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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA
A LÍNGUA PORTUGUESA NO BARROCO: CENAS DA ENUNCIAÇÃO E O PAPEL
DO HIPERENUNCIADOR EM AS CARTAS ESPIRITUAIS DE FREI ANTONIO DAS
CHAGAS
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
RICARDO CELESTINO
SÃO PAULO - SP
2014
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA
A LÍNGUA PORTUGUESA NO BARROCO: CENAS DA ENUNCIAÇÃO E O PAPEL
DO HIPERENUNCIADOR EM AS CARTAS ESPIRITUAIS DE FREI ANTONIO DAS
CHAGAS
Dissertação apresentada ao Programa
de Estudos Pós-graduados em Língua
Portuguesa da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUCSP,
como exigência parcial para obtenção
do título de MESTRE em Língua
Portuguesa, sob a orientação do
Professor Doutor Jarbas Vargas
Nascimento.
RICARDO CELESTINO
SÃO PAULO - SP
2014
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
______________________________________
______________________________________
DEDICATÓRIA
A meus pais, Pedro Celestino e Sonia de Oliveira Celestino, pelos anos de
criação e formação do ser humano que sou hoje.
AGRADECIMENTOS
À vida e à oportunidade de vivenciar experiências ímpares como essa.
A todos os funcionários ligados ao Programa de Estudos Pós-graduados de
Língua Portuguesa da PUCSP.
À Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES
por ter acreditado no êxito deste trabalho e pelo apoio financeiro.
Ao professor Doutor Jarbas Vargas Nascimento, meu orientador e amigo, pela
presença, paciência, comprometimento, conduta, liderança, exemplo e apoio,
desde os primeiros passos de minha formação acadêmica.
Aos professores Doutores Márcio Rogério Oliveira Cano e João Hilton Sayeg
de Siqueira, pelas expressivas sugestões dadas à minha pesquisa e pela
humildade,competência e disponibilidade em sempre se colocaremà disposição
para meu enriquecimento cultural.
Ao Professor Doutor Carlos Eduardo Mendes de Moraes, da UNESP-Assis,
pela gentileza em me receber e orientar leituras que enriqueceram a pesquisa.
Aos membros dos Grupos de Pesquisa Memória e Cultura da Língua
Portuguesa Escrita no Brasil, da PUCSP, e A Escrita no Brasil Colonial e suas
relações, da UNESP-Assis, pelas contribuições que engradecem meu
repertório acadêmico.
À minha noiva, Dandara Nunes Martins, por me incentivar e estar ao meu lado
nos momentos fáceis e difíceis de elaboração desse trabalho.
Aos meus irmãos, Flávio Celestino e Fernanda Celestino, por participaremda
minha vida como exemplos positivos de perseverança.
Ao amigo, Ramon Silva Chaves, pelo exemplo de conduta como pesquisador e
pelas conversas acadêmicas, que enriqueceram muito nosso trabalho.
E, acima de tudo, à minha família e amigos que sempre estiveram ao meu lado.
RESUMO
Esta Dissertação tem como tema o estudo das cenas da enunciação e do papel
do hiperenunciador em Cartas Espirituais de Frei Antonio das Chagas, escritas
no Barroco português. Integrado à linha de pesquisa de Texto e Discurso nas
modalidades oral e escrita, trata-se de um estudo enunciativo-discursivo de
práticas sociais do século XVII, fundamentada pela Análise do Discurso de
linha Francesa, principalmente pelas abordagens de Maingueneau(2005, 2006,
2007, 2008a, 2008b, 2011). Temos como objetivo examinar a construção das
cenas da enunciação e o papel do hiperenunciador em Cartas Espirituais, de
modo a verificar como o interdiscurso, o gênero do discurso e as cenas da
enunciação dialogam no funcionamento discursivo para o surgimento do
hiperenunciador. A mobilidade do hiperenunciador é identificada por meio dos
aspectos que fundamentam os diferentes pontos de vista expressos pelo
enunciador,reconhecida a partir das formações discursivas impressas nas
cartas espirituais, que constituímos com amostra de análise e que fornecem
marcas da estética barroca e da espiritualidade do século XVII.Assim, tomamos
as cartas espirituais em análise como atividade humana institucionalizada do
discurso religioso. As cartas são gêneros de discurso que objetivam orientar e
doutrinar o posicionamento de fiéis e religiosos aos paradigmas da Igreja
Católica e da espiritualidade cristã seiscentista. O enunciador, inserido em um
lugar social, interage enunciativamente com um co-enunciador, que também
possui especificidades socioculturais, com a finalidade de convencê-lo de que a
orientação espiritual detém direcionamentos, que solucionam as inquietações
da vida cotidiana. Osenunciados das cartas selecionadasrevelam
posicionamentos, que nos permitem a consolidação de um espaço discursivo
do dizer e do não-dizer. Tanto o enunciador quanto o co-enunciador se
deparam com a polêmica sacroprofana das reformas religiosas, da valorização
do cientificismo e da decadência da espiritualidade e buscam posicionar-se de
forma a não estabelecer equilíbrio entre um posicionamento e outro, mas
institucionalizar-se e defender uma verdade absoluta. Dessa maneira, o
enunciador assume um posicionamento de forma a invalidar todos os demais,
utilizando da retórica gongórica do cultismo e do conceptismo, também
frequentes na arte Barroca, para convencer o co-enunciador, que se encontra
com a fé e a devoção institucional abaladas frente às contradições do mundo
seiscentista.
