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CENTRO UNIVERSITÁRIO LA SALLE MAGNO PEREIRA DA SILVA DO HOMEM-MASSA À AUTENTICIDADE DO HOMEM: ANTROPOLOGIA EM ORTEGA Y GASSET CANOAS, 2012

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CENTRO UNIVERSITÁRIO LA SALLE

MAGNO PEREIRA DA SILVA

DO HOMEM-MASSA À AUTENTICIDADE DO HOMEM:

ANTROPOLOGIA EM ORTEGA Y GASSET

CANOAS, 2012

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MAGNO PEREIRA DA SILVA

DO HOMEM MASSA À AUTENTICIDADE DO HOMEM:

ANTROPOLOGIA EM ORTEGA Y GASSET

Trabalho de conclusão apresentado à banca examinadora do Curso de Filosofia do Unilasalle – Centro Universitário La Salle, como exigência parcial para a obtenção do grau de Licenciado em Filosofia, sob orientação do Prof. Me. Gilmar Zampieri.

CANOAS, 2012

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TERMO DE APROVAÇÃO

MAGNO PEREIRA DA SILVA

DO HOMEM-MASSA À AUTENTICIDADE DO HOMEM:

ANTROPOLOGIA EM ORTEGA Y GASSET

Trabalho de conclusão aprovado como requisito parcial para a obtenção do grau de Licenciado em Filosofia do Centro Universitário La Salle – Unilasalle, pelo avaliador:

Prof. Me. Gilmar Zampieri

UNILASALLE

Canoas, 05 de julho de 2012

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Aos meus pais,

Gasparino e Maria Catarina,

exemplo de coragem e esforço.

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AGRADECIMENTOS

Ao Professor Gilmar Zampieri, que orientou os esforços de construção deste

trabalho e que acompanhou muitos dos bons momentos vivenciados ao longo de

nosso percurso formativo junto a esta Instituição.

Aos Professores Loiraci Lopes Barbosa, do UNILASALLE e Airton José Müller, do

Colégio La Salle Canoas, pelo incentivo e apoio, e pelo exemplo de prática

educativa.

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“Todo o indivíduo pode redescobrir em si próprio a força da decisão, a luz do próprio destino, a perspectiva de uma nova solidariedade histórica. O eu pode sempre despertar do torpor em que a massificação visa mantê-lo. Mas como e quando despertará, isso ninguém pode dizer”.

(Nicola Abbagnano)

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RESUMO

O estudo traz uma pequena apresentação da vida e obra do pensador espanhol

José Ortega y Gasset (1883 – 1955) e expõe, com base nas leituras realizadas em

textos do próprio filósofo – especialmente de sua obra A rebelião das massas e de

comentadores os conceitos de homem-massa e homem autêntico, bem como busca

refletir acerca dos pressupostos necessários para tais classificações e suas

implicações. Apresenta também outros conceitos de suma importância, presentes na

produção intelectual do autor em tela, tais como quefazer e tem-que-ser.

Palavras-chave: Circunstâncias. Vocação. Massas. Autenticidade. Raciovitalismo.

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RESUMEN

El estúdio incluye uma breve presentación de La vida y obra Del filosofo español

José Ortega y Gasset (1883 – 1955) y los objectos expuestos, com base em lãs

lecturas tomadas em los textos del próprio – especialmente su libro La rebelión de

las masas y de algunos comentaristas y también los conceptos de hombre-masa y el

hombre auténtico, y tiene como objectivo reflexionar sobre lãs condiciones

necesarias para tales clasificaciones y implicacioes. También presenta otros

conceptos de suma importância em La producción intelectual del autor, como

quehacer y deber ser.

Palabras: Circunstancia. Vocación. Masa. Autenticidad. Raciovitalismo.

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SUMARIO

1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................9

2 JOSÉ ORTEGA Y GASSET............................. ......................................................11

2.1 Ortega y Gasset: suas circunstâncias........... ..................................................11

2.2 Ortega y Gasset: pensamento.................... .......................................................13

2.3 Ortega y Gasset: influências................... ..........................................................16

2.4 Ortega y Gasset: obra.......................... ..............................................................17

3 A VIDA VULGAR: O HOMEM-MASSA..................... .............................................20

3.1 A condição da massa............................ .............................................................22

3.2 A rebelião das massas.......................... .............................................................24

4 A VIDA NOBRE: O HOMEM AUTÊNTICO.................. ...........................................27

4.1 Um projeto a realizar.......................... ................................................................27

4.2 Uma alternativa radical........................ ..............................................................29

5 CONCLUSÃO........................................ .................................................................32

REFERÊNCIAS..........................................................................................................34

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1 INTRODUÇÃO

“Desde que conheci Don Ortega, passei, inclusive, a tourear melhor”. A frase

é do toureiro espanhol Domingo Ortega (1906-1988) e revela exatamente o que o

grande pensador hispânico José Ortega y Gasset esperava de sua filosofia: homens

melhores a partir de suas perspectivas e circunstâncias.

Ao travar conhecimento com os escritos de Don Ortega, desde o primeiro

momento tivemos despertada a atenção, de tal sorte que tomei gosto por sua

filosofia: Uma filosofia mais que especulativa, visto que voltada principalmente para

a vida enquanto projeto a realizar, enquanto vocação, enquanto responsabilidade. E

uma filosofia que toma a si um quê de literário, de atraente, de saboroso. E que traz

em si um objetivo claro: formar para a autenticidade. Não é para menos, pois Ortega

y Gasset chegou até mesmo a ser denominado de um educador para o seu povo.

Por isso escolhemos refletir acerca do legado orteguiano, e em especial

acerca das implicações relativas à antropologia filosófica do mestre madrileno, e que

ele tão bem solidificou nos conceitos de homem-massa – “apenas uma carcaça”, o

mais famoso dos conceitos trabalhados por Ortega e homem autêntico – os que

buscam ser de fato aquilo que são em projeto.

Vamos então estudar o homem1 – um drama em aberto, segundo Ortega.

Para tal, estaremos dedicados ao estudo mais específico destes conceitos, tentando

alcançar o máximo de fidelidade ao principio preconizado por Ortega y Gasset, que

ensina que “a clareza é a cortesia do filósofo”. Para tal estudo tomaremos por base

principalmente a obra A rebelião das massas, sem dúvida o mais conhecido de

todos os escritos do filósofo espanhol, volume esse que, após sua publicação em

1930, prontamente se transformou em um dos clássicos não apenas da tradição

filosófica, mas mesmo da sociologia, sendo traduzido para diversas línguas.

Vivemos hoje em um mundo de massas. São os homens, por natureza,

desprovidos de memória, e fugitivos de seu passado. Daí a importância de

refletirmos acerca desses conceitos ainda hoje tão atuais, ainda que seu codificador

já tenha deixado esta existência há mais de meio século. Para tanto,

apresentaremos o fruto de nossas pesquisas a partir de três partes

1 Por homem, ao longo de nosso estudo, entendemos o ser humano, e não apenas o gênero

masculino.

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Inicialmente apresentaremos as circunstâncias em que nasceu e viveu o

imortal precursor da Escola de Madri, e um dos grandes nomes da cena intelectual

espanhola, sem deixarmos de trazer presente um panorama geral a respeito de suas

reflexões, contribuições e influências, que se fizeram sentir de forma especial em

nossa América Latina, e até mesmo na obra de Paulo Freire, o grande educador

brasileiro.

