBERTO COSTA.............................................................. 169

4.1.1.2 DELCÍDIO DO AMARAL GOMEZ ..................................................... 171

4.1.1.3 JOÃO CERQUEIRA DE SANTANA FILHO ...................................... 171

4.1.1.4 LUIZ ANTÔNIO DE SOUZA ............................................................. 172

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4.1.2 AS POSSÍVEIS TENSÕES DECORRENTES DAS PREVISÕES DE

CUMPRIMENTO IMEDIATO DE PENA ............................................................ 173

4.1.2.1 A CONCILIAÇÃO COM O PRINCÍPIO DO NULLA POENA SINE

JUDICIO ....................................................................................................... 175

4.1.2.2 O CONFLITO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA PRESUNÇÃO DE

INOCÊNCIA E DA AMPLA DEFESA ............................................................ 186

4.1.3 AS POSSÍVEIS TENSÕES DECORRENTES DA FIXAÇÃO PRÉVIA DE

PENA E OUTROS BENEFÍCIOS NÃO PREVISTOS EM LEI ........................... 190

4.1.3.1 A CONCILIAÇÃO COM O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL ............. 191

4.1.3.1.1 A VINCULAÇÃO DO JUIZ AOS BENEFÍCIOS NA

HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL ..................................................................... 191

4.1.3.1.2 A IMPARCIALIDADE DO JUIZ E A HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL

................................................................................................................... 197

4.1.3.1.3 OS IMPACTOS NO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL DAS

CLÁUSULAS ESPECÍFICAS ..................................................................... 200

4.1.3.2 A CONCILIAÇÃO COM OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE,

OBRIGATORIEDADE E DA INDISPONIBILIDADE DA AÇÃO PENAL

PÚBLICA ...................................................................................................... 206

4.2 A COLABORAÇÃO COMO PROVA DA CONDENAÇÃO .............................. 216

CONCLUSÃO ......................................................................................................... 225

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 234

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INTRODUÇÃO

A colaboração premiada é, possivelmente, o mais polêmico instrumento

jurídico utilizado no processo penal brasileiro na atualidade. Sua recente e prolífera

aplicação transcendeu os limites do universo forense e passou a fazer parte de

populares e corriqueiras discussões sobre os rumos do país, o que se deve,

naturalmente, ao impacto social e político de operações de grande magnitude que

envolveram – e seguem envolvendo – figuras conhecidas do amplo público que, sob

uma perspectiva geral, passaram a se submeter, com reais riscos de

encarceramento, à justiça criminal.

A Operação Lava Jato é o principal vetor dessa mudança. No âmbito da

referida operação, inúmeros acordos de colaboração premiada foram celebrados,

revelando detalhes impressionantes sobre o funcionamento de um esquema de

cartel e corrupção envolvendo as maiores empreiteiras e os partidos políticos mais

poderosos do país. Centenas de indivíduos que, normalmente, não seriam expostos,

julgados e condenados, passaram a lidar com a realidade da prisão por fatos

extremamente graves que comprometem diariamente o funcionamento do país.

Paralelamente à Lava Jato, outras grandes operações foram deflagradas a

partir do uso reiterado da colaboração premiada, sempre com o objetivo de esmiuçar

os sórdidos detalhes de crimes cometidos em organizações criminosas comumente

instaladas na Administração Pública e envolvendo gigantescas empresas nacionais

e internacionais. A utilização do instrumento passou a se tornar não apenas uma

aparente necessidade, mas uma eficiente opção para os investigados e acusados

que, à mercê dos fatos iluminados por acordos anteriores, pouco têm a apresentar,

em termos de defesa de mérito, e precisam de alternativas capazes de ao menos

minorar as consequências dos atos criminosos desvelados.

O impacto social, com uma possível diminuição da percepção de impunidade,

não é suficiente, porém, para a aceitação irrestrita e sem maiores reflexões da

colaboração premiada. O instituto, seja sob uma perspectiva legal ou a partir de uma

observação empírica de sua utilização, merece aprofundado estudo, sobretudo

porque põe em xeque paradigmas legais e constitucionais do direito penal e,

especialmente, do processo penal pátrio. Conceitos consagrados sobre os princípios

inerentes ao tema, insculpidos ou não na Constituição, passaram a ser desafiados

pela nova dinâmica processual observada nas grandes operações acima

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mencionadas. Some-se isso à mudança de interpretação do Supremo Tribunal

Federal sobre temas de igual repercussão (como a execução provisória da pena,

que, por ora, segue possível) e tem-se uma verdadeira revolução no sistema penal

brasileiro.

O presente trabalho, intitulado A colaboração premiada e os parâmetros

constitucionais do processo penal, desenvolve-se a partir dessa premissa. Mais

especificamente, a inspiração do estudo surgiu de pesquisa anterior na qual se

enfrentou a aparente contradição entre o princípio nulla poena sine judicio e

determinados acordos de colaboração premiada que estabeleceram,

independentemente de denúncia ou condenação criminal (sequer de 1º grau), uma

pena a ser cumprida imediatamente pelo investigado colaborador. Nesse sentido,

além de se analisar o referido princípio (que será igualmente tratado neste trabalho),

verificaram-se dois acordos de colaboração que continham exatamente essa

previsão. Ambos os colaboradores passaram a cumprir pena privativa de liberdade

(em regime semiaberto diferenciado) imediatamente após a homologação do acordo

pelo Supremo Tribunal Federal. Nessa dinâmica, criou-se uma situação de tensão

entre a garantia do art. 5º, LIV (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens

sem o devido processo legal”) e o exercício da autonomia da vontade pelo

colaborador.

Com maior reflexão sobre o tema, outros potenciais conflitos principiológicos

foram evidenciados a partir da prática pública da colaboração premiada. Mesmo nos

dois acordos mencionados, é possível verificar nova tensão, com o dispositivo

constitucional imediatamente anterior ao devido processo legal, qual seja a garantia

do Juiz natural (art. 5º, LIII – “ninguém será processado nem sentenciado senão pela

autoridade competente”). Afinal, ambos os colaboradores acabaram tendo sua

“pena” fixada por meio de um acordo de vontades do qual não fez parte, ao menos

em uma perspectiva material (considerando-se a homologação um ato de natureza

formal), qualquer autoridade judiciária.

Esse é o mote da delimitação do tema deste estudo, questionando-se de que

maneira – ou em que medida – a colaboração premiada, na forma como prevista em

lei e, sobretudo, nos moldes em que vem sendo aplicada em acordos homologados

no Supremo Tribunal Federal, apresenta pontos de tensão com os fundamentos

constitucionais do processo penal no Brasil.

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O objetivo geral do trabalho, portanto, será analisar como a colaboração

premiada, tanto em sua previsão legal, quanto em sua interpretação prática e

jurisprudencial (fazendo-se a diferenciação a partir de precedentes conceituais e de

exemplos de acordos reais celebrados pela PGR e homologados pelo STF),

relaciona-se com dogmas constitucionais do processo penal (devido processo legal,

juiz natural, ampla defesa e contraditório, presunção de inocência, obrigatoriedade e

indisponibilidade da ação penal etc.). De forma específica, objetivar-se-á analisar: a)

a estrutura principiológica do processo penal brasileiro anterior à lei nº 12.850/2013;

b) os fundamentos autorizadores da colaboração premiada, sob as perspectivas da

política criminal, do direito penal e do processo penal; c) o modelo de colaboração

premiada estabelecido pela lei de organizações criminosas (natureza jurídica,

cabimento, legitimidade e procedimento); e d) as mudanças individualizadas que

podem ser percebidas da aplicação prática do instituto, com a apresentação de

conclusões sobre eventuais alterações conceituais dos princípios que regem o

processo penal.

Estruturalmente, o trabalho iniciará por um estudo dos paradigmas do

processo penal antes da difusão prática da colaboração premiada no Brasil. Nesse

sentido, serão analisados de forma individualizada os princípios que compõem – ou

compunham – a ordem constitucional do processo penal brasileiro, quais sejam os

princípios do nulla poena sine judicio, Juiz natural, Promotor natural, presunção de

inocência, contraditório e ampla defesa, obrigatoriedade e indisponibilidade da ação

penal pública. Após essa análise, serão estudados os fundamentos materiais e

processuais da colaboração premiada, com seu posicionamento sob as óticas da

política criminal, da dogmática penal e das teorias dos fins da pena, da criminalidade

empresarial e sua complexidade probatória e da justiça penal negocial (analisando-

se, nesse ponto, os modelos norte-americano e italiano).

Na terceira parte do trabalho, será dissecado o instituto da colaboração

premiada estabelecido pela Lei nº 12.850/2013, enfrentando-se sua evolução

legislativa, estrutura legal e aspectos formais de natureza jurídica, legitimidade e

procedimento na aplicação do instituto, além do sistema de prêmios estabelecido em

lei (imunidade, perdão judicial, redução de pena e benefícios na execução de pena),

que terá uma análise individualizada.

No último capítulo, serão utilizados acordos de colaboração já celebrados no

país como exemplos ilustrativos do potencial de transformação dos princípios

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processuais penais estudados com a adoção ampla do instituto. A princípio, não se

pretende chegar a uma conclusão definitiva sobre a eventual inconstitucionalidade

da colaboração premiada ou de algumas de suas práticas. O que se busca é

demonstrar as possíveis tensões entre o formato de determinados acordos

(analisando-se, principalmente, os benefícios nesses concedidos) e os paradigmas

principiológicos tratados no primeiro capítulo, eventualmente sugerindo uma

mudança nesses conceitos.

Por fim, e considerando-se que o Mestrado em Direito Empresarial e

Cidadania tem linhas de pesquisa bem definidas que, sob uma primeira leitura,

podem ser de difícil aderência com o tema deste trabalho, faz-se necessária uma

justificativa. Embora seja visível a proximidade entre a colaboração premiada e o

Direito Penal Econômico, já que aquela tem plena e justificada utilização nesse (em

razão da similaridade estrutural e dificuldades probatórias que ocorrem tanto nos

crimes de organização criminosa, quanto nos crimes empresariais), o tema ora

tratado guarda maior proximidade com a questão da cidadania, que é outra parcela

da linha de pesquisa do Programa de Mestrado. Seja porque a função da

colaboração premiada é, naturalmente, conferir maior efetividade à justiça criminal,

seja porque este estudo atrai indispensáveis reflexões sobre o catálogo de Direitos

Fundamentais assegurados pela Constituição de 1988, que são essenciais à

justificação, ou não, desse novel instituto do sistema jurídico brasileiro.

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1 O PARADIGMA DO PROCESSO PENAL PRÉ-COLABORAÇÃO PREMIADA

1.1 O FUNDAMENTO EXISTENCIAL DO PROCESSO PENAL

O processo penal existe simplesmente porque existe o Estado. Ou melhor: a

existência do processo se deve, em primeiro lugar, à evolução das civilizações

humanas que, “visando à continuidade da vida em sociedade, à defesa das

liberdades individuais, em suma, ao bem-estar geral (...) organizaram-se em

Estado”1. Embora não haja um consenso – e nem seja o interesse do trabalho

discuti-lo2 – sobre o surgimento do Estado, Tourinho Filho resume bem que “o certo

e recerto é que ele existe como uma realidade irreversível”3 que, após inúmeras idas

e vindas, chegou ao estágio atual, organizado, na sociedade ocidental, em órgãos

(chamados “Poderes”) que exercem suas funções básicas – legislativa,

administrativa e jurisdicional.

Os Poderes tripartidos têm funções conhecidas e que, ao menos de forma

mediata, relacionam-se com o processo penal. O legislativo tem a função de legislar,

criando leis que ditem o funcionamento da sociedade (devendo, na melhor das

hipóteses, coadunar-se com seus interesses); o executivo administra, com base

nessas leis; e o judiciário julga e aplica os mandamentos legais. Naturalmente, as

leis ditam não só sobre o funcionamento do Estado, mas sobre as limitações que se

impõem à sociedade. E o crime nada mais é que “a violação de um bem

juridicamente tutelado que afeta as condições da vida social, pelo que é imperativo

do bem comum a restauração da ordem jurídica que com o delito foi atingida”4.

Nos primórdios civilizatórios, já havia, obviamente, a ideia de transgressão de

regras, implícitas ou explícitas, de convivência humana. No entanto, como explica

Lopes Jr., ainda que houvesse uma reação a esse tipo de transgressão, não se tinha

a ideia de pena, mas a de vingança5, que com aquela não se confunde: “a vingança

1 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Volume 1. 35ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 18. 2 Já que é necessária uma profunda análise das sociedades politicamente organizadas, como os egípcios, hebreus e gregos, como bem alerta Almeida Junior (ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. O processo criminal brasileiro. 4ª Edição. São Paulo: Freitas Bastos, 1959, p. 16). 3 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 19. 4 MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Volume I. 2ª Edição. Campinas: Millenium, 2000, p. 3. 5 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 33.

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implica liberdade, força e disposições individuais; a pena, a existência de um poder

organizado”.6

Quando o Estado “vence a atuação familiar (vingança do sangue e

composição)”7 e passa a exercer o papel de único titular do direito de punir8, surge,

como se afirmou acima, a ideia de processo, com um representante estatal (Juiz)

impondo a reprimenda (pena) ao transgressor da regra de convivência social (lei) em

busca de justiça. E mais, como sustenta Velloso, “a razão de ser do processo é a

erradicação de toda força ilegítima dentro de uma sociedade dada para manter um

estado perpétuo de paz e de respeito a normas adequadas de convivência que

todos devem acatar”9.

Em outras palavras, Marques afirma que, “para evitar a luta privada e impedir

a abdicação de direitos indisponíveis, o Estado exerce a função jurisdicional” 10 ,

incumbindo-se de restaurar o mandamento da ordem jurídica que tenha sido atingido

ou violado.

Lopes Jr. ressalta que, diferentemente do direito civil, que “se realiza todos os

dias, a todo momento, sem necessidade de ‘processo’” 11, o direito penal depende

de processo para sua efetivação: “somente depois do processo penal teremos a

possibilidade de aplicação da pena e realização plena do direito penal” 12. Como

bem ilustra Dias, o direito processual penal, conquanto autônomo, é “uma parte do

direito penal”13, formando com ele uma unidade, sem a qual não há um nem outro.

Sob a égide da lei (afastando-se aqui qualquer discussão sobre regimes

autocráticos), ao Estado não cabe agir “na conformidade de seu arbítrio, e sim,

subordinado a normas e princípios jurídicos” 14 , em postulados que “se aplicam

também ao direito de repressão e prevenção do Estado, o qual deve, por esse

motivo, ser exercido em função das regras do direito positivo”15.

Não obstante, é importante ressaltar, desde logo, que a lógica do exercício do

poder punitivo das sociedades modernas constituídas a partir da premissa acima

6 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 33. 7 Ibidem, p. 34. 8 MARQUES, José Frederico. Elementos..., 2000, p. 3. 9 VELLOSO, Adolfo Alvarado. El garantismo Penal. Rosario: Juris, 2010, p. 10-11. Tradução livre. 10 MARQUES, op. cit., p. 9. 11 LOPES JR, op. cit., p. 34. 12 Ibidem, p. 34. 13 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Primeiro Volume. Coimbra: Coimbra, 2004, p. 23-24. 14 MARQUES, op. cit, p. 4. 15 Ibidem, p. 4.

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delineada tradicionalmente se voltou a “garantir a segurança dos indivíduos, a

proteção da sua vida, do seu corpo, da sua liberdade e do seu patrimônio”16. Com

efeito, as regras do direito positivo às quais os Estados modernos historicamente se

submeteram tiveram objetivos bastante individualizados. Na segunda metade do

século XX, porém, a lógica mudou, com a tipificação de condutas voltadas à

prevenção de crimes de natureza supraindividual, como delitos econômicos, de

lavagem de dinheiro, contra o meio ambiente, de responsabilidade pelo produto,

tráfico de drogas, crime organizado, entre outros17.

Essa mudança de foco da atuação penal do Estado, que justifica – como será

melhor tratado adiante – a introdução de instrumentos modernos de combate à

criminalidade, como a colaboração premiada, a ação controlada e a figura

whistleblower, tem naturais reflexos na compreensão das regras fundamentais,

analisadas em uma breve perspectiva histórica e uma contextualização moderna,

que objetivam os próximos subcapítulos.

1.2 AS BASES ESTRUTURAIS DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

A parcela mais tradicional da doutrina brasileira relata que, historicamente,

houve um movimento pendular entre dois sistemas para o exercício do poder

punitivo pelo Estado, que variavam de acordo com o “predomínio da ideologia

punitiva ou libertária”18. Parte-se da premissa de que, até meados do Século XII,

vigia pelo mundo o Sistema Acusatório, em que o processo para a aplicação da

sanção penal era “essencialmente um processo de partes, no qual acusação e

defesa se contrapõem em igualdade de posições, e que apresenta um juiz

sobreposto a ambas”19. Após esse período inicial, teria havido uma migração do

processo penal para o Sistema Inquisitório, no qual as “funções de acusar, defender

e julgar encontram-se enfeixadas em uma única pessoa, que assume assim as

vestes de um juiz acusador”20.

16 DIAS, Figueiredo. O problema do Direito Penal no dealbar do terceiro milenio. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 99/2012, p. 35-50, Nov-Dez/2012. 17 ROXIN, Claus. La evolución de la política criminal, el Derecho penal y el Proceso Penal. Tradução de Carmen Gómez Rivero e María Del Carmen García Cantizano. Valencia: Tirant lo Blanch, 2000, p. 26. 18 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 40. 19 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 95. 20 Ibidem, p. 95.

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Lopes Jr. exemplifica a transformação a partir da instituição, no Século XIII,

do “Tribunal da Inquisição ou Santo Ofício, para reprimir a heresia e tudo que fosse

contrário ou que pudesse criar dúvidas acerca dos Mandamentos da Igreja

Católica”21. Não havia acusação ou qualquer espécie de publicidade, cabendo ao

Juiz-inquisidor atuar “de ofício e em segredo, assentando por escrito as declarações

das testemunhas (cujos nomes são mantidos em sigilo, para que o réu não os

descubra)” 22 e determinando a reprimenda que caberia ao acusado.

Outros autores sustentam que, antes mesmo do Tribunal da Inquisição, já

havia, a partir do Século X, o modelo inquisitório em que a Igreja fora “convertida em

poder jurisdicional” 23, de modo que a penitência religiosa tomava traços jurídicos,

sem abandonar seu caráter sacramental, como explica Amaral:

Tal obrigação de confessar, independentemente se pecado há, é a estampa da confissão como operador primordial para entender desde lá a superposição da forma sacramental e da forma judicial da penitência. A cena judicial se estabelece como estrutura da relação Homem e Deus, quase que como condição do poder temporal da Igreja. A introdução deste ‘sujeito confessante’, incitado a dizer o que se pergunta, ademais de ter podido manter unidas ambas as dimensões, teve papel indispensável na maquinaria penal, consolidando o poder punitivo e a institucionalização de sua prática judicial.24

Em razão dessa “juridicização das práticas eclesiásticas” 25 decorrente da

inquisição, teria havido um deslocamento do “peso do enfrentamento característico

dos modelos germânicos (adversariais) para a decisão (resolução do soberano

desde o estabelecimento da verdade, decidindo-se por uma sanção a partir do

apurado)” 26. Nesse contexto, a confissão teria sido elevada à condição de “peça

central da prática judicial a partir do século XII” 27 , combinando-se a natureza

sacramental com sua utilidade jurisdicional para a “solução” das controvérsias

criminais.

21 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 41. 22 Ibidem, p. 42. 23 AMARAL, Augusto Jobim do. A cultura inquisitiva na Justiça Criminal: a propósito da delação nos sistemas penais contemporâneos. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 23, nº 274, setembro/2015, p. 6. 24 Ibidem, p. 6. 25 Ibidem, p. 6. 26 Ibidem, p. 6. 27 Ibidem, p. 6.

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Ressalva-se que, em momentos anteriores aos marcos religiosos acima

apresentados, existiram, como explica Barreiros,

modelos criminais de feição inquisitória, como é o caso do Direito Romano, tanto na sua fase primitiva, como durante o Baixo Império, ou que, mais recentemente, após a primeira guerra mundial os países governados segundo regimes autoritários não hajam implantado sistemas processuais penais caracterizados por elementos tipicamente inquisitório.28

Independentemente do exato momento em que se teria, segundo a doutrina

tradicional, estabelecido o sistema inquisitório, a característica essencial desse

modelo seria a “cumulação, nas mãos da mesma entidade, das funções de

instrução, acusação e julgamento, agindo esta sempre sob um estatuto que lhe

outorga uma nítida superioridade, relativamente ao arguido”. 29

É interessante notar que, mesmo a partir desse contexto histórico inquisitorial,

já seria possível extrair-se uma das origens de institutos como a atual colaboração

premiada brasileira. Embora a evolução do instituto até os termos atuais tenha

dependido de uma série de outros fatores que não se relacionam com a dinâmica

processual da Idade Média (o que será demonstrado no terceiro capítulo), é

interessante notar que, naquele tempo, já havia a figura do colaborador, “chamado

de pentito (arrependido)” 30, que, “com o arrependimento e a colaboração (...) recebia

um prêmio, que tinha feições temporais, a exemplo das indulgências, do

recebimento de dinheiro, da liberdade e da anistia”31.

De todo modo, é certo que, segundo a doutrina tradicional, o sistema

inquisitório teria vigido até o início do Século XIX, “momento em que a Revolução

Francesa, os novos postulados de valorização do homem e os movimentos

filosóficos que surgiram com ela repercutiram no processo penal, removendo

paulatinamente as notas características do modelo inquisitivo”32.

O sistema acusatório moderno, como bem resume Lopes Jr., caracteriza-se,

essencialmente, por:

28 BARREIROS, José António. Processo Penal. Volume 1. Coimbra: Almedina, 1981, p. 13. 29 Ibidem, p. 13. 30 MARQUES, Antonio Sergio Peixoto. A Colaboração Premiada: um braço da Justiça Penal Negociada. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, nº 60, jun-jul/2014, p. 34. 31 BECHARA, Fábio Ramazzini. Colaboração premiada segundo o projeto de lei das organizações criminosas. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 20, nº 233, abril de 2012, p. 4. 32 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 42

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a) clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; b) a iniciativa probatória deve ser das partes (decorrência lógica da distinção entre as atividades; c) mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de descargo; d) tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo); e) procedimento é em regra oral (ou predominantemente); f) plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte); g) contraditório e possibilidade de resistência (defesa); h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; i) instituição, atendendo a critérios de segurança (e social) da coisa julgada; j) possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição.33

O referido sistema seria típico de países de Common Law34, como a Grã-

Bretanha e os Estados Unidos, nos quais

o arguido é verdadeiramente uma parte processual, em posição de igualdade com a parte acusadora, pública ou privada, que aqui surge com autonomia e sem qualquer relacionamento com a autoridade encarregada do julgamento, que se encontra numa posição de franca superioridade. 35

A divisão da doutrina entre os sistemas acusatório e inquisitório, de forma

absolutamente independente, porém, é questionável. Chemim, nesse sentido,

apresenta “equívocos de compreensão histórica na construção da dicotomia dos

sistemas processuais penais em modelos ideais, ‘puros’ e antagônicos”36, indicando

que a divisão mais se relaciona com “mecânicas de manipulação discursiva”37. Em

resumo, o autor buscou a origem da “construção do antagonismo sistêmico” 38 ,

chegando à conclusão de que a doutrina do século XIX, em análise das “conflitivas e

esparsas práticas do quanto se efetivava no âmbito dos processos penais do século

XIII”39, acabou por “’esticar’ algumas categorias teóricas de um lado e ‘cortar’ fora

aquelas que atrapalhavam” 40. A partir de uma análise arbitrária das características

essenciais (porque realizada por meio de uma escolha de elementos voltada à

33 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 43. 34 BARREIROS, José Antônio. Processo Penal, 1981, p. 11. 35 Ibidem, p. 13. 36 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Atividade probatória complementar do Juiz como ampliação da efetividade do contraditório e da ampla defesa no novo Processo Penal brasileiro. 2015. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná – UFPR. Curitiba, p. 229. 37 Ibidem, p. 229. 38 Ibidem, p. 243. 39 GUIMARÃES, op. cit., p. 243. 40 Ibidem, p. 243.

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demonstração do antagonismo), a doutrina tradicional – inclusive Barreiros, acima

citado – teria criado parâmetros engessados que separariam claramente ambos os

sistemas.

Acontece que, na análise de Chemim, a simples dicotomia nunca se mostrou

suficiente, com a doutrina que se debruçou sobre o tema apresentando profundas

dificuldades de conceituar adequadamente o que seriam os sistemas em suas

formas puras. Indo além, o autor chegou à origem da construção doutrinária que, por

repetição, passou a ser adotada como regra: o autor italiano Carmignani teria

idealizado um sistema inquisitório a partir de regras esparsas contidas nos livros dos

práticos, que, coordenadas ao seu arbítrio (e sem uma lógica temporal), indicariam

um modelo de processo41. Assim foi seguido por outros autores, como Carrara, que

também teriam chegado a conclusões semelhantes sem amparo técnico preciso, e

que acabaram servindo de base para grande parte da doutrina brasileira42.

A conclusão a que se pode chegar a partir do estudo – que foi apenas

sumariamente analisado – é a de que não é simples a assertiva de que existiram

sistemas processuais puros, havendo robustos elementos que indicam que, muito

provavelmente, sempre houve uma mescla entre elementos que se atribuem

exclusivamente a um ou outro sistema.

Não por outra razão, há ampla menção na doutrina a uma espécie de sistema

misto (“reformado ou napoleónico” 43), mais afeito à realidade brasileira, segundo o

qual “o processo penal compreende duas fases distintas e separadas: a instrução –

destinada a descobrir o crime e seus agentes – e o julgamento – no qual se procede

ao apuramento das responsabilidades do agente relativamente ao facto que haja

praticado”44.

É claro que, mesmo na modernidade, há diferenças essenciais sobre a

função do processo penal entre sistemas acusatórios adotados em diferentes países

(e, sobretudo, sob diferentes regimes políticos, sociais e econômicos). Breda

reconhece, nesse sentido, que, “o núcleo central do processo penal, ao longo dos

séculos, não foi determinado e alterado em razão de postulados e científicos, mas

41 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Atividade probatória complementar ..., 2015, p. 258-262. 42 Ibidem, p. 265. 43 BARREIROS, José Antônio. Processo Penal, 1981, p. 14. 44 Ibidem, p. 14.

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diretamente condicionado por força do controle estatal por governos autoritários ou

democráticos”45.

Exemplifica, assim, que, em regimes autoritários modernos, como o fascismo

de Mussolini, prevalecia a ideia de que o processo buscava a verdade material e,

sobretudo, almejava alcançar a “realização da pretensão punitiva” 46 . Sob essa

lógica, não havia “destaques a limitações na atividade jurisdicional, nem alusão às

garantias individuais, de modo que a gestão da prova, nessa matriz, encontra

poucos e imprecisos obstáculos” 47 , tratando-se de processo penal inclinado à

“instrumentalização do abuso, da excessiva repressão, da intolerância política e

social”48.

Por outro lado, ressalta Breda, “a doutrina processual penal produzida em

resposta a períodos totalitários, hoje praticamente encampada de maneira irrestrita,

fornece outras respostas às indagações propostas” 49 . A finalidade do processo

deveria ser, assim, “a reconstituição de um fato tido como delituoso e imputado a

alguém, assegurando-se ao indivíduo o pleno exercício de um conjunto de garantias

contra a possibilidade da aplicação arbitrária da sanção penal”50.

É este o sistema absorvido pela Constituição Federal de 1988, que

transforma ideologicamente a estrutura do Código de Processo Penal de 194151 e se

funda, em primeiríssimo lugar, no princípio da dignidade da pessoa humana, na

qualidade de “princípio fundamental em uma sociedade livre e democrática”52, como

pontuam Bertoncini e Markovicz. Nucci, por sua vez, explica que se trata, “sem

dúvida, de um princípio regente, cuja missão é a preservação do ser humano, desde

o nascimento até a morte, conferindo-lhe autoestima e garantindo-lhe o mínimo

existencial53. Embora a dignidade humana seja fundamento da própria Constituição,

45 BREDA, Juliano. A busca da verdade no processo penal e a delação premiada. In: BITENCOURT, Cezar Roberto (coordenador). Direito Penal no Terceiro Milênio. Estudos em Homenagem ao Prof. Francisco Muñoz Conde. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 455. 46 Ibidem, p. 455. 47 Ibidem, p. 455. 48 Ibidem, p. 455-456. 49 Ibidem, p. 455-456. 50 Ibidem, p. 455-456. 51 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 19ª Edição. São Paulo: Atlas, 2015, p. 35. 52 BERTONCINI, Mateus Eduardo Siqueira Nunes; MARKOVICZ, Silvia. O princípio da dignidade da pessoa humana e a responsabilidade social das empresas privadas. Revista Jurídica – Unicuritiba, vol. 2, nº 29, Curitiba, 2012, p. 381. 53 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015. Disponível em <http://goo.gl/NRvQQv> Acesso em 12 de março de 2018.

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há palatáveis reflexos de sua aplicação, tanto no Direito Penal, quanto no Processo

Penal.

Em relação ao direito material, parte-se da premissa de que “a existência de

tipos penais incriminadores, voltados à punição de quem violar os bens jurídicos por

ele tutelados, consagra a ideia de que o delito, quando concretizado, ofende, de

algum modo, a dignidade da pessoa humana”54. Com efeito, no Direito Penal, a

dignidade da pessoa humana tem, de plano, um papel importante na própria

delimitação e definição dos bens jurídicos por aquele tutelados.

No direito processual, a dignidade da pessoa humana assume caráter mais

voltado à pessoa do investigado/acusado. Considerando-se que “o processo penal é

constituído para servir de base ao justo procedimento de apuração da existência de

infração penal e de quem seja o seu autor” 55, o princípio regente terá um papel

fundamental na proteção do indivíduo face ao poderio do Estado na persecução. A

rigor, a dignidade da pessoa humana tem papel essencial quando o processo penal

busca “enaltecer o ser humano, resguardando a segurança pública na exata

proporção da necessidade” 56, o que é feito por meio de uma série de princípios e

garantias essenciais e específicos ao processo penal, que passa a se caracterizar,

nas palavras de Pacelli, como “um Direito de fundo constitucional”57.

Do rol constitucional, para os efeitos deste estudo – que, insiste-se, propõe-se

a analisar a eventual transformação da dinâmica constitucional com a propagação

dos acordos de colaboração premiada –, podem-se citar alguns princípios que farão

parte do escopo deste trabalho.

São eles a legalidade (art. 5º, XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o

defina, nem pena sem prévia cominação legal” 58), o devido processo legal (art. 5º,

LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo

legal” 59), o Juiz natural (art. 5º, LIII: “ninguém será processado nem sentenciado

senão pela autoridade competente” 60 ), a presunção de inocência (art. 5º, LVII:

“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal

54 NUCCI, Guilherme. Princípios Constitucionais..., 2015. 55 Ibidem. 56 Ibidem. 57 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 36. 58 BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: < http://goo.gl/pbMXut > Acesso em 12 de março de 2018. 59 Ibidem. 60 Ibidem.

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condenatória” 61) a ampla defesa e o contraditório (art. 5º, LV: “aos litigantes, em

processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o

contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”62) e os

princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública.

Os princípios indicados constituem um interessante cerne estrutural do

processo penal, alguns dos quais são, para parte da doutrina, “absolutamente

inafastáveis, e por isso, fundamentais, destinados a cumprir a árdua missão de

proteção e tutela dos direitos individuais”63. Embora haja outros tantos64 que estejam

insculpidos no texto constitucional e possuam igual relevância à conceituação

principiológica do processo penal, dois motivos essenciais justificam a limitação do

escopo deste estudo: a) em primeiro lugar, este trabalho parte de pesquisas

antecedentes a respeito da potencial mudança do processo penal provocada pelos

acordos de colaboração premiada, no bojo dos quais os referidos princípios

pareceram sofrer maior impacto com a atual dinâmica do instituto (o que será

devidamente relatado adiante); b) em segundo, trata-se de pesquisa que não tem

por pretensão o estudo de todos os princípios do processo penal constitucional

brasileiro.

1.3 O PRINCÍPIO NULLA POENA SINE JUDICIO

A rigor, o processo penal é o palco para o exercício das garantias do acusado

da prática de crimes, assim como se trata do instrumento pelo qual se dá a sua

apuração. É por meio dele que o Estado poderá punir o cidadão que alegadamente

incorrer em determinada prática delitiva. Segundo Tourinho Filho,

pelo respeito à dignidade humana e à liberdade individual é que o Estado fixa a manifestação do seu poder repressivo não só em pressupostos jurídico-penais materiais (nullum crimen nulla poena sine lege), como também assegura a aplicação da lei penal ao caso concreto, de acordo com

61 BRASIL. Constituição..., 1988. 62 Ibidem. 63 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 37. 64 Conforme Nucci, por exemplo, “considera-se direito fundamental o duplo grau de jurisdição, pois inerente ao princípio da ampla defesa, com os recursos a ela ligados, além de ser preceito extraído de documentos internacionais de direitos humanos”. NUCCI, Princípios Constitucionais..., 2015.

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as formalidades prescritas em lei, e sempre por meio dos órgãos jurisdicionais (nulla poena sine judice, nulla poena sine judicio).65

De acordo com a lição do autor, há uma complementação entre o princípio da

legalidade penal (nullum crimen nulla poena sine lege – nulos o crime e a pena sem

lei prévia) e os princípios processuais nulla poena sine judice e nulla poena sine

judicio, “o que significa que as leis materiais, o processo e o órgão jurisdicional são

fatores indispensáveis nas relações jurídico-penais”66. Com efeito, a pena para o

crime imputado (direito material) somente poderá ser aplicada se for previamente

prevista em lei (princípio da reserva legal – art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal e

art. 1º, caput, do Código Penal) e se, necessariamente, for submetida aos dois

referidos princípios de natureza processual.

O nulla poena sine judice corresponde à assertiva de que “nenhuma pena

poderá ser imposta senão pelo Juiz”67, encontrando correspondência no art. 5º,

XXXV da Constituição Federal, que disciplina que “a lei não excluirá da apreciação

do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”68. Como a liberdade “é um direito

individual, talvez até o mais importante de quantos possua o homem, e se a inflição

de uma pena lesiona tal direito, não poderá a lei, por mais importante que seja,

subtrair dos Juízes a apreciação de tal lesão”69. Nesse sentido, Almeida estabelece

que “a administração não pode, como noutros ramos de sua atividade, desenvolver-

se, em matéria penal, por coação direta sobre os imputados. Considerações

relevantes determinam-lhe agir por via jurisdicional: é o princípio da

jurisdicionalidade”70.

Já o nulla poena sine judicio, que é o princípio que norteia este subcapítulo,

traduz-se, na lição de Tourinho Filho, como a afirmação de que “nenhuma pena

poderá ser imposta ao réu senão com observância do due process of law” 71 .

Marques relaciona mais diretamente o referido princípio à garantia da reserva legal,

afirmando que limita a “atividade legislativo-penal, porque a regra da nulla poena

sine judicio impede a promulgação de leis particulares que, sob a forma de norma-

65 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 2013, p. 32. 66 Ibidem, p. 32. 67 Ibidem, p. 33. 68 BRASIL. Constituição..., 1988. 69 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 33. 70 ALMEIDA, J. Canuto Mendes de. Princípios fundamentais do Processo Penal. São Paulo: RT, 1973. P. 92. 71 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 33.

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sentença, imponham desde logo uma pena a determinada pessoa ou grupo de

pessoas”72.

De qualquer forma, o conteúdo do princípio do nulla poena sine judicio é, à

primeira vista, claro: “o Estado (...) somente poderá infligir pena ao violador da

norma penal após a comprovação de sua responsabilidade (por meio do processo) e

mediante decisão do órgão jurisdicional”73. Nesse sentido, em uma compreensão

ideal, Tourinho Filho resume de que forma se estabelece o princípio:

Assim, quando alguém comete uma infração penal, o Estado, como titular do direito de punir, impossibilitado, pelas razões expostas, de auto-executar seu direito, vai a juízo (tal qual o particular que teve seu interesse atingido pelo comportamento ilícito de outrem) por meio do órgão próprio (o Ministério Público) e deduz a sua pretensão. O Juiz, então, procura ouvir o pretenso culpado. Colhe as provas que lhe foram apresentadas por ambas as partes (Ministério Público e réu), recebe as suas razões e, após o estudo do material de cognição recolhido, procura ver se prevaleceu o interesse do Estado em punir o culpado, ou se o Juiz dirá qual dos dois tem razão. Se o Estado, aplica a sanctio juris ao culpado. Se o réu, absolve-o. Isso é processo.74

A lição do autor é precisa, à exceção de dois aspectos temporais: o réu é hoje

ouvido ao final do processo; ademais, sob a ótica do art. 156 do Código de Processo

Penal e da presunção de inocência, não cabe ao acusado provar que não agiu em

desconformidade com a lei, mas sim, a quem alegou a prática delitiva75. Para os

efeitos deste estudo, porém, a mensagem é clara: só cabe a punição – a aplicação

de sanção penal – quando o devido processo legal concluído assim determinar.

O nulla poena sine judicio relaciona-se, ademais, com o direito material

também em função da lei penal, como se verifica do art. 345 do Código Penal, que

descreve o crime de exercício arbitrário das próprias razões, que justamente se

caracteriza pela conduta de “fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer

pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite”76. Ou seja, não pode um

particular (ou ente que não o Poder Judiciário) impor uma pena a um terceiro, ainda

que justa seja sua pretensão.

72 MARQUES, José Frederico. Elementos..., 2000, p. 203. 73 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 2013, p. 34. 74 Ibidem, p. 34-35. 75 Conforme, por exemplo, LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, p. 59. 76 BRASIL. Decreto Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://goo.gl/fpStT1 > Acesso em 12 de março de 2018.

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É certo, porém, que, não obstante o aspecto categórico do princípio ora em

exame, há exceções à sua aplicação no processo penal brasileiro. A primeira – e

mais consolidada – é a transação penal. Embora parcela dominante da doutrina a

estabeleça, não como pena, mas “instituto despenalizador”77 integrante do que se

chama de processo penal consensual, o texto da lei (art. 76 da Lei nº 9.099/95)

fomenta a controvérsia quanto à natureza de pena, afirmando que, “havendo

representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não

sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação

imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta”78.

É verdade que, diferentemente das penas tradicionais, submetidas ao devido

processo legal, a celebração da transação penal não implica prisão nem consta de

certidão de antecedentes criminais (art. 76, §6º da Lei nº 9.099/95), além de se tratar

de instituto processual com esteio constitucional (art. 98, I, da Constituição).

Ademais, a natureza de pena pode ser questionada pelo fato de que o seu

descumprimento não implica consequências penitenciárias, justificando apenas o

oferecimento de denúncia e a submissão do acusado ao processo (do qual, aliás,

pode sair absolvido).

No entanto, há vigorosos opositores do instituto, como Prado, para quem “não

há devido processo legal na transação penal”79, e Reale Júnior, que sustenta que se

trata de sinal de um processo de “americanização do Direito”80 e uma “fórmula

simplificadora, com desprezo às garantias do autor do fato, impondo-lhe pena sem

processo”81 . Há outra característica na transação penal, que terá relevância no

estudo da colaboração premiada, que é o fato de que, estabelecida a pena ou

medida despenalizadora, encerra-se o processo (como será visto, há situações em

que a colaboração premiada se apresenta como uma “transação” seguida de

processo).

Além da Lei dos Juizados Especiais, algumas iniciativas normativas

pretendem estender o âmbito de aplicação da transação penal (e, por que não, o

77 Nesse sentido, BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 630. 78 BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em <http://goo.gl/rmPh8N > Acesso em 12 de março de 2018. 79 PRADO, Geraldo. Transação penal. Coimbra: Almedina, 2015. 80 O autor refere o termo “americanização” em tom pejorativo, no sentido de que a importação de um instituto proveniente dos Estados Unidos da América é, necessariamente, algo negativo. 81 REALE JUNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 19.

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âmbito de mitigação do princípio do nulla poena sine judicio). Em primeiro lugar, vale

menção ao Projeto de Lei do Senado nº 513/201382, que tem por objeto central a

reforma da Lei de Execução Penal, mas que, em seus últimos dispositivos, pretende

a alteração da Lei nº 9.099/1995, ampliando as hipótese de transação penal (para

infrações com pena máxima igual ou inferior a cinco anos) e suspensão condicional

do processo (para crimes com pena mínima igual ou inferior a três anos).

Ademais, é imprescindível a menção ao Projeto de Lei nº 8.045/2010, que

busca instituir o novo Código de Processo Penal, e que previa, no art. 283 do texto

original advindo do Senado Federal (Projeto de Lei do Senado nº156/200983), um

modelo semelhante (que se coaduna com o instituto norte-americano do plea

bargain, como também será visto adiante) de transação para crime de pena que não

ultrapasse 8 (oito) anos. Diz o dispositivo:

Art. 283. Até o início da instrução e da audiência a que se refere o art. 276, cumpridas as disposições do rito ordinário, o Ministério Público e o acusado, por seu defensor, poderão requerer a aplicação imediata de pena nos crimes cuja sanção máxima cominada não ultrapasse 8 (oito) anos. § 1º São requisitos do acordo de que trata o caput deste artigo: I – a confissão, total ou parcial, em relação aos fatos imputados na peça acusatória; II – o requerimento de que a pena privativa de liberdade seja aplicada no mínimo previsto na cominação legal, independentemente da eventual incidência de circunstâncias agravantes ou causas de aumento da pena, e sem prejuízo do disposto nos §§ 2º e 3º deste artigo; III – a expressa manifestação das partes no sentido de dispensar a produção das provas por elas indicadas.84

O texto ainda previa a possibilidade de substituição da pena privativa de

liberdade nos termos do art. 44, a suspensão condicional da pena do art. 77, ambos

do Código Penal, além de outras circunstâncias. Em 18 de abril de 2018, sobreveio

a notícia85 da apresentação de substitutivo ao texto original. Nele, segue a proposta

de transação em crimes com penas máximas inferiores a 8 (oito) anos, com algumas

alterações. Dizem os propostos artigos 297 e seguintes:

82 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 513/2013. Disponível em: <http://goo.gl/sgPYvq> Acesso em 21 de abril de 2018. 83 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 156/2009. Disponível em: <http://goo.gl/wRQGL2> Acesso em 21 de abril de 2018. 84 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 8.045/2010. Disponível em <http://goo.gl/2dxa9u> Acesso em 12 de março de 2018. 85 Disponível em: <http://goo.gl/x7k5wy> Acesso em 21 de abril de 2018.

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Art. 297. Ressalvados os casos submetidos ao Tribunal do Júri e de violência doméstica contra a mulher, o início da audiência de instrução, cumpridas as disposições do rito ordinário, o Ministério Público e o acusado, por seu defensor, poderão requerer o julgamento antecipado de mérito e a aplicação imediata de pena nos crimes que não estejam submetidos ao procedimento sumaríssimo e cuja sanção máxima cominada não ultrapasse oito anos. §1º O Juiz não participará da transação realizada entre as partes. §2º O julgamento antecipado isentará o réu do pagamento das despesas e custas processuais. Art. 298. O termo da transação penal será apresentado por escrito e assinado pelas partes, e conterá obrigatoriamente: I – a confissão em relação aos fatos imputados na peça acusatória; II – o requerimento de que a pena seja aplicada nos termos estabelecidos entre as partes; III – a declaração expressa das partes dispensando a produção das provas por elas indicadas, se for o caso; IV – renúncia ao direito de impugnar a sentença homologatória. Art. 299. Ao homologar a transação, o juiz deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o acusado, na presença de seu defensor. Art. 300. Tendo como limite a proposta pactuada, o juiz poderá, atendido os requisitos legais: I – reconhecer circunstâncias que abrandem a pena; II – substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos; III – aplicar a suspensão condicional da pena. Art. 301. A decisão homologatória da transação tem natureza de sentença penal condenatória e produzirá todos os efeitos legais dela decorrentes. Art. 302. Não sendo a transação homologada, será ela desentranhada dos autos, ficando as partes proibidas de fazer referência aos seus termos e condições, o mesmo se aplicando ao juiz em qualquer ato decisório. Art. 303. Não havendo transação entre acusação e defesa, o processo prosseguirá na forma do rito ordinário. Art. 304. O julgamento antecipado não constitui direito público subjetivo do réu.86

Embora o conteúdo seja muito similar, o novo texto prevê maior participação

do Magistrado, que julgará o mérito do caso e poderá acolher integralmente o

requerimento das partes quanto à pena “transacionada”, reduzi-la em razão de

circunstâncias atenuantes ou causas de diminuição de pena, substitui-la por pena

restritiva de direitos ou suspendê-la.

Outra interessante iniciativa em sentido semelhante decorre da Resolução nº

181, de 7 de agosto de 2017, do Conselho Nacional do Ministério Público, que

prevê, em seu Capítulo VII, a figura do “Acordo de Não-Persecução Criminal”87. Em

resumo, o art. 18 do texto original da resolução estabelecia a possibilidade de o

representante do Ministério Público, diante de delito cometido sem violência ou

grave ameaça à pessoa, “propor ao investigado acordo de não-persecução penal,

86 Disponível em: <http://goo.gl/yNi9gg> Acesso em 21 de abril de 2018. 87 BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Resolução 181, de 7 de agosto de 2017. Disponível em < http://goo.gl/Xop6gB > Acesso em 12 de março 2018.

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desde que confesse formal e detalhadamente a prática do delito e indique eventuais

provas de seu cometimento”88, além de cumprir uma série de requisitos, como a

reparação do dano à vítima, a renúncia de bens e direitos “de modo a gerar

resultados práticos equivalentes aos efeitos genéricos da condenação”89 dos arts. 91

e 92 do Código Penal, entre outras.

A medida provocou reação da Associação dos Magistrados Brasileiros e do

Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que ajuizaram no Supremo

Tribunal Federal ações diretas de inconstitucionalidade (nº 5790 e 5793) contra a

resolução do Conselho Nacional do Ministério Público.

Em 24 de janeiro de 2018, foi editada a Resolução nº 18390, que alterou o

dispositivo, limitando-o a crimes com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e

estabelecendo uma série de outros requisitos. De maior relevo, é importante notar o

disposto no art. 18, §§4º, 5º e 6º, que estabelece a participação do juiz no acordo.

Basicamente, o magistrado avaliará o cabimento da medida; caso entenda

negativamente, encaminhará o feito ao Procurador-Geral para que ofereça a

denúncia, complemente as investigações, reformule a proposta de acordo ou

mantenha o original, “que vinculará toda a Instituição”91.

Por fim, outra potencial exceção ao princípio nulla poena sine judicio parece

ser o tema do presente estudo, qual seja o instituto da colaboração premiada da Lei

nº 12.850/2013. No entanto, e como será melhor exposto adiante, nem toda

colaboração premiada irá funcionar como exceção (ou violação, dada a perspectiva

adotada) e, na realidade, apenas certa (mas recorrente) formulação para o referido

instituto poderá revelar essa característica. O objetivo deste trabalho será expor

ambas as situações, embasando-as a partir de exemplos reais.

1.4 O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL

A conceito de juiz natural poderia ser aqui definido, pura e simplesmente,

como o “direito fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um

88 BRASIL. Resolução nº 181..., 2017. 89 Ibidem. 90 BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Resolução nº 183, de 24 de janeiro de 2018. Disponível em: <http://goo.gl/tcJhKy> Acesso em 21 de abril de 2018. 91 Ibidem.

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tribunal previsto como competente por lei anterior, e não ad hoc ou tido como

competente”92. Segundo Dias, a ideia do juiz natural

A tanto vincula a necessária garantia dos direitos da pessoa, ligada à ordenação da administração da justiça, à exigência de julgamentos independentes e imparciais e à confiança da comunidade naquela administração.93

Parece uma consequência lógica, com efeito, que a expressão juiz natural

deva vir acompanhada da compreensão de juiz imparcial, que é “aquele que tem

condições, objetivas e subjetivas, de proferir veredicto sem a menor inclinação por

qualquer das partes envolvidas, fazendo-o com discernimento, lucidez e razão”.94

Em outras palavras:

A parcialidade significa um estado subjetivo, emocional, um estado anímico do julgador. A imparcialidade corresponde exatamente a essa posição de terceiro que o Estado ocupa no processo, por meio do juiz, atuando como órgão supraordenado às partes ativa e passiva. Mais do que isso, exige uma posição de terzietà, um estar alheio aos interesses das partes na causa. 95

Com efeito, “o juiz não deve ser confundido com as partes, pois assume uma

posição de terceiro, contraditor, responsável, todavia, pela sua regularidade na

produção probatória processual” 96 . Ou seja, por juiz imparcial, tem-se a

compreensão de uma atuação “alinhada a um desinteresse subjetivo, decidindo com

certa apatia que lhe permita encontrar o ponto de equilíbrio justo para decidir,

levando em consideração todas as provas e argumentações que as partes

oferecem”97.

Coutinho, por outro lado, alerta que a imparcialidade do juiz se constitui em

princípio que “funciona como uma meta a ser atingida pelo juiz no exercício da

jurisdição, razão por que se buscam mecanismos capazes de garanti-la”98. Tal aviso

92 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Primeiro Volume. Coimbra: Coimbra, 2004. P. 322. 93 Ibidem, p. 322. 94 NUCCI, Guilherme. Princípios Constitucionais..., 2015. 95 CID, Daniel Del. A homologação dos acordos de colaboração premiada e o comprometimento da (justa) prestação jurisdicional. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 23, nº 276, novembro de 2015, p. 16. 96 Ibidem, p. 16. 97 Ibidem, p. 16. 98 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, ano 30, nº 30, 1998, p. 173.

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tem razão de ser. Como bem assevera o autor, a absoluta neutralidade do julgador é

uma “máscara” em face de suas naturais ideologias e deve ser desconsiderada

como objetivo principiológico do processo penal. Afinal, o juiz, “como todos os outros

seres humanos, também é construtor da realidade em que vivemos, e não mero

aplicador de normas, exercendo atividade simplesmente recognitiva”99.

Uma melhor compreensão do princípio do juiz natural, porém, demanda uma

– breve – incursão à sua concepção e evolução histórica. A noção do juiz natural

decorre, segundo Pacelli, do Direito anglo-saxão, tendo sido “construído inicialmente

com base na ideia da vedação do tribunal de exceção” 100. De acordo com o autor,

essa função originária conectaria o princípio ao da legalidade101. Nesse sentido,

Badaró explica que, na Magna Charta de 1215102, “imposta pelos barões ao Rei

João Sem Terra (...) podem ser encontrados alguns antecedentes remotos da

garantia do juiz competente”103, consagrando “o direito de os condes e barões serem

julgados ‘apenas por seus pares’” 104. Séculos depois, em razão dos “abusos e

excessos do poder punitivo consolidados no período dos Tudors, por meio de

comissões extraordinárias” 105, a Petition of Rights, de 7 de julho de 1628106, foi

promulgada com a expressa vedação a comissões de julgamento ex post factum.

Era, segundo Badaró “o reconhecimento do direito ao juiz legal” 107, que foi depois

ratificada pelo Bill of Rights, de 1689108.

Marques, por sua vez, refere seu surgimento da “regra do direito medieval de

que ninguém podia ser julgado a não ser por seus pares”109 e, mais recentemente,

dos “primeiros textos constitucionais da Revolução” 110, em alusão que o autor faz à

Revolução Francesa. Segundo ele, o art. 4º, capítulo V, Título III da Constituição de

3 de setembro de 1791111, estabelecia, em tradução livre, que os cidadãos não

99 COUTINHO, Jacinto. Introdução aos princípios..., 1998, p. 171. 100 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 37. 101 Ibidem, p. 37. 102 Disponível em: <http://goo.gl/BFcKQV> Acesso em 22 de abril de 2018. 103 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz Natural no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 45. 104 Ibidem, p. 46. 105 Ibidem, p. 49. 106 Disponível em: <http://goo.gl/QxnXUa> Acesso em 22 de abril de 2018. 107 BADARÓ, op. cit., 2014, p. 50. 108 Disponível em: <http://goo.gl/5zVDU9> Acesso em 22 de abril de 2018. 109 MARQUES, José Frederico. Elementos..., 2000, p. 215. 110 Ibidem, p. 214. 111 FRANÇA. Constituição de 1791. Disponível em: <http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/les-constitutions-de-la-france/constitution-de-1791.5082.html> Acesso em 21 de abril de 2018.

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poderiam ser afastados do juízo previsto em lei para que outra comissão os

julgasse.

A primeira menção constitucional à expressão juiz natural remonta, segundo o

mesmo autor, à Constituição francesa de 1814112 (art. 62 - “juges naturels” 113), a

partir da qual o princípio se estendeu a outras legislações, como a Constituição

holandesa de 1815 e o Estatuto Albertino da Itália, de 1848 (art. 71 - “Giudici

naturali” 114). Na Espanha (Constituição de 1876), a ideia do juiz natural se traduziu

em juiz competente115, enquanto que, na Alemanha, na Constituição de Weimar, a

nomenclatura adotada foi juiz legal116.

No Brasil, a garantia do juiz natural está descrita em todas as Constituições,

sempre sob a denominação “autoridade competente”117. A única exceção, segundo

Marcon, “foi a Carta Constitucional autoritária de 1937, que aceitou como válida a

instituição do Tribunal de Segurança Nacional durante o governo ditatorial de Getúlio

Vargas, no ano de 1935, criado com o objetivo inicial de julgar seus adversários

políticos”118. Na Constituição de 1988, dois incisos do art. 5º se dedicam à definição

da referida garantia: o XXXVII, que prescreve que “não haverá juízo ou tribunal de

exceção” 119 , e o LIII, que estabelece que “ninguém será processado nem

sentenciado senão pela autoridade competente”120. A interpretação de ambos os

dispositivos deve ser feita em conjunto para a conclusão de que o princípio “consiste

no direito que cada cidadão tem de saber, de antemão, a autoridade que irá

processá-lo e qual o juiz ou tribunal que irá julgá-lo, caso pratique a conduta definida

como crime no ordenamento jurídico-penal”.121

112 MARQUES, José Frederico. Elementos..., 2000, p. 213. 113 FRANÇA. Constituição de 1814. Disponível em: <http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/les-constitutions-de-la-france/charte-constitutionnelle-du-4-juin-1814.5102.html> Acesso em 21 de abril de 2018. 114 ITÁLIA. Estatuto Albertino de 1846. Disponível em: <http://storia.camera.it/norme-fondamentali-e-leggi/nf-statuto-albertino> Acesso em 21 de abril de 2018. 115 ESPANHA. Constituição de 1876. Disponível em: <http://goo.gl/TnpLbm> Acesso em 21 de abril de 2018. 116 MARQUES, op. cit, p. 214. 117 Nesse sentido, veja-se a redação da Constituição do Império (BRASIL, Constituição (1824). Constituição Politica do Imperio do Brazil. Rio de Janeiro, 1824. Disponível em: <http://goo.gl/bfhFde > Acesso em 12 de março de 2018.) e a Constituição da República de 1988 (BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: <http://goo.gl/LS62B6> Acesso em 12 de março de 2018.). 118 MARCON, Adelino. O Princípio do Juiz Natural no Processo Penal. Curitiba: Juruá, 2004, p. 81. 119 BRASIL. Constituição..., 1988. 120 Ibidem. 121 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 248.

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Pacelli refere que as “duas vertentes fundamentais” do juiz natural se

assentam “na configuração do nosso modelo constitucional republicano, em que as

funções do Poder Público e, particularmente, do Judiciário, têm distribuição extensa

e minudente”122. Essa seria a razão pela qual, diferentemente de outros países, nos

quais se deixa “para o legislador a fixação de competência jurisdicional”123, há no

Brasil a previsão constitucional da garantia, por meio da qual “se procurou – e se

fez! – estabelecer regra (art. 5º LIII) que escapasse de qualquer manipulação

política/jurídica sobre a competência”124.

Embora a Constituição brasileira não refira a expressão juiz natural (assim

agindo “exatamente para que não se alegasse não estar inserida nele a questão

referente à competência”125), sua utilização auxilia o entendimento sobre o princípio:

é natural a competência do juiz porque se estabelece “no momento da prática do

delito” 126, e não posteriormente. Isso significa que “não se podem manipular os

critérios de competência e tampouco definir posteriormente ao fato qual será o juiz

da causa” 127. Essa definição posterior (post factum) é o que caracteriza os tribunais

de exceção, que são “criados depois do fato e para julgar um fato terminado, são

tribunais que dificilmente terão imparcialidade no julgamento”128. Sobretudo porque

“haverá designação específica dos julgadores para o caso, após a ocorrência do

fato” 129, circunstância na qual “quem tem o poder de indicar os juízes terá ampla

liberdade de compor o tribunal, seja para beneficiar, seja para prejudicar o

acusado”130. Quanto a esse aspecto, pode-se afirmar que o princípio do juiz natural

protege não apenas o cidadão acusado – que deve saber de antemão quem será

seu julgador –, mas também a sociedade – que deverá ter a certeza de que os

julgamentos não serão realizados a partir de escolhas oportunas de julgadores. É o

que leciona Karam:

As regras sobre competência assentadas na Constituição Federal, ALÉM de naturalmente condicionarem e fixarem parâmetros para elaboração das

122 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 37-38. 123 Ibidem, p. 38. 124 COUTINHO. Jacinto. Introdução aos princípios..., 1998, p. 174. 125 Ibidem, p. 175. 126 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 248. 127 Ibidem, p. 248. 128 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 48. 129 Ibidem, p. 48. 130 Ibidem, p. 48.

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demais, expressam um valor maior, visando preservar aqueles interesses mais relevantes da ordem pública no processo. Ao indicar qual o órgão ou grupo de órgãos jurisdicionais constitucionalmente competente, adquirem estas regras uma dimensão de garantia, diretamente relacionada com a fórmula fundamental do devido processo legal, funcionando como fator de legitimação do exercício daquela função e daquele poder do Estado, questão particularmente importante no âmbito do processo penal, onde se defrontam o poder de punir e o direito de liberdade.131

Tenha-se em mente, porém, que há uma diferença entre tribunais de exceção

e justiças especializadas. Badaró explica que “o que os diferencia é que tais

tribunais ou juízos especiais são criados antes da prática dos fatos que irão julgar, e

têm competência determinada por regras gerais e abstratas, com base em critérios

objetivos” 132. Com efeito, não deveria haver a criação de uma justiça especial para

apuração de fatos posteriores, mas pode haver a transferência de uma competência

para um juízo especializado sem que se extraia disso uma violação à Constituição.

De qualquer modo, é certo que a definição do juiz natural para determinada

controvérsia dependerá da aplicação das regras de competência – e este ponto é

fundamental para a discussão que se pretende conduzir sobre o tema da

colaboração premiada. Parte da doutrina assevera que a garantia do art. 5º, LIII, da

Constituição Federal estabelece que o juiz natural é aquele definido exclusivamente

pelas regras de competência constitucionais. Nesse sentido, Marques afirma que

“em nosso sistema normativo o que existe, de maneira concludente e clara, é o

princípio de que ninguém pode ser subtraído de seu ‘juiz constitucional’” 133. Com

efeito, “somente se considera juiz natural ou autoridade competente, no Direito

brasileiro, o órgão judiciário cujo poder de julgar derive de fontes constitucionais”134.

O posicionamento leva a conclusões claras e simples. Seguindo o exemplo

de Badaró, “o julgamento de um crime militar pela justiça estadual viola a regra do

juiz natural, posto que o critério constitucional de competência da justiça militar não

terá sido observado” 135. Ou seja, a regra de competência a ser observada, para a

verificação da observância do princípio do juiz natural, seria apenas a constitucional

para essa parcela da doutrina.

O próprio Badaró discorda veementemente desse posicionamento:

131 KARAM, Maria Lúcia. Competência no processo penal. 4ª Edição. São Paulo: RT, 2005, p. 66. 132 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 48. 133 MARQUES, José Frederico. Elementos..., 2000, p. 217. 134 Ibidem, p. 217. 135 BADARÓ, op. cit., p. 50.

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Não é possível concordar com a identificação do juiz natural apenas com o juiz constitucionalmente competente, por se tratar de uma visão reduzida e fraca da garantia, na medida em que a restringe ao juiz competente segundo os critérios de competência previstos na Constituição. É sabido que as regras constitucionais não exaurem o processo de concretização da competência. Uma concepção forte e que não seja reducionista deve chegar a outro resultado, considerando que o juiz natural é aquele definido segundo todos os critérios de competência, sejam previstos na Constituição, sejam definidos em leis ordinárias e nas leis de organização judiciaria.136

Em sentido semelhante, Lopes Jr. defende que “não se pode mais

desconectar a garantia do juiz natural das regras de competência”137, devendo-se

afastar as “manipulações feitas nos critérios de competência a partir de equivocadas

analogias com o processo civil (...) permitindo que se desloquem processos da

cidade onde ocorreu o crime para outras, atendendo a duvidosos e censuráveis

critérios de maior eficiência no ‘combate ao crime”’138. Essa última afirmação guarda

íntima relação com esta pesquisa, na medida em que a colaboração premiada, não

raras vezes, envolve o deslocamento de competência (e será objetivo deste trabalho

verificar, em casos reais, como se tem feito esse deslocamento).

É verdade, sim, que a Constituição traz uma série de indispensáveis regras

de fixação de competência que definem de forma incontroversa o juiz natural. Nesse

sentido, Pacelli esclarece que o “constituinte de 1988 entendeu por bem fixar a

competência ora pelo critério de especialização quanto à matéria, ora em atenção à

relevância de determinadas funções públicas, estabelecendo assim, foros

privativos”139 nas instâncias superiores para o julgamento dos “ocupantes de cargos

públicos de alta significação no contexto político nacional” 140.

Violações aos dispositivos que preveem essa dinâmica, evidentemente,

afrontam o princípio do juiz natural, como o Supremo Tribunal Federal reconheceu

no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2797. No caso, relatado

pelo Ministro Sepúlveda Pertence, verificou-se que a Lei nº 10.628/2002, que

estendia a prerrogativa de foro a indivíduos que deixaram de ocupar cargos e

funções públicas correspondentes, atentava contra a referida garantia141.

136 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 50. 137 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 248. 138 Ibidem, p. 248. 139 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 38. 140 Ibidem, p. 38. 141 Ibidem, p. 38.

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Com efeito, e assumindo-se a posição de que nem só a competência

constitucional faz valer a aplicação do princípio do juiz natural, vale analisar

rapidamente as regras estabelecidas na Constituição de 1988 e no Código de

Processo Penal para a fixação da competência, o que se faz com o objetivo de

desvendar adiante, na quarta parte do trabalho, o impacto que pode ter a

colaboração nessa dinâmica.

Em primeiro lugar, estabeleça-se que “um juiz ou tribunal somente pode julgar

um caso penal quando for competente em razão da matéria, pessoa e lugar”142. A

competência em razão da matéria (ratione materiae143) depende de uma prévia

definição legislativa sobre quais temas serão julgados por esse ou aquele juízo. Os

exemplos mais clássicos são, naturalmente, o que se extrai do art. 5º, XXXVII, a, da

Constituição Federal, no qual se estabelece a competência do Tribunal do Júri para

o julgamento de crimes dolosos contra a vida e os dispositivos correspondentes às

competências da Justiça Federal. Ou, ainda, os arts. 98, I, e 124, caput, da

Constituição, que estabelecem, respectivamente, a competência dos juizados

especiais para a apuração de infrações penais de menor potencial ofensivo e da

justiça militar para o processamento e julgamento dos crimes militares.

Note-se que, embora os 4 (quatro) exemplos mencionados representem

fontes constitucionais de competência sobre a matéria, a lei infraconstitucional

também pode desempenhar esse papel, conforme se verifica da competência dos

crimes eleitorais, estabelecida no Código Eleitoral (Lei nº 4.737 de 15 de julho de

1965).

A competência em razão da pessoa (ratione personae144) guarda relação

com, basicamente, eventual qualidade que o investigado/acusado possua que lhe

conceda foro especial – como é o caso da prerrogativa de função. Nesse caso,

também a Constituição estabelece que determinados agentes serão julgados por

pré-definidas esferas da jurisdição: são os foros privativos do Supremo Tribunal

Federal (art. 102, CF), do Superior Tribunal de Justiça (art. 105, CF), dos Tribunais

Regionais Federais (art. 108, CF) e dos Tribunais de Justiça (art. 96, III, CF).

Segundo Marques, não se trataria “de privilégio de foro, porque a competência, no

caso, não se estabelece ‘por amor dos indivíduos’, e sim em razão ‘do caráter,

142 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 250. 143 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 38. 144 Ibidem., p. 39.

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cargos ou funções que eles exercem’” 145 . Consigne-se, porém, que esse tema

específico (que é sujeito a amplas críticas em razão da ineficiência dos Tribunais

superiores em processar os sujeitos albergados pelo foro especial) foi recentemente

revisto para deputados federais e senadores pelo Supremo Tribunal Federal, no

julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal nº 937, oportunidade em que se

definiu que “o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes

cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções

desempenhadas”146.

A competência territorial (ratione loci147), por sua vez, é aquela definida a

partir do local em que ocorre a infração penal. Como adverte Pacelli, tal competência

“foi delegada para a legislação (infraconstitucional)” 148. E o Código de Processo

Penal é quem disciplina as regras de fixação de competência, o que não faz, na

visão de alguns autores, com “sistemática clara e coerente”149. É que o art. 69, que

estabelece a determinação de competência jurisdicional confunde, nas palavras de

Badaró, “problemas de competência, critérios de competência, fatores de

modificação de competência, e até mesmo mecanismos de fixação concreta de

competência, elencando critérios sem nenhum rigor científico ou mesmo adequação

à organização judiciária brasileira”150.

