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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
KARLA AMORIM SANCHO
CENAS DA ENUNCIAÇÃO E ETHOS EM NARRATIVAS
SOBRE A EXPEDIÇÃO RONCADOR-XINGU: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA
CUIABÁ-MT 2014
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KARLA AMORIM SANCHO
CENAS DA ENUNCIAÇÃO E ETHOS EM NARRATIVAS
SOBRE A EXPEDIÇÃO RONCADOR-XINGU: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre, sob a orientação do Prof.
Dr. Roberto Leiser Baronas.
CUIABÁ-MT
iv
Dedico este trabalho às pessoas que, de várias maneiras, contribuíram com meus aprendizados, estimularam-me a perseverar na caminhada rumo à concretização de minhas metas, sintonizaram comigo e partilharam as alegrias e desafios de cada realização. Dedico-o especialmente à minha família: meus pais Carlos Benedito Sancho Silva e Leda Regina Amorim Sancho, meu irmão Philipe Amorim Sancho e ao meu namorado, futuro esposo e companheiro de todos os momentos, Fabiano Tonaco Borges.
v
AGRADECIMENTOS
A Deus, que me concedeu vida e saúde para realizar este trabalho.
Ao professor Roberto Leiser Baronas, pela orientação sábia, inventiva e
instigante, pela dedicação a esta pesquisa, por me incentivar a amadurecer.
A todos os professores do programa de Pós-graduação em Estudos de
Linguagem e de graduação que contribuíram com meu amadurecimento intelectual.
Às professoras Solange Maria de Barros e Marilena Inácio de Souza, pela
leitura criteriosa da primeira versão deste trabalho e pelas várias sugestões que
muito colaboraram para aprimorá-lo. À professora Fernanda Mussalim, por fazer
parte da banca que avalia o presente trabalho.
Aos meus pais Carlos Benedito Sancho Silva e Leda Regina Amorim Sancho,
e ao meu irmão Philipe Amorim Sancho, pelo amor, incentivo aos estudos e pela
torcida em todos os momentos. Aos meus familiares, pelo carinho e sintonia.
Ao meu namorado Fabiano Tonaco Borges, pelo amor, pelo apoio, por me
inspirar e por compartilhar comigo sonhos e realizações.
Aos amigos e professores da graduação no Centro Universitário do Araguaia
– o campus da Universidade Federal de Mato Grosso na cidade de Barra do Garças
– e da pós-graduação, pela parceria e partilhas riquíssimas dos estudos e da vida.
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CENAS DA ENUNCIAÇÃO E ETHOS EM NARRATIVAS SOBRE A EXPEDIÇÃO RONCADOR-XINGU: UMA ANÁLISE DISCURSIVA
O presente estudo está inscrito no âmbito dos estudos discursivos e tem como objetivo geral fazer uma análise discursiva de algumas produções literárias e fílmicas relativas à Expedição Roncador-Xingu. Este trabalho à luz da Análise do Discurso de orientação francesa se debruça sobre sequências discursivas que constituem o livro A Marcha para o Oeste: a epopeia da Expedição Roncador-Xingu e o filme Xingu, que deram em narrativa os principais acontecimentos da expedição que os Irmãos Villas-Bôas conduziram pelas entranhas do Brasil Central a partir de 1944 e, que culminaram com a criação do Parque Nacional do Xingu em 1961. A presente pesquisa ao se inscrever no mirante teórico-metodológico da Análise do Discurso toma as discursividades (re)produzidas sobre o acontecimento histórico Expedição Roncador-Xingu numa concepção materialista de linguagem na qual os efeitos dos discursos que estão na base da constituição desse evento não se resolvem em um ponto de integração, mas se engendram a partir de contradições histórico-sociais. Nessa perspectiva, nosso estudo objetiva investigar por meio das categorias de análise: cena da enunciação, cena genérica, cenografia e ethos, propostas, basicamente na última década do século passado pelo teórico francês Dominique Maingueneau, os recursos linguístico-discursivos mobilizados nas cenas enunciativas que constituem as narrativas, silenciando a possibilidade de produzir sentidos disfóricos em relação aos Irmãos Villas-Bôas. Em outros termos, procuraremos descrever/interpretar as estratégias discursivas utilizadas pelos enunciadores de tais narrativas, a partir de determinadas condições de produção, destinadas a apagar qualquer contradição de sentido que não o eufórico e a mascarar a existência da conflituosa relação entre brancos e índios.
Palavras-chave: Expedição Roncador-Xingu. Análise discursiva. Cenas da Enunciação. Ethos
vii
ENUNCIATION SCENES AND ETHOS IN NARRATIVES ABOUT RONCADOR-XINGU EXPEDITION: A DISCURSIVE ANALYSIS
This research is embedded in the field of Discursive Studies, having as general purpose to perform a Discursive Analysis from part of literary and press coverage related to The Roncador-Xingu Expedition. This research carried out a Discursive Analysis, which is French-scholar-guided. It evaluated writings that constitute the book The Western March: the Epic Roncador-Xingu Expedition as well as the movie Xingu. Both book and movie gave a narrative of the main events of the Expedition that had been conducted within the midst of Brazil since 1944 culminating with the creation of the Xingu National Park in 1961. Having the Discursive Analysis as a methodological approach, this study investigated statements (re) produced in The Roncador-Xingu Expedition in a materialist conception, whose discursive effects are on the basis of the constitution of that event. Those effects do not sort themselves out in a converging point, though they engage themselves in social-historical contradictions. In this perspective, our study aimed to investigate the reasons that the narratives regarded to The Expedition shaped mostly euphoric images about the role of the Villas Boas brothers leading the Roncador-Xingu Expedition. For that, it was used the following analysis categories: enunciation scenes; generic scene; scenography and Ethos. What interested us most was specifically both to describe and to interpret the linguist-discursive resources mobilized in the enunciation scenes, which composed narratives, at the same time silencing the possibility to produce dysphoric senses regarding to the Villas Boas brothers. In other terms, we will pursue to describe and to interpret the discursive strategies used by the enunciators of such narratives, designated to erase any contradiction of meaning that is non-euphoric ones and yet to cover up the existence of a conflicting relationship between whites and indigenous. Key words: Roncador-Xingu Expedition. Discursive Analysis. Enunciation Scenes. Ethos.
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Sumário
INTRODUÇÃO: Um pouco de condições de produção..............................................10
Capítulo 1..................................................................................................................31
RELATOS DA EXPEDIÇÃO RONCADOR-XINGU E OS CONCEITOS DE
DOCUMENTO E MONUMENTO................................................................................31
1.1 Imagens da memória e representações do real: documento e monumento........31
1.2 Condições de produção desse projeto discursivo veiculado pelo livro................33
1.3 Condições de produção desse projeto discursivo veiculado pelo cinema...........35
Capítulo 2..................................................................................................................39
OS ETHÉ DOS IRMÃOS VILLAS-BÔAS NA ENUNCIAÇÃO RELATIVA À
EXPEDIÇÃO RONCADOR-XINGU............................................................................39
2.1 Sobre a noção “ethos”..........................................................................................40
2.1.1 O ethos, construído ou pré-construído? ...........................................................40
2.1.2 Ethos e imaginário social ..................................................................................43
2.2 Os ethé de credibilidade.......................................................................................44
2.2.1 O ethos de “sério”..............................................................................................46
2.2.2 O ethos de “virtude”...........................................................................................54
2.2.3 O ethos da “competência”.................................................................................57
2.3 O discurso de justificação: uma opção adotada pelos Irmãos Villas-Bôas..........58
2.3.1 Uma razão superior...........................................................................................61
2.4 Os ethé de identificação.......................................................................................62
2.4.1 O ethos de “potência”........................................................................................63
ix
2.4.2 O ethos de “caráter”..........................................................................................64
2.4.3 O ethos de “inteligência”...................................................................................66
2.4.4 O ethos de “humanidade”..................................................................................69
2.4.5 O ethos de “chefe”.............................................................................................70
2.4.6 O ethos de “solidariedade”................................................................................72
2.5 As Cenas da Enunciação.....................................................................................74
2.6 Considerações finais deste capítulo.....................................................................78
Capítulo 3..................................................................................................................82
A IMAGEM E A SUA FUNÇÃO SEMIÓTICA NAS FOTOGRAFIAS DO LIVRO E
NAS CENAS DO FILME XINGU ..............................................................................82
3.1 A recontextualização da prática social.................................................................83
3.2 A representação por meio de metáforas .............................................................85
3.3 Mudanças nas práticas sociais.............................................................................88
Considerações finais...............................................................................................96
Referências bibliográficas.......................................................................................98
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Introdução: um pouco de condições de produção
Nesta pesquisa de mestrado, tomamos como objeto de estudo narrativas que
dizem a Expedição Roncador-Xingu. Elegemos, para constituir o arquivo de nossa
análise, duas narrativas: o livro “A Marcha para o Oeste: a epopeia da Expedição
Roncador-Xingu” e o Filme “Xingu”, que serão explorados discursivamente no
decorrer deste trabalho.
Inicialmente, traçamos um percurso histórico para apresentar o objeto de
estudo da presente pesquisa, lançando mão de outras narrativas e trabalhos
científicos para compreender e descrever o referido percurso. Na introdução deste
trabalho, baseamo-nos no texto que João Pacheco de Oliveira (1998) escreveu no
prefácio do livro “A Marcha para o Oeste: a epopeia da Expedição Roncador-Xingu”
e nos autores referenciados por ele, entre outros. Nesse texto, intitulado: “Uma
viagem ao Brasil profundo”, o autor afirma que a Expedição Roncador-Xingu (1943-
1948) fez parte do projeto nacional lançado no período do Estado-Novo (1937-1945),
chamado de “A marcha para o Oeste”, que foi um projeto do governo federal,
objetivando desenvolver o interior do Brasil, região diferenciada do litoral no que se
referia ao desenvolvimento humano e econômico. Nesta perspectiva, que visava a
uma maior integração nacional, os potenciais naturais e humanos do sertão não
poderiam ser mais “desperdiçados”, uma vez que eram considerados como
indispensáveis para a garantia da prosperidade da Nação.
Na concepção estadonovista, o quadro de estagnação econômica do oeste
brasileiro era atribuído tanto a fatores humanos quanto à existência de barreiras
naturais, que dificultavam a expansão econômica e demográfica das regiões do
interior. O governo federal assumiu a responsabilidade pelo desenvolvimento
econômico do país por meio da centralização do poder político.
Originalmente, a expressão Marcha para o Oeste designou o movimento de
expansão da fronteira econômica para o meio oeste, ocorrido nos Estados Unidos
após a Guerra da Secessão e ao longo da segunda metade do século XIX.
O arquétipo norte-americano de desenvolvimento e ocupação de espaços
interiores era muito admirado pela elite intelectual brasileira, tanto no período da
monarquia quanto no republicano. Este modelo serviu como inspiração para várias
intervenções e planos governamentais, assim como para muitas análises – Vianna
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Moog1, Cassiano Ricardo2, entre outros – sobre o futuro da nação que se formava
no sul da América. Em diversos momentos da vida política e intelectual de nosso
país, o processo de espelhamento com os Estados Unidos foi considerado
importante para pensar as particularidades brasileiras nos mais diferentes campos e
atribuir viabilidade às soluções propostas.
Apesar das semelhanças com o modelo norte-americano de ocupação do
oeste, a “marcha para o oeste” foi algo muito diverso, um evento do século XX, em
que o Estado teve um papel preponderante. Enquanto nos Estados Unidos as
populações autóctones foram derrotadas por unidades militares regulares, cujas
conquistas eram consignadas em tratados de paz, no Brasil o uso da força estava
proscrito, o Estado assumia uma tutela quanto aos indígenas, porém não lhes
reconhecia territórios específicos.
A “marcha para o oeste” designou um conjunto de ações governamentais
ligadas à Coordenação de Mobilização Econômica (CME), que funcionou como um
grande ministério, instituído pelo presidente Getúlio Vargas em 1940. A CME foi
entregue a João Alberto Lins de Barros, que tinha sido integrante do movimento
tenentista e também da Coluna Prestes, mantendo uma intensa atividade política
nas décadas de 1930 e 1940. O principal elemento desse programa era a Expedição
Roncador-Xingu (doravante vez ou outra ERX), criada em 1943, cuja direção Vargas
confiou ao tenente-coronel Flaviano Mattos Vanique, um de seus mais antigos
colaboradores e ex-chefe de sua segurança pessoal.
A Portaria nº 77 de 3 de junho de 1943, que criou a Expedição, mencionava a
necessidade de exploração do maciço central do país com vistas à integração com a
Amazônia, destacando-se a região compreendida pelas cabeceiras do Rio Xingu. É
o que podemos verificar no texto da referida Portaria, assinada pelo Ministro João
Alberto organizando a Expedição Roncador-Xingu:
O coordenador da Mobilização Econômica, usando das atribuições que lhe confere o Decreto-Lei nº 4.750 de 28 de setembro de 1942, e devidamente autorizado pelo Exmo. Senhor Presidente da República, considerando a necessidade de criar vias de comunicação com o Amazonas, através do interior do país; Considerando a necessidade de explorar e povoar o maciço central do Brasil nas regiões
1 MOOG, Clodomir Vianna. Bandeirantes e pioneiros: paralelo entre duas culturas. 10ª edição. Porto Alegre, Globo; Brasília, INL, 1973. 2 RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste: a Influência da “Bandeira” na Formação Social e Política do Brasil. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1940.
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cabeceiras do Rio Xingu, atualmente das mais desconhecidas da terra: considerando que esta exploração constitui um passo decisivo para a realização do programa do governo, sintetizado na ‘Marcha para o Oeste’, resolve:
1. Organizar a Expedição Roncador-Xingu com os seguintes objetivos: partindo da cidade de Leopoldina, sobre o Rio Araguaia, e Goiás, seguindo a direção geral de noroeste rumo a Santarém, sobre o Amazonas;
a) Procurar o ponto mais favorável sobre o Rio das Mortes e fundar um estabelecimento de colonização;
b) Continuar a marcha, galgando a zona do Roncador, e fundar no ponto mais conveniente, que ofereça condições de clima, terras próprias para agricultura e facilidade para o estabelecimento de um campo de aviação, um núcleo de civilização que servirá de ponto de apoio para o prosseguimento da expedição e exploração do território;
c) Invernar neste local, preparando o campo de aviação e iniciando trabalhos agrícolas e de construção.
2. – o segundo escalão da expedição deverá partir de Leopoldina, logo que seja atingido o objetivo da Serra do Roncador, com os elementos necessários para melhorar os caminhos e fixar no mínimo 200 famílias por ano.
3. Serão reguladas com o governo de Mato Grosso as condições da colonização e de policiamento da região.
4. O chefe da expedição deverá apresentar, dentro de oito dias, a lista do material necessário.
5. Resoluções posteriores regularão os detalhes decorrentes dos trabalhos da expedição.
(Reportagem do Jornal O Estado de São Paulo, in O Xingu dos Villas-Bôas, 2002, p. 43)
O Decreto-Lei nº 5.801, de 8 de Setembro de 1943, que considera de
interesse militar a Expedição Roncador-Xingu, pode ser lido a seguir:
O Presidente da República, em face da Exposição de Motivos apresentada pelo Ministro de Estado da Guerra e considerando a elevada finalidade com que foi organizada a Expedição Roncador-Xingu, DECRETA: Artigo único. É considerada de interesse militar, para fins de direito a Expedição Roncador-Xingu, organizada pela Coordenação da Mobilização Econômica. Rio de Janeiro, 8 de setembro de 1943, 122º da Independência e 55º da República”.
GETÚLIO VARGAS (Publicação Original: Diário Oficial da União - Seção 1 - 10/9/1943, Página 13489)
Um avião Focke-Wulf foi cedido pelo Ministério da Aeronáutica à Fundação
Brasil Central – instituição a que a Expedição estava subordinada e sobre a qual
trataremos mais adiante – e se tornou fundamental para o transporte de
mantimentos até os acampamentos formados ao longo do itinerário. O roteiro
original da ERX pode ser visualizado no mapa seguinte:
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Mapa do roteiro original da Expedição (VILLAS-BÔAS, 2012, p.29).
A expedição sairia de Leopoldina e passaria por Goiás Velho, ambas no
estado de Goiás. Porém, em razão de desacordos políticos com o governo do
Estado de Goiás, isso não ocorreu. Goiás Velho era reduto político da família Caiado
– adversária política de Pedro Ludovico, o governador na época – por isso, ele não
quis que a expedição partisse de Goiás Velho e criou restrições. Esse fato é narrado
também pelos Villas-Bôas:
Os planos da Expedição, traçados no Rio de Janeiro, falavam em Goiás Velho – antiga capital do Estado – como porta de entrada para o sertão. Dali o Araguaia seria alcançado por uma estrada precária,
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arenosa, que saindo da capital ia esbarrar em Leopoldina, na margem do rio. O traçado não era do agrado do governador Pedro Ludovico, que não queria que a área da capital velha fosse prestigiada por uma frente de trabalho ligada ao governo federal. Aquilo era reduto dos Caiado, seus opositores políticos de grande força, com quem não afinava desde a mudança da capital. Jogou todos os trunfos o governador e, prestigiado pelo governo federal, conseguiu mudar o traçado do avançamento. Em vez de ser Goiás Velho a porta de entrada para o Araguaia, ele propôs Uberlândia, embora fora do seu Estado. O Araguaia, pela nova rota, seria alcançado na junção com seu maior afluente, o rio das Garças. Ali iria se estabelecer a base da Expedição, que ficaria na margem
goiana, defronte à foz do tributário (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 38).
A expedição teve como ponto de partida a cidade de Uberlândia em Minas
Gerais e era constituída inicialmente por um “alto escalão” comandado por 23
homens e chefiado pelo coronel Flaviano de Matos Vanique. O registro clássico
dessa empreitada que evocava – de forma explícita – os antigos bandeirantes foi
produzido pelos conhecidos indigenistas Orlando e Cláudio Villas-Bôas que
participaram da vanguarda da marcha juntamente com o outro irmão, Leonardo.
Esse registro tornou-se o livro “A Marcha para o Oeste: a epopeia da Expedição
Roncador-Xingu” que analisamos neste trabalho, o que justifica nossa escolha por
investigar essa narrativa.
Os objetivos da expedição eram: instalar campos de pouso e bases militares,
abrir caminhos e picadas, construir pontes. Além da função de desbravamento do
interior, a meta era estabelecer bases de apoio radiotelegráficas e campos de pouso
que permitissem a integração das redes de comunicação nacionais. Desde 1947, a
rota aérea para Manaus passou a fazer uso das bases criadas pela ERX, que
também serviram a rotas internacionais, como as de Miami e de Lima.
Os resultados obtidos surpreendem por sua extensão – foram abertos cerca
de 1.500 quilômetros de picadas e construídos dezenove campos de pouso, dos
quais quatro converteram-se em bases militares, servindo de controle ao tráfego
aéreo brasileiro. No roteiro da Expedição, surgiram 42 vilas e cidades, que na
década de 1990 agrupariam mais de um milhão de habitantes. Neste percurso, os
expedicionários contataram dezoito povos indígenas.
Os integrantes da Expedição eram sertanejos experientes e trabalhadores
braçais, incluindo ex-garimpeiros, pequenos negociantes e posseiros. Os três irmãos
Villas-Bôas (Orlando, Cláudio e Leonardo) filhos de um advogado do interior
paulista, foram recusados em sua primeira tentativa de filiar-se à Expedição.
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Conseguiram nela ingressar somente no interior de Goiás e apresentando-se como
trabalhadores locais. À medida que a Expedição prosseguia, eles – devido aos seus
úteis conhecimentos de escrita e contabilidade – foram gradualmente colocados
como os responsáveis de campo e os interlocutores imediatos do coronel Vanique,
que não vivia diretamente nos acampamentos. Depois da morte trágica da esposa
deste último, em 1947, e de seu afastamento, Orlando passou a ser reconhecido
como chefe da Expedição.
Orlando (de camisa aberta) e o coronel Vanique (à direita) no marco de fundação de Xavantina, em
1944 (VILLAS-BÔAS, 2012)
A Expedição Roncador-Xingu não foi o único movimento de desbravamento
do interior do país na primeira metade do século XX. Em outros momentos, houve
movimentos semelhantes, como as expedições dos engenheiros e cartógrafos ou as
campanhas sanitaristas, nas quais gerações de intelectuais se dedicaram,
respectivamente, a pesquisas que procuravam desvendar as potencialidades do
país ou a erradicação das endemias que o assolavam. Trabalhos como os
elencados a seguir, abordam questões relativas a essas expedições: Lima3 trata da
relação entre intelectuais e representação geográfica da identidade nacional; Maia4
3 LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan/ IUPERJ, UCAM, 1999. 4 MAIA, João Marcelo Ehlert. A Terra como invenção: o espaço no pensamento social brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
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pesquisa o espaço no pensamento social brasileiro, enquanto Mota 5 analisa
similitudes entre a expedição científica do Instituto Oswaldo Cruz e a expedição
Roncador-Xingu. Neste último trabalho a autora afirma:
Administrada pela Fundação Brasil Central, a Expedição Roncador-Xingu deveria preencher os “brancos” nas cartas geográficas brasileiras, integrando a região centro-oeste ao norte e sul do país. Pode-se dizer que os saberes dos médicos sanitaristas de 1913 foram ressignificados trinta anos depois pelos irmãos Cláudio, Orlando e Leonardo Villas-Bôas, sertanistas lendários que não mediram esforços para assistir à população que iam encontrando
pelos caminhos da marcha para o Oeste dos anos 1940. (MOTA, 2007, p.13)
As expedições exploratórias ou científicas desempenharam um papel político
e social relevante na história do Brasil, especialmente sobre parte do território
denominada “sertão”. No fim do século XIX e em parte do XX, esse “sertão” era
concebido como região despovoada e distante, equivalente ao atraso e à barbárie,
em oposição ao litoral, compreendido como o lugar do progresso, da civilização e da
modernidade. A cartografia também contribuiu para que isso ocorresse; ainda no
começo do século XX, representava grandes espaços diferenciados nos mapas com
as expressões: “região desconhecida” ou “sertão desconhecido” (enunciado que
sugere preocupações com a defesa e/ou interesses na exploração econômica da
região, considerando que a produção de mapas era, predominantemente,
encomendada pelo Estado). Essa concepção de “sertão” como região despovoada e
desconhecida pode ser verificada no mapa dialetológico de Serafim da Silva Neto6,
referenciado no trabalho de Eliana de Almeida7:
5 MOTA, Maria Sarita. Cruzando fronteiras: a expedição científica do Instituto Oswaldo Cruz e a expedição do Roncador-Xingu. Revista Ideas – Interfaces em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, pp. 7-25, jul. – dez. 2007. 6 NETO, Serafim da Silva. História da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Presença/INL, 1986. 7 ALMEIDA, Eliana de. Língua da fronteira: uma cartografia discursiva. In: BARONAS, Roberto Leiser
(Org.). Estudos discursivos em Mato Grosso: limiares. Cuiabá, EdUFMT, 2008, p.49-58.