Em seguida dedicaremos uma parte de nossa investigação ao homem-massa,

modelo de vida vulgar e carente de projeto. Pensamos também discorrer a respeito

das condições da massa, categoria essa que representa muito mais certo tipo de

homem do que propriamente uma determinada classe social, como corriqueiramente

se acredita. E não poderíamos deixar de também somar a este capítulo a própria

rebelião das massas, que em tudo querem interferir, expandindo cada vez mais o

seu império sine nobilitate.

E finalmente apresentaremos o paradigma de vida nobre: o homem que tem a

vida como um projeto a realizar e como uma alternativa radical e onde o ato de

decidir é obrigação e condição para uma vida autêntica.

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2 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

2.1 Ortega y Gasset: suas circunstâncias

José Ortega y Gasset, jornalista, ativista político, articulista e filósofo espanhol

nasceu em Madri em 09 de maio de 1883. Seus pais foram o jornalista e escritor

José Ortega Munilla, membro da Academia Espanhola, figura de prestígio nos meios

jornalísticos e Dolores Gasset, filha de Eduardo Gasset, fundador de um dos mais

populares jornais da Espanha – El Imparcial - e político de realce, tendo sido

inclusive Ministro de Ultramar. De seu ambiente familiar já respirou de berço a

literatura e a política, grandes paixões de sua vida, e é a partir dessas influências

que veremos se delinear toda a produção intelectual do maestro Ortega.

Foi, indubitavelmente, o principal pensador hispânico da primeira metade do

século XX. Precursor da Escola de Madri e iniciador da filosofia espanhola

contemporânea realizou seus estudos primários sob a disciplina dos jesuítas no

Colégio de Málaga, passando depois pela Universidade de Deusto, em Bilbao.

Como herança do método de ensino dos jesuítas o filósofo trouxe certas reservas, e

principalmente seu projeto pessoal de reformar a Filosofia, tal como fez outro um

discípulo dos jesuítas, o francês Renê Descartes. Ingressou posteriormente na

Universidade de Madri, na qual seria professor por longos anos e a qual teria seu

nome eternamente associado, onde cursou a licenciatura em Filosofia e em Letras,

concluída em 1902. Nesse ano publica seu primeiro artigo, intitulado Glosas em uma

revista chamada Vida Nueva. Com esse gênero literário Ortega se consagrará,

tendo publicado assim grande parte de seus escritos. Sua notoriedade no meio

intelectual vai se dar a partir de 1904, quando começa a circular, em um periódico

dirigido pelo pai de Ortega, uma coluna intitulada El poeta del mistério, que circulou

até 1936.

Sua produção intelectual foi influenciada em especial pela Geração de 982,

principalmente por Miguel de Unamuno (1864 – 1936), com quem mantinha uma

2 O ano de 1898 se torna um marco porque é nesse ano que a Espanha perde suas últimas colônias

e retorna humilhada às suas fronteiras metropolitanas do final dos anos 1400. Isso se dá porque a Espanha acaba por perder Cuba, Porto Rico e Filipinas, suas últimas colônias, em 10 de dezembro desse ano, com o Tratado de Paris, após ser derrotada militarmente pelos Estados Unidos. A partir daí vemos surgir na jovem minoria intelectual espanhola um novo alento que influenciará principalmente a política, a literatura e a ideologia na primeira metade do século XX.

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amizade pessoal e mesmo uma admiração recíproca e que inspirou a Ortega o

vitalismo de inspiração nietzschiana.

Foi decisivo na formação do pensador, sem sombra de dúvida, o período em

que permaneceu na Alemanha, subvencionado por uma bolsa de estudos do

governo espanhol, obtendo assim a possibilidade de estudar, durante três anos nas

universidades de Leipzig, Berlim e Marburgo. Dessa época vem seu contato com o

neokantismo, presente principalmente no pensamento de Nicolai Hartmann e

também a influência do historicismo presente na filosofia de Dilthey e da axiologia de

Scheler. Vemos também em sua vasta obra algumas afinidades com o pensamento

de Heidegger e com o existencialismo francês. Isso graças às influências que sofreu

também presentes nos sistemas filosóficos citados.

Retornando à Espanha foi, durante vinte e quatro anos (1912 – 1936),

professor catedrático de Metafísica na Universidade de Madri, só deixando o cargo

com o advento do franquismo3. Em 1913 fundou a Liga de Educación Política

Espanhola, e um ano após já vemos publicado seu primeiro livro, Meditações do

Quixote, obra com a qual Ortega inicia sua atividade filosófica e na qual estão

presentes as linhas fundamentais que norteiam toda a produção intelectual de José

Ortega y Gasset. A partir daí a pena do filósofo não vai mais encontrar descanso,

no “proposito de alto prestidigitador intelectual y de gran educador nacional (que) fué

su verdadera vocación, si así puede llamarse a un quehacer tan vasto y complejo”.

(DE LA MORA, 1961, p. 146). Propósito esse que, sem sombra de dúvida, Ortega

cumpriu de forma brilhante.

Intimamente ligado à imprensa desde o berço, em 1916 Ortega inicia a publicação

da coleção de artigos batizada como El Espectador. Seguindo esta linha de trabalho,

em 1923 criou a Revista de Occidente, posteriormente transformada em uma

editora, atuante até os nossos dias e que desde sua fundação tem prestado a nossa

cultura hispano-americana, e em especial à Filosofia, um serviço inestimável.

Foi em 1930 que veio a lume sua obra de maior repercussão, A rebelião das

massas, sua obra prima, surgida entre 1926 e 1927, em folhetins no diário madrileno

El Sol, e que foi traduzida em diversos países. Nesse mesmo ano participou também

da fundação da Agrupación al Servicio de la República, agremiação política pela

3 Por franquismo entendemos o regime político ditatorial implantado na Espanha pelo general

Francisco Franco. Esse período se desenvolveu entre 1939 e 1976. Esse movimento tomava por base a ideologia fascista, adaptada para a realidade espanhola com o nome de falangista.

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qual foi eleito deputado em 1931, tendo deixado o mandato após dois anos, período

esse em que o próprio partido foi dissolvido, alegando escassos dotes políticos e

muito pouca vocação para os exercícios de governo. Ainda assim, engajado ao

extremo, acabou que sua atividade política fez com que, perseguido pelo regime do

generalíssimo Franco, abandonasse a Universidade de Madri, e a sua tão estimada

Espanha e partisse para o exílio, que durou nove anos.

Durante o período em que esteve exilado, viveu na França, na Holanda, em

Portugal e na Argentina. Nesses países, era bastante requisitado pelo meio

universitário, tendo proferido diversos cursos que foram posteriormente anexados á

sua obra. Essa foi uma fase também de intensa produção intelectual e que resultou

em algumas de suas principais obras. Retornou à sua terra natal em 1945 e, três

anos depois fundou, juntamente com seu principal discípulo, Julián Marías, o

Instituto de Humanidades. Em 1950 proferiu seu famoso curso O homem e a gente,

onde faz um acurado exame acerca das relações sociais.