O referido dispositivo dispõe que “determinará a competência jurisdicional: I –

o lugar da infração; II – o domicílio ou residência do réu; III – a natureza da infração;

IV – a distribuição; V – a conexão ou continência; VI – a prevenção; VII – a

prerrogativa de função”151. Evidentemente, há uma mistura, entre os incisos, de

critérios como o lugar da infração (competência territorial) com a natureza do crime

(competência material) e a prerrogativa de função (competência pessoal).

À luz da doutrina majoritária, “a violação das regras de competência para

matéria e pessoa, por ser absoluta – e por estar descrita no texto constitucional –,

não se convalida jamais (não há preclusão ou prorrogação de competência) e pode

145 MARQUES, José Frederico. Elementos..., 2000, p. 222. 146 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem na Ação Penal nº 937. Relator Ministro Roberto Barroso. Julgado em 3 de maio de 2018. Disponível em: <http://goo.gl/t88evK> Acesso em 5 de junho de 2018. 147 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 38. 148 Ibidem, p. 38. 149 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 251. 150 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 236. 151 BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). Disponível em <http://goo.gl/NbqJ9c > Acesso em 12 de março de 2018.

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ser reconhecida de ofício pelo juiz ou tribunal, em qualquer fase do processo”152. Por

sua vez, a competência territorial (em razão do lugar) tem sido compreendida como

relativa, no sentido de que deverá ser “arguida pelo réu no primeiro momento em

que falar no processo, sob pena de preclusão e prorrogação da competência do Juiz

(prorrogatio fori)”153.

Pacelli, nesse sentido, estabelece que a competência territorial sequer se

impõe como exigência do princípio do juiz natural, posição sobre a qual discorda

Lopes Jr, que sustenta que “ao compreendermos que a jurisdição é uma garantia,

não pode ela ser esvaziada com a classificação civilista de que é ‘relativa’. Ou seja,

a eficácia da garantia do juiz natural não permite que se relativize a competência em

razão do lugar” 154 . Karam também entende que, “não obstante se tratar de

competência territorial”, há hipóteses de improrrogabilidade de competência quando

não observadas regras que estabeleçam essa prorrogação de forma vinculada ao

interesse público155.

1.4.1 O PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL

Ao lado do princípio do juiz natural, é importante a menção ao princípio do

promotor natural, cuja compreensão, em razão da colaboração premiada, pode ter

os mesmos desdobramentos que os daquele.

A essência do princípio é simples: trata-se da garantia “contra os chamados

promotores de encomenda, escolhidos discricionariamente pelo chefe do Ministério

Público”156, que determina o estabelecimento, por lei, do órgão do Ministério Público

vinculado aos “casos afetos à instituição”157, sem liberdade irrestrita do Procurador

Geral para nomeações discricionárias. O princípio se ampara na Constituição

Federal – art. 127, §1º158 e art. 128, §5º, I, b159 -, na Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro

152 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 250. 153 Ibidem, p. 250. 154 Ibidem, p. 250. 155 KARAM, Maria Lúcia. Competência..., 2005, p. 80. 156 MAZZILI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. 8ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 74-75. 157 Ibidem, p. 75. 158 “São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional” (BRASIL, 1988). 159 “Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério

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de 1993 – art. 1º, parágrafo único160 e art. 38, II161 – e na Lei Complementar nº 75,

de 20 de maio de 1993 – art. 4º162 e art. 17163.

De fato, há várias hipóteses legais de designação de membro do Ministério

Público para atuações específicas, como “a) na recusa do arquivamento de inquérito

policial ou inquérito civil; b) nas hipóteses excepcionais de afastamento

compulsório”164 e “c) nos casos em que tenha o próprio procurador-geral atribuições

originárias para oficiar, porque, sempre que originariamente lhe caiba agir, poderá

avocar a prática do ato ou designar quem aja por ele (delegação)” 165, dentre outras.

O que se busca evitar, porém, é que, “a pretexto de designar um membro do

Ministério Público para um ato específico, ou ainda para avocar uma manifestação a

cargo da instituição”166, o promotor legalmente vinculado ao caso seja afastado

sumariamente em detrimento de outro especialmente selecionado – que Mazzili

chama de “promotor de encomenda”.

O princípio do promotor natural implica o reconhecimento de que a garantia

da inamovibilidade dos integrantes do Ministério Público não se restringe apenas ao

cargo exercido, mas, em especial, à “proteção das funções do cargo”167. Desse

modo, segundo Mazzili, o exercício das funções do cargo somente pode ser

compulsória e excepcionalmente afastado “por ato do procurador-geral, após

autorização do Conselho Superior do Ministério Público, e desde que o afastamento

convenha ao interesse público”168.

Público, observadas, relativamente a seus membros: I – as seguintes garantias: (...) b) inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, assegurada ampla defesa” (BRASIL, 1988). 160 “São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.” (BRASIL. Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993. Institui a Lei Orgânica do Ministério Público, dispõe sobre normas gerais para a organização do Ministério Públicos e dá outras providências. Disponível em <http://goo.gl/xD3KuJ> Acesso em 12 de março de 2018). 161 “Art. 38. Os membros do Ministério Público sujeitam-se a regime jurídico especial e têm as seguintes garantias: II - II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público” (BRASIL, 1993). 162 “São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional” (BRASIL. Lei complementar nº 75, de 20 de maio de 1993. Dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União. Disponível em <http://goo.gl/kR6Nt7> Acesso em 12 de março de 2018). 163 “Art. 17. Os membros do Ministério Público da União gozam das seguintes garantias: II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante decisão do Conselho Superior, por voto de dois terços de seus membros, assegurada ampla defesa” (BRASIL, 1993). 164 MAZZILI, Hugo Nigro. Introdução..., 2012, p. 75. 165 Ibidem, p. 75. 166 Ibidem, p. 76. 167 Ibidem, p. 77. 168 Ibidem, p. 77.

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Não é difícil relacionar o referido princípio com a temática da colaboração

premiada. Basta que se visualize situação em que, de forma justificada, o promotor

natural de determinada causa não entenda cabível a celebração de acordo com

determinado acusado; ainda que o Procurador-Geral possa (inclusive por razões

políticas) ser favorável ao acordo, não lhe é permitida a designação de outro

representante do Ministério Público para o ato sem esteio legal.

1.5 O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

O conceito de presunção de inocência169 é bastante literal: presume-se o

acusado inocente até que se concretize a formação da culpa. A origem dessa

garantia “remonta ao Direito Romano (escritos de Trajano), mas foi seriamente

atacada e até invertida na inquisição da Idade Média”170, como dispõe Lopes Jr.

Durante a época do Tribunal da Santa Inquisição, a insuficiência de provas para a

condenação não gerava um decreto absolutório, mas “uma semiprova, comportava

um juízo de semiculpabilidade e semicondenação a uma pena leve”171. Havia, com

efeito, uma “presunção de culpabilidade”, para a qual bastavam poucos elementos

indiciários para algum tipo de responsabilização criminal.

Com a Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem de 1789,

consagrou-se o princípio da presunção de inocência, em primeiro lugar, no art. 9º do

referido texto, no qual se estabeleceu que “todo acusado é considerado inocente até

ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor

desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela

lei”172.

A Constituição francesa de 1791 também proclamava que todo homem será

presumido inocente até que seja declarado culpado 173 , sendo o princípio

169 Também chamada pelos Tribunais de “presunção de não-culpabilidade”, embora Reis advirta que se trata de nomenclatura que “encontra raízes no fascismo italiano, que não se conformava com a ideia de que o acusado fosse, em princípio, inocente” (REIS, Wanderlei José dos. Recente guinada na jurisprudência do STF na interpretação do princípio da presunção de inocência. Revista Jurídica - Unicuritiba, vol. 04, nº 49, Curitiba, 2017, p. 440-461). 170 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 94. 171 Ibidem, p. 94. 172 Disponível em <http://goo.gl/8LRbgi> Acesso em 12 de março de 2018. 173 FRANÇA. Constituição de 1791. Disponível em: <http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/les-constitutions-de-la-france/constitution-de-1791.5082.html> Acesso em 21 de abril de 2018.

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efetivamente espalhado pelo mundo civilizado a partir de então. No entanto, no

período compreendido entre o final do Século XIX e o início do Século XX –

sobretudo sob a égide de discursos totalitários –, a presunção de inocência foi

colocada em xeque.

Na Itália fascista, considerava-se a presunção de inocência um “estranho e

absurdo extraído do empirismo francês”174, havendo uma inversão dos argumentos

pela defesa da garantia (não por outra razão “o Código de Rocco de 1930 não

consagrou a presunção de inocência, pois era vista como um excesso de

individualismo e garantismo” 175).

A discussão permaneceu intensa até a Declaração Universal dos Direitos do

Homem, da ONU, que proclamou a presunção de inocência em seu art. 11176. A

Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 4 de novembro de 1950, adotou o

preceito no inciso 2º de seu art. 6º, consagrando a tendência seguida pela própria

Itália, que já o havia incluído em seu texto constitucional, dois anos antes.

Mais recentemente, o Pacto de San José da Costa Rica, de 22 de novembro

de 1969 (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), proclamou, em seu artigo

8, inciso 2, a aludida garantia judicial: “toda pessoa acusada de delito tem direito a

que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”177.

No Brasil, a presunção de inocência somente foi incluída no texto

constitucional em 1988. Nota-se que o dispositivo que a consagra, o art. 5º LVII, tem

redação afeita ao que se denomina de princípio da não-culpabilidade: “ninguém será

considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” 178.

Parte da doutrina sequer menciona o termo “presunção” ao referir a garantia, como

Pacelli, que a refere como “princípio da inocência, ou estado ou situação jurídica de

inocência”179. Não haveria uma presunção – de inocência ou de não-culpabilidade –,

mas um status pré-constituído e mantido até o marco temporal definidor da culpa (na

Constituição, o trânsito em julgado – com a ressalva que será feita abaixo).

174 MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. Tomo 1. Barcelona: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1951, p. 252 175 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 95. 176 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Processo Penal, 2013, p. 90. 177 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm> Acesso em 21 de abril de 2018. 178 BRASIL, Constituição..., 1988. 179 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 48.

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Badaró minimiza a nomenclatura, afirmando que “as expressões ‘inocente’ e

‘não-culpável’ constituem somente variantes semânticas de um idêntico

conteúdo”180, sendo “inútil e contraproducente a tentativa de apartar ambas as ideias

– se é que isto é possível –, devendo ser reconhecida a equivalência de tais

fórmulas”181.

Mais importante, com efeito, é o seu conteúdo e os limites de sua incidência

no processo penal. Em relação ao primeiro, Lopes Jr. conclui que:

a) É um princípio fundante, em torno do qual é construído todo o processo penal liberal, estabelecendo essencialmente garantias para o imputado frente à atuação punitiva estatal

b) É um postulado que está diretamente relacionado ao tratamento do imputado durante o processo penal, segundo o qual haveria de partir-se da ideia de que ele é inocente e, portanto, deve reduzir-se ao máximo as medidas que restrinjam seus direitos durante o processo (incluindo-se, é claro, a fase pré-processual);

c) Finalmente, a presunção de inocência é uma regra diretamente referida ao juízo do fato que a sentença penal faz. É sua incidência no âmbito probatório, vinculando à exigência de que a prova completa da culpabilidade do fato é uma carga da acusação, impondo-se a absolvição do imputado se a culpabilidade não ficar suficientemente demonstrada.182

Lopes Jr. diferencia as dimensões – interna e externa ao processo – em que

tem vigência a referida garantia (a qual o autor afirma impor um “dever de

tratamento” 183 ao acusado). Na dimensão interna, a presunção de inocência deveria

implicar a imposição de responsabilidade probatória “inteiramente ao acusador (pois,

se o réu é inocente, não precisa provar nada) e que a dúvida conduziria

inexoravelmente à absolvição (in dubio pro reo)”184 . Nesse sentido, “o réu, em

nenhum momento do iter persecutório, pode sofrer restrições pessoais fundadas

exclusivamente na possibilidade de condenação”185. Com efeito, a garantia teria

também o papel de limitar a extensão às medidas cautelares pessoais (reduzindo-se

ao máximo a incidência de prisões cautelares e outras medidas de similar natureza).

Segundo Pacelli,

o estado de inocência (e não a presunção) proíbe a antecipação dos resultados finais do processo, isto é, a prisão, quando não fundada em razões

180 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 61. 181 Ibidem, p. 236. 182 LOPES JR., Aury, Direito Processual Penal, 2017, p. 96. 183 Ibidem, p. 96. 184 Ibidem, p. 96-97. 185 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de Processo Penal, 2015, p. 48.

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de extrema necessidade, ligadas à tutela da efetividade do processo e/ou da própria realização da jurisdição penal.186

Além das prisões e outras medidas cautelares, a presunção de inocência (ou

o estado de inocência) também tem papel em outras situações do processo, como

no indiciamento, no qual “é possível reclamar-se a presença de justa causa”, na

medida em que o referido ato “impõe uma carga significativa e socialmente onerosa

à situação jurídica do inocente.”187

Esses aspectos da dimensão interna do princípio relacionam-se fortemente

com o tema da colaboração premiada, seja no que diz respeito à sua utilização

como instrumento de defesa, seja, sobretudo, quanto ao valor probatório das

declarações do acusado/investigado colaborador e à extensão da prova de

corroboração que exige a lei para condenações decorrentes de acordo. Também

guarda relação íntima com a discussão sobre as prisões cautelares que estariam, de

acordo com opositores do instituto, sendo utilizadas como forma de coerção dos

investigados/acusados para que celebrassem acordos de colaboração premiada

com o Ministério Público e a autoridade policial. Voltar-se-á a esse tema mais

adiante.

Na dimensão exterior ao processo, a presunção de inocência exigiria uma

“proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu” – neste

ponto, Lopes Jr. faz uma expressa crítica ao “bizarro espetáculo montado pelo

julgamento midiático”188, que deveria ser coibido pela “eficácia da presunção de

inocência”189.

O momento até o qual vige a presunção – ou até o qual se mantém o

investigado/acusado em estado de inocência – também é tema de absoluta

relevância e de especial atualidade. Embora o comando normativo da Constituição

seja, como se disse acima, bastante literal (ninguém será considerado culpado até o

trânsito em julgado da sentença penal condenatória), a interpretação conferida pelos

tribunais nunca seguiu a mesma simplicidade. Badaró relembra que “embora com

duas décadas de atraso, o STF reconheceu, em 2009, julgamento do HC 84.078,

186 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de Processo Penal, 2015, p. 48. 187 Ibidem, p. 48. 188 LOPES JR., Aury, Direito Processual Penal, 2017, p. 97. 189 Ibidem, p. 97.

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que a presunção de inocência se aplicava até que houvesse uma condenação

transitada em julgado, o que, na prática, impedia a execução provisória da pena”.190

No entanto, houve uma inversão no entendimento, no julgamento do Habeas

Corpus nº 126.292/SP pelo Supremo Tribunal Federal, que “considerou que é

possível dar início da execução da pena condenatória após a confirmação da

sentença em segundo grau” 191. Como bem relata Badaró, entendeu-se que essa

fase processual seria indicativa do encerramento da análise de fatos e provas nos

quais se assentou a culpa do acusado, e isso seria suficiente ao início da execução

penal192.

Basicamente, o STF entendeu que a conclusão da análise material do caso

penal basta para a conclusão de que o acusado não mais se encontra em um estado

de inocência, sendo que os aspectos jurídicos e “formais” do caso (os quais são

submetidos à análise dos Tribunais Superiores) não seriam, por si sós, suficientes

para evitar a execução da pena.

A decisão é polêmica e, não obstante tenha se sustentado durante

julgamentos posteriores, como na análise da liminar das Ações Declaratórias de

Constitucionalidade nº 43 e 44, ainda não parece ser definitiva, havendo decisões

monocráticas de Ministros que acompanharam o voto vencedor do HC nº

126.292/SP193 em sentido contrário a esse, como no Habeas Corpus nº 146.818,

relatado pelo Ministro Gilmar Mendes194, além do julgamento do Habeas Corpus nº

152.752, impetrado em favor do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no qual se

denegou a ordem por margem mínima (6x5). No julgamento, a Ministra Rosa Weber

(que, até então, pertencia ao quórum contrário à execução provisória) votou com a

maioria e em atenção ao princípio da colegialidade (isto é, acompanhando o

entendimento da Corte previamente estabelecido), o que deu azo a grande pressão

para o julgamento do mérito das referidas Ações Declaratórias.

190 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 61. 191 Ibidem, p. 61. 192 Ibidem, p. 61. 193 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. HC 127.483/PR. Relator Ministro Dias Toffoli. Publicado no Diário de Justiça em 4 de fevereiro de 2016. 194 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Decisão Monocrática. HC 146.818/ES. Relator Ministro Gilmar Mendes. Publicado no Diário de Justiça em 19 de setembro de 2017.

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1.6 OS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA

Não se ignora que o contraditório e a ampla defesa são dois princípios

distintos, com fundamentos e aplicações próprias. Faz-se a análise conjunta –

sucessiva, na realidade – em um mesmo subcapítulo em razão do aglutinamento

realizado pela própria Constituição de 1988, que os prevê em seu art. 5º, LV.

De antemão, pode-se afirmar que o contraditório é o elemento central que

diferencia, na lição de Fazzalari195, procedimento de processo. O primeiro, segundo

o autor, configura-se

quando se está de frente a uma série de normas, cada uma das quais reguladora de uma determinada conduta (qualificando-a como lícita ou obrigatória), mas que enunciam como condição ou incidência o cumprimento de uma atividade regulada por outra norma da série, e assim por diante, até a norma reguladora de um “ato final”196

Já o processo, pela mesma lógica, é o procedimento no âmbito do qual “os

contrapostos ‘interessados’ (aqueles que aspiram a emanação do ato final –

‘interessados’ em sentido estrito – e aqueles que queiram evitá-lo, ou seja, os

‘contra-interessados’) estejam sob o plano de simétrica paridade” 197. Com efeito, “o

‘processo’ é um procedimento do qual participam (são habilitados a participar)

aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos: em

contraditório, e de modo que o autor do ato não possa obliterar as suas

atividades”198. Com efeito, o procedimento se torna processo no momento em que se

estabelece o contraditório.

A referida garantia possui, de um lado, um conceito tradicional, como ensina

Pacelli, no sentido de ser “a garantia de participação no processo como meio de

permitir a contribuição das partes para a formação do convencimento do juiz e,

assim, para o provimento final almejado”199. Por outro lado, há também um conteúdo

moderno, relacionado ao “princípio da par conditio ou da paridade de armas, na

busca de uma efetiva igualdade processual” 200. Nesse sentido, além de se “garantir

195 FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Tradução da 8ª edição por Elaine Nassif. Campinas: Bookseller, 2006, p. 93. 196 Ibidem, p. 93. 197 Ibidem, p. 93. 198 Ibidem, p. 119. 199 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 43. 200 Ibidem p. 43.

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o direito à informação de qualquer fato ou alegação contrária ao interesse das partes

e o direito à reação (contrariedade) a ambos” 201, ter-se-ia a garantia de que “a

oportunidade da resposta pudesse se realizar na mesma intensidade e extensão” 202.

É importante ressalvar, porém, que a expressão “paridade de armas” não é

revestida de integral aplicabilidade, considerando-se que, no processo penal, ambas

as partes (acusação e defesa) terão à sua disposição “armas” completamente

distintas. De um lado, o Ministério Público possui a titularidade ação penal pública e

o acesso a amplos instrumentos para produção da prova; por outro, a defesa dispõe

de ações próprias para o exercício de suas garantias (Habeas Corpus e revisão

criminal), e não possui o ônus da prova. Por essa razão, parece ser mais adequado

o conceito de Fazzalari de que, no processo penal, o contraditório se estabeleça

com as partes em “posições simetricamente iguais”203, com iguais oportunidades de

manifestação perante o Juízo.

De qualquer forma, a mudança do conteúdo do princípio relaciona-se com a

“mudança de concepção sobre o princípio da isonomia, com a superação da mera

igualdade formal e a busca de uma igualdade substancial”204 para equiparar os

desiguais. Badaró afirma que essa alteração transformou o juiz, e não apenas as

partes antagônicas, em destinatário do princípio do contraditório:

Houve uma dupla mudança, subjetiva e objetiva. Quanto ao seu objeto, deixou de ser o contraditório uma mera possibilidade de participação de desiguais, passando a se estimular a participação dos sujeitos em condições de desigualdade. Subjetivamente, porque a missão de igualar os desiguais é atribuída ao juiz e, assim, o contraditório não só permite a atuação das partes, como impõe a participação do julgador.205

Nucci segue caminho oposto, advertindo que “não é a expressa manifestação

contrária de uma parte, dirigida à outra, que faz valer o contraditório”206, firmando

que a legitimidade concernente ao princípio se revela com a concessão de

“oportunidade para manifestação em relação a algo, no processo, mesmo que não

201 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 43. 202 Ibidem, p. 43. 203 FAZZALARI, Elio. Instituições..., 2006, p. 124. 204 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 54. 205 Ibidem, p. 54. 206 NUCCI, Guilherme. Princípios Constitucionais..., 2015.

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seja utilizada” 207 . Ou seja, o contraditório não teria o papel de efetividade no

processo, mas de mera garantia para o seu opcional exercício.

A posição de Badaró inclina-se para uma interpretação cogente do exercício

das garantias constitucionais, sustentando que a sua aplicação deve-se dar de modo

que os sujeitos processuais participem real e igualitariamente de todo o processo,

“assegurando a efetividade e a plenitude do contraditório”, no que o autor denomina

como “contraditório efetivo e equilibrado”208. Há importância nessa conceituação

mais elaborada em razão do valor heurístico que possui o contraditório:

O contraditório, possibilitando o funcionamento de uma estrutura dialética, que se manifesta na potencialidade de indagar e de verificar os contrários, representa um mecanismo eficiente para a busca da verdade. Mais que uma escolha de política processual, o método dialético é uma garantia epistemológica na pesquisa da verdade. As opiniões contrapostas dos litigantes ampliam os limites do conhecimento do juiz sobre os fatos relevantes para a decisão e diminuem a possibilidade de erros.209

Se é correta a afirmação de Marques de que “sem o contraditório não pode

haver devido processo legal”210, é igualmente aplicável o silogismo ao exercício da

defesa. Em se tratando o processo penal de um exercício dialético 211 , com a

acusação apresentando-se como “tese e a defesa, como a antítese” 212 , o

contraditório acaba se posicionando como corolário da ampla defesa. É o que ensina

Grinover:

(...) defesa, pois, que garante o contraditório, e que por ele se manifesta e é garantida: porque a defesa, que o garante, se faz possível graças a um de seus momentos constitutivos – a informação – e vive e se exprime por intermédio de seu segundo momento – a reação.213

Embora haja, evidentemente, uma ligação entre o contraditório e a ampla

defesa, que muitas vezes andam lado a lado, “é possível violar o contraditório, sem

207 NUCCI, Guilherme. Princípios Constitucionais..., 2015. 208 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 55. 209 Ibidem, p. 55. 210 MARQUES, José Frederico. Elementos..., 2000, p. 87. 211 O que se afirma como regra, já que há situações em que há concordância entre as partes, como na transação penal, em casos de réus confessos que não negam os fatos imputados ou na colaboração premiada. 212 BADARÓ, op. cit., 2016, p. 57. 213 GRINOVER, Ada Pellegrini. Defesa, contraditório e par conditio na ótica do processo de estrutura cooperatória. In: GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.

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que se lesione o direito de defesa”214, já que aquele não se refere exclusivamente a

esse. Também se deve ter em mente que a ampla defesa não tem o mesmo caráter

vinculante do contraditório. Por exemplo, ainda que o interrogatório seja um ato de

defesa garantido ao acusado – e que será exercido ao final do processo, como uma

reação a tudo que foi produzido durante a instrução –, não há mácula à ampla

defesa se o interrogado não exercer esse direito. O contraditório exige apenas que o

ato seja designado e realizado; a ampla defesa não exige, porém, que o direito seja

exercido – parece haver, portanto, oportunidade no segundo caso.

A ampla defesa, com efeito, funda-se em duas modalidades: a defesa técnica

e a defesa pessoal. Como se disse acima, a segunda é um direito do acusado e

deve, sem margem de negociação e por força do contraditório, ser ofertada ao

acusado. A primeira, porém, é absolutamente indispensável. De acordo com Lopes

Jr., “a defesa técnica supõe a assistência de uma pessoa com conhecimentos

teóricos do Direito, um profissional”215, é uma exigência para o equilíbrio funcional do

processo penal e decorre “de uma acertada presunção de hipossuficiência do sujeito

passivo”216.

Essa hipossuficiência se explica a partir da posição em que se encontra o

acusado/investigação na relação processual: desde o início da persecução, seus

antagonistas são agentes do Estado (polícia, Ministério Público e Juiz), que não

apenas detêm o aparato necessário à eventual privação de seus direitos, mas

possuem qualificação técnica para essa atuação. Sem um defensor que possa, ao

menos em tese e sob a perspectiva da técnica jurídica, representá-lo, o acusado não

terá quaisquer condições de exercer sua defesa.

Para Lopes Jr., “a defesa técnica é considerada indisponível, pois, além de

ser uma garantia do sujeito passivo, existe um interesse coletivo na correta

apuração do fato” 217 . É que a defesa técnica irá exercer um “mecanismo de

autoproteção do sistema processual penal, estabelecido para que sejam cumpridas

as regras do jogo da dialética processual e da igualdade de partes”218. Em outras

palavras, sem o obrigatório exercício da defesa profissional, que poderá averiguar a

214 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 57. 215 LOPES JR., Aury, Direito Processual Penal, 2017, p. 99. 216 Ibidem, p. 99. 217 Ibidem, p. 100. 218 Ibidem, p. 99.

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legitimidade e legalidade do processo penal, não há a certeza da aplicação da

garantia do devido processo legal.

Além da participação processual do defensor técnico, a jurisprudência

construiu o argumento de que é impositiva a “realização efetiva dessa participação,

sob pena de nulidade”219. Nesse sentido, indica-se o julgamento do Habeas Corpus

nº 82.672/RJ, do Supremo Tribunal Federal (relatado pelo Ministro Marco Aurélio),

no qual se reconheceu a nulidade de defesa “limitada ao pedido de condenação ao

mínimo legal” 220 . Na oportunidade, o defensor público constituído não formulou

pedido absolutório e resumiu sua atuação a pleito pela fixação da pena em seu

patamar mínimo legal. O Supremo atestou que “o réu esteve indefeso”221, sendo

nulo o processo em razão da violação ao princípio da ampla defesa.

O entendimento de que se trata de nulidade absoluta, porém, restringe-se à

ausência de defesa efetiva por advogado nomeado (defensor público ou dativo). No

caso de deficiência defensiva por advogado constituído, entende-se a nulidade como

relativa, passível de demonstração de prejuízo e preclusão (conforme Súmula nº 523

da Suprema Corte). Há, porém, alguns precedentes do Supremo Tribunal Federal

que ressalvam a possibilidade de reconhecimento da nulidade também nesses

casos, como no Habeas Corpus nº 94.168/PB, relatado pelo Ministro Carlos Britto,

no qual se anulou processo de que decorreu condenação a acusado cujo defensor

privado não apresentou as alegações finais. Ainda que o acórdão faça menção ao

prejuízo (o que inclina a nulidade para o aspecto relativo), tratou-se quase de uma

presunção, sob a lógica de que, se houve a condenação, é evidente o prejuízo.

Esse ponto parece ter relevância para o estudo da colaboração premiada.

Como se trata de instituto, como será visto adiante, que envolve a confissão, a

renúncia ao direito ao silêncio e, muitas vezes, ao direito de recorrer e impetrar

habeas corpus, o reconhecimento de que deve haver, sem dúvidas, o exercício de

defesa durante o processo (não bastando pedidos de fixação de pena em seu

patamar mínimo legal) pode ser contraditório com aquela prática.

219 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 45. 220 Ibidem, p. 45. 221 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC nº 82.672/RJ. Relator Ministro Carlos Britto. Relator para acórdão Ministro Marco Aurélio. Data de Julgamento: 14 de outubro de 2003.

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1.7 OS PRINCÍPIOS DA OBRIGATORIEDADE E DA INDISPONIBILIDADE DA

AÇÃO PENAL PÚBLICA

Desde logo, esclarece-se que ambos os princípios acima intitulados não

fazem, nominal e expressamente, parte do rol de garantias processuais previstas na

Constituição Federal de 1988. Trata-se de disposições que envolvem a interpretação

conjunta do princípio da legalidade 222 e dos dispositivos constitucionais que

estabelecem a legitimidade do Ministério Público como titular da ação penal pública

e as regras do Código de Processo Penal quanto à sua instauração e procedimento.

O art. 129, I, da Constituição, estabelece que é função institucional do

Ministério Público “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da

lei”223. A lei a que a Carta se refere é o Código de Processo Penal, que, no art. 24,

prescreve que “nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do

Ministério Público”.224

Da conjunção de ambos os dispositivos, extrai-se o princípio da

obrigatoriedade da ação penal pública. Trata-se de “um subprincípio, ou uma regra

constitucional, advinda da legalidade”225, que corresponde à lógica de que, cometido

crime de ação pública, deve o Estado exercer o dever de punir. Seu conteúdo, na

verdade tem uma dupla função, como explica Bechara:

a obrigatoriedade da ação penal representa um duplo corolário: garantir a universalidade do acesso à jurisdição a qualquer pessoa, no caso do Direito brasileiro por meio do Ministério Público; assegurar que o interesse público será tutelado de forma simétrica e indiscriminadamente. Essa dupla função da obrigatoriedade permite presumir que a ação penal constitui um mecanismo eficiente para a tutela do interesse ou direito violado.226

O dever de punir não se extrai apenas do princípio da obrigatoriedade, mas

também do art. 5º, do Código de Processo Penal, que estabelece que o inquérito

policial será instaurado de ofício ou a partir de requisição de autoridade judiciária e

do próprio Ministério Público, ou requerimento do ofendido/representante.

222 Porque justamente estabelece os parâmetros legais para o exercício do poder/dever do órgão oficial de acusação, conforme COUTINHO, Jacinto, Introdução aos princípios..., 1998, p. 183. 223 BRASIL. Constituição..., 1988. 224 BRASIL. Código de Processo Penal, 1941. 225 NUCCI, Guilherme. Princípios Constitucionais..., 2015. 226 BECHARA, Fábio Ramazzini. Colaboração premiada segundo o projeto de lei das organizações criminosas. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 20, nº 233, abril de 2012, p. 4.

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Concluído o inquérito policial ou outro procedimento investigatório pré-

processual, o Ministério Público terá que se manifestar sobre o oferecimento de

denúncia. São quatro as possíveis “hipóteses legais de procedimento: a) oferece

denúncia; b) requer novas diligências para sanar falhas ou lacunas; c) requer a

extinção da punibilidade do indicado; d) requer o arquivamento”227.

De forma alguma (analisando-se o princípio sob uma perspectiva pré-

colaboração premiada – ou, ainda, pré-transação penal), poderia o titular da ação

penal agir fora dessas hipóteses. E tampouco poderia o Ministério Público agir de

ofício, deixando simplesmente de oferecer a denúncia, presentes ou não os seus

requisitos.

A ideia por trás da obrigatoriedade é, na verdade, muito simples: se há

indícios da prática de crime de ação pública, o órgão acusador não pode deixar de

oferecer a denúncia, a princípio sob nenhuma hipótese, tendo em vista o “interesse

público quanto à ocorrência de determinados crimes, lesivos a importantes bens

jurídicos tutelados”228.

Quando aqueles indícios não estão claros ao agente do Ministério Público (ou

quando há a compreensão de que não estão demonstrados), a lei processual penal

determina que o titular da ação submeta ao crivo do Poder Judiciário seu

posicionamento. É o que determina o art. 28 do Código de Processo Penal, que

estabelece que

se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferece-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.229

A rigor, a última palavra sobre o oferecimento ou o arquivamento de um

inquérito policial ou outra espécie de investigação criminal, quando houver

discordância com o Juiz, será do “chefe do Ministério Público”230, em procedimento

de “dupla triagem”231, na expressão de Marques. Assim, é certo que a titularidade da

227 NUCCI, Guilherme. Princípios Constitucionais..., 2015. 228 Ibidem. 229 BRASIL. Código de Processo Penal, 1941. 230 MARQUES, José Frederico. Elementos..., 2000, p. 380. 231 Ibidem, p. 379.

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ação penal pública do agente do Ministério Público (ou do órgão, seguindo a

terminologia legal) não é completamente absoluta, já que pode prevalecer – frise-se,

na exceção do Código de Processo Penal – o interesse hipotético no oferecimento

de denúncia mesmo quando o promotor/procurador competente para o caso

discorde da ocorrência da infração penal. Isso não significa, porém, que essa

titularidade possa ser mitigada em outras situações, prevalecendo o integrante do

Ministério Público no pleno exercício de sua titularidade – conforme se tratou no

subtópico relativo ao princípio do promotor natural.

O princípio da obrigatoriedade tem como antagonista, de sistemas penais

estrangeiros, o princípio da oportunidade, que permite ao Ministério Público (ou à

denominação local do órgão acusatório) “julgar da conveniência ou não da

propositura da ação penal” 232 . Ambas, a obrigatoriedade e a oportunidade,

“projetam-se no mundo informando os sistemas processuais”233, cada qual de forma

correspondente ao seu respectivo ordenamento.

Historicamente – isto é, anteriormente à Constituição de 1988 e à

transformação da função do Ministério Público –, era forte a defesa dessa distinção

no país. Nesse sentido, vale menção à lição de Almeida quanto à diferença entre a

resolução de conflitos de interesses privados, relacionados ao processo civil, e

aqueles públicos, relacionados ao processo penal, a partir da qual se extrai

comparação válida entre os princípios da oportunidade e da obrigatoriedade.

Segundo o autor:

Os contrastes de interesses privados dependem, por natureza, da vontade dos particulares interessados. Estes podem, por transação explícita ou implícita, dispor do conflito, até mesmo à anulação (...). Essa faculdade, que têm os particulares, de representar o conflito de interesses em juízo da maneira que lhes convêm – inteiro, incompleto e até simulado e por colusão – corresponde ao poder que, na vida jurídica extrajudicial, sobre os próprios direitos exercem seus titulares de usá-los ou não usá-los. Chama-se poder dispositivo.234

E seguia, acerca desse poder dispositivo, quanto aos temas de natureza

pública:

232 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 2013, p. 390. 233 COUTINHO, Jacinto. Introdução aos princípios...,, 1998, p. 184. 234 ALMEIDA, J. Canuto Mendes de. Princípios fundamentais do Processo Penal. São Paulo: RT, 1973. P. 46.

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Não o possuem, porém, os que agem como órgãos de promoção do interesse de outrem: não podem transigir, nem renunciar; e, por isso mesmo, não tem, em juízo, qualquer poder dispositivo, sobre os dados da questão. São tutores de menores, curadores de interditos, representantes sem poderes especiais; e, também, os funcionários incumbidos da repressão da delinquência. 235

O mesmo autor, ainda na década de 1970, apresentava argumentos sólidos

quanto à impossibilidade de estabelecimento de poder dispositivo entre as partes no

processo penal, insistindo que “o crime é uma lesão irreparável ao interesse coletivo,

reconhecida como tal pela proibição legislativa de sua prática” 236 e que “ou a pena é

necessariamente reclamada pelo crime, para a satisfação do interesse social (...) ou

pode ser discricionariamente evitada pela transação dos particulares ou funcionários

do Estado” 237, que, dessa forma, afastariam a justificativa da própria cominação

legislativa. Conclui Almeida que, “o próprio dispositivo seria, no processo criminal, a

negação do direito criminal” 238.

Tourinho Filho, por sua vez, ensina que os princípios contrastantes da

oportunidade e da obrigatoriedade se pautam em dois aforismos que demonstram

bem a essência de cada um: enquanto a obrigatoriedade “se embasa no apotegma

nec delicta maneant impunita (os delitos não podem ficar impunes)” 239 , a

oportunidade “repousa no aforismo minima non curat praetor (o Estado não se

preocupa com as coisas mínimas)”240.

Os Estados Unidos da América são, talvez, o principal exemplo de sistema

criminal fundado no princípio da oportunidade. Não por outra razão que, mais

adiante, será analisado o instituto do plea bargaining, que é a principal forma de

resolução de controvérsias criminais naquele país e que em muito se assemelha ao

instituto da colaboração premiada brasileira.

Tourinho Filho apresenta outros exemplos de países em que vige o mesmo

princípio, cada qual com a sua peculiaridade. Na Noruega, por exemplo, “permite-se

ao Ministério Público (quando a prescrição está iminente ou há circunstâncias

235 ALMEIDA, J. Canuto Mendes de. Princípios..., 1973, p. 86. 236 Ibidem, p. 86. 237 Ibidem, p. 86. 238 Ibidem, p. 86. 239 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 2013, p. 390. 240 Ibidem, p. 390.

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particularmente atenuantes) abster-se de iniciar a ação penal”241. Em países como a

Rússia e a Alemanha, há essa previsão para crimes que não aparentam relevância

social – em uma “corporificação do princípio da insignificância”242.

Ambas as situações caracterizadoras do princípio da oportunidade nesses

países já foram ou ainda são eventualmente reconhecidas no Brasil. Quanto à

situação da Noruega, por vários anos houve o reconhecimento da prescrição

antecipada pela pena em perspectiva, em que o Ministério Público requer o

arquivamento do processo ou a decretação da extinção da punibilidade pela

iminente ou inevitável (mas sempre futura e não consolidada) prescrição pela pena

concreta prevista para o caso. Tal sistemática foi utilizada em tamanha magnitude

que, em 2010, houve a aprovação da Súmula nº 438 do Superior Tribunal de

Justiça, que veda expressamente a prática. Já as situações de insignificância

também são presentes no dia-a-dia forense.

Há uma diferença relevante entre tais ocorrências no Brasil e nos países

mencionados. Ainda que os fundamentos para o não oferecimento da denúncia ou o

arquivamento do inquérito policial sejam os mesmos, em regra (com a transação

como exceção constitucionalmente prevista) há a participação da autoridade judicial

para ratificar o entendimento do Ministério Público. Não obstante, quando não o

fizer, e indeferir o pleito para submetê-lo ao procedimento do art. 28 do Código de

Processo Penal, a decisão caberá, como se disse, ao chefe do Ministério Público.

Paralelamente ao princípio da obrigatoriedade (ou como consequência

dele243), vige no sistema penal brasileiro o princípio da indisponibilidade, segundo o

qual “pertencendo a ação penal ao Estado (salvo exceções244), segue-se que aquele

a quem se atribui seu exercício, o Ministério Público, não pode dela dispor” 245.

Tourinho Filho afirma que, ainda que sejam os titulares da ação penal e detenham o

seu exercício, os órgãos do Ministério Público não são seus donos, na medida em

que agem “em nome da sociedade que eles representam”246. Com efeito, “por não

lhes pertencer, não podem os órgãos do Ministério Público dela desistir, transigindo

ou acordando, pouco importando seja ela incondicionada ou condicionada”247. O

241 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 2013, p. 391. 242 Ibidem, p. 391. 243 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 128. 244 Em menção que Tourinho Filho faz à ação penal privada. 245 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 389. 246 Ibidem, p. 389. 247 Ibidem, p. 389.

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autor, porém, ressalva que “nada impede que, no direito a ser constituído” 248, o

princípio da indisponibilidade seja “amenizado” 249, como no caso da prescrição em

perspectiva ou em caso no qual toda a prova for “imprestável” 250, ressalvando como

um “avanço” 251 a instituição da transação penal252.

A conceituação do autor acerca do princípio da indisponibilidade encontra

ressonância em vários dispositivos do Código de Processo Penal, como o art. 42,

que estabelece literalmente que “o Ministério Público não poderá desistir da ação

penal”253 e o art. 576 do mesmo diploma, que prevê que “o Ministério Público não

poderá desistir de recurso que haja interposto”254. Tenha-se em mente, porém, que

não é suficiente a leitura do Código de Processo Penal como balizador do conteúdo

principiológico do sistema processual brasileiro. A uma, porque o Código é muito

anterior à Constituição e, naturalmente, não reproduz suas diretrizes; a duas, porque

“há uma ideologia que informa o Direito Brasileiro”255 que, ainda que não expressa

no texto constitucional, não pode ser, de maneira nenhuma, ignorada – e certamente

a ideologia tem um papel na dinâmica da colaboração premiada e da atual

sistemática de combate à corrupção.

De todo modo, é evidente que, mesmo sob uma leitura legalista

desatualizada, os representantes do órgão acusatório não estão vinculados a

pedidos condenatórios e o exercício de uma espécie de retratação quanto ao

conteúdo da denúncia, por meio de pedido absolutório nas alegações finais, não

configura a disposição da ação. Mas, é bom que se diga, não haveria a violação

legal ao princípio da indisponibilidade porque esse pleito não é tecnicamente

vinculante, o que se extrai da redação do art. 385 do Código de Processo Penal, que

estabelece que “o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério

Público tenha opinado pela absolvição”256.

Ressalta-se, porém, que os princípios da obrigatoriedade e da

indisponibilidade não são absolutos e, por terem seu amparo eminentemente na

248 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 2013, p. 389. 249 Ibidem, p. 389. 250 Ibidem, p. 389. 251 Ibidem, 2013, p. 389. 252 A última edição da obra foi publicada em 2013 e, portanto, não tratou da colaboração premiada como uma potencial modalidade de mitigação do princípio da indisponibilidade. 253 BRASIL. Código de Processo Penal, 1941. 254 Ibidem. 255 BERTONCINI, Mateus Eduardo Siqueira Nunes. Princípios de Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 18. 256 BRASIL, op. cit., 1941.

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legislação infraconstitucional, parecem poder ser mitigados – ou completamente

contrariados – por lei. É nesse sentido que se justifica a já mencionada transação

penal, que, por meio do art. 76 da Lei nº 9.099/95, contraria frontalmente a proibição

de transigir tradicionalmente integrante do conteúdo da indisponibilidade. É verdade

que, para funcionar dessa forma, a transação conta com um permissivo

constitucional (art. 98, I, da Constituição), que pode constituir – a depender da

interpretação, como será tratado no quarto capítulo – uma cláusula de abertura para

novos mecanismos de mitigação da obrigatoriedade/indisponibilidade ou, em leitura

mais restrita, uma exceção expressa que ratifica a regra para os demais casos.

O mesmo não parece ocorrer em relação à igualmente mencionada

Resolução nº 181/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público. Embora o

instituto pareça trazer um modelo de transação para uma maior variedade de crimes

que não envolvam violência ou grave ameaça, a sua criação por via administrativa

não teria o condão de suplantar os dispositivos do Código de Processo Penal

relacionados aos princípios tratados neste subcapítulo.

Sob essa ótica, também a colaboração premiada, por ser instituída por lei,

tem – ou teria – a potencialidade de contrariar ambos os princípios. Mais adiante

neste estudo, porém, será analisado de que maneira o Ministério Público, seja sob a

letra da Lei nº 12.850/2013, seja em acordos reais que podem ampliar o conteúdo

legislativo, interage com a obrigatoriedade e a indisponibilidade.

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2. OS FUNDAMENTOS MATERIAIS E PROCESSUAIS DA COLABORAÇÃO

PREMIADA

Apresentado um breve panorama principiológico do processo penal, em uma

espécie de status quo ao momento atual, em que se verifica a implementação e

prática da colaboração premiada, passa-se a buscar seu fundamento teórico nas

ciências criminais.

Para tanto, pretende-se, de forma breve, inserir o instituto da colaboração

premiada sob as perspectivas da política criminal, da dogmática jurídico-penal

(adiantando-se, nesses pontos, um enfrentamento sobre sua natureza) e da justiça

penal negocial, buscando-se uma justificativa para sua existência e introdução no

ordenamento brasileiro.

2.1 A COLABORAÇÃO PREMIADA E A DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL

Sob a perspectiva jurídico-penal, a colaboração premiada exerce sua função

primordial como um prêmio concedido ao acusado que efetivamente colabore com a

justiça. Nesse sentido, o direito penal premial caracteriza-se pela escolha do

legislador de reduzir ou extinguir a pena do agente quando observar a redução de

sua punibilidade nos atos de confessar o crime, indicar seus comparsas e os

detalhes do funcionamento da atividade criminosa e reparar o dano causado. Os

fundamentos para tais previsões no ordenamento, porém, são deduzidos de

diversas fontes.

Neste subcapítulo, analisar-se-á a perspectiva da colaboração premiada à luz

da política-criminal e das teorias dos fins da pena. Na sequência, será feita a

avaliação do instituto a partir da ótica da justiça penal negocial.

2.1.1 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO INSTRUMENTO DE POLÍTICA

CRIMINAL

Sem a pretensão de exaurir o tema, pode-se sustentar, desde logo, que a

colaboração premiada tem relação íntima com a política criminal, a qual, segundo

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Roxin, constitui “a chamada missão social do Direito Penal” 257 , que define os

“métodos adequados, em sentido social, para a luta contra o delito” 258 .

Considerando-se que, desde a década de 70, houve um “deslocamento da proteção

individual à proteção da coletividade (isto é, do conjunto da população ou de

grandes grupos da mesma)”259, os “delitos econômicos, contra o meio ambiente,

responsabilidade pelo produto, grandes riscos industriais, tecnologia genética, tráfico

de drogas e outras formas de criminalidade organizada” 260 tornaram-se o objeto

central dos novos tipos penais e da atuação dos tribunais.

Nesse cenário, como os crimes de organização criminosa (para os quais é

prevista diretamente a colaboração premiada), não raras vezes, confundem-se com

atividades de fundamental importância à sociedade (como se vê, por exemplo, na

Operação Lava Jato), não é difícil extrair a pertinência social de métodos funcionais

para o seu combate.

Na mesma linha, vale a menção a Hassemer, que observa a tendência de o

Direito Penal se orientar pelas consequências, afastando-se da exclusiva “tarefa de

perseguir o injusto criminal e compensar pela expiação do autor” 261 para “buscar o

objetivo de corrigir o autor e conter por completo a criminalidade” 262. No caso da

criminalidade organizada, há pertinência na utilização de instrumentos voltados à

eficiência da investigação – como é a colaboração premiada – com o objetivo de,

não apenas punir seus autores, mas combater, em sentido amplo, a criminalidade.

Ademais, como consigna Armenta Deu, em consideração sobre a ampliação

dos espaços de oportunidade da ação penal (em contrariedade à obrigatoriedade

acima referida), há que se considerar também a realidade de incapacidade da

administração de Justiça em cumprir seus objetivos, tornando instrumentos de

257 ROXIN, Claus. Política criminal y sistema del derecho penal. Tradução e introdução de Francisco Muñoz Conde. 2ª Edição. 1ª Reimpressão. Buenos Aires: Hammurabi, 2002, p. 32. Tradução livre. Do original: “la llamada misión social del Derecho Penal”. 258 Ibidem, p. 32. Tradução livre. Do original: “los métodos adecuados, en sentido social, para la lucha contra el delito”. 259 ROXIN, Claus. La evolución de la política criminal, el derecho penal y el proceso penal. Tradução de Carmen Gómez Rivero e María del Carmen García Cantizano. Valencia: Tirant lo Blanch, 2000, p. 25. Tradução livre. Do original: “un desplazamiento desde la protección individual a la protección de la coletividad (esto es, del conjunto de la población o de grandes grupos de la misma).”. 260 Ibidem, p. 26. Tradução livre. Do original: “delitos económicos, contra el medio ambiente, responsabilidad por el producto, grandes riesgos industrials, tecnología genética, tráfico de drogas y otras formas de criminalidad organizada”. 261 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Tradução da 2ª edição alemã, revisada e ampliada, de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 53. 262 Ibidem, p. 53.

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natureza consensual (como é a colaboração premiada) um “mal necessário,

utilizável, portanto, quando não exista remédio melhor”263.

Hassemer, aliás, há poucos anos reconheceu como tendência de política

criminal a utilização de instrumentos processuais “desformalizados” 264 como

alternativa às “tradicionais formas de resolução dos processos” 265. Na oportunidade

reconheceu que

(...) os grandes processos criminais referentes a crimes econômicos e de drogas sequer chegam à instauração do processo principal e a um julgamento, senão encerram prematuramente através de um acordo entre grupos parciais dos necessariamente interessados e da suspensão do processo em virtude de certa colaboração do acusado. Esta práxis facilita o processo, aumenta as possibilidades de resolução e de ‘condenações’ e para isso coloca em jogo princípios fundamentais do tradicionais Direito Processual Penal. 266

Não obstante se extraia do referido texto uma espécie de alerta às

transformações de política criminal que têm ocorrido e podem vir a ocorrer na

Alemanha nos recentes anos, é inegável o reconhecimento de instituto análogo à

colaboração premiada brasileira como produto de um “clima político-criminal” 267 que

“favorece o Direito Penal como instrumento efetivo na assimilação dos modernos

problemas” 268, mas que “vige não mais como ultima, senão como prima ou até

mesmo sola ratio” 269. É importante pontuar quanto a essa ressalva do autor, porém,

que a Constituição brasileira já se utilizava expressamente do Direito Penal como

instrumento para promoção de direitos, conforme se extrai das previsões dos arts.

5º, XLII (que estabelece o racismo como crime inafiançável e imprescritível) e 225,

§3º (que prevê a criminalização, inclusive de pessoas jurídicas, por crimes ao meio

ambiente).

De qualquer forma, também no Brasil tem se reconhecido, após a

implementação legislativa e prática da colaboração premiada, sua justificativa sob a

perspectiva da política-criminal. Nesse sentido, Aires e Fernandes enfatizam que o

263 ARMENTA DEU, Teresa. Principio de oportunidad y mediación en el proceso penal. Setembro de 2016, p. 4. Disponível em <http://goo.gl/j8vgoi> Acesso em 18 de maio de 2018. Do original: “mal necesario, utilizable, por tanto, cuando no exista outro remedio mejor“. 264 HASSEMER, Winfried. Desenvolvimentos previsíveis na dogmatica do direito penal e na política criminal. Revista Eletrônica de Direito Penal e Política Criminal – UFRGS, vol. 1, nº 1, 2013. 265 Ibidem. 266 Ibidem. 267 Ibidem. 268 Ibidem. 269 Ibidem.

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aspecto premial da conduta do colaborador exerce muito mais um “objetivo de

política criminal” 270 do que, propriamente, um reflexo do “valor moral positivo” 271.

Não se ignora, porém, que parte da doutrina é bastante avessa ao instituto,

inclusive questionando a legitimidade (e, naturalmente, a utilização em política

criminal) de o “Estado lançar mão de um estímulo à deslealdade e traição entre

parceiros, para atingir resultados que sua incompetência não lhe permite através de

meios mais ortodoxos”272. Nesse sentido, Bitencourt e Busato sustentam que

(...) ainda que seja possível afirmar ser mais positivo moralmente estar ao lado da apuração do delito do que de seu acobertamento, é, no mínimo, arriscado apostar em que tais informações, que são oriundas de uma traição, não possam ser elas mesmas traiçoeiras em seu conteúdo. Certamente aquele que é capaz de trair, delatar ou dedurar um companheiro movido exclusivamente pela ânsia de obter alguma vantagem pessoal, não terá escrúpulos em igualmente mentir, inventar, tergiversar e manipular as informações que oferece para merecer o que deseja.273

Em sentido semelhante, Zaffaroni sustenta que “a impunidade de agentes

encobertos e dos chamados ‘arrependidos’ constitui uma séria lesão à eticidade do

estado, ou seja, ao princípio que forma parte essencial do estado de direito” 274,

sublinhando que “o estado não pode se valer de meios imorais para evitar a

impunidade” 275.

Não obstante, há defensores acerca da adequação da concessão de

benefícios ao autor do crime em troca de sua contribuição ao processo,

posicionando-se pelo afastamento do Estado da ética do criminoso e, na realidade,

entendendo que é, sim, dever moral da administração pública buscar meios mais

eficazes para a persecução de crimes complexos – naturalmente, com salvaguardas

contra o criminoso que aja de forma traiçoeira apenas para se beneficiar. É o caso,

por exemplo, de Sanctis, que dá a sua perspectiva de magistrado sobre essa

270 AIRES, Murilo Thomas; FERNANDES, Fernando Andrade. A colaboração premiada como instrumento de política criminal: a tensão em relação às garantias fundamentais do réu colaborador. Revista Brasileira de Direito Processual Penal. Porto Alegre, vol. 3, n. 1, 2017, p. 264. 271 Ibidem, p. 264. 272 BITENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei de Organização Criminosa. Lei 12.850/2013. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 117 273 Ibidem, p. 117. 274 ZAFFARONI, Eugenio Raul. “Crime Organizado”: uma categorização frustrada. Discursos sediciosos. Crime, Direito e Sociedade. Ano 1, nº 1, 1º semestre de 1996. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996, p. 59. 275 Ibidem, p. 59.

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característica da colaboração premiada, tecendo comentários sobre a natureza ética

e estratégica do instituto:

O prêmio punitivo que se concede ao suspeito/acusado visa a uma eficaz busca da verdade. A delação premiada, existente no Brasil desde as Ordenações Filipinas, é ética, útil e estratégica. Ética porque atende às finalidades político-criminais e à proteção do bem jurídico (...). Útil pelo fato de permitir a descoberta precoce de crimes e seus autores ou partícipes, facilitando o trabalho de todos. Por fim, estratégica para as partes, inclusive à defesa, já que o cliente se vê beneficiado com uma pena relativizada sem o custo do processo.276

Do lado da advocacia, Bretas defende o instituto, afirmando que se vitupera “o

estigma de Iscariotes para lançar o ignominioso rótulo de ‘alcaguetes’, etiquetado

sobre os que detratam o pacto de silêncio na ‘ética do crime’” 277, mas que, na

realidade, “a julgar por esse raciocínio, comportamento ético, para quem assim

pensa, seria concordar que o acusado expiasse, sozinho, uma pena individual por

uma culpa coletiva” 278.

De qualquer forma, a essência do instituto é clara: ao fornecer informações

relevantes que permitam a persecução de outros coautores do crime – e, nos mais

recentes e notórios casos, restituir ao Estado e às vítimas dos crimes o produto do

crime (na forma de valores para reparação de danos e multas pesadíssimas) –, o

Estado opta, em razão da importância para a persecução de crimes de elevada

importância político-criminal, por conceder ao réu colaborador uma contrapartida,

que pode ser a simples redução de pena e a alteração do regime prisional, o perdão

judicial ou, na melhor das hipóteses, a imunidade processual.

2.1.2 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO CAUSA DE REDUÇÃO OU

EXCLUSÃO DA PENA

Embora se possa falar, no presente, que a colaboração premiada assume

uma função de política criminal que pretende conferir maior efetividade ao Direito

Penal e ao Processo Penal, sobretudo em razão dos crimes a ela relacionados (que,

276 SANCTIS, Fausto Martin de. Crime organizado e lavagem de dinheiro: destinação de bens apreendidos, delação premiada e responsabilidade social. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 182. 277 BRETAS, Adriano Sérgio Nunes. Apontamentos de Processo Penal. Curitiba: Sala de Aula Criminal, 2017, p. 433. 278 Ibidem, p. 433.

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por sua dificuldade de apuração, carecem de instrumentos especiais), sua

consequência para o colaborador (consistente na concessão de prêmio em razão de

conduta positiva praticada após o início da prática delitiva) não é inédita.

Ainda no Século XIX, von Liszt apresentava a hipótese, também justificada

“por considerações de política criminal”279, de que, na desistência voluntária (ou

desistência na tentativa, na qual o agente “transpõe a linha divisória entre os actos

preparatórios impunes e o começo de execução punível” 280), a lei poderia – como o

fez à época – “construir uma ponte de ouro para a retirada do agente que já se

tornara passível de pena” 281 . Outra hipótese de utilização do prêmio penal em

tempos antigos já foi mencionada no item 1.2 deste trabalho, justamente a figura do

pentito da Idade Média, o criminoso que, arrependido e colaborativo, recebia

benefícios penais.

As figuras da desistência voluntária e do arrependimento eficaz como causas

legais de exclusão da punibilidade, como se sabe, têm previsão nos ordenamentos

modernos, constando do art. 15 do Código Penal brasileiro. Embora tais figuras não

se assemelhem, sob a lógica da conduta, à colaboração premiada (já que, naqueles

casos, não se fala em consumação do delito), podem haver paralelos de dogmática

jurídico-penal que justifiquem os benefícios que são previstos no instituto em

análise.

Muñoz Conde estabelece que “a ‘voluntariedade’ é uma determinada atitude

psíquica daquele que desiste, que, desde o ponto de vista preventivo, se considera

merecedor de impunidade” 282 . Para o autor, porém, são necessários alguns

requisitos para a exclusão da pena. “Em primeiro lugar, a desistência poderá

conduzir à impunidade se a tentativa ainda não fracassou e depende da vontade

daquele que desiste de conseguir a consumação”283; caso contrário (isto é, se a

intenção é frustrada ainda que o agente siga atuando), não caberá o benefício,

279 LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Allemão. Tradução por José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & C. Editores, 1899, p. 342. 280 Ibidem, p. 342. Ortografia original. 281 Ibidem, p. 342. 282 MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal. Parte General. 8ª Edição. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010, p. 424. Tradução livre. Do original: “La ’voluntariedad’ es una determinada actitud psíquica del que desiste, que, desde el punto de vista preventivo, se considera merecedora de impunidad.” 283 Ibidem, p. 424. Tradução livre. Do original: “Em primer lugar, el desistimiento podrá conducir a la impunidad si el intento aún no ha fracasado y depende de la voluntad del que desiste conseguir la consumación.

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configurando-se tentativa fracassada imprópria284. Ademais, a desistência deve ser,

além de possível, definitiva.

No entanto, os motivos pelos quais ela ocorre devem ser considerados:

Os motivos éticos são, desde o ponto de vista preventivo, valiosos e devem conduzir sempre a admitir a voluntariedade. Os motivos interessados, porém, devem-se valorar diferenciadamente, tendo sempre presente a finalidade preventiva, geral e especial, e não uma consideração moral ou política estranha ao Direito penal.285

Nesse sentido, “o medo abstrato da pena (o sujeito desiste porque teme a

pena que se lhe pode impor) deve ser considerado, do ponto de vista preventivo,

como um motivo que merece a impunidade” 286; já “o medo concreto da pena (o

sujeito desiste porque foi descoberto, porque será preso na saído do lugar do roubo

etc.) deve, pelo contrário, ser valorado, do ponto de vista preventivo, negativamente”

287. Outros pressupostos apresentados por Muñoz Conde para a configuração da

desistência na tentativa são a não consumação do delito, o não aproveitamento aos

coautores e a subsistência dos crimes previamente cometidos288.

Jiménez de Asúa, no que diz respeito ao conteúdo valorativo da desistência,

entendia ser a doutrina mais certa que a desistência na tentativa fosse sempre

acolhida, “ainda que provocado pelo medo da pena, pois se a pena funciona como

coação psicológica, não pode se pode deixar de afirmar que sua função é

sumamente extensa quando opera até aquele momento fugaz em que o homem

levanta o braço armado.” 289 Já Mir Puig estabelece a incidência da causa de

exclusão de pena quando ocorrer no sentido de evitar conscientemente a execução

do plano do sujeito, afastando-se, assim, a hipótese de beneficiar o indivíduo que

284 MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal..., 2010, p. 424. 285 Ibidem, p. 425. Tradução livre. Do original: “Los motivos éticos son, desde el punto de vista preventivo, valiosos y deben conducir siempre a admitir la voluntariedad. Los motivos interesados, en cambio, se deben valorar diferenciadamente, teniendo presente siempre la finalidad preventiva, general y especial, y no una consideración moral o política extrana al Derecho penal.“ 286 Ibidem, p. 425. Tradução livre. Do original: “el miedo abstracto a la pena (el sujeto desiste porque teme la pena que puede im- ponérsele), debe considerarse, desde el punto de vista preventivo, como un motivo que merece la impunidad.“ 287 Ibidem, p. 425. Tradução livre. Do original: “El miedo concreto a la pena (el sujeto desiste porque ha sido descubierto, porque va a ser detenido a la salida del lugar del robo, etc.) debe, por el contrario, ser valorado, desde el punto de vista preventivo, negativamente.“ 288 Ibidem, p. 425-426. 289 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Principios de Derecho Penal. La Ley y El Delito. 3ª Edição. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997, p. 485. Tradução livre. Do original: aun tratándose del provocado por el miedo a la pena, pues si la pena obra como coacción psicológica, no puede menos de afirmarse que su función es sumamente extensa, cuando opera hasta en aquel momento fugaz en que el hombre levanta el brazo armado.”

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“não pode realizar seu plano tal como havia decidido (sem a presença da polícia),

pelo que não desiste voluntariamente do dito plano”290.

Essa divergência parece dificultar a adequação da desistência voluntária à

justificativa jurídico-penal para a redução ou isenção de pena na colaboração

premiada. Afinal, além de ambos os institutos diferirem conceitualmente quanto à

consumação do delito, no primeiro, há relevante discussão sobre a motivação para o

ato. Se a desistência depende de uma voluntariedade positiva, no sentido de revelar

que o agente intimamente não mais quer prosseguir com a execução do delito, é

difícil a conformação do tema com a colaboração premiada (na qual o agente será

beneficiado em pena estabelecida para crime consumado e para o qual

subjetivamente esteve determinado).

Roxin, porém, traz luz à discussão, enfatizando que “a impunidade para os

casos de desistência voluntária só pode ser explicada a partir da teoria dos fins da

pena”291. É o que se passa a analisar.

2.1.2.1 AS TEORIAS ABSOLUTAS

As teorias absolutas trazem em si a ideia, pura e simples, de retribuição, “na

imposição de um mal pelo mal cometido”292. Trata-se, em apertado resumo, de

conferir-se à pena o caráter de “consequência justa e necessária do delito cometido,

entendido como uma necessidade ética, como um ‘imperativo categórico’” 293. Em

outras palavras, a retribuição “representa a imposição de um mal justo contra o mal

injusto do crime” 294.

Ainda que, em uma análise evolutiva do direito penal, a teoria retributiva da

pena seja a mais antiga, remontando à lei de talião (“olho por olho, dente por dente”

290 MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal. Parte General. 9ª Edição. Buenos Aires: Editorial B de F, 2015, p. 368. Tradução livre. Do original: “no puede realizar su plan tal como lo había decidido (sin la presencia de la policía), por lo que no desiste voluntariamene la de dicho plan”. 291 ROXIN, Claus. La evolución de la política criminal, el derecho penal y el proceso penal. Tradução de Carmen Gómez Rivero e María del Carmen García Cantizano. Valencia: Tirant lo Blanch, 2000, p. 62. Tradução livre. Do original: “la impunidad para los casos de desistimiento voluntario solo puede explicarse a partir de la teoría de los fines de la pena”. 292 MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal..., 2010, p. 47. Tradução livre. Do original: “la imposición de un mal por el mal cometido”. 293 Ibidem, p. 47. Tradução livre. Do original: “consecuencia justa y necesaria del delito cometido, entendida como una necesidad ética, como un ‘imperativo categórico’”. 294 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal Parte Geral. Curitiba: Lumen Juris, 2006, p. 453.

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295) e à fórmula de Sêneca (“punido, porque pecou” 296), além de ser refutada pela

doutrina moderna297, subsiste, para alguns autores a ideia de que a pena persiste

com a função de expiação ou compensação de culpabilidade 298 . Originalmente,

foram Kant299 e Hegel300 que defenderam a teoria retributiva. Nos tempos mais

recentes, é Jakobs quem se utiliza desse argumento, sustentando que a pena tem

como interesse “a estabilização da norma”301. Nesse sentido, Peñaranda Ramos

aproxima o pensamento de Jakobs ao de Hegel, ressalvando, que “o ponto de

referência na fundamentação hegeliana da pena é o conceito abstrato de Direito,

enquanto que em Jakobs esse ponto de referência vem constituído pelas condições

de subsistência da sociedade”302.

No Brasil, Santos indica uma razão elementar para a prevalência (ou, em

termos mais amenos, a permanência não absoluta) da teoria retributiva,

considerando se tratar de mandamento legal do Código Penal brasileiro, que, em

seu artigo 59, “determina ao juiz aplicar a pena conforme necessário e suficiente

para reprovação do crime”303. O objetivo central da lei penal brasileira, portanto,

seria reprovar a conduta – e não prevenir novos crimes.

Nas teorias absolutas sobre os fins da pena, esta não passa da pessoa do

acusado, e, conceitualmente, sequer poderia ter essa função. Com efeito, sob a

visão absoluta da pena, que visa exclusivamente uma retribuição (ética ou jurídica),

não há justificativa preventiva, implicando tal função “afronta à dignidade humana do

delinquente, já que este seria utilizado como instrumento para a consecução de fins

sociais”304.