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O mapa acima assevera que grande parte da região centro-oeste,
diferentemente de todas as outras regiões brasileiras, era designada como um local
de falar incaracterístico. Designação que também alimentava à época o discurso de
ocupação não só econômica, mas inclusive linguística da região. O objetivo
declarado por todas as expedições era o de criar condições propícias ao
desenvolvimento do país. No caso da ERX, ao contrário do viés primordialmente
científico, o que prevalecia era a preocupação com a chamada integração nacional.
Os Villas-Bôas (2012) afirmaram que a função deles era “furar os espaços” possíveis
de serem habitados, enquanto ações bélicas eram levadas a cabo no exterior,
inclusive com a participação do Brasil na Segunda Grande Guerra. A Expedição –
que tinha sido declarada de interesse militar ainda em 8 de setembro de 1943, por
meio do Decreto-Lei de nº 5.80, já referenciado neste trabalho – demonstrava ter um
grande cuidado com a disciplina interna, a ponto de desligar vários integrantes por
condutas inadequadas, principalmente em relação aos indígenas.
“Pacificar” ou “proteger” os indígenas não fazia parte dos objetivos centrais da
Expedição. Contudo, em algumas ocasiões, como a da passagem pela região do
povo Xavante, na região que é hoje conhecida como Nova Xavantina e, quando dos
primeiros contatos com os povos isolados, a curiosidade da imprensa foi despertada
para esta virtualidade da ERX. Orlando e seus irmãos se destacaram, não somente
nas matérias propagandísticas oficiais, como também concedendo entrevistas e
participando de reportagens e documentários. Eles foram, por conta de sua lida com
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os povos indígenas, gradualmente tornando-se personalidades conhecidas da
opinião pública. Começa aqui uma história de heroicização dos Villas-Bôas.
À época, a hegemonia dos meios de comunicação de massa era
desempenhada pela cadeia dos Diários Associados, que pertenciam ao então
empresário e jornalista Assis Chateaubriand. Nesse império das comunicações se
incluía a revista O Cruzeiro, na qual figuravam os temas mais discutidos da semana.
Também no radiojornalismo, e mais tarde no telejornalismo, o Repórter Esso,
principal informativo daquela época, destacava os trabalhos que a Expedição
desenvolvia com os indígenas. Um sinal de sua grande visibilidade é o fato de que,
como escreveram os Villas-Bôas (2012), “todos os presidentes da República, com
exceção de Médici e Sarney, visitaram o Parque Nacional do Xingu ou a vanguarda
da Expedição”.
As características particulares da região e a experiência de ação dos irmãos
Villas-Bôas inspiraram a proposta de criação de um parque indígena no Alto Xingu.
Na sua elaboração trabalharam os antropólogos Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de
Oliveira e Eduardo Galvão, todos na época vinculados ao SPI (Serviço de Proteção
ao Índio). Uma comissão formada pelo vice-presidente Café Filho, pelo Marechal
Rondon, por D. Heloisa Alberto Torres (diretora do Museu Nacional), por José Maria
da Gama Malcher (então diretor do SPI), pelo médico sanitarista Noel Nutels e pelos
Irmãos Villas-Bôas apresentou ao presidente da República a proposta, que foi
implementada somente em 1961 por Jânio Quadros, adicionada a uma relação de
parques nacionais por ele criados. Alguns anos depois, o Parque foi finalmente
reconhecido como indígena. No mapa abaixo, observa-se a localização do Parque:
Localização do Parque Indígena no estado de Mato Grosso
Fonte: www.seduc.mt.gov.br/.../bom_despacho.jpg
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Segundo Pacheco de Oliveira (1998), a argumentação desenvolvida para
justificar a proposta de criação do Parque Indígena do Xingu foi considerada
inovadora em relação aos padrões de atuação precedentes do SPI, no que se refere
à atribuição de terras a comunidades indígenas no país. O autor afirma ainda que o
projeto estabelecia pela primeira vez uma conexão intrínseca entre os indígenas e
um determinado território, que deveria ser dotado de recursos ambientais que
pudessem garantir sua continuidade sociocultural. Segundo ele, não se tratava de
confinar os indígenas em espaços físicos limitados, insuficientes para a sua
existência e, algumas vezes, até estranhos ou rejeitados por eles, como
frequentemente fizera o SPI e como ainda o faria a própria FUNAI (Fundação
Nacional do Índio). No mapa abaixo, é possível verificar a distribuição de aldeias das
várias etnias que vivem no Parque:
Mapa do Parque Indígena do Xingu (Agência Estado, 2002, p. 73)
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Orlando Villas-Bôas assim o descreve: O Parque Indígena do Xingu, antes chamado de Parque Nacional do Xingu, constitui uma reserva federal, criada pelo governo brasileiro em 1961, por meio do Decreto 50.455 de 14 de abril de 1961, somando um total de cerca de 2,8 milhões de hectares, que teve a área diminuída na parte norte, em virtude da construção da BR-80 e, posteriormente, aumentada na parte sul em extensão equivalente. A região é, na maior parte, de mata alta entremeada de campos e cerrados e cortada pelos formadores do Rio Xingu e seus primeiros afluentes (...). A região do alto Xingu, com uma área aproximada de 200.000 quilômetros quadrados, compreendia entre os paralelos 10 e 14, cortada ao sul pelos formadores do Xingu e, ao norte, por este e seus afluentes Suyá-Missu, Maritsauá-Missu e Jarina, constitui, na sua configuração físico-fitogeográfica, uma extensa planície de características quase inteiramente amazônicas (...). Inserido nessa vasta região, correspondendo aproximadamente a 15% do seu total – o Parque Indígena do Xingu é ocupado, imemorialmente, por mais de uma dezena de tribos indígenas, como vêm provando as sucessivas
pesquisas de natureza arqueológica realizadas na área (VILLAS-BÔAS, Parque Indígena do Xingu in O Xingu dos Villas-Bôas, 2002, pp. 71-72).
A Constituição Federal Brasileira de 1988 reconheceu a capacidade civil dos
indígenas e a validade de suas maneiras próprias de organizar a vida e fazer-se
representar. Atualmente, numerosas organizações, lideranças e intelectuais
indígenas reivindicam o protagonismo político. Ainda há, nas várias regiões de
nosso país, muitos conflitos geralmente sangrentos por conta da demarcação de
fronteiras das reservas indígenas e da disputa de territórios com latifundiários.
Mencionaremos aqui alguns deles com o intuito de exemplificar o que ora
afirmamos.
Os indígenas da etnia Xavante até hoje lutam pela Terra Indígena (TI)
Maraiwatsede, localizada entre os municípios de São Félix do Araguaia e Alto da
Boa Vista, norte do Mato Grosso, homologada em 1998 pelo governo federal. Até o
ano de 2012, seu território de 165 mil hectares era ocupado por fazendeiros,
posseiros e assentados de programa de reforma agrária. No fim daquele ano, os
fazendeiros foram despejados por meio de um mandado judicial. A operação de
desintrusão da Terra Indígena Maraiwatsede aconteceu entre os feriados de Natal e
Ano Novo de 2012. Foi planejada para esta época como forma de escapar da
atenção da opinião pública. A justiça exigiu que houvesse um plano de desintrusão e
reassentamento das famílias que seriam retiradas do local, mas o governo fez um
plano “pro forma”, apenas para atender a exigência judicial.
21
O povo Juruna está entre as populações indígenas mais direta e
drasticamente afetadas pela construção da Usina de Belo Monte, no estado do Pará.
Eles moram no quilômetro 17 da rodovia que liga Altamira à Vitória do Xingu e nunca
tiveram seu território reconhecido. A FUNAI determinou, como condições para que a
obra fosse considerada viável, a demarcação do território e também a aquisição de
novas terras para eles. A obrigação da aquisição de terras é consequência das
condições impostas pela licença de instalação concedida para a obra, mas a Norte
Energia, responsável pela construção de Belo Monte, enviou documento ao
Ministério Público Federal (MPF) declarando que “não lhe cabe responsabilidade
pela aquisição de terras”.
A demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima, se viu
envolta numa polêmica nacional, discutida em trabalhos como o de Góis8. Embora
administrativamente concluída desde 2005, com a edição do decreto presidencial
pertinente, uma operação policial para a retirada de arrozeiros ocupantes de parte
da área foi objeto de reação violenta e acabou suspensa por decisão liminar do
Superior Tribunal Federal, em abril de 2008, ensejando uma manifestação
contundente do comandante militar da Amazônia contra a política indigenista.
Manifestações favoráveis e contrárias à demarcação se sucederam, com farta
cobertura da imprensa, geralmente produzida sem a voz dos povos indígenas. O
processo oficial de reconhecimento dessa terra indígena se arrasta há décadas.
Dezenas de pessoas (na maior parte índios, mas também não índios) já perderam
suas vidas nessa disputa.
Uma criança indígena foi queimada por madeireiros no Maranhão, na Terra
Indígena de Arariboia, em outubro de 2010. O caso teve destaque com a ajuda de
redes sociais. A criança é da etnia Awá-Guajá, que vive isolada do contato com os
brancos e divide o território com outros povos. O assassinato foi denunciado pelo
povo Tenetehara, que também vive em Arariboia. Os Tenetahara informam que
costumavam ver os Awá-Guajá em caçadas na mata, mas que deixaram de
encontrá-los depois que viram um acampamento com sinais de incêndio e com os
restos mortais da criança. O grupo acredita que os Awá tenham se dispersado para
outros pontos de Arariboia temendo novos ataques. Segundo eles, a ação de
8 GÓIS, Marco Lúcio de Souza. De Como a Raposa Encontrou a Serra do Sol: Discurso, Memória e Identidade. Araraquara, 2007. Tese (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa) – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras, 2007.
22
madeireiros na região tem feito com que os Awá migrem do centro do território para
as periferias, ficando sujeitos ao contato com a sociedade. As migrações geralmente
são motivadas pelo contato com os madeireiros que buscam a qualquer custo extrair
madeira, já que os Awá são essencialmente coletores.
A cidade de Rio Brilhante, na região sudoeste de Mato Grosso do Sul,
apareceu no início do ano de 2011 no noticiário nacional com alguma frequência
devido à disputa de terras entre fazendeiros e cerca de 140 indígenas da etnia
Guarani-Kaiowá, que vivem no acampamento conhecido como Laranjeira Ñanderu.
Em maio de 2011, as famílias que não se separaram do grupo decidiram contrariar a
ordem judicial e voltar a ocupar parte da reserva legal da mesma fazenda. Ali
permanecem até hoje, concentrados em 25 hectares, beneficiados por uma decisão
judicial que suspendeu a reintegração de posse até que a FUNAI conclua a perícia
antropológica necessária para confirmar se a área faz parte, de fato, de um
tradicional território indígena.
Em maio deste ano, em Sidrolândia, um grupo de índios da etnia Terena
ocupou parte de uma fazenda localizada na cidade de Aquidauana, a cerca de 140
quilômetros da capital sul-mato-grossense, Campo Grande. O Conselho Indigenista
Missionário (CIMI) garante que um estudo antropológico da FUNAI já reconheceu
que 33 mil hectares da região são terra indígena tradicional e estão aptos a serem
reconhecidos como parte da reserva Taunay/Ipeg. Cerca de seis mil índios terenas
vivem, desde a primeira metade do século passado, em 6 mil hectares destinados à
ocupação indígena pelo antigo SPI, órgão federal indigenista substituído pela FUNAI
em 1967. Há tempos os índios reivindicam a ampliação da Terra Indígena
Taunay/Ipeg.
Mais recentemente, temos acompanhado pelos meios de comunicação o caso
dos indígenas da etnia Kawahiva, que ainda não tinham sido contatados. A Reserva
dos Kawahiva fica na divisa do Mato Grosso e Amazonas. A área onde os índios
estão isolados fica no coração da floresta. A cidade mais próxima, Colniza, está a
150 quilômetros de distância. Esse território já foi interditado pela Justiça e só quem
tem autorização da FUNAI pode entrar. Os Kawahiva não praticam a agricultura e
são nômades. Quando a caça some, mudam de acampamento. Alguns
representantes da população da cidade de Colniza declararam não acreditar na
existência de índios naquela região e questionam sobre a possibilidade do uso
daquele território para agricultura.
23
Tendo explanado rapidamente os conflitos atuais em nosso país,
consideramos que seja fundamental nos questionarmos sobre os fatores que
possam tê-los originado. Por isso, retomamos a partir de então o contexto no qual a
Expedição Roncador-Xingu surgiu e desempenhou seu papel.
É importante recordar que a Expedição nunca pôde atuar com autonomia. Foi
instituída, ainda em 1943, outra entidade, a Fundação Brasil Central (doravante vez
ou outra FBC), à qual caberia o planejamento e a gestão das áreas atravessadas
pela Expedição, desde então a ela subordinada. A FBC tinha um caráter híbrido: era
uma entidade que operava com recursos públicos, mas possuía personalidade
jurídica de direito privado. Desenvolveu ações bastante contraditórias, sendo objeto
de inúmeras denúncias e disputas.
Meneses9 afirma que, entre as empresas criadas pela FBC, havia usinas,
transportadoras e entrepostos comerciais. Também por seu caráter de exceção, a
FBC foi dispensada da exigência do artigo 35, do Decreto-Lei 1202/39, que regulava
as concessões de terras devolutas, podendo ceder ou arrendar terras com área
superior a quinhentos hectares sem expressa autorização da presidência da
República. O engenheiro Carlos Telles10, ferrenho oponente da entidade, citava em
um livro uma área de dez milhões de hectares no Pará. Situações similares
ocorreram no Estado do Mato Grosso. Houve momentos em que a FBC parece ter
se envolvido diretamente e no comércio de minerais (tantalita e berilo) e no comércio
do cristal de rocha com os Estados Unidos. (Meneses, 2000, op. cit., ao citar
material de pesquisa realizada no CDE – Museu do Índio – FUNAI e matéria
publicada pelo jornalista Firmino Peribanez, na Revista Geográfica Americana, n.
165, em 1947).
Em várias ocasiões a FBC adotou posições contrárias às da ERX. Assim foi,
por exemplo, na proposta da Criação do Parque do Xingu, em 1955. Em 1961, a
FBC, consultada pelo presidente Jânio Quadros antes da instituição do Parque
Nacional do Xingu, sugeriu uma área dez vezes menor do que a projetada. Por fim,
em 1967 a FBC foi encampada pela Superintendência de Desenvolvimento do
9 MENESES, Maria Lucia Pires. Parque Indígena do Xingu: a construção de um território estatal.
Campinas: UNICAMP, 2000. 10 TELLES, Carlos. Retrato de João Alberto e de uma época. [s.l.]: Chavantes, 1946.
24
Centro-Oeste (SUDECO) 11 que destruiu quase toda a documentação existente no
órgão, fato que muito revoltou os Villas-Bôas.
Mesmo após o fim do regime do Estado Novo, em 1945, a ERX continuou a
avançar pelas regiões Oeste e Norte, seguindo o mesmo plano proposto inicialmente
e contando com o apoio do Governo Federal. Somente em 1948, por decisão da
FBC, foi encerrada, enquanto uma nova expedição, liderada pelos irmãos Villas-
Bôas, continuaria a empreitada, agora com o nome de Expedição Xingu-Tapajós.
Algumas pesquisas foram feitas, assim como trabalhos acadêmicos, escritos
e publicados sobre a ERX em variadas áreas do conhecimento, sobretudo daqueles
anteriormente mencionados, que abordam o evento da Expedição. A partir da
apropriação desta produção nos propomos a empreender esta pesquisa, inserida no
campo dos estudos linguístico-discursivos, que tem como objetivo geral fazer uma
análise discursiva de algumas das produções literárias e fílmicas relativas à ERX. É
com base nessas textualizações literárias e fílmicas que constituímos o nosso
arquivo de pesquisa.
Para Pêcheux (1975), o arquivo é considerado numa oposição entre os
corpora experimentais, que são produzidos por locutores postos em situação de
teste pela análise de discurso, e por corpus de arquivos, os enunciados que foram
conservados, aqueles sobre os quais trabalham os historiadores. No caso do
presente estudo, trata-se de corpus de natureza arquivista, constituído de
enunciados extraídos do arquivo de textos sobre a Expedição Roncador-Xingu.
Em Análise do Discurso, assim como em outras ciências, sobretudo, as
sociais, geralmente é o corpus que realmente define as perguntas de pesquisa, pois
ele não as precede. Mais especificamente, é o corpus, que não é um conjunto pronto
para ser transcrito, que insta o pesquisador a formular suas questões de
investigação.
Os discursos são abordados a partir de uma problemática que os constitui em um conjunto homogêneo, do qual, são, ao mesmo tempo, os próprios dados. Porém, as conclusões sobre as características desse conjunto só poderão ser interpretadas caso se formulem a priori, explicitamente, condições sobre a natureza dos dados pertinentes. A própria possibilidade de constituir um conjunto
11 A SUDECO é uma autarquia federal brasileira criada por meio da lei nº 5.365, de 1° de
dezembro de 1967, com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico da região Centro-Oeste. A SUDECO substituiu a extinta Fundação Brasil Central. Foi extinta em 1990, durante o governo Collor. Em dezembro de 2008, no governo do Presidente Lula, foi proposta a recriação da autarquia através de projeto de lei complementar 184/04, apresentado em 2004 pelo Poder Executivo à Câmara.
25
de textos em um corpus pode ser vista como decorrendo de condições sócio-históricas, que podem ser determinantes para a análise linguística, e que é necessário investigar, por sua vez, como
em espelho (Jean-Claude Beacco, in Dicionário de Análise do Discurso, 2012, p. 139. Tradução: Roberto Leiser Baronas).
A presente pesquisa, à luz da Análise do Discurso de orientação francesa,
investiga um arquivo constituído pelos textos do livro A Marcha para o Oeste: a
epopeia da Expedição Roncador-Xingu12 e do filme Xingu13, que narraram os
principais acontecimentos históricos da Expedição Roncador-Xingu. É possível
visualizar os referidos materiais sobre os quais nos debruçamos nesta pesquisa, nas
imagens a seguir.
Mobilizaremos para nossa análise discursiva, principalmente os conceitos de
Cenas da Enunciação e Ethos, propostos por Maingueneau (2006), bem como o
arcabouço teórico de Charaudeau (2013) que tece considerações sobre os aspectos
constituintes do ethos no discurso político. Também mobilizaremos os conceitos
relativos a recursos semióticos advindos de Van Leeuwen (2005) e os de
monumento e documento de Le Goff (2003). Ainda para a análise do discurso
12 VILLAS-BÔAS, Orlando e Cláudio. A Marcha para o Oeste: A Epopeia da Expedição Roncador-
Xingu. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 640 páginas. 13 Filme dirigido por Cao Hamburger. Produtora: O2 Filmes. Produtor: Fernando Meirelles, Andrea
Barata Ribeiro e Bel Berlinck. Roteiristas: Elena Soarez, Anna Muyalert e Cao Hamburger. O filme é um drama, com duração de 103 minutos.
26
cinematográfico, lançaremos mão das reflexões de Ismail Xavier (1984).
Pretendemos, assim, descrever/interpretar os recursos discursivos mobilizados nas
cenas enunciativas que constituem as referidas narrativas sobre a
acontecimentalização da Expedição, focalizando, principalmente a representação
heroica dos irmãos Villas-Bôas.
Nosso estudo objetiva investigar por meio das categorias de análise: cena da
enunciação, cena genérica, cenografia e ethos (MAINGUENEAU, 2006), as razões
pelas quais as narrativas que dizem a Expedição produzem majoritariamente
imagens eufóricas sobre o papel dos Irmãos Villas-Bôas à frente da Expedição
Roncador-Xingu. Sobre a construção de imagens eufóricas, Charaudeau (2004)
assevera:
As estratégias discursivas empregadas para manipular são sempre as mesmas: Discursos de provocação do afeto que completa o precedente, na medida em que se trata de tocar a emoção, sob seu aspecto “eufórico”, para provocar alegria e simpatia, ou “disfórico”,
para provocar temor e medo (CHARAUDEAU, 2004, p. 126).
Charaudeau baseia-se em Maingueneau, que explicita os mecanismos
linguístico-discursivos mobilizados no processo de construção de imagens, da
seguinte maneira:
O co-enunciador captado pelo ethos, envolvente e invisível, de um discurso, faz mais do que decifrar seus conteúdos. Ele é implicado em sua cenografia, participa de uma esfera na qual pode reencontrar um enunciador que, pela vocalidade de sua fala, é construído como fiador do mundo representado. (...) Por sua própria maneira de se enunciar, o discurso mostra uma regulação eufórica do sujeito que o
sustenta e do leitor que ele pretende ter (MAINGUENEAU, In: AMOSSY, Ruth. 2008, p. 90).
Diante do que foi exposto, justificamos nossa opção por analisar os referidos
materiais textuais-discursivos, a partir de duas motivações: 1) Verificar o
funcionamento dos recursos discursivos mobilizados pelos Villas-Bôas, autores do
livro “A Marcha para o Oeste: a epopeia da Expedição Roncador-Xingu” e 2)
Investigar possíveis convergências de sentido com o filme “Xingu”, uma vez que o
livro é uma das obras que inspiraram o filme. Com o desejo de averiguar como se dá
o processo de construção do ethos eufórico dos Villas-Bôas nestes materiais,
buscamos realizar a comparação das análises do livro e do filme. Pretendemos
compreender as motivações dos Irmãos ao escrever esta narrativa, bem como
27
aquelas razões nortearam uma vertente do cinema nacional a produzir o projeto
discursivo veiculado pelo filme Xingu.
Nesta perspectiva, selecionamos algumas das sequências discursivas do livro
“A Marcha para o Oeste: a epopeia da Expedição Roncador-Xingu”, que são
analisadas nesta pesquisa, evidenciando o funcionamento das categorias de análise
já mencionadas. Da mesma forma, procedemos em relação à análise das
fotografias, presentes em anexos do mesmo livro. Quanto ao filme “Xingu”,
elegemos as cenas que dialogam com as sequências discursivas coligidas do livro
(para analisá-las no capítulo 3), e com as fotografias que este suporte textual
contém (analisadas no mesmo capítulo).
O livro “A Marcha para o Oeste: a epopeia da Expedição Roncador-Xingu”,
escrito na década de 1990, quase vinte anos após a desaparição da FBC e da
Expedição, retrata o cotidiano, as motivações e angústias dos membros da
Expedição de campo. À medida que avançamos na leitura, os grandes nomes de
personagens que ficaram na história (Presidente Getúlio Vargas, Ministro João
Alberto, etc.) começam a rarear, e são substituídos por sertanejos, negros cafuzos e
mulatos. Os heróis aqui são outros – Antônio Cuca, Batom, Zé Preto, Joaquim
Come-Língua, Negro Piauí, João Mandioca, Mané Baiano, Eleutério, Abel Goiano,
Celino Muriçoca e Umbelino da Nepomucena.