Palavras-chave: Análise do Discurso, hiperenunciador, espiritualidade,
Barroco, Frei Antonio das Chagas.
ABSTRACT
This dissertation has as its theme the study of scenes of enunciation and the
function of hiperenunciator in CartasEspirituais of Frei Antonio das Chagas,
written in Portuguese Baroque. Integrated in the line of research text and
discourse in oral and written, it is an enunciative-discursive study of social
practices of the seventeenth century , grounded by Discourse Analysis of
French line, especially the approaches Maingueneau ( 2005, 2006, 2007,
2008a, 2008b, 2011) . We aim to examine the construction of the scenes of
enunciation and the function of hiperenunciator in CartasEspirituais, so check
how interdiscourse, gender discourse and scenes of enunciation dialogue in
discursive function for the emergence of hiperenunciator. The mobility of
hiperenunciator is identified by means of the aspects that underlie the different
views expressed by the enunciator, recognized from the printed discursive
formations in spiritual letters, which constitute a sample for analysis and
providing brand of baroque aesthetics and spirituality of the century XVII. Thus,
we take the spiritual letters as an institutionalized human activity analysis of
religious discourse. The letters are genres of discourse that aim to guide and
edify the faithful and religious position of the paradigms of the Catholic Church
and of seventeenth-century Christian spirituality. The enunciator, inserted into a
social place, enunciatively interacts with a co-enunciator, which also has socio-
cultural specificities, in order to convince him that the spiritual guidance has
directions, that address the concerns of everyday life. The set of selected letters
reveal placements that allow us to consolidate a discursive space of the mean
and non- mean. Both the enunciator as co-enunciator faced with sacroprofana
controversial religious reforms, enhancement of scientism and decadence of
spirituality and seek to position themselves so as not to strike a balance
between a position and the other, but to institutionalize itself and defend an
absolute truth. Thus, the enunciator assumes a placement in order to invalidate
all others, using the rhetoric of gongoric cultism and conceptism also common
in Baroque art, to convince the co-enunciator, who meets with faith and
devotion institutional shattered front the contradictions of the seventeenth-
century world.