Em 18 de outubro de 1955 José Ortega y Gasset faleceu em Madri, vitimado

pelo câncer. Deixou como legado diversos trabalhos originais, além de cursos que

receberam publicação póstuma. A primeira versão completa de suas obras foi

publicada pela Revista de Occidente em doze volumes.

2.2 Ortega y Gasset: pensamento

Segundo o professor Arlindo Ferreira Gonçalves Júnior, (2009, p. 11),

“partindo de uma realidade radical, a vida humana, o projeto de compreensão do

humano orteguiano assinala a autenticidade como ethos de realização ao atender à

vocação pessoal e a fidelidade ao destino inalienável”. Ortega y Gasset tinha como

principal ponto de sua reflexão o próprio agir do ser humano, definido por ele como

sendo o “quefazer”, ingrediente fundamental para a realização da vida humana,

noção essa que, segundo ele, examinada em seu viés ontológico, ou seja, enquanto

realidade primeira, jamais se esgota como realidade suficiente, mas se torna antes o

drama de um quefazer constante. É a partir desse drama que Ortega vai nos

apresentar o homem enquanto carência constitutiva e liberdade.

A carência constitutiva é compreendida como o aspecto que se define

enquanto convivência e relação. O ser carente do pensamento orteguiano nasce em

contrapartida ao ser auto-suficiente que tornou independente o cogito. Com ele o

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filósofo nos mostra o quão frágil é a unilateralidade, buscando assim reencontrar a

interdependência e a mútua indigência existente entre o eu e o mundo, “nesta

fórmula em que o ser é entendido como convivência e relação” (GONÇALVES

JÚNIOR, 2009, p.11). Isso faz com que o homem e também as coisas sejam sempre

uma soma de possibilidades. E mais do que isso, nos dispõe ao diálogo. É a partir

dessa proposição que nos fica possível entender o cerne estrutural de toda a

filosofia de Ortega y Gasset, expresso na célebre “Eu sou eu e minha circunstância,

e se não a salvo a ela não me salvo eu”. Assim, a carência, ou insuficiência, se

expressa em uma radical dependência entre o eu e a circunstância, de onde surge o

quefazer vital que impulsiona “a dramática condição da vida humana no incessante

ocupar-se com o mundo de forma livre.” (GONÇALVES JÚNIOR, 2009, p.12).

Já a liberdade é entendida inserida numa perspectiva criadora da vida

humana como parte constitutiva do ser, perspectiva essa que é contraria ao

determinismo ou ao formalismo. Perspectiva onde o humano só pode se encontrar

frente suas próprias decisões – decidir o projeto de vida. Assim “comprometido

plenamente com o seu projeto, o humano está lançado no mundo das possibilidades

sem indicativos a priori que possam assinalar pressupostos no caminho do existir”

(GONÇALVES JÚNIOR, 2009, p.12). É o próprio homem quem elege

conscientemente o que tem que ser. Assim a liberdade no pensamento orteguiano

passará por três momentos fundamentais: momento de invenção (o homem está

constantemente criando a si próprio), momento de decisão (a escolha entre diversas

possibilidades) e momento de responsabilidade (conseqüência da escolha feita,

momento ético, absolutamente pessoal).

Um dos traços sempre presentes no pensamento de Ortega é a perfeição

como meta, da busca de restituir um sentido sempre mais elevado à vida. Ou seja,

existe para o homem na busca de autenticidade uma constante exigência de

superação. Esse imperativo de perfeição aparece no pensamento orteguiano

intimamente ligado a um imperativo de nobreza da alma, como nos aponta o próprio

filósofo: “a autêntica qualidade de nobreza é sentir-se a si mesmo não tanto como

sujeito de direitos quanto como uma infinita obrigação e exigência de si mesmo ante

si mesmo.” (ORTEGA Y GASSET apud GONÇALVES JÚNIOR, 2009, p.14). E visto

que o homem é apontado como um ser de relações, a moralidade pressupõe um

altruísmo básico, a capacidade de reciprocar-se, que efetiva a dimensão social do

ser humano.

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Conceito fundamental (e bastante controverso) no pensamento de Ortega y

Gasset, oposto ao do homem autêntico, e o do homem-massa, fruto da

impessoalidade do “a gente”, que é “o paradigma da alienação na dimensão pública.

O homem nesta situação encontra-se em submissão, ou sob tutela, dos Outros.”

(GONÇALVES JÚNIOR, 2009, p.17). Esse conceito apresenta-se através do

senhorzinho-satisfeito, do jovem mimado e do bárbaro especialista. Todos eles

paradigmaticamente inautênticos, segundo o pensamento orteguiano, para quem o

homem-massa se mostra como modelo do viver impessoal. Ortega y Gasset ainda

faz o alerta aos que buscam entender a massa: “não se entende especialmente o

obreiro; não designa uma classe social, mas um modo de ser do homem que se dá

hoje em todas as classes sociais, por isso mesmo representa o nosso tempo, sobre

o qual predomina e impera.” (ORTEGA Y GASSET, 1962, p.149). E, ainda tratando

do homem-massa, o precursor da Escola de Madri vai nos dizer que “sua vida

carece de projeto e caminha ao acaso, por isso não constrói nada, ainda que suas

possibilidades, seus poderes sejam enormes.” (ORTEGA Y GASSET, 1962, p.104).

Para Ortega só é possível que a vida humana seja moralmente realizada

quando atendidos os imperativos de autenticidade e à vocação pessoal. Esses dois

conceitos têm um caráter bastante específico no pensamento orteguiano, caráter

esse que é muito distinto do uso comum que se dá a eles. Eles “manifestam o rito

imperativo de uma moral delineada pelo tem-que-ser, e neste sentido expressam a

autonomia do homem que caminha movida pela vocação, ao encontro do seu

destino particularíssimo, cumprindo assim a fidelidade a si próprio.” (GONÇALVES

JÚNIOR, 2009, p.18). Assim por vocação entendemos certo tipo de vida que se

refere a um projeto singular que é o próprio ser radical do homem, projeto esse que

se manifesta como uma voz imperativa, uma chamada que move o homem a ser o

que tem que ser seu projeto mais autêntico. Esse projeto seria no pensamento

orteguiano, o próprio destino. Realizar o eu autêntico é realizar a vocação. A isto

estará ligada intimamente a questão da liberdade. Livre é o realizado. Sobre isso

nos instrui o próprio filósofo quando afirma que: “o homem não reconhece seu eu,

sua vocação singularíssima, senão pelo gosto ou o desgosto que em cada situação

sente. [...] Somente seus sofrimentos e seus gozos lhe instruem sobre si mesmo.”

(ORTEGA Y GASSET apud GONÇALVES JÚNIOR, 2009, p.18). E é a consciência

do eu autêntico que vai nos dar a felicidade.

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Dentro da questão da autenticidade enquanto conseqüência da resposta à

vocação temos também o tema da missão, que é particular de cada homem, que

com ela se identifica. Para Ortega y Gasset ela é “a consciência que cada homem

tem de seu mais autêntico ser que está chamado a realizar. A idéia de missão é,

pois, um ingrediente constitutivo da condição humana” (ORTEGA Y GASSET apud

GONÇALVES JÚNIOR, 2009, p.19). Assim, sem missão não teremos homem. Isso

remete também a idéia da solidão radical necessária para que o homem possa

responder autenticamente à sua missão em oposto ao homem que privilegia a

dimensão pública e heteronômica, falsificando o seu destino.