A narrativa intenta mostrar que o índio foi gradualmente deixando de ser
considerado um obstáculo a ser contornado ao longo do caminho; foi transformando-
se progressivamente em objeto principal da atenção da Expedição. Surgem em cena
os indígenas – Izarari, chefe dos Kalapalo; Afukaká dos Kuikuro; Kamalive dos
Nahukuá; Capitula dos Mehinako e muitos outros.
A “epopeia”, que está no subtítulo do livro, parece referir-se a um projeto
discursivo que visa construir a narrativa de “uma cruzada de heróis anônimos e de
sertanistas abnegados, em busca de corrigir um dos mais terríveis desacertos da
nossa história” (PACHECO DE OLIVEIRA in VILLAS-BÔAS, 2012, p. 26).
De um ponto de vista estritamente histórico, o referido livro não é uma fonte
que possa ser utilizada sem os devidos cuidados. Muitas informações importantes
para compreender o fenômeno não são mencionadas; o relato nem sempre recupera
as datas e os contextos das ações apresentadas. Não é também um diário em sua
acepção mais restrita. A parte inicial (capítulos 1 a 3) e a parte final (capítulo 9 a 15)
do livro foram nitidamente escritas depois, a fim de introduzir o leitor ao diário
28
propriamente dito (capítulos 4 a 8), o qual foi claramente editado e atualizado, tendo
em vista os anos 1990. Todavia, no âmbito do discurso, são as textualizações
produzidas por um locutor a partir de determinadas condições de produção e não a
suposta verdade dada por documentos de cunho oficial que interessam ao analista.
Assim, enquanto interessa ao historiador documentos que dizem a verdade, para o
analista do discurso, interessa em que condições de produção são engendradas
pelos locutores as verdades.
A saga dos Irmãos Villas-Bôas ganhou as telas do cinema com o filme Xingu,
numa perspectiva que os eleva a heróis, e na qual a criação do Parque Nacional do
Xingu (em 1961) é retratada com o status de um marco na defesa dos direitos dos
povos indígenas. O filme, que estreou no dia 6 de abril de 2012, objetivou
“reposicionar a importância da atuação de Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas
no estabelecimento da maior reserva indígena em território brasileiro” segundo
declarou o diretor, Cao Hamburger, no press book do filme (disponível no site do
filme), em que afirma também:
Ao recontar a saga dos irmãos, Xingu apresenta a luta pela criação do parque e pela salvação de tribos inteiras que transformaram os Villas-Bôas em heróis brasileiros, traçando diálogo com problemas crônicos do processo de formação do povo brasileiro
(HAMBURGER, 2012, press book do filme Xingu, grifos nossos).
O filme mostra que nos anos 1940, os Irmãos Villas-Bôas, (Orlando, com 27
anos, Cláudio com 25, e Leonardo, 23) alistam-se na Expedição Roncador-Xingu e
partem do Estado de São Paulo para a região Centro-Oeste do Brasil. A saga
começa com a travessia do Rio das Mortes – Nova Xavantina - MT, e logo eles se
tornam chefes da empreitada, contatado povos indígenas e registrando tudo num
diário, intitulado: “A Marcha para o Oeste” – que se tornou um dos livros publicados
pelos Villas-Bôas e uma das obras que inspiraram o filme – narra este evento de
grandes proporções: uma viagem sem paralelo na história, 1.000 quilômetros de rios
percorridos, dezenove campos de pouso abertos, 42 vilas e cidades desbravadas e
dezoito tribos contatadas, além das mais de 200 crises de malária, os Irmãos
conseguem fundar o Parque Nacional do Xingu, um parque ecológico e reserva
indígena que, na época, era o maior do mundo, do tamanho de um país como a
Bélgica.
29
No filme, são narrados os acontecimentos históricos considerados mais
relevantes da expedição que os Villas-Bôas conduziram pelo interior do Brasil e que
culminou na criação do Parque. Os irmãos seguiram sertão adentro a partir de 1944,
data do início da Expedição Roncador-Xingu. Em 1952, apresentaram o projeto de
criação do parque, que só viria a se concretizar após nove anos de negociações.
Feita essa breve apresentação dos textos que constituem nosso arquivo de
pesquisa, passamos agora apresentar a maneira como organizamos a presente
dissertação.
Os resultados de nossa pesquisa estão dispostos nos três capítulos que
organizam esta dissertação. Preferimos não apresentar um capítulo específico para
a discussão do referencial teórico. Apresentamos dois capítulos de análise, um
explorando os conceitos de ethos e cenas da enunciação e outro explanando
conceitos da semiótica social. Os dois capítulos principiam por uma discussão dos
conceitos que são aplicados na análise do corpus de enunciados.
No primeiro capítulo evocamos algumas notas sobre os relatos da Expedição
Roncador-Xingu e os conceitos Documento e Monumento. Optamos por investigar,
primeiramente, as condições de produção desse projeto discursivo que narra a
“missão” dos Irmãos Villas-Bôas à luz dos referidos conceitos, discutidos,
principalmente pelo historiador francês, Jaques Le Goff (2003).
No segundo capítulo, explanamos o conceito do ethos discursivo,
perseguindo os passos do teórico francês Dominique Maingueneau, no percurso de
desenvolvimento do conceito desde que pensado por Aristóteles na retórica clássica.
Evidenciamos as mudanças engendradas pelo linguista francês ao deslocar a noção
da retórica para a análise de discurso. Descrevemos o processo de constituição do
corpus, apresentando os critérios para a seleção das sequências discursivas que
integram os capítulos de análise.
No terceiro capítulo, abordamos a imagem e a sua função semiótica nas
fotografias do livro e nas cenas do filme Xingu. Empreendemos a análise de um
conjunto de cenas do filme Xingu, que selecionamos por dialogarem com as
sequências discursivas e fotografias do livro, analisadas no capítulo anterior.
Lançamos mão do referencial teórico de Van Leeuwen para pensar o projeto
discursivo veiculado pelo referido filme. Ainda neste capítulo, estabelecemos
relações entre as análises empreendidas a partir do livro e as empreendidas com
30
base no filme e como elas corroboraram para a construção do ethos eufórico dos
Villas-Bôas.
Cumpre destacar que embora mobilizemos dispositivos teórico-analíticos
distintos (Análise de Discurso; Nova História e Semiótica Social) para dar conta de
nosso objeto de reflexão, uma vez que esses dispositivos são forjados em
epistemologias diversas, o fazemos agenciados pelo (inconcluso) desejo de tentar
dar conta de um objeto de estudo que transita entre o verbal, o imagético e o sonoro
e que se materializa significativamente na/pela história.
Nas considerações finais retomamos os principais resultados obtidos com as
análises.
31
O documento não é inócuo. É, antes de tudo, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. [...] O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias (LE GOFF, 2003, pp. 537-538).
Capítulo 1
RELATOS DA EXPEDIÇÃO RONCADOR-XINGU E
OS CONCEITOS DE DOCUMENTO E MONUMENTO
O conceito de identidade nacional perpetuada por uma memória atualizada
pela obra de arte pode ser vista por meio de diferentes matizes. Neste trabalho, ela
é discutida por meio das representações das imagens dos Irmãos Villas-Bôas
veiculadas no filme “Xingu” e no livro “A Marcha para o Oeste: a epopeia da
Expedição Roncador-Xingu”, a construção do ethos dos Irmãos e as cenas da
enunciação. Nossa escolha metodológica é a de investigar, primeiramente, as
condições de produção desse projeto discursivo que narra a “missão” dos Irmãos,
num percurso de compreensão na perspectiva de Jaques Le Goff (2003), que
discute os conceitos Documento e Monumento.
Em seguida, ainda à luz destes conceitos, verificamos as motivações pelas
quais os próprios Irmãos escreveram este e outros livros sobre a ERX, além de
averiguar como e por que um estrato do campo do cinema nacional se utilizou
desses mecanismos para propagar esse projeto discursivo, com o objetivo
ideológico de “conscientizar” a população do país acerca de uma imagem eufórica
dos Villas-Bôas.
1.1 Imagens da memória e representações do real: documento e monumento
Jaques Le Goff (2003) afirma que a memória coletiva e a sua forma científica,
a história, aplicam-se a dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos.
Ele assevera ainda que:
De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores. (LE GOFF, 2003, p. 525)
32
Nessa perspectiva, o autor defende a ideia de que estes materiais da
memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos (herança
do passado) e os documentos (escolha do historiador).
Le Goff caracteriza o monumento como material capaz de ligar-se ao poder
de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (devido ao fato
de constituir-se em um legado à memória coletiva). Quanto ao documento, sua
objetividade parece opor-se à intencionalidade do monumento. Além disso, ele
possui estatuto de testemunho escrito.
Para a escola histórica positivista do fim do século XIX e do início do século
XX, o documento tornou-se o fundamento do fato histórico, mesmo considerando-se
que resulte de uma decisão do historiador. Ainda sim, parece apresentar-se por si
mesmo como prova histórica.
No que diz respeito à identidade, de indivíduos ou coletividades, a memória
constitui um elemento fundamental que tem sido decodificado desde Grécia Antiga,
com o advento da filosofia. Conforme Le Goff (2003) e demais estudiosos da
memória arcaica e clássica (Vernant, Detienne, Wickham e Fentress) ao longo do
tempo a memória passou por um processo de transição, da divinização à laicização,
desde a criação de técnicas mnemônicas até atingir sua condição escrita e
tecnologizada. O desenvolvimento da arte da memória, que compreende sua
transição das tradições orais para sua produção moderna nas sociedades
complexas, constituiu um princípio motor no espaço da história.
A transição da “história em si mesma”, que consignava uma realidade
totalizada cujas leis históricas fundamentavam-se num valor absoluto, para a
“história da comunicação e dos meios de comunicação”, envolveu uma
transformação da mentalidade coletiva. Na unidade ontológica anterior, o homem,
concebido como reflexo de Deus, seu Criador, e parte da Grande Cadeia do Ser. O
corpo era compreendido como componente mais importante da construção de
sentido. A respeito disso, Altmann afirma que:
Esse espaço da oralidade e das coisas cedera lugar à escrita e às palavras, fundadoras da mente como nova estrutura da subjetividade moderna. Das manifestações contemporâneas da memória é possível destacar a qualidade cada vez mais híbrida e fragmentada das linguagens propiciadas pela tecnologia que influenciam
33
diretamente na relação do homem com sua realidade e com sua
constituição de memória (ALTMANN, 2005, p. 3).
Na transição da oralidade para a escrita, o ato mnemônico enquanto
comportamento narrativo incorporou uma característica fundamental de função
social, por tratar-se do compartilhamento da informação entre pessoas. Nesse
processo que abarcou o surgimento das novas tecnologias, a memória humana
ganhou em capacidade de arquivamento devido ao aporte da máquina. Por outro
lado, como explicitado por teorias frankfurtianas, tais configurações incorreram no
perigo da instrumentalização da consciência esclarecida, por intermédio de uma luta
das forças sociais pelo poder. O domínio da mente pela técnica avançara, assim,
rumo a “os esquecimentos e os silêncios da história, reveladores destes
mecanismos de manipulação da memória coletiva” (LE GOFF, 2003, p. 422).
São amplamente conhecidas as efetivas transformações causadas pela
criação e difusão dos meios de comunicação de massa na sociedade do século XX.
Como objetos essencialmente industriais, reproduzíveis e destinados às massas, a
imprensa e o cinema revolucionaram o sistema da arte, da produção à difusão.
Tecendo reflexões sobre essas transformações, Le Goff afirma que:
Um monumento é em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem. É preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos. Mais ainda do que estes múltiplos modos de abordar um documento, para que ele possa contribuir para uma história total, importa não isolar os
documentos do conjunto de monumentos de que fazem parte (LE GOFF, 2003, p. 538)
A partir desta perspectiva, exploraremos as particularidades de cada meio de
difusão do projeto discursivo relativo à ERX que nos propomos a investigar no
presente trabalho: o livro “A Marcha para o Oeste: a epopeia da Expedição
Roncador-Xingu” e o filme “Xingu”.
1.2 Condições de produção desse projeto discursivo veiculado pelo livro
Ícone da expressão da República, o próprio federalismo pressupunha a
demarcação das fronteiras internas e externas nos quadros do projeto da construção
do Brasil. Foi no âmago dessa sociedade urbana emergente que se propagou o
34
discurso científico-tecnológico como instrumento legitimador das ações do Estado
sobre toda a sociedade.
Os eruditos engajados na construção de um país moderno oscilavam entre a
tradição e a vanguarda. Aderir a uma dessas correntes significava cristalizar
determinadas visões da cidade (identificada como vanguarda) e do campo (raiz do
tradicionalismo). Instaurou-se, assim, entre a segunda metade da década de 1910 e
os primeiros anos da década de 1920, um campo de disputas pela legitimação de
diversos projetos políticos oponentes pensados pela intelectualidade brasileira que
objetivava definir um país moderno e reconstituir a identidade nacional. Entre os
vários projetos de nacionalidade, a integração do território era consenso. E,
inicialmente, foi a tônica de grandes expedições científicas e econômicas
comandadas por brasileiros como Cândido Rondon, Roquette Pinto, Noel Nutels e
os Villas-Bôas, entre outros, que colocaram em prática o estudo racional da terra e
da sociedade. Porém, havia aqueles que defendiam os interesses da incipiente
burguesia industrial, a imigração como solução para a “mestiçagem” e para o
problema da mão de obra e, portanto, não aceitavam a ideia da incorporação de
negros, índios e caboclos dos sertões à sociedade da nação.
Com o intuito de demarcar o próprio posicionamento a esse respeito, Cláudio
e Orlando Villas-Bôas escreveram diversos livros, relatando vivências da Expedição
Roncador-Xingu e depois, no Parque Indígena do Xingu. Além de A Marcha para o
Oeste: a epopeia da Expedição Roncador-Xingu (2012), que investigamos neste
trabalho, há outros como: Xingu – os índios, seus mitos (1974), Almanaque do
Sertão – histórias de visitantes, sertanejos e índios (1997) e somente de Orlando, o
livro História e Causos – Orlando Villas-Bôas.
Em horizontes mais amplos, os debates sobre o nacionalismo abarcavam o
reconhecimento dessas diferenças internas e a edificação de uma imagem positiva
do país em sintonia com o modelo de modernidade, civilidade e progresso das
nações europeias. As palavras de ordem eram desbravar os “espaços vazios”; as
terras desconhecidas ou ocupadas por índios; o “oeste”; o “sertão”; conhecer,
mapear, investigar a realidade do país. Construir e desenvolver um fazer científico e
econômico próprio sobre o país cuja história ressaltava fortes tensões sociais e
políticas.
35
1.3 Condições de produção desse projeto discursivo veiculado pelo cinema
O cinema se distingue dos demais meios de comunicação social por
caracterizar-se como um instrumento mimético que geralmente busca copiar a
realidade, alterando-a por meio de um mecanismo que articula a imagem, a palavra,
o som e o movimento.
Nesse sentido, na transformação das percepções humanas no que tange à
ordenação de sua realidade e de sua memória, a arte cinematográfica se evidencia
enquanto um veículo de imagens do real, que abrange identidade e fenômenos
socioculturais.
Conforme mencionado, para Le Goff, tanto a memória coletiva quanto a
história aplicam-se a dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos.
Assim, considerando que “não há história sem documentos” e que “há que tomar a
palavra ‘documento’ no sentido mais amplo, documento escrito, ilustrado,
transmitido, pelo som, imagem, ou de qualquer outra maneira” (LE GOFF, 2003, p.
531), verificamos, principalmente nessa era de “documentação de massa”, que o
cinema, inserido na categoria de patrimônio, compreende tanto o documento quanto
o monumento, especialmente no formato de “novo documento” que, expandido para
além dos textos tradicionais, deve ser tratado como um documento/monumento. De
fato, o cinema se situa na fronteira entre memória e história, documento e
monumento.
O discurso do gênero cinematográfico não reproduz a realidade, porém a
reconstrói a partir de uma linguagem própria, produzida em um determinado
contexto histórico. Este fato possibilita ao pesquisador social novas possibilidades
de documentação, fundamentadas em uma “história do imaginário”. Nesse gênero, o
documento recebe um estatuto mais amplo, que abrange a ilustração, a transmissão
pelo som e pela imagem. Este modo narrativo confere à arte cinematográfica um
status de patrimônio cultural. Referenciando esse status, Fernando Meirelles,
produtor do filme Xingu, declarou:
A história dos irmãos Villas-Bôas é a de heróis brasileiros que conseguiram enxergar a construção de um país além deste tipo de vantagens imediatas. Achei oportuno revermos esses heróis brasileiros, pois seus ideais, questionamentos e lutas não poderiam
ser mais contemporâneos (MEIRELLES, 2012, press book do filme Xingu).
36
Tal como o cinema, a memória coletiva é resultante de um “trabalho de
enquadramento”. Na arte cinematográfica, é por meio da projeção que esse trabalho
é revelado. Assim, o que dinamiza o cinema é a luz, que exibe uma película repleta
de enquadramentos fotográficos entremeados por intervalos, que constituem as
entrelinhas da história e seus esquecimentos, contingenciando a narrativa. Tais
enquadramentos são colocados em uma sequência narrativa, como uma corrente de
pensamento.
Da mesma forma como o trabalho de enquadramento do cinema, o da
memória referencia o material fornecido pela história. O filme é um monumento, uma
construção, assim como a memória e a história. Ele é projetado a partir de uma
montagem sequencial de enquadramentos que representam atores (sociais)
criadores de uma história que é fruto de uma cultura e de uma sociedade
específicas. Entretanto, por não ser reflexo imediato do real, o cinema evoca um
imaginário que revela crenças, intenções e manifestações humanas, construindo-se
não apenas como um produto da história, mas como um agente.
No gênero cinematográfico um conjunto de elementos se interpõe, tais como,
roteiro, direção, montagem, fotografia, música, além do contexto social e político de
produção e a recepção do público. Nesse conjunto destaca-se uma série de
variáveis que acenam todo um projeto discursivo construído em torno das imagens,
conforme as opções éticas e estéticas, daquele que sobre elas detém o poder.
Observando essas variáveis podemos constatar que o trabalho de enquadramento
depende de um trabalho especializado que selecione sua composição de forma
justificada e não arbitrária. É nesse momento que entra em cena o papel do
narrador. O filme Xingu é contado pela perspectiva das anotações do diário de
Cláudio Villas-Bôas, o irmão do meio e o mais idealista na proteção aos índios. Cao
Hamburger justifica essa opção declarando que, desde que foi convidado para
desenvolver o projeto, interessou-se pela perspectiva de Cláudio Villas-Bôas.
Quando entrei, “colei” no olhar do Cláudio de imediato. Mergulhando a partir da extensa pesquisa feita para o filme, vimos o personagem emergir como uma personalidade reflexiva, metafísica e com um incrível poder de comunhão com os índios. Do ponto de vista técnico, precisávamos mesmo de uma plataforma subjetiva que fosse dando conta das aventuras que se espalharam por quatro décadas. Então, a voz do Cláudio foi um chamado que nos atingiu e um artifício
narrativo que nos ajudou (HAMBURGER, 2012, press book do filme Xingu).
37
Assim como a memória, o cinema é uma arte partilhada. Da mesma forma
que a memória depende de retransmissão, o cinema se realiza somente por
intermédio da faculdade narrativa de seu criador. Desse modo, o cineasta, enquanto
narrador, conta histórias e vivências por meio da captação e confecção técnicas, de
lembranças. Nesse momento sua responsabilidade não está apenas em congregar
os elementos cognitivos, mas também as emoções. A esse respeito, o diretor do
filme Xingu, Cao Hamburger, explicitou as motivações de algumas escolhas:
Quando comecei a mergulhar nesse universo percebi o quanto o preconceito contra o índio no Brasil é descomunal, cruel, injusto e avassalador. Mesmo com o mito de que aqui é terra que acolhe, miscigenada, o índio é visto como povo de terceira ordem. Então me coloquei a seguinte questão: poderia fazer um filme mais contemplativo ou tentar o desafio de fazer filme sobre o universo de um povo desprezado pela sociedade brasileira buscando um grande público. A questão indígena no Brasil é barra pesada e a
discriminação se dá em todos os níveis (HAMBURGER, 2012, press book do filme Xingu).
A natureza sígnica da obra cinematográfica é essencialmente comunicativa.
Ela congrega uma série de elementos, que abrangem oposições e diálogos,
polaridades e ordenamentos que lhe atribuem uma posição que nunca é neutra, mas
constituída de valores, potências, lugares, coisas, palavras e imagens constituídos
de retórica, imaginação, técnica e simbolismos que empreendem um documento e
um monumento ao mesmo tempo composto de passado e presente, testemunho e
objetividade, de esquecimento e memória, constantemente compartilhados
coletivamente. Por esse motivo, Le Goff afirma:
O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento
enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo (LE GOFF, 2003, p. 536).
Com base em Le Goff, entendemos que o livro e o filme, que constituem o
arquivo de nossa pesquisa, extrapolam a ideia de simples documento e se
apresentam como monumentos: um lugar mesmo de produção, circulação e
perenização de verdades sobre a trajetória heroica dos Villas-Bôas à frente da ERX.
Ademais, entendemos que os supracitados materiais textuais além e aquém de
artefatos de memória, visto que heroicizam os Villas Bôas, são elementos que
agenciam os indivíduos a interpretar tais atores sociais, única e tão somente, na
38
perspectiva eufórica. No capítulo seguinte, verificaremos como tal agenciamento se
engendra discursivamente.
39
Não se trata, aqui, de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele, e sim, ao contrário, de mantê-lo em sua coerência, fazê-lo surgir na complexidade que lhe é própria (FOUCAULT, 2004, p. 65).
Capítulo 2
OS ETHÉ DOS IRMÃOS VILLAS-BÔAS NA ENUNCIAÇÃO RELATIVA À EXPEDIÇÃO RONCADOR-XINGU
Tendo delimitado o espaço discursivo e definido os objetivos, fizemos uma
investigação detalhada do livro A Marcha para o Oeste: a epopeia da Expedição
Roncador-Xingu e do filme Xingu, com o intuito de recortar as sequências
discursivas (SD) com que formamos o corpus a ser analisado neste capítulo.
Percorremos o arquivo de textos, buscando enunciados que significassem a
construção eufórica da imagem dos Irmãos Villas-Bôas. Na análise dos mesmos,
mobilizamos o arcabouço teórico de Charaudeau (2013) que tece considerações
sobre os aspectos constituintes do ethos no discurso político.
Ao explanar o conceito de cenografia discursiva, conforme a concepção de
Maingueneau (1995) referenciamos também os conceitos de cronografia e
topografia para pensar o interdiscurso e as condições de produção do enunciado da
construção da heroicidade dos Villas-Bôas e de justificativa da sua prática na ERX,
projeto do governo federal de fomento ao progresso no Brasil Central, inspirado no
modelo norte-americano de desenvolvimento.