Key-words:Discourse Analysis, hiperenunciator, spirituality, Baroque, Frei
Antonio das Chagas.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 1
CAPÍTULO I
CONDIÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DE PRODUÇÃO DE CARTAS
ESPIRITUAIS
1.1. Antonio da Fonseca Soares / Frei Antonio das Chagas ........................................................... 8
1.2. As condições sócio-político-culturais do século XVII .............................................................. 14
1.3. A religiosidade no século XVII .................................................................................................... 22
1.4. O Barroco português .................................................................................................................... 31
CAPÍTULO II
ANÁLISE DO DISCURSO: FRONTEIRAS E CONCEITOS
2.1. As formações discursivas e o primado do interdiscurso ........................................................ 40
2.2. Tipos e gêneros do discurso ....................................................................................................... 47
2.3. As cenas da enunciação ............................................................................................................. 54
2.4. A noção do hiperenunciador ....................................................................................................... 57
CAPÍTULO III
CENAS DA ENUNCIAÇÃO E O PAPEL DO HIPERENUNCIADOR EM
CARTAS ESPIRITUAIS
3.1. Procedimentos de análise ........................................................................................................... 68
3.2. O gênero carta: uma orientação doutrinária institucional e espiritual .................................. 69
3.3. As cenas da enunciação e a legitimidade da instância do hiperenunciador como
formas de adesão do posicionamento do co-enunciador .............................................................. 77
3.3.1. A epígrafe ............................................................................................................................... 80
3.3.2. A amostra ............................................................................................................................... 82
3.3.2.1.Carta I ........................................................................................................................................... 82
3.3.2.2.Carta IV ......................................................................................................................................... 95
3.3.2.3.Carta V ........................................................................................................................................ 105
3.3.2.4.Carta XX ..................................................................................................................................... 115
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................. 126
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................................... 129
ANEXOS .................................................................................................................................................. 132
1
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como tema o estudo das cenas da enunciação e do papel do
hiperenunciador em Cartas Espirituais de Frei Antonio das Chagas, escritas no Barroco
português. Pertencente à linha de pesquisa de Texto e Discurso nas modalidades oral
e escrita, trata-se de um estudo enunciativo-discursivo de práticas sociais do século
XVII. Obra de valor documental, Cartas Espirituais foi editada postumamente em dois
volumes, o primeiro em 1684, com 100 cartas, e o segundo em 1687, com 266. Estudá-
las na perspectiva enunciativo-discursiva nos possibilita compreende-las como
documento histórico que revela episódios da vida cotidiana de uma sociedade, cuja
formação social, espiritual, religiosa, política e cultural agregam referências dos
pensamentos medieval e renascentista, que constituem a estética e o pensamento do
Barroco português.
Como amostra de nossa pesquisa, examinaremos as cartas espirituais do
primeiro volume que apresentam epígrafe, corpo de texto, saudação, assinatura e das
quais emerge o hiperenunciador em seu aparelho enunciativo. A escolha foi
impulsionada pela necessidade de compreendermos o funcionamento estrutural,
estilístico e temático da amostra selecionada e, ainda, como o discurso é encenado na
enunciação, sendo uma das condições para entendermos a esfera de atividade
religiosa que possuem os discursos selecionados. A emergência do hiperenunciador no
aparelho enunciativo é condição para observarmos como um discurso institucionalizado
religioso possui atravessamentos do campo literário do Barroco português, a partir dos
jogos de ideias e conceitos, muito comuns na estética gongórica seiscentista.
Selecionamos, então, as cartas I, IV, V, VI, VII, VIII e XX.
O pensamento e a cultura pós-renascentista, bases para a moral e os costumes
da sociedade portuguesa do século XVII, têm como influências o Renascimento e a
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Contrarreforma. A dualidade nesse período é marcada por tendências racionalistas e
renascentistas de pensamento e pelos valores morais pautados na cultura medieval e
promovidos pelas instituições religiosas. Nesse contexto insere-se Frei Antonio das
Chagas, nome religioso que assumiu Antonio da Fonseca Soares (1631–1682), homem
que viveu expressivamente a dualidade barroca. Foi soldado da Guerra da
Restauração, contra o exército espanhol, e poeta de destaque, explorando, dentre
outros temas, suas experiências amorosas e os excessos cometidos em sua vida
secular.
Em 1662, Soares renunciou à vida militar e dedicou-se aos votos monásticos na
Ordem de São Francisco, em Évora. A partir de então passou a ser conhecido por Frei
Antonio das Chagas, tendo direcionado sua vida ao evangelho e aos atos de fé.
Percorreu as terras do Alentejo e Algarve em andanças missionárias, momento em que
compôs Cartas Espirituais, considerada sua obra-prima e que o coloca entre os
grandes cultores do Barroco português.
Cartas Espirituais são produções avulsas compostas por Chagas ao longo de
suas peregrinações e missões religiosas. Serviram tanto como veículo de contato entre
fiéis e religiosos como meio de doutrinação espiritual da fé cristã. Nelas podemos
perceber aspectos da língua, da estética, da espiritualidade e do pensamento da
época, já que são, em sua maioria, cartas-resposta de outras produções enunciadas
por fiéis e religiosos que viam o frei não apenas como um religioso em ofício, mas
também como um confidente íntimo.