295 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal..., 2006, p. 454. 296 Ibidem, p. 454. 297 Conforme ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo 1. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Tradução da 2ª Edição alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel DÍas Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. P. 84 298 SANTOS, op. cit., p. 454. 299 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução, textos adicionais e notas por Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003, p. 174-180. 300 HEGEL, G.W. Friedrich. Principios de la filosofía del derecho. Tradução e prólogo de Juan Luis Vermal. 2ª Edição. Barcelona: Edhasa, 1999, p. 179-192. 301 JAKOBS, Günther. Derecho Penal. Parte General. Fundamentos y teoria de la imputación. Tradução por Joaquin Cuello Contreras e Jose Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1995, p. 20 302 PEÑARANDA RAMOS, Enrique. Sobre la influencia del funcionalismo y la teoría de sistemas en las actuals concepciones de la pena y del concepto de delito. Doxa, nº 23, 2000, p. 302. 303 SANTOS, op. cit., p. 455. 304 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 1 – Parte Geral. 4ª Edição. São Paulo: RT, 2004. p. 515.

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Embora Bittar dispense as teorias absolutas como palco para a explicação do

fundamento da colaboração premiada, por se tratar a retribuição pura de uma prática

“insustentável e não científica”305 – aderindo à crítica que parte da doutrina faz, de

que a “expiação” ou a “compensação” do mal seria uma crença – e nessa medida,

constituir um ato de fé –, cabe um exercício retórico para uma hipotética

fundamentação do instituto.

Se, sob as teorias absolutas, a pena tem um papel compensatório pelos

males causados, os objetivos da colaboração premiada (identificação de corréus e

da estrutura hierárquica da organização criminosa, bem como a reparação do dano)

poderiam exercer essa função. Afinal, se, com a prática delitiva, faz-se um mal, não

é absurdo conceber-se que pode haver a restituição desse mal – ainda que

mediante benefícios – pelo fornecimento ao Estado de instrumentos para a melhor

apuração do crime, com a indicação de outros fatos (conexos ou não), criminosos e,

sobretudo, com a devolução de valores e pagamento de multas compensatórias.

Podem-se extrair – é verdade, mediante certa elasticidade argumentativa – os

fundamentos éticos e jurídicos de Kant e Hegel, respectivamente, com a adoção da

colaboração premiada.

A utilização do instituto como instrumento de expiação, por outro lado, exigiria

um maior – e talvez exagerado – esforço de fundamentação, tendo em vista que o

grau de benefícios concedidos teria que ter o condão (e não tem) de retribuir certo

“mal ao mal” causado pelo colaborador. Embora ainda se vá analisar o instituto,

propriamente dito, adianta-se que tal critério não faz parte do escopo formal da Lei

nº 12.850/2013. Ou seja, os benefícios previstos em lei não têm o propósito de

limitar exatamente o mal que será causado ao colaborador, restando essa atividade,

quase que exclusivamente, às idiossincrasias negociais do contexto de cada acordo.

Não obstante, no Código Penal brasileiro, estabelece-se, como se disse

anteriormente, que a finalidade da pena é “prevenir e reprimir as condutas ilícitas e

culpáveis” 306 , conforme se extrai da redação do art. 59. Por trás da ideia da

prevenção que orienta o sistema penal brasileiro, estão as teorias relativas da pena,

que buscam a sua utilização com os fins de prevenção geral – que consiste no

“efeito de intimidação que a ameaça de sua imposição ou a sua aplicação ou

305 BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 77. 306 DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal - Parte Geral. 5ª Edição. São Paulo: RT, 2013, p. 553.

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execução concretas possam produzir no seio da comunidade” 307 – e prevenção

especial – que se entende como “o objetivo de evitar que o sujeito cometa novas

infrações” 308 , proporcionando “ao condenado, através da execução da pena,

caminhos opostos à reincidência”309. Vale analisá-las, a pretexto de identificar nelas

um fundamento para a colaboração premiada.

2.1.2.2 AS TEORIAS RELATIVAS

Ambas as teorias de prevenção – geral e especial – subdividem-se entre

negativa e positiva. A prevenção geral negativa, por exemplo, é extraída da teoria da

“coação psicológica” 310 de Feuerbach, que estabelece que a “o objetivo da

cominação da pena na lei é a intimidação de todos, como possíveis protagonistas de

lesões jurídicas”311, enquanto que “o objetivo de sua aplicação é dar fundamento

efetivo à cominação legal, dado que sem a aplicação a cominação ficaria oca (seria

ineficaz)” 312 . Como bem lembra Santos, tal teoria reproduziria o tradicional

argumento de que “não seria a gravidade da pena – ou o rigor da execução penal –,

mas a certeza (ou a probabilidade, ou o risco) da punição que desestimularia o autor

de praticar crimes”313.

Há crítica quanto à adoção da prevenção geral negativa como fundamento da

pena. Santos, por exemplo, ilustra dois argumentos contrários bastante relevantes (e

coadunados com o estudo da colaboração premiada):

Primeiro, a falta de critério limitador da pena transforma a prevenção geral negativa em verdadeiro terrorismo estatal – como indica, por exemplo, a lei de crimes hediondos, essa frustrada inovação do legislador brasileiro; segundo, a natureza exemplar da pena como prevenção geral negativa viola a dignidade humana, porque acusados reais são punidos de forma exemplar para influenciar a conduta de acusados potenciais, ou seja,

307 DOTTI, René Ariel. Curso..., 2013, p. 554. 308 Ibidem, p. 554. 309 Ibidem, p. 554. 310 FEUERBACH, Anselm v. Tratado de Derecho Penal. Tradução ao espanhol da 14ª edição alemã por Eugenio Raúl Zaffaroni e Irma Hagemeier. Buenos Aires: Hammurabi, 2007, p. 52. 311 Ibidem, p. 53. Tradução livre. Do original: “El objetivo de la conminación de la pena en la ley es la intimidación de todos, como posibles protagonistas de lesiones jurídicas.” 312 Ibidem, p. 53. Tradução livre. Do original: “El objetivo de su aplicación es el de dar fundamento efectivo a la conminación legal, dado que sin la aplicación la conminación quedaría hueca (sería ineficaz).” 313 SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal..., 2006, p. 459.

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aumenta-se injustamente o sofrimento de acusados reais para desestimular o comportamento criminoso de acusados potenciais.314

A dinâmica de realizações múltiplas de acordos de colaboração premiada (na

casa das centenas, apenas na Operação Lava Jato), somada ao rigor e efetividade

de juízos em que tramitam processos nos quais tais acordos são celebrados (como

é, por exemplo, o Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba), além da previsão de

execução da pena após o julgamento em 2º grau e o já mencionado fim da

prescrição retroativa revelam que pode surgir um impacto na criminalidade com a

utilização do instituto. Nesse sentido, Bittar já sugeria, antes da Lei nº 12.850/2013,

que a colaboração premiada poderia criar, “dentro das associações criminosas uma

determinada desconfiança, ou uma diminuição de confiança no comparsa” 315 ,

gerando “instabilidade dentro de associações criminosas, pois ronda a possibilidade

de quebra da ‘lei do silêncio, gerando o desmantelamento ou não formação do grupo

e, com isso, prevenindo delitos”316.

Sob essa sugestão, não obstantes as críticas cabíveis à teoria, o instituto

estaria fundamentado na perspectiva da prevenção geral negativa. Nesse sentido,

vale referir a lição de Beccaria, sobre as formas de oferecimento de “impunidade ao

cúmplice de um grande crime que” traia seus companheiros. Dizia o autor que

a esperança da impunidade, para o cúmplice que trai, pode prevenir grandes crimes e reanimar o povo, sempre apavorado quando vê crimes cometidos sem conhecer os culpados. Esse uso mostra ainda aos cidadãos que aquele que infringe as leis, isto é, as convenções públicas, já não é fiel às convenções particulares. 317

A prevenção geral positiva, advinda do funcionalismo, estabelece, em linhas

gerais, que “a pena tem a missão de demonstrar a inviolabilidade do ordenamento

jurídico diante da comunidade jurídica e assim reforçar a confiança jurídica do

314 SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal..., 2006, p. 460. 315 BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada..., p. 79. 316 Ibidem, p. 79. 317 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães. 7ª Edição. São Paulo: Martin Claret, 2012, p. 44.

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povo”318. Segundo Roxin, “na prevenção geral positiva se podem distinguir três fins e

efeitos distintos”319, quais sejam:

o efeito de aprendizagem, motivado social-pedagogicamente; o exercício na confiança do Direito que se origina na população pela atividade da justiça penal; o efeito de confiança que surge quando o cidadão vê que o Direito se aplica; e, finalmente, o efeito de pacificação, que se produz quando a consciência jurídica geral se tranquiliza, em virtude da sanção, sobre a violação à lei, e considera solucionado o conflito com o autor.320

A partir da definição dos fins e efeitos acima reproduzida, e referindo-se mais

especificamente ao efeito da pacificação, Roxin denomina o termo “prevenção

integradora”321.

Santos salienta a posição diversa de Jakobs, que “absolutiza a função de

prevenção geral positiva” 322, na medida em que, para o autor a “missão da pena é a

manutenção da norma como modelo de orientação para os contatos sociais”323. Com

efeito, a prevenção geral positiva teria a função de exercitar a “confiança na

norma”324, necessária para que se saiba o que se espera na interação social; a

“fidelidade jurídica” 325, reconhecendo-se a pena como “efeito da contradição da

norma”; e a “aceitação das consequências respectivas, pela conexão do

comportamento criminoso com o dever de suportar a pena” 326.

A colaboração premiada pode ser fundamentada pela primeira perspectiva da

prevenção geral positiva. Afinal, a utilização do instituto para o desmantelamento de

organizações criminosas e a reparação do dano (além, é claro, das esperadas

condenações de corréus delatados e o respectivo cumprimento de pena) pode, ao

318 ROXIN, Claus. Derecho Penal..., 1997, p. 91. Tradução livre. Do original: “la pena tiene la misión de demonstrar la inviolabilidad del ordenamiento jurídico ante la comunidad jurídica y así reforzar la confiança jurídica del pueblo". 319 Ibidem, p. 91. Tradução livre. Do original: “en la prevención general positive se pueden distinguir a su vez tres fines y efectos distintos. 320 Ibidem, p. 91. Tradução livre. Do original: “el efecto de aprendizaje, motivado socialpedagógicamente; el ejercicio en la confianza del Derecho que se original en la población por la actividad de la justicia penal; el efecto de confianza que surge cuando el ciudadano ve que el Derecho se aplica; y, finalmente, el efecto de pacificación, que se produce cuando la consciencia jurídica general se tranquiliza, en virtud de la canción, sobre el quebrantamiento de la ley y considera solucionado el conflito con el autor.” 321 Ibidem, p. 92. Tradução livre. Do original: “prevención integradora”. 322 SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal..., 2006, p. 461. 323 JAKOBS, Günther. Derecho Penal..., 1995, p. 14. Tradução livre. Do original: “Misión de la pena es el mantenimiento de la norma como modelo de orientación para los contatos sociales.” 324 SANTOS, op. cit., 2006, p. 461. 325 Ibidem, p. 461. 326 Ibidem, p. 461.

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mesmo tempo, ressaltar a aplicação real da lei penal, a confiança da sociedade no

sistema “devido ao esclarecimento de delito(s) que, de outra forma, seria

impossível”327 e determinada pacificação social em razão da impressão de que os

crimes serão eventualmente investigados e os responsáveis punidos.

É o que estabelece Faraldo Cabana, em estudo sobre as circunstâncias

atenuantes do Código Penal espanhol de 1995, estabelecendo que “sob a

perspectiva da prevenção de integração ou prevenção geral positiva parece possível

e conveniente atenuar a responsabilidade do sujeito que leva a cabe um

comportamento pós-delitivo que a comunidade valore positivamente”328. A autora

enfatiza, porém, que essa atenuação de pena “só tem sentido sob a perspectiva de

prevenção geral quando a ação do sujeito, independentemente de sua eficácia,

supõe um bom exemplo ante os olhos da comunidade por seu regresso voluntário à

legalidade”329 e que, ao reparar voluntariamente o prejuízo causado à vítima (o que

é um dos objetivos da Lei nº 12.850/2013), verifica-se uma contribuição “à

reafirmação do ordenamento jurídico, manifestando, ademais, uma menor

necessidade de pena”330.

Armenta Deu, por outro lado, sustenta que, “ainda que, sob a perspectiva das

finalidades da pena, o princípio da oportunidade propicie a efetividade, ao permitir a

persecução dos delitos mais graves, suas consequências sob a perspectiva da

prevenção geral são certamente discutíveis”, na medida em que teria um “efeito

perverso sobre a credibilidade do sistema e a segurança jurídica” 331.

Sob a perspectiva de Jakobs, não se pode afirmar o mesmo, salvo melhor

juízo. É que, se a utilização da colaboração premiada se tornar uma saída fácil aos

indivíduos acusados ou investigados da prática de crime, pode não ser observado o

critério da aceitação das consequências. Afinal, se as consequências forem sempre

327 BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada..., 2011, p. 83. 328 FARALDO CABANA, Patrícia. La aplicación analógica de las atenuantes de comportamiento postdelictivo (los núms. 4º y 5º en relación con el núm. 6º del artículo 21 del Código Penal de 1995). Anuario da Facultade de Dereito da Universidade da Coruña, nº 1, 1997, p. 237-259, p. 244. Tradução livre. Do original: “desde la perspectiva de la prevención de integración o prevención general positive parece posible y conveniente atenuar la responsabilidad del sujeto que lleva a cabo un comportamiento postdelictivo que la comunidad valora positivamente”. 329 Ibidem, p. 243. 330 Ibidem, p. 244. 331 ARMENTA DEU, Teresa. Principio..., 2016, p. 4. Do original: “Aunque desde la perspectiva de las finalidades de la pena, el principio de oportunidad propicia la efectividad, al permitir la persecución de los delitos más graves, sus consecuencias desde perspectivas de prevención general son ciertamente discutibles por su efecto perverso sobre la credibilidad del sistema y la seguridad jurídica”.

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– ou potencialmente – mitigadas em razão da celebração de acordo que traga uma

série de benefícios, não se terá a impressão, no seio da sociedade, de que o

comportamento criminoso suporta o peso da reprimenda penal.

De todo modo, não se ignora que o posicionamento ora adotado para

compatibilizar a colaboração premiada com as teorias sobre a pena constitui

perspectiva bastante otimista e que dependerá, naturalmente, de sua maior

utilização para se confirmar. Embora, neste capítulo, não se tenha o objetivo de

analisar casos concretos, podem-se citar dois exemplos antagônicos dos efeitos da

colaboração sob a perspectiva da prevenção geral positiva. De um lado, tem-se a já

citada Operação Lava Jato dos acusados sem foro especial por prerrogativa de

função, conduzida pela força-tarefa do Ministério Público Federal perante a 13ª Vara

Federal de Curitiba/PR. Nesse caso, parece haver uma ampla aprovação da

sociedade com os resultados obtidos (dezenas de ações penais, centenas de presos

provisórios, além de mais de uma centena de condenados – alguns dos quais já

cumprem pena332) por meio de mais de cento e cinquenta acordos de colaboração

premiada, além da impressão de que os crimes cometidos perante aquele foro terão

o pleno rigor da lei.

Por outro, há exemplos diversos de colaborações premiadas que não surtiram

efeitos ou que, em seu bojo, revelaram pontos fracos do instituto. Cita-se o caso do

acordo celebrado pelos executivos da J&F, no qual, por um lado, houve ampla

repercussão negativa da sociedade em razão dos generosos benefícios concedidos

em face de centenas de crimes graves, e, por outro, criou-se relevante descrédito no

instituto pelo surgimento de indícios de que os fatos narrados teriam sido

apresentados em conluio com um agente do Ministério Público Federal (situação

que, aliás, deu causa à revogação dos benefícios e à prisão dos colaboradores).

Não obstante, e sem se dispensar futuras e mais aprofundadas reflexões,

parece ser plenamente possível que, sob a ótica da prevenção geral positiva,

também se possa conceber um fundamento para a colaboração premiada.

Por fim, a prevenção especial “consiste na atuação sobre a pessoa do

delinquente, para evitar que volte a delinquir no futuro”333, sendo Liszt o principal

332 Nesse sentido, vale analisar o site do Ministério Público Federal dedicado à informação dos resultados da Operação Lava Jato no Paraná. Disponível em: <http://goo.gl/hmzfu7> Acesso em 12 de março de 2018. 333 PRADO, Luiz Regis. Curso..., 2004, p. 520.

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porta-voz da teoria334. Sua vertente negativa teria o condão de utilizar a pena como

instrumento de “seleção artificial” 335 , por meio da qual se retira, “perpétua ou

temporariamente ao delinquente que se tornou inútil à sociedade a possibilidade

material de perpetrar novos crimes”336, reduzindo-o ao “estado de inocuidade” 337. A

prevenção especial positiva, por sua vez, gira em torno da ideia de que, uma vez

punido, o agente – caso arrependido ou temente de sofrer nova punição – deixaria

de praticar novos delitos. Também se exerceria essa prevenção especial por meio

da “correção (ou de ressocialização, ou de reeducação etc.) do criminoso” 338 ,

realizada por profissionais da “ortopedia moral do estabelecimento penitenciário” 339,

na acepção crítica de Santos.

Com mais dificuldade que na prevenção geral, pode-se extrair algum

fundamento para a colaboração premiada na prevenção especial, na medida em que

o colaborador, como condição do acordo, voluntariamente se afasta da organização

criminosa da qual faz parte (muitas vezes sendo-lhe exigido o afastamento físico,

por prisão domiciliar, por exemplo) e se compromete a não voltar a delinquir, sob

pena de perda dos benefícios (em situações práticas que revelam riscos altíssimos,

como será demonstrado adiante). Alguns indivíduos podem, pela experiência da

persecução penal, compreender o acordo como uma oportunidade para “passar a

limpo” condutas previamente praticadas e se reinserir na sociedade.

Não obstante, a colaboração premiada pode ter dificuldades em cumprir as

ideias por trás das teorias de prevenção especial, como se viu no caso de um dos

colaboradores da Operação Lava Jato que cometeu vários crimes durante a vigência

de acordo previamente celebrado no caso Banestado – ambos perante o mesmo

Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba/PR. Isso se deve ao fato de que, em

determinados tipos de crimes (como os praticados por particulares – empreiteiros,

por exemplo – junto ao Poder Público), o modelo social a ser seguido é, justamente,

o do criminoso empresarial que se vale do compadrio com agente públicos para ter

sucesso profissional. Nesse caso, certamente não se aplica a prevenção especial.

334 ROXIN, Claus. Derecho Penal..., 1997, p. 85. 335 LISZT, Franz von. Tratado...,1899, p. 100. Ortografia original. 336 Ibidem, p. 100. 337 Ibidem, p. 100. 338 SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal..., 2006, p. 457. 339 Ibidem, p. 457.

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2.1.2.3 TEORIAS MISTAS OU UNIFICADAS

Restam, ainda, as teorias mistas (ou unificadas e ecléticas), que “buscam

conciliar a exigência de retribuição jurídica da pena – mais ou menos acentuada –

com os fins de prevenção geral ou de prevenção especial”340. Santos resumo bem o

conteúdo geral dessa corrente de pensamento, que predomina no mundo ocidental:

Assim, a pena representaria (a) retribuição do injusto realizado, mediante compensação ou expiação da culpabilidade, (b) prevenção especial positiva mediante correção do autor pela ação pedagógica da execução penal, além de prevenção especial negativa como segurança social pela neutralização do autor e, finalmente, (c) prevenção geral negativa através da intimidação de criminosos potenciais pela ameaça penal e prevenção geral positiva como manutenção/reforço da confiança na ordem jurídica etc. 341

Embora haja amplo valor na discussão sobre qual o melhor caminho a ser

utilizado, não é relevante, para os fins deste estudo, analisá-la, sobretudo porque a

conjugação de retribuição e prevenção trará para o sistema que adote alguma teoria

mista os mesmos fundamentos acima analisados, em maior ou menor proporção.

Com efeito, conclui-se que, sob a perspectiva da finalidade da pena, há aparente

fundamento para a introdução e utilização da colaboração premiada no Brasil.

2.1.3 A REPARAÇÃO DO DANO COMO TERCEIRA VIA DO DIREITO PENAL

Uma outra perspectiva sobre a função da pena – ou do próprio direito penal –

que parece guardar algum tipo de consonância com o instituto da colaboração

premiada diz respeito à teoria de Roxin sobre a reparação do dano como “terceira

via”342 do Direito Penal, tratando-se resposta penal “melhor às exigências do mundo

pós-moderno”343 que as penas privativas de liberdade ou restritivas de direito.

340 PRADO, Luiz Regis. Curso..., 2004, p. 521. 341 SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal..., 2006, p. 457. 342 ROXIN, Claus. Derecho Penal...,1997, p. 108. Tradução livre. Do original: “hay motivos convincentes que hablan en favor de una amplia inclusión de la reparación del daño en el Derecho Penal”. 343 AMARAL, Claudio do Prado. Despenalização pela reparação de danos – a terceira via. Leme: J.H. Mizuno, 2005, p. 157.

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Ao analisar as funções da pena, o autor sustenta que “há motivos

convincentes que falam em favor de uma ampla inclusão da reparação do dano no

Direito Penal”344, resumindo-os da seguinte maneira:

Isso serve mais para os interesses das vítimas do que com uma penalidade de liberdade ou multa, o que muitas vezes frustra a reparação do dano pelo agressor. Pesquisas empíricas também mostraram que tanto a parte lesada quanto a comunidade concedem pouco ou nenhum valor a um castigo adicional ao autor para a reparação do dano na forma de uma composição autor-vítima, em casos de criminalidade pequena ou média. Assim, nos casos que atualmente são puníveis com uma pequena multa, a penalidade pode ser dispensada quando o dano total for reparado; e em crimes mais graves, a reparação do dano poderia, em qualquer caso, levar a uma remissão condicional da sentença ou a uma mitigação obrigatória da pena.345

Roxin, porém, não sustenta que a reparação do dano possa ser um fim de

pena. Para o autor, a referida atividade pode ser um instrumento para que se

alcance a finalidade preventiva da pena, sobretudo por ter um efeito ressocializador,

que obriga o criminoso a enfrentar as consequências de suas ações e a conhecer os

interesses da vítima que foram ofendidos por sua conduta346. Também há um efeito

de “reintegração do culpado” 347 , extraído da conciliação entre autor e vítima,

fazendo valer a já mencionada “prevenção integradora” 348, com a possibilidade de

restauração da paz jurídica quando da reparação do dano. Diz Roxin que “somente

quando o dano for reparado, a vítima e a comunidade considerarão eliminada –

muitas vezes até mesmo independentemente de uma punição – a perturbação social

causada pelo crime” 349.

Ainda que a teoria da reparação do dano como “terceira via” do Direito Penal

esteja, de certo modo, atrelada ao estudo das teorias dos fins da pena, vale a sua

344 ROXIN, op. cit., p. 108. Tradução livre. Do original: “Pues con ello se sirve más a los intereses de las victimas que con una pena privativa de liberdad o de multa, que a menudo realmente frustran una reparación del daño por el autor. Investigaciones empíricas también han demostrado que tanto el lesionado como la comunidad otorgan nulo o escaso valor a un castigo adicional del autor ante la reparación del daño en la forma de una composición autor-victima, en casos de pequeña o mediana criminalidad. De ahí que, en casos que actualmente se castigan con una pequeña pena de multa, se podría prescindir de la pena cuando se produce una reparación total del daño; y en delitos más graves la reparación del daño podría originar de todos modos una remisión condicional de la pena o una atenuación obligatoria de la pena.” 345 Ibidem, p. 109. 346 Ibidem, p. 109. 347 Ibidem, p. 109. 348 Ibidem, p. 109. 349 ROXIN, Claus. Derecho Penal...,1997, p. 109. Tradução livre. Do original: “sólo cuando se haya reparado el daño, la víctima y la comunidad considerarán eliminada – a menudo incluso independientemente de un castigo – la perturbación social originada por el delito.”

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análise neste estudo sobre a colaboração porque, conforme se extrai do art. 4º, IV,

da Lei nº 12.850/2013, a “recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das

infrações penais praticadas pela organização criminosa”350 é um dos objetivos do

instituto. Com efeito, parece que, também sob tal análise patrimonial e vinculada à

posição da vítima, a colaboração premiada terá relevância351. Ressalva-se, porém,

que, sob a teoria de Roxin, os crimes incluídos na Lei nº 12.850/2013 não poderiam

ser substituídos pela reparação, já que tal hipótese somente seria admissível em

“crimes determinados e até um determinado grau de gravidade” 352 , conforme

enfatizado no trecho acima. A concessão de perdão judicial ou imunidade

processual enquanto benefícios previstos para a colaboração premiada não se

encaixariam, portanto, nesse perfil.

De todo modo, é possível extrair exemplos da relevância da reparação do

dano como teórico fundamento para a colaboração premiada. Na Operação Lava

Jato, por exemplo, mais de um bilhão de reais foram devolvidos à Petrobras por

força dos inúmeros acordos de colaboração premiada celebrados por ex-agentes da

estatal, políticos e operadores financeiros da organização criminosa353. Não obstante

se trate de montante inferior aos danos causados à companhia no curso das

atividades da organização criminosa (estimados em bilhões de reais), trata-se de um

valor relevante, devolvido em poucos meses e com a voluntariedade dos

colaboradores envolvidos354.

Conforme será visto nos capítulos posteriores, a dinâmica dos acordos de

colaboração celebrados no Brasil sempre terá como etapa fundamental a definição

de uma relevante multa compensatória, voltada à reparação do dano e ao

pagamento de custas processuais e multas penais. Pode-se afirmar, partindo-se

dessa premissa fática adiante explorada, que, também sob a perspectiva da

reparação do dano, a colaboração premiada apresenta-se como instrumento de

relevância e pertinência.

350 BRASIL, Lei nº 12.850..., 2013. 351 Sobretudo porque o sistema brasileiro já prevê a reparação do dano como objetivo da persecução penal, como nos artigos 387, IV, do Código de Processo Penal e 89, §1º, I da Lei nº 9.099/95, 352 ROXIN, Claus. La reparación en el sistema de los fines de la pena. In: De los delictos y de las victimas. Buenos Aires: Ad hoc, 1992, p. 151. 353 OLIVEIRA, Nielmar de. Agência Brasil. Petrobras recebe mais R$ 654 milhões da Lava Jato. 7 de dezembro de 2017. Disponível em <http://goo.gl/f9VvSm> Acesso em 12 de março de 2018. 354 Ressalte-se que, dentro dos montantes devolvidos, há valores oriundos de condenações criminais já transitadas em julgado de acusados não-colaboradores. No entanto, um grande percentual decorre de acordos celebrados, como se extrai do site do MPF dedicado à Operação Lava Jato. Disponível em http://goo.gl/hmzfu7 Acesso em 12 de março de 2018.

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2.3 A CRIMINALIDADE EMPRESARIAL E SUA COMPLEXIDADE PROBATÓRIA

Compreendendo-se que a colaboração premiada encontra amparo nas

diferentes perspectivas do direito acima representadas, passa-se a analisá-la sob a

perspectiva especial da criminalidade empresarial. A primeira constatação que se

tem quanto a esse ramo do direito penal é a de que, assim como o instituto em

análise, trata-se de tema recente e que, em muitos aspectos, pouco se coaduna com

a disciplina tradicional das ciências criminais no Brasil.

O direito penal empresarial, em grande medida, confunde-se conceitualmente

com o Direito Penal Econômico. Embora nem todo crime econômico seja cometido

no âmbito da empresa (como, por exemplo, crimes fiscais ou ambientais praticados

por particulares fora do exercício de atividade empresarial), e nem todo crime

cometido na empresa seja de ordem econômica (por exemplo, um acidente do qual

decorra a morte de trabalhador por inobservância de regras técnicas de segurança

do trabalho), há uma grande superposição entre ambas as espécies de delito.

Knopfholz, nesse sentido, ressalta que “é indubitável que os crimes

econômicos são, em sua esmagadora maioria, empresariais”355, indicando pesquisa

realizada “na Alemanha pelo Instituto Max Planck”356 que revelou que “cerca de 80%

(oitenta por cento) dos crimes econômicos ocorrem no âmbito de pessoas

jurídicas” 357 . Daí a importância, ainda que o presente estudo não se volte

propriamente às questões dogmáticas do Direito Penal Econômico, de enfrentar

genericamente o tema. Com a compreensão da natureza dos crimes econômicos e

empresariais, poder-se-á verificar os motivos de sua complexidade probatória e,

então, extrair-se a pertinência da colaboração premiada quanto a esses delitos.

O Direito Penal Econômico surge como uma parte autônoma do Direito Penal

tradicional a partir da mesma mudança paradigmática das funções do Estado

referidas no subcapítulo 2.1 acima. Com a alteração de um modelo de Estado liberal

para o de um Estado social de intervenção econômica em busca do bem-estar da

sociedade, em um movimento que teve início a partir da crise de 1929, surgem

355 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica nos crimes econômicos. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2013, p. 135-136. 356 Ibidem, p. 136. 357 Ibidem, p. 136.

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novos campos de atuação do Direito Penal. Se, historicamente, esse tinha a função

de tutelar as violações de bens jurídicos clássicos, todos relacionados a institutos

materiais (como a vida, integridade física e patrimônio), o Direito Penal Econômico

assumiu duas funções bastante marcantes a partir de seu surgimento.

Inicialmente, em meados do Século XX, o Direito Penal Econômico

apresentou-se como um instrumento do Estado para fazer valer sua estratégia

econômica – em outras palavras, para disciplinar a sua intervenção na economia358.

Nas últimas décadas, com a mudança do enfoque do Estado para a tutela e

promoção de direitos fundamentais coletivos e difusos, passou o Direito Penal

Econômico a exercer essa função, deixando de lado apenas a proteção de direitos

individuais do Direito Penal clássico para passar a proteger direitos

supraindividuais359.

Há, com efeito, um conteúdo político no Direito Penal Econômico, não mais se

limitando à função do Direito Penal tradicional, “de feição liberal” 360 , e tendo o

objetivo de, por meio da “criminalização de condutas na área econômica” 361 ,

“garantir um mercado transparente, honesto e seguro, voltado ao desenvolvimento

social”362. Ter-se-ia, na leitura de Dias, um Direito Penal novo e voltado à busca da

igualdade material na sociedade363.

Essa nova função do Direito Penal Econômico trouxe – e tem trazido –, nas

palavras de Dotti, “novos enigmas para os estudiosos do Direito Penal” 364 ,

sobretudo em razão da absoluta disparidade com a legislação vigente – em especial

o Código de Processo Penal, de 1941, “com facetas notadamente fascistas e

358 BARROETAVEÑA, Diego Gustavo. Derecho penal económico: delitos tributarios. Propuesta para um derecho penal tributario respetuoso de los principios y garantias penales. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 18, n. 86, set./out. 2010, p. 63. 359 GUARAGNI, Fábio André. Da tutela penal de interesses individuais aos supraindividuais: dialogando com Beccaria. In: BUSATO, Paulo César (organizador). Ler Beccaria hoje. Volume I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 52. 360 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica..., 2013, p. 33. 361 Ibidem, p. 33. 362 Ibidem, p. 33. 363 DIAS, Jorge de Figueiredo. Breves considerações sobre o fundamento, o sentido e a aplicação das penas em Direito Penal Econômico. In: FARIA COSTA, José de; MARQUES DA SILVA, Marco Antonio (coordenadores). Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais – Visão Luso-Brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 71. 364 DOTTI, René Ariel. Algumas reflexões sobre o “Direito Penal dos negócios”. In: DOTTI, René Ariel; PRADO, Luiz Régis (org.). Doutrinas Essenciais – Direito Penal Econômico e da Empresa. Teoria Geral da Tutela Penal Transindividual. Volume 1. São Paulo: RT, 2011, p. 718.

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inquisitivas”365. E é nesse aspecto que tem especial relevância – e fundamento à luz

da legislação específica – o estudo da colaboração premiada.

Inicialmente, perceba-se que o referido Código estabelece, sob à luz do

Direito Penal tradicional, as diretrizes para a responsabilização penal de um

indivíduo suspeito de ter cometido um crime. Desde o conhecimento do fato até a

prolação de sentença condenatória, há a indicação dos requisitos legais para o

reconhecimento de que alguém incorreu em uma conduta prevista no Código Penal

ou na legislação especial.

Por exemplo, o art. 4º, que trata da atividade policial civil, estabelece que “a

polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas

respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua

autoria”366. O art. 27, que prevê o acesso popular ao Ministério Público para a notícia

de infração penal, dispõe que “qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa

do Ministério Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por

escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os

elementos de convicção”367. O mesmo ocorre em relação ao dispositivo que trata da

representação do ofendido (ou de seu representante legal ou procurador), que, no

§2º do art. 39, afirma que “a representação conterá todas as informações que

possam servir à apuração do fato e da autoria”368.

Quanto à ação penal, o art. 41, que trata dos requisitos da inicial acusatória,

estabelece que “a denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com

todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos

quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de

testemunhas”369. Por sua vez, os incisos IV e V do art. 386 prescrevem que o “o juiz

absolverá o réu” quando estiver “provado que o réu não concorreu para a infração

penal” ou quando “não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal”370.

A leitura do Código de Processo Penal parece deixar muito claro que o

processo penal brasileiro se orienta, quando se trata de responsabilização criminal,

pela indispensabilidade de indicação e comprovação da autoria delitiva – para,

justamente, a responsabilização penal subjetiva, devidamente individualizada.

365 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica..., 2013, p. 27. 366 BRASIL, Código de Processo Penal, 1941. 367 Ibidem. 368 Ibidem. 369 Ibidem. 370 BRASIL, Código de Processo Penal, 1941.

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A adoção cega dessa conclusão, porém, ignora o fato de que, desde a

promulgação do Código de Processo, por meio do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de

outubro de 1941 (contando atualmente com mais de setenta e seis anos), as

mudanças conceituais do Direito Penal Econômico se materializaram por meio de

um amplo processo de criminalização de condutas. Houve uma “inflação

legislativa”371, na expressão de Dotti, com a absorção, pelo Direito Penal, de práticas

pouco afeitas ao regime de responsabilização subjetiva do Código de Processo

Penal.

Dotti, aliás, ao afirmar que “são inúmeras as leis que a todo momento estão

sendo impostas desordenadamente do mercado jurídico que trata dos delitos e das

penas”372, ratifica o que já vinha sendo dito por Nelson Hungria nos anos 50:

Mas o prurido legisferante no Brasil é coceira de urticária. Muda-se de lei como se muda de camisas. Reformam-se periodicamente as leis sem quê nem para quê, ou pelo só capricho de as reformar. E quase sempre para pior. Quando se anuncia a reforma de uma lei em torno de algum instituto jurídico ou fato social, tem-se a impressão de que vai ser corrigida uma falha sensível ou introduzido um critério de solução mais conforme com o estilo da vida contemporânea. Pura ilusão. E ainda bem quando tudo se limita a uma simples mão de cal nas paredes e a mudar-se o número da casa. As mais das vezes, porém, o que vem a ocorrer é o meticuloso desarranjo daquilo que estava arrumado, ou uma inadequação maior do que a anterior.373

Knopfholz lista uma série de leis que foram criadas nas últimas décadas e

que, de fato, acabaram por alterar os paradigmas de responsabilização penal na

forma como exige o Código de Processo Penal374. Como exemplo, podem-se citar

as Leis nº 7.492/86 (crimes contra o Sistema Financeiro Nacional), 8.137/90 (crimes

contra a ordem tributária), 8.176/90 (crimes contra a ordem econômica), 8.666/93

(crimes de licitação) e 9.605/98 (crimes ambientais). O autor ressalta que “se

somados, são dezenas de tipos penais, dirigidos basicamente aos empresários e

371 DOTTI, René Ariel. Algumas reflexões...,, 2011, p. 718. 372 DOTTI, René Ariel. Curso..., 2012, p. 252. 373 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume VI. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 1955. P. 269. 374 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica..., 2013, p. 77.

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agentes financeiros” 375 . E segue, indicando a chamada “administrativização do

Direito Penal”376:

Com efeito, criminalizaram-se condutas até então relegadas a outras esferas do Direito ou da Administração Pública. A não anotação dolosa em Carteira de Trabalho e Previdência Social, por exemplo, é, hoje, crime punido com reclusão de 2 a 6 anos (CP, art. 297, § 3º, II e § 4º). A simples manutenção de divisas no exterior sem a declaração à autoridade competente é, igualmente, um delito autônomo, de igual apenamento (Lei 7.492/86, art. 22, parágrafo único).377

O autor também alerta, para os efeitos deste estudo, que os crimes

empresariais se tornaram objetivo ideológico dos órgãos de persecução penal. Ou

seja, além de se tratar de um ramo do Direito novo e assistemático (e, de certa

forma, pouco compatível com a ordem processual tradicional), trata-se de área de

grande foco de atuação do Estado:

No panorama apresentado, há ainda outro fator a merecer destaque: a ideologia que impregna a nova criminalidade econômica. Com efeito, a alça de mira do Estado volta-se ao criminoso de terno e gravata, ao sócio de uma empresa, ao gerente de uma instituição financeira e, até mesmo, à própria pessoa jurídica, nos casos de crimes ambientais. (...) O criminoso do colarinho branco, que era o exemplo por excelência da inexistência de estigmatização em face da omissão de meios legais de controle das atividades econômicas das chamadas altas classes, torna-se agora o objeto do Direito Penal.378

Se, por um lado, a mudança é certamente bem-vinda em um país em que a

corrupção é generalizada (gerando danos potencialmente mais graves que na

criminalidade ordinária) e no qual se tem notícia de inúmeros casos de crimes

envolvendo a atividade empresarial em conluio com agentes públicos criminosos,

por outro, há um problema procedimental bastante sério.

Como se afirmou acima, o processo penal brasileiro tem como objetivo

primário a comprovação do binômio materialidade/autoria delitivas, não devendo

haver – em tese – responsabilização criminal quando ambos os elementos não

sejam cumulativamente verificados na sentença condenatória penal. Ou seja, é

indispensável, para que se fale em responsabilidade penal – e o exercício das

375 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica..., 2013, p. 77. 376 Ibidem, p. 69. 377 Ibidem, p. 77. 378 Ibidem. P. 78.

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funções da pena acima estudados –, que tanto se tenha a prova do crime, quanto a

prova de sua autoria.

Com os crimes cometidos no âmbito da empresa, a obtenção dessa prova é

inequivocamente mais complexa. Knopfholz traz o panorama, partindo da ideia de

que, como a grande maioria dos crimes econômicos ocorre no âmbito das pessoas

jurídicas,

nestas ocorre um aparente ‘sumiço’ de responsabilidades, que se esvaem na sua complexa estrutura organizacional. Torna-se difícil identificar a autoria de um crime, diante da existência de um quadro orgânico hierarquizado nas atividades empresariais. A natureza orgânica, a descentralização na tomada de decisões e a divisão de funções entre os integrantes da sociedade dificultam (quando não impedem) uma fácil definição dos autores de tais modalidades delitivas.379

No mesmo sentido, Musacchio:

No campo da responsabilidade criminal, há problemas importantes para a determinação da responsabilidade individual quando o crime é cometido no contexto de uma empresa para as seguintes características comportamentais: delegação de funções, divisão do trabalho, complexidade dos elos causais, pluralidade de sujeitos intervenientes, tudo isso produz, em suma, uma dissociação entre quem age e quem responde criminalmente, podendo cair o peso da responsabilidade na hierarquia da organização (responsabilidade do proprietário da empresa) ou na sua base (responsabilidade dos representantes).380

Evidentemente, o problema não afeta apenas o caráter terminativo do

processo – a sentença condenatória. Há um problema prévio quanto à própria

instauração da ação penal. Afinal, o art. 41 do CPP já mencionado exige, como

requisito para o recebimento da denúncia, a descrição do fato “com todas as suas

circunstâncias” 381 , o que, evidentemente, envolve a descrição das condutas

praticadas pelo autor do crime.

379 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica..., 2013, p. 135-136. 380 MUSACCHIO, Vincenzo. Derecho penal económico, criminalidade organizada y Union Europea. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 14. Nº 60. São Paulo: Mai/Jun. 2006, p. 221. Tradução livre. Do original: “En el ambito de la responsabilidad penal, se producen problemas importantes para la determinación de la responsabilidad individual cuando el delito es cometido en el contexto de una empresa por las siguientes características del comportamiento: delegación de funciones, división del trabajo, complejización de los nexos causales, pluralidade de sujeitos intervenientes, todo esto produce, en definitiva, una disosiación entre quienes actúan y quienes responden penalmente, pudiendo recaer el peso de la responsabilidad en la jerarquia de la organización (responsabilidad del titular de la empresa) o en la base de la misma (responsabilidad de los representantes).” 381 BRASIL, Código de Processo Penal, 1941.

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A jurisprudência já pôde se manifestar quanto a essa parte do problema.

Knopfholz fez o trabalho de verificar, em pesquisa publicada em 2013, qual o

posicionamento dos Tribunais Superiores quanto à denúncia genérica nos crimes

econômicos. A partir de mais de 200 (duzentos) precedentes dos 20 (vinte) anos

anteriores à publicação, o autor constatou, quanto ao Superior Tribunal de Justiça,

que “a jurisprudência do final do último século foi marcadamente favorável à

denúncia genérica” 382. Ou seja, exceto alguns julgados em sentido oposto, a maioria

dos precedentes admitia o recebimento de denúncia que não descrevesse as

condutas praticadas pelo administrador da empresa por meio (ou no seio) da qual

foram praticados os crimes econômicos. Como paradigma, Knopfholz citou o

acórdão do Recurso em Habeas Corpus nº 906/MG, relatado pelo Ministro José

Cândido, que afirmou o seguinte:

Nos crimes societários é possível o acolhimento da denúncia, mesmo sem a definição da conduta de cada um dos participantes do delito. A instrução processual suprirá essa falha (...). Se o inquérito não foi capaz de detalhar a participação dos réus, não é de recusar-se a inicial que não conseguiu ainda elementos para tal mister. Ora, se a denúncia pode ser, em qualquer tempo, aditada, tudo leva a crer que, oportunamente, a suposta falha pode ser suprida.383

Ao longo do tempo, adverte o autor, “passou-se, no início do novo século, a

aceitá-la com a camuflagem de denúncia ‘mais ou menos’ genérica. E, a partir de

meados dos anos 2000, a maioria das decisões exige a descrição da conduta de

cada denunciado, ainda que de forma não pormenorizada.” 384 São dezenas de

decisões que orientam cada “fase” da jurisprudência do STJ quanto à denúncia

genérica. Como paradigma, para a segunda fase, pode-se citar o acórdão do

Habeas Corpus nº 39.598/SP, de relatoria do Ministro Gilson Dipp385; para a terceira,

vale a menção ao acórdão do HC nº 58.157/ES, de relatoria do Ministro Haroldo

Rodrigues386.

382 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica..., 2013. P. 206. 383 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. RHC 906/MG, da 6ª Turma. Relator: Min. José Cândido. Julgado em 18.12.1990. DJ 18.2.1991. 384 KNOPFHOLZ, op. cit.. P. 206. 385 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. HC 39.598/SP, da 6 Turma. Relator: Min. Gilson Dipp. Julgado em 7.4.2005. DJ 2.5.2005. 386 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. HC 58.157/ES/SP, da 6 Turma. Relator: Min. Haroldo Rodrigues. Julgado em 18.8.2009. DJ 8.9.2009.

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No Supremo Tribunal Federal, embora o estágio atual seja semelhante, o

caminho foi diferente. Knopfholz explica:

A análise histórica da orientação do Supremo Tribunal Federal destoa daquela do Superior Tribunal de Justiça. Tal qual neste, nos primeiros anos após o advento da Constituição da República o entendimento quase unânime era de ser possível a denúncia genérica. Após 2005, houve uma sensível alteração de posicionamento da Suprema Corte (não apenas pela alternância de Ministros, mas, igualmente, pela modificação de entendimento de alguns dos julgadores, tais como o Ministro Gilmar Mendes), repelindo-se as acusações genéricas. Atualmente, em alguns julgados, regride-se para a orientação da possibilidade de denúncia genérica e, em outros, segue-se o atual posicionamento do STJ, segundo o qual são inviáveis as denúncias desprovidas de individualização de condutas, admitindo-se, contudo, que tal individualização prescinde de exaustividade.” 387

Em suma, a primeira parte do problema, ainda que não de forma unânime,

tem sido enfrentada pelos Tribunais Superiores. Evidentemente, porém, a solução

apresentada não parece estar de acordo com as diretrizes do Código de Processo

Penal para o processamento de acusações criminais. Ao admitir a denúncia que não

descreve pormenorizadamente as condutas, ainda que se trate de avanço em

relação ao recebimento, pura e simplesmente, de denúncia genérica, os Tribunais

Superiores têm dando guarida ao conhecimento de acusações que correm o risco de

envolver indivíduos que não praticaram quaisquer condutas criminosas. Embora se

possa sustentar que a descrição não exaustiva é melhor que nenhuma descrição,

trata-se de situação distante do ideal.

A segunda parte do problema da individualização de condutas, porém, não

permite solução intermediária como a que têm adotado os Tribunais Superiores.

Afinal, ou se tem a demonstração inequívoca de autoria delitiva, ou o denunciado

deve ser absolvido. É neste ponto que ganha relevância a colaboração premiada.

Para ilustrar, veja-se a lição de Pereira:

Essa posição privilegiada, numa comparação com pessoa neutra e apartada do cometimento dos delitos, permite inevitavelmente ao colaborador processual o conhecimento interno de alguma situação objetiva, ainda que restrita, embasada em dados e elementos concretos presenciados pelo agente, os quais devem ser explicitados e detalhados já nos contatos iniciais, para permitir a avaliação desses requisitos internos de procedibilidade da colaboração. Ainda que o informante tenha tido atuação esporádica ou mínima na atividade delituosa, poderá esclarecer a natureza de sua participação e todos os detalhes concretos que lhe permitiram o

387 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica..., 2013. P. 220.

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conhecimento sobre os fatos declarados aos órgãos de persecução penal.388

Ora, se o colaborador premiado pode contribuir com a investigação porque se

encontra em posição privilegiada e tem conhecimento interno das peculiaridades

objetivas dos fatos em investigação, podendo detalhá-los às autoridades

investigantes, é possível que, da mesma forma, contribua justamente para

solucionar, nos crimes empresariais, a dificuldade relativa à responsabilização penal

subjetiva. Em tese, no caso dos crimes empresariais, a colaboração premiada

poderia funcionar, não apenas para a mais efetiva punição de crimes, mas também

como instrumento de controle do poder punitivo do Estado, afastando-se as

denúncias e condenações genéricas.

É verdade que o instituto da colaboração premiada não está descrito no

ordenamento em um diploma propriamente voltado ao combate de crimes de

natureza econômica. A lei nº 12.850/2013, nesse sentido, tem objeto pouco

relacionado, sob uma primeira e superficial análise, aos delitos cometidos no âmbito

da empresa, como se vê de sua epígrafe: “define organização criminosa e dispõe

sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais

correlatas e o procedimento criminal”389.

Não obstante, é certo que o conteúdo da lei e os objetivos relacionados à

colaboração premiada evidenciam, após uma leitura mais atenta, a íntima relação

entre o instituto da lei nº 12.850/2013 e os crimes empresariais. Em primeiro lugar,

perceba-se que o conceito de organização criminosa trazido pela lei (art. 1º, § 1º) já

contém, por si só, alguma similitude com o que se vê na criminalidade empresarial:

“considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas

estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas”390.

Dentre os resultados pretendidos com a colaboração premiada, por sua vez,

tem-se aqueles previstos no art. 4º, I e II, quais sejam: “I – a identificação dos

demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por

388 PEREIRA, Frederico Valdez. Valor probatório da colaboração processual (Delação Premiada). Revista dos Tribunais. Ano 98. Vol. 879. Janeiro/2009. 389 BRASIL. Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Disponível em <http://goo.gl/RpXWAh> Acesso em 12 de março de 2018. 390 Ibidem.

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eles praticadas” 391; e “II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de

tarefas da organização criminosa” 392.

Ainda que tais atribuições possam se destinar ao desmantelamento de uma

organização criminosa voltada a crimes comuns, como o tráfico de entorpecentes ou

a extorsão mediante sequestro, há uma superposição de tais características com

aquelas dos crimes cometidos no âmbito da empresa.

E quais seriam essas características? Para responder tal indagação, é

interessante adentrar, ainda que brevemente, à discussão dos critérios para a

definição dos crimes econômicos. Embora não seja o objetivo desta análise verificar

quais são e por que são assim definidos tais delitos, o estudo de pelo menos 3 (três)

dos 4 (quatro) critérios comumente utilizados para a definição da criminalidade

econômica fornecerá material suficiente para indicar de que maneira os crimes

empresariais enquadram-se nos objetivos da colaboração premiada.

Por esse caminho, passa-se, inicialmente, pelo critério criminológico dos

crimes econômicos de Sutherland, que cunhou a expressão dos crimes de colarinho

branco (“white collar crimes”393) e definiu que tais delitos seriam cometidos por

pessoas respeitáveis, de camada social alta, no exercício de sua atividade

profissional e valendo-se de abuso de confiança394. Embora tal critério não seja

suficiente para identificar todos os crimes econômicos justamente porque nem todo

delito econômico é cometido no âmbito da empresa ou por indivíduo de alta classe

social, trata-se de uma primeira – e válida – abordagem. De fato, a história recente

tem demonstrado que inúmeros crimes de grande repercussão – como os

combatidos por meio da Operação Lava Jato – contaram com autores que

preenchem o critério de Sutherland.

O segundo critério que auxilia a compreensão da superposição que há entre

os crimes de natureza empresarial e a colaboração premiada é, justamente, o

critério empresarial (ou “operativo-funcional”395, na denominação de Cervini). Por tal

critério, definir-se-iam os crimes econômicos a partir do local de sua prática, qual

391 BRASIL. Lei 12.850..., 2013. 392 Ibidem. 393 SUTHERLAND, Edwin H. El delito de cuello blanco. Versión completa. Buenos Aires: Bdef, 2009, p. 9. 394 CALLEGARI, André Luís. Direito Penal Econômico e lavagem de dinheiro: aspectos criminológicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 16. 395 CERVINI, Raúl. Derecho penal económico – concepto y bien jurídico. In: DOTTI, René Ariel; PRADO, Luiz Régis (org.). Doutrinas Essenciais – Direito Penal Econômico e da Empresa. Teoria Geral da Tutela Penal Transindividual. Volume 2. São Paulo: RT, 2011, p. 239.

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seja o âmbito da empresa. Embora o critério não seja suficiente para a “correta

delimitação conceitual do Direito Penal Econômico”396, certamente tem valor para a

verificação que se faz neste momento. Afinal, a prática de crimes dentro da empresa

(ou em favor da empresa) traz consigo uma inerente dificuldade probatória, que

pode, de forma hipotética, ser contornada ou minorada por um instituto probatório

como a colaboração premiada.

Tal conclusão desembarca no terceiro critério utilizado para a definição dos

crimes econômicos, que é o que mais importa para a aferição da profunda

proximidade que há entre a colaboração premiada e os crimes empresariais, qual

seja o critério processual. Esse critério define a necessidade da especialização de

conhecimento para o processamento e julgamento dos crimes de natureza

econômica. E a justificativa para essa especialização, que são as dificuldades

inerentes à apuração desses delitos, é o que compatibiliza os crimes empresariais

ao instituto da colaboração premiada. Nesse sentido, vale reproduzir a lição de

Bacigalupo sobre a especialidade que se exige para a descoberta de tais delitos:

A descoberta de crimes econômicos requer técnicas especiais que são condicionadas pela estrutura particular dos fatos que são agrupados sob o título de lei criminal econômica. Não é o mesmo para descobrir o perpetrador de um homicídio que para provar a dívida fiscal de uma empresa com várias subsidiárias para estabelecer se uma ofensa fiscal foi cometida ou se seus saldos são falsos.397

Sánchez Rios sustenta que, “em virtude da complexidade dos instrumentos e

da sofisticação dos meios com que são executados” 398 , os crimes de natureza

econômica “exigem dos órgãos de persecução uma contínua especialização,

acabando por incentivar, sob os auspícios de um Direito Penal eficaz na realização

de uma máxima de combate à impunidade e da recuperação dos ativos”399, certa

396 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica..., 2013, p. 40. 397 BACIGALUPO, Enrique. Órganos judiciales especializados en criminalidad económica en Europa. In: BACIGALUPO, Enrique. Curso de derecho penal económico. 2ª Edição. Madrid; Barcelona: Marcial Pons, 2005, p. 707. Tradução livre. Do original: “El descubrimiento de los delitos económicos requiere técnicas especiales que están condicionadas por la particular estructura de los hechos que se agrupan bajo la rubrica del Derecho penal económico. No es lo mismo descobrir al autor de un homicidio que comprovar la deuda fiscal de una empresa con varias filiales para establecer si se ha cometido un delito fiscal o si sus balances son falsos” 398 SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. A responsabilização criminal individual em estruturas empresariais complexas: uma análise aplicada. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, n. 69, v. 12, 2016, p. 72. 399 Ibidem, p. 72.

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flexibilidade dos “critérios clássicos de imputação e individualização da

responsabilidade penal” 400.

Sob uma perspectiva procedimental, as técnicas especiais podem envolver,

desde um Juízo qualificado para a apuração específica desses delitos, até

instrumentos próprios às dificuldades inerentes dos crimes de natureza empresarial.

Um desses instrumentos é certamente a colaboração premiada. Afinal, sendo os

crimes cometidos no âmbito da empresa – ou, de forma oficial, pela própria empresa

–, ter-se-á uma incrível dificuldade de aferição de autoria, tendo em vista as

características próprias dessa espécie de delito. E a colaboração premiada

certamente terá um papel relevante para o exercício dessa função.

Por fim, é importante apenas mencionar o quarto critério para a identificação

dos crimes econômicos, que é o mais importante para essa função, mas que, nesta

discussão sobre a equiparação da colaboração premiada com os crimes

empresariais, não representa papel de relevo. Trata-se do critério do bem jurídico,

definindo crimes econômicos como aqueles que protejam “o conjunto de normas

jurídicas promulgadas para a regulação de proteção, da fabricação e da distribuição

de bens econômicos”401. Ou, na lição de Martínez-Bujan Pérez:

(...) conceito amplo de crimes econômicos, caracterizado por incluir, por enquanto, infrações que violam direitos legais supraindividuais, de conteúdo econômico que, embora não afete diretamente a regulação legal da intervenção estatal na economia, transcende a dimensão patrimonial puramente individual, sejam de interesse geral de conteúdo ou - pelo menos - interesses de amplos setores ou grupos de pessoas.402

De qualquer forma, é fácil concluir, a partir das características inerentes aos

crimes empresariais e dos critérios acima apresentados que, também sob o prisma

do direito penal empresarial, o instituto em análise possui extrema pertinência.

400 SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. A responsabilização criminal..., 2016, p. 72. 401 SALOMÃO, Heloisa Estellita. Tipicidade no direito penal econômico. In: DOTTI, René Ariel; PRADO, Luiz Régis (org.). Doutrinas Essenciais – Direito Penal Econômico e da Empresa. Teoria Geral da Tutela Penal Transindividual. Volume 2. São Paulo: RT, 2011, p. 159. 402 MARTINEZ-BUJAN PÉREZ, Carlos. Derecho Penal Económico. Parte General. 2ª Edição. Valência: Tirant lo Blanch, 2007, p. 95. Tradução livre. Do original: “(...) concepto amplio de delitos económicos, caracterizado por incluir, por lo pronto, las infracciones vulneradoras de bienes jurídicos supraindividuales, de contenido económico que, si bien no afectan diretamente a la regulación jurídica del intervencionismo estatal en la economia, transcienden la dimensión puramente patrimonial individual, trátese de intereses generales de contenido o trátese – al menos – de interesses de amplios setores o grupos de personas”.

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2.4 A JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL

O direito penal premial não depende, mas certamente se compatibiliza com a

chamada justiça penal negocial – e essa pode se apresentar como um dos

fundamentos processuais da colaboração premiada.

O processo penal brasileiro historicamente se sustenta sobre alguns

princípios essenciais (a maioria dos quais está descrita no primeiro capítulo deste

estudo), mas trata-se, sem dúvida, de uma forma de justiça contenciosa, na qual, em

regra, o Estado formula uma acusação (por intermédio do Ministério Público) em

face de um particular e a submete à apreciação do Poder Judiciário. Há, portanto,

uma relação de conflito que será resolvida por uma sentença.

O princípio da legalidade – no sentido da obrigatoriedade já referida no

primeiro capítulo – era o que tradicionalmente regia o processo pátrio e impunha ao

órgão acusatório o oferecimento da denúncia quando diante de crime de natureza

pública. A justiça negocial, em sentido oposto, relaciona-se com o princípio da

oportunidade que, na qualidade de antagonista da obrigatoriedade, não implica o

necessário ajuizamento de demanda criminal e possibilita outras formas de solução

das controvérsias dessa natureza. Segundo Vasconcelos403, a consensualidade no

processo penal é uma manifestação do princípio da oportunidade, na medida em

que “para que se efetive a decisão tomada impõe-se que o órgão acusador deixe de

sustentar a persecução penal até seu desfecho habitual.”404

Em outras palavras, justiça penal negocial, em tese, teria a função de alterar

a relação de conflito que orienta o processo penal e buscaria fornecer “soluções

dialogadas ou consensuais no processo penal em contraposição às formas coativas

e verticalizadas de resolução dos casos criminais”405. Vasconcelos resume bem os

modelos existentes, no Brasil e no Direito comparado (alguns dos quais serão vistos

adiante), de justiça negocial ou consensual:

403 Que discute profundamente o tema em VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha e Justiça Criminal Negocial. Análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015. 404 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha e Justiça Criminal Negocial. Análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015, p. 53. 405 GIACOMOLLI, Nereu José; VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Justiça Criminal Negocial: crítica à fragilização da jurisdição penal em um cenário de expansão dos espaços de consenso no processo penal. Revista Novos Estudos Jurídicos – Eletrônica. Vol. 20, nº 3, set-dez 2015, p. 1113.

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Desse modo, incluem-se em tal categoria, por exemplo, os institutos da barganha, da transação penal, da suspensão condicional do processo brasileiro e português, os procedimentos abreviados latino-americanos, a plea bargaining estadunidense, o absprachen alemão, o patteggiamento italiano, os procedimentos por decreto ou monitórios, entre diversos outros.406

No Brasil, o fundamento constitucional da justiça penal negocial está no já

mencionado art. 98, I, da Constituição Federal, que prevê expressamente a

possibilidade de conciliação e transação nas infrações de menor potencial ofensivo

no âmbito dos Juizados Especiais Criminais.

Atualmente – ou até a discussão sobre a colaboração premiada –, a lei dos

Juizados Especiais (Lei nº 9.099/95) seria a que possuiria um “microssistema”407

negocial, prevendo 4 (quatro) institutos despenalizadores que cumprem essa função,

quais sejam a composição civil, a necessidade de representação do ofendido nos

crimes de lesão corporal leve e culposa, a transação penal e a suspensão

condicional do processo408, que funcionariam como instrumentos do exercício dessa

justiça penal negocial. Com efeito,

a ação penal, segundo o Direito brasileiro, não é o único instrumento por meio do qual um direito violado é tutelado, tanto que na transação penal ou mesmo no acordo civil com efeitos penais tem-se uma fórmula de tutela alternativa, fundada nas vontades da parte.409

A composição civil, prevista no art. 74, parágrafo único da Lei nº 9.099/95,

envolve uma audiência preliminar, na qual as partes poderão se conciliar quanto aos

fatos em discussão. Em se tratando de crime de ação penal privada ou pública

condicionada à representação, “o acordo homologado acarreta renúncia ao direito

de queixa e representação” 410 . A representação do ofendido, enquanto medida

despenalizadora, é, na realidade, uma ampliação do rol dos crimes que se sujeitam

à representação, incluindo-se a lesão corporal leve e a culposa, conforme o art. 88

da Lei nº 9.099/95 – trata-se, portanto, não de um instrumento negocial introduzido

406 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha..., 2015, p. 56. 407 GIACOMOLLI, Nereu, op. cit., 2015, p. 1113. 408 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 630. 409 BECHARA, Fábio Ramazzini. Colaboração premiada segundo..., 2012, p. 5. 410 BRASIL. Lei nº 9.099, 1995.

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pela Lei dos Juizados Especiais, mas de uma ampliação de um conceito

previamente existente.

A transação penal, por sua vez, corporifica a possibilidade de celebração de

acordo entre a parte e o Ministério Público para a aplicação direta de restrição de

direitos para crimes de menor potencial ofensivo (com penas de até dois anos),

como consta do art. 76 da Lei nº 9.099/95, enquanto que a suspensão condicional

do processo traduz a possibilidade de sobrestamento do feito, após o oferecimento

de denúncia, por prazo de dois a quatro anos, quando cumpridos os requisitos do

art. 89 da Lei nº 9.099/95.

Como se vê, a justiça penal negocial brasileira é – ou vinha sendo até a

colaboração premiada – um conjunto de poucas medidas processuais voltadas à

conciliação e à negociação no âmbito dos Juizados Especiais Criminais. O número

de crimes e contravenções abrangidos pelas hipóteses negociais da Lei nº 9.099/95

(todos aqueles com pena mínima inferior a um ano de prisão), porém, torna inegável

o fato de que a justiça negocial brasileira tem ampla aplicabilidade prática.

Embora haja ampla discussão acerca de seu efetivo caráter negocial411 e sua

conformação constitucional, o que será mais detalhadamente analisado no quarto

capítulo deste estudo – com enfoque na colaboração premiada, é verdade –, é certo

que há uma correspondência entre tais institutos “despenalizadores” e seu

permissivo constitucional, já que é literal a previsão da transação no texto da

Constituição de 1988 (havendo, em contrapartida, um conflito com a sistemática do

Código de Processo Penal, que, por ser anterior à Constituição, não foi atualizada

para essa dinâmica consensual).

Há, porém, uma tendência de expansão dessa justiça no Brasil412, que se faz

justamente por meio da colaboração premiada e outros institutos e previsões

legislativas relacionadas, como os já citados “Acordo de Não-Persecução Criminal”,

instituído pela Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público e

a ampliação da transação penal para crimes mais graves, conforme previsto no

Projeto de Lei nº 8.045/2010. Sob essa perspectiva, portanto, parece ser evidente

411 Como advertem VASCONCELLOS (Barganha..., 2015, p. 57) e PRADO (Transação Penal, 2015, p. 283). 412 Conforme LOPES JR, Aury; ROSA, Alexandre de Morais. Com delação premiada e pena negociada, Direito Penal também é lavado a jato. Conjur, 24 de julho de 2015. Disponível em <http://goo.gl/cACxRe> Acesso em 12 de março de 2018.

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que a justiça negocial funciona como um fundamento, que se pode chamar

“processual”, para a colaboração premiada.

A discussão teórica sobre a justiça penal negocial será retomada no quarto

capítulo, quando se voltará a tratar da transação e da suspensão condicional do

processo à luz da Constituição, oportunidade em que se confrontarão os princípios

do primeiro capítulo com o instituto da colaboração premiada. Não obstante, é

importante notar que esses três institutos de “transformação do processo penal em

instrumento eficaz de concretização do poder punitivo estatal”413 assimilam-se, de

forma bastante evidente, ao instituto norte-americano no plea bargain e ao

pentitismo italiano (ou patteggiamento), que serão sucessivamente analisados a

seguir.

2.4.1 A JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

Embora inserido em um sistema processual caracterizado pela “ampla

discricionariedade de atuação do representante do Ministério Público

(prosecutor)”414, que exerce efetivamente uma função de “dono do processo” e pode

dele dispor – o que é entendido por autores como Paschoal como um “absoluto

arbítrio com relação à ação penal” 415 , em conflito com os princípios da

obrigatoriedade e indisponibilidade acima estudados –, o plea bargain é a principal

fonte dessa espécie de mecanismos de solução consensual de conflitos penais.

Marques resume bem como é o processo penal, em geral, nos Estados

Unidos da América (considerando-se que cada um dos cinquenta Estados norte-

americanos possui, para os crimes de sua competência, suas peculiaridades

processuais). Os crimes mais graves (felonies), que são punidos com penas

superiores a um ano de prisão, são processados sob uma acusação formal

denominada indictment. As contravenções e crimes com penas inferiores são

processados por meio de peça chamada information416. Ramos acrescenta, ainda, a

queixa (complaint) às formas de instauração de persecução penal, resumindo-a

413 GIACOMOLLI, Nereu, Justiça Criminal Negocial..., 2015, p. 1110. 414 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha..., 2015, p. 60. 415 PASCHOAL, Janaína Conceição. Breves Apontamentos Relativos ao Instituto do ‘Plea Bargaining’ no Direito Norte-Americano. Revista do Curso de Direito do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – UniFMU, ano XV, nº 23, 2001, p. 115. 416 MARQUES, Antonio Sergio Peixoto, A colaboração premiada..., 2014, p. 35.

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como um mero “pedido ao tribunal para que determine a prisão de alguém pela

prática de crime”, frisando que “geralmente, é utilizada para iniciar a persecução,

mas não é suficiente para iniciar a fase de adjudicação”.417

De todo modo, no caso do indictment, a acusação é submetida a um júri

(Grand Jury) para uma espécie de juízo prelibatório. Caso se entenda pelo

prosseguimento da acusação, há uma audiência prévia de julgamento, chamada de

arraignment418 “na qual o acusado será indagado acerca da sua culpa ou inocência

(plea of guilty or not guilty)”419. Há uma terceira manifestação que cabe ao acusado,

“não contestar as imputações (nolo contendere)” 420 , prevista em “metade dos

estados e na jurisdição federal” 421 e por meio da qual “o acusado não contesta as

acusações, mas também não reconhece sua culpabilidade”422. Segundo Marques, é

naquele “momento que se fala da plea bargaining” 423. No caso dos crimes de menor

punição, o processo dispensa o juízo de admissibilidade perante o júri, que é

realizado por magistrado, sendo a dinâmica do plea bargaining a mesma.