40
2.1 Sobre a noção “ethos”
O conceito de ethos vem sendo discutido há muito tempo, considerando-se
que remonta à Antiguidade Clássica. Aristóteles propôs a decomposição dos meios
discursivos que influenciam a assistência em três categorias: primeiramente o logos,
pertencente ao domínio da razão e possibilita convencer; em seguida, o ethos e o
pathos, que concernem ao domínio da emoção e tornam possível emocionar. Tanto
o ethos quanto o pathos participam, então, dessas “demonstrações psicológicas”
que não correspondem, como recorda Barthes (1970, p. 211), ao estado psicológico
real do orador ou ao da assistência, mas “ao que o público crê que os outros têm em
mente”.
Porém, se o pathos volta-se para o auditório, o ethos volta-se para o orador.
Aristóteles (2005) afirma que, enquanto teknê, ele é o que faz o orador parecer
“digno de fé”, mostrar-se fidedigno ao realizar prova de ponderação (a phronésis), de
simplicidade sincera (a arétê), de amabilidade (a eunóia). As referidas categorias da
retórica, desconsideradas por um tempo e escondidas a partir do século XVIII por
uma crítica literária que a trocou pela estilística, reapareceram recentemente,
especialmente com o incremento dos estudos relativos à argumentação
(desenvolvidos por Perelman, Toulmin, Ducrot, Plantin, Eggs, etc.). Dentre essas
categorias, a noção de ethos foi retomada e discutida por alguns pesquisadores das
mais variadas ciências da linguagem (Ducrot, 1987; Maingueneau, 1993, 2006,
2008, também por outros: Platin, Amossy, Adam, Kerbrat-Orecchioni). Nesta
pesquisa, nós a retomamos, inscrevendo-nos na filiação discursiva, porém tentamos
refletir sobre dois pontos de sua definição que são objetos de debates: (1) enquanto
construção de imagem de si, o ethos liga-se à pessoa real que fala (o locutor) ou à
pessoa como ser que fala (o enunciador)? (2) A questão da imagem de si diz
respeito somente ao indivíduo ou pode relacionar-se a um grupo de indivíduos?
2.1.1 O ethos, construído ou pré-construído?
No que se refere ao primeiro ponto, há duas posições que existem desde a
Antiguidade Clássica. Na filiação de Isócrates, Cícero e dos retóricos da Idade
Clássica, há aqueles para os quais o ethos é um “dado preexistente ao discurso”,
pois, para eles, parece mais virtuoso, sincero e amável quando se é, de fato,
virtuoso, sincero e amável. Já na filiação de Aristóteles, para quem “o orador deve
41
mostrar [seus traços de personalidade] ao auditório (pouco importando sua
sinceridade) para causar boa impressão” (BARTHES, 1970, p. 212), há os adeptos
de uma concepção discursiva que inscrevem o ethos no ato de enunciação, isto é,
no próprio dizer do sujeito que fala. Essa última posição é adotada pelos analistas
do discurso, que situam o ethos na enunciação mesmo do ato de linguagem, naquilo
que o sujeito falante faz ver e entender. “É enquanto fonte de enunciação que ele [o
locutor] se vê transvestido de certos caracteres que, por tabela, tornam sua
enunciação aceitável ou refutável” (DUCROT, 1987, p. 201); “O ethos está [...] ligado
ao exercício da palavra, ao papel a que corresponde seu discurso, e não ao
indivíduo ‘real’, apreendido independentemente de sua atividade oratória”
(MAINGUENEAU, 1993, p. 138).
Desse antagonismo entre os adeptos de um ethos prévio, que poderia ser
denominado pré-discursivo, e os de um ethos discursivo, emerge a questão do
sujeito linguageiro: trata-se apenas um ser feito de discurso, somente um ser social
empírico ou ambos? E, nesse caso, um teria precedência sobre o outro? Pensamos
que para abordar o ethos é preciso considerar esses dois aspectos. O ethos, sendo
imagem associada àquele que fala, no entanto, não é uma propriedade exclusiva
dele; ele é, sobretudo, a imagem de que se transveste o interlocutor, a partir daquilo
que diz. O ethos relaciona-se ao encontro dos olhares: olhar do outro sobre aquele
que fala, e o olhar daquele que fala sobre a maneira como ele pensa que o outro o
vê. Ora, para erigir a imagem do sujeito que fala, esse outro se baseia
simultaneamente nos dados preexistentes ao discurso – o que ele sabe a priori
sobre locutor – e nos dados trazidos pelo próprio ato de linguagem, no momento
mesmo de sua enunciação.
Para apoiar essa posição, é necessário retornar à questão da identidade do
sujeito falante decomposta em duas vertentes. Na primeira, o sujeito manifesta-se
com sua identidade social de locutor; é ela que lhe concede direito à palavra e que
fundamenta sua legitimidade de ser comunicante em função do estatuto e do papel
que lhe são conferidos pela situação de comunicação. Em sua segunda vertente, o
sujeito constrói para si uma figura daquele que enuncia, uma identidade discursiva
de enunciador que se detém aos papéis que ele se atribui em seu ato de
enunciação, resultante das contingências da situação de comunicação que se impõe
a ele e das estratégias que ele opta por seguir. O sujeito revela-se, então, ao olhar
do outro, com uma identidade psicológica e social que lhe é conferida, e, ao mesmo
42
tempo, mostra-se mediante a identidade discursiva que ele constrói para si. O
sentido difundido por nossas palavras depende, simultaneamente, daquilo que
somos e daquilo que dizemos. O ethos resulta dessa dupla identidade, mas ele
acaba se fundindo em uma única identificação. Efetivamente, quem pode crer que
quando os sujeitos falam, não se recebe o que eles dizem pelo que eles são? Como
admitir que a imagem que o sujeito falante faz dele próprio não corresponderia ao
que ele é, como indivíduo? Nesse sentido, Charaudeau afirma que:
Este é um dos menores paradoxos da comunicação humana: sabemos que todo sujeito que fala pode jogar com máscaras, ocultando o que ele é pelo que diz, e, ao mesmo tempo, o interpretamos como se o que ele dissesse devesse necessariamente coincidir com o que ele é. Há uma espécie de desejo de essencialização, tanto da parte do locutor quanto da do interlocutor,
nessa busca de sentido do discurso (CHARAUDEAU, 2013, p. 116).
Barthes, por sua vez, define o ethos afirmando que o orador que enuncia diz:
“Sou isto, não sou aquilo” (BARTHES, 1970, p.212). Mas não esclarece que esse
intuito (subentendido) do orador que busca significar o que ele deseja ser para o
outro é um: “Eu sou o que desejo ser, sendo efetivamente o que digo que sou”. A
identidade discursiva e a identidade social fundem-se no ethos. Isso não significa
que o sujeito que fala desconheceria a possibilidade de poder jogar com sua
identidade social e com sua identidade discursiva e que ele se privaria de fazê-lo;
nem que o interlocutor (ou o leitor) seria sempre “pego na armadilha” da identidade
discursiva, não visualizando a identidade social escondida atrás dela; nem que, ao
contrário, o interlocutor interpretaria o discurso recebido somente em função da
identidade social que conheceu, sendo sensível ao que é dito. Faz-se necessário
acrescentar que o ethos não é totalmente voluntário (grande parte dele não é
consciente); também não coincide necessariamente com o que o destinatário
percebe, reconstruído ou construído; o destinatário pode perfeitamente construir um
ethos do locutor que este não desejou, como ocorre frequentemente. O ethos
encontra-se no centro deste paradoxo no qual se baseia a filosofia contemporânea,
que, mesmo ciente de que o sujeito não é um (Nietzsche), que ele é dividido
(Lacan), pretende fazer como se ele fosse efetivamente um todo. Trata-se de uma
concepção idealizada da existência do sujeito, que pode ser aplicada ao sujeito do
discurso e que (é a nossa hipótese) guia a comunicação social na qual se constrói o
ethos.
43
2.1.2 Ethos e imaginário social
É preciso considerar, no entanto, que a questão da identidade do sujeito é
influenciada por representações sociais: o sujeito falante não possui outra realidade
além daquela consentida pelas representações que circulam em dado grupo social e
que se configuram como “imaginários sociodiscursivos”. Quando Maingueneau
retoma a noção de “tom” – proposta por Barthes a partir da noção de “ares” de
Aristóteles (BARTHES, 1970, p. 212) – e propõe “uma concepção mais ‘encarnada’
do ethos”, como atributo do que ele chama “fiador” de um “caráter” e de uma
“corporalidade” (MAINGUENEAU, 2011, p. 18) subjetiva, trata-se também de
representação social, uma vez que a visão que uma sociedade tem do corpo
depende dos imaginários coletivos que ela constrói para si. Concluímos que o ethos
apoia-se em um duplo imaginário corporal e moral ou, dito de outra forma, é um
imaginário que se “corporifica”, no exato momento em que o um sujeito enuncia.
Dessa maneira, encontra-se elucidado o segundo ponto levantado
anteriormente, referente ao ethos coletivo. Na medida em que o ethos está
associado à percepção das representações sociais que tendem a essencializar essa
visão, ele pode referir-se tanto a indivíduos quanto a grupos. Em última instância, os
grupos avaliam os outros grupos baseando-se em um traço de sua identidade. Em
decorrência de sua filiação, os indivíduos do grupo partilham com os outros
membros desse mesmo grupo de caracteres similares, que, quando vistos numa
perspectiva exterior a esse contexto, causam a impressão de que esse grupo
representa uma entidade homogênea. Uma vez mais, ele é reduzido à sua essência
por um olhar exterior, fato que engendra estereótipos – formas fragmentadas e, ao
mesmo tempo, solidificadas, de imaginários sociais – como os que dizem que “os
ingleses são fleumáticos, os italianos falastrões, os alemães austeros, etc.” O ethos
coletivo obedece a uma visão global, mas diversamente do ethos singular, ele é
construído apenas pela atribuição apriorística de uma identidade que emana de uma
opinião coletiva em relação a outro grupo.
O ethos constitui o resultado de uma encenação sociolinguageira que está
sujeita aos julgamentos cruzados que os indivíduos de um grupo social fazem uns
dos outros enquanto agem e falam. “As ideias são construídas por maneiras de dizer
44
que passam por maneiras de ser” afirma Maingueneau 14 . É possível verificar
também os diferentes tipos de ethos definidos por Maingueneau (2008), que os
classifica em: “ethos efetivo”, “ethos pré-discursivo” e “ethos discursivo”, “ethos dito”
e “ethos mostrado”. É importante evidenciar que a recíproca (que diz que as
maneiras de ser comandam as maneiras de dizer, portanto, as ideias) é verdadeira.
Não é possível afirmar que existam marcas específicas do ethos, tanto pelos
diversos tipos de comportamento do sujeito (o tom da voz, os gestos e as maneiras
de falar) quanto pelo conteúdo de suas propostas, ele mais transparece do que
aparece. Não se pode separar o ethos das ideias, pois a maneira de apresentá-las
tem o poder de construir imagens. Desse ponto de vista, os Irmãos Villas-Bôas
construíram seus ethé tanto por seu porte físico, retratado em vasto arquivo
fotográfico, quanto por suas ideias. Ambos são veiculados no livro A Marcha para o
Oeste: a epopeia da Expedição Roncador-Xingu, cujo conteúdo é conforme a
imagem que pretenderam conferir-se. Poderemos observar essa construção no
referido livro e no filme Xingu, que nos propomos a analisar neste trabalho.
Entendemos com base em Maingueneau que é necessário que o locutor
possua, ao mesmo tempo, credibilidade e capacidade de ser suporte de
identificação à sua pessoa. Ele deve ser crível porque não há sujeito sem que se
possa crer em seu poder de fazer; precisa ser suporte de identificação porque para
aderir às suas ideias é preciso aderir à sua pessoa. Mediante estes pressupostos,
Charaudeau (2013) desenvolve as figuras identitárias do discurso, que se
reagrupam em duas grandes categorias de ethos: o ethos de credibilidade e o ethos
de identificação. Os primeiros são fundados em um discurso da razão; os segundos,
em um discurso do afeto. Esta classificação de Charaudeau refere-se ao discurso
político. Acreditamos, não sem complexidade, aplicar-se à análise que pretendemos
empreender nesta pesquisa, uma vez que os Villas-Bôas foram pessoas públicas,
envolvidas fortemente em questões políticas. Para além disso, o político é
constitutivo de todo o discurso.
2.2 Os ethé de credibilidade
A legitimidade, a credibilidade não é uma qualidade vinculada à identidade
social do sujeito; a esse respeito assevera Charaudeau,
14 Conferência proferida após o IV Seminário Cenas da Enunciação, em minicurso no dia 20 de julho
de 2012, na UFSCar.
45
Ela é o resultado da construção de uma identidade discursiva pelo sujeito falante, realizada de maneira que os outros sejam conduzidos a julgá-lo digno de crédito. O sujeito que fala deve, portanto, tentar responder à seguinte pergunta: como fazer para ser aceito? Para isso, ele próprio deve fabricar uma imagem que corresponda a essa
qualidade (CHARAUDEAU, 2013, p. 119).
Em linhas gerais, um indivíduo pode ser considerado digno de crédito se
houver condições de averiguar que aquilo que ele diz corresponde ao que ele pensa
(condição de sinceridade), que ele põe em prática o que afirma (condição de
desempenho), e que o que ele anuncia e aplica é seguido de efeito (condição de
eficácia). Quando ocorre o oposto, revela-se mentiroso, incapaz de honrar suas
promessas ou de realizar os objetivos perseguidos; o sujeito é desacreditado. Essas
condições variam em importância conforme o que está envolvido em cada situação
de comunicação. No discurso das mídias de informação referenciadas por este
trabalho, o sujeito falante necessita de credibilidade, uma vez que o desafio dessa
situação é transmitir uma informação clara, aceita como tal por um público que
espera que o acontecimento reportado seja autêntico e que a explicação dada seja
honesta (condição de transparência). É o que ocorre no livro e no filme que são
objeto de pesquisa no presente trabalho: verificamos que tais condições são
requeridas para compor o projeto discursivo que veiculam. Assim como mostra a
seguinte sequência:
A extraordinária força e poder de sedução [do livro] decorrem de um fato elementar – a autenticidade de seus narradores, que falam do alto de uma convivência exemplar de mais de três décadas com os índios e com os sertões. Não há como questionar homens que se adoentaram de malária mais de 250 vezes, que escaparam do esturro da onça e dos ataques dos índios isolados. Homens que resistiram dia e noite aos carrapatos, às muriçocas, aos piuns, às mamangabas e aos maribondos, às formigas-de-fogo e às cortadeiras, e às abelhas lambe-olhos. Que abriram caminhos e construíram campos de pouso – o que já era muito! – e viabilizaram o surgimento de uma região intensamente povoada e, ao cabo de tudo, conseguiram criar e manter uma janela para
o “Brasil do Descobrimento” (PACHECO DE OLIVEIRA, João. Prefácio: Uma viagem ao Brasil profundo, p. 24, in A Marcha para o Oeste: A Epopeia da Expedição Roncador-Xingu, 2012, grifos nossos).
A sequência discursiva acima foi extraída do prefácio do livro, no qual João
Pacheco de Oliveira tece considerações a respeito de Orlando e Cláudio Villas-
Bôas, autores do livro. Observando-se, sobretudo os trechos destacados da
46
sequência, é possível constatar a construção da credibilidade dos Villas-Bôas,
cumprindo as condições de averiguação daquilo que eles dizem, em consonância
com o que pensam (condição de sinceridade, expressa na expressão: “autenticidade
de seus narradores”), que eles põem em prática o que afirmam (condição de
desempenho, explicitada em: “que falam do alto de uma convivência exemplar de
mais de três décadas com os índios e com os sertões”), e ainda daquela em que
aquilo que anunciam e aplicam é seguido de efeito (condição de eficácia),
evidenciada em: “Não há como questionar homens [...] que abriram caminhos e
construíram campos de pouso – o que já era muito! – e viabilizaram o surgimento de
uma região intensamente povoada e, ao cabo de tudo, conseguiram criar e manter
uma janela para o ‘Brasil do Descobrimento’”.
Ainda conforme Charaudeau (2013), para responder a essas condições, o
sujeito procura construir para si o ethos de sério, de virtuoso e de competente.
2.2.1 O ethos de “sério”
O ethos de “sério” depende, evidentemente, das representações que cada
grupo social faz de quem é sério e de quem não é. Esse ethos é construído com a
ajuda de diversos índices, cuja ocorrência aqui demonstramos no material
fotográfico do livro “A Marcha Para o Oeste: A epopeia da Expedição Roncador
Xingu” colaborando com a construção do ethos dos Irmãos Villas-Bôas.
47
Recursos semióticos traduzidos em índices corporais e mímicos: certa rigidez
na postura do corpo, uma expressão raramente sorridente na face.
Na maior parte das fotografias que constituem o arquivo do livro, os Irmãos
Villas-Bôas aparecem como na foto acima: sisudos e barbudos (embora ainda
jovens, na primeira década decorrida do início da Expedição, conforme a data da
foto). Quanto à postura corporal, predominam fotografias como esta, em que estão
de pé. O ethos de “sério” é construído com a ajuda dos índices sisudez, sobriedade,
responsabilidade e prontidão, buscando corresponder assim, às representações
que, à época, se fazia de sertanistas/indigenistas sérios.
Recursos semióticos traduzidos em índices que demonstram grande energia
e capacidade de trabalho, particularmente junto àqueles que sofrem.
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Uma das primeiras fotos com os índios Kalapalo: Cláudio, Orlando e Leonardo Villas-Bôas com o cacique Izarari Kalapalo na margem do Rio Kuluene, Alto Xingu, 1946.
Orlando aplica vacina no índio Mengrire, da etnia Krenakore (Panará) criado pelos índios Txucarramãe (Kayapó). Arquivo Agência Estado.
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As fotografias anteriores são representativas em relação à utilização de
recursos semióticos traduzidos em índices que demonstram grande energia e
capacidade de trabalho. As duas primeiras retratam os Irmãos no trabalho braçal,
atuando com trabalhadores da Expedição no transporte de animais de carga, e com
indígenas, na abertura de um dos campos de pouso (respectivamente na primeira e
segunda fotografia). As duas últimas evidenciam a presença e assistência àqueles
que sofrem, exemplificados pelos indígenas. O diálogo respeitoso com os líderes
das etnias indígenas contatadas e o cuidado com a saúde dos indígenas (aspectos
ressaltados na narrativa do livro) são representados nesses materiais icônicos.
Em sua vida privada, não deixar que existam suspeitas de infidelidade
conjugal ou de indiferença em relação à sua família.
Arlinda e Agnello Villas-Bôas com os filhos, em 1924: à esquerda, Erasmo, Acrísio, Lourdes, Cláudio, Leonardo e Álvaro (no colo); à direita, Orlando e Nelson.
A fotografia recorda o núcleo familiar original dos Irmãos Villas-Bôas. Nas
várias narrativas escritas por Orlando, ele faz questão de recordar as origens da
família Villas-Bôas. É emblemático o cuidado com sua imagem, no que diz respeito a
sua vida privada, para não deixar que existam suspeitas de indiferença em relação à
51
sua família. Por isso parece importante para ele narrar sua história familiar,
explicitando os valores com os quais os Irmãos foram educados, a dedicação à
família e a trajetória que fizeram até chegarem a ERX. É constante, nas narrativas
escritas pelos Irmãos, a seguinte história, por vezes retomada com algumas poucas
alterações:
Viemos do interior paulista para a capital, pai, mãe com malas, bagagem e mais cinco irmãos. O pai, Agnello, advogado, havia sido convocado por um escritório do ramo [...] Nós três (Orlando, Cláudio e Leonardo) passamos a adolescência em fazendas que, naquela época, se davam ao luxo de ter campos, cerrados e matas [...] Ainda na adolescência, lemos Os Sertões, de Euclides da Cunha, Viagem ao Araguaia, de Couto Magalhães, bem como livros sobre os bandeirantes Fernão Dias Paes Leme e Raposo Tavares [...] O Pai, Agnello, nascido em 1882 em Campanha, Minas Gerais, era um homem apegado a terra. Conseguia entremear a advocacia, o apego à maçonaria, em que foi grau 33, ao amanho da terra no plantio de café [...] A mãe, Arlinda, nasceu em Itapira em 1889. Eu, Orlando, o escriba, nasci em Santa Cruz do Rio Pardo em 1914; Cláudio e Leonardo em Botucatu, respectivamente em 1916 e 1918. Álvaro e Ana Therezinha, os caçulas da família, nasceram em São Paulo em 1923 e 1924. Nossos pais tiveram ao todo onze filhos, dois dos quais falecidos ainda crianças no interior [...] No início da década de 1940, uma traiçoeira hemiplegia afetou o pai de todos. A mudança para São Paulo, em certo sentido, já se dera em decorrência do mal. Após a vinda para a capital do Estado, todos os bens que tínhamos no interior foram rapidamente vendidos. Começa aí a via crucis da família. Aqueles que estudavam tiveram de abandonar os estudos e arranjar um emprego para fazer frente aos dispêndios do dia-a-dia. Todo o esforço, porém, foi embalde. Em 1941, faleceu a mãe, Arlinda. O pai, Agnello, não suportou a perda. Após cinco meses passados em um quarto, chamou os poucos que lá estavam, mandou que se fechasse a porta do quarto e tranquilamente murmurou: “Agora eu morro...”, cumprindo sua prédica [...] A cidade de São Paulo já não nos prendia. Mudamos para uma pensão na Rua Bento Freitas, esquina com a [Rua] Marquês de Itu. Cláudio trabalhava na telefônica, Leonardo numa firma importadora, e eu (Orlando) na Esso. Pregamos um enorme mapa do Brasil numa das paredes do quarto da pensão e nele viajávamos toda noite quando voltávamos
do trabalho (VILLAS-BÔAS, Orlando. Rompendo Fronteiras, p. 147, in O Xingu dos Villas-Bôas, 2002).
Como se pode constatar, trata-se de um resumo autobiográfico, por meio do
qual Orlando pretendeu atestar sua dedicação à família, prevenindo suspeitas de
negligência em relação a sua família. Orlando afirma que ele e os irmãos Cláudio e
Leonardo tinham cuidado dos pais até que estes falecessem. Somente depois disso,
os três viveram juntos e decidiram ingressar na Expedição Roncador-Xingu.
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Orlando com os filhos Noel (no colo) e Orlando Filho (de pé). Aldeia Yawalapiti, Alto Xingu, 1981.