A compreensão de Cartas Espirituais está diretamente relacionada ao
entendimento de suas condições sócio-históricas de produção e de circulação. A
Análise do Discurso de orientação francesa, doravante AD, é o referencial teórico-
metodológico que nos possibilita compreender o discurso indissociável de seu quadro
social. Os estudos realizados na AD ultrapassam a reflexão intradiscursiva, pois
contemplam os aspectos sociais, históricos, culturais e institucionais da produção
discursiva. Assim, selecionamos os estudos de Maingueneau (2005, 2006, 2007,
2008a, 2008b, 2011) como referencial teórico-metodológico.
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A noção de discurso utilizada na AD foi, inicialmente, contemplada pela Filosofia.
Em Foucault (1987, 2012) e Deleuze (2005), o discurso é estudado como um lugar
possível entre o pensamento e a palavra. Os autores afirmam que o pensamento é
revestido de signos linguísticos e representações sociais influenciadas pelo lugar e
tempo, que se tornam visíveis por meio do texto. O discurso carrega valores de
verdade de um determinado grupo ou instituição social, o que constituem as formações
discursivas.
Maingueneau (2008b) reconsidera a noção de formação discursiva, propondo
estudá-la na linguística, refletindo sobre o primado do interdiscurso. O interdiscurso é
uma categoria que afeta a discursividade para além da relação direta entre língua e
história. A interação enunciativa é constituída pela forma que um enunciador conduz
diversos olhares de Outros discursos na constituição de seu próprio discurso. O autor
propõe um quadro metodológico para o domínio do interdiscurso, a partir de uma tríade
composta por: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. Observar a
categoria interdiscurso, em Cartas Espirituais, é essencial, pois significa valorizar os
aspectos sócio-histórico-culturais que permitem a construção dos efeitos de sentido da
amostra selecionada.
Não é apenas a categoria de interdiscurso que é basilar para o estudo
enunciativo-discursivo de Cartas Espirituais. A categoria de gêneros do discurso,
proposta inicialmente por Bakhtin (1992) e posteriormente por Maingueneau (2008a,
2011) também é condição fundamental para a compreensão do discurso em relação
com a prática social seiscentista. Estudar gêneros na AD é compreendê-lo como
unidade de linguagem que estabelece os papeis exercidos pelo enunciador e pelo co-
enunciador na interação enunciativa. O papel que cada um exerce na enunciação são
as representações que cada sujeito possui na prática social que, encenado na
enunciação, estão suscetíveis a um sistema de coerções determinado, que opera nos
planos do discurso e na rede institucional de um grupo. O gênero, a partir das três
dimensões que o compõem - tema, estrutura e estilo - está vinculado a um tipo de
discurso que o legitima como pertencente a uma determinada instituição social.
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Estudar o gênero como uma prática enunciativo-discursiva cooperativa e regida
por normas e certo número de regras conhecidas e sancionadas pela comunidade que
faz uso deste mesmo gênero é compreendê-lo como um ritual em que a prática é
encenada na enunciação. Maingueneau (2011, p. 85) afirma que um texto não é um
conjunto de signos inertes, mas o rastro deixado por um discurso em que a fala é
encenada, ou seja, por meio da enunciação, há emergência de uma categoria que
encena o que é dito e define os papéis dos enunciadores e o contrato estabelecidos
por eles e pelo gênero no espaço enunciativo, definido como as cenas da enunciação.
O estudo das cenas da enunciação justifica-se, pois, a partir dela, há a
emergência da instância do hiperenunciador em Cartas Espirituais de Frei Antonio das
Chagas. São nas cenas da enunciação, e, mais especificamente, na cenografia, que as
estratégias enunciativo-discursivas de oferta de adesão de um ponto de vista do
enunciador ao co-enunciador são identificadas, uma vez que é por meio das cenas da
enunciação que são verificadas a legitimidade e a garantia de veracidade aos
enunciados construídos no discurso epistolar de Cartas Espirituais.
Maingueneau (2005, 2008b) afirma que a mobilidade da instância do
hiperenunciador emerge na cenografia por meio de um sistema de citações presentes
no discurso. Analisa os usos do discurso citado, com o intuito de refletir acerca de
citações presentes no enunciado, mas explícitas no discurso, e não no texto. Denomina
esse conjunto de citações como particitação. A relevância em tratar da noção de
hiperenunciador em Cartas Espirituais é compreender que nelas o hiperenunciador tem
como função, por meio do enunciado particitado, tornar inútil a presença de quaisquer
outras marcas de pontos de vista dos enunciados , que não as almejadas pelo
enunciador. O hiperenunciador é uma instância que valida um olhar e
consequentemente busca garantir a impossibilidade de outros pontos de vista do co-
enunciador sobre um determinado enunciado.