Esclarece-se que, embora tenha vigência no direito norte-americano o

princípio da oportunidade (apenas se obrigando o Promotor perante seu

eleitorado424 ou o agente político que o nomeou, de acordo com cada Estado), não

se ignora naquele país o devido processo legal, em sua tradução literal do due

process of law. Há uma diferença marcante, porém, para o nosso sistema. Essa

primeira oportunidade de falar que tem o acusado, quando deverá se posicionar

como culpado ou inocente (guilty ou not guilty) é o momento em que se atende ao

due process of law: quando o denunciado se posiciona quanto à sua culpa, para

assumi-la ou não, abre-se a oportunidade para que ele exija o cumprimento de seu

direito a um justo julgamento425. Caso se apresente como inocente, terá o direito ao

julgamento; caso contrário, poderá ser punido de imediato, “sem o processo de

averiguação judicial dos fatos”426.

417 RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de Processo Penal norte-americano. São Paulo: RT, 2006, p. 187. 418 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha..., 2015, p. 62. 419 MARQUES, op. cit., p. 35. 420 VASCONCELLOS, op. cit., p. 62. 421 Ibidem, p. 62. 422 Ibidem, p. 62. 423 MARQUES, op. cit., 2014, p. 36. 424 PASCHOAL, Janaína Conceição. Breves Apontamentos..., 2001, p. 115. 425 VASCONCELLOS, op. cit., p. 61-62. 426 Ibidem, p. 62.

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Esse ponto é fundamental porque, como lembra Paschoal, os acordos de plea

bargaining dependem da “expressa assunção de culpa por parte do acusado”427, a

partir da qual identifica-se a renúncia do direito ao julgamento.

Sob uma leitura mais simplista, pareceria a forma mais adequada de se

conduzir um sistema processual penal: aquele que se diz inocente pode ser

submetido a um julgamento (e nele deverá ter seu direito de defesa integralmente

observado); quem, desde logo, considera-se culpado, deve livrar o Estado (e a si

próprio) dos custos inerentes à condução de um processo fadado à condenação

criminal.

No entanto, a realidade do processo penal dos Estados Unidos da América é

extremamente mais complexa. É que a cultura judicial daquele país envolve a

celebração de acordos de barganha como regra, havendo a indicação de que, desde

o século XIX, um percentual muito baixo (inferior a dez por cento) é levado a

julgamento428.

Tratando-se de um sistema desde sempre orientado a celebrar acordos e não

submeter acusados a julgamento, não é exagero afirmar a existência de uma cultura

de seus operadores para que induzam seus participantes a agirem dessa forma. E

isso parecer ocorrer nos Estados Unidos. Um grande exemplo disso é o estudo

realizado por Heumann no sistema processual do Estado de Connecticut nos anos

70, por meio do qual identificou que o volume de causas e a cultura dos promotores,

juízes e advogados levavam os acusados a aceitar o acordo mesmo quando talvez

tivessem base para um veredito absolutório. Segundo o que o autor identificou,

constatou-se a existência de um risco para os acusados em geral de que, caso não

colaborassem com a Corte e fossem condenados, suas penas poderiam ser

consideravelmente mais altas429.

Os riscos, naquele estudo, não se limitavam aos acusados. Também

advogados e promotores acabavam por se sujeitar à celebração de acordos por

“sanções” informais que acabariam por ser impostas pelo próprio sistema,

independentemente do mérito da causa. Aos advogados que insistiam em conduzir o

processo de forma combativa (por meio de petições denominadas motions), sem o

427 PASCHOAL, op. cit., p. 115 428 Nesse sentido, HEUMANN verificou que, entre 1880 e 1954, no Estado norte-americano de Connecticut teve uma media de 8,7% de casos levados a julgamento (HEUMANN, Milton. Plea Bargaining. The Experiences of Prosecutores, Judges, and Defense Attorneys. Chicago: University of Chicago Press, 1975 [reimpressão de 25 de maio de 2017], p. 28). 429 Ibidem, p. 73.

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intuito previamente deliberado de transacionar, não eram incomuns reprimendas

pessoais caracterizadas pela falta de abertura dos promotores para negociações

futuras ou uma má-fama perante os juízes. Aos promotores, havia sempre o risco de

que, em razão do grande volume de processos, da pouca estrutura que tinham e das

peculiaridades de cada caso, não conseguissem produzir as provas para um

julgamento bem-sucedido. Esse risco ensejava o oferecimento, às vezes nos

momentos anteriores ao julgamento, de acordos bastante generosos (cabendo ao

experiente advogado o estabelecimento do momento em que aceitaria a proposta).

O seguinte excerto ilustra bem a dinâmica da Corte estudada:

Quando os promotores atribuem uma moção a esta categoria, eles estão inclinados a enfatizar as sanções que possuem e a enfatizar que a defesa deve tomar o acordo, ou então. Se, no entanto, a moção ou o julgamento são considerados sérios, então os promotores reconhecem que podem ter problemas para provar o caso, e eles estão inclinados a "adoçar" suas ofertas e enfatizar seus poderes para recompensar o réu cooperativo. 430

Perceba-se, portanto, que a dinâmica do processo penal norte-americano, ao

menos pelo que se extrai do percuciente estudo do Estado de Connecticut, não é tão

simples quanto guilty (culpado) ou not guilty (inocente) parece indicar. Nem sempre

ao inocente é aconselhado o julgamento por seu advogado e nem sempre ao

culpado é, desde logo, apresentado um acordo, bom ou ruim. Mais importante, nem

sempre depende da culpa do acusado o procedimento da negociação. As

peculiaridades dos agentes, o volume de causas, o perfil do acusado e a conduta de

seu advogado acabam adotando um papel relevante na compatibilização da causa

com a barganha.

Exemplos mais recentes dessa dinâmica estranha ao modelo processual

brasileiro podem ser extraídos das mídias populares. O caso de Kalief Browder é um

deles. Trata-se de um estudante de ensino médio do Estado de Nova Iorque que, a

partir de 2010, permaneceu encarcerado por três anos – boa parte desse tempo em

solitária – no presídio de Rikers Island/NY, um dos mais violentos do pais. Browder

era acusado de roubar uma mochila e se negou, em inúmeras oportunidades, a

celebrar um acordo com o promotor – ele simplesmente não aceitava assumir uma

430 HEUMANN, Milton. Plea Bargaining…, 1975, p. 74. Tradução livre. No original: “When prosecutors assign a motion to this category, they are inclined to stress the sanctions they possess and to emphasize that the defense should take the deal, or else. If, however, the motion or trial is perceived as serious, then the prosecutors recognize that they may have trouble proving the case, and they are inclined to ‘sweeten’ their offers and emphasize their powers to reward the cooperative defendant.”

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culpa que não era, a princípio, sua. Como sua família não pôde inicialmente pagar

sua fiança (tendo ele recebido sanções disciplinares ao longo de seu duro período

no cárcere que impediram a liberdade provisória), o caso somente foi encerrado

quando o Promotor desistiu de promover a ação, após inúmeras audiências, por não

mais encontrar a vítima do suposto crime. Browder sofreu sérios danos psicológicos

que o levaram ao suicídio dois anos depois, em 2015.431

Independentemente dos problemas apontados, a discussão do plea bargain

depende da renúncia do acusado ao seu direito ao julgamento. Nesse momento,

“nenhuma outra diligência é adotada com o objetivo de confirmar a sua culpa”432,

sem a oitiva de testemunhas ou a produção de provas periciais, mantendo a

confissão, em alusão que Paschoal faz à Inquisição, como a “rainha das provas”433.

O acusado será condenado a partir do estabelecimento da sua responsabilidade

criminal pessoal e o processo definitivamente encerrado. Ramos, porém, insiste que

se trata de um direito do acusado reconhecer-se como culpado434 – assim como é

seu direito submeter-se a um julgamento.

A assunção da culpa, com a declaração de guilty ao questionamento do juiz

na audiência de arraignment, pode-se dar a partir de três formas distintas, como

bem explica Vasconcellos:

Nesse diapasão, constumam-se apontar três formas básicas em que tal ato pode se caracterizar: 1) voluntária ou não influenciada é a situação em que o réu opta por reconhecer sua culpa diante do lastro probatório amplamente desfavorável, por remorso ou ao não encontrar vantagem nenhuma em negá-la, ou seja, não há qualquer influência direta ou indireta de outros atores processuais; 2) estruturalmente induzida ou ‘unilateral’ se dá quando a lei estabelece uma pena mais severa para quem insiste no julgamento ou porque há o costume de ocorrer um tratamento mais leniente de promotores e juízes àqueles que o renunciam, ainda que não acordado formalmente; e, 3) negociada é aquela em que as tratativas se dão de modo explícito, visando à renúncia do processo, abordando o delito ou a pena a ser imposta, é a plea bargaining em essência.435

A negociação entre o acusado e o Promotor, como bem pontua Marques,

pauta-se em “ampla discricionariedade, permitindo-lhe negociar a pena (sentence

431 TIME: The Kalief Browder Story. Criação por Julia Willoughby-Nason. Dirigido por Jenner Furst. Bronx, Cidade de Nova Iorque, Estado de Nova Iorque. Distribuído por Viacom Entertainment Group. Série documental de seis episódios de quarenta e cinco minutos exibida na internet pela Netflix. Disponibilizada em 1º de março de 2017. Acesso em 25 de julho de 2017. 432 PASCHOAL, Janaína Conceição. Breves Apontamentos..., 2001, p. 117. 433 Ibidem, p. 117. 434 RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso..., 2006, p. 188. 435 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha..., 2015, p 63-64.

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bargaining) ou a própria imputação (charge bargaining)” 436. No primeiro caso, há um

acordo para que o promotor sugira ao Juiz que aplique uma “pena mais branda do

que a que sugeriria se o réu escolhesse ser julgado”437. No segundo, pode haver a

própria desistência do processo em troca da declaração de culpa ou a substituição

da imputação para uma infração menos grave, à qual se comine pena mais branda.

Nesse caso, restabelecida a imputação, limitar-se-á o juiz, já formada a culpa, a

aplicar a pena correspondente ao que se estabeleceu no acordo.

A regra, nos Estados Unidos, é a ampla discricionariedade do Promotor, que,

em geral, verá o acordo ser homologado pelo juiz. Já se verificaram, no entanto,

situações em que o que fora acordado acabou não sendo observado no pedido da

acusação em razão da troca do promotor antes da prolação da sentença. No caso

concreto (Santobello v. New York), como ilustra Hendler, a Suprema Corte dos

Estados Unidos não aceitou o pedido de pena máxima do novo acusador e

determinou a devolução do caso à origem, para que, ou o Tribunal reconhecesse o

benefício acordado, ou o réu retirasse sua declaração de culpa, ou, por fim, um novo

juiz estabelecesse a pena438.

Há, naturalmente, hipóteses em que o poder judiciário poderá exercer um

controle sobre os acordos firmados entre as partes e verificar se atendem a

“requisitos mínimos de ética profissional” 439 (embora Ramos reconheça que, na

prática, “o pedido de barganha é inteiramente dominado pelas partes” 440). Como

ressalta Paschoal, porém, as “primeiras decisões que, na década de 70,

definitivamente declararam o instituto do ‘plea bargaining’ constitucional (...)

consignaram que o acordo entre réu e acusação é válido desde que inteligente e

voluntário” 441 . A rigor, um acordo poderá ser rejeitado quando o acusado for

indevidamente coagido (ressaltando-se que certa medida de coação é “inerente à

justiça negociada, diante da inevitável ameaça de uma punição mais severa se

houver recusa e exercício do direito ao julgamento”442) ou quando não tiver plena

consciência das condições e consequências da celebração da plea bargaining.

436 MARQUES, Antonio Sergio Peixoto. A colaboração premiada..., 2014, p. 36. 437 PASCHOAL, Janaína Conceição. Breves Apontamentos..., 2001, p. 118. 438 HENDLER, Edmundo S. Derecho Penal y Procesal Penal de los Estados Unidos. Buenos Aires: Ad Hoc, 2006. P. 199. 439 RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso..., 2006, p. 188. 440 Ibidem, p. 188. 441 PASCHOAL, op. cit. , 2001, p. 121. 442 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha..., 2015, p. 91.

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Quanto ao segundo ponto, cabe uma observação extremamente importante

de Paschoal: embora a “inteligência” seja requisito de validade para a homologação

do acordo, a acusação não está obrigada a fornecer à defesa todas as informações

que estejam sob sua posse e que possam ser favoráveis ao acusado (no que se

denomina disclosure). Tal conduta é obrigatória durante o julgamento, mas, no caso

da barganha, há renúncia ao direito ao julgamento, de modo que não se exige do

acusador o fornecimento de elementos de prova ao acusado443.

Com efeito, é plenamente possível que seja celebrado um acordo sem que o

acusado tenha conhecimento de que elementos de prova colhidos pela acusação

poderiam lhe beneficiar durante o julgamento. Paschoal, em razão disso, aponta que

a dinâmica de negociação, em toda sua amplitude, também permite o “blefe”444. De

qualquer forma, a interpretação que se dá aos requisitos de homologação é pacífica

no sentido de que o acusado deve ter conhecimento “das acusações, ou seja, da

natureza das imputações a ele responsabilizadas, além do esclarecimento de quais

fatos precisam ser provados para autorizar um veredito condenatório”445. Ademais,

precisa compreender “as consequências da barganha, especialmente da pena a ser

imposta e dos seus possíveis reflexos”446, assim como os direitos que são objeto de

renúncia com a celebração do acordo.

Mais adiante, após a análise da Lei nº 12.850/2013 (no próximo capítulo),

será traçado um breve paralelo entre os institutos do plea bargaining e da

colaboração premiada. Antes, porém, é relevante analisar o modelo de colaboração

da Itália, o pentitismo.

2.4.2 A JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL NA ITÁLIA

A compreensão do plea bargaining seria suficiente para uma análise da

colaboração premiada à luz do Direito comparado. Afinal, a impressão geral que se

tem é a de que o Processo Penal brasileiro tem sofrido um processo de

443 PASCHOAL, Janaína Conceição. Breves Apontamentos..., 2001, p. 121. 444 Ibidem, p. 121. 445 VASCONCELLOS, op. cit., p 93. 446 Ibidem, p. 93.

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americanização, na expressão que Barroso 447 utiliza para tratar do direito

constitucional e que Reale Junior, como já dito acima, indica quanto à transação

penal. No entanto, é importante analisar o modelo italiano da justiça negocial,

justamente em razão da similaridade entre os sistemas penais e processuais dos

respectivos países e dos contextos em que passaram a ser utilizados.

A colaboração premiada na Itália foi adotada mais recentemente que nos

Estados Unidos e teve por objetivo central o desmantelamento da máfia, que, a

partir do final dos anos sessenta, deu causa a uma efetiva guerra com a sociedade,

com a profusão de atos de terrorismo e extorsão mediante sequestro448 que criaram

“uma sensação de desconfiança nas instituições democráticas” 449. Ainda que, em

um primeiro momento, algumas estratégias diversas à colaboração tivessem sido

implementadas, como a “criação de órgãos investigativos especializados (...), a

utilização de ‘processo investigativo’” 450 e o “aumento das sanções para delitos

cometidos por organizações criminosas” 451, tornou-se

claro para os operadores do setor que o ataque às organizações só seria eficaz com o rompimento do vínculo associativo através de normas especiais que, por um lado, agravassem as sanções dos autores dos crimes e, por outro, possibilitassem a concessão de atenuante a quem, dissociando-se dos cúmplices, ajudasse as autoridades a evitarem consequências dos crimes, ou colaborasse na elucidação dos fatos, ou na identificação dos demais agentes.452

O combate à criminalidade organizada em torno de máfias se deu, na

expressão de Bittar, em um “regime duplo binário”453, que envolvia, de um lado, o

endurecimento das penas já existentes e a criação de novos crimes específicos, e,

de outro, o estabelecimento de benefícios para aqueles que resolvessem colaborar.

Uma série de leis foi criada, entre os anos 70 e 90, para o combate à criminalidade

organizada mediante, entre outros fatores, mecanismos premiais aos réus

colaboradores - por exemplo, a Lei nº 497, de 14 de outubro de 1974, que criou

uma atenuante para o partícipe de crime de extorsão mediante sequestro que

447 BARROSO, Luís Roberto. A americanização do direito constitucional e seus paradoxos: teoria e jurisprudência constitucional no mundo contemporâneo. Revista Interesse Público – IP. Belo Horizonte, ano 12, nº 59, jan./fev/ 2010. 448 BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada..., 2010, p. 14. 449 Ibidem, p. 14. 450 Ibidem, p. 14. 451 Ibidem, p. 15. 452 Ibidem, p. 15. 453 Ibidem, p. 15.

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auxiliasse a vítima a ser libertada454; a Decreto-lei nº 625, de 15 de dezembro de

1979, que criou uma substituição de pena para o colaborador em crimes cometidos

com “finalidade de terrorismo ou de eversão da ordem democrática” 455 ; a Lei

Rognoni-La Torre instituiu o crime de associação mafiosa no art. 416-bis do Código

Penal Italiano456; e as Leis nº 82, de 14 de março de 1991457, e 203, de julho de

1991 458 , que criaram uma série de benefícios, tanto penais (com relevantes

reduções459) e penitenciários (com medidas alternativas à prisão460, inclusive após a

condenação), quanto de proteção pessoal, dentre várias outras.

Criou-se, assim, o chamado pentitismo, por meio do qual se buscava contra-

golpear a “omertà”, que é o código de silêncio que impera entre os integrantes das

organizações criminosas mafiosas461. O nome do mecanismo deriva do fato de que

o colaborador italiano passa a ser chamado de pentito, termo análogo à

denominação dada ao arrependido que colaborava com a Inquisição.

O uso do pentitismo se deu, em especial, no “maxiprocesso”462 instaurado em

1986 e que visava a apuração de crimes cometidos pela máfia Siciliana (Cosa

Nostra)463. Encabeçado pelos Juízes instrutores Giovanni Falcone e Paolo Borsellino

(que acabaram, assim como outros agentes públicos, assassinados por mafiosos em

decorrência da investigação), o grande processo contou com um ilustre colaborador,

454 ITÁLIA. Legge 14 ottobre 1974, nº 497. Disponível em: <http://goo.gl/P41KXR> Acesso em 1º de maio de 2018. 455 ITÁLIA. Decreto-legge 15 dicembre 1979, nº 625. Disponível em: <http://goo.gl/iaD4Fp> Acesso em 1º de maio de 2018. 456 ITÁLIA. Legge 13 settembre 1982, nº 646. Disponível em: <http://goo.gl/xqPsVu> Acesso em 1º de maio de 2018. 457 ITÁLIA. Legge 15 marzo 1991, nº 82. Disponível em: <http://goo.gl/teYJnh> Acesso em 1º de maio de 2018. 458 ITÁLIA. Legge 12 Iuglio 1991, nº 203. Disponível em: <http://goo.gl/W33jBC> Acesso em 1º de maio de 2018. 459 Como assevera Musco: “La atenuación de la pena es bastante relevante: la pena de cadena perpetua es sustituida por la reclusión de doce a veinte años y las otras penas se rebajan de un terceio a la mitad.” (MUSCO, Enzo. Los colaboradores de la justicia entre el pentitismo y la calumnia: problemas y perspectivas. Revista Penal, Valencia, nº 2, p. 35-47, jul. 1998. Disponível em: <http://201.23.85.222/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=23380>. Acesso em 12 de março de 2018. 460 Musco exemplifica: “el acogimiento a preba bajo el control del servicio social, así como las autorizaciones y la detención domiciliaria. A todos aquellos que colaboran con la justicia – incluso si la colaboración se presta después de la condena – pueden concedérseles los beneficios penitenciarios, de otro modo prohibidos por el artículo 4 bis, apartado 1, parte primera, del ordenamiento penal.” (Ibidem, p. 37) 461 MARQUES, Antonio Sergio Peixoto, A colaboração premiada..., 2014, p. 37. 462 BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada..., 2010, p. 17. 463 CHEMIM, Rodrigo. Mãos Limpas e Lava Jato. A corrupção se olha no espelho. Um guia comparativo das duas maiores investigações de crimes de corrupção sistêmica na Itália e no Brasil. Porto Alegre: CDG, 2017. P. 52.

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o “chefão mafioso Tommaso Buscetta”464, que havia sido capturado no Brasil em

1982 e, posteriormente, extraditado à Itália. Centenas de réus envolvidos com a

máfia foram julgados e condenados em razão das provas obtidas por aquela (e

outras) colaborações.

Alguns anos depois, em 1992 – já em curso o que Musco chama de “um

sistema orgânico de incentivos para a colaboração e a proteção para os

colaboradores e seus familiares em risco”465, foi instaurada a chamada Operação

Mãos-Limpas (Mani Pulite), sob a liderança do Procurador da República Antonio Di

Pietro, que apurou esquema de corrupção massivo, envolvendo políticos, partidos

políticos e petroleiras (em dinâmica similar à verificada na Operação Lava Jato,

como é profundamente analisado no estudo de Chemim466) e também obteve grande

êxito em relação às condenações.

Em 2001, como explica Bittar, o regime de colaboração premiada da Itália foi

profundamente reformado, visando a corrigir “alguns aspectos críticos e distorções

que a práxis demonstrava na aplicação das normas referentes aos colaboradores da

justiça e, ainda, para se adequar ao princípio do ‘justo processo’”467, o que foi feito

por meio das Leis nº 45, de 13 de fevereiro de, e 63, de 1º de março daquele ano.

As alterações promovidas que mais importam, salvo melhor juízo, para o presente

estudo são as seguintes: a) “para garantir a transparência na gestão dos

colaboradores”468, criou-se o chamado “verballe illustrativo", que é basicamente o

termo formal (“resumo verbal e documentação integral mediante registro fonográfico

ou audiovisual”469 ) que encerra o âmbito de declarações do colaborador e que

deverá ser levado ao contraditório – utilizado para evitar as mudanças de versões do

pentito que não estivesse satisfeito com os benefícios obtidos; b) a limitação ao

direito ao silêncio nos debates em juízo, permitindo-se ao colaborador que apenas

se calasse quanto a fatos que também o implicassem; c) “distinção (e

independência) entre o momento tutório (medidas de proteção concedidas pela

Administração) e os momentos premiais (atenuantes da pena e benefícios

464 CHEMIM, Rodrigo. Mãos Limpas..., 2017, p. 52. 465 MUSCO, Enzo, Los colaboradores..., 1998, p. 36. Tradução livre. Do original: “un sistema orgánico de incentivos para la colaboración y la protección para los colaboradores y sus familiares de riesgo”. 466 CHEMIM, op. cit., 2017. 467 BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada..., 2010, p. 20. 468 Ibidem, p. 21. 469 Ibidem, p. 21.

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penitenciários concedidos pelo juiz)” 470 , para que apenas o colaborador preso

pudesse “gozar antecipadamente dos benefícios penitenciários (se condenado) e de

um tratamento cautelar de favor (se ainda acusado ou condenado com a sentença

não definitiva)”471. Quanto a esse último aspecto, os benefícios de alteração da

situação prisional passaram a somente ser concedidos, ou quando o colaborador já

tivesse cumprido “um certo período da pena”472 (em caso de réu condenado), ou

“quando o juiz verifica que não subsiste atual ligação entre o colaborador e a

criminalidade mafiosa ou terrorista” (em caso de custodia cautelar)473.

O modelo italiano de justiça negocial, porém, não é imune a severas críticas.

Davigo, que foi um dos procuradores da força-tarefa da Operação Mãos-Limpas e

hoje é presidente da seção criminal da Corte Suprema de Cassação italiana,

compara o instituto da delação premiada italiana com o modelo do plea bargaining

norte-americano, evidenciando notáveis diferenças práticas entre ambos. Segundo o

autor, no sistema dos Estados Unidos da América, que é “’realmente’ acusatório”474,

a declaração de culpa pelo autor do fato traz uma segurança do cumprimento da

pena que não existe na Itália. Nesse país, há um conflito entre os julgamentos

decorrentes de barganha e as garantias constitucionais que asseguram que “contra

os julgamentos e contra as disposições restritivas da liberdade pessoal, o recurso ao

Supremo Tribunal é sempre admitido”475. Com isso, cria-se um risco de prescrição

mediante uma negociação que remova “o máximo possível o dia em que a sentença

será executada”476.

Em suas conclusões, Davigo afirma que “os países anglo-saxões, pelos quais

somos inspirados, são caracterizados por fortes veias calvinistas, mais sensíveis à

expiação do que ao perdão, portanto, países com ética rigorosa e aparato judicial

intransigente” 477. Na Itália, porém, por se tratar de um país de “tradição católica,

470 BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada..., 2010, p. 23. 471 Ibidem, p. 24. 472 Ibidem, p. 24. 473 Ibidem, p. 25. 474 DAVIGO, Piercamillo; SISTI, Leo. Processo All’Italiana. Bari: Editori Laterza, 2015 (edição digital). Tradução livre. Do original: “Torniamo agli Stati Uniti, dove il processo è ‘veramente` acusatório.” 475 Ibidem. Tradução livre. Do original: “contro le sentenze e contro I provvedimenti limitativi della libertà personale è sempre ammesso il ricorso por Cassazione”. 476 Ibidem. Tradução livre. Do original: “il più possible il giorno in cui la sentenza sarà eseguita”. 477 Ibidem. Tradução livre. Do original: “I paese anglosassoni, ai quali ci si è inspirati, sono caratterizzati da forti venature calviniste, più sensibili all’espiazione che al perdono, quindi paesi con etiche rigorose e apparato giudiziario intransigente”.

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mas secularizado” 478 com efeitos devastadores, criou-se sistema de “indulgência

plenária” 479, que permite anistias, mas dispensa o arrependimento, causando “uma

justiça muitas vezes branda” 480. Enquanto, nos Estados Unidos, o indivíduo que

aceita a barganha, que sabe que pode ser condenado pelo Juiz e considera

conveniente aproveitar de imediato as vantagens, não teria interesse em perder

tempo, na Itália, ocorreria exatamente o oposto, com a realidade da prescrição

sempre presente481.

Por fim, Davigo considera que “um processo acusatório é incompatível com o

processo criminal obrigatório, o que implica que o juiz controla a atividade do

Ministério Público e deve compensar sua inação”482. Por outro lado, acrescenta o

autor, “a ação criminal discricionária implica que o costume público impede que

aqueles que são investidos de responsabilidades públicas usem essa discrição de

maneira não-imparcial”483.

Como alertou Chemim em seu estudo comparativo entre as operações Lava

Jato e Mãos Limpas, há comparativos (bons e ruins) entre os sistemas brasileiro e

italiano que não podem ser ignorados. Possivelmente, a consideração final de

Davigo seja indicativa de um problema que também se possa verificar no Brasil – e

que será estudado adiante.

478 DAVIGO, Piercamillo. Processo All’Italiana, 2015. Tradução livre. Do original: “tradizione cattolica, ma secolarizzato”. 479 Ibidem. Tradução livre. Do original: “indulgenza plenaria”. 480 Ibidem. Tradução livre. Do original: “una giustizia molto spesso blanda”. 481 Ibidem.. 482 Ibidem. Tradução livre. Do original: “un processo accusatorio è incompatibile con l’azione penale obbligatoria, la quale comport ache il giudice controlli l’attività del PM e debba supplier alla sua inerzia.”. 483 Ibidem. Tradução livre. Do original: “l’azione penale discrezionale implica che il constume pubblico impedisca a chi è investito di responsabilità politiche un uso di tale discrezionalità in modo non imparziale”.

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3 A COLABORAÇÃO PREMIADA DA LEI Nº 12.850/2013

Compreendidos a estrutura principiológica pré-colaboração premiada (no que

diz respeito aos princípios que serão analisados na dinâmica posterior) e os

fundamentos que a sustentam nas múltiplas áreas relacionadas, passa-se ao estudo

do instituto, propriamente dito. Inicialmente, é necessária uma análise de sua origem

no sistema penal e processual penal brasileiro; na sequência, será aprofundado o

estudo da colaboração premiada sob a égide da Lei nº 12.850/2013.

3.1 AS CONVENÇÕES DE PALERMO E MÉRIDA

A Lei nº 12.850/2013 não se apresenta como um marco inovador de política

criminal na regulamentação da colaboração premiada. Trata-se, na verdade, de

diploma aprovado “quase dez anos após a ratificação pelo Brasil da Convenção das

Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional”484, como bem lembra

Bechara. A referida convenção internacional (também denominada Convenção de

Palermo, que é a cidade na qual foi inicialmente assinada) foi adotada pela

Assembleia Geral da ONU em Nova Iorque de 15 de novembro de 2000 e entrou em

vigor internacional em 29 de setembro de 2003.

No Brasil, foi promulgada por meio do Decreto nº 5.015, de 12 de março de

2004485 , e prevê, em seu artigo 26, uma série de “medidas para intensificar a

cooperação com as autoridades competentes para a aplicação da lei”486, dentre as

quais as seguintes merecem transcrição:

1. Cada Estado Parte tomará as medidas adequadas para encorajar as pessoas que participem ou tenham participado em grupos criminosos organizados: a) A fornecerem informações úteis às autoridades competentes para efeitos de investigação e produção de provas, nomeadamente i) A identidade, natureza, composição, estrutura, localização ou atividades dos grupos criminosos organizados;

484 BECHARA, Fábio Ramazzini. Colaboração processual: legalidade e valor probatório. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 23, nº 269, abril/2015, p. 6. 485 BRASIL. Decreto nº 5.015, de 12 de marco de 2004. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Disponível em <http://goo.gl/rd2DCo> Acesso em 12 de março de 2018. 486 Ibidem.

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ii) As conexões, inclusive conexões internacionais, com outros grupos criminosos organizados; iii) As infrações que os grupos criminosos organizados praticaram ou poderão vir a praticar; b) A prestarem ajuda efetiva e concreta às autoridades competentes, susceptível de contribuir para privar os grupos criminosos organizados dos seus recursos ou do produto do crime. 2. Cada Estado Parte poderá considerar a possibilidade, nos casos pertinentes, de reduzir a pena de que é passível um argüido que coopere de forma substancial na investigação ou no julgamento dos autores de uma infração prevista na presente Convenção. 3. Cada Estado Parte poderá considerar a possibilidade, em conformidade com os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico interno, de conceder imunidade a uma pessoa que coopere de forma substancial na investigação ou no julgamento dos autores de uma infração prevista na presente Convenção.487

Formalmente internalizada pelo Brasil, as disposições da Convenção de

Palermo tornaram-se integrantes do direito pátrio, com evidentes reflexos no Direito

Processual Penal brasileiro.

Outro diploma internacional relevante para a compreensão da introdução da

colaboração premiada no Brasil é a Convenção das Nações Unidas contra a

Corrupção, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de

2003 e aberta para assinatura a todos os Estados entre 9 e 11 de dezembro de 2003

na cidade de Mérida, México (não por outro motivo sendo chamada de Convenção

de Mérida). O Brasil aderiu à Convenção no primeiro dia de abertura, tendo-a

ratificado em 15 de junho de 2005, por meio do Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro

de 2006 (pouco após sua entrada em vigor internacional, em 14 de dezembro de

2005)488.

No texto da referida convenção, há a previsão, no artigo 33, da “Proteção aos

denunciantes”489, estabelecendo-se que

Cada Estado Parte considerará a possibilidade de incorporar em seu ordenamento jurídico interno medidas apropriadas para proporcionar proteção contra todo trato injusto às pessoas que denunciem ante as autoridades competentes, de boa-fé e com motivos razoáveis, quaisquer feitos relacionados com os delitos qualificados de acordo com a presente Convenção.490

487 BRASIL. Decreto nº 5.015..., 2004. 488 BRASIL. Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003. Disponível em <http://goo.gl/JgTpo2 > Acesso em 12 de março de 2018. 489 Ibidem. 490 Ibidem, 2006.

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Claramente, percebe-se a literalidade da Convenção quanto ao incentivo que

faz do uso de instrumentos de persecução penal que envolvem a participação de

investigados e réus colaboradores. É nesse cenário em que se insere a colaboração

premiada instituída pela Lei nº 12.850/2013.

O referido diploma, além de se amoldar (como será adiante detalhado) ao

disposto na convenção, também trouxe regulação ajustada “ao padrão de

conformidade reconhecido pela Associação Internacional de Direito Penal, por

ocasião do Colóquio Preparatório do XVIII Congresso Internacional de Direito Penal,

realizado em Pula, na Croácia, de 6 a 9 de novembro de 2008”491. Tais padrões,

segundo Bechara, deveriam atender a “exigências de duas ordens: legalidade e

presteza ou utilidade” 492 . Quanto à primeira, três condições deveriam ser

observadas: a reserva legal em sentido estrito (a colaboração deve estar prevista em

lei), a subsidiariedade (“a colaboração deverá ser empregada na ausência de outros

meios legais menos restritivos” 493) e a proporcionalidade (“a colaboração somente

deverá ser utilizada nos crimes graves e deverá ser proporcional ao objetivo

perseguido494”).

Diferentemente das previsões legislativas anteriores do instituto (desde suas

vertentes mais singelas, com as simples reduções de pena da Lei nº 9.034/95, até

as mais elaboradas, como os acordos oriundos da Lei nº 9.807/99), Bechara

sustenta que “a Lei 12.850 regulou o instituto da colaboração processual de forma

detalhada e coerente com as garantias do processo justo” 495, o que teria feito por

três vertentes: a) em primeiro lugar, o instituto estaria corretamente qualificado como

um “meio de obtenção de prova e não um meio de prova”496; b) em segundo, a lei

teria assegurado “transparência no ato aos interessados” 497, impondo “o controle

jurisdicional posterior e não simultâneo ao acordo, e, principalmente, exigindo a

491 BECHARA, Fábio Ramazzini. Colaboração processual..., 2015, p. 7. 492 Ibidem, p. 7. 493 Ibidem, p. 7. 494 Ibidem, p. 7. 495 Ibidem, p. 7. 496 Ibidem, p. 7. 497 Ibidem, p. 7.

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assistência do colaborador por defensor” 498; c) por fim, “assegurou ao colaborador a

possibilidade da retratação, de modo a respeitar sua autodefesa”499.

Bechara sustentou, em 2015 (logo, antes da profusão de acordos

celebrados), que

No que se refere às exigências de proporcionalidade no emprego da medida, tem-se que a Lei 12.850/2013 se qualifica como seletiva e criteriosa. É seletiva na medida em que a sua incidência abrange tão somente o tipo penal do crime de organização criminosa e infrações penais correlatas, cuja gravidade e potencial de lesividade dispensam maiores comentários a respeito. É igualmente criteriosa a lei, uma vez que além de estabelecer as hipóteses de cabimento, define claramente quem tem legitimidade, o procedimento e o momento processual cabível. Em suma

não há a banalização e o uso indiscriminado da medida. 500

Tais assertivas são bastante otimistas para um instituto tão questionado como

é a colaboração premiada da Lei nº 12.850/2013, mas justificam-se, é verdade, pelo

descompasso entre sua apresentação pelo autor e a prática forense do instituto –

que é, justamente, o objetivo deste estudo. Com efeito, passa-se a analisar a

evolução legislativa da colaboração premiada no Brasil, após a adoção das

convenções de Palermo e Mérida, até que se adentre à própria lei que titula este

capítulo.

3.2 A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA ANTECEDENTE

A colaboração, enquanto instrumento prático não previsto em lei, esteve

presente na história brasileira em momentos notórios: desde as Ordenações

Filipinas501, passando pela formulada por Joaquim Silvério dos Reis em detrimento

de Joaquim José da Silva Xavier, que acabou enforcado e esquartejado em 21 de

abril de 1792, até os expedientes usuais de obtenção de provas do Regime Militar

de 1964-1985.

Após a redemocratização, porém, alguns anos foram necessários ao

desenvolvimento do que hoje é a colaboração premiada da Lei nº 12.850/2013, que

498 BECHARA, Fábio Ramazzini. Colaboração processual..., 2015, p. 7. 499 Ibidem, p. 7. 500 Ibidem, p. 7. 501 BRASIL. Código Philippino, ou, Ordenações e leis do Reino de Portugal: recopiladas por mandado d’El-Rey D. Philippe I. 1870. Disponível em: <http://goo.gl/j8vnMS> Acesso em 22 de abril de 2018.

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foi especialmente influenciada pelas Convenções de Palermo e Mérida acima

mencionadas.

Não obstante, é certo que a ideia do direito penal premial (que é o gênero do

qual a colaboração premiada é espécie) há muito está inserida no ordenamento

brasileiro. Como exemplo, podem-se citar os artigos 15, 16 e 65, III, d, do Código

Penal, que preveem benefícios penais para os agentes que, de forma voluntária,

contribuem com a Justiça, seja durante a execução do crime (nos casos da

desistência voluntária e do arrependimento eficaz), seja após (no caso do

arrependimento posterior e da confissão espontânea). Em todas as situações do

Código Penal, há a previsão de um benefício para o agente que facilita a apuração

de crimes, em um aceno ao que atualmente se pode formalizar por meio de um

acordo.

Instrumentos mais afeitos ao que hoje se tem como colaboração premiada, na

forma de simples causa especial de diminuição de pena, porém, passaram a ser

introduzidos muito posteriormente à edição dos Códigos Penal e de Processo Penal

dos anos quarenta do século passado.

3.2.1 A LEI Nº 8.072, DE 25 DE JULHO DE 1990

Antes de um movimento de política criminal de combate à criminalidade

organizada, a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 trouxe, em seu artigo 7º, a

introdução do artigo 159, §4º do Código Penal para que, no crime de extorsão

mediante sequestro, quando o delito fosse “cometido por quadrilha ou bando, o co-

autor que denunciá-lo à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua

pena reduzida de um a dois terços”502. Também previu a lei, em seu artigo 8º,

parágrafo único, que, “o participante e o associado que denunciar à autoridade o

bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de

um a dois terços”503.

502 BRASIL. Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em <http://goo.gl/MfA8jm > Acesso em 12 de março de 2018. A inovação no Código Penal foi posteriormente alterada textualmente pela Lei nº 9.269, de 2 de abril de 1996, que estabeleceu o benefício nos seguintes termos: “se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços” (BRASIL. Lei nº 9.269, de 2 de abril de 1996. Dá nova redação ao § 4° do art. 159 do Código Penal. Disponível em <http://goo.gl/zzstEJ > Acesso em 12 de março de 2018.) 503 BRASIL. Lei nº 8.072..., 1990.

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Cordeiro faz duas considerações precisas sobre o instituto: a) em primeiro

lugar, sustenta que “já se vê nessa primeira norma de retorno brasileiro ao instituto

da delação a possibilidade deste ato não somente pelo participante (autor ou

partícipe), como também de seu associado, termo que se compreende como a

indicar colaboradores diversos, antes ou após o crime”504; b) ademais, afirma que “a

generalidade do termo denunciar à autoridade faz compreender como destinatária

das informações tanto a autoridade policial como a judiciaria”505, assim como o

Ministério Público. Como requisito para o benefício do artigo 8º, o autor esclarece

que “não faz a lei exigências de espontaneidade ou voluntariedade, o que não afasta

a lógica desta, pois a delação pressionada não possui valor jurídico”506, e que “o

resultado de desmantelamento da quadrilha é exigido para incidência do favor

legal”507. Quanto, porém, ao benefício inserido no artigo 159, a lei não fez essa

exigência, já que “previu como resultado necessário que as notícias do sequestro

trazidas pelo confidente facilitassem a libertação do sequestrado”508.

3.2.2 A LEI Nº 9.034, DE 3 DE MAIO DE 1995

Na sequência, a primeira lei especial que tratou de métodos especiais de

prevenção e repressão de crimes praticados por organização criminosa (antes que

se tivesse, é verdade, um adequado conceito de organização criminosa – tanto que

a própria lei apenas referia, inicialmente, “crime resultante de ações de quadrilha ou

bando”509) foi a de nº 9.034, de 3 de maio de 1995. O artigo 6º da referida lei previa

que “nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um

a dois terços, quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento

de infrações penais e sua autoria” 510 , em um verdadeiro ensaio a outro dos

benefícios aplicáveis ao colaborador processual reconhecido pela Lei nº

12.850/2013 (que, aliás, revogou a Lei nº 9.034/1995).

504 CORDEIRO, Néfi. Delação premiada na legislação brasileira. Revista da AJURIS, v. 37, n. 117, marco/2010. Disponível em <http://goo.gl/dpRVDM> Acesso em 12 de março de 2018. 505 Ibidem. 506 Ibidem. 507 Ibidem. 508 Ibidem. 509 BRASIL. Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995. Dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. Disponível em <http://goo.gl/Jpc7Ut> Acesso em 12 de março de 2018. 510 Ibidem.

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Cordeiro ressalta a indicação da “espontaneidade da delação”, a qual

tecnicamente indicaria a “sincera conduta, sponte própria realizada, assim

diferenciando-se da voluntariedade, onde o ato pode acontecer por provocação de

terceiros, mas sempre decorrerá das opções do agente, que não as tem impedidas

por coação”511. Acontece que, assim como na circunstância atenuante da confissão

espontânea, “doutrina e jurisprudência têm admitido como suficiente sua

voluntariedade” 512. Com efeito, a causa de diminuição de pena da Lei nº 9.034/95

deveria ser “regulada pela regra da utilidade do ato e não pela conduta do

agente”513, importando “se a colaboração atingiu o resultado exigido”514, qual seja o

esclarecimento de infrações penais e sua autoria.

3.2.3 A LEI Nº 9.080, DE 19 DE JULHO DE 1995

No mesmo ano da Lei nº 9.034/95, foi promulgada a Lei nº 9.080, de 19 de

julho de 1995515, que alterou as Leis nº 7.492/86 (que define os crimes contra o

Sistema Financeiro Nacional) e 8.137/90 (que define os crimes contra a ordem

tributária, econômica e contra as relações de consumo) para que se fizesse constar,

respectivamente, em seus artigos 25, § 2º, e 16, parágrafo único, a previsão de que,

nos crimes previstos nas referidas leis, “cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co-

autor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial

ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços”516.

Por revelação entende-se, segundo Cordeiro, não a compreensão de “noticiar fatos

desconhecidos, mas sim (...) como sinônimo de explicitar, noticiar toda a trama do

crime financeiro ou tributário”517.

Diferentemente do que ocorreu nas leis anteriores, as alterações promovidas

pela Lei nº 9.080/95 não exigiram “como resultado de eficácia consequências no

511 CORDEIRO, Néfi. Delação premiada..., 2010. 512 Ibidem. 513 Ibidem. 514 Ibidem. 515 BRASIL, Lei nº 9.080, de 19 de julho de 1995. Acrescenta dispositivos às Leis nºs 7.492, de 16 de junho de 1986, e 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Disponível em <http://goo.gl/RRxaeZ > Acesso em 12 de março de 2018. 516 BRASIL. Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986. Define os crimes Disponível em <http://goo.gl/Tgys65 > Acesso em 12 de março de 2018; e BRASIL. Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. Disponível em <http://goo.gl/kYhyhC > Acesso em 12 de março de 2018. 517 CORDEIRO, op. cit., 2010.

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mundo dos fatos”518, como o desmantelamento da quadrilha ou a libertação do

sequestrado. Não obstante, exigiu-se, no texto legal, a “revelação de toda a

trama”519, não cabendo o benefício para aquele que “informa tudo o que sabe, mas

que é insuficiente à demonstração da completa cadeia de fatos e agentes envolvidos

no crime tributário ou financeiro”520.

3.2.4 A LEI Nº 9.613, DE 3 DE MARÇO DE 1998

A Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, que “dispõe sobre os crimes de

‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores”521, trouxe, em seu artigo 1º, §5º,

a previsão de redução de um a dois terços da pena, a ser cumprida em regime

aberto, “podendo o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por

pena restritiva de direitos” 522 , se o “autor, coautor ou partícipe colaborar

espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à

apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização de bens direitos ou

valores objeto do crime”523.

Na Lei de Lavagem, inovou-se em relação à legislação anterior, com a

previsão (não nominada) do perdão judicial, do cumprimento de regime aberto,

independentemente da pena cominada, e da substituição da pena privativa de

liberdade por restritiva de direitos. Como leciona Cordeiro, “o resultado exigido é

alternativamente a apuração das infrações penais e sua autoria, ou a localização do

patrimônio do crime de lavagem de capitais”524, cabendo o benefício não apenas ao

delator (como aquele que indica a autoria de terceiros), como também ao réu

confesso que aponta, de forma eficaz, a localização dos bens. Cordeiro ressalta,

ainda, que “pode a delação ser parcial e até tendenciosa na escolha dos fatos

revelados”525, desde que efetivamente indique “novos caminhos”526 que levem às

autoridades à completa apuração dos fatos.

518 CORDEIRO, Néfi. Delação premiada..., 2010. 519 Ibidem. 520 Ibidem. 521 BRASIL. Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências. Disponível em <http://goo.gl/qp37jw > Acesso em 12 de março de 2018. 522 Ibidem. 523 Ibidem. 524 CORDEIRO, op. cit., 2010. 525 Ibidem.

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Ainda que a Lei nº 9.613/98 tivesse incrementado o regime de benefícios aos

réus colaboradores, é de se perceber que, ao contrário do que ocorre com a

colaboração premiada celebrada por meio de um acordo, nas previsões legais acima

referidas, o benefício exercia uma função bem definida na dosimetria da pena: trata-

se de uma confissão espontânea (com ou sem a indicação da autoria de terceiros)

que, ao contrário da circunstância atenuante do artigo 65, III, d, do Código Penal,

funciona como causa especial de redução de pena – incidindo sobre a dosimetria de

forma mais impactante. Nos casos acima apresentados, a colaboração somente

seria reconhecida na sentença e após a sua condenação – sem que a lei fornecesse

qualquer margem para discussão da aplicação do benefício em outros momentos do

processo. Mais recentemente, a Lei de Drogas (Lei nº 11.343, de 23 de agosto de

2006527) passou a prever benefício semelhante, com a expressa menção à sua

aplicação em caso de condenação.

3.2.5 A LEI Nº 9.807, DE 13 DE JULHO DE 1999

A Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999528, por sua vez, foi o primeiro diploma

nacional que fundamentou a colaboração mediante acordo formal entre as partes

para a obtenção de prova, com a previsão legal do benefício do perdão judicial para

o acusado que prestasse informações efetivas e voluntárias para a investigação e o

processo criminal. O capítulo II da mencionada lei trouxe duas hipóteses de

aplicação de benefícios aos agora chamados “réus colaboradores”529: a) o artigo 13

prevê a possibilidade (“poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes” 530) de

concessão de perdão judicial e extinção de punibilidade do acusado primário que

colabore efetiva e voluntariamente com a investigação e, necessária e

526 CORDEIRO, Néfi. Delação premiada..., 2010. 527 BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Disponível em <http://goo.gl/ve6rCZ > Acesso em 12 de março de 2018. 528 BRASIL. Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999. Estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal. Disponível em <http:// goo.gl/dqB5pz> Acesso em 12 de março de 2018. 529 Ibidem. 530 Ibidem.

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alternativamente, identifique os demais coautores e partícipes do crime, localize a

vítima com a sua integridade física preservada ou recupere o produto do crime; b)

por sua vez, o artigo 14 prevê a obrigatória redução de pena (“terá pena reduzida de

um a dois terços”531), na sentença condenatória, para o colaborador voluntário – sem

menção aqui à efetividade da colaboração.

Ou seja, de acordo com o texto legal, quando houvesse colaboração

voluntária e efetiva, com os resultados previstos nos incisos do artigo 13, caberia ao

juiz a concessão do benefício máximo do perdão judicial; quando a colaboração não

fosse necessariamente efetiva, não levasse à localização de vítima com a

integridade física preservada ou quando o juiz não entendesse pela pertinência da

extinção da punibilidade (já que, no artigo anterior, há a expressão “poderá”),

deveria haver a aplicação da causa especial de diminuição de pena.

Cordeiro segue posicionamento diverso, entendendo que a redução de pena

também dependerá de resultados efetivos (embora a lei não preveja tal requisito),

incidindo o disposto no artigo 14 apenas quando a vítima não for localizada com sua

integridade preservada ou quando o produto do crime não é integralmente

recuperado (porque consumido ou perdido) 532 . Para o autor “a escolha entre o

perdão judicial e a minorante (de um a dois terços) é definida pela lei, que rejeita o

favor maior quando não se trate de agente primário, ou quando desfavoráveis

circunstâncias do agente (...) ou do crime (...) ou quando a vítima seja salva viva,

mas com a integridade física atingida”533. Embora a interpretação seja válida e siga a

lógica dos demais diplomas que trataram do benefício aos colaboradores, discorda-

se em razão da opção legislativa de afastar o requisito da efetividade no artigo 14.

O diploma ainda traz, em seu bojo, a previsão de medidas de proteção ao

colaborador encarcerado, como a custódia cautelar em dependência separada dos

demais presos (artigo 15, §1º) e a aplicação de “medidas especiais que

proporcionem a segurança do colaborador em relação aos demais apenados”534

(artigo 15, §3º).

A rigor, a Lei nº 9.807/1999 não previa a possibilidade de celebração de um

acordo formal entre acusação e defesa para a colaboração do acusado ou

investigado, com a previsão textual dos benefícios que poderiam vir a ser aplicados.

531 BRASIL. Lei nº 9.807...,1999. 532 CORDEIRO, Néfi. Delação premiada..., 2010. 533 Ibidem. 534 BRASIL, op. cit.,1999.

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Mas o fato de se submeter a possibilidade de concessão do benefício ao magistrado

“a requerimento das partes”535 e a omissão da lei quanto ao momento de concessão

do perdão judicial (não havendo menção no texto legal à sua aplicação

necessariamente na sentença) deram ensejo à prática forense que foi

posteriormente, com a Lei nº 12.850/2013, formalmente estabelecida.

Com efeito, a partir desse diploma, alguns Juízes passaram a homologar

acordos de colaboração celebrados entre o Ministério Público e os acusados, em

moldes semelhantes ao que se verifica atualmente. Aras reconhece que, a partir da

Lei nº 9.807/1999, inaugurou-se, em 2003, uma “praxe”536 no Ministério Público

Federal do Paraná de realizar “acordos de delação inteiramente clausulados”537, no

que foi seguido por todo o Brasil. Ainda que tenha frisado que se tratava de atividade

criticada, o autor assevera a admissão da atividade pelo “direito pretoriano”, seja

incidentalmente (como, por exemplo, pelo STF, na Ação Penal 470 538 ) ou

diretamente (no TRF-4, na Correição Parcial nº 2009.04.00.035046-4/PR539). Não

obstante, as formalidades ainda eram absolutamente cinzentas.

O Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba (ainda identificada como 2ª Vara

Federal Criminal de Curitiba) foi um dos pioneiros na utilização da colaboração

processual em grandes operações da Polícia Federal e do MPF, como no rumoroso

Caso Banestado. Em sua obra, o Juiz Sérgio Moro consignou a discricionariedade

verificada na aplicação da Lei nº 9.807/99 e a falta de critérios legais para a

utilização do instrumento contratual do acordo – sem, porém, deixar de defender a

resolução prática dos conflitos e questionamentos procedimentais quanto à sua

celebração:

A concessão de tais benefícios é indissociável da realização de certo juízo discricionário quanto à oportunidade e à conveniência da colaboração. Ilustrativamente, não se vislumbra interesse da Justiça na realização de acordo de colaboração com o chefe do grupo criminoso, mesmo que este se disponha a identificar todos os seus comandados, o que preencheria, em tese, a hipótese do art. 13, I, da Lei n. 9.807/99. Da mesma forma, não se vislumbra motivo para a concessão do benefício a um criminoso, mesmo

535 BRASIL. Lei nº 9.807...,1999. 536 ARAS, Vladimir. A investigação criminal na nova lei de lavagem de dinheiro. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 20, nº 237, agosto/2012, p. 6. 537 Ibidem, p. 6. 538 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal nº 470. Questão de Ordem nº 3. Relator Ministro Joaquim Barbosa. Julgado em 23 de outubro de 2008. 539 BRASIL. Rio Grande do Sul. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Correição Parcial nº 2009.04.00.035046-4/PR. Relator Desembargador Federal Néfi Cordeiro. Julgado em 3 de setembro de 2009.

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quando este tenha revelado a localização do produto do crime, o que preencheria a hipótese do art. 13, I, da Lei n. 9.807/99, se essa descoberta se mostrasse inevitável no curso da investigação, ou seja, se ocorresse mesmo sem a colaboração, ainda que levasse um pouco mais de tempo.540

Evidentemente, o posicionamento do autor e Magistrado encontrava extrema

resistência na doutrina e na advocacia, sobretudo diante de situações práticas que

claramente afetavam o exercício de defesa. Exemplos eram os reinterrogatórios

realizados após a secreta (para a defesa) celebração do acordo, nos quais o corréu

colaborador, ainda falando formalmente como um acusado comum, confessava os

crimes e delatava os codenunciados. Sua palavra era tomada como elemento de

prova e os delatados eram condenados. Moro refutava as críticas, sob o argumento

de que “somente quem tem conhecimento sobre a atividade criminal, com condições

de providenciar informações ou provas relevantes são, em geral, os próprios

criminosos”541.

Outro problema da dinâmica informal adotada com a celebração dos acordos

extraía-se da falta de um standard procedimental. Além do Juízo da 13ª Vara

Federal de Curitiba, a 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, regida pelo então Juiz

Federal Fausto Martin De Sanctis, também fez uso recorrente da colaboração

premiada. A forma de celebração dos acordos era bastante distinta, como o próprio

magistrado explica, à luz do procedimento adotado nos Estados Unidos da América:

Quando um plea agreement contempla a dispensa de acusações ou o comprometimento de não investigar determinado fato, o juiz somente o aceitará se as acusações que remanescerem corresponderem adequadamente à seriedade do comportamento ilícito e se a aceitação do acordo não enfraquecer os propósitos da sentença ou for em direção oposta às diretrizes definidas para esta última. (...) Tal entendimento foi adotado pela 6ª Vara Federal Criminal paulista, antes mesmo de tomar conhecimento do modelo americano, pois entendeu-se que não se pode, no momento da prolação de sentença, limitar a independência judicial que confere ao magistrado poderes para melhor avaliar todos os elementos probatórios a fim de entregar a tutela jurisdicional mais adequada no caso concreto.542

Ao contrário da dinâmica verificada em Curitiba, na qual era firmado “um

verdadeiro contrato com o increpante”543, transferindo ao colaborador, na opinião de

540 MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 110-111. 541 Ibidem, p. 110-111. 542 SANCTIS, Fausto Martin de. Crime organizado..., 2015, p. 203. 543 Ibidem, p. 196.

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Sanctis, “o poder de decidir o que vai falar, até onde pode ir com a delação já no

início”544, o referido magistrado realizava uma audiência sigilosa com o Ministério

Público Federal e o acusado “para demonstrarem o que desejam com a delação”545.

Com efeito, o juízo não homologava um acordo, mas “o procedimento para os fins

almejados, saindo o delator com o compromisso de revelar os fatos e outros

eventuais existentes”546, e não apenas com os benefícios almejados.

Independentemente de quem adotava um modelo mais correto e adequado

ao devido processo legal (havendo possíveis críticas a ambos: de um lado, havia,

nos acordos de Curitiba, possíveis violações ao direito de defesa – que ainda se

verificam no modelo atual; de outro, em São Paulo, havia um possível descompasso

com a imparcialidade do Juiz, que se imiscuía na prova antes da fase do

contraditório), é certo que a Lei nº 9.807/99 permitiu a obtenção de efetivos

resultados com os acordos nela previsto, como ocorreu no Caso Banestado, em

Curitiba 547 . No entanto, as incertezas quanto à legalidade dos procedimentos

adotados tornaram evidente a necessidade de uma melhor disciplina do instituto.

3.2.6 A LEI Nº 12.683, DE 8 DE JULHO DE 2012

Antes da promulgação da Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013548, outro

diploma trouxe inovações ao direito premial brasileiro. Trata-se da Lei nº 12.683, de

8 de julho de 2012, que alterou o regime de benefícios ao acusado colaborador

trazido pela Lei nº 9.613/1998 acima analisada. Basicamente, como observa Aras, o

legislador promoveu uma “disciplina tímida” 549 ao que o autor denominava

544 SANCTIS, Fausto Martin de. Crime organizado..., 2015, p. 203. 545 Ibidem, p. 204. 546 Ibidem, p. 204. 547 Cabe comentar que, em São Paulo, a Operação Castelo de Areia, inicialmente conduzida perante o Juízo da 6ª Vara Federal Criminal, foi anulada em razão de ilicitude de provas. Conforme se reconheceu, houve a utilização de uma denúncia anônima – que, na verdade, foi apresentada paralelamente a uma colaboração em andamento e em relação à qual não se pretendia a publicidade – para embasar quebras de sigilo telefônico e de dados. HAIDAR, Rodrigo. STJ decide que operação Castelo de Areia foi ilegal. Consultor Jurídico. 5 de abril de 2011. Disponível em <http://goo.gl/buQnnm> Acesso em 12 de março de 2018. 548 BRASIL. Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Disponível em <http://goo.gl/RpXWAh> Acesso em 12 de março de 2018. 549 ARAS, Vladimir. A investigação criminal..., 2012, p. 6.

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“colaboração criminal processual”550, enfatizando que, embora a proposta inicial do

Senado fosse “mais ousada”551, com “uma disciplina específica para a delação, um

modus faciendi”552, houve uma clara evolução. Como observa, a nova lei trouxe a

possibilidade de “realização de delação premiada a qualquer tempo”553, inclusive

“após a decisão condenatória recorrível” 554 tanto para a lavagem de dinheiro, quanto

para os crimes antecedentes.

A partir da somatória de evoluções legislativas ao direito penal e processual

premial brasileiro, chega-se à lei que se passa a analisar. Para fins didáticos, far-se-

á, no próximo tópico, um apanhado geral da Lei nº 12.850/2013. Na sequência, será

dissecado o atual modelo de colaboração premiada.

3.3 A ESTRUTURA LEGAL

A Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013 tem por objeto a definição do

conceito de organização criminosa, “dispõe sobre a investigação criminal, os meios

de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal”555,

além de alterar o Código Penal e revogar a já mencionada Lei nº 9.034, de 3 de

maio de 1995.

No primeiro dispositivo do diploma, apresenta-se o seu conteúdo e define-se

o conceito de organização criminosa (§1º - associação de quatro ou mais pessoas

de forma “estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda

que informalmente”, cujo objetivo é “obter, direta ou indiretamente, vantagem de

qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais” com penas máximas

superiores a quatro anos, ou que possuam “caráter transnacional” 556 ), com a

indicação de figuras equiparadas em que a lei também se aplica (§2º, I e II - crimes

previstos em tratados e convenções internacionais, “quando iniciada a execução no

País”557; e organizações terroristas).

550 ARAS, Vladimir. A investigação criminal..., 2012, p. 6. 551 Ibidem, p. 6. 552 Ibidem, p. 6. 553 Ibidem, p. 6. 554 Ibidem, p. 6. 555 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013. 556 Ibidem. 557 Ibidem.

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O artigo 2º traz o crime específico de promoção, constituição, financiamento

ou integração de organização criminosa, a hipótese equiparada (§1º - para aquele

que impedir ou embaraçar investigação de crime relacionado àquela), a

circunstância agravante para quem “exerce o comando” da organização (§3º) e as

causas de aumento de pena (§2º uso de arma de fogo; §4º, I - participação de

criança ou adolescente; §4º, II - concurso de funcionário público; §4º, III - destino

estrangeiro dos produtos dos crimes; §4º, IV – conexão com outras organizações

criminosas; §4º, V – transnacionalidade da organização). Nos §§5º e 6º do artigo 2º

são previstas consequências cautelares (afastamento do cargo) e penais (perda do

cargo, função, emprego ou mandato eletivo e interdição por oito anos) para

funcionários públicos. No §7º, é prevista a instauração de inquérito policial em caso

de “indícios de participação de policial nos crimes de que trata esta lei”558.

O Capítulo II da Lei nº 12.850/2013 trata da investigação e dos meios de

obtenção da prova. O artigo 3º lista os 8 (oito) meios tratados na lei, quais sejam: I –

a colaboração premiada; II – a captação ambiental de sinais eletromagnéticos,

ópticos ou acústicos; III – a ação controlada; IV – o acesso a registros telefônicos e

telemáticos, bem como a dados cadastrais em bancos de dados e informações

eleitorais ou comerciais; V – interceptação telefônica; VI – quebra de sigilos

financeiro, bancário e fiscal (os dois últimos com a indicação: “nos termos da

legislação específica” 559 ); VII – infiltração de policiais na investigação; e VIII –

cooperação entre instituições e órgãos públicos de todas as esferas para a obtenção

de provas e informações para a instrução criminal.

Finalmente, o artigo 4º passa a tratar da colaboração premiada, propriamente

dita. Os demais meios de obtenção de prova introduzidos pela Lei nº 12.850/2013

são abordados nos arts. 8 a 17 e não farão parte do presente estudo.

O caput e os 5 (cinco) incisos do referido dispositivo trazem as regras gerais

de benefícios e resultados esperados com a colaboração premiada, em redação

semelhante ao que se teria com a junção dos artigos 13 e 14 da Lei nº 9.807/99:

Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e

558 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013. 559 Ibidem.

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voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.560

Algumas diferenças são notáveis, todavia: a) a lei mais recente não prevê a

possibilidade de o juiz conceder os benefícios de ofício; b) há a previsão, porém, de

substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (nos moldes do

que previu, inicialmente, a Lei nº 9.613/98); c) não há limite mínimo de redução de

pena (ao contrário do terço de todas as leis que trouxeram o benefício

anteriormente); d) 2 (dois) novos resultados permitem a concessão de benefícios (a

revelação da estrutura hierárquica e divisão de tarefas da organização e a

prevenção de novos crimes).

O §1º do artigo 4º da Lei nº 12.850/2013 prevê que a concessão dos

benefícios (ao contrário do parágrafo único do artigo 13 da Lei nº 9.807/99, que

falava apenas do perdão judicial) “levará em conta a personalidade do colaborador,

a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e

a eficácia da colaboração”561.

No §2º, há a previsão de que, “a qualquer tempo” 562, o Ministério Público e

delegado de polícia (com manifestação do parquet) poderão pleitear a concessão de

perdão judicial ao colaborador, “ainda que esse benefício não tenha sido previsto na

proposta inicial”563. Notam-se, a partir desse dispositivo, duas inovações legais: a)

em primeiro lugar, a concessão do benefício máximo poderá ser pleiteada em

qualquer momento (embora a Lei nº 9.807/99 não proibisse tal prática, não havia a

previsão expressa); b) em segundo, há a primeira menção a uma forma de contrato

entre as partes com a indicação de “proposta inicial”.

560 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013. 561 Ibidem. 562 Ibidem. 563 Ibidem.

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Os §§3º e 4º trazem dois benefícios processuais ao colaborador, quais sejam

a suspensão, até o cumprimento das medidas da colaboração, do prazo para o

oferecimento da denúncia ou do processo, por 6 (seis) meses, prorrogáveis pelo

mesmo período, com a respectiva suspensão do prazo prescricional, e a figura da

imunidade processual, consistente no não oferecimento de denúncia ao colaborador

que “I – não for o líder da organização criminosa; II – for o primeiro a prestar efetiva

colaboração nos termos deste artigo” 564.

Outra inovação premial é a previsão – e aparente limitação, como será visto

no tópico referente ao sistema de benefícios – do §5º, que estabelece a

possibilidade de redução de pena já fixada, até a metade, ou a progressão de

regime, “ainda que ausentes os requisitos objetivos”565 do Código Penal.

A partir do §6º, a Lei nº 12.850/2013 passa a tratar expressamente da figura

do acordo de colaboração premiada. Nesse dispositivo, estabelece-se que o juiz

“não participará das negociações realizadas entre as partes” 566, limitando-se essas

ao delegado de polícia (com parecer do Ministério Público), o investigado e o

defensor, ou ao Ministério Público com o acusado e seu advogado. Pela redação

legal, há uma diferenciação entre a parte “pública” do acordo a partir do momento

em que será negociado: se durante a investigação, caberia à polícia; se durante o

processo, ao Ministério Público. No tópico referente à legitimidade, será

devidamente enfrentado o tema, sobretudo no que diz respeito à controvérsia judicial

instalada quanto à participação da autoridade policial na negociação.

No parágrafo seguinte, prevê-se a fase de homologação do acordo, com a

indicação de que, “realizado o acordo na forma do §6º” 567 , será o termo,

acompanhado das declarações e de cópia da investigação, encaminhado ao juiz

para a homologação. Nessa fase, conforme estabelece o dispositivo, o magistrado

competente deverá atestar a “regularidade, legalidade e voluntariedade” 568 do

acordo, cabendo-lhe ouvir o colaborador em conjunto com seu defensor “para este

fim”569. A disciplina da homologação também será tratada em tópico próprio, tendo

em vista que as interpretações possíveis ao âmbito de análise do julgador podem

trazer repercussões ao devido processo legal (por exemplo: se a análise de

564 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013. 565 Ibidem. 566 Ibidem. 567 Ibidem. 568 Ibidem. 569 Ibidem.

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legalidade se estende ao conteúdo do acordo, ter-se-á o contato do magistrado com

a potencial prova apresentada pelo colaborador antes da fase da instrução, o que

poderia afetar sua imparcialidade).