As fotografias acima mostram Orlando e sua esposa Marina e com seus filhos
Noel e Orlando Filho. A história deles é contada brevemente num trecho do livro “O
Xingu dos Villas-Bôas”:
Orlando Villas-Bôas e sua mulher, a enfermeira Marina Villas-Bôas, conheceram-se em um consultório médico, quando ele a convidou para a Expedição, que precisava de uma enfermeira [...] Marina chegou ao parque em 1963 e logo no início enfrentou uma epidemia de gripe, além de cuidar de muitos casos de malária [...] Depois de seis anos juntos no acampamento, o casal resolveu que era hora de trocar alianças. Em 21 de dezembro de 1969, casaram-se [...] A
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paixão mútua e pelos índios fez o casal pensar em instalar-se melhor. Antes abrigados no acampamento comum, Orlando e Marina construíram uma casa, que acabou virando o quartel-general da expedição. Lá se reuniam pesquisadores do mundo todo [...] O casal ficou lá até 1970. Marina chegou grávida a São Paulo. No dia 30 de novembro do mesmo ano, nasceu Orlando Villas-Bôas Filho. Depois do parto da criança, retornaram a casa no Xingu [...] Noel Villas-Bôas [o filho mais novo] nasceu em 23 de abril de 1975. Seu nome foi uma homenagem ao médico sanitarista Noel Nutels (1913-1973), que participou da Expedição Roncador-Xingu, criou o serviço de Unidades Sanitárias Aéreas e viveu entre índios praticamente toda a
vida (CAMARGO, Lúcia Helena de. Orlando: Vida em Família. p. 30, in O Xingu dos Villas-Bôas, 2002).
As fotografias constituem o acervo pessoal de Orlando, atestando seus
cuidados para com seu núcleo familiar, formado após seu casamento. Corroboram,
portanto seu ethos de sério.
O ethos de sério se constrói igualmente com a ajuda de declarações a
respeito de si mesmo, sobre as ideias que guiam o locutor, como na seguinte
sequência discursiva:
Fomos fazer um reconhecimento até bem à frente. Na volta, tivemos de contornar bastante pela esquerda, devido ao fogo no rumo da picada. De repente, ouvimos um tiroteio, à direita. Corremos para lá certos de que era um incidente com índios. Temos confiança na nossa gente, mas quando estão perto de nós. Distantes, não podemos saber como reagirão num encontro. Por alguns, pomos a mão no fogo, mas há outros que se descontrolam
completamente. O tal de Carvão é um deles (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 94, grifos nossos).
Nesta SD, os Villas-Bôas narram um episódio ocorrido no início da ERX: a
identificação de um determinado terreno, no qual suspeitam de um confronto entre
os trabalhadores da Expedição e os indígenas daquela região. Fazem declarações a
respeito das próprias impressões em: “Temos confiança na nossa gente, mas
quando estão perto de nós”. Falam sobre as ideias que os norteiam, nos trechos:
“Distantes, não podemos saber como reagirão num encontro” / “Por alguns, pomos
a mão no fogo, mas há outros que se descontrolam completamente”. Destacamos os
verbos e o pronome em primeira pessoa, que atestam a natureza subjetiva dessas
declarações.
Existe, porém, um limite para que essa imagem de sério não seja
compreendida de forma negativa. O limite é o da austeridade. De fato, não é
necessário que o indivíduo sério passe por demasiadamente austero, pois assim ele
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se arriscaria a perder seu capital de simpatia junto ao público. Também não é
preciso que a seriedade – que não deve colidir com a atenção a ser dada aos outros
– seja interpretada como um sinal de distância, que lhe daria uma imagem de
pessoa fria ou altiva, que não tem compaixão pelos sofrimentos daqueles que nada
têm e que é indiferente às dificuldades que experimentam os cidadãos em suas
vidas cotidianas. É possível constatar as tentativas feitas pelos Villas-Bôas, no
sentido de equilibrar essas dimensões constitutivas de sua imagem, entremeando a
narrativa materializada pelo livro com fotos de Orlando com sua mulher e filhos (nas
quais ele aparece com semblante sereno e sorrindo) e com SD’s em tom mais
ameno e/ou até espirituoso, que exibiremos mais adiante.
2.2.2 O ethos de “virtude”
Esse ethos requer que o interlocutor comprove sinceridade e fidelidade, a que
se deve adicionar uma imagem de honestidade pessoal.
Algumas vezes, esses atos são especificados em declarações sobre si
mesmos, conforme exemplificado acima. Às vezes, são os colaboradores de um
interlocutor que o descrevem com essa qualidade. As SD’s extraídas das
“Apresentações” (textos que compõe a abertura do livro “A Marcha para o Oeste: a
epopeia da Expedição Roncador-Xingu”) exemplificam essa construção:
Os brasileiros (...) não podem ignorar os ideais que estão enlaçados com a história do Parque Nacional do Xingu, nem podem desconhecer a vida-saga dos Villas-Bôas (...) cuja devoção à causa da redenção dos índios e do desenvolvimento do nosso Oeste é matéria que deve perdurar no nosso imaginário coletivo. (...) neles tudo tem sido amor pela causa dos nossos semelhantes, com uma compreensão profunda do amor á natureza não violentada e de esperança de um futuro menos triste para esta nossa sofrida
raça, digo gênero, digo espécie, digo ser, o humano (HOUAISS, Antonio. “Aos nobres ideais”, in A Marcha para o Oeste: A Epopeia da Expedição Roncador-Xingu, 2012, p. 9, grifos nossos).
Orlando, Cláudio e Leonardo compuseram as vidas mais extraordinárias e belas de que tenho notícia. Pequenos-burqueses paulistas, condenados a vidinhas burocráticas medíocres, saltaram delas para aventuras tão ousadas e generosas que seriam impensáveis, se eles não as tivessem vivido. Só se compara à de Rondon a façanha desses três irmãos que se meteram Brasil adentro por matas e campos indevassados ao encontro de índios intocados pela civilização. (...). Entre seus feitos assinala-se a coragem com que, arriscando suas vidas, atraíram diversos povos indígenas à
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civilização. Triste coisa para estes povos. Menos má, porém, porque sua pacificação foi conduzida pelos Villas-Bôas, que souberam defendê-los, garantindo-lhes uma sobrevivência melhor do que a dos
outros povos chamados ao nosso convívio (RIBEIRO, Darcy. “Os irmãos Villas-Bôas”, in A Marcha para o Oeste: A Epopeia da Expedição Roncador-Xingu, 2012, p. 1, grifos nossos).
Os Villas-Bôas tiveram uma visão fundamentada na esperança de poder devolver ao índio o direito de existir dentro das raízes de sua cultura milenar: assegurar um espaço onde as mudanças – inevitáveis e inexoráveis – ocorressem gradativamente, como que auto-estimuladas, sem serem impostas, sem lesar demais
(BISILLIAT, Maureen. “Como vais, Xingu?”, in A Marcha para o Oeste: A Epopeia da Expedição Roncador-Xingu, 2012, p. 16, grifos nossos).
Nos trechos destacados, podemos observar os colaboradores/admiradores
dos Villas-Bôas descrevendo-os como virtuosos, intentando comprovar a sinceridade
e fidelidade das intenções dos Irmãos, no trabalho por eles realizado, assim como a
imagem de honestidade pessoal deles. Antonio Houaiss ressalta neles a “devoção à
causa da redenção dos índios e do desenvolvimento do nosso Oeste”, enquanto
Darcy Ribeiro evidencia “a coragem com que, arriscando suas vidas, atraíram
diversos povos indígenas à civilização”; Maureen Bisilliat elogia o desejo deles de
“poder devolver ao índio o direito de existir dentro das raízes de sua cultura milenar”.
É o que podemos verificar também no Prefácio, do qual extraímos a seguinte
sequência:
O que os movia de fato era a defesa do Xingu e a singularidade dessa experiência. O fortalecimento da agência indigenista, com o aumento dos recursos e o exercício responsável da tutela, eram tão somente os meios que puderam enxergar, no contexto preciso em que viveram e atuaram, para dar continuidade ao trabalho no Xingu, ao qual dedicaram a própria vida. Neste livro os autores voltam a criticar duramente a “mão predadora do civilizado”, a ação destrutiva do “procurador de riquezas”, que fazem com que o Xingu
se afaste cada vez mais do “Brasil do Descobrimento” (PACHECO DE OLIVEIRA, João. Prefácio: Uma viagem ao Brasil profundo, in A Marcha para o Oeste: A Epopeia da Expedição Roncador-Xingu, 2012, p. 24, grifos nossos).
A autenticidade e nobreza das motivações dos Irmãos são igualmente
defendidas por João Pacheco de Oliveira, que assevera que os Villas-Bôas “viveram
e atuaram, para dar continuidade ao trabalho no Xingu, ao qual dedicaram a própria
vida” cooperando com o projeto discursivo que veicula o seu ethos de “virtude”.
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Para corroborar o ethos de “virtude”, devem-se acrescentar, às imagens
virtuosas de fidelidade e de coragem do sujeito, aquela de “honestidade pessoal”.
Essa imagem evoca a retidão e a sinceridade: falar o que se pensa, ter uma vida
transparente, não ter participado de negócios escusos e divulgar que seu
engajamento não foi motivado por uma ambição pessoal. Essa honestidade pode
também expressar-se em relação aos adversários no que se refere à lealdade:
aquele que combate seu oponente sem jamais desferir golpes baixos e que, em
caso de derrota, é capaz de reconhecer a validade do julgamento do outro e mesmo
seus próprios erros. É o que podemos observar nas seguintes sequências
discursivas:
Embora os guardas tenham se precipitado um pouco, portaram-se, por outro lado, perfeitamente de acordo com as nossas instruções, ou seja, atirar para o ar. Registramos a data do
primeiro encontro com os Xavante: 25 de julho de 1945 (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 87, grifos nossos).
Logo depois do almoço, que foi trazido pelos tropeiros, atingimos um novo córrego de caixa rasa e muito empedrado. Quando explorávamos a matinha que o margeia, saímos, de súbito, diante de uma cabana de índios. Depois de verificar que estava vazia, entramos: o fogo fora recentemente apagado, havia camas (palhas no chão) de folhas de babaçu, restos de embira, pontas de flechas, sabugos de milho, cestos vazios, algumas cabaças vazias, e seis delas cheias de mel, penduradas na vara que sustentava o ranchinho. Examinamos tudo, mas deixamos cada coisa no seu lugar. Bem que gostaríamos de provar um pouco daquele mel saboroso, que reconhecemos ser de benjoim, mas nosso propósito é respeitar tudo o que seja de propriedade dos índios. Como não deve lutar essa gente para arrancar deste solo duro, com
seus instrumentos rudimentares, o sustento necessário! (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 71, grifos nossos).
A primeira SD traz as instruções dadas pelos Villas-Bôas aos trabalhadores
da vanguarda da ERX por ocasião do primeiro encontro com indígenas da etnia
Xavante, evocando a retidão do caráter dos Irmãos ao orientar os integrantes da
Expedição: eles asseguram que os guardas “portaram-se perfeitamente de acordo
com as nossas instruções, ou seja, atirar para o ar”. Observando o trecho destacado
percebemos que os Irmãos pretendem demonstrar que tinham uma postura
transparente e ética, uma política de não agressão aos indígenas. A segunda SD
narra a exploração de certa mata ciliar, quando deparam-se com uma cabana de
índios. Esta SD reforça essa imagem virtuosa, ressaltando o fato de eles não terem
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participado de negócios escusos (apossar-se dos pertences os indígenas) conforme
descrito em: “Examinamos tudo, mas deixamos cada coisa no seu lugar” e
divulgando o fato de que o engajamento deles na ERX não tinha sido motivado por
ambições pessoais, segundo o que é descrito em: “Bem que gostaríamos de provar
um pouco daquele mel saboroso, que reconhecemos ser de benjoim, mas nosso
propósito é respeitar tudo o que seja de propriedade dos índios”.
De maneira geral, o ethos de virtude se faz acompanhar por uma atitude de
respeito para com o cidadão: o sujeito deve ser transparente, não deve usar truques,
deve ser direito.
2.2.3 O ethos da “competência”
O ethos de “competência” demanda, simultaneamente, saber e habilidade: o
possuidor deste ethos deve demonstrar conhecimento profundo do domínio
particular no qual exerce sua atividade, mas precisa provar também que detém os
meios, o poder e a experiência indispensáveis para realizar seus objetivos.
Percebemos o projeto discursivo de construção deste ethos em sequências como
esta:
Uma expedição que tem como roteiro furar sertões desconhecidos sempre exerce um fascínio irresistível em todos aqueles que possuem espírito de aventura. Mas a realidade, no mais das vezes, arrefece o impulso. O sertão cobra um tributo pesado do “intruso” que quer conhecê-lo, desvendá-lo. A condição essencial do candidato é ter uma indiscutível saúde. Um ponto fraco naquele que se aventura mais dia menos dia irá traí-lo. A sensação de estar no “ignoto” não é tão sublime a ponto de a pessoa não se molestar com a primeira cobrança dos borrachudos, piuns, maruins, tatuquiras, varejeiras, lambe-olhos, enfim [...] Assim foi na Expedição. O tanto de gente que vimos chegar foi o mesmo que
vimos partir (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 47, grifos nossos).
Esta SD foi extraída do início da narrativa Expedição, explicitando os
requisitos necessários aos que desejassem ingressar nela. Por meio dessa
descrição, os Villas-Bôas pretendem demonstrar conhecimento profundo do domínio
particular no qual exerceram sua atividade: “O sertão cobra um tributo pesado do
‘intruso’ que quer conhecê-lo, desvendá-lo”, intentam provar também que detinham
os meios, o poder e a experiência indispensáveis para realizar seus objetivos. “A
condição essencial do candidato é ter uma indiscutível saúde. Um ponto fraco
58
naquele que se aventura mais dia menos dia irá traí-lo [...] Assim foi na Expedição.
O tanto de gente que vimos chegar foi o mesmo que vimos partir”.
Há algumas ocorrências em que o próprio enunciador evidencia em suas
declarações as características de seu percurso para invocar esse ethos de
“competência”: herança, estudos, funções exercidas, experiência adquirida; é o que
ocorre na sequência:
Eu tinha 26 anos e andava a procura de um lugar no mundo. Um dia, eu li num jornal que o governo estava organizando a Marcha para o Oeste. Uma expedição para penetrar as terras desconhecidas do Brasil Central. A finalidade era abrir picadas, campos de pouso, fazer reconhecimento e tomar posse. Dezenas e dezenas de peões se alistaram atrás de parcos salários. Eu e meu irmão, atrás de aventura. [...] Andar por terras que ninguém andou. Chegar a lugares que ninguém chegou. Eu não sei exatamente por que, mas me pareceu uma ideia irresistível. [...] Estudamos em bons colégios. Tínhamos bons empregos. Mas trocamos tudo pela vida na mata. Aprendemos desde cedo que liberdade
mesmo, só no sertão (Personagem de Cláudio Villas-Bôas, numa das cenas que abrem o filme “Xingu”, grifos nossos).
Na SD acima, extraída da fala do personagem de Cláudio no filme “Xingu” é
perceptível um projeto discursivo de natureza vocacional, que explicita a “missão”
dos Villas-Bôas, que conjuga elementos ligados a anseios humanos, atração
irresistível e inexplicável, bem como a convergência desses elementos com
características de seu percurso formativo, como se pode observar em destaque: “Eu
tinha 26 anos e andava a procura de um lugar no mundo. Um dia, eu li num jornal
que o governo estava organizando a Marcha para o Oeste [...] Eu não sei
exatamente por que, mas me pareceu uma ideia irresistível [...] Estudamos em
bons colégios. Tínhamos bons empregos. Mas trocamos tudo pela vida na
mata. Aprendemos desde cedo que liberdade mesmo, só no sertão”.
Além dos ethé de credibilidade, pudemos constatar que os Irmãos Villas-Bôas
adotaram também o “discurso de justificação” conforme designado por Charaudeau
(2013, p. 126).
2.3 O discurso de justificação: uma opção adotada pelos Irmãos Villas-Bôas
No que se refere a questões políticas, a credibilidade dos atores é
frequentemente afetada tanto por fatos que contradizem as intenções declaradas,
quanto, por adversários que não deixam de questioná-la.
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Então, o locutor é movido a produzir um discurso de justificação de seus atos
ou a fazer declarações para se inocentar das críticas ou das acusações que lhe são
dirigidas.
Verificamos que os Irmãos Villas-Bôas optaram por um discurso de
justificação para validar a atuação deles na Expedição Roncador Xingu, uma vez
que os textos escritos por eles revelam aguçada consciência do papel histórico
ambíguo desempenhado pela atuação governamental diante dos povos indígenas
da região central do Brasil. Protegia-os por meio da Expedição e do SPI (Serviço de
Proteção ao Índio), e simultaneamente favorecia o avanço dos interesses que
ameaçariam tais povos. Quando os autores enunciaram as duas motivações
presentes na criação do Parque Nacional do Xingu, a colonização entrou também na
lista de aspectos negativos, por conta dos problemas que acarretava para a
continuidade dos povos e culturas indígenas: “construir uma reserva natural onde a
flora e a fauna intocadas guardassem, para o Brasil, futuro, um testemunho do Brasil
do Descobrimento”, além de prestar assistência direta e proteger as tribos da região,
“defendendo-as de contactos prematuros e nocivos com as frentes de ocupação da
sociedade nacional” (VILLAS-BÔAS,1970, p. 9).
Porém, a atitude de justificar-se não é confortável e a escolha do tipo de
justificação não é fácil. Isso ocorre porque o sujeito que se justifica reconhece então
a existência da crítica ou da acusação – se não, por que responder? – e do mesmo
modo reconhecer o adversário que o critica. A justificação não é propriamente uma
confissão, mas ela reforça a ideia de que realmente foi cometido um erro. Assim, o
locutor encontra-se diante de um dilema: não se justificar pode fazer crer que não
existe defesa possível; justificar-se faz com que haja suspeitas da dúvida ou
incerteza. De qualquer maneira, cada uma dessas atitudes pode ocasionar efeitos
positivos ou negativos: não responder pode produzir um efeito de inocência (não se
sentir visado), de sabedoria (não polemizar) ou, ao contrário, de indiferença (não se
rebaixar a responder); justificar-se pode produzir um efeito depreciativo de fraqueza.
Segundo Charaudeau,
O discurso de justificação equivale a navegar entre a intenção e o resultado. Ele é o contrapeso à crítica que o provocou. Efetivamente, a crítica pode dizer respeito tanto aos motivos que levaram à ação, e então o ataque visa à intenção do sujeito, quanto ao resultado da ação, e então é sua falta de competência que é atacada
(CHARAUDEAU, 2013, p. 126).
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No primeiro caso, o sujeito tem a possibilidade de defender-se argumentando
que sua atuação é legítima a despeito do resultado obtido, sempre alegando que
este não corresponde ao projeto inicial. No segundo caso, ele tem a opção de
contestar que o resultado tenha sido negativo e apelar a alguma explicação, sem
deixar de reconhecer os limites dos resultados obtidos e apontar o lado positivo: um
resultado modesto é melhor do que resultado algum. O segundo caso nos parece
ser o dos Villas-Bôas, conforme sugerem as sequências:
Cláudio: A gripe levou metade da aldeia [da etnia Kalapalo]. Levou o [chefe Kalapalo] Izarari. E se espalhou por todo o Alto Xingu. Leonardo: E agora? O que a gente vai fazer? Cláudio: Eu não sei. Só sei que branco não pode mais entrar. Orlando: Eles vão entrar de qualquer jeito, Cláudio. Cláudio: Se for de qualquer jeito, eu não fico. Orlando: Não dá pra largar agora. Se os brancos querem a gente, vai ser do nosso jeito, Cláudio. Vamos impor nossas condições. Leonardo: Vamos trazer médico pra cá, remédio, vacina. Vamos cuidar deles, Cláudio. Claudio: A gente cuida desses e estraga quem está no caminho. Vai ser assim. Vamos ser o veneno e o antídoto. Orlando: Isso é o pior. [...] Cláudio: Nos sentimos responsáveis com tudo o que viesse a acontecer com eles. Afinal, eles não nos procuraram. Nós e que invadimos suas terras. Nada mais justo do que protegê-los. Contra tudo e contra
todos (Diálogo entre as personagens dos Irmãos Villas-Bôas, numa das cenas do filme Xingu, grifos nossos).
Andar por terras que ninguém andou. Chegar a lugares em que branco nenhum chegou. Porque não há lugar que o branco não chegue. Chegar antes sempre foi tudo o que pudemos fazer
(Personagem de Cláudio Villas-Bôas, numa das cenas que concluem o filme Xingu, grifo nosso).
Consideramos necessário ressaltar que uma justificação não é uma
confissão. Na confissão, o sujeito reconhece a falta e no mesmo instante pede que o
ato de reconhecimento seja considerado para que lhe seja concedido o perdão. Na
justificação, ao contrário, trata-se de reivindicar a legitimidade do ato: o ato é
assumido e não há nenhum pedido de perdão.
De qualquer forma, é importante para o locutor responder à acusação de
culpa ou de responsabilidade, se quiser preservar sua imagem. A acusação de culpa
define a atitude do autor do ato delituoso como consciente e voluntária; justificar-se
equivale a negar o caráter consciente e voluntário do ato. Já a responsabilidade
caracteriza o autor como parte interessada na cadeia de causalidade que gerou o
ato delituoso mesmo que de modo não voluntário; justificar-se consiste, então em
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minimizar seu papel nessa cadeia de causalidade, evidenciando o caráter não
intencional do ato e em protestar sua inocência.
Verificamos que o discurso de justificação dos Villas-Bôas respondeu a
acusação de responsabilidade, adotando a estratégia de invocar uma razão
superior, como atesta a seguinte sequência discursiva:
Orlando: Chefes brancos existem, Cláudio. Cláudio: Existem. E faz 20 anos que você obedece a eles. Orlando: Você também obedece. Fez pista de pouso, fez contato com índio que nunca viu branco na vida. Você também obedece. Cláudio: Você faz um pouco mais do que obedecer. Você joga com eles. Orlando: Quem botou [indígenas da etnia] Kaiabi pra trabalhar? Quem prometeu aldeia? Você também joga, Cláudio! E a gente vai ter que continuar jogando pra isso
aqui ficar de pé (Diálogo entre as personagens dos Irmãos Villas-Bôas, numa das cenas do filme Xingu, grifos nossos).
Os Villas-Bôas não propunham uma solução, mas uma questão para a qual,
aparentemente, não havia resposta. Então, lançam mão da alegação da existência
de uma razão superior.
2.3.1 Uma razão superior
Esta estratégia consiste em responder à crítica explicando por que o ato foi
realizado. O motivo apresentado foi a razão de Estado, que é a fiadora da identidade
de um povo, de sua integridade, de sua grandeza e de seu território, graças ao que
ele se reconhece em uma identidade nacional. Os Villas-Bôas, justificando-se em
nome dessa razão afirmaram que foram levados a agir como agiram para preservar
essa identidade, conforme exemplificado na sequência acima.
Entretanto, essa justificação pela razão de Estado teve um efeito negativo.