O agir nobre, virtude moral elevada que o filósofo identifica como sendo a

magnanimidade, virtude que impulsiona a realização de elevadas empresas, só

pode ser atingida pelo homem autêntico e responsável. O eu-gente, que segundo o

autor comete suicídio em vida, vai estar sempre vivendo uma falsificação, fazendo-

se de os outros.

2.3 Ortega y Gasset: influências

Precursor da Escola de Madri, que teve como continuador seu discípulo Julián

Marías, Ortega y Gasset também teve destacada influência no pensamento latino-

americano, em especial a partir da idéia do circunstancialismo, fonte utilizada na

reflexão acerca da cultura e na busca por uma identidade latino-americana. Vale

trazer presente que o próprio Ortega y Gasset esteve pessoalmente, na Argentina:

em 1916, convidado pela Universidade de Buenos Aires, em 1928 e, exilado, em

1939.

Assim, teve forte influência entre os da chamada Geração de 1915, que

faziam crítica ao positivismo e que tinha seus núcleos fortes no México, Argentina e

Peru, onde se destacou o principal nome dessa geração, José Carlos Mariátegui. Na

década de 1930, com a vinda de diversos de seus discípulos para universidades

americanas, exilados que foram pelo regime franquista, temos a geração de

“forjadores”, que buscaram a normalização de uma filosofia culturalista latino-

americana.

E não podemos deixar de trazer destaque à influência que o pensamento

orteguiano teve na filosofia brasileira, em especial na década de 1950. Devemos

considerar principalmente o perspectivismo e o circunstancialismo que serviram de

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inspiração, já desde a década de 1930, para a fundamentação filosófico-educacional

do sistema universitário nascente no Brasil. Já o raciovitalismo aparece, em

consonância com o existencialismo, no culturalismo brasileiro manifestado entre os

integrantes do Instituto Brasileiro de Filosofia, fundado em São Paulo no ano de

1949. Dentre os principais pensadores brasileiros que não só foram influenciados

pelo pensamento orteguiano como difundiram suas idéias, principalmente através da

Revista Brasileira de Filosofia, surgida em 1950, estão Vicente Ferreira da Silva,

Hélio Jaguaribe, Luís Washington Vita, Miguel Reale e Renato Czerna.

Também vemos a influência do pensamento de Ortega entre os idealizadores

do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, que iniciou suas atividades, de

tendências nacionalistas que tomavam por base a idéia orteguiana da circunstância

singular para analisar a realidade brasileira, no ano de 1954. O principal nome ligado

a essa instituição foi Álvaro Vieira Pinto, autor da obra Consciência e realidade

nacional. Também encamparam aspectos da filosofia orteguiana outros pensadores,

como o grupo dos católicos alinhados ao pensamento de Jacques Maritain, que tem

seu principal expoente em Alceu Amoroso Lima, e mesmo Paulo Freire, com a

noção de alteridade que permeia a sua pedagogia e que é de inspiração orteguiana.

Na atualidade, Gilberto de Mello Kujawski, autor de Ortega y Gasset: a aventura da

razão e de O sentido da vida, dentre outras obras, é o principal estudioso da filosofia

de Ortega y Gasset no Brasil.

2.4 Ortega y Gasset: obra

A grande maioria das obras de Ortega y Gasset consiste de palestras ou de

aulas publicadas posteriormente, algumas até mesmo póstumas. Dentre as de maior

destaque podemos citar as Meditações do Quixote, onde o autor discorre

principalmente sobre a ética raciovitalista e a axiologia, trabalho esse que também

serve de fio condutor para toda a produção orteguiana, A rebelião das massas, obra

monumental, publicada em 1930 e que ainda se mostra atual e onde o filósofo traz

uma série de previsões acerca de certo tipo de homem, o homem-massa, e de todas

as implicações que tal tipo de homem têm para com o desmonte de nosso mundo e

História como sistema, trabalho onde Ortega defende que é somente a partir de uma

profunda compreensão do mundo que podemos operar nele.

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A seguir apresento um pequeno elenco de sua produção intelectual:

• Meditaciones del Quijote (1914)

• Vieja y nueva política (1914)

• Personas, Obras, Cosas (1916)

• El Espectador (8 volumes) (1916 – 1934)

• España Invertebrada (1921)

• El tema de nuestro tiempo (1923)

• Las Atlántidas (1924)

• La deshumanización del Arte e Ideas sobre la novela (1925)

• Espíritu de la letra (1927)

• Mirabeau o el político (1928)

• Kant (1929)

• La rebelión de las masas (1930)

• Missión de la Universidad (1930)

• Rectificación de la República; La redención de las provincias y la decencia

nacional (1931)

• Goethe desde dentro (1932)

• Ensimismamiento y alteración. Meditación de la técnica. (1939)

• Ideas y Creencias (1940)

• Estúdios sobre el amor (1940)

• El libro de lãs misiones (1940)

• Mocedades (1941)

• Historia como sistema y del Imperio Romano (1941)

• En torno a Galileo (1942)

• Teoría de Andalucía y otros ensayos: Guillermo Dilthey y la Idea de vida

(1942)

• Esquema de la crisis (1942)

• Dos prologos – A un tratdado de monteria – A una historia de la filosofia

(1945)

• Papeles sobre Velázquez y Goya (1950)

• El hombre y la gente (1957)

• Idea del Teatro. Una abreviatura (1958)

• ¿Qué es filosofía? (1958)

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• La Idea de principio en Leibniz y la evolución de la teoría deductiva (1958)

• Meditacion del pueblo joven (1958)

• Goya (1958)

• Velázquez (1959)

• Una interpretación de la Historia Universal. En torno a Toynbee (1960)

• Meditación de Europa (1960)

• Origen y epílogo de la Filosofía (1960)

• La caza y los toros (1960)

• Vives – Goethe (1961)

• Pasado y porvenir para el hombre actual (1962)

• Unas lecciones de metafísica (1966)

• Sobre la razón histórica (1979)

• Investigaciones psicológicas (1982)

• ¿Qué es conocimiento? (1984)

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3 A VIDA VULGAR: O HOMEM-MASSA

Passados mais de cinqüenta anos da morte de Ortega y Gasset, vemos em

constante realização, e a cada dia que passa mais agravados, todos os seus

prognósticos a respeito do crescimento desordenado da população, da cada vez

maior especialização da técnica que acaba por transformar os especialistas em

ignorantes de todo o resto, e, sobretudo uma cada vez maior estatização – chamada

por Ortega y Gasset de “tirania da sociedade” - que infelizmente acaba por anular a

espontaneidade e minar o destino do próprio homem, fomentando assim o

surgimento daquele tipo de indivíduo, se é que assim podemos defini-lo, que o

filósofo classificaria como o homem-massa, personagem esse que, ao crer

firmemente que o progresso é inevitável, acaba por destituir a si mesmo o poder de

construir-se ou projetar-se, tornando-se aquele de quem afirmaria o mestre

madrileno: “sua vida carece de projeto e caminha ao acaso, por isso não constrói

nada, ainda que suas possibilidades, seus poderes, sejam enormes” (ORTEGA Y

GASSET, 1962, p.104), tornando-se assim um bárbaro em servidão, governado pelo

outro, um homem medíocre, ou, nos valendo ainda das luzes lançadas pelo grande

mestre espanhol

Mais que um homem, é apenas uma carcaça de homem constituído por meros idola fori4; carece de um ‘dentro’, de uma intimidade sua, inexorável e inalienável, de um eu que não possa revogar. Daí estar sempre em disponibilidade para fingir ser qualquer coisa. Tem só apetites, crê que só tem direitos e não crê que tem obrigações: é o homem sem nobreza que obriga – sine nobilitate – snob5. (ORTEGA Y GASSET, 1962, p. 29-30)