O §8º do artigo 4º prevê a possibilidade de recusa de homologação à

proposta que não atender aos requisitos legais e de adequação, pelo juiz, ao caso

concreto. Os desdobramentos dessa previsão também serão devidamente

analisados no subcapítulo referente à homologação.

O §9º trata da possibilidade de o colaborador ser ouvido, acompanhado de

seu advogado, pelo Ministério Público ou pela autoridade policial após a

homologação do acordo, enquanto que os §§12 e 13 tratam da possibilidade de sua

oitiva, seja beneficiado ou não pelo perdão judicial, perante o juízo, “a requerimento

das partes ou por iniciativa da autoridade policial”570, o que será registrado, “sempre

que possível”571, por meios ou recursos de gravação para maior fidelidade. Ademais,

o §15 prevê, em quase uma redundância, que o colaborador deverá estar assistido

de seu defensor em absolutamente todos os atos de “negociação, confirmação e

execução da colaboração”572.

No §10, prevê-se a prerrogativa das partes de se retratarem da proposta de

acordo, situação em que “as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador

não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor”573. Sobre tema similar,

no §16, há a previsão de que “nenhuma sentença condenatória será proferida com

fundamento apenas nas declarações do agente colaborador”574. O tema do valor

probatório da colaboração será melhor analisado no próximo capítulo (sob o enfoque

da presunção de inocência), tendo o referido dispositivo considerável importância

em razão da expressão “exclusivamente”. Afinal, se ninguém pode ser condenado

exclusivamente nas palavras do colaborador, qual seria a importância – ou garantia

– do disposto no §10?

No §11, a lei prevê que a sentença apreciará os termos do acordo de

colaboração previamente homologado e sua eficácia – o que será igualmente

analisado no subcapítulo correspondente, bem como no referente ao sistema de

benefícios.

570 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013. 571 Ibidem. 572 Ibidem. 573 Ibidem. 574 Ibidem.

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Por fim (e sem a observância da ordem numérica, já que alguns dos

parágrafos foram analisados logo acima), quanto ao artigo 4º, o §14 prevê a

renúncia ao direito ao silêncio nos depoimentos que prestar, o que deverá sempre

ser feito junto ao seu defensor, estabelecendo-se o “compromisso legal de dizer a

verdade”575. Nesse sentido, a lei prevê, em seu artigo 19, uma figura específica do

crime de falso testemunho para o colaborador que “imputar falsamente, sob pretexto

de colaboração com a Justiça” 576, a prática de crime por pessoa que sabe ser

inocente ou revelar informações falsas sobre a estrutura da organização criminosa.

O artigo 5º da Lei nº 12.850/2013 prevê os direitos do colaborador, dentre os

quais, para os efeitos deste estudo, vale a menção ao inciso VI, que descreve a

prerrogativa de “cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus

ou condenados”577, enquanto que o artigo 6º trata das formalidades do termo de

acordo da colaboração premiada. Por fim, o art. 7º trata do procedimento de

distribuição do pedido de homologação do acordo (que é sigiloso), do prazo para a

decisão do juiz competente (quarenta e oito horas), da limitação de acesso dos

autos (Juiz, autoridade policial e Ministério Público) e da revogação do sigilo

(quando do recebimento da denúncia).

Essa é a dinâmica legal da Lei nº 12.850/2013. A seguir, passa-se a analisar,

individualmente, cada um dos temas relacionados aos dispositivos acima

mencionados.

3.4 A NATUREZA JURÍDICA

É imperiosa, para o adequado estudo do instituto da colaboração premiada, a

definição de sua natureza jurídica. A uma, porque tal tarefa auxiliará a compreensão

sobre seus objetivos, procedimento e eficácia (afinal, entendendo-se o que significa,

poder-se-á concluir do que é capaz); a duas, porque a lei traz um conceito pronto,

que pode não ser tão claro quanto uma simples leitura do texto legal faz parecer.

O primeiro aspecto a ser abordado é o etimológico, relativo à expressão

“colaboração premiada”. Na sequência, será abordada a questão relativa à natureza

jurídica do instituto, sob suas perspectivas processual penal e penal.

575 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013. 576 Ibidem. 577 Ibidem.

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3.4.1 ASPECTO ETIMOLÓGICO

De antemão, pode-se afirmar que dois aspectos etimológicos da lei são

importantes nesta análise. Em primeiro lugar, formalizou-se a nomenclatura

“colaboração premiada”, em substituição à mais simplória e estigmatizada “delação

premiada”. Não que a segunda esteja errada; a “delação” é uma espécie do gênero

“colaboração”, que poderá ocorrer com o colaborador indicando outros autores do

fato (o que a doutrina também denomina “chamamento de corréu”578), mas não se

trata de um requisito (em tese, o réu poderá se beneficiar caso simplesmente

confesse o crime e, por exemplo, forneça elementos que possibilitem a recuperação

dos valores desviados 579 ). Marques ressalta, também, que há uma importância

ideológica no afastamento da expressão delação premiada do imaginário popular:

É importante ressaltar que a expressão ‘delação premiada’ não é usual na legislação, sendo, portanto, uma construção doutrinaria que traz, em si, uma carga pejorativa quando se equipara o delator com o traidor, figura estigmatizada no imaginário popular. Observa-se, portanto, um aspecto ideológico e proposital no uso terminológico sobre o tema: arrependido (traz a ideia de mudança de caráter e estilo de vida), colaborador da justiça (imagina-se alguém desinteressado ou até mesmo interessado em obter vantagens em troca de colaboração com a justiça) e delator (busca-se compará-lo à figura do traidor).580

A definição inequívoca da terminologia legal, portanto, parece também buscar

encerrar um debate de natureza moral que envolve o instituto, para afastar a carga

negativa contida na expressão “delação” e adotar termo de conotação técnica e, por

assim dizer, positiva ao processo penal.

3.4.2 NATUREZA PROCESSUAL PENAL: MEIO DE OBTENÇÃO E FONTE DE

PROVA

O outro aspecto importante é que a lei expressamente definiu a colaboração

premiada como um “meio de obtenção de prova”, e não um “meio de prova”. Há uma

diferença relevante entre os termos, como explica Badaró:

578 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 454. 579 Ou, como exemplifica Pinto (PINTO, Ronaldo Batista. A colaboração premiada da Lei nº 12.850/2013. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, n. 56, v. 10, 2013, p. 24-29, p. 25), “se em decorrência dela se salvaguardou a integridade da vítima”. 580 MARQUES, Antonio Sergio Peixoto. A colaboração premiada..., 2014, p. 40.

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Enquanto os meios de prova são aptos a servir, diretamente, ao convencimento do juiz sobre uma veracidade ou não de uma afirmação (p. ex., o depoimento de uma testemunha, ou o teor de uma escritura pública), os meios de obtenção de provas (p.ex. uma busca e apreensão) são instrumentos para a colheita de elementos ou fontes de provas, estes sim, aptos a convencer o julgador (p.ex.: um extrato bancário [documento] encontrado em uma busca e apreensão domiciliar). Ou seja, enquanto o meio de prova se presta ao convencimento direto do julgador, os meios de obtenção de provas somente indiretamente, e dependendo do resultado de sua realização, poderão servir à reconstrução da história dos fatos.581

No mesmo sentido, Bottini afirma que diferencia o meio da prova, no sentido

de que “a prova é capaz de sustentar uma acusação ou uma condenação. O meio é

apenas um instrumento para que as autoridades possam alcançar provas

efetivas”582.

Embora os autores estejam absolutamente corretos quanto à diferenciação

realizada, afirmar, simplesmente, que a colaboração premiada é um meio de

obtenção de prova é insuficiente, sobretudo porque “não há consenso doutrinário”583.

Em tese, e sob a perspectiva legal, trata-se de uma assertiva precisa, na medida em

que equipara a colaboração a outros meios de obtenção de prova, como as

interceptações telefônicas e as quebras de sigilo bancário ou fiscal, que também são

“instrumentos para a colheita de fontes ou elementos de prova”584.

Na prática, porém, há dois níveis em que se deve analisar a expressão legal:

a colaboração será meio de obtenção de prova (um caminho para a sua produção)

quando observada no momento da celebração do acordo e de sua homologação;

por outro lado, os produtos imediatos desse acordo homologado – quais sejam as

declarações e documentos apresentados pelo colaborador – serão meios ou fontes

de prova, na medida em que se incluem nessa categoria as pessoas ou coisas por

meio das quais se obtém a prova, como as testemunhas585.

Essa diferenciação é fundamental pelo fato de que a generalização da

expressão “meio de obtenção de prova” poderia levar a crer que nada que advenha

de um acordo possa ser utilizado como prova no processo, já que apenas os meios

581 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 270. 582 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Os limites da delação premiada. Disponível em: <http://goo.gl/ub55wf>. Acesso em: 12 de março de 2018. 583 MARQUES, Antonio Sergio Peixoto. A colaboração premiada..., 2014, p. 41. 584 BADARÓ, op. cit., p. 389. 585 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013.

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de prova “são os instrumentos com os quais se leva ao processo um elemento útil

para a decisão”586. Badaró ressalta a importância na diferenciação entre meios e

fontes de prova, na medida em que, no processo penal acusatório, “o juiz não pode

ser um investigador de fontes de prova”587, mas alguém para quem essas fontes são

introduzidas no processo. Com efeito, a sentença somente pode se amparar nos

meios de prova, que “com exceção das provas pré-constituídas (por exemplo, os

documentos) (...), deverão ser produzidos em contraditório judicial, na presença das

partes e do juiz”588.

Na colaboração premiada, parece ser claro que o acordo formal subscrito pelo

colaborador e Ministério Público terá a natureza de meio de obtenção de prova.

Trata-se, afinal, de um instrumento formal por meio do qual serão colhidas fontes

(como testemunhas indicadas pelo colaborador e informações sobre bens e valores

relacionados à atividade criminosa) e meios de prova (a palavra dessas

testemunhas, quando ouvidas em juízo, e os próprios bens e valores obtidos a partir

da indicação do acordo).

E é nesse sentido que o Supremo Tribunal Federal se posicionou, quando do

julgamento do Habeas Corpus nº 127.483/PR, relatado pelo Ministro Dias Toffoli, em

posicionamento unânime do Plenário, publicado em 4 de fevereiro de 2015.

Na oportunidade, embora se tenha reconhecido que “a homologação não

representa juízo de valor sobre as declarações eventualmente já prestadas pelo

colaborador à autoridade judicial ou ao Ministério Público” 589 , deixou-se

expressamente estabelecido que o depoimento do colaborador poderá, sim,

constituir-se como meio de prova. Com efeito, a simples celebração do acordo entre

o Ministério Público e o acusado e a sua posterior homologação pelo Poder

Judiciário não formalizam a prova – exatamente como ocorre com o pedido de

quebra de sigilo ou interceptação que são apenas deferidos pelo juízo, em

momentos nos quais apenas se instituem os meios para a obtenção da eventual

prova. No entanto, quando o colaborador é ouvido em juízo, sob a regência do

acordo, suas palavras se traduzem em meios de prova que poderão ser utilizados

586 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal..., 2016, p. 386. 587 Ibidem, p. 386. 588 Ibidem, p. 386. 589 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Plenário. HC 127483/PR. Relator Ministro Dias Toffoli. DJ 4.2.2016.

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em eventual decreto condenatório (ainda que haja ressalvas quanto à extensão

dessa utilização).

Dessa forma, não é certo afirmar, única e exclusivamente, que a colaboração

premiada, sob uma análise ampla, é um mero meio de obtenção de prova

(sobretudo se com o objetivo de refutar a utilização de seus resultados como

elemento de condenação criminal). O instituto tem essa natureza quando analisado

em tese, mas seus produtos – notadamente as palavras do colaborador – são meios

ou fontes de prova.

3.4.3 NATUREZA PENAL: SISTEMA DE BENEFÍCIOS PENAIS

Como se trata de um instituto processual, mas também de natureza penal

(incluindo-se o aspecto de execução penal ou penitenciário), a natureza jurídica da

colaboração premiada deve ser analisada sob ambos os aspectos. Vencida a

análise processual, a aferição do aspecto penal parece estar melhor relacionada

com o sistema de benefícios penais concessíveis ao colaborador. Nesse sentido,

sob essa dependência, a colaboração poderá ter natureza de causa de extinção da

punibilidade (em caso de perdão judicial, nos termos do art. 107, IX, do Código

Penal), causa especial de diminuição de pena, causa de fixação de regime mais

benéfico ou causa de substituição da pena por restritiva de direitos (todas as

modalidades fundamentadas pela previsão de benefícios do art. 4º, caput, da Lei nº

12.850/2013)590.

Embora se trate de classificação relativamente óbvia, há repercussões

técnicas na delimitação da natureza jurídica do aspecto penal da colaboração

premiada. Afinal, como defende Estellita:

Estabelecida a natureza jurídica de direito material da delação premiada em nosso direito positivo (causa de diminuição da pena ou de concessão de perdão judicial), dela decorre logicamente que somente pode ser aplicada na sentença condenatória como momento final de um devido processo legal, após exauriente análise probatória.591

590 MARQUES, Antonio Sergio Peixoto. A colaboração premiada..., 2014, p. 40. 591 ESTELLITA, Heloisa. A delação premiada para a identificação dos demais coautores ou partícipes: algumas reflexões à luz do devido processo legal. Boletim do IBCCRIM. Ano 17, nº 202, setembro/2009. P. 2.

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Esse tema será devidamente analisado no subcapítulo referente ao sistema

de benefícios e obrigações. Desde logo, porém, verifica-se a importância na

delimitação da natureza jurídica de um instituto como a colaboração premiada.

3.4.4 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO INSTRUMENTO DE DEFESA

Tendo a colaboração premiada a natureza penal de causa de extinção de

punibilidade e redução de pena como acima delineado, não se pode ignorar que se

trata de instituto que pode funcionar também como instrumento defensivo. Oliveira

desenvolveu o tema em sua tese de doutorado, enfatizando que, embora o instituto

necessite de “regras mais claras”592 e represente “profunda e dramática mudança

para o Direito Penal e Processual Penal” 593, sua utilização torna “possível construir

uma ponte entre dois importantes temas constitucionais e que não podem continuar

num eterno embate” 594 , em referência que faz às garantias fundamentais do

acusado e à segurança pública. Em igual sentido, Bretas sustenta que o defensor

que rejeita, de antemão, a utilização da colaboração premiada como instrumento de

defesa “já entra no ‘jogo processual’ em desvantagem, porque dá a largada sem

uma importante arma defensiva” 595.

A proliferação das colaborações premiadas no Brasil, sobretudo após a

deflagração da Operação Lava Jato, é um relevante indício dessa natureza

defensiva. É bem verdade que a referida operação, embora extremamente massiva

e prolífera, não é a primeira grande atuação da polícia e do Ministério Público no

combate à corrupção. No entanto, alguns fatores contribuíram para o contexto atual,

a partir do qual se evidencia que o uso da colaboração premiada assumiu

importantíssimo papel na definição da estratégia adotada pelos investigados e

acusados.

Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que, em 2010, houve uma relevante

alteração legislativa no regime da prescrição da pretensão punitiva. A Lei nº 12.234,

592 OLIVEIRA, Marlus Heriberto Arns de. A colaboração premiada como legítimo instrument de defesa na seara do Direito Penal Econômico. 2016. Tese (Doutorado em Direito Econômico e Socioambiental) – Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, p. 152. 593 Ibidem, p. 152. 594 Ibidem, p. 152. 595 BRETAS, Adriano Sérgio Nunes. Apontamentos de Processo Penal. Curitiba: Sala de Aula Criminal, 2017. p. 433.

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de 5 de maio daquele ano, alterou o art. 110, §1º do Código Penal, estabelecendo

que “a prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a

acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não

podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou

queixa” 596 . Com isso, extinguiu-se, para os crimes praticados após a lei, a

possibilidade de prescrição retroativa, contada da data do fato.

Some-se essa circunstância ao fato de que, a partir de 2016, o Supremo

Tribunal Federal passou a admitir a execução provisória da pena e chega-se a um

cenário em que o indivíduo que se vê acusado a partir de elementos robustos

apresentados pelo Ministério Público não mais pode se valer do tempo para extinguir

sua punibilidade.

No caso da Operação Lava Jato, a situação tornou-se ainda mais dramática

para os acusados, que, naquele caso, tiveram igualmente limitadas suas esperanças

de um futuro reconhecimento de nulidades no processo. É que, no julgamento do

Habeas Corpus nº 127.483597, realizado em fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal

Federal afastou qualquer irregularidade com a utilização da colaboração premiada

nos processos relacionados à operação, de modo que se antecipou uma futura

discussão que pudesse eventualmente alimentar a perspectiva de uma anulação do

processo.

Sem as possibilidades de reconhecimento da prescrição para os fatos

posteriores a 2010 e de declaração de nulidade do processo, não restou alternativa

a dezenas de acusados daquele feito que não a celebração de acordo de

colaboração.

Com a proliferação dos acordos e o reiterado reconhecimento de sua

legalidade por inúmeros outros tribunais, a lógica provavelmente seguirá em relação

a processos futuros. Assim, em se tratando de investigação ou acusação embasada

em elementos sólidos que dificilmente serão impugnados pelo exercício da defesa

técnica, apresenta-se a colaboração premiada como instrumento útil e eficaz ao

investigado/acusado para evitar uma condenação criminal pesada, que lhe imponha

longa privação de liberdade.

596 BRASIL. Lei nº 12.234, de 5 de maio de 2010. Altera os arts. 109 e 110 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12234.htm> Acesso em 22 de abril de 2018. 597 BRASIL. Habeas Corpus 127.483/PR, 2016.

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3.4.5 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO ATO NEGOCIAL COMPOSTO

Também cabe uma classificação da colaboração premiada sob a perspectiva

do ato administrativo. Considerando-se que o Ministério Público (e a autoridade

policial) e o Poder Judiciário atuam em nome da Administração quando da

negociação, celebração e homologação de acordo de colaboração, trata-se de uma

“intervenção da vontade administrativa” 598 , realizada por meio de um “ato

negocial” 599 . Segundo Mello, o ato negocial é aquele “em que a vontade

administrativa é, de direito, preordenada à obtenção de um resultado jurídico, sendo

ela que cria imediatamente os efeitos jurídicos, embora dentro dos quadros

legais”600.

Como ensina Carvalho Filho, porém, “a vontade administrativa pode

exteriorizar-se de forma una ou múltipla” 601 , sendo chamados de atos simples

aqueles que emanam “da vontade de um só órgão ou agente administrativo”602 e

complexos ou compostos aqueles que reclamam “a intervenção da vontade de mais

de um órgão ou agente administrativo” 603. No caso da colaboração premiada, não

basta a vontade de um só agente administrativo, já que, após celebrado com o

Ministério Público, o acordo deve ser homologado pelo Poder Judiciário. Não se

trata, portanto, de ato simples. Dentre as demais modalidades, parece que o

conceito que melhor se aplica é o relacionado ao ato composto.

Explica-se: no ato complexo, a “vontade final da Administração exige a

intervenção de agentes ou órgãos diversos, havendo certa autonomia, ou conteúdo

próprio em cada uma das manifestações” 604 ; no ato composto, embora haja

múltiplos agentes, não há “vontades autônomas”605, mas um conteúdo próprio que é

acrescido de vontades “meramente instrumentais, porque se limitam à verificação de

legitimidade do ato”606.

598 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23ª Edição. São Paulo: Atlas, 2015, p. 132. 599 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 416. 600 Ibidem, p. 416. 601 CARVALHO FILHO, op. cit., p. 132. 602 Ibidem, p. 132. 603 Ibidem, p. 132. O autor reconhece que a subdivisão entre atos complexos e compostos não é pacífica na doutrina. Neste estudo, porém, é oportuna a classificação adotada na referida obra. 604 Ibidem, p. 132. 605 Ibidem, p. 132. 606 Ibidem, p. 132.

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Na colaboração premiada, a vontade da Administração é uma só: celebrar um

acordo que prevê benefícios penais, processuais e de execução penal com o

colaborador da justiça que cumprir os requisitos legais. Ao celebrar o acordo, o

Ministério Público manifesta o conteúdo dessa vontade, que não é revisto pelo

Poder Judiciário, a quem cabe, única e exclusivamente, verificar se a composição

atende aos ditames previstos em lei para a homologação, a qual, por sua vez, não

se reveste de discricionariedade.

3.5 OS SUJEITOS DA COLABORAÇÃO

A princípio, o texto expresso da Lei nº 12.850/2013 não traz questionamentos

sobre as partes envolvidas na colaboração premiada. Sob a perspectiva negocial,

tem-se, de um lado, a figura do colaborador e seu advogado (que deve sempre

acompanhá-lo, em todos os atos relacionados ao acordo); do outro, o delegado de

polícia e/ou o Ministério Público. Sob a perspectiva judicial, naturalmente, tem-se o

Juiz que decide sobre a homologação do acordo e sobre a concessão dos

benefícios legais.

Neste subcapítulo, porém, analisar-se-ão dois aspectos bastante relevantes

sobre o instituto, quais sejam: a) a natureza do colaborador no processo (o que é

relevantíssimo para a definição do valor probatório de suas declarações); e b) a

legitimidade concorrente do Ministério Público e da polícia, na medida em que há um

profundo questionamento doutrinário e jurisprudencial sobre a possibilidade de a

autoridade policial celebrar acordo.

3.5.1 O PAPEL DO COLABORADOR NO PROCESSO

Como se afirmou logo acima, a delação – ou chamamento de corréu – é uma

das hipóteses para a configuração da colaboração premiada, que dependerá da

confissão e de outras atividades previstas em lei (como a recuperação de valores, a

prevenção de outros crimes ou a localização da vítima, no caso de extorsão

mediante sequestro). É claro, porém, que a identificação de coautores e a revelação

da estrutura hierárquica da organização criminosa, o que se dará, invariavelmente,

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pela atribuição de fatos criminoso a terceiros, é a atividade que merece maior

atenção.

A uma, porque, diferentemente dos demais resultados esperados pela

colaboração, descritos no artigo 4º da Lei nº 12.850/2013, a delação nem sempre

envolverá atributos aferíveis objetivamente (como seria com a devolução de valores,

a prevenção de novos crimes e a localização física de vítima); a duas, porque, a

partir das palavras do colaborador, novos e presumidamente inocentes indivíduos

passarão a ser escrutinizados, submetendo-se às naturais agruras de uma

investigação e de um eventual processo criminal.

Nesse sentido, é importante definir qual a função desempenhada pelo

colaborador no âmbito da investigação e da ação penal. Há quem sustente, como

menciona Vasconcellos, que se trataria de uma “natureza dúplice” 607 , com o

colaborador atuando como um réu confesso quanto aos fatos que lhe digam respeito

e, paralelamente, como testemunha a respeito dos corréus608. Por outro lado, o

próprio autor refuta essa posição, ao lado de Pereira, que afirma ser “incorreto

estender o tratamento jurídico do testemunho, da confissão, ou de qualquer outro

meio de prova a esse tipo de declaração, sem prévias cautelas”609.

Badaró, por sua vez, defende que o colaborador é “uma testemunha que não

presta o compromisso de dizer a verdade (art. 203) e não poderia cometer o crime

de falso testemunho (CP, art. 342)”610, não podendo ser igualmente contraditado.

Embora o §14 do artigo 4º da Lei nº 12.850/2013 estabeleça que o colaborador

“estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade” 611 , a equiparação do

colaborador à testemunha não compromissada ou ao informante é interessante.

Em primeiro lugar, porque o compromisso com a verdade é requisito de

validade para o seu acordo, mas não afasta o seu interesse na causa612, já que o

teor de suas declarações estará vinculado, em certa medida, com o benefício que

607 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2017, p. 64. 608 É o caso de GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal. 9ª Edição. São Paulo: RT, 2006. P. 181: “O co-réu, embora parte, pode também ser testemunha de crime praticado por outro acusado, quando o Código determina a unidade de processo (art. 79 do CPP).” 609 PEREIRA, Frederico Valdez. Delação premiada - Legitimidade e Procedimento - Aspectos Controvertidos do Instituto da Colaboração Premiada de Coautor de Delitos como Instrumento de Enfrentamento do Crime Organizado. 3ª Edição. Curitiba: Juruá, 2016, p. 187. 610 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 454. 611 BRASIL, Lei nº 12.850..., 2013. 612 VASCONCELLOS, op. cit., p. 67.

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lhe será concedido. Ademais, há um crime específico para o descumprimento do

referido compromisso com o acordo, inserido no art. 19, que estabelece uma figura

especial de “falso testemunho” ao colaborador que imputa falsamente crime a

terceiro, a pretexto de colaborar com a justiça.

É certo, não obstante, que há tantas similaridades quanto divergências na

inclusão do colaborador na categoria de informante. De um lado, ambos são

interessados na causa; do outro, um assume o compromisso com a verdade, ainda

que não sob as mesmas condições que uma testemunha compromissada. Diante

disso, e evidenciando-se tal cenário, a melhor solução parece ser a inclusão da

figura de colaborador, pura e simplesmente, como sujeito autônomo do processo,

reconhecendo-se seu interesse na causa ao mesmo tempo em que se lhe exige o

compromisso com a verdade. Caso o restante das provas ratifique seus termos

pessoais produzidos em Juízo, tratar-se-á de um colaborador em dia com seu

acordo; caso contrário, certamente se lhe revogarão os benefícios, devolvendo-o à

condição de réu, pura e simplesmente.

3.5.2 OS LIMITES DE ATUAÇÃO DO ADVOGADO

Embora seja certo que a participação do advogado em todos os atos

relacionados à colaboração premiada se trate de imposição legal (art. 4º, § 15 da Lei

nº 12.850/2013), cabem alguns questionamentos quando há patrocínio múltiplo em

uma mesma causa ou quando o próprio colaborador é advogado. Trata-se de

problemas recentemente enfrentados por Sánchez Rios e Farias, que, de antemão,

confirmam a “ausência de definições de como deve se dar a conduta do advogado

criminalista”613 e enfatizam a necessidade de maior discussão sobre o tema.

A respeito da atuação do mesmo advogado em face de mais de um

colaborador, em um mesmo caso, os autores afirmam se tratar de situação

“absolutamente insustentável, tendo em vista o evidente conflito de interesses entre

dois delatores” 614, inclusive com vedação do Código de Ética e Disciplina da Ordem

dos Advogados do Brasil. Conforme seguem, “ainda que se argumente pela

inexistência de prejuízo caso os depoimentos resultem compatíveis entre si, sempre

613 SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo; FARIAS, Renata Amaral. O instituto da colaboração premiada no sistema legal brasileiro e sua receptividade como meio de defesa. IBCCRIM (artigo aceito para publicação), 2018, p. 16. 614 Ibidem, p. 17.

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haverá a imputação de culpa recíproca capaz de impossibilitar o patrocínio de

ambos os acusados pelo mesmo profissional”615.

Ademais, os autores sugerem que, no patrocínio simultâneo, o advogado

pode se ver em meio a contradições entre as declarações, que o colocariam

“posição difícil, pois tem o dever de advertir seus clientes sobre as possíveis

consequências decorrentes dos depoimentos diversos, mas não pode violar o dever

de sigilo” 616 e tampouco orientá-los a uma narrativa consistente, “sob pena de

participação no crime do art. 19 da Lei 12.850/2013” 617. A preocupação tem razão

de ser, já que ao advogado não caberá apenas o acompanhamento das

negociações, mas a orientação sobre a conduta a ser tomada pelo seu cliente para o

atendimento de suas obrigações contratuais com o Ministério Público. Caso as

declarações de um dos colaboradores indique um equívoco ou falsidade nos termos

do outro, pode-se cogitar situação de conflito de interesses a que se refere o art. 20

do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil.

A mesma impossibilidade de atuação, segundo Sánchez Rios e Farias, seria

verificada no patrocínio simultâneo de um colaborador e um não-colaborador por ele

delatado. Afinal, o sucesso na defesa de um possivelmente envolveria o fracasso na

do outro618. Por fim, os autores tratam de duas situações – que já se verificaram na

prática – em que o colaborador é advogado e rompe seu dever de sigilo com clientes

em razão do acordo. Na primeira, em que sua atuação se resumiria a fornecer

informações da organização criminosa que tenha integrado, Sánchez Rios e Farias

admitem a colaboração mediante o uso de “informações privilegiadas obtidas no

exercício da advocacia (...) desde que possuam relação estreita com os fatos” 619.

Caso, porém, a colaboração se volte a fatos não relacionados, entendem os

autores que “as informações obtidas por meio da defesa de clientes que não se

relacionam de nenhuma maneira com o fato objeto da investigação devem estar

protegidas pelo sigilo profissional (art. 35 e 36, CED)” 620. Ainda que o próprio estudo

sugira a necessidade de melhor aprofundamento do tema, parecem acertados os

posicionamentos, que buscam conciliar os deveres éticos da advocacia com os

objetivos da colaboração premiada.

615 SÁNCHEZ Rios, Rodrigo, FARIAS, Renata Amaral. O instituto da colaboração..., 2018, p. 17. 616 Ibidem, p. 17. 617 Ibidem, p. 17. 618 Ibidem, p. 18. 619 Ibidem, p. 20. 620 Ibidem, p. 21.

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3.5.3 A LEGITIMIDADE CONCORRENTE DA POLÍCIA

No subcapítulo referente à dinâmica legal da colaboração, mencionou-se em

diversos momentos a figura da autoridade policial como parte legal da colaboração

premiada. Em vários dispositivos, como os §§ 2º, 6º e 9º, o delegado de polícia é

citado como participante ativo das negociações, oitivas e pedidos relacionados ao

colaborador, a partir do que seria de se presumir como clara sua legitimidade para

atuação junto ao instituto.

Entretanto, a natureza jurídica e a forma como se desenvolveram os

principais acordos do país (como na Operação Lava Jato, por exemplo), com a

previsão de benefícios engessados para a fixação e cumprimento antecipado de

pena, ou suspensão de processos conexos por prazos não previstos em lei

(cláusulas que serão bastante analisadas mais adiante), trouxeram questionamentos

válidos à atuação da polícia.

É que, se o acordo de colaboração pode ser entendido como um instrumento

de produção de prova (judicial) e palco de disposição, pelo Ministério Público, de sua

pretensão punitiva (entendendo-se o parquet, não apenas como titular, mas como

dono da ação), tem-se sistema que escapa das limitações institucionais da polícia.

Afinal, atuando apenas no âmbito investigativo, o delegado de polícia não tem

qualquer dizer sobre os desdobramentos processuais e penais do caso, não lhe

cabendo, a priori, autoridade sobre a pena a ser fixada e a suspensão de processos,

dentre outras possibilidades.

Em outras palavras: caso se entenda o acordo como instrumento de

possibilidades ilimitadas no que diz respeito à aplicação de benefícios (como a

limitação prévia da pena a ser fixada) em troca de colaboração processual, cria-se

um modelo de negociação incompatível com a atividade policial. Diante disso, e para

se evitar que haja dois tipos de acordo (um estabelecido pela polícia, com as

limitações que lhe recaem; outro, pelo Ministério Público, com infindáveis

possibilidades), fala-se na ilegitimidade do delegado de polícia para celebrá-los.

Bitencourt e Busato, nesse sentido, afirmam haver “inconstitucionalidade

flagrante” 621 na previsão da atuação da polícia do §2º do art. 4º da Lei nº

12.850/2013, “na medida em que, sendo a ‘colaboração premiada’ um meio de prova

621 BITENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei..., 2014, p. 122.

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– diga-se, prova processual –, converte o delegado de polícia em sujeito

processual”622. Para os autores, em sendo a colaboração (ou seus frutos) meio de

prova, a polícia estaria agindo na instrução judicial “mesmo à revelia do órgão

acusador”623. Filipetto e Rocha, por sua vez, levantam outra relevante insurgência:

Outro ponto merece destaque: a prova produzida pela Polícia Judiciária não se dirige ao Magistrado e sim ao Ministério Público. Não há como ultrapassar a vontade daquele que tem a função de deliberar sobre a prova, apontar os caminhos de apuração e mensurá-la a fim de averiguar se ela possui substrato probatório mínimo a ensejar a condenação. Não há como desconsiderar a opinião daquele que, exercendo o controle da atividade policial em relação à produção probatória, necessita ter sua opinio delicti formada. Trata-se de medida que contradiz a própria essência do Ministério Público.624

Os autores, na continuidade de sua justificativa para a ilegitimidade da polícia,

confirmam que, além do aspecto probatório indicado igualmente por Bitencourt e

Busato, há a perspectiva da “atenuação da obrigatoriedade da ação penal”625. Com

efeito, assim como na transação penal, em que o Ministério Público tem titularidade

exclusiva para propor benefícios que prejudicam a ação, o mesmo deveria ocorrer

na colaboração premiada – a qual, para os autores, possuiria a mesma

característica.

Em sentido oposto, Costa defende a participação da polícia na propositura do

acordo, enfatizando “uma tendência de potencialização da fase investigativa

processual, que exige um acompanhamento mais próximo das partes processuais

(Ministério Público, defesa e juiz) sobre o inquérito policial”626. Segundo o autor, a

legitimidade da polícia seria “importantíssima do ponto de vista da eficiência do

instituto”627, podendo a autoridade policial agir em situações de emergência, nas

quais eventual demora do Ministério Público pudesse “comprometer o resultado

positivo que se quer alcançar” 628.

O posicionamento de Costa, porém, não é absoluto, na medida em que se

alinha ao entendimento majoritário de que o Ministério Público deverá ratificar,

622 BITENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei..., 2014, p. 122. 623 Ibidem, p. 123. 624 FILIPETTO, Rogério; ROCHA, Luísa Carolina Vasconcelos Chagas. Colaboração Premiada – contornos segundo o sistema acusatório. Belo Horizonte: Editora D’Plácito, 2017. P. 151. 625 Ibidem, p. 152. 626 COSTA, Leonardo Dantas. Delação Premiada. Curitiba: Juruá Editora, 2017. P. 115. 627 Ibidem, p. 115. 628 Ibidem, p. 115.

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“necessariamente”629, os termos do acordo proposto pela autoridade policial. Nesse

sentido, a polícia teria a função de instrumentalizar, sob uma análise prática, a

colaboração premiada, que dependeria do aval do Ministério Público para ser

submetida ao Poder Judiciário.

O entendimento é encabeçado por Pereira, que sustenta que, embora a lei

preveja a atuação da polícia nos parágrafos do artigo 4º, esses devem ser

analisados em conjunto com o caput, que estabelece que os benefícios poderão ser

concedidos pelo Juiz “a requerimento das partes” 630 , limitando a legitimidade à

acusação e defesa. Assim, não haveria inconstitucionalidade, mas seria “irrefutável

concluir que, na prática, a autoridade policial somente poderá iniciar tratativas

direcionadas a verificar o interesse na colaboração e, em seguida, representar ao

membro do MP para que conduza à formalização do acordo”631.

Discorda-se de Pereira quanto à interpretação desdobrada da redação do

caput. Ao mencionar o requerimento das partes, o texto legal não faz menção a um

pedido conjunto de concessão de benefícios que seja feito pela defesa e Ministério

Público. A partir da interpretação literal do dispositivo, não se pode afastar a

possibilidade de que, celebrado acordo proposto pelo delegado de polícia, apenas a

defesa, em Juízo, requeira a concessão dos benefícios.

Quanto à doutrina integralmente favorável à legitimidade da autoridade

policial, tem-se o posicionamento de Anselmo, que sustenta que, na qualidade de

presidente da investigação (segundo ele, “o momento mais propício para que a

colaboração premiada ocorra e para que os fatos possam ser completamente

esclarecidos”632 ), “nada mais coerente que o mesmo detenha legitimidade para

celebrar acordos” 633). O autor traz outro argumento extremamente razoável para

permitir a atuação policial na colaboração premiada, qual seja a legitimidade que se

confere para a representação “por todas as outras medidas cautelares, tais como a

interceptação telefônica, busca e apreensão, quebra de sigilo bancário”634. De fato,

em sendo o acordo formalizado um meio de obtenção de prova, não há razão para

629 COSTA, Leonardo Dantas. Delação Premiada..., 2017, p. 115. 630 BRASIL, Lei nº 12.850..., 2013. 631 PEREIRA, Frederico Valdez. Delação premiada..., 2016, p. 132. 632 ANSELMO, Márcio Adriano. Colaboração Premiada. O novo paradigma do processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Mallet, 2016, p. 84. 633 Ibidem, p. 84. 634 Ibidem, P. 84.

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diferenciá-lo, quanto à legitimidade, de outros instrumentos de mesma natureza, o

que traz força ao posicionamento de Anselmo.

Vasconcelos, por sua vez, ainda que se alinhe ao entendimento de Pereira de

que “o texto é claro ao condicionar a atuação policial à posterior ‘manifestação do

Ministério Público’, de modo a autorizar somente a realização de negociações

preliminares entre defesa e autoridade policial” 635 , aventa “como solução

excepcional a possibilidade de sua proposição pelo Delegado de Polícia” 636 na

hipótese de negativa ilegítima do Ministério Público em propor o acordo.

O autor assim se posiciona por entender que a celebração do acordo de

colaboração premiada é direito subjetivo do acusado e que, “se presentes seus

pressupostos e requisitos no caso concreto”637, seria obrigatória a celebração do

acordo. Assim, negando-se o Ministério Público à revelia desses pressupostos e

requisitos, poderia a autoridade policial fazê-lo. Ressalta, porém, o autor que “essa

não parece ser a melhor solução a tal problemática situação, mas, por certo, pode

ser um meio de redução de danos pela injustificada recusa do promotor”638.

Esse último entendimento busca delimitar um “caminho do meio” para a

solução do conflito. Segundo o autor, o acordo que seja proposto pela autoridade

policial preferencialmente deve ser albergado pelo Ministério Público. Não o

fazendo, e entendendo a autoridade policial e a defesa pelo seu cabimento, caberia

ao Juízo analisá-lo e homologá-lo.

É difícil a adoção desse posicionamento, na medida em que coloca a

autoridade policial com um poder fiscalizador – que não possui – da atividade do

Ministério Público. Embora seja certo que o inquérito policial é um momento

extremamente oportuno para a celebração de um acordo, o rol de benefícios

previstos em lei tem lugar apenas no curso da ação e da execução penal. Assim,

ainda que pudesse alienar, no acordo, a participação do titular da ação penal, a

autoridade policial não teria participação em seu curso, não tendo qualquer dizer

sobre a efetividade da colaboração e a derradeira concessão de benefícios.

Ademais, a indicação de que a celebração do acordo seria um direito subjetivo do

635 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 92. 636 Ibidem, p. 92. 637 Ibidem, p. 92. No mesmo sentido: BRETAS, Adriano Sérgio Nunes. Apontamentos..., 2017, p. 436. 638 Ibidem, p. 93.

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acusado parece ser incompatível com a própria ideia de acordo, que pressupõe uma

recíproca manifestação de vontade das partes639.

Cabe, aliás, um parêntesis na análise da legitimidade da autoridade policial.

Antes de se apresentar um posicionamento sobre o tema, é interessante voltar muito

rapidamente à compreensão do que é a polícia e qual a função etimológica e

histórica do Delegado de Polícia – que seria, segundo a lei, um dos legitimados a

celebrar o acordo. Chemim explica que o termo “polícia” sempre esteve ligado ao

poder do Estado, seja com a genérica “ideia de governar”640, dos gregos, ou de

arrecadação de tributos, da Idade Média, seja com a função mais moderna de

manter a ordem e a segurança, “em caso de ameaça à ordem da coletividade”641. O

Poder de Polícia, propriamente dito, é, portanto, o poder do Estado de “manutenção

da ordem pública, a fim de que se possa viver harmoniosamente em sociedade,

atuando de forma preventiva e repressiva no combate aos desvios de conduta dos

cidadãos” 642.

No Brasil, seguindo a lição de Chemim, a evolução da polícia seguiu uma

série de sucessivos, mas não lineares, passos. Durante a vigência das Ordenações

Afonsinas, em Portugal, a polícia andava ao lado da magistratura como “longa

manus do Rei de Portugal”643. Quando das Ordenações Manuelinas, na colonização,

o poder de polícia recaía aos “governadores das cidades”644. A partir do século XVII,

passou a ser vinculado aos Juízes, com delegações de funções diversas

(“quadrilheiros” e “vintaneiros”, por exemplo, atuando como a autoridade policial de

hoje645). No Código de Processo Criminal do Império, de 1832, estabeleceu-se que o

chefe de polícia seria um juiz de direito646, sendo que, na reforma de 1841, passou-

639 Conforme Mendonça: “Por sua vez, embora a colaboração, na perspectiva defensiva, seja um meio de defesa, não há um direito subjetivo do imputado ao acordo de colaboração premiada. Isso porque, somente se o MP concordar que se trata de um meio de obtenção de prova eficiente e veraz, é que o acusado terá direito a firmar o acordo.” MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis na colaboração premiada: entre a legalidade e a autonomia da vontade. In: MOURA, Maria Thereza de Assis; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Colaboração Premiada. São Paulo: RT, 2017, p. 61. 640 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Controle Externo da Atividade Policial pelo Ministério Público. Curitiba: Juruá, 2002, p. 22. 641 Ibidem, p. 23. 642 Ibidem, p. 24. 643 Ibidem, p. 24. 644 Ibidem, p. 24. 645 Ibidem, p. 25. 646 BRASIL. Lei de 29 de novembro de 1832. Promulga o Codigo do Processo Criminal de primeira instancia com disposição provisoria ácerca da administração da Justiça Civil. Disponível em <http://goo.gl/z7sZE5> Acesso em 28 de abril de 2018.

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se a prever a figura dos delegados e subdelegados do chefe de polícia (que era

escolhido entre os desembargadores e juízes)647.

Foram inúmeras as alterações legislativas até o presente momento, que

acabaram por separar a autoridade policial do Poder Judiciário (e dividi-la entre

funções distintas). No entanto, Chemim ainda observava, em 2002, a manutenção

desse padrão vinculado do “delegado do poder de polícia do Juiz” com as figuras

dos “delegados ‘calças-curtas’” 648 (o que também se observa com resquícios dessa

vinculação com algumas funções que remanescem ao Delegado, como a concessão

de fiança e o auto de prisão em flagrante, por exemplo).

Com efeito, observa-se que a autoridade policial, enquanto instituição, nunca

teve uma função autônoma que pudesse cumprir, em teoria, o que se ora discute

quanto à colaboração. Atualmente, sua função é a de órgão de apoio do Ministério

Público na investigação, ainda que não haja a “delegação” legal nos moldes

históricos da função.

Sob essa perspectiva da função policial, mais corretos parecem ser o

entendimento de Pereira (quanto à compreensão da expressão “manifestação do

Ministério Público” do art. 4º, §§2º e 6º da Lei nº 12.850/2013 como anuência ou

aval) e a percepção eminentemente procedimental dos momentos em que se podem

realizar os acordos e os atores que deles participam 649 . Ou seja: a autoridade

policial, desde que com o aval do Ministério Público, poderia celebrá-lo durante o

inquérito policial; durante a ação penal e a fase de execução, a legitimidade seria

exclusiva do órgão acusatório.

A solução, por ora, foi estabelecida no Supremo Tribunal Federal, no

julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.508, proposta pela

Procuradoria Geral da República para o reconhecimento da inconstitucionalidade da

previsão legal de atuação da autoridade policial na celebração dos acordos, que

647 BRASIL. Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841. Reformando o Codigo de Processo Criminal. Disponível em: <http://goo.gl/kqYR4K> Acesso em 28 de abril de 2018. 648 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Controle Externo..., 2002, p. 34. 649 Também nesse sentido, Didier Jr. e Bonfim prescrevem que o fato de o delegado ser “titular de poderes (situações jurídicas ativas) relativos à investigação e colheita de provas quanto à autoria e materialidade do delito” não seria suficiente para transformá-lo em “legitimado para propor a demanda penal”. Com efeito, segundo o autor “ele apenas terá capacidade negocial – desde que complementada pela participação do Ministério Público – justamente tendo como fim a investigação. DIDIER JR., Fredie; BONFIM, Daniela. Colaboração Premiada (Lei nº 12.850/2013): Natureza Jurídica e Controle da Validade por Demanda Autônoma – um Diálogo com o Direito Processual Civil. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, nº 62, out./dez. 2016, p. 32.

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reconheceu a legitimidade da autoridade policial para propor o acordo650, ainda que

mediante certo esvaziamento de seu objeto.

O Ministro Marco Aurélio, relator da ação, votou pela sua improcedência,

afirmando que, em sendo a colaboração premiada um meio de obtenção de provas,

seria paradoxal retirar da autoridade policial a legitimidade para celebrá-la, já que

atua exclusivamente na sua produção durante a investigação. Em sentido

semelhante, o Ministro Alexandre de Moraes ressalvou apenas a possibilidade de a

autoridade policial propor a concessão de perdão judicial, na medida em que tal

tema prejudicaria o exercício da ação penal, que não lhe caberia (o que, por si só, é

questionável – já que o perdão poderia ser concedido ao final da ação penal651).

Da mesma forma, o Ministro Roberto Barroso excepcionou apenas a

possibilidade de concessão de imunidade (como, aliás, a própria lei já faz). A

Ministra Rosa Weber e o Ministro Luiz Fux deram parcial procedência à ação para

exigir a ratificação do acordo pelo Ministério Público. Por sua vez, o Ministro Edson

Fachin votou por afastar a legitimidade da autoridade policial, mas asseverou a

possibilidade de a autoridade policial atuar durante as negociações, pré-validando

elementos fornecidos e orientando o investigado quanto aos efeitos da futura e

eventual colaboração. Por fim, o Ministro Dias Toffoli defendeu a realização de

acordo pela autoridade policial, afastando-lhe, porém, a competência para negociar

penas ou regimes de cumprimento.

O último voto é sintomático do primeiro problema apresentado neste

subcapítulo. Na realidade, a discussão sobre a legitimidade depende de uma

definição sobre a extensão do acordo. Sendo a lei textualmente seguida (conforme

será bem delineado no subcapítulo relacionado às cláusulas dos acordos), nenhum

benefício seria garantido aos colaboradores, cabendo ao Juiz, identificando os

resultados da colaboração, defini-los. Assim sendo, o acordo não funcionaria além

de uma espécie de carta de intenções entre as partes, na qual o Ministério Público

(e, a depender do entendimento, a autoridade policial) sugeriria ao Magistrado os

benefícios que entendesse razoáveis caso cumpridas as obrigações estabelecidas

no acordo.

650 O acórdão não foi publicado até a data de conclusão deste trabalho. 651 Considerando-se que o voto não foi publicado até o presente momento, é possível que haja inconsistências na reprodução midiática do julgamento.

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Se a concessão de benefícios dependesse da verificação judicial, após a

instrução probatória, de que os termos do acordo foram cumpridos, não haveria

qualquer óbice à celebração de idênticos acordos, seja pela autoridade policial

(desde que durante o inquérito policial), seja pelo Ministério Público. Afinal, estar-se-

ia formalizando um compromisso de colaborar do investigado/acusado com uma

previsão de concessão de benefícios que dependeria da efetividade futura da

colaboração. Nesse sentido, seria irrelevante quem fosse o representante do Estado

na negociação (a depender de seu momento, frise-se), já que caberia ao Juiz, em

uma análise do acordo ao final do processo, a sua resolução. Nesse aspecto, aliás,

seria aparentemente dispensável a própria celebração de um acordo, já que a lei

não exige a formalidade para a concessão de benefícios ao réu colaborador.

O grande percalço para esse entendimento, porém, é o fato de que a prática

forense tem conferido aos acordos um alcance infinitamente maior, com o

estabelecimento de benefícios certos e praticamente inquestionáveis quando da

sentença condenatória (e muitas vezes cumpridos de imediato, a partir da decisão

de homologação). Nesse cenário, realmente não parece ser razoável que a

autoridade policial tenha autonomia absoluta, na medida em que se fixam penas e

regimes de cumprimento (antes, inclusive, do oferecimento de denúncia), e sempre

com a expectativa de que tais previsões serão invariavelmente cumpridas caso o

colaborador não viole gravemente suas obrigações contratuais. Tais previsões não

fazem parte, de forma alguma, da atribuição da autoridade policial.

Com efeito, a questão da legitimidade, em que pese resolvida pelo Supremo,

depende mais de uma delimitação da extensão dos benefícios e do momento de

concessão (o que será objeto de estudo nos próximos capítulos) do que

propriamente da leitura do texto legal. Por ora – e verificando-se como tem se

desenvolvido a prática –, este trabalho se posiciona conforme acima delineado, no

sentido de que o acordo poderá negociado pela autoridade policial exclusivamente

no inquérito policial, desde que com o aval do Ministério Público.

Sob tal enfoque, parece que se garante a titularidade do Ministério Público na

ação penal e no âmbito da execução, assim como se observa a leitura fria da lei,

segundo a qual teriam razão os defensores da legitimidade da autoridade policial, e

não apenas porque o legislador assim previu, mas porque a natureza do instituto

permite essa compreensão, assim como o faz com outras medidas cautelares que

visam a obtenção de prova.

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3.6 PROCEDIMENTO

No subcapítulo 3.3, este trabalho apresentou, em linhas gerais, a estrutura

legal da colaboração premiada estabelecida na Lei nº 12.850/2013, com um resumo

de todos os seus dispositivos. Neste subcapítulo, busca-se enfrentar os meandros

do procedimento para a negociação, celebração e homologação, bem como dos

desdobramentos para o reconhecimento da efetividade do acordo. Como se poderá

ver, alguns desses temas não tÊm propriamente um lastro legal, na medida em que

aquele diploma não traz todos os detalhes do procedimento. Outros tópicos deste

subcapítulo irão aprofundar assuntos já genericamente tratados, sempre com a

pretensão de não ser repetitivo.

De antemão, esclarece-se que, além do próprio texto legal e da doutrina

especializada, lançar-se-á mão do Manual de Colaboração Premiada da Estratégia

Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA)652, que é o

guia de procedimento adotado pelo referido instituto, o qual, por sua vez, é vinculado

ao Ministério da Justiça e tem como integrantes várias unidades estaduais do

Ministério Público (inclusive do Paraná), a Polícia Federal e o Ministério Público

Federal, entre outros. A amplitude de adoção do referido manual torna seguro

afirmar que se trata, em tese, do modelo que poderia estar sendo utilizado na prática

forense atual.

Além do referido Manual, far-se-á menção à Orientação Conjunta nº 1, de 23

de maio de 2018, das 2ª e 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão – Combate à

Corrupção, do Ministério Público Federal. Trata-se de documento firmado após a

celebração dos acordos que serão analisados neste estudo (e de toda a discussão

doutrinária e jurisprudencial que será enfrentada), mas que condensa, como

orientação para o futuro da colaboração premiada, “as boas práticas desenvolvidas

nos acordos anteriormente firmados pelo Ministério Público Federal”653, em uma

espécie de manual prático desenvolvido a partir da experiência prévia do referido

órgão e com o objetivo de divulgar os parâmetros atualmente exigidos quanto ao

instituto.

652 BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA). Manual – Colaboração Premiada. Janeiro de 2014. Disponível em <http:// goo.gl/9iY7fV> Acesso em 12 de março de 2018. 653 BRASIL. Ministério Público Federal. Orientação Conjunta nº 1/2018. 23 de maio de 2018. Disponível em: <http://goo.gl/i9Mieq> Acesso em 29 de maio de 2018.

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3.6.1 A NEGOCIAÇÃO

A fase de negociação da colaboração premiada não faz parte do arcabouço

de dispositivos da Lei nº 12.850/2013. Como já se afirmou anteriormente, a primeira

menção ao acordo se dá no §6º do artigo 4º daquele diploma, mas apenas contém a

afirmação de que “o juiz não participará das negociações realizadas entre as partes

para a formalização do acordo”, o que não fornece nenhuma pista sobre como se

dará essa fase.

O Manual da ENCCLA, por sua vez, prescreve uma atuação ativa das

autoridades, recomendando que “os órgãos responsáveis pela investigação,

presentes os requisitos de admissibilidade, busquem a cooperação de pessoas

suspeitas de envolvimento nos fatos investigados e proponham a colaboração,

expondo as vantagens, independentemente da iniciativa do agente”654. O último

trecho dessa sentença, porém, deixa aberta a possibilidade de o agente, investigado

ou já acusado, apresentar-se com a intenção de colaborar.

Quanto ao primeiro contato, portanto, não parece haver muitas dúvidas. Tanto

a autoridade policial e o Ministério Público, quanto o próprio agente podem propor a

colaboração. Frise-se, porém, que a proposição dos órgãos públicos jamais pode

funcionar como coação e deve ser feita, ainda que em um momento preliminar, por

intermédio do defensor.

O grande questionamento, porém, gira em torno da discricionariedade do

primeiro contato dos investigadores e da sua admissibilidade quando feito pela

parte. Como se trata de um instrumento negocial e que, portanto, exige a

participação mútua e voluntária de investigado/acusado e agente público, não é

certa a definição sobre quando, e em quais condições será proposta a colaboração

pela polícia ou Ministério Público, ou aceita (e mesmo considerada) a sugestão do

investigado/acusado. O próprio Manual da ENCCLA prescreve que “a autoridade

policial e o Ministério Público não são obrigados a propor ou aceitar a oferta de

colaboração quando julgarem, pela circunstância do caso, que ela não é

necessária”655.

654 BRASIL, Orientação Conjunta..., 2018, p. 2. 655 BRASIL, Manual – Colaboração..., 2014, p. 3.

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O estudo do plea bargaining norte-americano traz uma resposta para essa

dúvida656: o carrot and stick approach (em tradução literal, a abordagem da cenoura

e do bastão657). Considerando-se que a maioria dos casos dos Estados Unidos da

América são resolvidos por meio de acordo, não é do interesse – em geral – do

Ministério Público que os casos sigam para julgamento (conforme se abordou no

segundo capítulo). Assim, propõem-se os acordos sobre a lógica do carrot and stick:

caso o acusado aceite o acordo, recebe a cenoura; caso contrário, submete-se ao

bastão – havendo aqui a presunção de que, como não há interesse em julgamento,

o rigor será excessivo quando o acusado for intransigente com a barganha. É o que

explicam Hass, Moloney e Chambliss:

(...) pesquisa mostra que as pessoas que vão ao julgamento, ao invés de aceitar um acordo de barganha, são suscetíveis a receber uma punição mais severa. Isso ocorre porque os promotores costumam reduzir os pleitos em um acordo de barganha, mas não têm incentivo para fazê-lo no julgamento. Assim, os promotores costumam utilizar a negociação de barganha como uma cenoura e uma vara: pegue a barganha, obtenha a linda cenoura; escolha ir para o julgamento e pegue a vara. 658

Lippke explica que, na dinâmica dos Estados Unidos, não é incomum que os

defensores que exercem seu direito ao julgamento e perdem têm que lidar com

sentenças que mais refletem o ânimo do Ministério Público e do Poder Judiciário do

que a seriedade do caso659 . Daí a situação de inocentes tendo que aceitar os

acordos, como também se ilustrou no segundo capítulo deste trabalho. Mas é bom

que se consigne que a abordagem também pode ser explorada por um bom

advogado que saiba que os elementos de convicção contra seu cliente, ainda que

culpado, são frágeis: aproximando-se do julgamento, no qual terá maior chance de

êxito, o advogado poderá propor um acordo extremamente mais benéfico e o

656 Havendo outras, como a Análise Econômica do Direito e a Teoria dos Jogos, como bem analisado em FONSECA, C. B. G. et al. A Colaboração Premiada Compensa? Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisa/CONLEG/Senado, agosto/2015. Disponível em <http://goo.gl/dknzMt> Acesso em 12 de março de 2018. 657 Aqui, no sentido violento, como uma vara ou um porrete (embora, neste último caso, a tradução adequada seria club). 658 HASS, Aida Y.; MOLONEY, Chris; CHAMBLISS, William J. Criminology: Connecting Theory, Research and Practice. 2ª Edição. Routledge, 2017. P. 204. Tradução livre, do original: (...) research shows that people who go to trial, rather than accepting a plea deal, are more likely do receive a harsher punishment. This is because prosecutors usually reduce charges in a plea deal, but have no incentive to do so at trial. Thus, prosecutors often utilize the plea bargain like a carrot and stick: take the plea, get the nice carrot; choose to go to trial, and get the stick. 659 LIPPKE, Richard L. The Ethics of Plea Bargaining. Oxford: Oxford University Press, 2011. P. 5.

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Ministério Público estará mais inclinado a aceitá-lo – sob pena de, nessa condição,

ser ele quem sofre as consequências do bastão.

Embora se possa extrair certa perversão da abordagem, há como transpô-la

para o universo da colaboração premiada, sobretudo no momento atual, em que é

foco do poder público o combate à criminalidade organizada e à corrupção (sendo

comuns grandes operações, processos rápidos e sentenças pesadas). Determinado

investigado/acusado que se perceba em uma investigação na qual possa ser preso

(ou na qual já esteja) ou em um processo do qual fatalmente sairá condenado a

altas penas, pode propor uma colaboração, inclusive sujeitando-se a benefícios

brandos mediante obrigações severas. Por outro lado, o Ministério Público poderá

propor um excelente acordo para um indivíduo que se suspeite ser um elemento

chave da organização criminosa, mas sobre quem não se tenha muitos elementos

indiciários à disposição. A negociação envolve a busca pela melhor alternativa à

realização de um acordo (ou BATNA – Best alternative to a Negotiated Agreement,

na expressão norte-americana660), no sentido, conforme Mendonça, de que “quanto

pior é a alternativa fora do acordo – maior a chance de um acordo”661.

Quanto mais elementos dispuser sobre um investigado, menor será a

“cenoura” oferecida pelo Ministério Público ou autoridade policial (ou menor será seu

interesse); quanto mais difícil de alcançar ou importante o investigado, menor será o

“bastão” que se lhe oferecerá e maior o benefício. Não se trata de uma operação

matemática precisa e o caráter negocial da relação estabelecida nesse momento

trará sempre incerteza sobre como se deverá proceder – o que, aliás, é causa

justificada (mas não necessariamente correta) de críticas ao instituto.

3.6.2 A PROPOSTA E A CELEBRAÇÃO DO ACORDO

Havendo interesse entre as partes envolvidas (o que certamente será

precedido do fornecimento, ainda que informal, das potenciais informações que

serão apresentadas na colaboração), a negociação progredirá para a celebração.

Esclarece-se, aliás, que a colaboração poderá ocorrer a qualquer tempo, seja antes,

660 FISCHER, Roger; URY, William; PATTON, Bruce. Getting to Yes – Negotiating na agreement without giving in. 2ª Edição. Random House Business Books, 1991, p. 51. 661 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 60. O autor acrescenta que “A lógica é do ‘ganha-ganha’ (win-win), em que as duas partes devem lograr alcançar seus objetivos e acomodar seus interesses por meio de acordo” (Ibidem, p. 62).

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durante ou após o processo criminal662. Considerando-se que a lei prevê benefícios

específicos após a sentença (conforme artigo 4º, §5º, da Lei nº 12.850/2013), é

possível, nesse caso, a redução da pena até a metade ou a progressão do regime

para condenações transitadas em julgado. Como bem estabelece o caput do artigo

4º, o instituto tem a função de obter os resultados dos incisos I a V. Sendo essa

obtenção possível a partir de um acordo celebrado com indivíduo condenado, não

há óbice para a celebração do acordo.

O manual da ENCCLA traz uma série de recomendações sobre como será o

procedimento para a celebração, assinatura e encaminhamento do acordo ao Poder

Judiciário para homologação. Em primeiro lugar, estabelece que o colaborador, em

conjunto com seu defensor, deve ser informado de seu direito constitucional ao

silêncio e do fato de que, ao celebrar o acordo, estará renunciando-o e assumindo o

compromisso legal de dizer a verdade estabelecido no artigo 4º, §14, da Lei nº

12.850/2013. Os potenciais benefícios devem ser apresentados, com a condição de

que as informações prestadas sejam “completas, verdadeiras e úteis”663.

Ciente dessas condições, o manual recomenda que se instaure um

procedimento sigiloso no qual o acordo tomará forma 664 . É possível, nesse

momento, que o Ministério Público e/ou a autoridade policial e o

investigado/acusado assinem um termo de compromisso (ou confidencialidade) para

que as informações prestadas no referido procedimento não sejam posteriormente

utilizadas em caso de não concordância com a futura proposta de acordo665. Isso

permite que o potencial colaborador forneça informações preliminares sem o risco

de que, ciente de tais fatos, a autoridade pública faça uso delas e não lhe proponha

um acordo condizente666. Tal dinâmica foi reconhecida como uma “boa prática” na

Orientação Conjunta nº 1/2018, na qual se acrescentou a necessidade de

662 COSTA, Leonardo Dantas. Delação Premiada, 2017, p. 141. Quanto a esse ponto, parece se tratar de fundamento para afastar o argumento de que a colaboração não poderia ser utilizada em caso de presos preventivos. Se o réu condenado definitivamente pode celebrar o acordo, não parece haver motivo para que não o pudesse fazer enquanto preso provisoriamente. 663 BRASIL, Manual – Colaboração..., 2014, p. 3. 664 Possivelmente, na forma de um “pré-acordo, em que o acusador pede amostras ao delator das informações”, conforme VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 178. 665 Conforme Vasconcellos (Ibidem, p. 178), com a ressalva do autor de que não há previsão legal para esse compromisso, de modo que dever haver “extrema cautela” por parte do colaborador em tal momento. 666 O que não se confunde com a previsão do artigo 4º §10, que prevê a retratação das partes e a impossibilidade de uso das provas autoincriminatórias exclusivamente em desfavor do acusado. Nesse caso, cabe a discussão de que essas provas poderiam ser utilizadas em desfavor de terceiros, mas não contra o colaborador retratado.

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comunicação, tanto da instauração quanto do arquivamento do procedimento

sigiloso, a uma das Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público, “para

acompanhamento e registros estatísticos”667.

No bojo do procedimento sigiloso, o investigado/acusado fornecerá os

elementos de prova que pretende apresentar em Juízo, bem como as informações

que pretende narrar. Entendendo pela pertinência da colaboração, o Ministério

Público ou a autoridade policial formulará a proposta de acordo. Aceita a proposta, o

investigado/acusado apresentará a narrativa sobre os fatos que objetivam o

acordo 668 . Naturalmente, o futuro e eventual colaborador poderá apresentar

informações sobre acontecimentos que não são diretamente relacionados a uma

existente investigação ou ação penal – o que poderá ter relevância na balança dos

benefícios que lhe serão ofertados.

As diferentes narrativas têm sido divididas no que a prática tem chamado de

anexos 669 (como ocorre na colaboração italiana, no instrumento do verballe

ilustrativo já mencionado). Basicamente, cada anexo tratará de um determinado fato

ou de um determinado grupo de pessoas e a separação tem o objetivo de preservar

o conteúdo da colaboração quando do desdobramento das investigações quanto ao

que fora apresentado670. Adotou-se essa sistemática para se evitar o que ocorreu na

já mencionada Operação Castelo de Areia, na qual se utilizou de delação anônima

para a decretação de medidas cautelares quando, na realidade, as informações

haviam sido colhidas em colaboração premiada. Como não havia separação dos

fatos narrados por colaborador em anexos, apresentar os fatos para a investigação

em que se decretaram as cautelares implicaria expor as demais informações

prestadas pelo colaborador (o que poderia prejudicar o restante da investigação).

Daí a malfadada opção pela denúncia anônima que deu causa à anulação de todo o

processo.

A formalização dos anexos deverá ser inicialmente feita por escrito e

acompanhará o termo de acordo que será encaminhado para homologação. Para

atender ao disposto no artigo 6º da Lei nº 12.850/2013, o referido documento deverá

667 BRASIL, Orientação Conjunta nº 1/2018..., 2018, p. 2. 668 Segundo Vasconcellos, “as partes deverão apresentar de modo objetivo, mas não integral, a descrição dos fatos apresentados pelo delator e as potenciais colaborações que podem advir à persecução penal” (VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 181). 669 ANSELMO, Márcio Adriano. Colaboração Premiada..., 2016, p. 119. 670 No mesmo sentido, reconheceu a Orientação Conjunta nº 1/2018 – BRASIL, 2018, p. 4.

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conter o relato da colaboração e seus possíveis resultados671, as condições da

proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia, a declaração de aceitação

do colaborador e seu defensor, as assinaturas e a especificação das medidas de

proteção eventualmente necessárias.

Como, porém, o artigo 4º, §13, da mesma lei, prevê que, “sempre que

possível, o registro dos atos de colaboração será feito pelos meios ou recursos de

gravação”672, parece ser recomendável que os anexos sejam ao menos lidos pelo

colaborador em mídia audiovisual, registrando-se de forma fidedigna sua narrativa.

Até o encaminhamento da proposta para a homologação – compreendido o

período de negociação das obrigações e benefícios, bem como a colheita dos

elementos indiciários e declarações do colaborador –, pode haver a retratação pelas

partes, conforme estabelece o artigo 4º §10 da Lei nº 12.850/2013. Segundo Didier

Jr. e Bonfim, quando o legislador vinculou a possibilidade de retratação ao termo

“proposta”, estabeleceu-se que a retratação de que trata o referido dispositivo

somente abrange a “exteriorização unilateral do proponente, e não o negócio jurídico

contratual já formado e, ainda mais, homologado” 673. Com efeito – aderindo-se, aqui,

a esse posicionamento, que também foi firmado na Orientação Conjunta nº 1/2018

do Ministério Público Federal –, a confecção final do acordo com seus elementos

materiais seria o último momento em que se admitiria a retratação, após o qual deve

ser remetido para homologação.