Efetivamente, o Estado foi percebido como uma entidade fria e calculista, distante
dos interesses particulares dos indivíduos ou dos grupos (no caso, o dos indígenas),
e recorrer às suas razões para justificar as ações produziu um efeito de elitismo:
esses atos seriam convenientes apenas para um pequeno grupo que decide em seu
nome e em nome dos outros.
Verificamos também a ocorrência do discurso de justificação, feito em nome
do realismo (o “realismo” se une ao ethos de sério por um interesse de
“pragmatismo”). Há um deslocamento do foco, que sai dos princípios e dirige-se
para a maneira de fazer. Tenta-se fazer aceitar a ideia de que cumprir um projeto
político, qualquer que seja seu valor transcendental, passa necessariamente pelas
62
limitações. O realismo pretende excluir qualquer posição radical. Ele alega que o
resultado adquirido vale mais que não obter nenhum resultado. Assim como ocorre
nesta sequência:
Eles nunca tiveram fronteiras. Mas agora, fronteira era a melhor
coisa que eles podiam ter (Personagem de Claudio Villas-Bôas, na cena em que escreve sobre as fronteiras, no projeto de criação do Parque Nacional do Xingu, grifo nosso).
Concluímos nossa reflexão sobre os mecanismos de construção do ethos de
credibilidade com a afirmação de Charaudeau:
O ethos de credibilidade é, ao mesmo tempo, um construto e um atributo, ou, mais precisamente, uma construção sobre um atributo. É um construto em virtude da maneira pela qual o sujeito encena sua identidade discursiva. É um atributo em virtude da identidade social que o sujeito possui e que depende, ao mesmo tempo, de seu
estatuto e da maneira como o público o percebe (CHARAUDEAU, 2013, p. 136).
O ethos de credibilidade se estabelece em uma interação entre identidade
social e identidade discursiva, entre o que o sujeito deseja parecer e o que ele é em
seu ser psicológico e social.
2.4 Os ethé de identificação
No discurso relativo a questões políticas, as figuras do ethos são ao mesmo
tempo voltadas para si mesmo, para o cidadão e para os valores de referência. É
assim com os ethé de credibilidade, e também com os de identificação, cujas
imagens, dessa vez, são extraídas do afeto social: o cidadão, mediante um processo
de identificação irracional, funda sua identidade na da pessoa pública.
Descrever e classificar os tipos de imagens que caracterizam o ethos de
identificação é uma questão delicada, pois essas imagens são destinadas a tocar o
maior número de indivíduos e constatou-se que esse maior número é heterogêneo e
vago da perspectiva dos imaginários.
Mesmo diante dessa polivalência de imagens, Charaudeau (2013) afirma ser
possível destacar algumas, entre as mais recorrentes, que caracterizam o ethos de
identificação do discurso de pessoas públicas. Segundo o autor, umas são mais
voltadas para si mesmas, pois supostamente refletem os traços que definem e
particularizam os perfis dessas pessoas: o ethos de “potência”, o ethos de “caráter”,
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o ethos de “inteligência” e o ethos de “humanidade”. Outros, como o ethos de
“chefe”, são antes orientados para o cidadão, na medida em que se fundamentam
numa relação necessária entre si e o outro.
2.4.1 O ethos de “potência”
O ethos de “potência” é visto como uma energia física que anima e
impulsiona os corpos na ação. Ele nos remete à imagem de uma “força da
natureza”, força contra a qual não se pode fazer muito. Esse imaginário não deve
ser confundido com o do poder; este resulta de uma ação coordenada que tem por
finalidade a organização da vida coletiva. Podemos observá-lo em sequências
discursivas como a abaixo:
Chegamos ao último dia de 1945! Trouxemos o picadão até as matas gerais do rio Kuluene, formador do Xingu. Os temporais, as chuvas mansas e contínuas, as muriçocas, as tatuquiras, as abelhas e os formigões; os xavante matreiros com seus fogos e fumaças, com suas ciladas; e, ainda mais, os longos períodos de carência de víveres para uma alimentação normal somados ao quadro acabrunhante de companheiros doentes, fracos, gemendo no fundo das redes, não constituem empecilho que nos tire o
ânimo de levar a termo a tarefa que nos foi dada (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 123, grifos nossos).
A SD descreve a conclusão do ano de 1945, fazendo uma breve retrospectiva
da atuação na ERX. O ethos de “potência” emerge aqui como essa energia física
que anima e impulsiona os corpos na ação, fazendo superar todos os desafios
vivenciados pelos integrantes da vanguarda da Expedição e elencados nesta SD.
Para ressaltar a força desta energia, os Villas-Bôas afirmam ainda que os muitos
desafios “não constituem empecilho que nos tire o ânimo de levar a termo a tarefa
que nos foi dada”.
Há figuras mais brandas do ethos de “potência”, que mostram sua
determinação em agir: ser não somente uma pessoa de palavras, mas também de
ação. Mostra-se que se é ativo, presente, mas de maneira coordenada, militar; é o
que podemos observar na sequência discursiva anterior e na seguinte:
Dia 13, com os que ainda estão mais ou menos bons, fizemos a mudança do acampamento. Toda a carga foi acomodada nos três burros que temos. Transferimo-nos para a beira de uma mata alagada. Suspendemos os serviços logo após a mudança.
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Os doentes, isto é, os debilitados, gastaram mais de quatro horas para vencer os seis quilômetros de picada do acampamento anterior até este. A melhor solução seria removê-los para o posto e dali para a base, mas não temos animais que cheguem para todos, e tampouco suprimento para a viagem. Fracos como estão, não aguentariam a viagem, que é longa, piorada agora com os temporais diários. Despachamos três homens para o posto do Tanguro, com a incumbência urgente de trazer-nos qualquer espécie de
mantimento (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 110, grifos nossos).
A sequência discursiva acima descreve uma mobilização do material e do
pessoal da Expedição, motivada pelos contratempos enfrentados: trabalhadores
doentes e escassez de mantimentos. Evidencia-se a determinação dos Villas-Bôas
ao organizar e colocar em ato a referida mudança, de maneira coordenada,
conforme descrito nos trechos: “fizemos a mudança do acampamento [...]
Transferimo-nos para a beira de uma mata alagada [...] Suspendemos os serviços
logo após a mudança”.
2.4.2 O ethos de “caráter”
O ethos de “caráter” participa de outro imaginário de força que não pode ser
confundido com o anterior. Trata-se aqui mais da força do espírito que da força
corporal. Isso pode aparecer por meio de várias figuras.
Uma das figuras do ethos de “caráter” é a da “força tranquila” que evoca a
constância combativa daquele que nunca abandona seus compromissos e a vontade
de vencer, além da autoconfiança daquele que calcula e faz apostas no futuro. O
controle de si, correspondente à força tranquila, supostamente significa um caráter
equilibrado que não se altera por pequenas coisas, que se mantém centrado em
todas as circunstâncias e não cede a uma agitação inconsequente. O sujeito que
demonstra esse tipo de atitude constrói para si uma imagem de homem que pensa
antes de agir e que toma suas decisões após ter ponderado os prós e os contras de
uma situação. Essa nos parece ser a intenção dos enunciadores desta sequência:
Hoje, 5 de abril, pela primeira vez os índios rondaram de dia o nosso acampamento. Felizmente fizeram só barulho para nos amedrontar. Começaram esturrando como onça, e depois roncos, gritos e piados de jacamim, mutum, seriema, jaó, etc. Vendo que não entrávamos em pânico, como naturalmente esperavam, passaram a jogar paus no rancho e no terreiro. Nós, que já estávamos desconfiados desde o começo, ganhamos certeza de sua presença. Que uma onça esturre, vá lá... Mas que jogue pau... E a coisa não ficou nisso. O barulho entrou noite adentro, pondo a
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cachorrada em polvorosa (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 137, grifos nossos).
A SD relata uma tentativa de intimidação dos integrantes da ERX, planejada
pelos índios. A figura dos Villas-Bôas é descrita com caráter equilibrado que não se
altera por pequenas coisas, como podemos observar em: “Vendo que não
entrávamos em pânico, como naturalmente esperavam, passaram a jogar paus no
rancho e no terreiro”. Também emerge no perfil deles a autoconfiança daqueles que
calculam e fazem apostas no futuro: “Nós, que já estávamos desconfiados desde o
começo, ganhamos certeza de sua presença”. O ethos de “caráter” é assim
associado à atitude de manter-se centrado em todas as circunstâncias e não ceder a
uma agitação inconsequente.
O ethos do caráter forte caracteriza-se, então, por uma atitude de
reivindicação da ação efetiva, demonstrando energia (que não é a irritação nem a
agressividade) bem como uma determinação inabalável, características próprias dos
grandes líderes. Estes aspectos do ethos de “caráter” estão presentes nas seguintes
sequências:
Nosso acampamento está agora no Taquari. A certa altura desta madrugada fomos, quase todos, despertados por atroante tiro de fuzil dentro do acampamento. Era Mariano, que julgou ter visto um vulto mexer-se na orla do cerrado. Fizemo-lo compreender o absurdo e a imprudência daquele comportamento, que punha em perigo a vida dos próprios companheiros. E se fosse índio? Mariano é trabalhador bom e disciplinado. Há muito o incluímos no rol dos
“amedrontados” (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 104, grifos nossos).
Hoje, domingo, alguns homens foram à caça e outros à pesca. Os dois grupos voltaram de mãos abanando. Os da pesca acharam no caminho, já na volta, um jabuti. Um jabuti, para uma turma grande, cheia de apetite, como a nossa, vem a ser um caramelo para dez crianças. Estamos no dia 15 de abril de 1946. Ficaram prontos os duzentos metros de prolongamento do campo, que está agora com 810 x 30 metros. Levantamos um rancho para a estação de rádio. Fizemos um bonito e enorme mastro para a bandeira e três menores para as antenas de rádio. Quando menos se esperar, chegará um dos nossos PP com rádio, radiotelegrafista e outras coisas. Ainda não estamos completamente satisfeitos com o campo. Os homens estão aumentando as cabeceiras (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 141, grifos nossos).
Na primeira SD, que narra um incidente eminente diante da imprudência de
um dos trabalhadores da Expedição, destaca-se a atitude de reivindicação da ação
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efetiva, por parte dos Villas-Bôas, que chamam a atenção do referido trabalhador:
“Fizemo-lo compreender o absurdo e a imprudência daquele comportamento, que
punha em perigo a vida dos próprios companheiros”. A segunda SD descreve o
trabalho de execução de um campo de pouso e de um rancho. As atitudes descritas
demonstram energia e uma determinação inabalável: “Levantamos um rancho para
a estação de rádio [...] Ainda não estamos completamente satisfeitos com o campo.
Os homens estão aumentando as cabeceiras”.
Enfim, uma última grande figura do ethos de caráter: a moderação, que
transparece na atitude de intermediação entre as partes em conflito. Ela pode
manifestar-se por declarações que temperam as ações ou as que se prestam à
polêmica, como no seguinte exemplo:
À hora da partida, o tropeiro Raimundão travou uma discussão com um dos guardas, mas foi em tempo advertido. Temos sabido que Raimundão tem procurado despertar entre o nosso pessoal animosidade contra os Xavante, que odeia, porque há algum tempo mataram um filho seu no alto do rio das Mortes. Não podemos desprezar o fundamento do seu rancor, mas também não podemos permitir que seja alterada, sob qualquer pretexto, a política que adotamos, de respeito à comunidade indígena (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 95, grifos nossos).
Vê-se aqui a descrição de um conflito entre um tropeiro e os indígenas da
etnia Xavante. Os Irmãos desempenham o papel de mediadores do conflito,
advertindo o tropeiro, ainda que compreendam as motivações dele. Evidencia-se o
uso da habilidade de enunciar frases que protejam as partes envolvidas na
polêmica, como aquela que destacamos. A figura de moderação aparece em
negociações difíceis, entre diferentes parceiros sociais, a fim de possibilitar a
continuidade dos entendimentos, apesar da insatisfação de uns e outros.
2.4.3 O ethos de “inteligência”
O ethos de “inteligência” faz parte dos ethé de identificação na medida em
que pode provocar a admiração e o respeito dos indivíduos por aquele que
demonstra tê-lo e assim os faz aderir a ele. A inteligência é uma característica
humana difícil de ser definida, mas nesse caso, trata-se de considerá-la um
imaginário coletivo que testemunha a maneira como os membros de um grupo social
a concebem e valorizam. Nestas sequências, particularmente, a inteligência é
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equivale a: conhecimento enciclopédico, atitude professoral e a postura crítica
adotada pelos enunciadores:
Dia 21 de abril. Hasteamos a bandeira em memória de Tiradentes e fizemos ao pessoal uma pequena dissertação sobre a data. Um dos trabalhadores, baiano, censurou Tiradentes. Para ele, bom mesmo é o Honorino, dentista da [cidade] Barra do Garças. O nosso sertanejo vive à margem da história. Se o Jeca Tatu de Monteiro Lobato assistiu de cócoras, indiferente, ao cair do Império e ao levantar da República, não menos indiferente o nosso sertanejo de hoje assistiu ao desenrolar da Segunda Grande Guerra. Como podem eles entender Tiradentes? Depois da nossa preleção sobre a data, o baiano perguntou: – Me esprica que é qui esse dentista queria cos reis? Explicamos. Ele replica: – Eta cabra influído. Eu cunheço um dentista na Barra do Garça, mais êssi é carmo, é o seo
Honorino (VILLAS-BÔAS, 2012, pp. 142-143, grifos nossos).
Hoje, 7 de setembro de 1946, reunimos os homens às sete horas e hasteamos a bandeira em comemoração à grande data nacional. Está se tornando um hábito fazermos nas grandes datas, por ocasião do hasteamento da bandeira, uma rápida preleção. Nem todos entendem, mas escutam com atenção. Ouvimos um deles, comentando com outro, usar o termo “independência” – pensamos que o homem tivesse entendido alguma coisa da preleção, mas o resto da frase não demorou “(...) cadela mio pra corrê paca, inda num
vi... independênça” (VILLAS-BÔAS, 2012, pp. 159, grifos nossos).
A ação estatal (representada, naquele contexto, pelos Irmãos Villas-Bôas,
que lideravam a Expedição) se deparava com um limite: os sertanejos que, segundo
os referidos Irmãos, viviam à margem da história, assistiam indiferentes ao
desenrolar de eventos como a Segunda Guerra, assim como as cerimônias em que
as grandes datas nacionais eram celebradas e enaltecidas nos discursos dos que se
consideravam civilizadores. Nessa perspectiva, o processo didático proposto na
construção de uma identidade nacional que incorporasse referências e valores
listados pela agência do Estado, confrontava-se com as tradições já construídas
pelas populações locais.
A utilização dessa simbologia nacional (hasteamento da bandeira e execução
do hino) ao longo da expedição atuava como elemento unificador. Mas como
descobrir de que forma os trabalhadores da Expedição e os indígenas interpretaram
o que lhes estava sendo mostrado naquelas cerimônias diárias de hasteamento da
Bandeira Nacional nos acampamentos? Difícil afirmar que na mente daqueles
índios, foi construída a noção de pertencimento a uma nação. Mais complicado
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ainda é responder se, ao hastear da bandeira vez por outra na aldeia, todos os
índios se sentiam conectados a pessoas que nunca haviam visto, embora
soubessem da existência. O que se percebe, neste relato da ERX, particularmente
na sequência que se refere às homenagens a Tiradentes, é que, se por um lado
havia a tentativa de aproximação e construção de uma nacionalidade baseada na
identificação cultural e étnica, por outro, existia uma grande desconfiança e
desconhecimento em relação a ela.
No caso do ethos dos Irmãos Villas-Bôas, a inteligência pôde ser percebida
não somente em função da maneira como os sujeitos agem e falam durante os
eventos públicos, mas também pelo que se pode apreender de seus
comportamentos em suas vidas privadas, como no exemplo:
A tropinha que havíamos mandado ao posto está de volta. Veio pouca coisa. E nessa pouca coisa, um feijão bastante carunchado. Alguns objetos de couro, uns livros e medicamentos que havíamos deixado no posto estavam quase inutilizados pelos cupins. Diante dos destroços do nosso [livro] “Casa-grande e senzala” veio-nos à lembrança a figura do grande Humboldt, que afirmava não haver uma cultura na América do Sul por causa da ação constante e danificadora das térmitas nos arquivos e bibliotecas! Sem dúvida nenhuma, arriscamos dizer que o maior dos naturalistas exagerou. Primeiro, negando aos sul-americanos uma cultura e, segundo, dando aos cupins uma importância tão grande. Mas se o autor de Kosmos dissesse que os seus bichinhos constituem, em determinadas épocas do ano e em alguns lugares, uma praga bastante nociva, nos sertões principalmente, teria dito
alguma coisa mais modesta, porém mais acertada (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 108, grifos nossos).
A figura do homem culto depende do capital cultural que o homem público
herdou de sua origem social e de sua formação, mas deve ser confirmada por seu
comportamento. Isso explica por que os Irmãos Villas-Bôas escreveram livros, e
sempre responderam a solicitações da mídia para participar de programas culturais,
como a entrevista à TV Cultura de São Paulo, em 1992 e ao Jornal da Tarde, São
Paulo, 1997. Ambas foram analisadas na tese de doutorado em Antropologia Social,
de Carlos Augusto da Rocha Freire (2005), intitulada: “Sagas sertanistas: práticas e
representações no campo indigenista no século XX”.
Em 1971, Cláudio e Orlando foram indicados ao Prêmio Nobel da Paz. A obra
“A Marcha para o Oeste: a epopeia da Expedição Roncador-Xingu” foi contemplada
com o Prêmio Buriti, na edição de 1994.
69
2.4.4 O ethos de “humanidade”
O ethos de “humanidade” é um imaginário igualmente importante para a
imagem da pessoa pública. O “ser humano” é equiparado à habilidade de
demonstrar sentimentos, compaixão para com aqueles que sofrem, mas o é também
pela capacidade de confessar suas fraquezas, de mostrar quais são seus gostos,
até os mais íntimos. É o que se pode verificar neste exemplo:
Mas não partiram dos índios, bravos ou mansos, as nossas maiores dificuldades de 1946. Foram elas, isso sim, as falhas nos transportes, nas comunicações do rádio, nos longos e diversos períodos sem ou quase sem alimentação, nas doenças e, finalmente, nos dois tristes casos de insanidade dos trabalhadores Ascendino e Antônio (o velho Cuca) na travessia do Roncador. Mas isso tudo é natural, é o tributo que o sertão cobra. Estava, porém, reservado para os últimos dias de 1946 o quadro mais triste da etapa vencida: os índios doentes. Nas aldeias, quinze covas recentes atestam bem o período de amargura por que passaram e ainda passam, se bem que mais branda na sua fase final (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 203, grifos nossos).
As maiores dificuldades enfrentadas pelos integrantes da ERX no ano de
1946 são elencadas pelos Villas-Bôas nesta SD. Ao fazê-lo, eles demonstram
capacidade de confessar suas fraquezas diante dos desafios e sentimento de
compaixão para com aqueles que sofrem (os trabalhadores Ascendino e Antônio,
acometidos pela insanidade e os índios doentes).
A figura do sentimento é difícil de manipular porque não é desejável que o
sujeito passe por fraco: a pessoa pública precisa “saber controlar seus sentimentos”.
Essa figura deve transparecer apenas em algumas ocasiões: convívio com os
desprovidos ou pessoas que sofrem; em situações dramáticas (catástrofes naturais,
acidentes, fome, etc.). Assim como demonstra esta sequência:
Para o reabastecimento, perdemos muito na troca da tropa pelo avião. Antes do campo, a tropa ia e vinha morosamente, mas vinha. Tínhamos sempre o essencial. Agora que o transporte ficou a cargo dos aviões, temos experimentado todos os contratempos, inclusive fome. Possivelmente existe alguém que anda somando o preço da gasolina ao arroz com feijão e está achando caro... Vinte homens, infelizmente, comem que não é brincadeira. Está claro que a nossa expedição cabocla devia continuar com a tropa, como começou. O avião como meio de reabastecimento está um pouco acima da mentalidade da nossa “retaguarda próxima”, que, para economizar viagens, deixa vinte homens sem alimentação. Não há dúvida de que, no fim do mês, vai aparecer nas fichas do
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almoxarifado uma apreciável economia. Mesmo porque as fichas não registram ocorrências como homens no fundo das redes impossibilitados, por fraqueza, de ficar em pé. Não se anota, lá, o esforço de gente comendo onça sem sal, anta estragada, mas
tocando o serviço (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 112, grifos nossos).
A figura do sentimento transparece na sequência discursiva acima, que narra
uma situação dramática: a fome experimentada pelos homens da Expedição. Os
Villas-Bôas expressam descontentamento e indignação em relação às atitudes do
comando da ERX, que negligenciam as necessidades dos trabalhadores da
vanguarda. O trecho: “O avião como meio de reabastecimento está um pouco acima
da mentalidade da nossa ‘retaguarda próxima’, que, para economizar viagens, deixa
vinte homens sem alimentação” expressa bem a intensidade desse sentimento.
2.4.5 O ethos de “chefe”
Mais que os precedentes, o ethos de “chefe” se direciona para o cidadão.
Conforme dito no início, o ethos é voltado ao mesmo tempo para si e para o outro.
Pode-se considerar que o ethos do chefe demanda propriedades que enfatizam
essa relação de dependência, a partir de uma imagem que é explicitamente
oferecida ao cidadão. Ele se manifesta por meio de diversas figuras, dentre as quais
a de guia, que constatamos ser aquela assumida pelos Villas-Bôas.
A figura do guia supremo constitui um imperativo para a conservação de um
grupo social. É como se o grupo tivesse consciência de sua incapacidade de se
motivar e de discernir seu destino, e por isso sentisse necessidade de recorrer à
existência um ser superior capaz de guiá-lo em meio as casualidade do tempo, ao
destino da vida e às aventuras do mundo. A construção discursiva da figura de guia
pode ser identificada em sequências como estas:
Hoje, 19 de abril de 1946, às oito horas nosso radiotelegrafista trouxe a notícia recebida na sua comunicação normal com o [posto] Mortes: o [avião] PP-FBA acabara de decolar com destino a esse acampamento, conduzindo o ministro João Alberto e o Dr. Artur Neiva, secretário-geral da Fundação Brasil Central. Às 9h45 o avião aterrissou. Pusemos o pessoal em forma, a fim de ser apresentado ao ministro, e ser hasteada pela primeira vez aqui a bandeira nacional. Pronunciamos na ocasião as seguintes palavras: Companheiros: com o hasteamento pela primeira vez da nossa bandeira e com a presença do Sr. Ministro João Alberto, o nosso acampamento está inaugurado, o que marca a realização da longa e difícil jornada que fizemos até aqui. Neste momento, deixamos de ser apenas um grupo de homens
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acampados no sertão para representar um posto avançado de um pacífico exército da civilização, que é a Fundação Brasil Central. E não devemos esquecer que, de agora em diante, temos uma gloriosa bandeira para zelar e honrar. Honrar e zelar com o nosso trabalho, com a nossa disciplina e, acima de tudo,
com a nossa fé no futuro do Brasil (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 112, grifos nossos).