Esse mesmo homem-massa - que Ortega y Gasset quer expor não como um

conceito universal, mas como um homem concreto no espaço e no tempo, acaba por

tornar-se um dos conceitos-chave de todo o pensamento orteguiano. É ele aquele

tipo que se mostra de forma totalmente avessa a vida de nobreza moral (que é a

única que o maestro Ortega considera como plena de autenticidade) e que vai se

apresentar para nós de três formas, como já elencamos anteriormente: o homem- 4 Expressão latina que remete aos erros de linguagem. Essa expressão aparece na obra Novum Organum, publicada em 1620 e escrita pelo filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626). (Nota própria). 5 Expressão latina que significa “sem nobreza”. Era utilizada quando do surgimento das primeiras

escolas regulares para designar a procedência familiar do estudante. Por exemplo, se o jovem fosse filho de um nobre, escreveriam em sua ficha “Paolo, filho do Conde Tal”, mas se fosse de origem “plebéia”, tal seria descrito como “Paolo, s. nob.”, ou seja, “sem nobreza. Daí vem o vocábulo “esnobe”, que até hoje utilizamos. (Nota própria).

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satisfeito; o jovem mimado, e o bárbaro especialista. Esses três vêm a ser

manifestações da crise histórica resultante da combinação entre a técnica moderna

com a democracia liberal e que se expressa, em seu aspecto moral, como “um

paradigma de inautenticidade (...) modelo do viver impessoal e se define nas

relações com o outro, com o mundo, com a história, ou seja, com a sua

circunstância” (GONÇALVES JÚNIOR, 2009, p.17). Por massa o próprio Ortega y

Gasset nos ensinaria que “não se entende especialmente o obreiro; não designa

uma classe social, mas um modo de ser do homem que se dá hoje em todas as

classes sociais, por isso mesmo representa o nosso tempo, sobre o qual predomina

e impera” (ORTEGA Y GASSET, 1962, p.149). Assim, revoltado e inautenticamente

homem, desdenhando da história6 e dos conhecimentos acumulados por ela, o

homem-massa se torna

uma personagem parasitária: vive à custa do que nega e que outros construíram e acumularam. Revolta-se contra toda moral e contra toda autoridade e afirma uma liberdade sem limites que faz dele a engrenagem de uma máquina e lhe retira a liberdade autêntica de realização pessoal. A violência é assim a única expressão possível do homem-massa: não como ultima ratio para a obtenção de um fim legítimo, mas como prima ratio em vista de um fim qualquer e arbitrário (ABBAGNANO, 1990, p. 149-150).

Seria ele também um despreocupado, sem obrigações nem

responsabilidades de qualquer tipo, sem história, enfim, vazio de humanidade. Vazio

justamente por fugir do compromisso que cada homem tem de se esforçar para não

perder a sua humanidade. E esse mal não ataca apenas o indivíduo de forma

isolada, mas toda a humanidade. Do homem-massa bem poderíamos dizer que

“imperam suas opiniões, seus gostos, sua ética, sua estética” (ASSUMÇÃO, 2003, p.

36). E tão arraigado em nosso cotidiano está esse império das massas que

acabamos todos vivendo sob o seu jugo sem muitas vezes nem mesmo nos dar

conta de que perdemos nossa autenticidade.

3.1 A condição da massa

6 Para Ortega y Gasset a razão histórica seria necessariamente complementar à razão vital. Segundo ele o “homem não tem natureza, tem história. Porque não se pode esclarecer o ontem sem o anteontem, e assim sucessivamente, a história é um sistema – o sistema das experiências humanas que formam uma cadeia inexorável e única”. (ORTEGA Y GASSET apud JAGUARIBE, 1982, p. 43).

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Em sua obra principal, A Rebelião das Massas, que o autor pretendia como

que uma resposta aos problemas criados pela política, Ortega y Gasset queria,

principalmente, refletir acerca de uma época de dúvidas e incertezas quanto ao

destino de sua Espanha natal em um período (ainda não superado em nosso mundo

contemporâneo) de explosão demográfica e urbanística. Um mundo de multidões. E

“esta multidão intervém. E intervém nos valores da civilização, impondo no lugar

deles, os valores7 das massas. Essas massas, no entanto, como Ortega quer deixar

claro, não são classes sociais, mas categorias de homens” (ASSUMÇÃO, 2003, p.

39-40). Esse quadro acaba levando os homens a “esquecerem-se” de si próprios e

adotarem uma postura semelhante à do camaleão, ou como diria o vulgo, serem

levados “a dançar conforme a música”.

Perdida a condição de indivíduo, o homem acaba desumanizado, sem

história, acontecimento esse tão comum em nossa época, onde as pessoas são, na

maioria das vezes, e cada vez mais, vistas apenas como consumidores em

potencial, e não como gente, sujeitos e protagonistas de uma história. Daí o fato de

vivermos em uma sociedade cada vez mais neurótica, onde depressão é moda e

onde o mundo da tecnologia acaba por suplantar o mundo natural, tornando assim

totalmente inautêntico o ser do homem, exatamente como vaticinado por Don Ortega

em outra obra sua de expressão, Meditação sobre a Técnica. Influenciado pela

técnica, para a qual praticamente nada é impossível, o homem acaba por achar que

a vida não tem limites, e deixa de empreender qualquer esforço. E não podemos

deixar de ter claro que é justamente o esforço enquanto resposta aos limites

impostos pelas circunstâncias o que diferencia o homem-massa do homem

autêntico. Sem buscar melhorias nem progressos, e tornando-se assim pouco

exigente, acaba o homem-massa se deixando conduzir pela mediocridade de líderes

muitas vezes sem consciência, e que vivem como se não existisse o passado. Isso

acaba por levar o nosso famoso personagem a render-se totalmente às

circunstâncias.

Mas a condição de massa não se dá apenas com o homem enquanto

indivíduo. Também é possível que tenhamos um tipo de Estado que é fruto desse

7 “Os valores têm três dimensões: (1) qualidade: positiva ou negativa, (2) hierarquia: mais importantes e menos importantes e (3) matéria, referente àquilo de que se trata e que constitui o suporte de diferentes tipos de valores. Quanto a este último aspecto, Ortega diferencia quatro grandes tipos: valores de utilidade, valores vitais, valores e espirituais (...) e valores religiosos” (JAGUARIBE, 1982, p.9).