3.6.3 A HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL

O artigo 4º, §6º, da Lei nº 12.850/2013 disciplina a homologação judicial do

acordo de colaboração premiada. O dispositivo estabelece que o termo da

colaboração, acompanhado das declarações do colaborador e cópia da

investigação, será encaminhado para que o juiz verifique sua regularidade,

legalidade e voluntariedade. Quanto ao último aspecto, a lei repete o requisito do

caput (“daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente”), enfatizando a

referida característica do acordo. Ao final, o §7º prevê a possibilidade de o

671 A Orientação Conjunta nº 1/2018 estabelece que os anexos deverão conter a descrição dos fatos delitivos, duração e locais de ocorrência, identificação dos envolvidos, meios de execução, produtos e/ou proveito do crime, potenciais testemunhas e outras provas de corroboração e a indicação da estimativa do dano. 672 BRASIL, Lei nº 12.850..., 2013. 673 DIDIER JR., Fredie; BONFIM, Daniela. Colaboração Premiada..., 2016, p. 42.

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magistrado ouvir o colaborador, justamente para se assegurar que se trata de

colaboração efetivamente voluntária.

A maioria da doutrina entende que o juízo de homologação guarda relação

apenas com “a tarefa de fiscalização sobre a observância das formalidades e da

legitimidade do acordo, no sentido de verificar se foram atendidos, numa primeira

análise, os pressupostos legais e observados os direitos e garantias dos

arrependidos”674. Com efeito, além de verificar se a colaboração é voluntária, o juiz

deverá realizar o “controle das cláusulas previstas no termo do acordo”675, em um

juízo preliminar de conformação legal dos benefícios e obrigações que são

formalmente estabelecidos.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal segue esse caminho, tratando

a homologação como “provimento interlocutório, que não julga o mérito da pretensão

acusatória, mas sim resolve uma questão incidente”676, em um exame externo do ato

e por meio do qual o juiz permanece na periferia do ato das partes. Segundo o

Supremo, durante tal decisão, o magistrado (que será o Relator em casos de

competência de Tribunal677) não pode emitir “nenhum juízo de valor a respeito das

declarações eventualmente já prestadas pelo colaborador à autoridade policial ou ao

Ministério Público, tampouco confere o signo da idoneidade a seus depoimentos

posteriores”678.

O posicionamento parece adequado ao que se propõe, pelo texto legal, a

colaboração premiada. Afinal, trata-se de um meio de obtenção de prova (que, logo,

não constitui em si a prova, que deve ser produzida no contraditório), que poderá

(como diz o caput do artigo 4º) produzir benefícios ao colaborador caso efetivo. Sob

essas condições, nada mais natural que, em um primeiro momento, o juiz nem

sequer se preocupe com o objeto da colaboração, já que sua preocupação material

se dará quando do momento de concessão dos benefícios.

O problema desse entendimento, que será explorado no último capítulo,

remonta os casos em que, pelo juízo de homologação, já se aplicam os benefícios

acordados (ainda que em caráter precário ou igualmente preliminar) ou são

preestabelecidas as penas que serão aplicadas. Nesses casos, como será visto

674 PEREIRA, Frederico Valdez. Delação premiada..., 2016, p. 153. 675 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 187. 676 BRASIL. Habeas Corpus 127.483/PR, 2016. 677 Conforme BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem na Petição nº 7074. Relator Ministro Edson Fachin. Publicado no Diário de Justiça Eletrônico de 3 de maio de 2018 678 Ibidem.

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adiante, talvez haja um problema quanto à interpretação que se pode dar ao

requisito da legalidade (já que, para conceder benefícios imediatos ou garantir a

aplicação de uma pena, o magistrado talvez tenha que verificar quais resultados se

esperam, pelo conteúdo apresentado, do acordo) e, em decorrência, qual o impacto

que pode haver aos princípios do devido processo legal, obrigatoriedade e

indisponibilidade, juiz natural e imparcialidade do julgador (que poderá, a depender

do caso – e há casos concretos em que isso se verifica –, tomar conhecimento de

elementos indiciários e formar seu convencimento, ao menos quanto ao colaborador,

antes do oferecimento de denúncia).

Por ora, porém (e porque talvez a problemática acima apresentada não seja

representativa de um problema legal, mas da utilização prática do instituto), vale

considerar que o juízo de homologação não deve tecer qualquer consideração

material sobre aquilo que apresenta o colaborador em suas declarações, apenas

focando em aspectos procedimentais da negociação (se o defensor esteve presente

em todos os atos ou se o colaborador foi informado dos benefícios e obrigações

vinculadas, por exemplo) e da celebração (se as cláusulas correspondem às

previsões legais – também se tornará a tratar desse tema no quarto capítulo).

O §8º do artigo 4º prevê que o juiz poderá recusar a homologação de acordo

que não atender aos requisitos legais ou adequá-la ao caso concreto. Tal proposição

gerou polêmica entre os críticos do instituto, como Bitencourt e Busato, que

sustentam ser “realmente absurdo”679 que a lei, por um lado, proíba a participação

do juiz nas negociações, mas, por outro, permita a interferência “no teor do que foi

pactuado” 680. Por outro lado, Pinto sustenta que não seria plausível tal crítica em

razão do fato de que “cabe ao Magistrado a última palavra, já que a ele é dado

recusar a proposta” 681 . Os primeiros autores parecem ter razão, mas apenas

assumindo-se a interpretação de que o juiz poderia alterar questões valorativas das

cláusulas, como os benefícios ofertados e as obrigações estabelecidas. No entanto,

tal situação não parece ser a regra.

Em suma, como têm observado os autores com publicações mais recentes

(esclarecendo-se que Bitencourt e Busato publicaram seu trabalho poucos meses

após a promulgação da lei), a adequação a que se refere a lei guarda mais relação

679 BITENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei..., 2014, p. 132. 680 Ibidem, p. 132. 681 PINTO, Ronaldo Batista. A colaboração premiada..., 2013, p. 28.

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com a anulação de cláusulas flagrantemente ilegais (“como renúncias

inconstitucionais ou obrigações abusivas”682) ou a abertura de prazo para que as

partes reformem previsões fundamentadamente rejeitadas pelo magistrado (o qual,

frise-se, também exerce o controle do princípio da obrigatoriedade, verificando se o

acordo está conforme as previsões legais).

Nesse sentido, vale menção à decisão do Juízo da 5ª Vara Federal de Mato

Grosso, que, nos autos nº 11109.2017.4.01.3600683, deixou de homologar acordo

que previa benefício e obrigação ilegais. No caso, o colaborador havia sido

condenado à pena de 14 (quatorze) anos de reclusão e tinha pendente contra si

uma ação penal prestes a ser sentenciada. No acordo, estabeleceu-se a redução

total da pena (somando-se ambas as ações) em dois terços, com o limite máximo de

6 (seis) anos, cumprindo-se 1 (um) ano e 9 (nove) meses em regime semiaberto.

Na oportunidade, o Juiz consignou que a lei limita a redução, após a

condenação, em até a metade da pena aplicada, mas garantiu ao colaborador que o

cumprimento da pena deveria seguir os limites de progressão da Lei de Execução

Penal, e não um valor previamente definido e superior ao montante de um sexto da

pena. Ao invés de simplesmente alterar o acordo (o que até não seria desarrazoado,

já que tais cláusulas poderiam ser tidas como manifestamente ilegais), o Juiz

oportunizou às partes a sua adequação em vinte dias. Com as alterações feitas

(redução da metade da pena, sem limites de progressão), o acordo foi prontamente

homologado.

O manual da ENCCLA prevê que “a decisão negativa de homologação

sempre desafiará recurso tanto pelo Ministério Público quanto pela defesa”. A lei,

porém, não estabelece tal possibilidade e tampouco o recurso cabível. Em razão da

natureza da colaboração premiada e da decisão não-homologatória (que tem caráter

interlocutório), a lógica do Código de Processo Penal indicaria o cabimento de

Recurso em Sentido Estrito. No entanto, como o rol do artigo 581 é taxativo,

segundo o atual entendimento doutrinário e jurisprudencial, tal possibilidade

somente surgiria em caso de recusa pela declaração de incompetência do juízo684.

Caso a negativa tenha outro fundamento, duas possibilidades surgem. A uma, como

682 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 188. 683 BRASIL. Mato Grosso. 5ª Vara Federal de Mato Grosso. Autos nº 11109.2017.4.01.3600. Juiz Jefferson Schneider. Decisão disponibilizada em 31 de agosto de 2017. 684 VERÍSSIMO, Carla. Principais questões sobre a competência para a homologação do acordo de colaboração premiada. In: MOURA, Maria Thereza de Assis; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Colaboração Premiada. São Paulo: RT, 2017, p. 117.

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defende Vasconcellos, caberia correição parcial 685 ; a duas, em se tratando de

decisão definitiva proferida por juiz singular em caso não previsto naquele

dispositivo, caberia apelação, conforme artigo 593, II, do Código de Processo

Penal686. Também se poderia considerar, se não homologado o acordo celebrado na

fase do inquérito (sem o oferecimento de denúncia e instauração de ação penal,

mas apenas de procedimento sigiloso para homologação do acordo), a impetração

de mandado de segurança.

Parte da doutrina ainda sustenta que “a homologação do acordo também

deveria ser impugnável, especialmente pelos corréus que possam ser prejudicados

pela concessão dos benefícios em troca das declarações incriminatórias” 687 . O

Supremo Tribunal Federal, porém, rechaçou essa possibilidade no julgamento do

Habeas Corpus nº 127.483, sustentando que “por se tratar de um negócio jurídico

processual personalíssimo, o acordo de colaboração premiada não pode ser

impugnado por coautores ou partícipes”688. A única exceção, por ora, parece ser a

impugnação por terceiros quanto à incompetência do Juízo que homologou o

acordo, conforme acórdão do Habeas Corpus nº 151.605/PR, de relatoria do

Ministro Gilmar Mendes689.

3.6.4 O JUÍZO DE EFICÁCIA

Após estabelecer que o juiz poderá conceder os benefícios se o colaborador

tiver atuado efetivamente com a investigação, a Lei nº 12.850/2013 prevê, no §11 do

artigo 4º que “a sentença apreciará os termos do acordo homologado e sua

eficácia” 690 . Sob a perspectiva legal, portanto, é ao final do processo que o

magistrado irá se voltar ao acordo de colaboração e analisar sua eficácia (em termos

de obrigações e compromissos do colaborador).

Alguns problemas se extraem dessa leitura: a) em primeiro lugar, a qual

sentença se refere o dispositivo (considerando-se que o acordo pode ser celebrado

após a condenação)?; b) em segundo, como será feita a verificação da eficácia?

685 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 187. 686 Nesse sentido: VERÍSSIMO, Carla. Principais questões..., 2017, p. 116. 687 VASCONCELLOS, op. cit., p. 187. 688 BRASIL, Habeas Corpus nº 127.483, 2016. 689 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 2ª Turma. Habeas Corpus nº 151605/PR. Relator Ministro Gilmar Mendes. Julgado em 20 de março de 2018. Ata de julgamento publicada no Diário de Justiça Eletrônico em 3 de abril de 2018. 690 BRASIL, Lei nº 12.850..., 2013.

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3.6.4.1 A SENTENÇA

Em relação ao primeiro questionamento, apenas uma resposta é –

aparentemente – simples: caso a colaboração seja celebrada antes da sentença

condenatória da ação penal vinculada (seja no inquérito, seja no seu curso), é nela

que se deve analisar a sua eficácia. Caso o colaborador já tenha sido condenado em

outra ação penal e o acordo celebrado em novo processo, a sentença desse

aproveitará à daquela (se, naturalmente, englobada no mesmo instrumento).

Situação curiosa ocorre, porém, no caso de colaboração posterior à condenação

(inclusive após o trânsito em julgado) e cujos elementos de prova decorrentes sejam

utilizados em novos processos dos quais o colaborador não seja parte. Nesse caso,

não haverá nova sentença que possa cumprir a tarefa do §11.

Caso se trate de colaboração posterior à sentença, o manual da ENCCLA

indica que tal análise se dará pelo “Tribunal a quem competir o julgamento do

recurso ou pelo Juízo das Execuções Penais”691.

Curiosamente, Jesus sugeria em 2005 (portanto, vários anos antes da lei e da

prática atuais) que, no caso de colaboração premiada celebrada após o trânsito em

julgado, a análise da eficácia ocorresse mediante revisão criminal692. Segundo o

autor, admitindo o art. 621, III do Código de Processo Penal a “rescisão da coisa

julgada no crime” a partir da “descoberta de nova prova de ‘inocência do condenado

ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial de pena’” 693,

seria sustentável tal instrumento processual.

3.6.4.2 A EFICÁCIA E A EFETIVIDADE DO ACORDO

Como se disse logo acima, dois dispositivos da Lei nº 12.850/2013

condicionam a concessão de benefícios à efetividade e à eficácia da colaboração,

respectivamente. Evidentemente, há diferenças entre ambas – e talvez seja esse um

691 BRASIL, Manual – Colaboração..., 2014. 692 JESUS, Damásio de. Estágio atual da delação premiada no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 854, 4 de novembro de 2005. Disponível em <http://goo.gl/21hTF> Acesso em 12 de março de 2018. 693 Ibidem.

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tópico de pouca clareza do texto legal. Azevedo tenta diferenciá-las, posicionando-

se quanto ao requisito para a concessão do benefício:

O requisito da efetividade da colaboração não se confunde, portanto, com sua eficácia, dado ou condição prevista na parte final do dispositivo. Para a concessão do perdão judicial, deve a colaboração ser voluntária, efetiva e deve de algum modo ser eficaz, a produzir ao menos um dos efeitos desejados que empolgaram o acusado a colaborar. Vale dizer, deve dela ter resultado ou a identificação dos co-autores ou partícipes, ou a localização da vítima ou a recuperação total ou parcial do produto do crime. A eficácia, destarte, coloca-se como resultado posterior que independe da natureza da colaboração.694

Por sua vez, Costa agrega o conceito de eficiência (no sentido de “aptidão do

meio pelo qual se quer atingir certo resultado”695) à matemática da colaboração,

sustentando que é “obrigação do colaborador realizar uma colaboração eficiente e

eficaz, porém não necessariamente efetiva” 696. Para ele, a colaboração apenas

exigiria do colaborador, sob a perspectiva da eficiência, “uma participação positiva e

ativa (...) a fim de assegurar, por suas atitudes, a utilidade da colaboração” 697. Com

efeito, se “demonstrar interesse e apoio aos órgãos de investigação, revelando todos

os fatos dos quais tenha ciência”698, cumpriria esse requisito.

Acontece que, como inclusive observa Costa, a lei exige a verificação da

eficácia e da eficiência como requisitos para o sucesso do acordo. A primeira seria a

verificação de que o colaborador cumpriu aquilo que se propôs no acordo. Ou seja,

se foi acordado que iria revelar a estrutura hierárquica da organização criminosa e

identificar os corréus, mas apenas cumpriu o segundo objetivo, sua colaboração não

seria eficaz699.

Quanto à efetividade, entendida como o resultado penal da colaboração (isto

é, a condenação dos corréus mediante meios de prova oriundos do acordo, entre

outros), o autor entende não se tratar de um requisito válido, na medida em que

“foge às obrigações do colaborador” 700 . Vasconcellos segue a mesma linha,

afirmando que “a aferição da efetividade não pode depender da obtenção da

694 AZEVEDO, Davi Teixeira de. A colaboração premiada num direito ético. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 7, nº 83, outubro de 1999, p. 6. 695 COSTA, Leonardo Dantas. Delação Premiada, 2017, p. 134. 696 Ibidem, p. 134. 697 Ibidem, p. 134. 698 Ibidem, p. 134. 699 Ibidem, p. 134. 700 Ibidem, p. 134.

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condenação ou prisão de corréu, da apreensão total do produto do crime ou da real

utilização das informações prestadas pelo colaborador às autoridades policiais na

investigação ou pelo julgador na sentença condenatória”701.

É adequado esse posicionamento, que já foi reconhecido pelo Supremo

Tribunal Federal, quando do julgamento do Habeas Corpus nº 127.483, no qual

afirmou que “a aplicação da sanção premial nele prevista dependerá do efetivo

cumprimento pelo colaborador das obrigações por ele assumidas” 702 , com a

produção dos resultados previstos no caput do artigo 4º. Como o precedente fala na

obtenção de resultados “para a investigação”, pode-se concluir que não se exige do

colaborador que de suas palavras e provas decorrentes advenha a condenação.

O tema é polêmico e se tornará a falar do assunto, no capítulo seguinte,

quando da análise dos princípios elencados no primeiro capítulo sob a perspectiva

pós-colaboração premiada.

3.6.5 A RESCISÃO DO ACORDO

No subcapítulo referente à proposta do acordo de colaboração, sustentou-se

que a retratação a que se refere o art. 4º, §10 da Lei nº 12.850/2013 seria

temporalmente limitada ao momento da assinatura do acordo e sua consequente

remessa para homologação. A partir disso, indagam-se as possibilidades de ruptura

do acordo após a homologação, na medida em que a lei nada dispõe sobre essa

fase posterior e extintiva da colaboração premiada.

Conforme observa Vasconcellos, a disciplina da rescisão – mais

especificamente, os motivos para tal conduta – é costumeiramente tratada nos

próprios acordos, onde se tem estabelecido “um procedimento específico para o

caso de rescisão do acordo”703. No corpo do acordo, além das causas pactuadas de

rescisão, deve-se estabelecer a forma como se procederá à apuração daquelas, em

geral com a imposição de notificação das partes e a realização de audiência de

justificação704. A determinação final caberá ao Juiz da causa, já que, como salienta

Rosa, “a rescisão não pode decorrer da vontade unilateral, devendo-se apurar a

701 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 204. 702 BRASIL, Habeas Corpus nº 127.483, 2016. 703 VASCONCELLOS, op. cit., p. 252. 704 Ibidem, p. 252.

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efetiva violação dos termos pactuados”705. Segundo o Ministério Público Federal, a

apuração pode ser feita mediante a instauração de procedimento administrativo

paralelo, “quando necessário coletar novas evidências sobre as causas de

rescisão”706, ou por “provocação direta do juízo, quando a causa de rescisão for

constatada sem a necessidade de novos dados ou evidências” 707.

A dinâmica da rescisão está em plena discussão sobretudo em razão do

pedido formulado pela Procuradoria-Geral da República, nos autos da Petição nº

7003, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, pelo desfazimento dos acordos

celebrados com os colaboradores da JBS, em rumoroso caso recente. Embora

vários meios de comunicação tenham noticiado que os acordos já foram rescindidos

pelo Ministério Público Federal708, o que se tem é um pedido para que a Suprema

Corte verifique e efetivamente dê fim aos referidos instrumentos. A competência

para fazê-lo nesses casos, porém, parece não ser mais apenas do Ministro Relator

que homologou os acordos, mas do colegiado, “garantido o devido processo legal,

porque refoge aos limites da mera homologação, diante do conteúdo decisório da

configuração da violação contratual e suas consequências”709.

Rosa ainda sugere, em alusão que faz ao próprio acordo dos executivos da

JBS, que pode ser cabível, a depender do caso, sua renegociação caso seja

descumprida alguma cláusula que não justifique a rescisão. Segundo ele, “a partir da

boa-fé objetiva e do dever de cooperação, eventual erro ou falta de informações

corroboradas de pequena parcela do conteúdo delatado, pode significar a

deslealdade do Estado, via resolução do termo do acordo”710. Caso se constate que

o acordo foi descumprido por blefe711 do colaborador, que “vendeu” uma informação

que nunca teve, seria adequada a rescisão. No entanto, “se o delator ‘abre o saco

de informações’ contra 1500 delatados e obtém resultado positivo em 1400, viola a

705 ROSA, Alexandre Morais da. Para entender a delação premiada pela teoria dos jogos. Florianópolis: EModara, 2018, p. 329. 706 BRASIL. Orientação Conjunta nº 1/2018..., 2018, p. 12. 707 Ibidem, p. 12. 708 Nesse sentido: <https://www.conjur.com.br/2017-set-14/delacao-executivos-jbs-foi-rescindida-informa-pgr-supremo> e <https://g1.globo.com/politica/noticia/pgr-rescinde-acordos-de-delacao-de-wesley-batista-e-francisco-de-assis-e-silva.ghtml> Acesso em 19 de maio de 2018. 709 LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Delação não pode ser rescindida unilateralmente por capricho do Estado. Consultor Jurídico. 6 de outubro de 2017. Disponível em: <http://goo.gl/dD7MpJ> Acesso em 19 de maio de 2018. Em igual sentido: ROSA, op. cit., p. 330. 710 ROSA, op. cit., p. 332. 711 Ibidem, p. 333.

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boa-fé rescindir por ausência de corroboração”712. Outro caminho possível para a

preservação do acordo é extraído da Orientação Conjunta nº 1/2018, do Ministério

Público Federal, que recomenda a “inserção de cláusula com previsão de sanções

ao colaborador que omitir informações pontuais, quanto a um elemento probatório

ou a agentes diversos, circunstância que pode não ensejar, por si só, a rescisão do

acordo”713.

De qualquer forma, reconhecida judicialmente a rescisão do acordo, resta o

questionamento sobre a validade das provas produzidas e seu uso em face do ex-

colaborador. O texto legal, quanto à retratação da proposta, estabelece que as

“provas autoincriminatórias apresentadas não poderão ser utilizadas exclusivamente

em seu desfavor”714. Admitindo-se a previsão também para a hipótese de rescisão,

três interpretações possíveis são apresentadas por Vasconcellos715: a) na primeira,

as provas apresentadas não poderiam ser as únicas para a condenação do ex-

colaborador; b) na segunda, apenas a confissão não teria valor, podendo as demais

provas ser introduzidas no processo para valoração judicial; c) na terceira, os

elementos do acordo somente poderiam ser utilizados em face de corréus e

partícipes.

Para o autor, a terceira hipótese seria a mais adequada, até porque “como

pressuposto do acordo (para verificação de sua adequação/idoneidade, necessidade

e proporcionalidade) e como requisito para sua validade (adequação/exatidão), é

preciso que já existam elementos independentes e prévios ao acordo”716 contra o ex-

colaborador, de modo que o afastamento dos elementos por ele apresentados (e

apenas contra si) não impediriam sua persecução e eventual condenação.

Pensa-se, porém – e em perspectiva preliminar, já que o tema merece melhor

reflexão –, que não é esse o conteúdo do art. 4º, §10, da Lei nº 12.850/2013. Sob a

leitura da lei, os elementos apresentados pelo colaborador não podem ser

exclusivos de sua condenação, no sentido de necessitarem de corroboração

externa, mas não parece ter sido opção do legislador que fossem integralmente

descartados. Evidentemente, com a rescisão do acordo, rescinde-se, também, a

renúncia do direito à não-autoincriminação (art. 4º, §14), de modo que a confissão

712 ROSA, Alexandre Morais da. Para entender a delação..., 2018, p. 333. 713 BRASIL. Orientação Conjunta nº 1/2018..., 2018, p. 12-13. 714 BRASIL. Lei nº 12.850…, 2013. 715 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 253. 716 Ibidem, p. 254.

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perde valor nesse cenário. No entanto, eventuais elementos de prova material que

tenham sido apresentados poderiam vir a ser utilizados em seu desfavor, desde que

acompanhados de outras provas judiciais no mesmo sentido.

Certamente, os Tribunais irão definir o definitivo posicionamento sobre o

tema. Até o presente momento, no entanto, o que se tem é a afirmação concreta de

que, revogado o acordo, os elementos de prova poderão ser utilizados contra

terceiros717.

3.7 O SISTEMA DE BENEFÍCIOS E OBRIGAÇÕES

No subcapítulo 3.3, já se apresentaram, de forma genérica, os prêmios e

obrigações previstos na lei. Seguindo o que se afirmou, e de uma forma mais

organizada, podem se dividir os primeiros em benefícios processuais, penais e de

execução penal (ou penitenciários), que podem ser aplicados cumulativamente718.

Os processuais são aqueles descritos no artigo 4º, §§3º e 4º, que preveem a

suspensão do prazo para oferecimento de denúncia por até 12 (doze) meses e a

imunidade processual para o colaborador que não for o líder da organização

criminosa e for o primeiro a prestar a colaboração. Os penais estão contidos no

caput do artigo 4º e em seu §5º e correspondem ao perdão judicial, à redução de

pena em até dois terços (se até a sentença) e até a metade (se após a sentença) e à

substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Por fim, os

benefícios de execução penal estão previstos no §5º do artigo 4º e no artigo 5º, VI

da Lei nº 12.850/2013, quais sejam a progressão de regime ainda que ausentes os

requisitos objetivos para tanto e o cumprimento de pena em estabelecimento penal

diverso daquele em que estarão os demais corréus ou condenados.

717 Conforme BRASIL. Habeas Corpus nº 127.483, 2016 e BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito nº 3.983. Relator Ministro Teori Zavascki. Acórdão publicado em Diário de Justiça Eletrônico em 10 de outubro de 2016. 718 Nesse sentido, Mendonça exemplifica que “pode ser a concessão de imunidade em relação a parte dos fatos, concedendo-se os benefícios previstos para os demais fatos restantes. Imagine-se uma situação em que o colaborador faz acordo de colaboração premiada sobre fatos em que havia investigação e, ainda, narra diversos outros fatos para os quais não havia sequer linha investigativa. Se o MP pode conferir imunidade para todos os fatos, não há vedação para que confira imunidade para parte dos fatos, desde que preenchidos os requisitos para a concessão da imunidade (...).” MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 76.

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Por sua vez, as obrigações ao colaborador estão contidas no caput do artigo

4º e envolvem os resultados dos incisos (que dependerão de cada caso e não são

necessariamente cumulativos), nos §§ 9º e 12, que estabelecem a sua

disponibilidade para ser ouvido (tanto na investigação quanto em juízo, a

requerimento das partes ou da autoridade judicial) e no §14, que prevê a renúncia

ao direito ao silêncio e a sujeição ao compromisso legal de dizer a verdade.

A rigor, portanto, essas são as previsões legais. O colaborador pode receber

esse número de benefícios desde que sua colaboração obtenha os resultados do

caput, ele se mantenha disponível à investigação e ao processo e não falte com a

verdade em Juízo.

A simplicidade dessa afirmação, porém, é incapaz de representar a

complexidade dos acordos de colaboração que têm sido celebrados em território

nacional. Nas duas pontas – benefícios e obrigações –, há inúmeros exemplos de

inovações forenses em cláusulas reais de acordos e várias discussões sobre as

circunstâncias em que os benefícios serão concedidos. Embora o próximo capítulo

vá se debruçar sobre a realidade da colaboração premiada, ilustrando algumas

dessas situações e indicando de que maneira se poderia extrair ao menos uma

mudança na estrutura principiológica do processo penal brasileiro (e, talvez, a

ilegalidade de algumas práticas), neste tópico, pretende-se apresentar o problema e

enfrentar algumas das discussões mais abstratas sobre o sistema de benefícios e

obrigações da Lei nº 12.850/2013.

3.7.1 A AMPLITUDE DOS BENEFÍCIOS E OBRIGAÇÕES

Vasconcellos observa, que, “nos acordos firmados no âmbito da Operação

Lava Jato, percebe-se o total afastamento das previsões normativas acerca dos

benefícios possíveis ao colaborador” 719 . Segundo o autor, “a prática tem se

caracterizado pela determinação quase exata das punições a serem aplicadas, em

regimes e progressões totalmente estranhos ao ordenamento jurídico brasileiro”720.

Por exemplo, tornou-se comum na referida operação (na qual muitos dos

colaboradores são réus de múltiplas ações penais) o estabelecimento de um “teto”

penal, o qual, após atingido, determina a suspensão dos demais processos por

719 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 150. 720 Ibidem, p. 150.

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longos prazos. Após esses prazos, a punibilidade será extinta. Da mesma forma,

muitos desses mesmos acordos, que estabelecem um “teto” geralmente alto (vinte

ou trinta anos de reclusão), preveem o cumprimento da pena em condições

absolutamente desconexas numericamente721.

Nesse sentido, não é incomum que, seguindo o exemplo mencionado por

Vasconcellos722, uma pena máxima de 20 (vinte) anos seja cumprida em prazos

muito menores, com 2 (dois) ano e 3 (três) meses em regime fechado e 9 (nove)

meses em regime semiaberto, “o que caracteriza uma fração de 85% de diminuição,

extrapolando o máximo previsto na legislação de dois terços”723.

O cumprimento, por sua vez, também é heterodoxo. Criou-se a figura do

regime diferenciado, que, na realidade, corresponde a uma prisão domiciliar que

pode ser mais ou menos rígida (no caso do regime fechado diferenciado, tem-se

uma efetiva reclusão domiciliar, sem direito a saídas; no caso do semiaberto, o

colaborador pode sair para trabalhar, ficando eventualmente monitorado por

tornozeleira eletrônica724; no aberto, algumas pequenas restrições são impostas à

rotina diária, como o comparecimento periódico em juízo e a necessidade de

autorização judicial para viagens). Alguns acordos podem ser extremamente

detalhados, com várias concessões sobre a forma de cumprimento, “como datas

previstas de saídas de residência, lista de visitantes autorizados, hipóteses de

exceções emergenciais etc.”725.

O referido autor afirma que tais cláusulas constituem um “sistema

completamente ilegal, em total violação às disposições normativas do ordenamento

brasileiro”726, indicando que “a falta de limites à colaboração premiada desvirtua

completamente as premissas do processo penal, possibilitando indevidas brechas

para abusos e arbitrariedades”727.

O posicionamento era corroborado pela orientação da ENCCLA (que compôs,

justamente, o manual das instituições que participam da colaboração premiada), que

dispôs expressamente que “não devem ser homologados acordos que tragam

721 Em prática que foi referendada, em 23 de maio de 2018, pela Orientação Conjunta nº 1/2018, do Ministério Público Federal. BRASIL, 2018, p. 10. 722 Ibidem, p. 151. 723 Ibidem, p. 151. 724 Conforme BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 5ª Turma. Agravo em Recurso Especial nº 1.012.561/PR. Relator Ministro Felix Fischer. Publicado em 11 de abril de 2017. 725 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 152. 726 Ibidem, p. 152. 727 Ibidem, p. 153.

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predefinido o quanto de redução de pena a ser aplicado” 728 . A justificativa da

Estratégia era bastante razoável, considerando que “devido ao valor da confissão

(...), o colaborador pode vir a ser absolvido” 729. Ressalva-se, porém, que o Ministério

Público Federal, na Orientação Conjunta nº 1/2018, seguiu sentido contrário à

ENCCLA, admitindo tais previsões como “boas práticas” da colaboração premiada.

Com elevado esforço argumentativo e analógico, porém, talvez se possa

ressalvar a aplicação de regime diferenciado doméstico, ainda que não com todas

as particularidades que são observadas na prática. É que, quando a Lei nº

12.850/2013 permite, no §5º do artigo 4º, a progressão de regime ainda que

ausentes os requisitos objetivos, poder-se-ia argumentar que estaria autorizada a

aplicação da prisão domiciliar do artigo 317 do Código de Processo Penal mediante

monitoração eletrônica, conforme autoriza o artigo 146-B, IV, da Lei de Execução

Penal. Embora não seja propriamente um regime de cumprimento de pena (o que, a

rigor, afastaria a taxatividade legal da permissão), os defensores do benefício

poderiam sugerir que nada mais se estaria fazendo que não aplicar tais disposições

a um caso que não preenche os requisitos legais (quais sejam a idade superior a

oitenta anos, a debilitação de saúde, os cuidados de menor de seis anos, a gestação

e a condição de responsável por filho menor de doze anos).

Por outro lado, no sentido da possibilidade de concessão de tais benefícios

penais extremamente generosos, caberia o argumento utilizado pelo Juízo da 5ª

Vara Federal de Mato Grosso, no procedimento antes mencionado. Ainda que

tivesse, naquele caso, recusado a homologação de acordo que estabelecia “teto”

penal, justamente porque o Ministério Público não teria atribuição de fixar pena

(especialmente após a sentença), o Magistrado afirmou que o órgão acusatório

“pode negociar por ocasião da celebração do acordo a pretensão acusatória (ius ut

procedatur), isto é, o que está compreendido dentro de seu âmbito de atribuição

constitucional”730.

Em se entendendo que o Ministério Público não é apenas o titular da ação

penal, no sentido de ser a instituição constitucionalmente compelida a promover o

processo, mas, por assim dizer, o “dono” da pretensão punitiva – como é nos

Estados Unidos da América, como já se viu –, não seria absurda a ilimitada

728 BRASIL. Manual – Colaboração..., 2014, p. 9. 729 Ibidem, p. 9. 730 BRASIL. Autos nº 11109.2017.4.01.3600, 2017, p. 5.

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amplitude na concessão dos benefícios. Embora não se concorde integralmente com

esse posicionamento, voltar-se-á a esse tema quando da análise, no último capítulo,

sobre os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal.

Outros benefícios não previstos em lei têm sido igualmente aplicados aos

casos reais de colaboração premiada, como a extensão de benefícios a familiares, a

devolução de valores e outras vantagens patrimoniais (como a redução da multa),

bem como a ampliação do acordo para outros Juízos e esferas do direito. Em razão

da limitação do escopo deste estudo, apenas o último será melhor analisado no

quarto capítulo, quando da verificação do potencial conflito dessa aplicação prática

com o princípio do Juiz natural.

Quanto às obrigações que se impõe aos acusados, também há um relevante

acervo de previsões não estabelecidas na Lei nº 12.850/2013. Além da

disponibilidade para comparecer ao processo, o compromisso com a verdade e a

renúncia ao direito ao silêncio731, há cláusulas que vedam a interposição de recursos

(em geral, permitindo a impugnação apenas quanto a aspectos do acordo que não

forem observados) e determinam a renúncia a Habeas Corpus previamente

impetrados732. Em uma oportunidade, o Supremo Tribunal Federal já pôde anular

uma cláusula dessa natureza, sob a afirmação de que “as cláusulas do acordo não

podem servir como renúncia, prévia e definitiva, ao pleno exercício de direitos

fundamentais”733. No entanto, o alto número de acordos celebrados em todo o país e

a impossibilidade de impugnação, pelos corréus, da decisão de homologação, torna

difícil o reconhecimento da ilegalidade de tais previsões se o Juízo competente

aquiesce a tal possibilidade.

Essa conclusão é indicativa de uma circunstância essencial da dinâmica de

fixação de benefícios e obrigações nos acordos que parece ser deixada de lado

pelos principais críticos do instituto: o interesse do colaborador. Ao renunciar a

vários direitos e garantias constitucionais, o investigado/acusado exige, para si, uma

série de vantagens sem as quais não celebraria a colaboração. Da mesma forma,

talvez a Operação Lava Jato, por exemplo, não se tornasse o maior caso penal

731 O que também é considerado ilegal por alguns autores, como BITENCOURT, 2014, p. 134. Em sentido favorável à previsão: QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012. P. 258. 732 Além de outras previsões expressas na Orientação Conjunta nº 1/2018, tais como o valor mínimo de reparação do dano e sua destinação, obrigações de governança corporativa e compliance etc. 733 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pet. 5.244. Relator Ministro Teori Zavascki. Julgado em 19 de fevereiro de 2014, p. 117 apud VASCONCELLOS, 2017, p. 162,

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envolvendo corrupção da história do país se o Ministério Público não lançasse mão

de benefícios amplos e não previstos em lei acima exemplificados (o que, é

inegável, configura um conflito – também possivelmente moral – com as atribuições

naturais de um agente ministerial734). Sem os primeiros acordos celebrados sob tais

termos, provavelmente não se chegaria a outros acordos melhor inseridos no âmago

criminoso de uma grande organização criminosa como a que envolveu as maiores

empreiteiras do país, a Petrobras e a alta cúpula do Governo Federal.

Não há, evidentemente, respostas simples para esses problemas: de um

lado, busca-se a proteção dos direitos do colaborador (que deles abriu mão

voluntariamente quando aderiu ao acordo proposto) e dos corréus delatados (que

não têm o direito de impugnar essa dinâmica e são diretamente impactados com o

conteúdo das colaborações); do outro, busca-se uma eficiência do sistema criminal

brasileiro, com a apuração de crimes gravíssimos e que presumidamente não seriam

descobertos de outra forma. Este trabalho, porém, não se propõe a sugerir tais

respostas; seu objetivo central é demonstrar, com base em exemplos ilustrativos, em

que medida a colaboração premiada pode ter transformado a compreensão de

princípios e garantias que, antes, compunham a fundação do processo penal

brasileiro.

3.7.2 O MOMENTO DE CONCESSÃO DOS BENEFÍCIOS

O último aspecto que se pretende analisar neste capítulo – o qual terá

profunda relevância no desenvolvimento do próximo tópico – diz respeito ao

momento em que os benefícios previstos nos acordos podem vir a ser concedidos

ao colaborador, se apenas ao final do processo do qual o colaborador é réu ou já a

partir da homologação judicial.

A leitura fria da lei não parece abrir muitas brechas quanto ao tema (o que

deveria, por si só, afastar a própria relevância deste subcapítulo). É que, desde o

caput do artigo 4º da Lei nº 12.850/2013, tem-se a clara mensagem de que “o juiz

poderá, a requerimento das partes” 735 , conceder os benefícios ali previstos ao

colaborador “que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e

734 E também do Juiz, que, como afirma Azevedo, incorre em um “desvio lógico do magistério punitivo” quando deixa de “punir uma conduta que preenche todos os requisites legais de punição”. AZEVEDO, Davi Teixeira de. A colaboração premiada..., 1999, p. 6. 735 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013.

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com o processo criminal” 736 , se alcançados algum dos resultados dos incisos

seguintes. Na sequência, o §6º afasta a participação do juiz nas negociações do

acordo e o §7º estabelece que, na homologação, o magistrado fará um juízo

prelibatório, verificando a regularidade, legalidade e voluntariedade do instrumento.

Por fim, o §11 estabelece que a sentença analisará os termos do acordo e sua

eficácia.

Ora, apelando-se à lógica, se o juiz poderá aplicar benefícios apenas se o

investigado/réu colaborar com a investigação e, cumulativamente, com o processo, é

evidente que o caput estabelece o final da ação como o momento adequado.

Ademais, como a lei não abre brechas para que o juiz participe das negociações e

determina uma homologação meramente formal, não há qualquer admissão para

que o conteúdo do acordo seja por ele analisado antes do final do processo – que é

onde estará o único ato processual previsto na lei (a sentença) em que os termos do

acordo e sua eficácia serão analisados.

O manual da ENCCLA prevê a indispensabilidade de devido processo legal

para a concessão dos benefícios. Em outro trecho que vale menção, o documento

estabelece taxativamente que

ainda que possam advir reflexos favoráveis à situação do colaborador, conforme sua disposição em colaborar, a aplicação do instituto, que decorre de sentença condenatória, impõe obediência ao devido processo legal, de cognição exauriente, própria das sentenças de mérito proferidas ao final da instrução.737

A doutrina, por sua vez, segue a mesma linha. Pinto, por exemplo, entende

como exigível que qualquer consequência de natureza penal ao colaborador

advenha de uma sentença, evitando-se “qualquer amesquinhamento na função

primordial do Poder Judiciário”738 e preservando-se “os princípios da ampla defesa e

do contraditório, pois há, sim, um processo a anteceder a sentença” 739. Em igual

sentido, Vasconcellos sustenta que é “no sentenciamento” 740 que “será analisada a

736 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013. 737 BRASIL. Manual – Colaboração..., 2014. 738 PINTO, Ronaldo Batista. A colaboração premiada..., 2013, p. 28. 739 Ibidem, p. 28. 740 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 199.

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efetividade da colaboração prestada, com o objetivo de determinar os benefícios que

serão concedidos em concreto ao delator”741.

A discussão doutrinária que se segue quanto ao tema, porém, geralmente

foge das maiores particularidades sobre outro momento em que serão concedidos

os benefícios (com a ressalva do prêmio da imunidade processual), passando-se a

tratar da vinculação do magistrado aos termos do acordo proposto, na já

mencionada discussão sobre o direito subjetivo do colaborador.

No entanto, Vasconcellos alerta que “tem-se notícia de acordos de

colaboração premiada contendo cláusulas que determinam o início do cumprimento

das penas neles fixadas logo após a homologação judicial”742. Nesses casos, como

se verá adiante, há toda uma nova dinâmica para a colaboração premiada, com a

homologação funcionando como uma decisão que antecipa os efeitos do acordo,

aplicando-os de imediato – como em uma efetiva transação penal.

É a partir desses casos que seguirá o presente trabalho. Como será visto no

capítulo seguinte, com a admissão de tal sistema sumário de concessão de prêmios

ao colaborador, surgem vários problemas com o status quo do processo penal

brasileiro, impactando uma série de princípios que antes eram considerados regras

imutáveis do sistema.

741 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 199. 742 Ibidem, p. 173.

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4 O PROCESSO PENAL BRASILEIRO PÓS-COLABORAÇÃO

Após a incursão ao instituto da colaboração premiada da Lei nº 12.850/2013,

passa-se a uma análise prática do instituto e dos potenciais conflitos com os

princípios endereçados no primeiro capítulo que se podem extrair de acordos

realizados em território nacional. Além da análise de acordos reais, que abrangerá

os primeiros tópicos deste último capítulo (envolvendo a análise dos impactos de

algumas práticas da colaboração premiada com os princípios nulla poena sine

judicio, presunção de inocência, juiz natural, ampla defesa, obrigatoriedade e

indisponibilidade da ação penal), pretende-se analisar, no último subcapítulo, a

posição da jurisprudência quanto ao uso da colaboração premiada como prova de

condenação, para cotejá-la aos tradicionais conceitos dos princípios do contraditório

e da presunção de inocência.

4.1 AS POSSÍVEIS TENSÕES PRINCIPIOLÓGICAS A PARTIR DE ACORDOS

REALIZADOS

Neste primeiro subcapítulo, apresentar-se-ão os casos reais que serão

analisados neste estudo, detalhados a partir das cláusulas dos acordos que abrem a

possibilidade de discussão quanto aos conceitos tradicionais dos princípios

analisados no primeiro capítulo. Em primeiro lugar, far-se-á uma explicação

metodológica dos casos analisados, justificando-se a escolha de cada acordo. Na

sequência, serão descritas as possíveis tensões encontradas entre determinadas

cláusulas desses acordos e cada princípio.

4.1.1 OS CASOS ANALISADOS

Foram escolhidos três acordos de colaboração subscritos pela Procuradoria

Geral da República e homologados pelo Supremo Tribunal Federal para a indicação

das possíveis tensões existentes com a dinâmica tradicional do processo penal. Os

três – que envolvem os Srs. Paulo Roberto Costa743, Delcídio do Amaral Gomez744

743 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição 5209. Relator Ministro Teori Zavascki. 27 de agosto de 2014. Disponível em: <http://goo.gl/rgErdQ> Acesso em 6 de maio de 2018.

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e João Cerqueira de Santana Filho 745 – são oriundos da Operação Lava Jato.

Justifica-se a escolha pelo fato de que, em busca de outros acordos celebrados no

âmbito da referida operação, verificou-se uma sistemática semelhante em boa parte

deles, de modo que, por terem sido firmados pelo Procurador Geral da República e

homologados por Ministros do Supremo Tribunal Federal, pode-se presumir que as

formalidades ali constantes são referenciais.

Também será analisado, sob uma perspectiva comparativa, acordo celebrado

pelo Ministério Público do Estado do Paraná, no âmbito da Operação Publicano

(relativo ao Sr. Luiz Antônio de Souza746). Embora sejam descritas as características

de todos os acordos adiante, justifica-se a escolha em razão da diametral diferença

entre as cláusulas do acordo homologado perante a 3ª Vara Criminal de

Londrina/PR em relação àqueles apresentados perante a Suprema Corte. Com

efeito, tal acordo (assim como ocorreu com o acordo da Operação Ararath já

mencionado nos capítulos anteriores747) servirá como antagonista na análise dos

princípios.

4.1.1.1 PAULO ROBERTO COSTA

O acordo do ex-Diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa foi celebrado com a

força-tarefa da Lava Jato, sendo subscrito por uma série de Procuradores Regionais

da República e Procuradores da República. O objeto do acordo são as investigações

e processos criminais no âmbito da Operação Lava Jato, envolvendo crimes de

corrupção, peculato, lavagem de dinheiro oriundo de crimes contra a administração

pública, organização criminosa e obstrução de justiça. Trata-se, ademais, do

primeiro grande acordo celebrado na referida operação, sendo responsável pela

deflagração de inúmeras novas fases da investigação.

Na Cláusula 5ª, referente à proposta do Ministério Público, propuseram-se os

seguintes benefícios: a) “prisão domiciliar de 1 (um) ano, com tornozeleira eletrônica

744 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição nº 5952. Relator Ministro Teori Zavascki. 11 de fevereiro de 2016. Disponível em <http://goo.gl/kXX3je > Acesso em 6 de maio de 2018. 745 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição nº 6890. Relator Ministro Edson Fachin. Distribuição em 24 de março de 2017. Disponível em: <http://goo.gl/La9UoJ> Acesso em 6 de maio de 2018. 746 BRASIL. Paraná. Londrina. 3ª Vara Criminal de Londrina. Autos de Ação Penal nº 0011011-70.2017.8.16.0014. Processo eletrônico. Movimento 4785.4. 2017. Disponível em: <http://goo.gl/Yp9GKv> Acesso em 6 de maio de 2018. 747 BRASIL. Mato Grosso. 5ª Vara Federal de Mato Grosso. Autos nº 11109.2017.4.01.3600. Juiz Jefferson Schneider. Decisão disponibilizada no Diário de Justiça em 31 de agosto de 2017.

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(...) sem detração do prazo de prisão preventiva cumprido”748; b) após o prazo, e

“existindo sentença condenatória transitada em julgado, o cumprimento de parte da

pena privativa de liberdade imposta em regime semiaberto, em período de zero a

dois anos, a ser definido pelo Juízo tomando em consideração o grau de efetividade

da colaboração” 749; c) após esse período máximo de dois anos, o restante da pena

seria (e, ao que consta, está sendo) cumprido em regime aberto. O acordo ainda

prevê a possibilidade de regressão para regime fechado ou semiaberto, nos termos

do art. 33 do Código Penal, em caso de descumprimento do acordo e nos demais

casos previstos em lei.

O Ministério Público ainda se propôs a promover o arquivamento de “fatos

novos em relação ao acusado trazidos pelo colaborador em relação aos quais não

exista, na data do acordo, nenhuma linha de investigação em qualquer juízo ou

instância” 750. Além disso, o acordo prevê a “suspensão de processos instaurados, e

do respectivo prazo prescricional, por 10 (dez) anos, em todos os casos em desfavor

do colaborador” 751 no momento em que “atingida a pena unificada de 20 anos

resultante de condenações transitadas em julgado” 752. Tal suspensão poderia ser

antecipada, segundo “avaliação exclusiva” 753 do Ministério Público.

Após a suspensão acima mencionada, o acordo previu que, “sem a quebra do

acordo que venha a acarretar sua rescisão” 754, o Ministério Público pleitearia a

fluência do prazo prescricional até a extinção da punibilidade, deixando de oferecer

denúncia em investigações então existentes.

Por fim (para o que interessa ao presente estudo), o acordo ainda prevê que

o Ministério Público pleiteará que a prisão domiciliar com tornozeleira seja a forma

de execução da custodia cautelar até o trânsito em julgado das ações penais em

desfavor do colaborador e que corresponda, quando do término dos processos, “ao

modo de início de execução da pena” 755.

748 BRASIL. Petição nº 5209..., 2014, p. 21. Acordo de Paulo Roberto Costa. 749 Ibidem, p. 21. 750 Ibidem, p. 21. 751 Ibidem, p. 21. 752 Ibidem, p. 21. 753 Ibidem, p. 22. 754 Ibidem, p. 22. 755 Ibidem, p. 23.

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4.1.1.2 DELCÍDIO DO AMARAL GOMEZ

O acordo do ex-Senador da República Delcídio do Amaral teve por objeto as

investigações da Operação Lava Jato que já tramitavam, à época, nas subseções

judiciárias de Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo, abrangendo “todos os crimes

compreendidos no escopo do complexo investigatório denominado Caso Lava Jato

ou de feitos e procedimentos dele desmembrados, não obstante conexos, que

tenham sido praticados pelo colaborador até a data de sua assinatura” 756.

No capítulo referente aos benefícios (Cláusula 12ª), foram oferecidos os

seguintes: a) substituição da medida cautelar de privação de liberdade para regime

semiaberto domiciliar, pelo prazo de um ano e seis meses, contados da

homologação do acordo, com condições específicas descritas; b) privação de

liberdade pelo período de um ano, em regime aberto domiciliar (recolhimento

noturno, das vinte e três horas às sete horas do dia seguinte), com condições

específicas descritas; c) após, prestação de serviços à comunidade de sete horas

semanais, por seis meses.

O acordo ainda previu, para o período posterior ao trânsito em julgado de

sentença penal condenatória, o limite máximo de quinze anos de reclusão, “com a

suspensão dos demais feitos e procedimentos criminais na fase em que se

encontrem quando atingido esse limite”757. Na Cláusula 20ª, estabeleceu-se que as

penas a serem cumpridas em razão do trânsito em julgado de sentença penal

condenatória corresponderiam às condições ao montante de privação de liberdade

imposta com a homologação acima descrito.

4.1.1.3 JOÃO CERQUEIRA DE SANTANA FILHO

No acordo celebrado entre a Procuradoria Geral da República e João

Cerqueira de Santana Filho 758 , que tinha como “objeto todos os fatos ilícitos

praticados pelo colaborador até a data de assinatura”759 do termo, propuseram-se as

seguintes condições: a) cumprimento de pena privativa de liberdade, “cumprida

756 BRASIL. Petição nº 5952..., 2016, p. 11. Acordo de Delcídio do Amaral. 757 Ibidem, p. 13. 758 Publicitário responsável por campanhas eleitorais de inúmeros políticos brasileiros, investigado e denunciado em ações penais no âmbito da Operação Lava Jato. 759 BRASIL. Petição nº 6890..., 2017. Acordo de João Santana.

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imediatamente após a homologação do presente acordo, de forma progressiva” 760,

em regime fechado, pelo prazo de cento e sessenta dias, contado o tempo de prisão

cautelar então cumprido; b) um ano e seis meses de reclusão, em regime fechado

domiciliar, não podendo se ausentar de sua residência sem autorização do Juízo de

execução ou do Ministério Público Federal; c) um ano e seis meses de reclusão, em

regime semiaberto diferenciado, permitindo-se a saída em dias úteis, das seis às 22

vinte e duas horas; d) um ano de reclusão em regime aberto diferenciado, com

recolhimento domiciliar nos fins de semana e feriados (em todas as previsões, há a

indicação de condições específicas a serem observadas).

Embora o acordo não faça menção a ações penais individualizadas, sua

cláusula 5ª prevê que, “atingida ou superada a pena de 15 (quinze) anos, o MPF

proporá a suspensão das ações penais em desfavor do colaborador” 761 , assim

como, com fundamento no art. 4º, § 3º da Lei nº 12.850/2013, “a suspensão dos

respectivos prazos prescricionais pelo lapso temporal de 10 (dez) anos” 762, após o

qual serão retomados até a extinção da punibilidade.

4.1.1.4 LUIZ ANTÔNIO DE SOUZA

No acordo celebrado entre o Ministério Público do Estado do Paraná e Luiz

Antônio se Souza763, tem-se situação bastante distinta. Após a celebração inicial, o

acordo foi rescindido por violação de termos expressos do contrato. Na sequência,

em março de 2017 (após a condenação do acusado na primeira das ações penais

relacionadas), foi formulado termo aditivo ao acordo, prevendo os seguintes

benefícios penais: a) compromisso do Ministério Público de “pedir o perdão judicial

do colaborador e de seus familiares”764, exceto na ação em que já fora condenado;

b) concordância do Ministério Público com a redução da pena imposta em ação

penal anterior, com o compromisso de “manifestar-se, favoravelmente, junto aos

Tribunais competentes, com o pleito de redução da pena imposta na razão de 2/3,

conforme artigo 4º, caput, da Lei 12.850/2013” 765; c) em caso de não redução,

compromisso de reiteração, pelo Ministério Público, de apresentação do termo

760 BRASIL. Petição nº 6890, 2017. Acordo de João Santana, p. 19. 761 Ibidem, p. 19. 762 Ibidem, p. 22. 763 Denunciado no âmbito da Operação Publicano, que tramita na 3ª Vara Criminal de Londrina. 764 BRASIL. Ação Penal nº 0011011..., 2017. Acordo de Luiz Antônio de Souza. 765 Ibidem, p. 10.

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aditivo junto à Vara de Execuções Penais de Londrina/PR; d) concordância do

Ministério Público para que, na progressão do regime da pena já imposta, “o regime

subsequente” 766 ao regime inicial previsto na lei “seja semiaberto diferenciado,

consistente em prisão domiciliar, com utilização de monitoramento eletrônico”,

seguido de “custódia diferenciada, nas mesmas condições, ausente a monitoração

eletrônica” 767.

4.1.2 AS POSSÍVEIS TENSÕES DECORRENTES DAS PREVISÕES DE

CUMPRIMENTO IMEDIATO DE PENA

Quanto aos três primeiros acordos, o primeiro aspecto que chama à atenção

– mas que, de maneira nenhuma, configura uma exceção nas colaborações

premiadas celebradas no âmbito da Lava Jato – relaciona-se com as previsões de

cumprimento da pena previamente estabelecida a partir do ato da homologação

judicial. Com algumas particularidades entre si (por exemplo, o acordo de Paulo

Roberto Costa exclui a detração do tempo de prisão preventiva já cumprida), os três

acordos seguem uma dinâmica similar: na negociação, Ministério Público e defesa

concordaram com a prévia fixação de uma pena e seu respectivo regime, sem

qualquer relação com as penas individualizadas de cada ação penal a que

respondem os colaboradores.

Nos acordos de Paulo Roberto Costa e Delcídio do Amaral, há uma mínima

delimitação do objeto (fatos relacionados à Operação Lava Jato); no de João

Santana, não há essa previsão (são incluídos no acordo todos os crimes narrados,

sem uma categorização). De qualquer forma, a dinâmica é idêntica: é prevista uma

pena, a ser cumprida imediatamente, e previamente dividida temporalmente por

cada regime de cumprimento. A forma de cumprimento também é pré-estabelecida,

com o primeiro acordo (Paulo Roberto Costa) tratando de regimes tradicionais

acordados (penas em regime aberto e semiaberto) e os demais tratando dos

chamados regimes diferenciados (basicamente, uma prisão domiciliar com restrições

variáveis quanto às saídas).

Os prazos estabelecidos nos respectivos regimes são, ao que parece,

imutáveis, no sentido de que, independentemente das penas impostas, o tempo de

766 BRASIL. Ação Penal nº 0011011..., 2017, p. 10. Acordo de Luiz Antônio de Souza. 767 Ibidem, p. 10.

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cumprimento será resumido àqueles períodos. Há, por outro lado, uma previsão

temporal máxima, esta sim relacionada às penas concretas impostas, mas que é

mencionada como limitadora da persecução penal (no sentido de que, estabelecidas

penas até certo montante, os demais processos e investigações ficarão suspensos

por prazo determinado, após o qual se aguardará o transcurso da prescrição).

Com efeito, a leitura dos acordos deixa claro que, quando da celebração, o

colaborador sabe exatamente o tempo de pena que cumprirá caso não viole suas

obrigações contratuais. Também é evidente o desejado descompasso entre a pena

a ser cumprida e as penas que seriam, invariavelmente, impostas nas sentenças

penais condenatórias, revelando que tais acordos trazem extrema segurança aos

colaboradores de que, cumprindo seus lados nos acordos, terão integral controle

sobre a sanção que lhes caberá.

Por sua vez, o acordo de Luiz Antônio de Souza não traz previsão da mesma

natureza. Independentemente dos motivos negociais que podem tê-lo coibido de

obter tal benefício (sabendo-se, de antemão, que o colaborador perdeu um acordo

inicial em razão de descumprimento de suas obrigações e, certamente sem o

mesmo poder de barganha, não conseguiu benefícios mais amplos), seu acordo

envolve uma condenação prévia e o posicionamento apenas solícito do Ministério

Público de que, ao final dos processos a que ainda responde, pleiteará seu perdão

judicial e a redução da pena já fixada. Nos casos ainda não sentenciados, é possível

que seja integralmente afastada qualquer sanção pelo Juízo da causa. Não

obstante, no momento da homologação, não há certeza absoluta de que, mesmo

colaborando com as investigações conforme manda o acordo, será beneficiado ao

máximo.

A diferença entre os três primeiros acordos e o último traz uma série de

questionamentos quanto ao aspecto do cumprimento imediato da pena e à fixação

prévia dessa reprimenda. Em primeiro lugar, questiona-se qual a natureza dessa

pena e como se conciliar tal situação com o princípio do nulla poena sine judicio; em

segundo, pode-se questionar a dinâmica da previsão com os princípios da

presunção de inocência e da ampla defesa. Além desses questionamentos, vale

discutir, pura e simplesmente, a legalidade de tais previsões. Afinal, como se viu

acima, não há dispositivo na Lei nº 12.850/2013 que suporte a substituição integral

da pena de imediato, com cumprimento sem o devido processo legal. Essa análise,

porém, será feita de forma abrangente mais adiante, quando da análise dos

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impactos da prática da colaboração nos princípios da obrigatoriedade e da

indisponibilidade da ação penal (oportunidade em que outras cláusulas não previstas

em lei serão analisadas).

4.1.2.1 A CONCILIAÇÃO COM O PRINCÍPIO DO NULLA POENA SINE JUDICIO

Como se viu no primeiro capítulo, o princípio do nulla poena sine judicio é

aquele que prevê que nenhuma pena poderá ser imposta ao acusado sem a

observância do devido processo legal. Ao seu lado, há o princípio do nulla poena

sine judice, que estabelece que nenhuma pena será aplicada senão pelo Juiz.

Sob uma primeira vista, quando o acordo prevê o cumprimento imediato de

uma “pena” 768 , com restrições de liberdade que serão, observado o acordo,

absorvidas como a futura condenação penal, tem-se situação em que o colaborador

cumpre uma pena estabelecida exclusivamente com o Ministério Público,

participando o Magistrado apenas do ato da homologação judicial. Assim, se não é o

Juiz o responsável pela fixação e aplicação da pena, após devido processo legal no

qual as garantias do acusado são plenamente exercidas (notadamente, seu

exercício de defesa, contraditório e eventual duplo grau de jurisdição), ter-se-ia um

claro conflito com o princípio do nulla poena sine judicio, já que ao acusado seria

“imposta pena” pelo órgão acusatório.

A conclusão é, todavia, bastante simplista. É que, como a lei e os próprios

acordos preveem uma série de obrigações ao colaborador que serão, de forma

indiscutível (ainda que futuramente), submetidas ao crivo do Poder Judiciário

(conforme art. 4º, §11 da Lei nº 12.850/2013), não se pode afirmar que a pena

cumprida de imediato será, de fato, definitiva. Também não parece ser possível

afirmar, com segurança, que a segregação de liberdade decorrente da homologação

judicial configura, propriamente, uma pena.

Não é difícil a comparação entre a dinâmica dos três acordos oriundos da

Operação Lava Jato e os benefícios da transação penal e da suspensão condicional

do processo. Seja na colaboração, seja nos dois institutos de crimes de menor

(transação) e médio potencial ofensivo (no caso da suspensão), há uma aplicação

imediata de “pena”, a ser cumprida sem um respectivo decreto prisional por

768 As aspas são intencionais, na medida em que a discussão que se seguirá envolverá também a discussão sobre a natureza de pena de todas as sanções analisadas.

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Magistrado e após sentença de mérito, com a existência (ao menos potencialmente

nos casos da Lei nº 9.099/95) de um processo à parte. Há, nos três casos, uma

espécie de acordo com o Ministério Público que impõe de imediato o cumprimento

de alguma restrição de direitos (na colaboração, há uma privação também de

liberdade).

Ainda que haja diferenças significativas quanto ao procedimento e magnitude

das sanções previstas, há similaridades que não merecem ser dispensadas. A

discussão sobre a violação ao nulla poena sine judicio, aliás, já ocorreu quando da

promulgação da Lei dos Juizados Especiais. Na época, diversos juristas se

manifestaram quanto ao instituto da transação penal e da potencial violação ao

princípio em tela. Reale Júnior, por exemplo, sustentava que o instituto estabelecia

uma “pena sem processo”, violando o devido processo legal, a presunção de

inocência, “realizando-se um juízo antecipado de culpabilidade, com lesão ao

princípio nulla poena sine judicio, informador do processo penal”769. Para o autor, a

transação consagraria “uma condenação sem provas, ou seja, as pessoas são

julgadas e condenadas sem serem validamente ouvidas” 770 , violando o referido

princípio.

Por outro lado, Grinover, Gomes Filho e Fernandes defenderam o instituto,

afirmando que a “discricionariedade controlada” 771 (ou oportunidade regrada)

permitida pela Constituição Federal não desvirtuaria o processo penal, na medida

em que a sanção fixada teria natureza jurídica de aceitação voluntária da proposta

do Ministério Público e não significaria “reconhecimento da culpabilidade penal”772.

Isso porque a transação, como se sabe, não importa em reincidência e não consta

de registros criminais, exceto para evitar nova celebração (conforme art. 76, §§4º e

6º da Lei nº 9.099/95).

Os autores, no entanto, reconheceram a “revisão de princípios tradicionais do

direito processual como o nulla poena sine judicio”773, ainda que sempre tenham

enfatizado o controle judicial na “verificação da legalidade da adoção da medida

769 REALE JUNIOR, Miguel. Pena sem processo. In: FERREIRA, Ivette Senise; REALE JÚNIOR, Miguel; DOTTI, René Ariel; TUCCI, Rogério Lauria; PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Juizados Especiais Criminais – interpretação e crítica. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 27. 770 Ibidem, p. 30. 771 GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. Juizados Especiais Criminais. Comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. São Paulo: RT, 1995, p. 28. 772 Ibidem, p. 132. 773 Ibidem, p. 132.

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proposta e a análise de sua conveniência” 774. O mesmo se verifica na doutrina

quanto à suspensão condicional do processo, conforme Guaragni: “o Juiz, ao

receber a denúncia com a proposta, já aceita, de suspensão do processo, deve

verificar o preenchimento das condições previstas em lei, fiscalizando o uso do

princípio da ‘oportunidade regrada’” 775 . O autor, apesar de reconhecer que “a

disponibilidade da ação e atos processuais pertence ao Ministério Público, por força

do princípio acusatório” 776 , relembrava que “ao órgão judicial é conferida a

fiscalização do princípio da obrigatoriedade (art. 28, CPP), e o princ. da

oportunidade surge como exceção àquele” 777 , ressaltando a participação do

Magistrado na aplicação da “sanção”.

É bem verdade que, na transação e na suspensão condicional, há dois

diferenciais importantes: em primeiro lugar, o descumprimento inicia um processo

que sequer foi instaurado (no caso da transação) ou retoma um que não adentrou à

instrução probatória (no caso da suspensão condicional); ademais, para ambas as

possibilidades, há previsões constitucional e legal expressas.

No caso da colaboração premiada, na vigência do acordo em que se

estabelece a pena imediata, o processo segue seu natural curso paralelamente, com

o acusado não apenas cumprindo suas restrições corporais, mas também se

submetendo à instrução com a conduta que se espera de um colaborador (isto é,

confessando seus crimes, não produzindo prova em busca de sua absolvição e,

mais importante, participando da produção da prova em detrimento dos corréus).

Nesse caso, parece que o descumprimento do acordo quanto à “pena” (possível, por

exemplo, no caso de uma prisão domiciliar com tornozeleira que seja rompida)

implicará não apenas a retomada do processo, mas a rescisão de seu acordo,

posicionando-o na instrução como um ex-colaborador que, a depender do momento,

não pôde se defender.

Mais importante, porém, é o fato de que as cláusulas de cumprimento

imediato de pena não possuem lastro legal, não constando do rol de benefícios do

art. 4º da Lei nº 12.850/2013 qualquer previsão de cumprimento imediato de sanção.

774 GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. Juizados Especiais Criminais..., 1995, p. 133. 775 GUARAGNI, Fábio André. Suspensão Condicional do Processo Segundo a Lei 9.099/95. In: KUEHNE, Maurício; FISCHER, Félix; GUARAGNI, Fábio André; JUNG, André Luiz Medeiros. Lei dos Juizados Especiais Criminais. Curitiba: Juruá, 1996, p. 107. 776 Ibidem, p. 107. 777 Ibidem, p. 107.

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Isso significa que, quando da negociação do acordo, pode ser imposta ao

colaborador uma obrigação (ou benefício, a depender da perspectiva do observador)

com a qual eventualmente não se concorde, mas cuja anuência é condição sem a

qual o feito não será celebrado.

Imagine-se, nesse sentido, a seguinte situação: determinado réu, querendo

colaborar com as investigações voluntariamente, coloca-se à disposição da justiça

para confessar seus delitos, indicar seus comparsas e reparar o dano causado; o

Ministério Público, porém, exige-lhe a segregação pessoal imediata como condição

para o acordo. Em sendo o acusado indiferente à referida solicitação (ou já estando

recolhido preso, com fundamentos que dificilmente seriam refutados pela justiça –

no caso de coação de testemunhas, por exemplo), não parece haver um problema

negocial. Aceita-se a condição e celebra-se o acordo. No entanto, não estando o

acusado disposto a se recolher preso, há um problema. Sem a segurança de uma

previsão legal e diante de uma possível volatilidade durante a negociação de um

acordo, dois cenários são possíveis: ou o acusado aceita a condição a contragosto

(o que não parece ser um óbice ao reconhecimento de sua voluntariedade), ou não

celebra o acordo (o que, por outro lado, pode envolver não apenas um prejuízo ao

investigado/acusado, mas também ao interesse público, a depender do que pudesse

contribuir ao processo).