Assim, com base no que antecede, temos como objetivos:
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Examinar a construção das cenas da enunciação e o papel do hiperenunciador em
Cartas Espirituais de Frei Antonio das Chagas.
Verificar o modo como o interdiscurso, o gênero do discurso e as cenas da
enunciação dialogam no funcionamento discursivo para o surgimento do
hiperenunciador.
Identificar a mobilidade do hiperenunciador por meio dos aspectos que
fundamentam os diferentes pontos de vista expressos pelo enunciador.
Reconhecer, pelas formações discursivas impressas nas cartas espirituais
selecionadas, marcas da estética barroca e da espiritualidade do século XVII que
reforçam a mobilidade do hiperenunciador.
Assim, nossa pesquisa está organizada da seguinte forma:
O Capítulo I fornece as condições de produção de Cartas Espirituais, justificando
a escolha por Frei Antonio das Chagas no que concerne à sua importância no século
XVII. Também apresentamos um panorama acerca das condições sócio-histórico-
culturais de Portugal e os movimentos de reformas político-religiosas conhecidos como
a Reforma Protestante e a Contrarreforma, fundamentais como formações discursivas
para nossa amostra de pesquisa.
O Capítulo II trata dos princípios da Análise do Discurso na atualidade, com
ênfase no referencial teórico-metodológico apresentado por Maingueneau, a partir das
categorias de interdiscurso, gênero de discurso, cenas da enunciação e
hiperenunciador.
O Capítulo III apresenta a análise da amostra selecionada, o qual analisamos o
gênero carta como uma orientação doutrinária institucional e espiritual, e as cenas da
enunciação e a legitimidade da instância do hiperenunciador como formas de adesão
do posicionamento do co-enunciador.
A esses capítulos seguem as Considerações Finais, as Referências
Bibliográficas e os Anexos.
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CAPÍTULO I
CONDIÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DE PRODUÇÃO DE CARTAS ESPIRITUAIS
Este capítulo apresenta as circunstâncias sociais, históricas, políticas e culturais
de produção de Cartas Espirituais, objeto de nossa pesquisa. Dividimo-lo em Antonio
da Fonseca Soares / Frei Antonio das Chagas; as condições sócio-político-culturais do
século XVII; a religiosidade no século XVII; e o Barroco português.
A vida secular de Antonio da Fonseca Soares, nascido em 1631, na vila da
Vidigueira, em Portugal, é destacada pela sua participação na Guerra da Restauração
e pela dedicação às produções poéticas. Devido a seu bom desempenho como militar
e poeta, em vida ficou conhecido como Capitão Boninas.
Soares viveu o período de duas dinastias portuguesas: a dinastia Filipina e a
dinastia de Bragança. Com a consolidação de Portugal enquanto nação na Época
Moderna, correspondente à Dinastia de Avis (1385 - 1580), marcou-se a consolidação
das fronteiras territoriais e das alianças políticas entre Portugal e as demais nações da
Europa. Nesse período, há o estabelecimento da burguesia na nação portuguesa, a
prática mercantilista de acúmulo de capitais e a necessidade da expansão territorial
com as grandes navegações. Em 1580, em virtude do único herdeiro ao trono
português ser Filipe II, rei da Espanha, a nação portuguesa passou a ser governada
pela nação espanhola, evento que marcou o inícido da Dinastia Filipina.
A perda do referencial da realeza por parte do povo português, devido à
ausência de um rei legítimo, culminou na falta de uma figura que representasse, e
consequentemente oferecesse identidade divina e política à nação portuguesa. A
nobreza, a burguesia e os militares portugueses organizaram-se com a finalidade de
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retomar a independência do Estado. Os conflitos entre Espanha e Portugal deram
origem às guerras da restauração e Soares foi atuante como militar nesses eventos.
Em 1640 há o sucesso da retomada da independência de Portugal e inicia-se a
Dinastia de Bragança, que restabelece pouco a pouco o funcionamento institucional do
reino português e sua participação nas relações políticas internacionais.