Esta figura de guia conhece a variante do guia-pastor, que é um agregador,
aquele que reúne o rebanho, o acompanha e o precede, ilumina seu caminho com
uma perseverança tranquila. Transpostos para uma moral humana, esses traços
tornam-se, metaforicamente, os de um condutor de homens que sabe se fazer
seguir, e do homem determinado que sabe aonde vai. Podemos identificar a
construção dessa figura nas sequências:
Temos a impressão de que o ministro João Alberto não estava bem a par do assunto [muitos índios doentes], pois, sabidamente humano como é, não negaria, temos certeza, socorro médico a pobres índios nesta fase dura que atravessam [...] No mesmo dia fizemos um rádio ao [posto] Mortes, solicitando fossem adquiridos em Aragarças dez milhões de unidades de penicilina e mil comprimidos de sulfa, por nossa conta, embora fossem miseráveis os nossos vencimentos. O Dr. Roxo e mais alguns auxiliares da base do Mortes se associaram às nossas despesas
na compra da sulfa, a mais cara (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 198, grifos nossos).
Hoje, dia 15, depois de oito dias de crise, a situação melhorou um pouco, com os volumes jogados pelo avião. Temos sal e gordura para alguns dias. Mas sal e gordura não são alimentos, só tempero. Resta-nos, agora, procurar alguma coisa “sólida” para aplicar o condimento recebido. A anta estragou-se [...] Temos feito ingentes esforços para não paralisar o serviço. Estamos com o pessoal bem dividido. Parte está doente, guardando rede. Uma parte no serviço, alguns caçando e os tropeiros e um guarda viajando
para o posto, em busca de recurso (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 111, grifos nossos).
O serviço hoje, 1º de abril, rendeu otimamente. Tiramos 330 metros de capina e 250 de destoca. Estamos, portanto, no segundo dia de serviço com 580 metros de capina e 450 de destoca fina. Tivemos uma noite fria. As chuvas são rápidas e pesadas. Nos últimos cem metros demarcados, encontramos uma depressão no terreno que atrasará uns dez dias o aplainamento. Resolvemos, por isso, preparar primeiro um campo de setecentos metros, deixando como trabalho complementar qualquer extensão além disso. A capina, no terceiro dia, chegou ao final dos setecentos metros. Os trabalhos nestes três dias renderam excepcionalmente. Hoje, quinta-feira, 4 de abril de 1947, amanheceu nublado. À tarde caíram chuvas pesadas. Nosso rancho
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ficou alagado, dadas as más condições das nossas lonas. Já ia o pessoal no rumo do campo quando lembramos que hoje é quinta-feira santa. Fizemos voltar cada um e demos folga a
todos. Amanhã também é feriado – Sexta-feira Santa (VILLAS-BÔAS, 2012, p. 236-237, grifos nossos).
As sequências discursivas acima delineiam um perfil do Villas-Bôas,
composto por traços que os identificam a condutores de homens que sabem se fazer
seguir (na primeira SD eles descrevem a ocasião em que tomam a iniciativa de
angariar grande soma de medicamentos e são auxiliados nessa tarefa pelos
companheiros; na segunda SD narram o esforço de animar à continuação do
trabalho uma equipe acometida pela doença e pela fome). Na terceira SD emergem
as figuras dos Irmãos como homens determinados que sabem aonde vão (lideram
trabalho pesado, enfrentando, inclusive mau tempo).
2.4.6 O ethos de “solidariedade”
Charaudeau (2013, p. 163) afirma que o ethos de “solidariedade” faz da
pessoa pública um ser que não apenas está atento às necessidades dos outros,
mas que as partilha e se torna responsável por elas. A solidariedade caracteriza-se
pela vontade de estar junto, e, principalmente, de unir-se a eles a partir do momento
em que se encontram ameaçados. É o que podemos verificar aqui:
Cláudio anotou: Ao chegarmos à aldeia Kalapalo presenciamos um quadro desolador. Nove sepulturas recentes indicavam a situação angustiosa da tribo. Izarari – seu chefe geral – estava à morte. A desolação e a fome corriam pela aldeia. Tratamos de aplicar em Izarari a penicilina que levamos. Os medicamentos foram poucos para atender os inúmeros casos encontrados. Contudo, socorremos os que nos pareceram mais graves (VILLAS-BÔAS, 2012, pp. 199-200, grifos nossos).
Para a pessoa pública, ser solidário é mostrar que as opiniões (ou as
decisões) dos membros do seu grupo são partilhadas e defendidas por ela.
Charaudeau (2013, p.164) afirma ainda que, para que se manifeste essa
solidariedade, é preciso, portanto, de uma ideia a ser defendida, de um grupo que se
identifique como portador dessa ideia, e de circunstâncias (sobretudo quando o
grupo está ameaçado) que desencadeiem esse movimento identitário.
Transpondo a lógica desse movimento identitário para a encenação do ethos
de solidariedade dos Villas-Bôas, temos: a solidariedade aos indígenas mostrada
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por meio da defesa da ideia de criação do Parque Indígena do Xingu, mediante as
circunstâncias (o grupo formado pelas etnias indígenas xinguanas ameaçado,
desapropriado de suas terras e dizimado por doenças e conflitos decorrentes do
contato com não índios).
Todo movimento de solidariedade passa por um processo de identificação de
um grupo por meio de uma ideia, um valor. Isso supõe, portanto, um processo
dialógico, no qual a pessoa pública “coloca-se em atitude de escuta” diante das
pessoas que lidera. Isso explica porque, no filme Xingu, o processo de elaboração
da ideia de criação do parque é mostrado num processo dialógico, no qual a escuta
das lideranças indígenas constitui um trabalho forte de articulação feito pelos Villas-
Bôas.
Cena do filme Xingu em que o personagem de Cláudio Villas-Bôas – interpretado pelo ator João Miguel, no canto direito – ouve os índios que representam suas respectivas etnias, para discutirem as fronteiras do Parque,
quando da elaboração do projeto de criação do mesmo.
O ato de ouvir é sempre valorizado, especialmente nas sociedades como a
nossa, em que a palavra prolifera. “Escutar”, “saber ouvir”, “estar atento” são
procedimentos que expressam uma atitude de consideração para com os outros,
seus problemas, sofrimentos e necessidades. Essa atitude tem o benefício de
mostrar que se respeita o outro pelo que ele é, sem julgá-lo, mas reconhecendo-lhe
sua legitimidade de ser.
A seguir, pode-se observar uma tabela na qual elencamos resumidamente os
principais ethé encontrados nas análises:
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ETHÉ DE CREDIBILIDADE ETHÉ DE IDENTIFICAÇÃO
ethos de “sério”, de “virtude”,
de “competência”
ethos de “potência”, de “caráter”, de “inteligência”,
de “humanidade”, de “chefe”, de “solidariedade”
Consideramos importante ressaltar que no caso do livro, podemos organizar
os referidos ethé, confluindo para uma imagem de autor, uma vez que se trata de
relato autobiográfico escrito por Orlando e Cláudio, personalidades que se fundem
em uma só imagem de autor na qual há, entretanto, predominância da voz de
Orlando. Já no caso do filme, apesar das similitudes com a perspectiva de Orlando
no livro, emerge fortemente a voz de Cláudio, que conduz a narrativa na totalidade,
conforme foi exposto mais detalhadamente no capítulo anterior deste trabalho.
É possível concluir que, guardadas as devidas proporções, os mencionados
traços constitutivos do ethos estão presentes na construção discursiva da imagem
de cada Irmão.
2.5 As Cenas da Enunciação
Maingueneau explora também a articulação do ethos com as cenas da
enunciação: “Por meio do ethos, o destinatário está, de fato, convocado a um lugar,
inscrito na cena de enunciação que o texto implica” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 70).
Ocorre, portanto, uma indispensável inscrição do corpo enunciante numa situação
que a cena de enunciação pressupõe e legitima. Por essa razão, o autor ressalta:
“Não se pode opor a cena de enunciação e o enunciado como a ‘forma’ e o
‘conteúdo’: a cena da enunciação é uma dimensão essencial do ‘conteúdo’”
(MAINGUENEAU, 2008b, p. 52).
A cena da enunciação é formada por uma tríade que abrange: a “cena
englobante”, a “cena genérica” e a “cenografia” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 70).
Dentre as três, somente as duas primeiras estão essencialmente presentes em uma
situação discursiva, sendo que a última é dependente da finalidade de cada gênero
discursivo.
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A “cena englobante” “corresponde ao tipo de discurso, ao seu estatuto
pragmático” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 115), designando, principalmente, o modo
de o texto interpelar o leitor. Quando recebemos um folheto na rua, somos capazes
de remetê-lo ao discurso político, publicitário, jornalístico, ou qualquer outro tipo. Por
exemplo, como leitores de um folheto de teor político, somos interpelados como
possíveis eleitores.
A cena englobante é excessivamente geral para especificar as atividades
discursivas em que enunciador e co-enunciador encontram-se empenhados. “Vemo-
nos confrontados com gêneros de discurso particulares, com rituais
sociolinguageiros que definem várias cenas genéricas” (MAINGUENEAU, 2008b, p.
116). A cena genérica implica um contexto particular que estabelece os papéis dos
participantes, o modo de inscrição no espaço e no tempo, o suporte material, a
finalidade etc. No caso de um folheto publicitário, um gênero textual específico,
concretizado por meio de um suporte textual (impresso) também específico, temos o
produtor (o enunciador) de determinadas mercadorias ou serviços tentando
persuadir uma classe determinada de consumidores (o co-enunciador) a adquirir tais
produtos.
Os espaços da cena englobante e da cena genérica são relativamente
constantes e, na maioria das vezes, apenas eles definem a cena da enunciação.
Porém, pode intervir uma cena bastante peculiar e imprevisível – a cenografia – “que
não é imposta pelo tipo ou pelo gênero do discurso, mas é instituída pelo próprio
discurso” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 116). Também segundo o autor, “a escolha da
cenografia não é indiferente: o discurso, desenvolvendo-se a partir de sua
cenografia, pretende convencer instituindo a cena de enunciação que o legitima”
(2008b, p. 117). A isso Maingueneau (2011, p. 87) chama de “enlaçamento
paradoxal”, isto é, a enunciação supõe uma determinada cena que, efetivamente,
somente se constitui e valida à medida que ela própria vai se desenrolando.
Além disso, uma cenografia pode incluir uma cena validada, que se
caracteriza por apresentar aspectos que foram fixados na memória coletiva, que
evocam determinados modos de ser e estar ligados às atividades sociais. Uma cena
validada funciona “como um estereótipo autonomizado, descontextualizado,
disponível para reinvestimento em outros textos” (MAINGUENEAU, 2005, p. 92).
Segundo Maingueneau (2008b, p.117), numa cenografia se unem “uma figura
de enunciador e uma figura correlata de coenunciadores” que, por sua vez, “supõem
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igualmente uma cronografia (um momento) e uma topografia (um lugar), das quais
pretende originar-se o discurso”. Conforme Possenti (2008, p. 205) “a cronografia e
a topografia não são tempos cronológicos nem espaços geográficos, mas ‘tempos’ e
‘espaços’ ideológicos, históricos: a favela, a cidade, a civilização, a globalização”.
Para Maingueneau (1993) a linguagem, na perspectiva pragmática, constitui
uma forma de ação. Toda enunciação requer condições específicas para sua
realização e é feita por um sujeito habilitado; pressupõe-se, assim, uma instituição
fiadora da validade e do sentido de cada enunciação no exercício do discurso.
“Logo, um sujeito ao enunciar pressupõe uma espécie de ritual social da linguagem
implícito, partilhado pelos interlocutores” (p. 30). Dessa forma, ao fazer uso da
língua, por meio do discurso, os sujeitos representam papéis aceitos e
compartilhados em um processo de interação concernente à vida social.
O enunciador se inscreve no tempo e no espaço de seu co-enunciador,
conferindo credibilidade às enunciações. O enunciador, ao assumir um espaço
determinado, crê que seus interlocutores o veem naquele lugar de onde fala. O
discurso é, então, indissociável da cronografia e topografia do momento da
enunciação. A cena enunciativa engendra esses elementos que se evidenciam na
dêixis, considerando que no ato de enunciação há um conjunto de referências
articuladas na presença dos interlocutores, do lugar e do tempo. Nessa perspectiva,
Maingueneau (1995) denomina cenografia a situação que “define as condições de
enunciador e co-enunciador, mas também o espaço (topografia) e o tempo
(cronografia) a partir dos quais se desenvolve a enunciação”.
Nesse sentido, analisar o discurso implica analisar a enunciação
considerando a cenografia como uma de suas partes integrantes, não como
realidade exterior ao discurso.
Esses aspectos discursivos podem ser identificados pela presença dos
dêiticos espaciais e temporais. Os primeiros são interpretados a partir da
observação da posição que o corpo do locutor ocupa. Há uma localização absoluta
(lugar determinado em que se encontra) e uma localização contextual (“que se apoia
em um elemento do contexto linguístico”). Esses dêiticos aparecem no discurso
como determinantes nominais (demonstrativos) ou como advérbios; destacam-se
pelas informações fornecidas pelo contexto, considerando a localização do corpo do
locutor. Os segundos originam-se no momento em que o locutor fala, “momento que
corresponde ao presente linguístico”. Encontram-se também no discurso as
77
localizações temporais absolutas (data ou momento específico) e as “que se apoiam
em uma referência para que sejam interpretadas”. No discurso, esses dêiticos
podem ser categorizados como advérbios ou como um grupo proposicional. Os
dêiticos foram evidenciados na análise que fizemos das sequências discursivas para
averiguarmos seu funcionamento, conforme descrevemos aqui.
A cena de diário da Expedição Roncador-Xingu, no caso do livro A Marcha
para o Oeste, não é uma cena genérica, mas uma cenografia construída pelo texto,
a cena de fala da qual o texto pretende originar-se (simular que se origina...). Essa
narrativa poderia ter se manifestado por meio de cenografias diferentes, sem
alteração da cena genérica. A cenografia de diário, como qualquer outra cenografia
visa fazer passar a cena englobante e a cena genérica a segundo plano, de modo
que o leitor se situa diante de uma armadilha: quando a cenografia é bem
explorada, ele recebe esse texto primeiramente como um diário, e não como uma
narrativa documentada a partir de uma perspectiva particular. O filme “Xingu”, que
se baseia no referido livro também utiliza este expediente. Exibe, no material de
divulgação e na exibição do filme a inscrição: “Baseado em uma história real”, com o
intento de conferir credibilidade ao texto fílmico e favorecer a recepção do
interlocutor.
Dessa maneira, “o discurso impõe sua cenografia de algum modo desde o
início; mas, de outro lado, é por intermédio de sua própria enunciação que ele
poderá legitimar a cenografia que ele impõe”. Mas, para isso, é necessário que o
discurso faça seus intérpretes “aceitarem o lugar que ele pretende lhes designar
nessa cenografia e, de modo mais amplo, no universo de sentido do qual ela
participa” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 117). Considerando isso, o autor afirma que o
ethos é inseparável da cenografia, uma vez que ele constitui o enunciador para que
ele possa “legitimamente” interpelar o co-enunciador de seu discurso.
Para que a cenografia cumpra inteiramente seu papel, não deve ser
considerada como uma simples moldura, ou como um palco definido antes e fora da
enunciação, mas, a um só tempo, como origem e produto do discurso. À medida que
o co-enunciador (leitor, ouvinte, expectador) avança no texto, ele precisa se
convencer de que aquela cenografia – e não outra – é a ideal para aquele discurso.
Por isso o autor, adverte:
Um dos mal-entendidos sempre suscitados pela noção de cenografia é que muitas vezes interpretada como uma simples cena, como um
78
quadro estável no interior do qual se desenrolaria a enunciação. Na verdade, é preciso concebê-la ao mesmo ao mesmo tempo como quadro e como processo. A –grafia é um processo de inscrição legitimamente que traça um círculo: o discurso implica certa situação de enunciação, um ethos e um ‘código linguageiro’ através dos quais se configura um mundo que, em retorno, os valida por sua própria emergência. O ‘conteúdo’ aparece como inseparável da cenografia
que lhe dá suporte (MAINGUENEAU, 2008b, p. 51).
Nessa concepção de cenografia, considerada como quadro e processo de
inscrição que envolve a situação de enunciação o ethos e o código linguageiro
emergiram os elementos de nossa análise, que por ora concluímos.
2.6 Considerações finais deste capítulo
Por fim, retomamos a síntese que elegemos como caracterizadora da base
conceitual do autor, a de que o ethos é construído por uma relação entre uma
“maneira de dizer, que se remete a uma maneira de ser” e isso leva o co-enunciador
a criar uma imagem do enunciador durante sua enunciação. Essa imagem é
constituída pelo “tom” do discurso, articulado a um caráter e a uma corporalidade, e,
tudo isso, associado à cena de enunciação. Sem necessariamente ter de ser dito
explicitamente, o ethos é percebido pelo destinatário por um conjunto complexo de
elementos que vão desde “a escolha do registro da língua e das palavras até o
planejamento textual, passando pelo ritmo e a modulação” (MAINGUENEAU, 2011,
p. 16). Ele ressalta ainda que:
O co-enunciador captado pelo ethos, envolvente e invisível, de um discurso, faz mais do que decifrar seus conteúdos. Ele é implicado em sua cenografia, participa de uma esfera na qual pode reencontrar um enunciador que, pela vocalidade de sua fala, é construído como fiador do mundo representado. (...) Por sua própria maneira de se enunciar, o discurso mostra uma regulação eufórica do sujeito que o
sustenta e do leitor que ele pretende ter. (MAINGUENEAU, 2008a, pp. 90-911).
Então, verificamos que é possível identificar as estratégias discursivas
empregadas na construção de discursos de provocação do afeto, com o intuito de
tocar a emoção, sob seu aspecto “eufórico”, para provocar alegria e simpatia.
Interessou-nos mais especificamente descrever/interpretar os recursos discursivos
mobilizados nas cenas enunciativas que constituem as narrativas, silenciando a
possibilidade de produzir sentidos disfóricos em relação aos Irmãos Villas-Bôas. Em
outros termos, procuramos descrever/interpretar as estratégias discursivas utilizadas
79
pelos enunciadores de tais narrativas, destinadas a evacuar qualquer contradição de
sentido que não o eufórico e a mascarar a existência da conflituosa relação entre
brancos e índios.
Analisando o contexto sócio-histórico da Expedição Roncador-Xingu
averiguamos as razões das escolhas das referidas estratégias discursivas que
compuseram o projeto discursivo relativo à Expedição e particularmente à atuação
dos Villas-Bôas. Tecemos algumas considerações, que explanamos em seguida,
refazendo o percurso da construção dos sentidos das formações discursivas que
constituem esse projeto discursivo.
Os relatos dos diários dos expedicionários fazem emergir algumas reflexões a
respeito de aspectos que envolvem dois movimentos contraditórios: a necessidade
da integração territorial brasileira enquanto projeto identitário unificador e, de outro
lado, a recepção das populações do sertão brasileiro aos símbolos nacionais e a
ação civilizadora do Estado.
O sertão longínquo que o Estado desejava civilizar para assegurar sua
soberania foi também campo de fortes resistências porque nem todos os povos
indígenas acolheram pacificamente a ação civilizadora promovida pelo governo
federal. Apresentou-se um impasse no palco do jogo político: o índio era
reverenciado pelo Estado como símbolo nacionalista e, simultaneamente,
desempenhava o papel de desafiador de suas instituições. Por tratar-se de uma área
mais distante e autônoma em relação ao poder público, o sertão permitia que as
populações que ali habitavam preservassem e/ou criassem suas próprias leis. Dessa
maneira, distanciando-se dos moldes estabelecidos pelo poder estatal, provocavam
uma fragmentação na tão ansiada unidade nacional, desafiando a possibilidade de
expansão e fortalecimento de um poder central.
A eloquência dos discursos oficiais, que realçava a posse pacífica deste
imenso território, deparou-se com um impasse e as consequências, muitas vezes
dramáticas, decorrentes do contato entre índios e civilizados durante a Expedição
Roncador-Xingu, evidenciaram-se. A esse respeito, Galvão afirma que:
O reconhecimento por parte dos intelectuais ideólogos do Estado da importância do domínio do espaço territorial como elemento constitutivo de identidade nacional impulsionou o projeto da Marcha para o Oeste. A ocupação de áreas até então desocupadas, era o eixo central das políticas de integração, que se deparou com o desafio de construir uma nacionalidade em meio à diversidade.
80
Dessa forma, impuseram-se questões como qual modelo democrático deveria ser seguido, ou qual o paradigma de civilização deveria ser adotado. (GALVÃO, 2011, p. 11)
É nesse impasse que se construiu os ethé dos Irmãos Villas-Bôas, atendendo
a interesses contraditórios, em meio aos conflitos decorrentes do encontro dessas
cosmovisões, diante do desafio da construção de uma nova nacionalidade.
82
Discursos são plurais. Pode haver diferentes discursos, diferentes formas de construir sentido sobre o mesmo aspecto da realidade, que inclui e exclui coisas diferentes e serve a diferentes interesses (VAN LEEUWEN, 2005, p. 95).
Capítulo 3
A IMAGEM E A SUA FUNÇÃO SEMIÓTICA NAS FOTOGRAFIAS DO LIVRO E
NAS CENAS DO FILME XINGU
O objetivo do presente capítulo é discutir o papel da imagem como um modo
semiótico no discurso multimodal do filme “Xingu” e do livro “A Marcha para o Oeste:
a epopeia da Expedição Roncador-Xingu”, e a sua importância para a construção da
representação social, especificamente no que se refere à imagem dos Villas-Bôas.
Conforme Van Leeuwen (2005) a análise discursiva precisa considerar
discursos e aspectos discursivos tanto não verbais quanto realizados verbalmente,
porque muitas vezes imagem e palavra produzem sentidos diferentes e até mesmo
contrastantes.
O pressuposto de que a análise do discurso não deve se restringir à análise
do material verbal presente nos textos permeia todo este trabalho, entretanto
caracteriza mais fortemente este capítulo. Partimos do princípio de que todo texto é
multimodal, assim como fazem os estudiosos da Semiótica Social, dentre os quais,
Van Leeuwen, cujo universo conceitual mobilizamos nesta análise.
A Análise do Discurso caracteriza-se por uma perspectiva na qual o universo
de sentido ofertado pelo discurso impõe-se pelo ethos e pelas “informações” que ele
transmite. Segundo Maingueneau (2005) “O poder de persuasão de um discurso
consiste em parte em levar o leitor a se identificar com a movimentação de um corpo
investido de valores socialmente especificados” (p.98). Portanto, a prerrogativa do
ethos remete à imagem desse ‘fiador’ que, por meio de sua fala, confere a si mesmo
uma identidade equivalente ao universo que ele pretende construir em seu
enunciado. Ainda conforme o autor, “O reconhecimento dessa função do ethos
permite novamente que nos afastemos de uma concepção do discurso segundo a
qual os ‘conteúdos’ dos enunciados seriam independentes da cena de enunciação
que os sustenta” (p. 99).