A rigor, a Lei nº 12.850/2013, como se disse, não prevê a possibilidade de

cumprimento imediato de pena ou de fixação prévia de quantum de pena a ser

eventualmente cumprida. Rigorosamente, pelo texto legal, o momento de concessão

dos benefícios (perdão judicial, redução de pena e benefícios executórios) é a

sentença. Ou seja, de acordo com a lei, apenas quando da prolação da condenação,

o Juiz estabelecerá a pena e a forma de cumprimento ao réu colaborador. Assim,

poderá o Magistrado conferir a eficácia do acordo e a efetividade da colaboração

prestada pelo réu.

Um indivíduo que não queira se recolher preso imediatamente, seja por

questões pessoais ou, de forma mais preocupante, pela incerteza de que sua

colaboração será efetiva – por exemplo, se os fatos por ele apresentados forem

concomitantemente apresentados com maiores detalhes e provas de corroboração

por corréu –, pode ter a insegurança de que, ao cumprir a pena imediatamente, não

tenha reconhecido seu benefício na sentença. Isso pode significar que a antecipação

prisional não seria correspondida por um benefício ao acordo celebrado. Trata-se,

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sem dúvida, de uma situação de insegurança jurídica. Talvez por essa razão, o

manual do ENCCLA não admita, de forma bastante expressa, essa possibilidade de

cláusula no acordo, afirmando que “não deve o magistrado homologar propostas que

tragam preestabelecido o quanto de redução da pena” 778, o que justifica pelo fato de

que o Ministério Público e o delegado de polícia “não podem prometer algo que não

podem cumprir” 779.

Na doutrina, há quem siga esse pensamento. Por exemplo, Lopes Jr. e Rosa

atestam uma “evidente incompatibilidade com o Princípio da Necessidade (nulla

poena sine judicio)”780, ainda que consignem, à luz do que “sustentam os defensores

do viés expansionista” 781, tratar-se de uma suposta “realidade que se impõe diante

da insuficiência estrutural do poder judiciário” 782. Nesse sentido, fazem alusão à

transformação que ocorre na função do Magistrado, cujo papel ficaria reduzido ao

“de mero ‘homologador’ do acordo, muitas vezes feito às portas do tribunal” 783, e do

incremento ao poder do Ministério Público.

Para os autores, há uma possibilidade, com a profusão de acordos nesse

sentido (que garantem, de certa forma, que o colaborador não sofrerá maiores

sanções pessoais com a persecução), “que as pressões psicológicas e as coações

sejam uma prática normal, para compelir o acusado a aceitar o acordo e também a

‘segurança’ do mal menor de admitir uma culpa, ainda que inexistente”784.

Em igual sentido, Wunderlich defende que “o regime jurídico trazido pela

Constituição Federal deve ser adotado às inteiras de maneira vinculante e dirigente”,

funcionando como “uma regra absoluta e que não comporta temperamento” 785. O

mesmo autor, evidenciando a similitude entre a prática da colaboração e o modelo

negocial dos Juizados Especiais (que afirma ter fracassado, notabilizando

“retrocesso, uma desburocratização que se burocratizou ainda mais” 786.), sustenta

778 BRASIL. Manual – Colaboração..., 2014, p. 8. 779 Ibidem, p. 8. 780 LOPES JR., Aury. ROSA, Alexandre Morais da. Com delação premiada e pena negociada, Direito Penal também é lavado à jato. Consultor Jurídico. 24 de julho de 2015. Disponível em < http://goo.gl/cACxRe > Acesso em 9 de maio de 2018. 781 Ibidem. 782 Ibidem. 783 Ibidem. 784 Ibidem. 785 WUNDERLICH, Alexandre. Colaboração premiada: o direito à impugnação de cláusulas e decisões judiciais atinentes aos acordos. In: MOURA, Maria Thereza de Assis; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Colaboração Premiada. São Paulo: RT, 2017, p. 18. 786 Ibidem, p. 20.

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que ao Magistrado se “impõe a não homologação de acordo (...) com certas

cláusulas que, por exemplo, não passem pelo filtro constitucional” 787.

Especificamente sobre o princípio da nulla poena sine judicio, Canotilho e

Brandão afirmam que as cláusulas que preveem que o “cumprimento da pena

privativa da liberdade se inicia a partir da assinatura do acordo de colaboração

premiada (...) são clamorosamente ilegais e inconstitucionais.”788

Por sua vez, Badaró reconhece que “na chamada ‘Justiça Consensual’ a

imposição da pena não é fruto de uma prévia verificação dos fatos, mas de um

acordo” 789, que ocorre em um campo de “extrema discricionariedade, para não se

dizer puro arbítrio do acusador” 790. Nesse sentido, e mencionando a situação a que

se refere este subcapítulo, o autor questiona o papel do Ministério Público em

estabelecer – e ver cumprida de imediato – pena prévia ao julgamento da causa:

Por isso, quem investiga não pode julgar e quem julga não pode investigar. São funções incompatíveis entre si. Num processo em que ao investigador não coubesse realizar o julgamento, o problema estaria solucionado, cada uma das funções ficaria a cargo de sujeitos distintos. Porém, tal qual vem sendo realizada a colaboração processual entre nós, ambas as funções estão sendo exercidas pelo Ministério Público (...) É o Ministério Público que irá escolher com quem celebrará a colaboração e, o que é mais relevante, que versão dos fatos será aceita. Há colaboradores que recebem imunidade e sequer serão processados; outros, mesmo sem terem sido investigados ou denunciados, já aceitam voluntariamente uma pena específica a ser cumprida, com a simples homologação do acordo. Não haverá instrução nem julgamento! É inegável que vivemos um retorno a um modelo de concentração de funções: o Ministério Público investigou, estabeleceu a verdade dos fatos, decidiu, estabelecendo a pena que foi aceita pelo colaborador resignado, e puniu. Como ocorria séculos atrás, a fogueira da inquisição continua acesa, só tendo sido trocado quem exerce o papel de inquisidor! 791

Por outro lado, Mendonça questiona se o princípio nulla poena sine judicio

seria um “óbice intransponível” 792 ao cumprimento de benefícios. Na resposta,

apresenta dois posicionamentos:

787 WUNDERLICH, Alexandre. Colaboração premiada..., 2017, p. 25. 788 CANOTILHO, J.J. Gomes; BRANDÃO, Nuno. Colaboração premiada e auxílio judiciário em material penal: a ordem pública como obstáculo à cooperação com a operação Lava Jato. Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 146, nº 4000, set.-out. de 2016, p. 30. 789 BADARÓ, Gustavo Henrique. A colaboração premiada: meio de prova, meio de obtenção de prova ou um novo modelo de justiça penal não epistêmica?. In: MOURA, Maria Thereza de Assis; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Colaboração Premiada. São Paulo: RT, 2017, p. 139. 790 Ibidem, p. 142. 791 Ibidem, p. 143. 792 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 99.

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A primeira posição – majoritária certamente – tenderia a ser no sentido da impossibilidade desse tipo de previsão de cumprimento imediato, pois seria necessário o processo judicial, com todas as suas garantias, para somente então constatar a responsabilidade doa acusado, após o devido processo legal. (...) Realmente, em relação às situações em que há previsão de cumprimento de pena em regime prisional (regime fechado propriamente dito) essa parece ser a melhor a mais prudente solução, ainda mais sem previsão legal específica autorizando-a. (...) No entanto, para o cumprimento de outros benefícios (prisão domiciliar, regimes semiaberto e aberto, prestação de serviços à comunidade e multa), a resposta tradicional acaba trazendo algumas incoerências (...).793

Nesse sentido, o autor sustenta que “o princípio do nulla poena sine judicio foi

claramente pensado e introduzido no ordenamento como uma forma de proteção ao

imputado” 794, tratando-se de uma autolimitação do Estado como “forma de evitar

abusos e excessos punitivos”795. No caso da colaboração, porém, “é do interesse

dos próprios colaboradores (...) que haja o cumprimento imediato dos benefícios,

para que seja possível o imediato cumprimento das sanções”796, de modo a evitar

que a demora do processo impeça “o recomeço de suas vidas” 797. Segue, nesse

sentido, afirmando que “a interpretação tradicional e inflexível do princípio do nulla

poena sine judicio acaba trazendo prejuízo ao colaborador” 798 , invertendo-se a

“lógica dos direitos fundamentais, utilizando-se a referida garantia em desfavor de

quem deveria proteger” 799.

Mendonça também argumenta que, ainda que haja problemas nos Juizados

Especiais (em que é “até mais provável que uma pessoa (...) acabe aceitando o

cumprimento de uma pena restritiva de direitos mesmo sendo inocente” 800 ), tal

situação não deve ser replicada na colaboração premiada, já que o colaborador “não

apenas confessa, mas produz diversas provas para se incriminar (assim como

terceiros)” 801.

Mas o autor adverte que “tal medida seja efetivamente no interesse do

colaborador – e não uma imposição do Ministério Público –, que existam prova

793 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 99-100. 794 Ibidem, p. 100. 795 Ibidem, p. 100. 796 Ibidem, p. 100. 797 Ibidem, p. 100. 798 Ibidem, p. 100. 799 Ibidem, p. 100. 800 Ibidem, p. 100. 801 Ibidem, p. 100.

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suficientes contra o colaborador – inclusive um standard apto à condenação – e que

esse seja um ato voluntário e informado”802, sobretudo em razão da participação do

advogado e da fiscalização do acordo pelo Poder Judiciário.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal apresenta algumas respostas

quanto a esses problemas. Durante a relatoria do Ministro Teori Zavascki nos casos

da Operação Lava Jato, foram feitas considerações acerca do cumprimento imediato

da pena em acordo apresentado em termos similares ao que se ora analisam:

“Por oportuno, cumpre assinalar que, embora nada impeça o imediato cumprimento do acordado por Fábio Cleto Ferreira na cláusula 5ª, parágrafo 2º, alínea b, o art. 4º, caput e §§ 1º, 2º e 11, da Lei nº 12.850/2013 não deixa margem à dúvida no sentido de constituírem os benefícios acordados, ainda que homologados (...), direitos cuja fruição estará condicionada ao crivo do juiz sentenciante, no caso concreto, à luz daqueles parâmetros. Portanto, o cumprimento antecipado do acordo, conquanto possa se mostrar mais conveniente ao colaborador, evidentemente não vincula o juiz sentenciante, nem obstará o exame judicial no devido tempo.”803

Decisão semelhante teria sido proferida pela Ministra Cármen Lúcia quando

da homologação dos acordos da Odebrecht, ainda não publicada (os acordos

seguem sob sigilo) 804 . Note-se, porém, que nas decisões de homologação dos

acordos de Delcídio do Amaral e João Santana, que preveem situações similares,

não se encontra disposição em igual sentido. Por um lado, pode-se tratar de

omissão voluntária do Ministro Edson Fachin, no sentido de homologar um acordo

dentro de um sistema já estabelecido e que, à luz da decisão do Ministro Teori

Zavascki, não garantiria que a pena antecipada vinculará o juiz sentenciante; por

outro, pode representar uma mudança de posicionamento, no sentido de que,

eventualmente, essa pena cumprida de imediato vincule o Juízo. Pela leitura da

decisão de homologação do acordo de João Santana, a primeira possibilidade

parece mais precisa. Na oportunidade, o Ministro Fachin fez valer o entendimento

firmado no Habeas Corpus nº 127.483 de que não cabe qualquer juízo de valor a

respeito das declarações do colaborador quando da homologação, postergando,

802 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 101. 803 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição 6122/DF. Relator Ministro Teori Zavascki. Publicada no Diário de Justiça Eletrônico em 13 de dezembro de 2016. Disponível em: <http://goo.gl/RtW1V4> Acesso em 9 de maio de 2018. 804 MENDONÇA, op. cit., p. 97.

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para o momento previsto em lei, “a emissão de qualquer outro juízo quanto ao

conteúdo das cláusulas acordadas”805.

Não obstante, dentro da própria Suprema Corte, o tema foi duramente

questionado pelo Ministro Gilmar Mendes. Segundo o julgador, “o cumprimento

antecipado da pena, uma espécie de prisão preventiva voluntária, também passou a

ser uma previsão padrão” 806 , chegando “ao ápice nas delações do Grupo

Odebrecht”, com as seguintes considerações:

Nessas, chegou-se a desafiar o art. 5º, LXI, da CF, segundo o qual ninguém será preso sem ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. A notícia que foi dada pelo repórter Walter Nunes, da Folha – eu já fiz referência, na outra assentada, a esse belo trabalho do jornalista – é de que foram acordadas as penas para pronto cumprimento.807

Para o Ministro, a situação em análise (que se assemelha aos acordos

referidos, ainda que, neste caso, haja as respectivas ações penais em que,

eventualmente, serão analisados os benefícios homologados) revelaria “o novo

Direito Penal e uma nova jabuticaba, nunca vista em lugar nenhum. É o Direito

Penal Constitucional de Curitiba” 808 . Na sequência de seu voto na Questão de

Ordem na Petição nº 7074, o Ministro Gilmar Mendes revela seu descontentamento

com a situação do colaborador que cumpre “pena sem inquérito, sem denúncia e

sem sentença” 809, posicionando-se no sentido de que os acordos com essa espécie

de previsão “passaram a ter força constituinte, porque revogam normas

constitucionais” 810.

Não obstante, parece que, seguindo a orientação dos dois relatores da

Operação Lava Jato de que a pena cumprida de imediato efetivamente não vincula o

juiz sentenciante, reduz-se sobremaneira a tensão existente com o devido processo

legal e o princípio do nulla poena sine judicio. Afinal, mantém-se a função do

Magistrado na análise da efetividade do acordo para a possível manutenção da pena

acordada, caso verificado o cumprimento das obrigações estabelecidas ao

colaborador. E mais: a se adotar o entendimento da decisão do Ministro Teori

805 BRASIL. Petição nº 6890..., 2017, p. 784. 806 BRASIL. Questão de Ordem na Petição nº 7074..., 2018, p. 184. 807 Ibidem, p. 184. 808 Ibidem, p. 185. 809 Ibidem, p. 185. 810 Ibidem, p. 185.

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Zavascki transcrita, chega-se ao ponto de concluir que o cumprimento antecipado

previsto no acordo não se refere a uma pena efetiva, mas a algo mais próximo às

medidas despenalizadoras da transação penal e da suspensão condicional do

processo.

Com as diferenças já apontadas entre os três institutos, poder-se-ia

argumentar que a pena cumprida imediatamente por força de acordo de colaboração

premiada seria uma segregação cautelar voluntária, por conta e risco, pelo

colaborador. Ou seja, se o colaborador tem o objetivo de resolver sua pendência

com a justiça criminal, submetendo-se desde logo a uma espécie de prisão (ainda

que domiciliar), poderia fazê-lo, desde que com a compreensão de que o período

cumprido, na pior das hipóteses, apenas funcionará como causa para a detração de

sua pena.

Parece ser importante, porém, que o acordo não se limite a beneficiar o

colaborador apenas com a fixação das penas que serão cumpridas imediatamente.

Como se vê dos acordos ora analisados, toda a reprimenda corporal prevista se

resume às frações de pena que passaram a ser cumpridas com a homologação,

apenas havendo, como benefício penal, propriamente dito, a previsão do teto de

pena (que também será analisado neste estudo) a partir do qual serão suspensos os

demais feitos em trâmite contra si. A ausência de indicação de qualquer dos

parâmetros legais (imunidade, perdão judicial, redução de pena ou substituição do

regime) pode limitar o juiz, quando da análise da efetividade do acordo, a modular a

concessão dos benefícios.

Em outras palavras: o acordo resume os principais benefícios específicos ao

tempo de pena cumprido imediatamente, sem permitir qualquer alteração pelo Juiz

da causa na hipótese de entender que a colaboração não teve a efetividade prevista.

Imagine-se, portanto, que, ao final de algum dos processos envolvidos, entenda o

Magistrado que, naquele caso específico, o colaborador não foi efetivo nas provas e

declarações que se propôs a manifestar. Ou seja: os benefícios a que faria jus

seriam menores do que o inicialmente previsto. Sem que haja um parâmetro no

acordo para essa situação, parece se estabelecer situação de insegurança ao

colaborador. Afinal, havendo apenas um teto máximo de pena de vinte ou trinta anos

de reclusão e um período de pena hipoteticamente já cumprido, poderia o

Magistrado entender pela aplicação de pena complementar que não violasse aquele

limite, mas que desatendesse aos parâmetros de cumprimento inicial.

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Ainda que o Ministério Público e o próprio colaborador possam pretender

estabelecer, sem margens, as penas que serão cumpridas (cuja possibilidade será

debatida logo mais), parece ser extremamente recomendável que o acordo preveja

possibilidades para que, no caso de entendimento judicial contrário à completa

efetividade prevista, não se criem situações prisionais imprevistas ao colaborador.

É certo, porém, que à luz do que dispõe o texto legal e o que estabelece a

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, mais recomendável ainda seria que

nenhum benefício penal ou obrigação consistente em privação de liberdade seja

concedido imediatamente ao colaborador, estabelecendo-se a sentença como

momento único à concessão do prêmio penal. Assim, garante-se: a) ao Magistrado –

e ao processo – a titularidade da condenação, protegendo-se o princípio nulla poena

sine judicio; b) ao colaborador que não pretende se recolher preso, o direito de se

submeter ao processo livremente, aguardando sua condenação para a obtenção do

benefício penal; c) a segurança aos réus delatados de que alguém que lhes impute

fatos e crimes não será beneficiado (ainda que apenas em razão da detração, caso

o acordo seja reconhecido como inefetivo e o colaborador integralmente condenado)

independentemente da comprovação da efetividade de sua colaboração.

Alternativa distinta seria, naturalmente, a complementação da lei quanto à

referida situação. Talvez fosse possível que, em algum parágrafo do art. 4º da Lei nº

12.850/2013, estabelece-se a possibilidade de que, acordando as partes, a prisão

provisória fosse convertida em antecipação dos benefícios do acordo, deixando claro

o aspecto de voluntariedade do colaborador (de preferência, com a participação do

Juízo nessa averiguação, nos termos do art. 4º, §7º da Lei nº 12.850/2013) que,

recolhido preso preventivamente, aceita se manter nessa posição,

independentemente dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal.

Para os efeitos deste trabalho, porém, a conclusão é a de que, ainda que haja

um aparente conflito entre o princípio do nulla poena sine judicio e o cumprimento

antecipado de medidas privativas de liberdade ou restritivas de direito, não parece

haver mácula à Constituição, em razão da voluntariedade que se exige no acordo

com tal previsão, que parece afastar o caráter de pena, propriamente dita, e

configura medida que não garante o efetivo cumprimento dos benefícios previstos, a

ser concedido em sentença.

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4.1.2.2 O CONFLITO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E

DA AMPLA DEFESA

À primeira vista, e assim como ocorreu com o princípio do nulla poena sine

judicio, há uma colisão entre a previsão de cumprimento imediato de pena e o

princípio da presunção de inocência. Conforme se tratou no primeiro capítulo, o

princípio se alicerça na ideia de que, até o trânsito em julgado, presumir-se-ia

inocente o acusado que, em decorrência disso, não poderia cumprir pena.

É verdade que, exceto no período compreendido entre 2009 e 2016, a

interpretação jurisprudencial quanto ao cumprimento de pena não caminha

exatamente nestes termos, admitindo-se, atualmente, a execução provisória da pena

a partir da condenação por órgão colegiado. Nada obstante, não parece ter havido

na jurisprudência brasileira qualquer entendimento pretérito de que, assim que

investigado, poderia um indivíduo passar a cumprir pena. Afinal, se sequer

denunciado ou condenado em 1º grau, ainda maior seria a presunção de sua

inocência.

A partir da análise do subcapítulo anterior, entende-se que essa resposta está

praticamente prejudicada. Como se concluiu que a “pena” imediata prevista nos

acordos analisados não pode ser considerada, propriamente, uma pena, não haveria

que se falar em violação à situação de inocência do colaborador. Se o que se tem é

o cumprimento antecipado, mas voluntário e efetivamente desejado pelo colaborador

(com o objetivo de resolver suas pendências judiciais o quanto antes), tratar-se-ia,

na realidade, de uma privação ou restrição voluntária de liberdade ou direitos. Ainda

que sem a recomendável previsão legal, tal caráter afastaria qualquer invocação ao

princípio do art. 5º, LVII, da Constituição Federal.

É interessante voltar ao referido princípio, porém, em razão da possível

alegação de sua violação, na medida em que, sob as condições descritas no

parágrafo anterior, acaba-se por colocar a presunção de inocência em conflito com o

princípio da ampla defesa.

É que, conforme se tratou no terceiro capítulo deste estudo, a colaboração

premiada deve ser compreendida como um relevante instrumento de defesa a ser

utilizado pelo acusado, de modo que a invocação – por terceiros – de que o modelo

de acordo que estabelece pena ser cumprida imediatamente violaria uma garantia

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fundamental acabaria por violar o próprio direito de defesa de quem seria

prejudicado.

Para explicar tal dinâmica, é interessante o conceito de Mendonça quanto ao

que denomina de princípio do devido processo negocial. O autor sustenta que, no

âmbito da justiça negocial, a base fundamental não é mais o devido processo legal,

mas o referido princípio “cujos princípios estruturantes são a autonomia da vontade

– como decorrência do princípio da liberdade –, a eficiência, a boa-fé objetiva e a

lealdade”811.

Segue Mendonça, quanto à autonomia da vontade, sustentando que se trata

de princípio que “impõe a liberdade de estabelecer o conteúdo do acordo” 812 às

partes, de modo a estabelecer, com as “cessões recíprocas para buscar alcançar o

fim comum” 813, um efetivo negócio. Tal dinâmica, de fato, é estranha ao processo

penal, que é público (“e não coisa das partes” 814) e “um instrumento a serviço do

Estado para atingir objetivos públicos” 815. No entanto, para o autor, “o fato de o

processo ser público e os interesses serem indisponíveis não é motivo suficiente

para alijar a autonomia da vontade no processo penal”816.

Diante disso, o autor acolhe o entendimento de que, ainda que o processo

penal em regra verse sobre direitos indisponíveis, não há vedação na composição, o

que faz com fundamento também no processo civil. Nesse sentido, menciona o

enunciado nº 135 do Fórum Permanente de Processualistas Civis que, em relação

ao art. 190 do Código de Processo Civil817, estabelece que “a indisponibilidade do

direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico

processual”818.

Em sentido semelhante, Didier Jr. e Bonfim, ao classificar a colaboração

premiada como um negócio jurídico, afirmam que “a vontade (...) não é apenas

pressuposto fático do ato jurídico, mas ela também atua no âmbito de sua eficácia,

811 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 64. 812 Ibidem, p. 61. 813 Ibidem, p. 61. 814 Ibidem, p. 65-66. 815 Ibidem, p. 65-66. 816 Ibidem, p. 65-66. 817 “Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.” BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em <http://goo.gl/9wdGwD> Acesso em 9 de maio de 2018. 818 Disponível em: <http://goo.gl/BGQG8E> Acesso em 9 de maio de 2018.

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no âmbito da escolha de categoria eficacial e de seu conteúdo, sempre dentro dos

limites tratados no sistema” 819. E segue, afirmando que, “na colaboração premiada,

o colaborador obriga-se a colaborar porque receberá, ‘em troca’, a decisão favorável

de extinção da punibilidade ou redução ou conversão da pena” 820. Já a autoridade

pública “propõe a decisão penal favorável porque receberá, ‘em troca’, a

colaboração efetiva, da qual deverá decorrer, no mínimo, um dos resultados

previstos no art. 4º da Lei” 821.

Disso decorre o conflito que se ora apresenta entre a ampla defesa e a

presunção de inocência. Se já não há violação a esse princípio em razão dos

motivos expostos no subcapítulo anterior, também não o há porque, ao aceitar

cumprir uma “pena” imediata, o colaborador age em interesse pessoal, voluntário,

dispondo de sua liberdade sem uma efetiva garantia de recebimento de benefício na

sentença (mais sobre isso adiante), mas porque entende, orientado por defensor

constituído, que se trata da melhor saída para o exercício de sua defesa. Nesse

sentido, Sánchez Rios e Farias reconhecem a mudança do caráter da defesa

técnica, que passou “a assumir uma postura de verdadeiro ‘assistente’ do Ministério

Público, atuando apenas para orientar o cliente a cooperar no sentido de garantir os

benefícios prometidos”822.

Não se ignora, no entanto, que acordos que sigam mais à risca o que dispõe

a Lei nº 12.850/2013, como o de Luiz Antônio de Souza, revelam que, para

determinados colaboradores, a lógica do processo penal segue a mesma. No seu

caso, em que não foi previsto o cumprimento imediato de “pena” como benefício,

tampouco se fixaram efetivas penas ou garantiram benefícios, há uma preservação

dos conceitos tradicionais da presunção de inocência e da ampla defesa.

Considerando-se que o referido colaborador havia sido condenado, sem

benefícios, antes da celebração do termo aditivo analisado, sua colaboração parece

envolver, não apenas o cumprimento dos requisitos do art. 4º, caput, da referida lei,

como também o de lutar, em recursos defensivos, para que eventualmente a pena já

aplicada seja reduzida. O que é interessante notar é que, sob a perspectiva do

colaborador, seu acordo é extremamente pior do que os três da Operação Lava

Jato. Ainda que haja discussões – adiante referidas – sobre a segurança dos

819 DIDIER JR., Fredie; BONFIM, Daniela. Colaboração Premiada..., 2016, p. 33. 820 Ibidem, p. 35. 821 Ibidem, p. 35. 822 SÁNCHEZ Rios, Rodrigo, FARIAS, Renata Amaral. O instituto da colaboração..., 2018, p. 22.

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benefícios pré-fixados perante o Juízo quando da sentença, o fato de ter sido

previsto um cumprimento inicial de uma pena pré-fixada, em condições

extremamente mais favoráveis, e bastante inferior à que seria cominada sem o

acordo, garante aos três colaboradores iniciais um melhor prognóstico penal que

àquele que teve, sob a perspectiva tradicional, garantida a presunção de inocência

(na medida em que, sem a prévia cominação ou previsão de pena, pode ser

integralmente absolvido em sentenças posteriores ao acordo, ao contrário dos

colaboradores da Lava Jato que, em razão do cumprimento imediato, provavelmente

não se beneficiariam de situação semelhante).

Com efeito, e com um pé na realidade, parece que uma discussão sobre a

presunção de inocência e a ampla defesa, no âmbito da colaboração premiada, é

pouco produtiva. A depender do acordo celebrado, parece ser melhor ao

colaborador que tais garantias sejam deixadas de lado para que se assegure um

melhor resultado prático. E qualquer discussão que ignore essa posição de quem

sofrerá as consequências do processo penal não deixa de ser meramente teórica.

De qualquer forma, e para responder ao problema desta pesquisa, pode-se

afirmar que, neste processo penal pós-colaboração premiada, a presunção de

inocência do colaborador (a depender do conteúdo do acordo, mas partindo-se dos

exemplos mencionados em que se estabeleceu o cumprimento imediato da pena),

não mais parece pertencer ao núcleo central das garantias que lhe preocupam,

cedendo lugar a uma nova forma de exercer sua defesa, qual seja mediante a

colaboração com o processo por meio de um acordo que lhe beneficie. Já a ampla

defesa assume caráter novo, em que não mais se resume à oportunidade de refutar

os fatos imputados, técnica e pessoalmente, mas busca, justamente pela adesão à

tese acusatória, a melhor situação penal possível.

No primeiro capítulo, trabalhou-se a ideia de que a ampla defesa também

revela interesse público, na medida em que a contraposição entre as partes auxiliará

a averiguação da legitimidade e legalidade do processo penal. Tal função, na

colaboração premiada, deverá ser exercida na análise da prova, conforme se verá

no subcapítulo corresponde abaixo. É certo, porém, que, na ótica do colaborador, o

exercício da defesa mais se preocupará com a legitimidade do acordo do que com o

processo, revelando importante mudança (que se entende não se tratar de uma

violação) na dinâmica processual tradicional.

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4.1.3 AS POSSÍVEIS TENSÕES DECORRENTES DA FIXAÇÃO PRÉVIA DE PENA

E OUTROS BENEFÍCIOS NÃO PREVISTOS EM LEI

Os acordos de Paulo Roberto Costa, Delcídio do Amaral e João Santana,

além de preverem o cumprimento imediato de uma “pena”, também se caracterizam

por uma série de benefícios penais e obrigações não previstas em lei. A Costa,

previu-se o cumprimento de um ano de prisão domiciliar e zero a dois anos de prisão

em regime semiaberto, seguidos do restante da pena unificada de até vinte anos em

regime aberto. Para Amaral, estabeleceu-se o cumprimento de um ano e seis meses

em regime semiaberto domiciliar, seguido de um ano em regime aberto domiciliar e

seis meses de serviços comunitários de sete horas semanais. Por fim, para Santana,

previu-se o cumprimento de um ano e seis meses de “prisão”, em regime fechado

domiciliar, seguido do mesmo período em regime semiaberto diferenciado e um ano

em regime aberto diferenciado.

No primeiro acordo, previram-se prazos de pena incompatíveis com o regime

legal de início de cumprimento de pena e progressão de regime. Nos dois últimos

acordos, por outro lado, tem-se a previsão de cumprimento de um quantum de pena,

dividido em regimes pré-estabelecidos, e relevantemente inferior a um teto de pena

igualmente fixado nos acordos (quinze anos, no máximo).

Para o que interessa ao escopo deste trabalho, também vale mencionar

outros benefícios não previstos em lei, quais sejam a suspensão das ações penais

pelo prazo de dez anos quando as condenações proferidas chegassem aos limites

de pena indicados, após o qual se aguardaria a extinção da punibilidade pela

prescrição da pretensão punitiva e, no caso de Costa, a previsão de que o Ministério

Público promoveria o arquivamento de fatos novos trazidos pelo colaborador no

âmbito do acordo.

Conforme se analisou no terceiro capítulo, alguns desses benefícios são

textualmente incompatíveis com aqueles que o Juiz “poderá, a requerimento das

partes”, conceder: perdão judicial, redução em até dois terços da pena, substituição

por restritiva de direitos (art. 4º, caput, da Lei nº 12.850/2013), imunidade processual

(art. 4º, §4º), a redução da pena anteriormente fixada ou a progressão de regime

fora das hipóteses legais (art. 4º, §5º).

A sistemática desses acordos se repete no âmbito da Operação Lava Jato,

não se tratando, de forma alguma, de exceções à regra. Aliás, o acordo de Luiz

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Antônio de Souza, que prevê apenas “pleitos” do Ministério Público para que os

Tribunais ou o Juízo de execução penal reduzam a pena já aplicada e para que o

Juiz da causa conceda o perdão judicial na sentença, parece ser, pela busca que se

realizou quando da pesquisa que orienta este trabalho, o excepcional.

Cláusulas variadas e não previstas em lei como as que se ora analisam têm

sido homologadas pelo Supremo Tribunal Federal e Juízes de 1º grau por todo o

país e foram recentemente formalizadas pelo Ministério Público Federal, na

mencionada Orientação Conjunta nº 1, de 23 de maio de 2018, como “boas práticas”

da colaboração premiada. Naturalmente, essa realidade merece uma análise

própria, em razão das possíveis tensões que geram com princípios tradicionais do

processo penal brasileiro. É o que se pretende fazer neste subcapítulo, em que se

analisarão os termos dos acordos à luz dos princípios do Juiz natural, da

obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública.

4.1.3.1 A CONCILIAÇÃO COM O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL

Neste subcapítulo, pretende-se enfrentar a questão das cláusulas

abrangentes dos acordos indicados em face do princípio do Juiz natural a partir de

três perspectivas distintas. Em primeiro lugar, revisitar-se-á o conceito original da

homologação judicial do acordo e da posterior verificação de sua eficácia, o que se

fará eminentemente à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Na

sequência, analisar-se-á de que maneira pode haver uma tensão entre a faceta da

imparcialidade do princípio em comento e a homologação nos termos dos acordos

da Operação Lava Jato. Por fim, enfrentar-se-á a discussão específica sobre as

cláusulas mencionadas, sobretudo no que diz respeito aos potenciais efeitos que

terão sobre Magistrados ainda não vinculados aos autos (em fatos posteriores) e o

Juízo da Execução Penal.

4.1.3.1.1 A VINCULAÇÃO DO JUIZ AOS BENEFÍCIOS NA HOMOLOGAÇÃO

JUDICIAL

No item 3.6.3 deste trabalho, analisou-se, sob perspectiva eminentemente

legal, a fase da homologação judicial. Na oportunidade, concluiu-se que a decisão

que homologa o acordo não tem o condão de adentrar em seu mérito e mantém o

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Magistrado alheio à vontade das partes, exatamente conforme dispõe o texto da Lei

nº 12.850/2013. Nesse sentido, conforme prevê o art. 4º, §7º do diploma, ao Juiz

apenas caberia a verificação da regularidade, legalidade e voluntariedade do acordo.

Na sentença relativa a cada um dos processos abarcados pelo instrumento

celebrado entre Ministério Público, conforme o art. 4º, §11 da lei, voltaria o Juiz à

dinâmica da colaboração para analisar os termos do acordo homologado e sua

eficácia. Relembre-se que, no art. 4º, §1º, estabelece-se que, para qualquer

benefício ao colaborador, a concessão levará em conta sua personalidade, natureza,

circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso, além da própria

eficácia do acordo.

Se, na análise legal da Lei nº 12.850/2013, a compreensão da dinâmica de

atuação do Magistrado é relativamente simples, a situação que se ora analisa, em

que os acordos preveem benefícios extremamente concretos, com a aplicação de

penas preestabelecidas e outras circunstâncias relativas ao seu cumprimento, traz

algumas complicações. É que, como o Ministério Público garante aos colaboradores

que suas penas serão aquelas (cabendo discussão, no tópico seguinte, sobre essa

possibilidade), parece haver uma substituição na função do Juiz, que não mais

passaria, pela leitura dos termos do acordo, a ter margens para a modulação dos

benefícios de acordo com o que dispõe a lei.

O Supremo Tribunal Federal discutiu a questão no julgamento da Questão de

Ordem na Petição 7074, em acórdão publicado em 3 de maio de 2018. Na ementa,

constou o seguinte sobre o tema:

Questão de ordem que se desdobra em três pontos para: (i) resguardar a competência do Tribunal Pleno para o julgamento de mérito sobre os termos e a eficácia da colaboração, (ii) reafirmar, dentre os poderes instrutórios do Relator (art. 21 do RISTF), a atribuição para homologar acordo de colaboração premiada; (iii) salvo ilegalidade superveniente apta a justificar nulidade ou anulação do negócio jurídico, acordo homologado como regular, voluntário e legal, em regra, deve ser observado mediante o cumprimento dos deveres assumidos pelo colaborador, sendo, nos termos do art. 966, § 4º, do Código de Processo Civil, possível ao Plenário analisar sua legalidade. 823

Pela leitura da ementa, extrai-se a conclusão do julgamento unânime no

sentido de que o acordo considerado regular, voluntário e legal deve ser observado

quando da sentença se o colaborador cumprir os deveres assumidos no acordo. Ou

823 BRASIL. Questão de Ordem na Petição nº 7074..., 2018, p. 2.

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seja, se o colaborador apresentou uma narrativa em seus depoimentos e se

comprometeu a apresentar determinados documentos ou a indicar outras fontes de

prova para a corroboração, e assim agiu na instrução, sem contrariar o que fora dito

ou deixar de cumprir aquelas obrigações, a homologação vincularia o Juízo da

causa a aplicar os benefícios acordados.

A discussão na Suprema Corte, porém, não se deu sem importantes

questionamentos pelos Ministros. O Ministro Luiz Fux posicionou-se no sentido de

que, “depois desse controle de legalidade – até para não gerar insegurança jurídica

(...), só caberá ao órgão julgador verificar a eficácia daquela colaboração sobre se

aquelas declarações correspondem à realidade probatória apresentada na

sentença”824. A análise da eficácia que recairia ao Juiz da causa, portanto, seria “a

eficácia da delação em si, em razão da correspondência da colaboração com a

realidade probatória dos autos; aí é eficaz” 825.

O Ministro Roberto Barroso seguiu linha semelhante, afirmando que “no

momento do julgamento, já não cabe mais juízo de legalidade ou juízo de mérito

sobre a colaboração” 826, sendo que, “no momento do julgamento, o que se vai fazer

é verificar se o que foi clausulado no acordo, se aquilo a que o colaborador premiado

se obrigou, ele efetivamente cumpriu e de maneira satisfatória” 827.

O Ministro Marco Aurélio, por sua vez, ao questionar se os “benefícios que

tenham sido ajustados obrigam o Órgão Julgador” 828, consignou que “a resposta é

desenganadamente negativa” 829 . No entanto, reconheceu que as cláusulas que

estabelecem os benefícios configuram “inspiração para o Órgão Julgador atuar,

mantendo a higidez desse instituto que, na quadra atual, tem-se mostrado

importantíssimo” 830 . O Ministro enfatiza, porém, que tal inspiração não teria o

condão de concentrar no Ministério Público “a arte de proceder na persecução

criminal, na titularidade da ação penal, e, também, o julgamento, embora parte

nessa mesma ação penal” 831.

824 BRASIL. Questão de Ordem na Petição nº 7074..., 2018, p. 55. 825 Ibidem, p. 50. 826 Ibidem, p. 63. 827 Ibidem, p. 63. 828 Ibidem, p. 233. 829 Ibidem, p. 233. 830 Ibidem, p. 233. 831 Ibidem, p. 233.

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Em seu voto, o Ministro Ricardo Lewandowski afirmou que a homologação

realiza um “exame precário, efêmero, que se faz à luz dos meros indícios que o

Relator tem em mãos” 832. A análise de legalidade, assim, envolveria ao

dever de vetar cláusulas que excluam, da apreciação do Judiciário, lesão ou ameaça de lesão a direitos; em segundo lugar, que estabeleçam o cumprimento imediato da pena ainda não fixada; em terceiro lugar, fixa em regime de cumprimento de pena não autorizados pela legislação em vigor; em quarto lugar, avancem sobre cláusulas de reserva de jurisdição; em quinto lugar, determinem o compartilhamento de provas e informações sigilosas sem a intervenção da justiça; e, finalmente, em sexto lugar, autorizem a divulgação de informações que atinjam a imagem ou a esfera jurídica de terceiros. 833

Verificando-se os acordos deste estudo, percebe-se que essa análise

criteriosa quanto a determinadas cláusulas possivelmente contrárias ao texto

expresso em lei não ocorreu. De qualquer forma, os acordos foram homologados.

Resta, com isso, a pergunta: se, homologado o acordo com referidas cláusulas, qual

o posicionamento que se espera do Magistrado, quando da análise da eficácia dos

acordos?

O próprio Ministro Lewandowski levantou essa questão, referindo que a

Ministra Cármen Lúcia havia afastado a incidência de uma cláusula contrária ao

texto expresso da lei (quanto à suspensão da prescrição por prazo superior ao do

art. 4º, §3º da Lei nº 12.850/2013) quando da homologação do acordo da Odebrecht,

mas que poderia não o ter feito. Com efeito, defendeu o Ministro que o Plenário (e,

em outros casos, o juiz natural da causa), na sentença, reavaliasse tais cláusulas.

Embora o acórdão não tenha encerrado o tema sob essa perspectiva (e

parece ser plenamente possível que volte à discussão futuramente), a conclusão

que se tem, por ora, é a de que ocorre preclusão à discussão da legalidade do

acordo e, com efeito, aos benefícios acordados. O próprio Ministro Marco Aurélio,

que questionou a concentração de poderes com o Ministério Público, reconheceu,

ainda que com a ressalva do surgimento de fato novo, essa situação jurídica:

A preclusão desse ato de Sua Excelência é uma preclusão que aponto como relativa, porque, caso surja um fato novo, o próprio Relator, que será também o do processo-crime a ser formalizado, apresentará esse fato novo, com a

832 BRASIL. Questão de Ordem na Petição nº 7074..., 2018, p. 152-153. 833 Ibidem, p. 152-153.

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honestidade de propósito que lhe é própria, ao Colegiado julgador. E este terá campo amplo para manifestar-se a respeito. 834

O Ministro Celso de Mello reconheceu que, homologado o acordo, configura-

se “ato jurídico perfeito, do qual resulta, quando adimplido pelo agente colaborador,

direito subjetivo que lhe garante acesso aos benefícios de ordem legal” 835 e que,

“ressalvadas as hipóteses de seu descumprimento por parte do agente colaborador

ou da superveniência de causa legítima apta a desconstituí-lo” 836 , revela-se

“insuscetível de modificação” 837. Da mesma forma, o Ministro Dias Toffoli afirmou

textualmente que, “caso a colaboração seja efetiva e produza os resultados

almejados, há que se reconhecer o direito subjetivo à aplicação das sanções

premiais estabelecidas no acordo, inclusive de natureza patrimonial” 838.

O próprio Ministro Gilmar Mendes, que afirmou que “o Juiz não é parte do

acordo” 839 e, portanto, “não fica por ele vinculado” 840, consignou que, ainda que o

Ministério Público apenas possa se comprometer a “pleitear a sanção premial” 841,

“havendo benefício válido no acordo, e sendo o acordo devidamente cumprido, o

julgador deve aplicar o benefício” 842, com a ressalva de que o Magistrado deverá

dosá-lo, utilizando-se dos já mencionados parâmetros do art. 4º, §1º da Lei nº

12.850/2013. O problema desse posicionamento, que pode ser futuramente

discutido de modo específico, é o grau de amplitude que se dará ao Juiz para a

verificação, na sentença, da validade do benefício acordado.

De qualquer forma, pode-se concluir, por ora, que o Supremo Tribunal

Federal entende, no que diz respeito à participação do Juiz na delimitação dos

benefícios que serão concedidos ao colaborador, que a homologação encerra a

discussão. Assim, as cláusulas quanto aos prêmios que serão conferidos ao

acusado subscritor do acordo deverão ser aplicadas na sentença quando as

obrigações assumidas forem cumpridas.

Na doutrina, há posicionamentos semelhantes. Veríssimo defende que “a

homologação do acordo serve para garantir ao colaborador que ele receberá, ao

834 BRASIL. Questão de Ordem na Petição nº 7074..., 2018, p. 233. 835 Ibidem, p. 260. 836 Ibidem, p. 260. 837 Ibidem, p. 260. 838 Ibidem, p. 134. 839 Ibidem, p. 215. 840 Ibidem, p. 215. 841 Ibidem, p. 215. 842 Ibidem, p. 215.

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final, caso cumpra a sua parte, os benefícios (a quantidade e o tipo de penas) que

lhes foram prometidos com a avença”843. Para Didier Jr. e Bonfim, a homologação

com essa característica definitiva seria “consonante com a ratio subjacente ao

sistema penal, já que, em princípio, caberia ao órgão jurisdicional o juízo de

aplicação das consequências penais punitivas” 844. Em outras palavras, segundo o

autor, a homologação cumpriria o mandamento do art. 5º, LIII, da Constituição

Federal de que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade

competente” 845 , equivalendo-se “à decisão penal que concede perdão judicial,

extinguindo a punibilidade, ou àquela que aplique redutor de pena restritiva de

liberdade ou, ainda, à que converta em pena restritiva de direito” 846, formando coisa

julgada material.

Bottini segue a mesma linha, afirmando que “uma vez homologado o acordo,

seus preceitos são válidos e geram efeitos no mundo jurídico” 847, ainda que ressalve

sua potencialidade, na medida em que, como a colaboração se dará em ações

penais, “os benefícios dependem de sua efetividade futura” 848 . Seguindo a

orientação do Supremo Tribunal Federal, o autor observa que

(...) uma vez homologado o acordo, há preclusão da análise de sua legalidade, exceto se surgir fato novo, ou informação nova a respeito de fato antigo, ou for reconhecida ilegalidade teratológica, caso em que a revisão se limitará à cláusula maculada sem afetar os demais elementos da avença.849

No entanto, quanto às cláusulas acordadas, sem a superveniência de vício,

Bottini conclui que “há um direito subjetivo do colaborador de aceder aos benefícios,

uma vez que a colaboração gera um dever por parte do Estado quando efetiva sua

postura, reconhecida por seu comportamento durante a instrução processual.” 850

843 VERÍSSIMO, Carla. Principais questões..., 2017, p. 113. 844 DIDIER JR., Fredie; BONFIM, Daniela. Colaboração Premiada..., 2016, p. 40. 845 BRASIL. Constituição…, 1988. 846 DIDIER JR.; BONFIM, op. cit., p. 40. 847 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. A homologação e a sentença na colaboração premiada na ótica do STF. In: MOURA, Maria Thereza de Assis; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Colaboração Premiada. São Paulo: RT, 2017, p. 189. 848 Ibidem, p. 189. 849 Ibidem, p. 192. 850 Ibidem, p. 195. Em igual sentido: SARMENTO, Daniel. Parecer: Colaboração Premiada. Competência do Relator para Homologação e Limites à sua Revisão Judicial Posterior. Proteção à Confiança, Princípio Acusatório e Proporcionalidade. Disponível em: <http://goo.gl/4aQJin> Acesso em 20 de maio de 2018.

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A partir dessa discussão, e respondendo-se ao questionamento central desse

trabalho, percebe-se uma mudança no conceito do princípio do Juiz natural com a

dinâmica da colaboração premiada, sobretudo se observada a partir dos acordos da

Operação Lava Jato que constam deste capítulo. Nos referidos casos, houve a

previsão de penas específicas que, independentemente do momento de

cumprimento, deverão – à luz da orientação do Supremo Tribunal Federal e da

doutrina ora analisada – ser reconhecidas pelo Juiz no momento da sentença caso

constate a efetividade da colaboração. Na prática, isso significa que, na fase da

dosimetria da pena, quando o Magistrado deve analisar as circunstâncias judiciais

do caso e pessoais do acusado, estabelece-se uma limitação à individualização da

pena, na medida em que, por força da segurança jurídica que o instituto requer, os

benefícios acordados e homologados não mais poderão ser revisitados (o que se

afirma por ora, na medida em que o tema poderá ser revisitado pela jurisprudência).

Perceba-se, porém, que essa discussão não é relevante quando considerado

o acordo de Luiz Antônio de Souza. Naquele caso, como se disse, nenhum benefício

foi garantido quando da homologação, cabendo ao Ministério Público pleitear a

aplicação do benefício e o Juiz concedê-lo ou modulá-lo. Considerando-se que, no

referido acordo, não se garantiu qualquer certeza ao acusado, há um risco de que,

ainda que seja efetivo o acordo, o Magistrado não aplique o benefício em sua

integralidade, já que permanece aberta a possibilidade do art. 4º, §1º, da Lei nº

12.850/2013. Assim, entendendo-se que a personalidade do colaborador ou

qualquer das outras circunstâncias inscritas no dispositivo obstam a extinção da

punibilidade, o Juiz, fundamentadamente, poderá, nos termos do caput, aplicar outro

dos benefícios previstos em lei.

4.1.3.1.2 A IMPARCIALIDADE DO JUIZ E A HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL

No desenvolvimento da pesquisa que orientou a elaboração deste estudo,

verificou-se importante objeção de Estellita quanto à potencial violação à

imparcialidade do Juiz quando da homologação do acordo de colaboração premiada.

Ainda sob a égide da Lei nº 9.807/98 (durante a qual eram celebrados acordos

similares aos atualmente praticados, mas sem as formalidades legais), a autora

levantou o seguinte questionamento a respeito dos objetivos da colaboração

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premiada e da participação preliminar do Magistrado quando da celebração de

acordo:

Caso o objeto da delação seja a “identificação dos demais co-autores ou partícipes”, esse julgamento antecipado do mérito da ação penal efetuado na celebração do “acordo” priva delator e delatado de garantias básicas decorrentes do devido processo legal: de um lado, priva o acusado delator de qualquer possibilidade de um julgamento justo, porque o seu julgador já se “comprometeu” a condená-lo; e, de outro, tira dos delatados a mesma possibilidade, pois já se proferiu um juízo antecipado de certeza sobre a “identificação dos demais co-autores ou partícipes”.851

Para a autora, portanto, “no momento em que um magistrado ‘homologa o

acordo’, está ele a afirmar (antecipadamente) sua convicção sobre a veracidade das

informações fornecidas pelo delator sobre a ‘identificação dos demais co-autores ou

partícipes’” 852 , de modo a violar duplamente o devido processo legal quanto à

função do Magistrado: “de um lado, retira-lhe a imparcialidade objetiva e, de outro,

impede o desenvolvimento contraditório do processo”853.

Em um primeiro momento, chamou à atenção o referido raciocínio – que não

se sabe se permanece válido à autora –, na medida em que, na lógica tradicional do

processo, não pareceria normal que um Juiz que deva ser imparcial (conforme se

desenvolveu no primeiro capítulo) pudesse, sem a violação ao referido princípio,

comprometer-se com a condenação de alguém que nem sequer estivesse, por

exemplo, denunciado nos autos. Trata-se de provocação mental semelhante à que

desafiou a pesquisa sobre a violação ao princípio do nulla poena sine judicio, acima

desenvolvida.

A compreensão prática da colaboração premiada, porém, encerrou, por ora,

essa primeira percepção. Como se viu na jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal acima trabalhada, o posicionamento que tem se firmado naquela Corte – e

que é seguido nas instâncias superiores, ao menos como regra nas grandes

operações policiais (em especial na Lava Jato) – é, de fato, o de que “a colaboração

processual não é mais apenas um meio de obtenção de prova que se insere no

arsenal e nas técnicas modernas de investigação da criminalidade organizada”854,

mas “um novo modelo de Justiça Penal, que funciona a partir de funções não

851 ESTELLITA, Heloisa. A delação premiada..., 2009. 852 Ibidem, p. 3. 853 Ibidem, p. 3. 854 BADARÓ, Gustavo Henrique. A colaboração premiada..., 2017, p. 146.

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epistêmicas, e sem preocupação de legitimar o exercício do poder de punir

estatal.”855

A lógica, portanto, da dinâmica de acordos não se preocupa com a

imparcialidade do julgador, mas com a segurança de que, celebrado, tenha-se a

garantia de seu cumprimento à risca ao final do processo (independentemente da

pena voluntária pré-fixada pelo colaborador junto ao Ministério Público). Não é,

portanto, preocupação do colaborador que a celebração do acordo impeça a

prolação de uma futura sentença absolutória. Abre-se mão dessa possibilidade

quando se admite a prática delituosa em troca da garantia de benefícios penais que,

por meio da voluntariedade manifesta na celebração, tornarão aceitável a

condenação.

Nos acordos da Operação Lava Jato ora analisados, em que os parâmetros

penais são bem definidos e garantem aos colaboradores a segurança de que, pelos

fatos penais praticados, confessados e complementados por imputações e provas

contra terceiros, responderão da forma delimitada, não parece fazer parte do âmbito

de preocupação do colaborador e seu defensor que o Juiz tenha convicção primária

de sua culpa e, em razão disso, conduza a instrução de maneira parcial, tratando-o

como um culpado. Essa é, aliás, a própria premissa do acordo: submeter-se o

acusado ao processo com a demonstração de que efetivamente praticou os crimes

que lhe foram imputados e de que, da mesma forma, outros acusados delatados

também o fizeram. Nesses acordos, portanto, é indiferente a parcialidade do Juiz,

que, por sua vez, deve mais se preocupar com a produção da prova pelo Ministério

Público, que corrobore aquilo que diz o colaborador (especialmente para verificar a

efetividade da colaboração) do que, propriamente, com seus eventuais preconceitos

decorrentes da celebração de acordo.

Por outro lado, em um acordo como o de Luiz Antônio de Souza, em que essa

certeza de pena não existe, talvez a parcialidade seja especialmente mais prejudicial

em razão da insegurança causada ao colaborador. Entendendo-se a colaboração

como um acordo de vontades, não haveria que se falar em risco de imparcialidade

ao colaborador que já aceitou uma pena. Mas àquele que depende de uma

instrução, em relação à qual não tem controle, eventuais preconceitos do Magistrado

quanto ao conteúdo do que vier a dizer podem ser, de fato, perigosos (ainda que

855 BADARÓ, Gustavo Henrique. A colaboração premiada..., 2017, p. 146.

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haja uma perspectiva premial encerrada na decisão que homologa o acordo, que

permitirá discussões futuras quanto à extensão dos benefícios).

A discussão quanto à imparcialidade do Juiz na homologação da colaboração

premiada também se volta ao debate do processo penal brasileiro quanto ao Juiz de

garantias. Este, segundo Lopes Jr., é o “responsável pelas decisões acerca de

medidas restritivas de direitos fundamentais requeridas pelo investigador (polícia ou

MP) e que ao final recebe ou rejeita a denúncia”856, passando a instrução processual

ao Juiz da causa, que não teria se imiscuído na produção da prova indiciária.

O tema é objeto do Projeto de Lei nº 8.045/2010, que prevê no Capítulo II

justamente essa figura processual. Dizia o art. 14 do texto original que “o juiz das

garantias é o responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal”857,

elencando suas funções específicas, todas relacionadas à fase pré-processual.

Talvez seja benéfico à dinâmica da colaboração premiada, na forma como realizada

hoje (isto é, com a fixação antecipada de penas e outros benefícios abrangentes),

que o Juiz que tem o primeiro contato com os indícios apresentados pelo

colaborador (ainda que a lei vede sua incursão no mérito do acordo) e homologa a

tratativa não seja aquele que o julga. Tratar-se-ia de situação especialmente mais

benéfica aos acusados delatados, na medida em que o Juiz da causa poderia ter um

menor compromisso material com o conteúdo do acordo, conduzindo a instrução e

julgando sem qualquer vínculo cognitivo com os seus termos.

No entanto, trata-se de problema compartilhado hoje com todas as demais

medidas investigatórias decretadas pelo Juiz da causa, de modo a não se

demonstrar uma mudança efetiva na lógica da imparcialidade do julgador.

4.1.3.1.3 OS IMPACTOS NO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL DAS CLÁUSULAS

ESPECÍFICAS

Ainda que se vá analisar, no próximo subcapítulo, a possibilidade de o

Ministério Público propor inúmeras cláusulas não previstas em lei nos acordos de

colaboração ora analisados, cabe a análise de duas, neste momento,

856 LOPES JR., Aury; RITTER, Ruiz. A imprescindibilidade do Juiz das garantias para uma jurisdição imparcial: reflexes a partir da teoria da dissonância cognitive. In: GONZÁLEZ POSTIGOM Leonel. Desafiando a inquisição: ideias e propostas para a reforma processual penal no Brasil, Chile: Centro de Estudios de Justiça de las Américas – CEJA, 2017, p. 323 857 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 8.045/2010. Disponível em <http://goo.gl/2dxa9u> Acesso em 12 de março de 2018.

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especificamente quanto ao potencial impacto que podem ter ao princípio do juiz

natural.

A primeira cláusula a ser analisada, que consta, com redações diferentes, dos

acordos de Paulo Roberto Costa e João Santana, prevê a amplitude do acordo para

além dos fatos já investigados. No caso do primeiro colaborador, o acordo prevê que

o Ministério Público irá promover o arquivamento de “fatos novos em relação ao

acusado trazidos pelo colaborador em relação aos quais não exista, na data do

acordo, nenhuma linha de investigação em qualquer juízo ou instância” 858 . No

acordo do segundo, há a delimitação do objeto como “todos os fatos ilícitos

praticados pelo colaborador até a data de assinatura” 859.

Ambos os acordos, como se vê, inserem no âmbito negocial fatos então

desconhecidos de qualquer autoridade e em relação aos quais não há procedimento

formal instaurado. No primeiro caso, há um compromisso do Ministério Público de

arquivar os feitos; no segundo, sequer há essa menção, podendo-se presumir que

todos os fatos penais relacionados constariam dos anexos da colaboração.

Considerando-se, como já se afirmou reiteradas vezes, que, ainda que se

admita o cumprimento da pena de imediato e que se assuma que os benefícios

acordados serão direito subjetivo do colaborador caso cumpra as obrigações

estabelecidas, ambas as cláusulas parecem ignorar a figura do Juiz da causa. A

uma, porque os fatos novos a serem arquivados – no acordo de Costa – deveriam,

por força do art. 28 do Código de Processo Penal, ser remetidos ao Juiz competente

com um requerimento próprio, não podendo ser feito de ofício; a duas, porque os

crimes supostamente cometidos por Santana precisariam ser primeiramente

delimitados para que, apenas após, pudesse ser estabelecida a extensão do

benefício. No caso de fatos não determinados, retira-se do Juiz a possibilidade de,

individualmente e quanto ao respectivo fato penal, efetuar o juízo de efetividade e

eficácia do acordo, em situação que poderia caracterizar uma violação ao Juiz

natural – já que, para o estabelecimento definitivo, tal análise na sentença parece

ser imprescindível.

Silva e Merlin já puderam se manifestar sobre a situação referente ao acordo

de Paulo Roberto Costa. Na oportunidade, afirmaram que, “se não é possível

relacionar o acordo de colaboração a um objeto futuro e incerto, então seria

858 BRASIL. Petição nº 5209..., 2014, p. 21. Acordo de Paulo Roberto Costa. 859 BRASIL. Petição nº 6890..., 2017. Acordo de João Santana.

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contrário à lei a promessa homologada pelo STF de que o colaborador será

agraciado pelo arquivamento de investigações de fatos novos”860. Para os autores,

“não pode o Ministério Público transigir sobre a punibilidade e a persecução penal de

crime que nem mesmo se conhece no momento da assinatura do acordo”861. O

posicionamento parece acertado sob a leitura tradicional do princípio da

obrigatoriedade, mas a perspectiva que se confere à legalidade não é o foco deste

subcapítulo (sendo tratada mais adiante). O que se questiona, neste ponto, é a

tensão das cláusulas com o princípio do Juiz natural, a qual se entende que

efetivamente ocorre.

Observe-se, porém, que ambos os acordos foram subscritos pela

Procuradoria Geral da República, de modo que, conforme se tratou no subcapítulo

referente à legitimidade para a propositura da colaboração premiada, não seria

possível a qualquer autoridade judicial determinar “a remessa do inquérito ou peças

de informação ao procurador-geral”862, já que este já se posicionou antecipadamente

quanto ao arquivamento (no caso de Costa) e à generalização de fatos penais (em

relação a Santana).

Embora tal situação possa configurar uma clara exceção prática e legal ao

princípio da obrigatoriedade, já que, de acordo com o próprio Código de Processo

Penal, o Procurador-Geral detém a última palavra sobre o arquivamento de

investigação863, deve-se observar que, em caso de acordos celebrados em Tribunal

de hierarquia superior, pode ainda haver o desmembramento do feito 864 quando

houver multiplicidade de delatados, sendo alguns com foro especial por prerrogativa

de função e outros não. Com a previsão original de arquivamento ou de inclusão

genérica de múltiplos fatos no objeto do acordo, impossibilita-se, ao que parece,

esse possível desmembramento, que remeteria o acordo às autoridades

efetivamente competentes, tanto para a condução da ação, quanto para a análise da

efetividade do acordo.

Não se ignora, por outro lado, que, nos casos que envolvam crimes

cometidos pelos colaboradores no âmbito da Operação Lava Jato, inevitavelmente

860 SILVA, Eduardo Sanz de Oliveira e; MERLIN, Luiz Henrique. Barganha e Colaboração Premiada: Modelos Norteamericano e Brasileiro. Artigo apresentado no evento “Colaboração premiada: sua conceituação, seus limites e as dúvidas geradas na sua aplicação”, realizado no Instituto de Estudos Culturalistas – IEC – em 30 de setembro de 2017. 861 Ibidem. 862 BRASIL. Código de Processo Penal, 1941. 863 Conforme SARMENTO, Daniel. Parecer…, 2018. 864 VERÍSSIMO, Carla. Principais questões..., 2017, p. 123-124.

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as investigações seguirão quanto a possíveis outros envolvidos. Nesses casos,

ainda que os colaboradores não constem do rol de acusados, sua participação

ocorreria por meio de depoimentos prestados durante a investigação e a instrução

judicial. Caso ocorresse algum problema em tais declarações, haveria um meio pelo

qual o Juiz competente poderia averiguar a eventual inefetividade do acordo e ao

menos comunicar ao Supremo Tribunal Federal a ocorrência do fato. Nos casos de

crimes cometidos de forma exclusivamente individual, porém, verificar-se-ia essa

impossibilidade.

Quanto a esse primeiro aspecto, portanto, parece ser possível a discussão

sobre um real conflito da colaboração premiada – na forma como prevista nos

acordos em análise – com o princípio do Juiz natural (e também o princípio do

Promotor natural). Para a solução de qualquer dúvida, seria recomendável, inclusive

por força de lei, que o objeto do acordo fosse devidamente especificado quando da

sua assinatura. Em caso de impossibilidade, em razão de dúvida, pelo Ministério

Público, acerca da efetiva prática delitiva quanto a determinado fato narrado pelo

colaborador, parece ser medida mais adequada que se proceda, ao longo das

investigações eventualmente realizadas, à celebração de termos aditivos ao acordo

original, preservando-se a competência do Juiz a quem seja remetido o feito.

A Orientação Conjunta865 nº 1/2018, embora sem força de lei, sugere um

caminho no primeiro sentido. Ao definir os requisitos de instrução do acordo,

estabelece-se como “boa prática” que cada os anexos tenham os seguintes

elementos: descrição de cada fato típico ou conjunto de fatos típicos conexos;

indicação da duração e local da ocorrência desses fatos, envolvidos, meios de

execução, produtos ou proveito do crime, potenciais testemunhas e demais provas

de corroboração e a estimativa do dano. Sem dúvida, com tal procedimento,

minimiza-se a crítica que se pode fazer às cláusulas acima indicadas.

A segunda espécie de cláusula que merece destaque nesta análise guarda

relação com as previsões heterodoxas de progressão de regime, na medida em que

se poderia verificar uma tensão com a competência do Juízo de execução,

verificadas no acordo de Paulo Roberto Costa. No referido contrato, estabeleceu-se

que “a avaliação da produtividade do acordo, para fins do tempo de regime

semiaberto a cumprir, entre 0 e dois anos, será feita pelo Juízo com base em

865 BRASIL, Orientação Conjunta nº 1/2018..., 2018, p. 5.

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relatórios e serem apresentados pelo Ministério Público e pela defesa” 866, devendo

levar em “consideração fatores tais como número de prisões, investigações,

processos penais e ações cíveis resultantes, assim como valores recuperados no

Brasil e no exterior” 867 . Segundo uma das cláusulas, o tempo de progressão –

variável entre zero e dois anos – seria, portanto, aferido pelo Juiz da causa, que

tomaria em consideração “o grau de efetividade do acordo” 868.

Como observaram Silva e Merlin, ao atribuir ao Juiz que homologou o acordo

a tarefa de avaliar os requisitos da progressão de regime, o referido acordo estaria

ferindo a “competência exclusiva do Juiz da execução penal, eis que de forma alheia

à lei promete ao colaborador vantagem que não pode cumprir e que é, sob o ponto

de vista legal, forma irrealizável até mesmo pelo Juiz competente”869. Embora o

trabalho citado se refira expressamente à cláusula mencionada, é comum a todos os

acordos da Operação Lava Jato a determinação prévia dos prazos de cada regime,

desconsiderando a posição do Juiz de execução penal no deferimento da

progressão. Isso não ocorre no acordo de Luiz Antônio de Souza, em que se tem a

previsão expressa da figura do Juiz da execução penal, para quem serão formulados

pedidos específicos relacionados aos benefícios previstos.

Canotilho e Brandão afirmam que, na “fase pré-sentencial, o Ministério

Público Federal não está (...) habilitado pela Lei nº 12.850/2013 a propor a um réu,

como contrapartida de sua colaboração, qualquer regime de progressão de pena”870.

Para os autores, tais previsões revelariam violação ao princípio do Juiz natural, na

medida em que o “juiz competente para a homologação deste acordo de

colaboração premiada (pré-sentencial)” 871 não é “competente para decidir da

questão, já de ordem penitenciária, da modalidade de execução da pena privativa de

liberdade a cumprir pelo réu, caso ele venha a ser condenado.” 872 Deveria ser

observada, sob essa perspectiva, “uma relação de congruência subjectiva entre o

acto de homologação da colaboração premiada e o acto da efectivação dos

866 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição 5209. Relator Ministro Teori Zavascki. 27 de agosto de 2014. Disponível em: <http://goo.gl/rgErdQ> Acesso em 6 de maio de 2018. 867 Ibidem. 868 Ibidem. 869 SILVA, Eduardo Sanz de Oliveira e; MERLIN, Luiz Henrique. Barganha..., 2017. 870 CANOTILHO, J.J. Gomes; BRANDÃO, Nuno. Colaboração premiada..., 2016, p. 32. 871 Ibidem, p. 33. 872 Ibidem, p. 33.

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benefícios prometidos” 873, para que o Estado pudesse honrar o compromisso que

assume com o colaborador.