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modo de ser e que traz em si todas as características que aqui apresentamos. Esse

Estado-massa se apresenta principalmente enquanto anônimo e confundido com o

próprio homem-massa, que com isso chega até mesmo a se acreditar como sendo o

próprio Estado, buscando então “esmagar com ele qualquer minoria criadora que o

perturbe em qualquer campo: na política, nas idéias, na indústria”. (ORTEGA Y

GASSET, 1962, p.132). Desse Estado, e também da sociedade que o compõe,

Ortega y Gasset também diria que funciona como se fosse um aparelho ortopédico,

que serve apenas como adaptação. Seria também, segundo ele, a sociedade, como

que um complexo sistema onde as massas e as minorias vivem em constante

processo de ações recíprocas, e um espaço de petrificação da personalidade. A

sociedade seria a mostra mais perfeita da vida do homem-massa. A respeito disso,

qualquer semelhança com a nossa realidade contemporânea será pouco mais que

mera coincidência.

A técnica traz também sua grande contribuição para a condição da massa,

pois nunca antes, desde os tempos de Ortega até os nossos dias, o homem

mediano teve tantas facilidades para resolver os seus problemas. Com isso o

imaginário do homem-massa passa a pensar que não existem para ele quaisquer

barreiras, e que tudo é muito simples. Para tornar melhor inteligível essa questão

trago como exemplo mesmo a construção desta monografia: hoje utilizo um

computador portátil, que posso levar para qualquer lugar. Ao escrever utilizo um

editor de textos que me permite fazer as mudanças necessárias, ou até mesmo

inserir um parágrafo entre os outros com muita facilidade. E depois que tudo estiver

perfeito irei imprimir meu texto, cópia fiel daquele que eu visualizei pela tela do

aparelho. E antes como seria? Eu teria de utilizar uma pesada máquina de escrever,

e produzir meu texto página por página. E se esquecesse de datilografar uma

palavra, adeus página de texto e de trabalho! E não ficaria nem um pouco contente

se por acaso “comesse” a penúltima palavra de uma página. Isso sem contar com os

borrões da fita de Error Ex. De fato, o desenvolvimento das mais diversas

tecnologias facilitou muito a vida do homem, de tal modo que

o homem vulgar, ao encontrar-se com este mundo técnica e socialmente tão perfeito, crê que o produziu a natureza, e não pensa nunca nos esforços geniais de indivíduos excelentes que supõe sua criação. Menos ainda admitirá a idéia de que todas estas facilidades continuam apoiando-se em certas difíceis virtudes dos homens (...). Isto nos leva a apontar no diagrama psicológico do homem-massa atual dois primeiros traços: a livre

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expansão dos seus desejos vitais (...) e a radical ingratidão a tudo quanto tornou possível a facilidade de sua existência (ORTEGA Y GASSET, 1962, p.113-114).

3.2 A rebelião das massas

Com tudo isso, esquecido de que é herdeiro de toda uma tradição de

genialidade de um extenso passado, o homem-massa vai vivendo em um mundo

sem pressões e nem choques, onde já não é mais preciso haver nem hierarquia e

nem autoridade, e onde – infelizmente – todas as relações acabam por se tornar

horizontais e indiferentes, onde o Eu e o Outro se confundem e se perdem, e onde a

própria cultura acaba por encontrar o seu fim, uma vez que, cheio de contentamento

e satisfação, ao homem-massa já não se faz mais necessário lutar por nada, e nem

mesmo acreditar ou apelar a qualquer instância que seja externa ou alheia a si

mesmo, de tal modo que chega a achar que tudo quanto de bom existe está nele

mesmo, tudo isso porque ele, segundo Ortega y Gasset lembra, embora chame

nossa atenção para o quão nocivo é este comportamento

Tenderá a afirmar e considerar bom tudo quanto em si acha: opiniões, apetites, preferências ou gostos. Por que não, se, segundo vemos, nada nem ninguém o força a compreender que ele é um homem de segunda classe, limitadíssimo, incapaz de criar nem conservar a organização mesma que dá à sua vida essa amplitude e esse contentamento, nos quais baseia tal afirmação de sua pessoa? (ORTEGA Y GASSET, 1962, P.119).

Encontrando então a vida e o mundo tão abertos, os medíocres de nossos

tempos acabaram por se fechar em si mesmos. E é justamente nesse fechamento,

nessa grande ingenuidade do homem inautêntico, que consiste a rebelião das

massas, indóceis e rebeldes que não querem mais ter de se submeter a quaisquer

estruturas de valores, fechando-se assim em um hermetismo intelectual tal que

acabam se contentando e se considerando completos com muito pouco, sequer se

comparando com os outros de outras épocas e mesmo deixando totalmente de lado

a própria história e concentrando se apenas em si mesmos e colocando se como

parâmetro para tudo, de tal sorte que

o pior de tudo, a grande aberração da rebelião das massas, é o vulgo, que antes sabia que não tinha idéias sobre as coisas, hoje se sente, pela falta de critérios, intimamente autorizado a ter idéias sobre elas. Ele tinha crenças, tradições, experiências, provérbios, hábitos mentais, mas não se

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imaginava de posse de opiniões teóricas sobre o que as coisas são ou deveriam ser (...) e essa ação, que pareceria inocente, é a mais prejudicial de todas, pois seu ato de julgar a partir de sua incapacidade gera resultados funestos. E o pior, sendo a maioria, resta à minoria conviver com o que o homem-massa brada em termos de política e estética. É este o brutal império das massas. (ASSUMÇÃO, 2003, p. 46).

Tornado dessa forma cego e surdo, em tudo o homem-massa quer interferir

violentamente, sem querer aceitar as regras sociais construídas pela cultura,

tornando-se assim como que um bárbaro em um mundo sem leis. Nesse aspecto

não podemos deixar de lembrar que Ortega y Gasset entendia por cultura

não um luxo inútil, mas uma bóia que lançamos à água e a qual nos agarramos com a finalidade de nos salvarmos do abismo de insegurança que nos circunda. Assim, cultura não pode ser vista como entretenimento, mas como salvação (...) do contrário (...) a cultura não será uma possibilidade de libertação mas de opressão. (ASSUMÇÃO, 2003, p.53).

Assim, o homem-massa é então alguém inautêntico justamente por viver

como se a cultura fosse algo natural, enquanto na verdade ela é algo que foi

construído passo-a-passo e nos foi dado, legado. Para ele o indivíduo não tem

natureza, apenas história. Com isso, é apenas através de uma razão vital8 histórica

que poderemos compreender o ser do homem.

Em suma vão existir dois tipos de homem-massa: um que está totalmente

voltado para fora, desligado de si mesmo, e que adota uma cosmovisão, uma ética e

uma estética coletivistas, e outro caracterizado por ser individualista e inautêntico

enquanto voltado apenas para si próprio. Seria então pura circunstância, o primeiro,

e puro eu, o segundo. A partir desse conceito orteguiano em específico é que

podemos entender também a afirmação do filósofo espanhol de que o homem-

massa, embora espalhado pelo mundo todo, está (vale lembrar que essa afirmação

é de 1930) concentrado principalmente no individualismo dos Estados Unidos da

América e no coletivismo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Ainda assim, com todas essas nuances pouco nobres, inautênticas,

“parasitárias”, Ortega y Gasset, embora afirmasse que, à medida que caminhasse o

8 A razão vital era um dos temas preferidos do maestro Ortega, e tema central de seu pensamento. Representa, segundo Jaguaribe, o esforço para superar o idealismo da filosofia kantiana, do que podemos ter uma noção segundo o que segue: “Cuando él racionalismo puro há fracasado em su intento de comprender la vida humana, y cuando él irracionalismo se há disuelto em patetismo, solo la ‘vida com razón’ pude llevar a cabo tan difícil tarea. Ello es posible porque la vida humana no es, em rigor, uma teoría, sino um hecho”. (FERRATER MORA, 1958, p.99).