Na Semiótica Social, Van Leeuwen (2005) destaca as três dimensões do
discurso: Gênero, Estilo e Modalidade. O autor evidencia a importância da
83
concepção de discurso afirmando que: “O conceito de discurso é a chave para
estudar como os recursos semióticos são usados para construir representações e o
que está acontecendo no mundo” (p. 91).
Na análise que empreendemos neste capítulo do trabalho, optamos por
mobilizar a dimensão “Estilo”, que Van Leeuwen descreve como “fundamental para
compreender como as pessoas usam recursos semióticos para elaborar gêneros, e
para expressar suas identidades e valores em uso” (p. 91). O autor faz ainda alusão
à definição de “Estilo” proposta por Thus Kress (1988): “O ‘Estilo’ compreende tanto
‘a organização dos aspectos linguísticos no texto’ quanto ‘os efeitos produzidos na
complexa inter-relação do produtor do texto, o texto, e consumidor do texto, em seus
específicos posicionamentos sociais’” (p. 143).
Julgamos pertinente optar pela dimensão “Estilo”, porque entendemos que
ela contempla os aspectos (mencionados no parágrafo anterior) imbricados na
construção de sentidos do projeto discursivo veiculado pelo filme “Xingu”,
contribuindo também para a construção do ethos dos Villas-Bôas.
Semiótica Social e Análise do Discurso convergem na medida em que
consideram constituinte do discurso o universo de sentido, constituído por vários
elementos de ordem social e histórica, não somente a superfície textual e/ou sígnica.
Por isso lançamos mão de ambos universos conceituais para empreender a
análise das fotografias do livro e das cenas do filme. Consideramos relevante
justificar os critérios que nortearam a seleção dos recortes que foram feitos e
tomados para a análise. Julgamos oportuno esclarecer que buscamos em nosso
arquivo cenas do filme e fotografias do livro que dialogassem com as sequências
discursivas analisadas anteriormente. Assim procedemos com o objetivo de
aprofundar nossa análise, no sentido de conjugar elementos linguístico-discursivos
aos semióticos, explorando as estratégias utilizadas na construção de imagens
eufóricas dos Irmãos Villas-Bôas.
3.1 A recontextualização da prática social
Na visão de Van Leeuwen, ao representar um evento social, este é
incorporado ao contexto de outro evento social, e isso leva ao que ele denomina de
recontextualização. O autor confirma esta perspectiva em relação ao discurso como
a recontextualização da prática social. Para o autor, a recontextualização é vista
como um processo pelo qual textos particulares incorporam outros textos
84
seletivamente. Pode ser vista com uma relação dialética a qual é simultaneamente
uma relação de colonização e uma relação de apropriação, incluindo práticas, redes
de práticas, ordens de discurso, discursos, gêneros e/ou estilos, os quais já existem
fora da entidade mantendo contato com o seu interior. É possível verificar esse
processo de recontextualização na composição das cenas de “Xingu” que
estabelecem uma relação dialética de colonização e apropriação do discurso
pictórico do “Descobrimento do Brasil”, veiculado pela obra “Desembarque de Cabral
em Porto Seguro”.
Cena do filme que traz o primeiro contato com um grupo indígena, da etnia Kalapalo, às margens do Rio Xingu.
85
De acordo com o autor, podemos representar os eventos sociais de forma
mais concreta (representação de eventos sociais específicos), generalizada
(abstração de séries ou conjuntos de eventos sociais) ou mais abstrata
(representação no nível das práticas ou estruturas sociais), olhando para os textos
de um ponto de vista representacional em termos de quais elementos são incluídos
ou excluídos dos eventos. No caso das referidas cenas – que exibem o primeiro
contato dos expedicionários com alguns indígenas da região do rio Xingu – o evento
social da Expedição Roncador-Xingu foi representado de forma mais abstrata, no
nível das estruturas sociais que estabelecem similitudes entre o “Descobrimento do
Brasil” e o “Povoamento do Oeste Brasileiro” promovido pela Marcha para o Oeste.
3.2 A representação por meio de metáforas
Van Leeuwen (2005, p. 30) afirma que a essência da metáfora é a noção de
“transferência”, de transferir algo de um lugar a outro, com base em uma
similaridade percebida entre os dois lugares. O conceito de metáfora é um conceito
multimodal e pode ser aplicado também aos modos semióticos além da linguagem
verbal, como podemos constatar nestas cenas do filme em estudo e nas SD’s que
as acompanham:
Personagens Orlando e Cláudio expõem a ideia de criação do Parque Indígena do Xingu ao comando da ERX.
Orlando: Eu proponho uma troca: fazemos a Base [Militar do Cachimbo], abrimos o caminho. General: E? Orlando: E, em troca, vocês isolam uma área, uma boa área, pros índios do Xingu. Assessor do Governador: Um acampamento? Um posto? Acho que o Governador não se oporia. Fazendeiro: Nós também podemos ceder alguns hectares. Cláudio: Um acampamento, não; um Parque Indígena. Fazendeiro: Uma cidade de índios... É isso? Cláudio: Uma cidade, não; um Estado. (Risos do Comandante e do Assessor
86
do Governador) General: Eu posso levar o assunto ao Presidente. Só não posso prometer nada. Terra é assunto sério. Ainda mais, terra assim, muito disputada. Terra ótima pra criar gado. Em quanto tempo vocês entregam a base? Orlando: General, o senhor marca a data. De acordo? General: De acordo.
Personagem de Cláudio questiona apropriação de terras pertencentes aos indígenas da etnia Trumai.
Os diálogos que constituem as cenas a seguir são descritos nas respectivas
sequências discursivas:
Cláudio: O que é que vocês estão fazendo aqui? Isso aqui é território indígena. Fazendeiro: Desde quando índio tem terra? Cláudio: Desde sempre. Vocês estão invadindo o território deles. Isso aqui é terra Trumai. Fazendeiro: Que terra Trumai? Essa terra é minha, quem me deu foi o governador. Cláudio: Eu acho melhor vocês saírem daqui... Eu tô avisando, hein? Capataz: Ninguém tem medo de índio aqui não, moço. Cláudio: E nem eles tem medo de vocês, não, rapaz! Capataz: É, mas você deveria ter! Branco que protege índio, pra nós, é pior do que índio! Cláudio: Eu tô avisando, hein? Eu to avisando!
Personagem de Orlando divulga a imprensa o que ele chama de política desastrosa do Governo de Mato Grosso
87
Orlando: Responsabilizamos o governo do Estado de Mato Grosso pelo atual estado de guerra na Região do Xingu. Uma política desastrosa de distribuição aleatória de terras ancestrais de povos indígenas.
Constatamos o caráter metafórico da representação veiculada pelas referidas
cenas do filme, cuja perspectiva promove a “transferência” dos conflitos políticos
enfrentados pelas personagens no período histórico em que a narrativa se situa para
aqueles conflitos vividos atualmente, com base em uma similaridade percebida entre
os dois lugares.
As relações metafóricas das cenas do filme auxiliam na construção de sua
representação social e, em consequência, de sua identificação social. Podemos
destacar as metáforas visuais que, por seu caráter representativo intencional de um
signo, traçam paralelismos com algo diferente. É por essa razão que a metáfora
estabelece um paralelo entre o caráter representativo do signo, o seu significado e
algo diferente dele.
Essas imagens têm um caráter metafórico, uma vez que constituem uma
representação/denúncia da situação em que os povos indígenas brasileiros vivem
atualmente. A metáfora consiste, portanto, numa transposição de significado que
explora alguma relação lógica entre termos. No caso do filme, a parte pelo todo: as
etnias indígenas ali representadas por todas aquelas do Brasil. Esse caráter
representativo intencional da construção do projeto discursivo do filme é explicitado
pelo diretor Cao Hamburger. Para ele, “Xingu não é apenas um filme atual, mas
urgente, crucial num momento em que abusos contra os povos indígenas continuam
sendo cometidos” – como os relatados no ano passado, à época da estreia do filme
– no município de Rio Brilhante (Mato Grosso do Sul) contra o povo Guarani-Kaiowá
e no caso da criança queimada viva no Maranhão. Para ele, “Xingu não é apenas
um filme de época que aborda um episódio do passado, mas também uma produção
que permite ao público traçar leituras com questões do presente”. Por isso ele ainda
afirma que:
Creio que se conseguirmos fazer com que o público entenda que alguns diálogos e personagens do filme são espelho de pessoas e pensamentos ainda presentes no Brasil, conseguiremos mobilizar o público, pois a outra parte – ação e drama – tem de sobra (HAMBURGER, Cao, no press book do filme Xingu, grifos nossos).
88
Ou como define o produtor Fernando Meirelles:
O filme chega num momento em que se questionam os megaprojetos para o desenvolvimento da Amazônia e as desastrosas mudanças do Código Florestal. Xingu fala sobre esses
mesmos erros cometidos há 50 anos (MEIRELLES, Fernando, no press book do filme Xingu, grifos nossos).
Sócio-fundador da produtora O2 ao lado de Andrea Barata Ribeiro e Paulo
Morelli, Fernando Meirelles viu em Xingu uma oportunidade de contar um capítulo
importante da História brasileira, traçando paralelos com o momento atual, mas
também trazendo entretenimento ao público. “Poucos filmes da O2 não tiveram
distribuição internacional. Gostamos de fazer filmes que possam dizer algo e Xingu é
um filme assim, que vem para somar” acrescentou o produtor.
3.3 Mudanças nas práticas sociais
Van Leeuwen (2005, p. 26) argumenta que assim como a sociedade muda,
novos recursos semióticos e novas maneiras de utilizar os recursos existentes
podem ser necessários. Pudemos verificar essas mudanças ao investigar
informações sobre o processo de elaboração do filme.
O projeto nasceu de um desejo de Noel Villas-Bôas, filho de Orlando, em ver
a aventura dos irmãos contada pelo cinema.
A missão de dar corpo aos irmãos foi entregue a três grandes atores da
produção brasileira: Felipe Camargo, Caio Blat e João Miguel.
Mais velho dos irmãos, Orlando é o articulador entre as etnias indígenas e o
poder oficial, responsável por brecar a ingerência externa. Já Cláudio, é o grande
idealista e o mais consciente da contradição da expedição. O caçula é Leonardo,
vibrante e corajoso.
Felipe Camargo é Orlando, o mais velho dos irmãos, mediador do contato dos
índios com o poder oficial. “Considero meu personagem um diplomata, um
comunicador”, afirma o ator. Na pele de Cláudio, o mais idealista dos irmãos, está
João Miguel. “É um dos meus personagens mais bonitos e complexos”, define. Para
o papel do irmão mais novo (Leonardo) Caio Blat foi o escolhido.
Pesquisando o processo de elaboração de “Xingu”, vimos emergir algumas
semelhanças entre cenas do filme e fotografias do livro, convergindo na construção
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de um projeto discursivo caracterizado por um estatuto de “verdade”. Para
pensarmos esse projeto discursivo veiculado pelo cinema, lançamos mão das
reflexões de Ismail Xavier sobre o discurso cinematográfico. A partir da observação
dos referidos aspectos, inferimos que esse efeito de “reconstrução da realidade” é
forjado a partir da fidelidade a elementos constitutivos das narrativas da ERX, como
as fotografias, cujas similitudes com cenas do filme exploraremos em nossa análise
das imagens a seguir.
90
Fotografia dos personagens dos Villas-Bôas. Arquivo fotográfico do filme. Fonte: www.xinguofilme.com.br
A imagem acima estabelece no contato com o leitor uma espécie de
hierarquia na qual em primeiro plano está Orlando. A fotografia do filme a reproduz.
Na narrativa fílmica consta que ele exerceu esse papel de líder, na ERX e no
relacionamento entre os irmãos, não somente pelo fato de ser o mais velho, mas por
possuir uma personalidade marcante, uma perspectiva que se impôs, um
engajamento exigente consigo mesmo e com os outros. “Xingu” traz alguns conflitos
vividos entre os Irmãos, por conta do caráter contraditório da ERX e de seus pontos
de vista divergentes em relação a essa questão. Leonardo Villas-Bôas, que é o
caçula, aparece no meio dos irmãos Orlando e Cláudio, porque há momentos no
filme em que acontecem discussões entre Orlando e Cláudio por conta das atitudes
de Leonardo, que tem um caráter impetuoso, a ponto de cometer imprudências,
segundo Orlando. Já Cláudio tende a compreender o irmão Leonardo, talvez por
identificar-se com ele numa perspectiva em que predomina a dimensão emocional.
O personagem de Cláudio demonstra sentir muito o desligamento de Leonardo da
ERX, bem como sua morte, depois da consolidação do Parque Indígena do Xingu.
A respeito da relação de “fidelidade” estabelecida entre fotografia e cinema,
Ismail Xavier afirma:
Vamos reter a ideia de fidelidade de reprodução de certas propriedades visíveis do objeto e a ideia de que uma fotografia pode ser encarada como um documento apontando para a pré-existência do elemento que ela denota. Estes são pontos de partida para a reiterada admissão ingênua de que, na fotografia, são as coisas mesmas que se apresentam à nossa percepção, numa situação vista como radicalmente diferente à encontrada em outros tipos de representação. Se já é um fato tradicional a celebração do “realismo” da imagem fotográfica, tal celebração é muito mais intensa no caso do cinema, dado o desenvolvimento temporal de sua imagem, capaz de reproduzir, não só mais uma propriedade do mundo visível, mas justamente uma propriedade essencial à sua natureza – o movimento
(XAVIER, 1984, p. 12).
Desta maneira, afirma-se um sistema de ressonâncias, no qual um
procedimento complementa e multiplica o efeito do outro. Percebemos assim, um
esquema que vai da ‘impressão de realidade’ à fé do espectador, identificado com
os acontecimentos e dominado pelo grau de credibilidade específica que marca sua
participação afetiva. As imagens abaixo também exemplificam esse processo:
91
O presidente Jânio Quadros entre Leonardo e Orlando Villas-Bôas, em 1961.
O personagem do presidente Jânio Quadros conversando com o personagem de Orlando Villas-Bôas, numa das cenas do filme Xingu.
As semelhanças entre as imagens evidenciam a perspectiva de “reconstrução
da realidade” que caracteriza o discurso fílmico de “Xingu”. A partir da observação
dessas, é possível inferir todo um cuidado em relação à reprodução dos detalhes
que visa produzir o efeito de realidade. Sobre isso, o referido autor assevera ainda
que:
A ‘seriedade’ da reconstrução e o cuidado apurado manifesto nos detalhes simboliza uma atitude de ‘respeito à verdade’ que tende a ser creditada para o filme no seu todo. No caso dos superespetáculos, a ideia de cópia funde-se com a ideia de monumentalidade; e procura-se fazer com que os elementos da intriga e o destino das personagens passem por ‘modelos exemplares’, por autênticas alegorias que carregam um fundo de verdade profunda face à vida do homem neste e noutros mundos (XAVIER, 1984, p. 32).
92
Nas cenas seguintes, os personagens comemoram o anúncio oficial da
criação do Parque Indígena do Xingu. As cenas remetem ao fato ocorrido em 1961,
durante do mandato presidencial de Jânio Quadros.
Além do trio protagonista e das participações especiais de Augusto Madeira,
Fábio Lago e Maria Flor, índios não atores de sete etnias foram prospectados e
participaram de Xingu, por vezes interpretando histórias muito próximas da de seus
familiares.
João Miguel, no papel de Cláudio Villas-Bôas.
Felipe Camargo, interpretando Orlando Villas-Bôas.
Os dois personagens, com a atriz Maria Flor, que interpreta
Marina Villas-Bôas, em meio aos integrantes indígenas do elenco.
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Nas imagens acima, se pode observar igualmente o cuidado com a
caracterização dos personagens que temos referenciado (sobretudo nas pinturas
corporais dos integrantes indígenas, relativas às etnias integrantes do Parque
Indígena do Xingu e nos movimentos da dança ritual que realizam). Essa dedicação
à fidelidade histórica norteou também a produção do cenário em que se passa o
filme “Xingu”, que foi filmado inteiramente em locação durante julho e novembro de
2010. Parte do cenário teve de ser reconstruído pelo diretor de arte Cássio
Amarante, que explicou:
O tempo tratou de transformar e descaracterizar a maioria das locações onde se passa boa parte das cenas do filme. Isso nos obrigou a recriar Xavantina, hoje uma cidade importante na região, que naquela época era um acampamento militar. Assim como os chamados Postos Leonardo e Diauarum, respectivamente casa de Orlando e Claudio Villas-Bôas, que também foram recriados em paisagens cuidadosamente escolhidas entre o rio Tocantins e o
rio Araguaia (AMARANTE, Cássio, no press book do filme Xingu, grifos nossos).
A beleza natural foi captada em tocantes planos abertos pelo fotógrafo
Adriano Goldman, que declarou:
Depois de pesquisar bastante e visitar as locações pelo menos duas vezes, incluindo o Parque do Xingu e as aldeias, fomos percebendo que, querendo ou não, faríamos um tipo de western sul americano, o nosso épico. Imensas paisagens, o desconhecido, o cerrado (GOLDMAN, Adriano, no press book do filme Xingu).
Cena do início do filme, que traz o cerrado, vegetação característica do Centro-Oeste brasileiro.
94
Cena do início da Expedição Roncador-Xingu, na Serra do Roncador
Cena do avião do comando da ERX sobrevoando a região da Serra do Roncador
Constatamos que tudo neste filme caminha em direção ao controle total da
realidade criada pelas imagens – tudo composto, sincronizado e previsto. Porém, ao
mesmo tempo, tudo aponta para a invisibilidade dos meios de produção dessa
realidade. Em todos os níveis, o objetivo é ‘parecer verdadeiro’; montar um sistema
de representação que visa anular a sua presença como trabalho de representação.
O corpus brevemente analisado permitiu uma análise geral nesse nível,
demonstrando que o discurso, como um modo de representação das práticas
sociais, materializado em textos, pode refletir como também (re)contextualizar essas
práticas por meio de metáforas visuais que estão diretamente relacionadas ao
conhecimento cultural dos atores sociais.
95
Pela análise dos textos multimodais, chegamos à conclusão que a expressão
de uma imagem, como modo semiótico que produz significados, com todos os seus
elementos de composição, exerce grande influência na construção de
representações sociais, em especial, do filme cujas cenas analisamos.
96
“Considerações Finais”
É chegado o momento de tecer considerações “finais” a respeito das
descobertas da pesquisa. Consideramos que realizar essa tarefa não signifique um
esgotamento de possibilidades, mas contemplação do horizonte repleto de vias para
a exploração do arquivo de narrativas que dizem a Expedição Roncador-Xingu.
O que nos moveu, desde o momento de elaboração do projeto que culminou
com esta dissertação, foi o desejo de empreender uma análise discursiva de
algumas produções literárias e fílmicas relativas à Expedição Roncador-Xingu.
Considerando a grande extensão do arquivo composto pelas muitas produções,
optamos por dedicar-nos aos textos que constituem o livro “A Marcha para o Oeste:
a epopeia da Expedição Roncador-Xingu” e o filme “Xingu”. Motivou-nos, nessa
escolha, a possibilidade de explorar, em nossa análise, pontos de semelhanças e
diferenças das referidas produções. Justifica-se assim, o fato de explanarmos as
diferenças: quanto à natureza dos discursos (um é textual e o outro, fílmico); quanto
à época em que foram elaborados (um durante/após a ERX e outro, nos dias atuais)
e quanto á autoria dos relatos (um escrito pelos Villas-Bôas e outro, inspirado neste
e em outros relatos). Verificamos que as semelhanças, que são muitas, derivam de
uma semelhança fundamental: ambas veiculam um mesmo projeto discursivo, em
prol da construção da heroicidade dos Irmãos.
Durante o processo de leitura do livro para a seleção e recorte das
sequências discursivas que comporiam o corpus, percebemos a necessidade de
levar em conta a variedade de aspectos que constituem o ethos dos Irmãos Villas-
Bôas, bem como as cenas da enunciação que compõem o relato. Por isso,
lançamos mão do referencial teórico de Maingueneau e Charaudeau, que
contemplam juntos, as especificidades dos ethé constitutivos da imagem dos Irmãos
e os recursos discursivos empregados na enunciação da Expedição.
Propusemo-nos, como um dos objetivos específicos, descrever/interpretar os
recursos linguístico-discursivos mobilizados nas cenas enunciativas que constituem
as narrativas, silenciando a possibilidade de produzir sentidos disfóricos em relação
aos Irmãos Villas-Bôas. Assim procedemos, para infirmar ou confirmar essa hipótese
de leitura do material textual analisado: no primeiro capítulo investigamos as
condições de produção desse projeto discursivo que narra a “missão” dos Irmãos, na
perspectiva de Jaques Le Goff ,que discute os conceitos Documento e Monumento.
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Na análise das sequências discursivas feitas no segundo capítulo, os conceitos
apresentados foram mobilizados para evidenciar a presença do ethos, bem como
para dar voz aos discursos pré-construídos, constitutivos dos sujeitos. No terceiro
capítulo, julgamos relevante fazer a análise das fotografias e das cenas do filme,
conjugando-as com alguns excertos dos enunciados dos atores e personagens do
filme. Na finalização deste capítulo, analisamos as relações estabelecidas entre
fotografias presentes no livro e as imagens fílmicas.
Diante do exposto, consideramos que nossa hipótese de estudo – aquela de
que tais narrativas são destinadas a apagar qualquer contradição de sentido que
não o eufórico e a mascarar a existência da conflituosa relação entre brancos e
índios – foi confirmada, tendo em vista que conseguimos descrever/interpretar as
estratégias discursivas utilizadas pelos enunciadores das narrativas, neste trabalho,
conforme o que foi descrito no parágrafo anterior.
Consideramos, assim, que a escolha da análise de discurso de linha francesa
e das categorias de análise (cena da enunciação, cena genérica, cenografia e ethos)
foi fundamental para a leitura do corpus que recortamos do extenso arquivo das
narrativas da ERX. No entanto, muitas outras questões de natureza conteudística ou
teórica poderiam ser abordadas na presente dissertação. Por exemplo, a quem
beneficiou e/ou beneficia o sentido eufórico dado aos Villas-Bôas nas narrativas em
análise? Por qual razão os contra-discursos, os que dizem disforicamente os Villas-
Bôas, embora presentes pela ausência nas narrativas em análise, não se dão em
circulação? Que relação as cenografias engendradas nas narrativas em análise
mantém como o momento histórico em que tais narrativas foram produzidas?
Cremos, entretanto, como sugerem inicialmente as aspas, presentes no título desse
tópico final, ou seja, que não se trata de conclusões finais, mas da abertura de
novas possibilidades, tais questões poderão ser tratadas em trabalhos futuros. Fica
aqui registrado o nosso compromisso pela continuação da pesquisa.
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