Sob uma leitura fria da Lei de Execução Penal874, à luz dos arts. 66, III, b e

112, compete de fato ao Juiz de execução penal determinar a execução progressiva

da pena, “com a transferência para regime menos rigoroso (...) quando o preso tiver

cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom

comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento”875. Assim,

os prazos pré-estabelecidos de penas para cada regime poderiam, sob uma leitura

tradicional, entrar em conflito com o referido dispositivo.

A Lei nº 12.850/2013, por sua vez, permite, “se a colaboração for posterior à

sentença”876, que haja “a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos

objetivos” 877. Entendendo-se que o disposto no art. 4º, §5º pode se aplicar também

ao colaborador que ainda não foi condenado (trata-se de um benefício limitado pela

prévia condenação que, a princípio, não poderia ser negado àquele a quem

caberiam melhores prêmios878), ter-se-ia a possibilidade de progressão de regime

sem o cumprimento dos benefícios. Por essa leitura, parece haver um permissivo

legal para o prévio estabelecimento do prazo de cada regime de pena,

independentemente da posição do Juiz de execução.

Mais importante, porém, parece ser o posicionamento segundo o qual,

havendo a cisão de casos homologados por Tribunal (prerrogativa de foro, por

exemplo), “o novo juiz deve respeitar os limites impostos à sua atividade, balizados

pela preclusão das decisões tomadas anteriormente” 879 . Ainda que haja uma

diferença entre a alteração da competência para a apuração de um fato penal e a

transferência da causa para o Juízo de execução, a lógica (amparada pelo

posicionamento do Supremo Tribunal Federal quanto à preclusão decorrente da

homologação) é a mesma. Assim, se o acordo for homologado com previsões

873 CANOTILHO, J.J. Gomes; BRANDÃO, Nuno. Colaboração premiada..., 2016, p. 33. 874 BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://goo.gl/7NkErH> Acesso em 14 de maio de 2018. 875 Ibidem. 876 BRASIL, Lei nº 12.850..., 2013. 877 Ibidem. 878 Em sentido oposto, Canotilho: “na fase pré-sentencial não pode pactuar-se um benefício só previsto para uma colaboração pós-sentencial (v.g., a progressão de regime de execução de pena privativa da liberdade)”. CANOTILHO, J.J. Gomes; BRANDÃO, Nuno. Colaboração premiada..., 2016, p. 30. 879 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. A homologação..., 2017, p. 197.

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acerca da execução, afastar-se-iam as disposições da Lei de Execução Penal para

que a execução da pena ocorresse conforme determina o contrato.

Isso não significa que não há uma mudança na percepção prática que se

possa ter quanto ao princípio do Juiz natural no que se refere ao Juízo de execução.

Não obstante, parece não haver que se falar, por ora, em uma ilegalidade ou

inconstitucionalidade, já que há previsão legal amparando a heterodoxia executória

e precedentes da Suprema Corte asseverando o caráter imutável dos termos do

acordo quando da alteração da competência da causa relacionada.

4.1.3.2 A CONCILIAÇÃO COM OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE,

OBRIGATORIEDADE E DA INDISPONIBILIDADE DA AÇÃO PENAL PÚBLICA

Superada a análise de situações individualizadas de possíveis conflitos entre

cláusulas e princípios constitucionais específicos, passa-se a uma leitura de

benefícios e obrigações previstos nos acordos citados – e outros já enfrentados pela

doutrina e jurisprudência do Supremo – que simplesmente não contam com amparo

legal. Embora a análise adiante realizada parta de uma leitura das cláusulas

contratuais em face da legalidade, há uma relação intrínseca dessa relação com os

princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública.

Explica-se: as cláusulas ora analisadas são, em regra, criações do Ministério

Público Federal para, em especial, fazer valer o aspecto negocial dos acordos de

colaboração. Trata-se de benefícios não previstos em lei que buscam garantir ao

colaborador uma maior segurança quanto à minuciosa delimitação das

consequências penais que advirão da sua submissão ao processo como alguém que

vá produzir provas incriminadoras e não, como mandaria a lógica tradicional,

confrontar as alegações acusatórias.

Como se tratou no primeiro capítulo, obrigatoriedade e indisponibilidade da

ação penal são princípios estabelecidos no ordenamento brasileiro a partir da leitura

do Código de Processo Penal, não constando expressamente da Constituição

Federal (como ocorre, por exemplo, na Constituição italiana880). Com isso, a sua

vigência decorre eminentemente da leitura legal (assim como algumas de suas

exceções, ressalvada a transação penal, que tem previsão constitucional). Assim, ao

880 “Art. 112 – Il pubblico ministero ha l’obbligo di esercitare l’azione penale”. ITÁLIA, Costituzione Della Repubblica Italiana. Disponível em: <http://goo.gl/WTqA2Q> Acesso em 15 de maio de 2018.

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se analisarem ambos os princípios na prática da colaboração premiada, será

indispensável que se faça uma leitura das cláusulas de acordos também à luz do

princípio da legalidade. Afinal, caso se entenda, ao final deste capítulo, que, na

colaboração premiada, não vigem diretamente ambos os princípios (expandindo-se

a aplicação da obrigatoriedade no processo penal brasileiro), certamente tal

compreensão terá um impacto na exigência legal taxativa de benefícios.

Nos acordos da Operação Lava Jato ora investigados, uma série de cláusulas

já especificadas complementam o texto da Lei nº 12.850/2013: a fixação de teto de

pena; o cumprimento imediato da “pena”; a suspensão do prazo por dez anos

quanto atingida a pena máxima; a predeterminação dos regimes de cumprimento,

questões de natureza patrimonial e outras cláusulas específicas a cada um dos

colaboradores. Tais previsões não se conformam expressamente com os benefícios

do art. 4º, caput ou com outras previsões do referido diploma, sendo dispensável

discorrer profundamente sobre cada uma. O que é claro é o fato de que, na

celebração dos acordos, o Ministério Público Federal (ao menos no âmbito da

Operação Lava Jato, mas já se verificando situações muito semelhantes em

diversos outros casos, como na colaboração da JBS) tem se valido de ampla

liberdade na fixação de benefícios e obrigações. Tanto é que, na Orientação

Conjunta nº 1/2018, estabelece aquelas previsões como “boas práticas”.881

O mesmo não ocorreu no acordo de Luiz Antônio de Souza, utilizado neste

estudo como uma espécie de grupo de controle científico, e no qual a maioria

absoluta das cláusulas (em especial as que se relacionam com as previsões acima

elencadas) segue literalmente o disposto na Lei nº 12.850/2013.

O tema já foi analisado pela doutrina e pela jurisprudência. De um lado,

autores como Canotilho e Brandão são enfáticos em afirmar que “possíveis

exclusões ou atenuações de punição de colaboradores fundadas em acordos de

colaboração só serão admissíveis se e na estrita medida em que beneficiem de

directa cobertura legal, como manifestação de uma clara vontade legislativa” 882.

Segundo afirmam, “é terminantemente proibida a remessa e/ou a concessão de

vantagens desprovidas de expressa base legal” 883.

881 BRASIL, Orientação Conjunta nº 1/2018..., 2018, p. 10. 882 CANOTILHO, J.J. Gomes; BRANDÃO, Nuno. Colaboração premiada..., 2016, p. 24. 883 Ibidem, p. 24.

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Especificamente quanto a cláusulas como as que se oram analisam,

ressaltam uma potencial violação ao princípio da separação de poderes quando o

Poder Judiciário aplica benefícios que não foram previamente estabelecidos pelo

Poder Legislativo:

(...) o princípio da separação de poderes, que se procura garantir e efectivar através da prerrogativa de reserva de lei formal ínsita no princípio da legalidade, seria frontal e irremissivelmente abatido se ao poder judicial fosse reconhecida a faculdade de ditar a aplicação de sanções não previstas legalmente ou de, sem supedâneo legal, poupar o réu a uma punição. É o que sucederia, por exemplo, no caso de atenuação de uma pena de prisão para lá da redução de “em até 2/3 (dois terços)” prevista no caput do art. 4º da Lei nº 12.850/13 ou de concessão de um perdão judicial em relação a um crime não contemplado pela Lei nº 12.850/13. Em tais casos, o juiz substituir-se-ia ao legislador numa tão gritante quanto constitucionalmente intolerável violação de princípios fundamentais do (e para o) Estado de direito como são os da separação de poderes, da legalidade criminal, da reserva de lei e da igualdade na aplicação da lei. 884

Há razão de preocupação. Como ensinam Didier Jr. e Bonfim, como o acordo

de colaboração alcança a esfera de terceiros, “como é o caso daqueles que foram

‘delatados’” 885, e não apenas diz respeito à abreviação do processo do colaborador

mediante uma confissão, como ocorre no plea bargaining dos Estados Unidos da

América, sua compreensão não pode fugir dos regramentos do sistema em vigor.

Silva e Merlin adotam posicionamento semelhante. Em análise do sistema negocial

alemão, especificamente quanto a projeto que instituiria modelo de barganha em

moldes próximos ao que se propõe para o futuro Código de Processo Penal,

afirmam que “tanto lá como aqui, no projeto de lei brasileiro, o que caracteriza a

Barganha é o fato de o acusado abrir mão do direito de se defender, recusando a

instrução processual e encurtando o processo, em troca recebe ele uma significativa

redução de pena”886.

Na colaboração premiada, seguem os autores, “o efeito é justo contrário:

ocorre um alargamento do processo em face da colaboração que trará elementos de

prova contra terceiros. Ao final o colaborador receberá um prêmio pela efetividade

de sua colaboração” 887, que será concedido pelo Juiz, “dentro dos limites previstos

884 CANOTILHO, J.J. Gomes; BRANDÃO, Nuno. Colaboração premiada..., 2016, p. 24. 885 DIDIER JR., Fredie; BONFIM, Daniela. Colaboração Premiada..., 2016, p. 47-48. 886 SILVA, Eduardo Sanz de Oliveira e; MERLIN, Luiz Henrique. Barganha..., 2017. 887 Ibidem.

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pela norma” 888 . Considerando-se que a idoneidade do colaborador é sempre

questionável em razão de sua posição nos fatos penais narrados, havendo inclusive

cláusula limitadora do uso de sua palavra como prova exclusiva (art. 4º, §16), “os

benefícios prometidos ao colaborador devem estar adstritos aos limites da lei” 889.

Analisando-se uma das cláusulas dos acordos da Operação Lava Jato deste

estudo, pode-se ir além na discussão. Sobre a previsão de suspensão dos

processos por dez anos, seguida de inércia “que perdurará até que já não seja mais

possível proceder contra o réu, por ter entretanto sobrevindo a prescrição do

procedimento”890, Canotilho e Brandão afirmam, peremptoriamente, que se trata de

ilegalidade manifesta. Especialmente porque há um “notório sacrifício do princípio da

obrigatoriedade da promoção processual” 891. Em outras previsões, ocorre o mesmo

suposto sacrifício, como na já mencionada cláusula do acordo de Paulo Roberto

Costa que prevê o arquivamento pelo Ministério Público Federal de futuras

investigações decorrentes dos termos da colaboração.

Badaró também defende que, em sendo a colaboração premiada, enquanto

acordo, um meio de obtenção de prova e, portanto, potencialmente restritivo de

direitos fundamentais alheios, não se pode deixar de observar a legalidade, que,

“mais do que nominar um meio de obtenção de prova, deve estabelecer seus

requisitos, as hipóteses de cabimento, seu prazo de duração etc.” 892. Segundo o

autor, não é possível “a produção de meios de obtenção de provas atípicos” 893.

Em sentido oposto ao que defendem os autores acima citados, tem-se o

posicionamento de Mendonça, que parte da premissa que “a própria Constituição

admite que haja espaços de consenso no processo penal” 894, em referência que faz

ao art. 98, I, que prevê a transação penal. Para o autor, “nada impede que esse

espaço seja ampliado, inexistindo qualquer vedação constitucional nesse sentido”895,

o que já teria inclusive ocorrido com a suspensão condicional do processo, que criou

nova modalidade negocial para crimes de médio potencial ofensivo sem nova

888 SILVA, Eduardo Sanz de Oliveira e; MERLIN, Luiz Henrique. Barganha..., 2017. 889 Ibidem. 890 CANOTILHO, J.J. Gomes; BRANDÃO, Nuno. Colaboração premiada..., 2016, p. 24. 891 Ibidem, p. 24. 892 BADARÓ, Gustavo Henrique. A colaboração premiada..., 2017, p. 131. 893 Ibidem, p. 131. 894 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 67. 895 Ibidem, p. 67.

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emenda. Assim, segue Mendonça, o constituinte teria traçado um “limite mínimo” 896,

sem vedar que o legislador fosse além.

A colocação é interessante, mas não suficiente para justificar a amplitude

absoluta de previsões de acordos. De fato, é possível questionar se o disposto no

art. 98, I, da Constituição Federal é uma cláusula de abertura para a justiça negocial

ou se trata-se de uma expressa limitação imposta ao sistema. Isto é: de um lado,

pode-se entender que, ao prever a transação, o constituinte teria aberto uma

possibilidade para novas soluções negociais, tanto aos crimes de médio potencial

ofensivo, quanto aos de alta gravidade; de outro, poder-se-ia afirmar que se trataria

de uma exceção à regra, no sentido de que, se, nas infrações de menor potencial

ofensivo, a Constituição admite a transação, então, nas demais, tal possibilidade não

existiria.

Ao que parece, pelo exemplo da suspensão condicional do processo, a

primeira hipótese é mais plausível. No entanto, tal conclusão não resolve a

pendência das cláusulas não previstas em lei. Especialmente porque se admite, com

menores ressalvas pela doutrina e pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,

a previsão da imunidade processual do art. 4º, §4º como plenamente possível. Ou

seja, havendo previsão legal na própria Lei nº 12.850/2013, existiria a possibilidade

de ainda maior mitigação dos princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade

sem a necessidade de complementação extralegal dos referidos benefícios.

Mendonça vai adiante, no entanto. Segundo ele, a incidência do princípio da

legalidade, abarcando a obrigatoriedade da ação penal, teria maior importância no

sistema litigioso. Em se tratando de um “modelo consensual” 897, porém, admitir-se-ia

maior espaço ao consenso em razão da autonomia da vontade. Com efeito, o

princípio da legalidade seria “aplicável em toda medida limitativa de direitos

fundamentais, que deve se encontrar prevista em lei” 898, possuindo “finalidade de

segurança jurídica e legitimação democrática, visando restringir as intromissões que

o Estado faz na esfera do imputado” 899 – o que contrasta com a lição de Badaró

acima quanto à natureza da colaboração como meio de obtenção de prova.

Segundo Mendonça, portanto, o princípio da legalidade não teria o objetivo de

vedar, para o colaborador, a ampliação do conteúdo legal de benefícios a serem

896 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 67. 897 Ibidem, p. 67. 898 Ibidem, p. 67. 899 Ibidem, p. 67.

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aplicados. Tanto é que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, antes da dinâmica

atual da colaboração premiada, já havia decidido nesse sentido, nos autos da

Correição Parcial nº 2009.04.00.035046-4/PR, oportunidade em que se estabeleceu,

quanto a benefícios não previstos em lei, que “embora criação extralegal, é ela

mantida pela inexistência de interesse recursal dos envolvidos – ressalvada hipótese

de direito indisponível -, não sendo moral e faltando legitimidade a terceiros em

discutir favores concedidos ao delator.”900

Tratando diretamente de cláusulas como as que se ora analisam, Mendonça

defende, por exemplo, a fixação de um teto de pena porque em determinados casos

(em que o colaborador responde a dezenas de processos), “aceitar um benefício

genérico (...) pode ser extremamente prejudicial ao colaborador, além de deixa-lo em

uma situação de absoluta insegurança jurídica”901. Ademais, haveria uma possível

violação ao interesse público quanto ao acordo, na medida em que, respondendo

proporcionalmente por cada fato narrado, ao colaborador interessaria omitir certas

condutas, “até mesmo como forma de autopreservação”902. Assim, tal previsão teria

uma função própria importante, estabelecendo o momento em que se entende “que

o acordo alcançou seu fim, de forma que a pena será considerada suficiente para a

prevenção e a repressão do delito. A partir de então, passa a não haver mais

interesse em novos processos contra o acusado.” 903

Da mesma forma, quanto à já mencionada suspensão do processo após

atingido o limite de pena, o autor sustenta se tratar de “um grande estímulo para que

o colaborador continue a cumprir suas condições – entre elas, a de não voltar a

delinquir.” 904 Para justificar tais cláusulas, o autor faz uma comparação com a

suspensão condicional da pena do art. 77 do Código Penal.

Mesmo sendo um claro defensor do modelo de colaboração premiada

atualmente praticado em boa parte dos casos penais de relevo no país, Mendonça

ressalva que, “embora a legalidade estrita não seja óbice, é recomendável que haja

alguma cobertura legal para os benefícios” 905 , de modo que não se apliquem

medidas que já não sejam disciplinadas no ordenamento e permita-se o emprego de

900 BRASIL. Porto Alegre. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Correição Parcial nº 2009.04.00.035046-4/PR. Relator Desembargador Federal Néfi Cordeiro. Publicado no Diário Eletrônico em 12 de novembro de 2009. 901 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 89. 902 Ibidem, p. 90. 903 Ibidem, p. 90. 904 Ibidem, p. 92. 905 Ibidem, p. 96.

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analogia. Com isso, admitir-se-ia, independentemente da legalidade, toda e qualquer

previsão (obrigação ou benefício) que seja, de certa forma, admitida em alguma

medida no sistema (excetuando-se, assim, penas vexatórias).

A doutrina do direito administrativo pode emprestar uma tentativa de solução

ao impasse. Ao discutirem a amplitude do modelo consensual do acordo em ações

de improbidade e outros procedimentos da área, chegou-se a problema semelhante

ao que se ora verifica com a colaboração premiada criminal. De um lado, autores

como Ferreira sustentavam que “não há escolha entre processar ou não processar,

entre sancionar ou não sancionar, salvo quando a lei dispuser em contrário” 906,

enfatizando que “ato de hierarquia inferior não pode liberalizar o que o estado de

legalidade obriga” 907. Por outro lado, Palma entende que “a leitura da legalidade

adequada à consensualidade considera a lei e o Direito, razão pela qual o

fundamento legal da atuação consensual, não se resume à lei formal, mas abrange

também princípios e atos normativos” 908.

Binembojm, por sua vez, afirma que “a ideia de juridicidade administrativa,

elaborada a partir da interpretação dos princípios e regras constitucionais, passa,

destarte, a englobar o campo da legalidade administrativa, como um de seus

princípios internos, mas não mais altaneiro e soberano como outrora” 909, no sentido

de que, ainda que a legalidade seja extremamente relevante, a ausência de previsão

legal poderia ser dirimida por fundamento direto da Constituição ou em razão de

“ponderação da legalidade com outros princípios constitucionais” 910.

Em sentido semelhante, e embora defenda que os benefícios do acordo

devem ser “um entre as três opções previstas legalmente”911, quais sejam o perdão

judicial, a redução de pena até dois terços ou a substituição da pena privativa de

liberdade por restritiva de direitos, Didier Jr. e Bonfim reconhecem na colaboração

premiada um “espaço de autorregramento” 912 , enfatizando, em especial, a

necessidade de se preservarem os limites estabelecidos pelo sistema. Se a

906 FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa a partir da Constituição Federal. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 333. 907 Ibidem, p. 333. 908 PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sanção e acordo na administração pública. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 273-274. 909 BINEMBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 142. 910 Ibidem, p. 142. 911 DIDIER JR., Fredie; BONFIM, Daniela. Colaboração Premiada..., 2016, p. 33. 912 Ibidem, p. 33.

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limitação é imposta pelo sistema em geral, abrir-se-ia uma maior amplitude para as

cláusulas de acordos e, em especial, para a mitigação dos princípios da

obrigatoriedade e da indisponibilidade.

Ademais, segundo os autores, ainda que o sistema processual penal receba a

colaboração premiada com “incômodo e estranheza, já que construído sob os pilares

da decisão absolutória e da decisão condenatória” 913, as lacunas decorrentes da

aplicação da Lei nº 12.850/2013 poderiam vir a ser dirimidas pela compreensão do

Direito como um “sistema unitário e aberto que se caracteriza pela ductibilidade,

exigindo-se uma dogmática líquida ou fluida compatível à sua base material

pluralista” 914 . Com efeito, seria preciso buscar a resposta “sob a perspectiva

sistêmica do ordenamento e dos valores que lhe são subjacentes” 915, de modo que

a lacuna seja “integrada por normas do próprio sistema” 916.

De fato, ambas as linhas de pensamento – contrária e favorável à amplitude

dos benefícios e obrigações da colaboração premiada para além do texto legal – têm

fundamentos importantes. Por um lado, é inegável que a perspectiva tradicional da

dogmática penal e processual tende a limitar qualquer medida que se reverta em

face de terceiros sem o amparo da lei (embora a discussão sobre benefícios

também se refira individualmente ao colaborador); por outro, ao se analisarem as

cláusulas questionáveis à luz dos princípios da autonomia da vontade e da

segurança pública917, pode-se entender tratar-se de medidas válidas, sob uma ótica

do sistema jurídico.

Em qualquer hipótese, é importante a compreensão enfatizada por Armenta

Deu de que a oportunidade como “exceção de um dos princípios fundamentais do

direito – como garantia contra o abuso dos poderes públicos (...) deve enfrentar o

perigo de desequilibrar aqueles” 918, com os riscos de “uso indevido de faculdades

discricionais (...) e a quebra da imparcialidade, combinando as funções acusadoras

e julgadoras nas mãos do promotor” 919. Segue a autora, afirmando que, se, por um

913 DIDIER JR., Fredie; BONFIM, Daniela. Colaboração Premiada..., 2016, p. 45-46. 914 Ibidem, p. 45-46. 915 Ibidem, p. 45-46. 916 Ibidem, p. 45-46. 917 Conforme SARMENTO, Daniel. Parecer…, 2018. 918 ARMENTA DEU, Teresa. Principio..., 2016, p. 3. Do original: “excepción de uno de los principios fundamentales del Estado de Derecho – como garantía frente al abuso de las facultades públicas (...) debe arrostrar el perigo de desequilibrar aquéllos”. 919 Ibidem, p. 4. Do original: “uso indebido de las facultades discrecionales (...) y la quebra de la imparcialidad, al aunar las funciones acusadoras y enjuiciadoras, ahora em las manos del fiscal”.

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lado, a legalidade tenta garantir a igualdade perante a lei, “a vigência do princípio da

oportunidade consagra a desigualdade, de maneira nem sempre suficientemente

justificada” 920. Em outras palavras: independentemente da corrente escolhida sobre

a ampliação do princípio da oportunidade e redução dos princípios da

obrigatoriedade e indisponibilidade, é necessário que sempre se tenham em mente

os riscos do caminho a ser escolhido, ainda que possa garanta maior efetividade ao

processo penal.

A resposta poderá vir da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Como

bem alerta Bottini, “não raro, cláusulas são glosadas pelo Poder Judiciário” 921, que,

em algumas ocasiões, já pôde se pronunciar por temas afeitos ao que se discute

neste capítulo. Alguns exemplos já foram citados no subcapítulo anterior, quando se

verificou o posicionamento dos Ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski

contra cláusulas de suspensão dos processos assim que atingido o teto de pena e

que estabeleçam benefícios não autorizados pela lei. Outro pronunciamento de

relevo foi feito pelo Ministro Dias Toffoli, conforme se vê a seguir:

Então, eu recebi esse acordo, assinado pelas partes, e entendi que suscitava dúvida essa forma de cumprimento de pena. Então, eu coloquei em meu despacho: “Não obstante previsto os vinte anos como tempo máximo de cumprimento de pena, o acordo somente disciplina o regime prisional durante os primeiros dois anos e dois meses, quedando-se omisso em relação ao restante da pena, o que deverá ser esclarecido. É mister ainda que, no caso de descumprimento das condições dos regimes diferenciados de execução de penas propostos - vejam o que eu coloquei no despacho -, mister que, no caso de descumprimento das condições dos regimes diferenciados de execução de penas propostas, sejam disciplinadas as hipóteses em que, ao invés da rescisão do acordo nos termos da Cláusula 27, o colaborador ficará sujeito a eventual regressão do regime.”922

O acórdão da Questão de Ordem na Petição nº 7074, porém, não resolveu

tais problemas identificados nos debates em Plenário. Com efeito, não seria

surpreendente que, no futuro, tal tema voltasse à discussão, reconhecendo-se,

eventualmente, a ilegalidade dos acordos que preveem benefícios não previstos em

lei e que alterem, sem o amparo legal, o conteúdo dos princípios da obrigatoriedade

e da indisponibilidade.

920 ARMENTA DEU, Teresa. Principio..., 2016, p. 4. Do original: “la vigencia del principio de oportunidad equivale a consagrar la desigualdade, de manera no siempre suficientemente justificada”. 921 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. A homologação..., 2017, p. 186. 922 BRASIL. Questão de Ordem na Petição nº 7074..., 2018, p. 113.

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De todo modo, e considerando-se a realidade prática dos acordos, parece

que a conclusão a que se pode chegar neste trabalho a respeito dos princípios da

obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal é a de que, por ora, há uma

profusa mitigação de seu conteúdo pelos Juízes e Tribunais que admitem as

cláusulas abrangentes de limitação de pena e outras previsões de modo

incompatível com os benefícios previstos no art. 4º, caput, da Lei nº 12.850/2013 –

enfatizada pelo posicionamento do Supremo quanto à preclusão decorrente da

homologação e ao direito subjetivo gerado ao colaborador caso cumpra suas

obrigações do acordo.

Quanto à situação dos acordos ora analisados, porém, parece que cabe uma

recomendação específica para que se conciliem a intenção do colaborador e a

disponibilidade interna do Ministério Público com a problemática em questão,

sobretudo no que tange ao teto de pena e à suspensão do prazo dos processos

adicionais quando aquele for alcançado. Parece ser possível, pela compreensão dos

benefícios legais, que seja feita uma clara conciliação entre eles, complementando-

se o acordo periodicamente, na medida em que novas imputações forem formuladas

aos colaboradores. Por exemplo: ao invés de fixar um teto de pena para eventuais e

futuros casos penais, o Ministério Público poderia oferecer, de forma conjugada, os

benefícios de perdão judicial, redução de pena e imunidade processual ao

respectivo colaborador.

Assim, para a pena que se pretende ver cumprida, estabelecer-se-ia, quanto

a determinados casos, uma redução de pena proporcional ao desejado; para os

demais casos existentes, oferecer-se-ia o perdão judicial; para os casos futuros

(conhecidos em razão do acordo), garantir-se-ia a imunidade, já que o colaborador

seria o primeiro a receber o benefício quanto a esses fatos – desde que não fosse,

nos termos da lei, o líder da organização criminosa. No que diz respeito à suspensão

dos processos, a solução parece ser a celebração de termos aditivos quando novos

casos forem incrementados ao acordo. Se a declaração do colaborador ensejar uma

nova denúncia, o Ministério Público poderá complementar o acordo, sempre de

modo a manter o benefício material inicialmente previsto.

Ainda que o benefício concedido possa vir a ser rigorosamente o mesmo do

que sem tais formalidades (o que, por outro lado, poderia revelar a própria

desnecessidade do detalhamento e a adequação do procedimento atual), pelo

sistema proposto, parece ser possível garantir a legalidade e evitar qualquer

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discussão sobre ilicitude de provas decorrentes de colaboração eventualmente

anulada, ao menos até que se reveja o texto legal e se estabeleçam regras mais

claras sobre o conteúdo do acordo.

4.2 A COLABORAÇÃO COMO PROVA DA CONDENAÇÃO

A análise das possíveis tensões envolvendo a compreensão tradicional dos

princípios do processo penal e a prática da colaboração premiada indicou uma

aparente mudança de paradigma, com maior apelo à autonomia da vontade e à

prevalência dos interesses de acusação e defesa no âmbito negocial. Caso se

estivesse diante de um modelo de justiça cível ou mesmo de uma barganha,

propriamente dita, em que o réu negocia com o Ministério Público sua própria pena

mediante a confissão e a reparação do dano, as diferenças sistêmicas teriam menor

impacto nesta discussão.

Acontece, como já se apresentou acima, que a colaboração é, não apenas

um instrumento de confissão e barganha para a concessão de benefícios penais,

mas um meio de obtenção de prova que tem como objetivo primário as funções dos

incisos do art. 4º da Lei nº 12.850/2013. Seu uso se justifica, portanto, pela

necessidade de aprofundamento de investigações para o desmantelamento e

persecução de integrantes de organizações criminosas, com o especial interesse de

reparação do dano.

Isso quer dizer que toda a mudança da dinâmica do processo penal acima

ilustrada tem como alvo, não o colaborador que abre mão de seus direitos em troca

de um benefício, mas especialmente os delatados que virão a ser investigados,

denunciados e potencialmente condenados a partir da narrativa apresentada na

colaboração. E mais: para a obtenção do prêmio, o colaborador terá como obrigação

fundamental a ampliação do escopo das investigações de que seja parte, sendo

tanto mais beneficiado quanto abrangentes e detalhados forem os crimes de

terceiros narrados.

Essa lógica da colaboração premiada traz um evidente risco, qual seja a

possibilidade de que os acordos sejam utilizados de forma perversa por um

réu/investigado que pretenda ser beneficiado por sua aparente voluntariedade com a

Justiça, mas que não tenha muito o que imputar a terceiros além de falsas

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acusações. Mesmo entre os defensores do modelo atual de colaboração o risco é

reconhecido. Mendonça, nesse sentido, sustenta que é necessária a adoção dos

mecanismos e filtros já criados pela lei contra essa prática, quais sejam a

regra da corroboração – criada exatamente em razão do risco de acordos mendazes –, o exercício do contraditório em juízo, assegurando-se o direito ao confronto, o crime de falsa colaboração (...) e a previsão de que o colaborador, caso rescinda o acordo, perderá os benefícios e, ainda, serão válidas as provas por ele produzidas em seu desfavor.923

De fato, assiste razão ao autor quanto à existência de um sistema de freios e

contrapesos na Lei nº 12.850/2013 quanto ao uso da colaboração como prova

condenatória. No art. 4º, §16, há a previsão de que “nenhuma sentença

condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente

colaborador”924. Da mesma forma, o art. 19 prevê o crime de falsa colaboração, que

pune aquele que “imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a

prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações

sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas”925. Por fim, o art.

7º, § 3º prevê a publicidade do acordo com o recebimento da denúncia, indicando o

acesso aos delatados de seu conteúdo no curso da ação penal.

Considerando-se que o art. 155 do Código de Processo Penal exige que o

Magistrado forme sua convicção “pela livre apreciação da prova produzida em

contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos

elementos informativos colhidos na investigação”926, tem-se um modelo que, em

tese, impediria que uma colaboração perniciosa fosse indevidamente utilizada como

fundamento de uma condenação criminal.

O grande problema, que se relaciona diretamente com os princípios da

presunção de inocência e do contraditório, é que não há um parâmetro legal para a

valoração da prova decorrente da colaboração premiada. Embora seja clara a

necessidade de elementos de corroboração para as declarações do colaborador,

não se extrai do texto legal uma orientação mais específica sobre o conteúdo dessas

provas adicionais. Simantob, em razão disso, questiona “que tipo de elemento de

prova é preciso para corroborar a palavra do delator? Basta que qualquer afirmação

923 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., p. 85. 924 BRASIL. Lei nº 12.850…, 2013. 925 Ibidem. 926 BRASIL, Código de Processo Penal…, 1941.

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do colaborador seja provada para que se valide todo o resto da delação? Ou é

necessário que o elemento de corroboração diga respeito a aspecto decisivo do tipo

penal?”927.

Para o referido autor, num modelo adequado à Constituição, “o juiz deve

abstrair a palavra do colaborador até conseguir reunir indícios da ocorrência de um

fato ilícito de que o réu seja seu autor”928 . Somente a partir disso, “depois de

minimamente provar o fato e a autoria, é que poderá utilizar a palavra do

colaborador para corroborar os elementos e fundamentar a condenação” 929 . Na

prática, segundo Simantob, o inverso estaria ocorrendo, com “juízes usando a

palavra do colaborador como único elemento de prova para condenar para depois

sair em busca de qualquer outro dado empírico capaz de conectar a afirmação do

delator com a realidade”930.

A lei, porém, não determina qual deve ser a conduta do Magistrado. Como

bem observa Badaró, “o conteúdo das declarações do colaborador (...) será

diretamente valorável pelo julgador”931, em um “regime de prova legal negativa, no

qual se determina que somente a delação premiada é insuficiente para a

condenação do delatado”932. Com isso, o §16 do art. 4º não teria por “objetivo

determinar qual meio de prova ou quantos meios de prova são necessários para que

um fato seja considerado verdadeiro”933, mas apenas que a colaboração isolada não

pode funcionar como prova única da condenação.

O próprio Badaró evidencia o problema da lei quanto ao tema, revelando uma

profunda mudança no sistema processual penal:

(...) desloca-se a centralidade da legitimação do exercício do poder de punir de um instrumento cognitivo fundado no saber construído em contraditório, com o funcionamento de um mecanismo dialético de verificação e confronto entre tese e antítese, baseado na prova produzida que suporte cada uma delas, para um modelo em que haverá apenas uma “verdade” preestabelecida por uma escolha discricionária. 934

927 SIMANTOB, Fábio Tofic. Colaboração premiada na Operação Lava Jato. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; COSTA, Marcos da. A importância do Direito de Defesa para a democracia e a cidadania. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2017, p. 251. 928 Ibidem, p. 251. 929 Ibidem, p. 251. 930 Ibidem, p. 251. 931 BADARÓ, Gustavo Henrique. A colaboração premiada..., 2017, p. 135. 932 Ibidem, p. 135. 933 Ibidem, p. 135. 934 Ibidem, p. 143.

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O autor afirma que o grande problema dessa “verdade” buscada pela

colaboração premiada é o fato de ser “fundada em evidências geradoras de

crença”935, emprestando a afirmação de Martins de que é “evidente o que dispensa a

prova” 936 . Para o autor português, “a evidência instaura um desamor do

contraditório”937, já que “constitui um desdobramento do sentido na indicação da sua

própria verdade” 938 . A colaboração premiada, nessa lógica, seria formadora de

evidência, afastando a instrução da necessidade de uma adequada produção da

prova. Badaró exemplifica, tomando por base dinâmica de fatos similar (mas não

nominada) à da Operação Lava Jato:

Num contexto recente, em que alguns funcionários públicos confessam seus atos de corrupção, com narrativas fáticas compatíveis entre si, e devolvem algumas dezenas ou até centenas de milhões de dólares, essa repetição de versões criminosas somadas à montanha incalculável de dinheiro já são suficientemente plausíveis, seja no que confessam contra si, seja no que incriminam terceiros. E se torna absolutamente inútil ao delatado criticar o tentar falsear a crença gerada pela narrativa dos delatores, a partir de mecanismos probatórios. Fica-se com a crença alucinadora gerada pela evidência e rejeita-se a prova que possa confrontá-la, mostrando uma verdade diversa. 939

Para o autor, a situação processual referida, em que tudo indica a prática

delituosa a partir da narrativa da colaboração e dos elementos fornecidos pelos

colaboradores, impediria a absolvição de alguém verdadeiramente inocente, mas

que, “como sua versão não se alinhou com a narrativa já selecionada e adotada

como a história oficial das inúmeras colaborações premiadas” 940, não teria espaço

para demonstrar uma narrativa fática diferente daquela apresentada pelos que o

delataram.

Com base nisso, Badaró encerra sua crítica sustentando que “o modelo de

colaboração premiada brasileiro se transformou num fast track, que eliminou o

demorado e custoso processo” 941, indicando uma volta “a sistema punitivo em que a

centralidade não está na busca dialética de provas como mecanismo de suporte da

935 BADARÓ, Gustavo Henrique. A colaboração premiada..., 2017, p. 143-144. 936 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito. 3ª Edição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 2. 937 Ibidem, p. 2. 938 Ibidem, p. 3. 939 BADARÓ, op. cit., p. 145. 940 Ibidem, p. 145. 941 Ibidem, p. 146.

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versão a ser adotada como a preferível na reconstrução histórica dos fatos, mas em

uma imposição solipsística de uma ‘verdade’ escolhida” 942.

O tema é bastante polêmico, possuindo aspecto epistemológico da prova que

foge ao objetivo deste trabalho. O que se pretende, aqui, é responder como a

colaboração premiada, na forma como praticada, tem interagido especificamente

com os princípios da presunção de inocência, da ampla defesa e do contraditório.

Uma forma de tentar responder a esse questionamento é a leitura da

jurisprudência de Tribunais que já tiveram que se debruçar sobre o tema. Nas

Apelações Criminais nº 5012331-04.2015.4.04.7000 943 e 5045241-

84.2015.4.04.7000944, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria de

votos, absolveu o ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores, João Vaccari Neto,

em razão da ausência de prova de corroboração quanto a múltiplas declarações de

colaboradores que o implicariam em diversos fatos penais.

No primeiro caso, o Relator, Desembargador João Pedro Gebran Neto, votou

pela manutenção da condenação do acusado a partir da corroboração mútua

extraída de inúmeras declarações de colaboradores no sentido de sua participação

nas atividades ilícitas investigadas. Segundo o voto, “das declarações dos

colaboradores, não se pode retirar a qualidade de indício”945, e, do conjunto de

indícios apresentados nos autos, seria possível a extração da responsabilidade

criminal de Vaccari.

No voto do Revisor, o Desembargador Leandro Paulsen, por outro lado,

concluiu-se que, “a despeito do grande potencial probatório do depoimento do réu

colaborador, nada foi feito. O que temos é a versão oral dada por corréu diretamente

implicado no ilícito e que, muito provavelmente, tenha sido o segundo maior

beneficiário das propinas” 946 . No entanto, “nenhuma prova de corroboração foi

produzida pela acusação” 947 , impedindo a condenação. Segundo o voto, “o

Ministério Público Federal não produziu elementos probatórios como registros

942 BADARÓ, Gustavo Henrique. A colaboração premiada..., 2017, p. 146. 943 BRASIL. Porto Alegre. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Criminal nº 5012331-04.2015.4.04.7000. Relator para acórdão Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto. 27 de junho de 2017. 944 BRASIL. Porto Alegre. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Criminal nº 5045241-84.2015.4.04.7000. Relator para acórdão Desembargador Federal Leandro Paulsen. 26 de setembro de 2017. 945 BRASIL, Apelação Criminal 5012331..., 2017. 946 Ibidem. 947 Ibidem.

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materiais das supostas reuniões em que Vaccari tomou parte, informações de sigilo

fiscal ou bancário (...), mensagens interceptadas” 948 ou outro elemento que pudesse

“colocar acima de dúvida razoável o dolo do acusado” 949.

No voto do Desembargador Victor Luiz dos Santos Laus, acompanhou-se o

voto do Revisor sobre o referido acusado em razão da ausência de apresentação

pela acusação de “elementos materiais que pudessem corroborar aquelas

declarações, assim como não foram arroladas testemunhas que poderiam fortalecer

a prova, como a apontada cunhada de João Vaccari” 950. Segundo o voto-vista,

proceder em sentido contrário violaria o disposto no art. 4º, §16 da Lei nº

12.850/2013.

No segundo caso, o Relator originário, Desembargador Gebran Neto, votou

pela manutenção da condenação de 1º grau, entendendo que existiriam contra o

acusado, além da palavra de colaboradores, um conjunto de indícios “compatível

com o quadro de corrupção sistêmica já identificado ao longo das diversas fases da

‘Operação Lava-Jato’”951 . Considerando-se, ainda, que o acusado eram um dos

principais representantes do Partido dos Trabalhadores e, mais importante, que não

apresentou contraindícios da imputação criminal, estaria correta a sentença de

primeiro grau.

Na dissidência aberta pelo Desembargador Paulsen, entendeu-se pela

absolvição pela ausência absoluta de elementos materiais de corroboração,

consistentes em prova testemunhal ou documental de seu envolvimento nos fatos.

Sem provas judiciais em sentido similar ao que afirmaram os colaboradores, não

haveria que se falar em “prova acima de dúvida razoável de seu envolvimento nos

ilícitos descritos pelo Ministério Público Federal”952.

No voto do Desembargador Laus, chegou-se a conclusão semelhante, com o

Julgador se atentando para o fato de que um depoimento policial (um dos indícios

indicados pelo Relator) que incriminaria o acusado não foi renovado em Juízo, não

podendo ser considerado em atenção ao princípio do contraditório. Assim, a

absolvição seria a medida impositiva em razão da ausência absoluta de elementos

de prova judicial que amparassem as palavras dos colaboradores.

948 BRASIL, Apelação Criminal 5012331..., 2017. 949 Ibidem. 950 Ibidem. 951 BRASIL, Apelação Criminal 5045241…, 2017. 952 Ibidem.

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A partir de ambos os julgados, parece ser possível extrair a correta lição de

que a condenação criminal não pode decorrer das palavras de um colaborador

(exatamente nos termos da lei) ou das colaborações recíprocas que não sejam

amparadas por outros elementos de prova independentes, produzidos à luz do

contraditório. No entanto, o acórdão não encerra integralmente a discussão. É que,

nos casos de João Vaccari Neto, as absolvições decorreram da ausência absoluta

de prova de corroboração. Contra o acusado, conforme se extrai dos acórdãos, ter-

se-iam apenas as palavras dos colaboradores e elementos indiciários não

reproduzidos em Juízo.

Não se trata, portanto, de um caso em que a acusação, com o uso de

colaboração e provas de corroboração, apresentou uma tese, e a defesa, com

outros elementos probatórios judiciais, apresentou a antítese, decidindo-se o caso a

partir do confronto de todos os elementos dos autos. A impressão que se tem, pela

leitura dos acórdãos, é a de que, fosse o caso, provavelmente prevaleceria a

narrativa acusatória. É que, se, por um lado, a colaboração sozinha não pode

ensejar uma condenação, por outro, a existência de prova de corroboração

(assumida aqui como uma prova judicial que indique as elementares típicas do crime

imputado) parece tornar suficiente o acervo probatório pela condenação.

É o que se extrai dos votos do Tribunal Regional Federal da 4ª Região: caso

houvesse ao menos um depoimento judicial corroborando a narrativa dos

colaboradores, a condenação seria provavelmente mantida. Ou seja: com a

colaboração corroborada, seria exponencialmente maior o trabalho da defesa para

obter uma absolvição, possivelmente sendo necessária não apenas a produção de

prova judicial em seu favor, mas também a produção de prova que desqualificasse a

credibilidade das declarações do colaborador.

Com efeito, na coexistência de provas em favor de acusação e defesa,

parece ser possível presumir que a colaboração premiada é o elemento de prova

que “corroboraria” as demais. Tanto em favor quanto contra o acusado. Afinal,

havendo provas judiciais contra determinado acusado e provas igualmente

qualificadas em sua defesa, em caso de processo judicial que conte com

colaborador, sua palavra será decisiva para a sentença. Caso o colaborador exima o

réu de responsabilidade, é possível que sobrevenha uma absolvição; caso ratifique a

narrativa acusatória, certamente advirá a condenação.

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Isso não significa que o requisito legal de validade da prova decorrente de

colaboração não seja importante. Sem a prova de corroboração, não se pode

esperar nenhum efeito da colaboração premiada. Segundo a frase de Trott,

”corroboração é para o depoimento de um cúmplice o que a gasolina é para um

carro: sem isso você não chega a lugar nenhum.953 Aliás, ao definir como deve ser a

conduta da acusação com o depoimento de um cúmplice, o autor norte-americano

sugere que se apresente “a prova de corroboração antes de colocar o delator para

depor”954, tamanha a importância, nos Estados Unidos da América, da prova que

confirma o que diz o colaborador.

Trata-se, porém, de uma dinâmica que causa “desconforto cultural” 955 .

Sobretudo ao se analisar a tradicional doutrina sobre o valor probatório do

depoimento de acusado confesso quanto à imputação de fato alheio. Para

Malatesta, nesse sentido, a palavra de um corréu que pretende obter benefícios

penais com sua confissão/delação não teria muito valor: “se, quanto ao condenado,

tal acusação, uma vez aceita, puder dar lugar à revogação da sentença, ou a um

perdão judicial, surgiria válida a suspeita contra a sua veracidade”956.

De todo modo, e partindo-se dos casos concretos analisados, pode-se

afirmar, em resposta ao problema enfrentado neste estudo, que a colaboração

premiada certamente altera a dinâmica do processo quanto aos três princípios

referidos. A presunção de inocência, para o corréu delatado, será garantida na

sentença apenas quando a prova da condenação decorrer exclusivamente da

palavra do colaborador ou de colaborações cruzadas, sem a produção de elementos

de convicção independentes e produzidos em Juízo; o exercício da defesa e do

contraditório, por sua vez, envolverá não apenas o fornecimento ao acusado de

todos os instrumentos para a produção de prova e oportunidades de fala nos autos,

mas a obrigação intrínseca de, havendo provas de corroboração, em qualquer

medida, comprovar que as acusações formuladas pelo colaborador não são

verdadeiras – e possivelmente, comprovar a sua manifesta falta de credibilidade.

Não se ignora, porém, que essa dinâmica de transferência do ônus da prova

não é exclusiva da colaboração premiada. Com o uso de outros meios de obtenção

953 TROTT, Stephen. O uso de um criminoso como testemunha: um problema especial. Tradução de Sérgio Fernando Moro. Revista CEJ, Brasília, Ano XI, nº 37, p. 68-93, abr./jun. 2007, p. 88 954 Ibidem, p. 89. 955 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. A homologação..., 2017, p. 185. 956 MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Volume 2. São Paulo: Saraiva, 1960, p. 214.

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de prova invasivos, como a interceptação telefônica e a quebra de sigilo de dados

financeiros ou fiscais, tem-se situação semelhante, na qual a absolvição dependerá

de um maior esforço defensivo no sentido de, não apenas negar os fatos e aguardar

a produção da prova acusatória, mas de produzir prova em sentido contrário com o

objetivo de desconstituir os elementos daqueles decorrentes.

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CONCLUSÃO

Pretendeu-se, neste trabalho, analisar a possível mudança de paradigmas na

estrutura principiológica do processo penal com a implementação e proliferação de

acordos de colaboração premiada decorrentes das previsões da Lei nº 12.850/2013.

Conforme se pôde demonstrar, essa verificação de que os preceitos comumente

afeitos ao processo podem não mais ser integralmente aplicados na atualidade

decorre de uma paralela mudança no foco do Estado na persecução criminal, não

mais se dedicando exclusivamente à proteção de bens jurídicos individualizados,

mas se voltando à prevenção de crimes de natureza supraindividual.

O trabalho se dividiu em quatro partes, partindo, no primeiro capítulo, de uma

apresentação do processo penal sob uma ótica tradicional, com a descrição clássica

de princípios que hoje, com a dinâmica da colaboração premiada, podem ter seus

conteúdos profundamente alterados. Nesse sentido, procedeu-se à descrição teórica

dos princípios do nulla poena sine judicio, Juiz natural, Promotor natural, presunção

de inocência, contraditório e ampla defesa, obrigatoriedade e indisponibilidade da

ação penal pública.

Na sequência, no segundo capítulo, tentou-se justificar, à luz da política-

criminal, direito penal, direito penal empresarial e processo penal, os fundamentos

de existência de um instituto como a colaboração premiada. Nessa análise,

encontrou-se marco teórico no seguinte sentido:

a) Sob a perspectiva da política criminal, há uma tendência de criação de

mecanismos que busquem a eficiência das investigações criminais, considerando a

incapacidade da administração da Justiça em combater a criminalidade organizada

com métodos criados originalmente para a responsabilização de indivíduos por

crimes de menor repercussão social;

b) Nesse sentido, a tutela penal acompanharia a tendência de promoção de

direitos, ainda que sob consideráveis críticas quanto ao conteúdo ético da

colaboração premiada;

c) Em relação ao aspecto penal, reconheceu-se a colaboração premiada

como causa de exclusão ou redução de pena de conteúdo similar a experiências do

passado, como a “Ponte de Ouro” referida por von Liszt. Sua justificativa, quanto a

essa natureza, foi apresentada à luz da doutrina sobre outras figuras legais de

exclusão da pena, como a desistência e o arrependimento eficaz, verificadas

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também a partir das teorias dos fins da pena. Analisaram-se quanto a esse tema, as

tradicionais correntes (teorias absolutas, relativas e mistas), encontrando-se

justificativa mais precisa para a colaboração premiada sob a leitura da prevenção

geral positiva. Também se apresentou, sob perspectiva distinta sobre a função do

direito penal, a possibilidade de conciliação da colaboração premiada com a teoria

de reparação do dano como terceira via do Direito Penal. Embora os conceitos

relacionados encontrem obstáculos ao instituto em análise (em razão da gravidade

abstrata dos crimes envolvidos), há relevância em se considerar a reparação do

dano como fundamento teórico para a colaboração premiada;

d) Na sequência, fez-se uma breve incursão ao conceito de justiça penal

negocial, na qual está inserida a colaboração premiada, apresentando-se as

modalidades previamente estabelecidas no ordenamento brasileiro (transação penal

e suspensão condicional do processo) e os modelos de Direito comparado do plea

bargaining norte-americano e do patteggiamento italiano.

No terceiro capítulo, adentrou-se ao direto estudo da colaboração premiada

no Brasil, fazendo-se um inicial desenvolvimento histórico de instrumentos

semelhantes até a leitura atual da Lei nº 12.850/2013. Após a apresentação da

estrutura legal, de forma ampla, vários aspectos do instituto foram analisados,

eminentemente sob sua perspectiva textual, com poucas incursões à análise prática.

Em primeiro lugar, tratou-se da natureza jurídica da colaboração premiada,

evidenciando-a como um meio de obtenção de prova (enquanto acordo) e meio ou

fonte de prova (quanto aos seus produtos); uma causa de diminuição e exclusão de

pena; um novo instrumento de defesa e um ato negocial composto, sob a

perspectiva do ato administrativo.

Na sequência, tratou-se dos sujeitos da colaboração premiada. Em relação ao

próprio colaborador, abordou-se a natureza de sua posição no processo, acolhendo-

se o posicionamento de que se trata de um sujeito autônomo, que não é

testemunha, interrogado ou simplesmente um informante, mas um indivíduo

interessado no caso e de quem, simultaneamente, exige-se o compromisso com a

verdade. Da mesma forma, enfrentou-se discussão sobre a participação do

advogado na dinâmica da colaboração premiada, sugerindo-se eventuais

impedimentos, à luz do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do

Brasil, em atuações concomitantes em face de colaborador e corréu (colaborador ou

não) ou quanto ao conteúdo a ser delatado, quando se tratar de advogado

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colaborador em relação a seus clientes (que somente poderiam ser objeto do acordo

se os fatos relacionados fizerem parte do contexto investigatório).

Por fim, quanto aos sujeitos da colaboração, tratou-se do tema da

legitimidade para a propositura do acordo, adotando-se o posicionamento de que a

autoridade policial poderá participar da negociação e celebração do instrumento

(como permite a lei) desde que essas ocorram no âmbito da investigação e que

contem com o aval do Ministério Público. Ressalvou-se, porém, quanto ao tema, a

resolução da questão pelo Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a

legitimidade policial com restrições sobre o conteúdo dos benefícios a serem

oferecidos.

Ainda no terceiro capítulo, apresentaram-se considerações sobre o

procedimento da colaboração premiada, passando por discussão quanto à lógica

dos atos prévios à celebração (que não são previstos em lei e partem de uma

perspectiva eminentemente negocial), da fase de proposta e celebração do acordo,

da homologação judicial, do juízo de eficácia do acordo e da possibilidade de sua

rescisão. Por fim, discorreu-se sobre o sistema de benefícios, tratando-se de suas

modalidades, amplitude e momento de concessão.

Esclarece-se que, na análise legal da colaboração premiada da Lei nº

12.850/2013, estabeleceu-se a fundação das discussões que se seguiram a partir da

verificação prática do instituto, realizada no quarto capítulo. Nesse sentido, mais se

levantaram questionamentos sobre as previsões legais do que se apresentaram

conclusões definitivas sobre cada um dos temas tratados.

Por fim, e adentrando-se à tentativa de resposta ao tema central deste estudo

(qual seja em que medida a colaboração premiada se relaciona com os princípios

tradicionais do processo penal insculpidos na Constituição), passou-se a analisar, no

quarto capítulo, a dinâmica prática do referido instrumento, o que se fez, em primeiro

lugar, pela análise de quatro acordos de colaboração premiada efetivamente

celebrados entre réus/investigados e o Ministério Público.

Foram analisados três acordos oriundos da Operação Lava Jato (dos Srs.

Paulo Roberto Costa, Delcídio do Amaral e João Santana) e um acordo proveniente

da Operação Publicano (do Sr. Luiz Antônio de Souza). A escolha dos acordos

decorre da diametral diferença entre aqueles e esse, considerando-se que os três

primeiros contêm uma série de cláusulas inovadoras em relação ao texto legal,

enquanto que o último segue mais à risca o que dispõe a Lei nº 12.850/2013.

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228

Destaca-se que as cláusulas escolhidas para análise se referem eminentemente aos

benefícios concedidos aos colaboradores, não se ignorando uma série de outras

previsões dos acordos que podem vir a ser igualmente estudadas no futuro.

A primeira dessas cláusulas é a que prevê o cumprimento de pena

imediatamente após a homologação do acordo, que foi confrontada com o conceito

original do princípio do nulla poena sine judicio. Na análise que se realizou, chegou-

se à conclusão de que, não obstante os colaboradores da Lava Jato tivessem

efetivamente se submetido a formas de segregação de liberdade e limitação de

direitos sem o devido processo legal, que, na visão tradicional, prevê a fixação de

pena apenas após pronunciamento judicial de mérito, tais medidas não teriam

propriamente essa natureza, mas funcionariam como um efetivo benefício concedido

ao colaborador que, voluntariamente, submete-se a tais condições de forma a se

beneficiar nos processos a que responde.

Ainda que haja, nesses casos, uma redução do conteúdo do princípio

referido, já que, afinal, não há um conteúdo decisório de mérito na decisão

homologatória que acaba por admitir o cumprimento imediato de “pena”, chegou-se

à conclusão de que não se trata de uma violação constitucional, mas de uma

ampliação de conceitos anteriores das medidas despenalizadoras dos Juizados

Especiais Criminais. Há, sim, problemas com tais previsões, que eventualmente

poderiam ser impostas, sem a correspondente previsão legal, a potenciais

colaboradores que não estivessem dispostos à segregação imediata. Não obstante,

como a voluntariedade é requisito de validade do acordo de colaboração, admite-se

sua aplicação, ainda que se possam sugerir alterações no texto da Lei nº

12.850/2013 quanto ao tema.

Na sequência, analisou-se a mesma situação em relação aos princípios da

ampla defesa e da presunção de inocência, evidenciando um conflito que caracteriza

a nova dinâmica negocial do processo penal brasileiro: como se trata também de um

instrumento de defesa, ao admitirem voluntariamente previsões como o

cumprimento imediato de pena, os colaboradores abrem mão de sua presunção de

inocência para garantir o melhor resultado defensivo possível. Nessa análise,

concluiu-se que o acordo que não previa qualquer pena pré-estabelecida e garantia

ao acusado o devido processo legal e uma possibilidade de futura absolvição sem

nenhuma sanção penal era, na realidade, o pior acordo sob a perspectiva da defesa

e, sobretudo, da segurança jurídica. Trata-se, sem dúvida de uma grande novidade

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no sistema penal brasileiro, em que o melhor caminho pode vir a ser aquele em que

a defesa técnica e a presunção de inocência são deixadas de lado – assim como a

garantia do devido processo legal – para que, ao final, as consequências aos

acusados sejam mitigadas de forma negociada e segura ao colaborador.

O trabalho também analisou os acordos práticos no que diz respeito às

cláusulas não previstas em lei, quais sejam os tetos de pena, os regimes de pena

com tempo e forma pré-estabelecidos, a suspensão do processo após o alcance

daqueles tetos, entre outras. Em primeiro lugar, tais cláusulas trouxeram um

questionamento sobre a potencial violação ao princípio do Juiz natural (sobretudo

naquelas que garantem uma pena pré-fixada e o arquivamento de fatos futuros

ainda não investigados). Nesse sentido, dividiu-se a análise em três pontos:

a) Voltou-se ao tema da homologação judicial para enfrentar a jurisprudência

do Supremo Tribunal Federal quanto à vinculação do Magistrado aos benefícios

previstos. Concluiu-se que, não obstante haja divergências na composição da

Suprema Corte, está formado entendimento de que, uma vez homologado o acordo,

não mais se discute a legalidade das cláusulas (com a preclusão da matéria), mas

apenas sua efetividade e eficácia. Nesse aspecto, há uma clara mudança no

conteúdo tradicional do princípio do Juiz natural, retirando do Magistrado uma

importante função da individualização da pena em casos que tragam a pena descrita

no próprio acordo;

b) Na sequência, analisou-se a dinâmica da colaboração premiada sob a

perspectiva da imparcialidade do Juiz, o que se fez a partir de questionamento

doutrinário sobre a vinculação do Magistrado aos termos do acordo (e de sua

previsão condenatória ao colaborador) celebrado antes da denúncia, de modo que,

antes da instauração do processo, já haveria uma previsão condenatória. A

conclusão a que se chegou nesse ponto foi a de que, na lógica da colaboração, e

quanto ao colaborador que já tem pré-fixada pena contra si, a imparcialidade do Juiz

é menos importante (e talvez desejada), na medida em que seu objetivo não é o de

um julgamento justo com chances de absolvição, mas o de garantir a aplicação de

seus benefícios na sentença. Quanto aos delatados ou ao colaborador que não tem

previsões certas no acordo, a discussão voltaria ao tema do Juiz de garantias, na

medida em que a imparcialidade do Juiz pode ser questionada não apenas na

colaboração premiada, mas em todo meio de obtenção de prova que seja deferido

pelo Juiz que analisará o mérito da causa;

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c) Finalmente, quanto ao princípio do Juiz natural, enfrentaram-se algumas

cláusulas específicas à função do Magistrado, quais sejam as previsões de ampla

abrangência do acordo (para casos ainda não identificados e/ou futuros) nos casos

de Paulo Roberto Costa e João Santana, e as previsões relativas à execução penal,

que afastam a legitimidade legal do Juiz da respectiva competência. Em relação ao

primeiro caso, embora se tenha reconhecido que os acordos foram celebrados pela

Procuradoria-Geral da República (que detém, por força de lei, a palavra final sobre o

arquivamento das investigações), há uma possível transformação no conteúdo do

princípio do Juiz natural (e também do Promotor natural), afastando-se a atuação

futura de Juízes e Promotores competentes – em casos de desmembramentos, por

exemplo – que deveriam vir a averiguar a efetividade do acordo proposto (ainda que

se possa prever, na maioria dos casos, a atuação do colaborador como declarante,

podendo ter sua atuação efetivamente fiscalizada). Em relação ao Juízo de

execução, que tem sua posição prejudicada em acordos que se imiscuem em regras

de progressão de regime, por outro lado, concluiu-se pela existência de permissivo

legal para a aplicação de benefícios de execução, ainda que fora das hipóteses da

Lei de Execução Penal, além de se verificar a solução apresentada pelo Supremo

Tribunal Federal quanto ao tema, indicando que, em caso de cisão de casos

homologados naquela Cote, a preclusão decorrente da homologação deve ser

respeitada.

Ainda quanto as cláusulas não previstas em lei, realizou-se análise quanto

aos princípios da legalidade, obrigatoriedade e indisponibilidade, considerando-se

que, ao fixar tetos de pena, estabelecer regimes e determinar a suspensão de

processos por prazos superiores aos previstos em lei, o Ministério Público estaria

não apenas violando o texto da Lei nº 12.850/2013, mas rompendo com o

paradigma da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal. O tema é

extremamente polêmico e há perspectivas antagônicas bastante claras. De um lado,

há quem entenda (inclusive na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal) pela

impossibilidade de desvinculação dos benefícios dos acordos ao texto expresso de

lei; por outro, sustenta-se a mudança na lógica do processo penal, com a elevação

da autonomia da vontade e da busca pela efetividade do processo (também como

forma de proteção ao bem jurídico da segurança pública) como fundamentos aptos à

ampliação dos espaços de consenso e do princípio da oportunidade no processo

penal brasileiro. Também se mencionou a doutrina do direito administrativo no

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sentido de que não mais devem as práticas jurídicas ser observadas exclusivamente

com base na lei, admitindo-se sua interpretação extensiva também à luz do Direito,

de forma ampla.

A conclusão a que se chegou, nesse ponto, é a de que, embora o Supremo

Tribunal Federal possa – e deva – voltar a discutir tal tema de forma específica (já

que, ainda que algumas cláusulas previstas em lei tenham sido glosadas por

Ministros de forma monocrática, não houve discussão ampla no plenário), há, de

fato, uma tensão com a legalidade e com os princípios em questão. Ainda que não

se sustente uma inconstitucionalidade, recomendou-se, neste aspecto, que os

acordos sejam celebrados com esteio nos benefícios legais, mesmo que mantendo

previsões certas de pena (o que seria possível com a combinação dos benefícios

previstos no art. 4º da Lei nº 12.850/2013) e aqueles relacionados a casos futuros

(que poderiam ser acrescentados por meio de termos aditivos correspondentes).

No último subtópico do quarto capítulo, enfrentou-se a questão da

colaboração premiada como prova para a condenação, o que se fez sob a

perspectiva do réu delatado. Sem adentrar em uma perspectiva epistemológica da

prova – o que fugiria do escopo deste estudo –, analisou-se a doutrina e, sobretudo,

a jurisprudência para a compreensão de como o instituto da colaboração se

relaciona com os princípios da ampla defesa, do contraditório e da presunção de

inocência. A conclusão a que se chegou nessa análise é a de que há uma mudança

substancial na lógica tradicional dos referidos princípios, com a presunção de

inocência sendo garantida apenas quando a colaboração não é acompanhada de

nenhum elemento de corroboração e a ampla defesa e o contraditório voltando-se

não mais ao fornecimento ao acusado dos instrumentos para a produção de prova e

oportunidades de fala nos autos, mas à obrigação de produzir contraindícios e, de

forma preferencial, refutar os termos de colaboração (inclusive atacando a

credibilidade do colaborador).

Em apertada síntese, portanto, a análise do processo penal pós-colaboração

revela uma grande transformação. Como se trata de um instituto jurídico novo e que

ainda não teve sua análise exaurida pelas Cortes Superiores, são possíveis

mudanças nas conclusões que se ora apresentam. Não obstante, parece ser

importante indicá-las, especialmente porque é plenamente possível o

aperfeiçoamento da colaboração premiada brasileira.

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A título ilustrativo, sugere-se que sejam feitas algumas alterações legais que

poderiam resolver parte das questões acima evidenciadas:

a) Quanto à discussão sobre o princípio do nulla poena sine judicio, a lei

poderia prever a conversão de prisão preventiva ou medidas cautelares substitutivas

em cumprimento antecipado do acordo, ressaltando o aspecto voluntário e de risco

dessa cláusula (no sentido de, à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,

não garantir a concessão definitiva do benefício). Da mesma forma, é importante

que, em sendo o caso dessa antecipação dos benefícios, a lei estabeleça a

obrigação de vinculação do acordo aos benefícios legais para que se permita ao Juiz

da causa, na sentença, avaliar a adequação da “pena” já cumprida com a efetividade

do acordo;

b) A amplitude dos benefícios e a prefixação de penas também pode ser

melhor esclarecida pelo texto legal (seguindo, inclusive, a iniciativa do Ministério

Público na Orientação Conjunta nº 1/2018, que estabeleceu as “boas práticas” da

colaboração premiada). A uma, pela inclusão na Constituição da prerrogativa do

Ministério Público de negociar pena em crimes de organização criminosa (ou em

crimes de natureza grave, com penas superiores a quatro anos de reclusão); a duas,

pela previsão legal de que o Ministério Público poderá estabelecer quaisquer

benefícios incluídos no rol do art. 4º da Lei nº 12.850/2013, de forma combinada e

abrangente e sem se limitar a alguns dos parâmetros engessados do diploma (como

o limite de dois terços de redução da pena);

c) Quanto à análise da prova, embora não pareça ser adequada uma

tarifação, seria interessante que a lei dispusesse expressamente a que deve se

referir a prova de corroboração, não apenas fazendo uma limitação negativa aos

produtos da colaboração premiada, mas conferindo melhores parâmetros à

valoração da prova. Por exemplo, poder-se-ia exigir que a condenação dependesse

da comprovação, por meios independentes, das elementares típicas objetivas do

crime em questão, não funcionando a prova de corroboração como uma forma de

apenas conferir credibilidade à história apresentada pelo colaborador, mas como

efetivo instrumento para o convencimento do Magistrado.

De todo modo, não foi a pretensão deste estudo exaurir o tema e apresentar

respostas completas e concretas para cada um dos problemas oriundos da

colaboração premiada. Pretendeu-se demonstrar, à luz da prática, que a mudança já

se estabeleceu no ordenamento, devendo haver a compreensão de que, nesse

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contexto, deve-se lutar pelo aperfeiçoamento dos institutos e contra eventuais

abusos que decorram do sistema ora vigente. A mencionada Orientação Conjunta nº

1/2018 do Ministério Público Federal, que foi publicada após a celebração dos

acordos ora analisados, é um primeiro passo nesse aperfeiçoamento, na medida em

que traz diretrizes mais claras aos participantes de processo penal em que se

celebre acordo. Ainda que não resolva boa parte dos questionamentos deste

trabalho, as “boas práticas” reconhecidas pela instituição possibilitam uma maior

discussão doutrinária, legislativa e jurisprudencial sobre a colaboração premiada.

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