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século XX mais se desenvolveria o homem-massa, e não descartasse de todo um

inevitável desastre definitivo, ainda mantinha certo otimismo, até mesmo uma

esperança, por achar que os indivíduos que compõe a massa ainda poderiam

redescobrir em si a força da decisão, seu próprio destino inalienável, e a perspectiva

de uma nova solidariedade histórica que teriam o poder de despertar o homem do

torpor em que a massificação o atira. Mas, segundo diz Nicola Abbagnano, quando e

como o homem despertará, isso ninguém pode dizer.

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4 A VIDA NOBRE: O HOMEM AUTÊNTICO

4.1 Um projeto a realizar

O centro principal do pensamento orteguiano está no circunstancialismo, tão

bem visível na famosa fórmula “Eu sou eu e a minha circunstância”. Para Ortega y

Gasset o constituinte principal e verdadeiro do homem autêntico não se expressa na

realidade imutável, estanque em si mesma e estranha ao mundo em que se vive,

mas antes de tudo na relação que o homem tem com esse mundo e com as coisas

que o constituem. Coisas estas que não são elas mesmas, realidades

independentes, mas se mostram a partir da perspectiva na qual se vive e atua.

Mas como um baluarte de salvação Ortega via antes de tudo o indivíduo,

onde seria possível que a autenticidade do ser humano se realizasse, indivíduo esse

que se opõem totalmente à massa (embora a massa seja ela mesma composta por

indivíduos). Buscando inspiração na figura de Dom Quixote9, tão cara a Ortega,

diríamos que, se teremos a nossa frente moinhos de vento ou ferozes gigantes é

apenas uma questão de ponto de vista, que pode levar à autenticidade ou a um

vazio pior do que a própria morte.

Partindo deste viés, antes mesmo de tratar daquilo que o filósofo considerava

como vida autêntica, precisamos trazer presentes dois conceitos específicos da obra

dele que nos ajudaram a melhor compreender, enquanto categorias constitutivas, o

programa vital do homem em sua busca por realizar-se integral e autenticamente,

conceitos esses que “manifestam o rito imperativo de uma moral delineada pelo ter-

que-ser”: o imperativo de autenticidade e a vocação pessoal, conceitos esses

intimamente interligados, isso por que

A vida, segundo Ortega, nunca é genérica, impessoal e abstrata [mas é] vida de um eu, é o projeto de existir de certo modo, de realizar um plano ou programa determinado: programa que não é escolhido pelo homem, mas nasce com ele, é o seu “ser” autêntico, o seu destino, ainda que habitualmente o homem dele tenha só um vago pressentimento. A vontade humana é livre de realizar ou não este programa vital, mas não pode mudá-lo nem substituí-lo. ‘A vida – escreveu Ortega – é essencialmente um drama, porque é luta frenética com as coisas, e até com o nosso temperamento, para conseguirmos ser de fato o que somos em projeto (ABBAGNANO, 1990, p. 147).

9 Dom Quixote de la Mancha, personagem do clássico da literatura espanhola escrito por Miguel de

Cervantes (1547 – 1616).

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Por isso a realização da vocação pessoal enquanto “chamada a certo tipo de

vida, ou o que é igual, de certo tipo de vida a nós, esta voz ou rito imperativo que

ascende de nosso mais intimo fundo” (ORTEGA Y GASSET apud GONÇALVES

JÚNIOR, 2009, p.18) é imprescindível, decisiva para o homem, pois só ao seguir o

chamado a ser o que tem que ser é que o homem se tornará autêntico. Assim, esse

projeto pessoal é tido por Ortega como sendo o próprio destino, o que faz com que

não caiamos no erro de pensar que o homem é “forçado a ser livre”, mas só

encontrará a liberdade aquele que realizar o seu eu autêntico justamente vivendo

sua vocação. Mas que critério utilizar para reconhecer uma vocação legítima? O

próprio homem, que segundo Ortega y Gasset “não reconhece o seu eu, sua

vocação singularíssima, senão pelo gosto ou desgosto que em cada situação sente.

[...] Somente seus sofrimentos e gozos lhe instruem sobre si mesmo” (ORTEGA Y

GASSET apud GONÇALVES JÚNIOR, 2009, p.18).

Então Ortega deixa claro que só atinge um nível autêntico de humanidade

aquele que é capaz de realizar sua vocação. Claro que a vontade do homem é livre,

não podemos deixar de mencionar, cabendo a ele realizar ou não o seu programa

vital, a sua vocação. Mas não pode mudá-la, e nem mesmo substituí-la. Partindo

desse viés temos o homem como vivendo um constante drama, onde deve atuar de

forma eficaz, de modo a realizar da melhor forma possível o seu projeto de vida e

alcançar sua autêntica personalidade, salvando-se assim das crises interiores e

alcançando serenidade e paz, momento esse em que as circunstâncias externas,

mesmo que adversas, deixarão de parecer obstáculos à felicidade, passando a ser

instrumentos que possibilitam a realização do projeto pessoal e a plena realização

do próprio homem. Realização essa que podemos identificar com o dado da

felicidade que se apresenta não apenas como mera satisfação de nossos desejos,

mas como uma experiência concreta da consciência com o autêntico eu e que é

conseqüência das ações manifestadas pelo projeto do tem-que-ser. E somente

assim o homem “atinge a sua autêntica personalidade, se salva da dispersão e dos

conflitos interiores, adquire a paz e a serenidade da vida” (ASSUMÇÃO, 2003, p.56).

Diferentemente do homem-massa, que acredita ser perfeito e não precisar de

ninguém, o homem autêntico – seleto e excelente – segundo Ortega

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está constituído por uma intima necessidade de apelar de si mesmo a uma norma além dele, superior a ele, a cujo serviço livremente se põe (...). E Ortega adverte que contrariamente ao que se costuma acreditar, é o homem de seleção, e não a massa, quem vive em essencial servidão (ASSUNÇÃO, 2003, p. 44).

Mas não podemos pensar essa servidão como uma escravidão sem sentido,

mas sim como uma necessidade de estar a serviço enquanto vocação, enquanto

razão vital, enquanto disciplina – “A nobreza define-se pela exigência, pelas

obrigações, não pelos direitos” (ORTEGA Y GASSET, 1962, p. 120).

Para Ortega y Gasset, o mundo não é um conjunto de coisas, mas sim um

conjunto de situações que são como uma herança que recebemos sem nada ter

feito. E para ele essa herança é demonstrada através da cultura, para a qual o

homem deve se voltar se quiser conhecer de verdade, autenticamente. E é a partir

dessa gratuidade que decorre uma atitude ética de nobreza e cortesia para com um

mundo e uma vida que nos foram dados, segundo Ortega, não importa por quem, se

por Deus ou pela natureza, mas que exige de nós fidelidade ao legado recebido das

gerações passadas e responsabilidade para com o que recebemos, de tal sorte que

“o homem autêntico cultua e agradece o que seus semelhantes fizeram antes dele e

o repassaram como uma dádiva. Cabe ao homem preservar esta cultura acima de

tudo, aumentá-la (...) e tentar levá-la adiante, gratuitamente’ (ASSUNÇÂO, p.49-50).