Os motivos que despertaram Soares aos primeiros contatos com a vida religiosa
e, futuramente, adotar o hábito religioso e assumir a identidade de Frei Antonio das
Chagas foram as experiências da vida militar de pecados e a vida secular de excessos.
O contato com a obra de Frei Luiz de Granada, em viagem realizada no Brasil, foi
determinante para alterar o paradigma de vida de Soares, até adotar a identidade de
Chagas. A obra de Granada alterou sua concepção de mundo, já que passou a
observar a vida religiosa como o único caminho para a salvação e a purificação dos
pecados que cometera em vida secular.
A juventude seiscentista era tomada pelo sentimento de efemeridade da vida
mundana. O medo do julgamento no juízo final, os pecados que cometiam, os hábitos
que levavam eram tomados por um conflito sacro-profano, da valorização de uma vida
secular efêmera ou de uma vida dedicada à religiosidade, que tinha como fim a
salvação da alma. O número de jovens de vida secular, voltados aos excessos e aos
certames poéticos, que eram tomados, em alguma fase da vida, a dedicarem-se à
espiritualidade era muito grande. Essa dualidade é uma das características do Barroco
português.
Soares voltou-se para os estudos religiosos e em 1662 renunciou à vida militar,
tomou o hábito religioso e assumiu a identidade de Frei Antonio das Chagas. Tornou-se
um religioso dedicado às missões institucionais da Igreja Católica e foi responsável
pela orientação e formação espiritual e religiosa de muitos fiéis do século XVII. Seu
trabalho de orientação religiosa e espiritual também se detinha a uma doutrinação
social, que buscava enquadrar os fiéis aos modelos preestabelecidos pela sociedade
influenciada política, econômica e culturalmente pela religião católica. Tanto espiritual,
quanto religioso e institucional, as orientações de Chagas eram requisitadas por, dentre
outros fiéis, inúmeras freiras e religiosas do século XVII.
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Soares dedica-se ao caminho da espiritualidade e da religiosidade cristã em
1662. Sua vida institucional, a relação profissional e pessoal com as freiras e demais
religiosos e as rotinas pelas quais convivia são temas frequentes em Cartas Espirituais,
escrita ao longo de sua vida institucional. Enquanto orientador espiritual e religioso,
Chagas destaca-se como um grande cultor da época, adotando em suas cartas
espirituais um estilo cultista e conceptista possíveis de enquadrá-lo na estética Barroca.
1.1. Antonio da Fonseca Soares / Frei Antonio das Chagas
Em uma sociedade escravocrata, com valores morais e sociais sob a influência
do cientificismo renascentista e do teocentrismo medieval, diante da rotina de fidalgos e
nobres em celebrar certames poéticos sobre o amor às donzelas portuguesas e as
grandes realizações das guerras da Restauração contra os vizinhos hispânicos,
encontra-se Frei Antonio das Chagas, em vida mundana, Antonio da Fonseca Soares.
Homens que viveram expressivamente a dualidade barroca do século XVII, sob a
sombra do temor da efemeridade da vida e do desengano social, institucional e moral,
Chagas e Soares expressam, em suas obras, o dia-a-dia de uma sociedade cuja
formação social, espiritual, política e cultural agregam referências dos pensamentos
medieval e renascentista, essencial para a constituição da estética e do pensamento do
Barroco português.
Frei Antonio das Chagas, em vida secular Antonio da Fonseca Soares, nasceu
na vila da Vidigueira, no dia 25 de junho de 1631. Sua mãe, Helena Elvira de Zuniga,
de origem castelhana e natural da Irlanda, viveu em Portugal em virtude das lutas entre
católicos da Irlanda e protestantes da Inglaterra, no reinado de Carlos I. Por seus pais
permanecerem em território irlandês, Helena viveu sob a tutela da condessa da
Vidigueira, D. Leonor Coutinho, que a casou com o doutor Antonio Soares de
Figueiroa, um dos principais nobres de Vidigueira. Sete semanas após o nascimento de
Soares, Figueiroa é promovido na judicatura da Vila-Nova de Portimão, região do
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Algarve. Lá, Soares foi alfabetizado e, atingindo a maioridade, foi enviado a Évora,
onde cursou aulas de latim e filosofia.