4.2 Uma alternativa radical

Então se nos apresenta a grande questão: como podemos chegar a conhecer

o nosso eu autêntico? E como descobrir e responder à nossa vocação? Orteguianos

que somos, valemo-nos do legado de nosso colega Assumção, que afirma que

Enfrentando a vida como problema, a vida como quefazer, a vida como projeto e programa, a vida como um naufrágio. A vida humana, diz Ortega, é o assunto mais grave de todos. Os grandes problemas filosóficos, artísticos, científicos são muito pequenos comparados com o problema em si mesmo que é a nossa vida. Essa vida que nos é dada gratuitamente, mas incompleta. E temos que decidir sem trégua o que seremos, amanhã, agora etc. (ASSUMÇÃO, 2003, p.50).

E para tal mesmo os obstáculos e adversidades que as circunstâncias em que

vivemos nos apresentam servem como instrumental para a construção de nossa

autenticidade.

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Primeiramente colocamos nossa atenção no papel que o mestre espanhol

dava para a solidão. Daí inferirmos também algo fundamental para o pensamento

antropológico orteguiano: a solidão. Solidão essa que não é simplesmente física,

mas existencial, real e radical, e sem a qual somos incapazes de sermos

protagonistas de uma vida autêntica. Pois embora exista um meio que nos

condicione, a decisão a respeito de determinada situação será sempre nossa: as

decisões são sempre pessoais.

Também não podemos deixar de trazer à baila a importância que Ortega

dispensava à razão no papel de guia do homem em sua batalha por não sucumbir

às circunstâncias insignificantes que tornam a vida vazia e mais negativa do que a

própria morte, razão essa que é de importância vital segundo Ortega e que

tem a tarefa de elucidar o projeto original do homem e a perspectiva em que este deve realizar-se. A razão não se opõe a vida, mas ilumina-se e leva-a a plenitude, enriquecendo-a de novas possibilidades de realização autêntica. Trair a razão, renunciar à claridade que esta traz à relação do homem consigo próprio e com o mundo, significa trair a vida e encaminhá-la para a destruição. E a vida em questão não é só a do indivíduo, mas a de toda a comunidade humana (...). A ‘história’ desta comunidade só é tornada possível pela razão que ilumina a sua situação no mundo, esclarece os seus problemas e dificuldades, oferecendo-lhe assim a possibilidade de enfrentar o futuro e as novas situações em perspectiva. A ‘razão vital’ é por isso, e, sobretudo, uma ‘razão histórica’ (...) no sentido de esclarecer os acontecimentos, mostrando suas causas e efeitos e orientando assim a estratégia da ação humana. Para tanto, a razão histórica só dispõe de um caminho: considerar o passado, trazer à luz do dia às experiências de vida já realizadas e que inevitavelmente limitam o mapa das experiências futuras. O homem é na história um emigrante, ‘um peregrino do ser’, que só do passado pode tirar alguma luz para o futuro (ABBAGNANO, 1990, p.166).

Ortega y Gasset não traça um destino único para todos os homens, mas tem

sempre presente a individualidade do projeto de vida de casa um como constitutivo

fundamental da autenticidade do homem. Nisso reside até mesmo o porquê da

Filosofia, que segundo pretendia Julián Marías, o mais famoso dos discípulos de

Don Ortega, consiste em livremente decidir por ser fiel ao próprio destino, o que

pode ser muito mais fácil, ou mais difícil, dependendo das condições históricas em

que se vive.

Para Ortega, que já tinha medo do rumo para o qual a humanidade ia

marchando, pois segundo ele o homem autêntico vinha em crise e decadência

desde os últimos séculos do Império Romano, e não tardaria o dia em que

estaríamos mergulhados em um mundo de homens-massa, onde homens autênticos

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nasceriam rara e esporadicamente, isso porque “há uma outra crise ainda mais

grave, que se verifica na época atual e que se caracteriza por aquilo que Ortega

chama a socialização do homem” (ABBAGNANO, 1990, p. 170).

Essa socialização se mostra enquanto tirania que, ao anular a individualidade,

retira toda a responsabilidade do homem. Responsabilidade essa que significa

esforço e sem a qual a condição de humanidade não é dada ao homem. Condição

essa que deve ser conquistada, feita, e sem a qual nossa vida, repertório de

possibilidades, jamais poderá se tornar exuberante, superior, magnífica, e que só

será alcançada se o homem não se furtar ao seu trabalhoso destino de humanizar-

se.

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5 CONCLUSÃO

Chegando ao termo de nossos estudos, esperamos humildemente ter

alcançado o ideal do maestro Ortega y Gasset, que dizia sempre acreditar “que a

clareza é a cortesia do filósofo”.

Vivemos um mundo onde prevalecem as características do homem-massa, e

onde os ideais de uma personalidade autêntica são tidos cada vez mais como

ultrapassados. Um mundo sem heróis, sem grandes lideranças. E o que é ainda

pior: um mundo de anti-heróis, e de mediocridade, onde a tendência cada vez maior

é a de, conforme diria o popular, “nivelar todos por baixo”.

Mas o que podemos colher de nossos estudos, aqui apresentados, e que

possa nos servir para balizar uma postura proativa em direção a construção de uma

realidade mais comprometida com o desenvolvimento da autenticidade?

“Eu sou eu dentro da circunstância onde todos os outros eus estão”. Assim

Jeferson Assumção explicaria a famosa máxima de José Ortega y Gasset,

imortalizada nas Meditações do Quixote: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não

salvo ela, não me salvo a mim”. Levamos conosco a mais firme certeza que o

homem é, além das escolhas, relação. Relação essa que, vivida a partir de nossas

próprias circunstâncias e perspectivas e em resposta a uma vocação inalienável, vai

nos levar à construção de uma vida autêntica a partir do imperativo moral do tem-

que-ser.

Assim a vida vai se apresentar como um quefazer vital, uma alternativa onde,

sem trégua, somos colocados diante de escolhas pessoais. Uma batalha que

travamos contra as circunstâncias insignificantes e que tornam a vida vazia de

sentido e eivada de negatividade. Confronto esse sem o qual estaríamos

impossibilitados de nos humanizarmos através da assunção de responsabilidades.

Responsabilidades sem as quais não teríamos as mínimas condições de

humanidade.

Para tanto, faz-se necessário que a cada dia varramos de nosso eu as

inclinações – infeliz e tristemente – naturais de nos portarmos de forma parasitária,

como diria Don Ortega, despreocupados e desobrigados de responsabilidades,

como se não trouxemos em nós qualquer característica de humanidade. E também

não podemos esquecer de que somos sujeitos e protagonistas de nossa própria

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história, e não apenas meros camaleões, homens que “dançam conforme a música”,

diria um nosso conterrâneo.

Pudemos conhecer um pouco mais de José Ortega y Gasset e de sua

contribuição para a Filosofia. Questionamos o homem-massa, pobre “carcaça”, e

elogiamos a heroicidade do homem de personalidade autêntica, para quem a vida é

antes de tudo um dever. Mas e nós, como nos colocaremos? De que forma

poderíamos buscar a tão necessária condição de autenticidade preconizada pelo

grande mestre madrileno?

Esforço!

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REFERÊNCIAS

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