Em sua juventude na província de Évora, Soares sentiu-se mais atraído pela
vida militar do que pelos compêndios escolares. Contudo, já escrevia seus primeiros
versos a partir de 1649. Depois da morte de Figueiroa, Soares e sua família tiveram de
mudar-se para Vidigueira, uma pequena vila de província portuguesa. Em Vidigueira,
ressaltaram suas experiências amorosas e um homicídio do qual ele teria participado
na concorrência de uma das damas da região. Em virtude desse acontecimento, muda-
se para Moura, onde se alista como soldado português e inicia suas produções
poéticas em simultâneo às práticas militares. O prestígio da farda engrandecia a
coragem dos combatentes da época.
Soares desempenhou tão bem o domínio das letras quanto da espada. Soldado
das guerras da restauração em Portugal, fazia sua pena cantar versos chocarreiros,
quando não obscenos e mabaratados de talento e valor (Belchior Pontes, 1953, p.27).
Era visto como uma caricatura de Camões, um valdevinos apaixonado, poeta e
soldado, que chegou a ter fama de grande poeta vulgar.
Nas produções poéticas de Soares, destacavam-se romances dedicados e
encaminhados ao ciclo social que frequentava, formado por nobres, militares e
mulheres portuguesas. Belchior Pontes (1953) afirma que o poema Fílis e Demofonte
foi dedicado ao príncipe D. Teodósio, no instante em que corriam alvoroços sobre os
preparativos das guerras de restauração, e o príncipe dirigia-se para o Alentejo com o
objetivo de encorajar os exércitos que se formavam. Em outra ocasião, na morte do
Padre João de Almeida, compõe um soneto em tons de elegia ao finado padre, que é
publicado anos mais tarde na antologia de poetas barrocos, Fénix Renascida.
Após três anos de serviços militares, Soares embarcou para o Brasil na
companhia de um parente desembargador. Há rumores, expressos em Godinho (1728),
principal biógrafo de Soares / Chagas, de que a viagem se deu em virtude das justiças
de Vidigueira iniciar o processo de condenação do homicídio que Soares praticara há
anos.
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Foi no Brasil que Soares tivera os primeiros contatos com a vida religiosa que
viria a assumir anos mais tarde. Envolvido na vida de prazeres do corpo e do espírito,
tentaram arranjar-lhe um casamento de conveniências na Bahia e, em casa de um
amigo, tomara conhecimento das obras espirituais de Frei Luiz de Granada, que o
levaria a profundas meditações sobre o cansaço da vida mundana. A obra de Granada
manifestou em Fonseca o desejo intenso em reformar seus costumes. A
impossibilidade de se livrar das penalidades do inferno, despertou Soares para uma
vida nova de arrependimentos e dor dos atos cometidos em vida mundana.
Para Godinho (1728), o capítulo do juízo final, em que Granada descreve a visão
de um inferno de penitências do juízo universal, foi o que mais chamou atenção de
Soares para reconsiderar suas práticas. Dentre as indagações presentes na obra,
destaca-se:
Que sera de las palavras deshonestas, de los
pensamentos sucios, de las manos sangrentas
y de los ojos adúlteros y finalmente de todo el
tempo de la vida expendido em malas obras?
(GRANADA, 2008, p.29)
A obra de Granada reflete que o homem prestará contas de suas ações no dia
do juízo final, e que a justiça de Deus é implacável e espantosa. Deus é justo e sua
justiça deve ser temida pelo homem, segundo a concepção de religiosidade do autor.
Em seguida, descreve as penalidades do inferno e torna os sofrimentos infernais
trágicos e terríveis em sua narrativa e descrição, como podemos observar em:
alli estarán comiendo sus carnes a bocados,
rompendo sus entrañas com sospiros,
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quebrando sus dientes a tenazadas y
despedazando rabiosamente sus carnes com
sus uñas.´´ (GRANADA, 2008, p.29)
As descrições serviram para ilustrar a vida de pecados de Soares e lhe ofertar
um novo caminho. Por muito tempo, foi autor de versos polêmicos que exaltavam a
luxúria e os abusos da vida mundana e desempenhou de forma invejável a função
militar enquanto soldado da restauração, o que fez dele, no conceito de Granada, um
gastador da vida em crimes e frivolidades.
A influência de Granada refletiu diretamente na maneira que Chagas conduzia
seus sermões e orientava seus fiéis à necessidade de respeitar as doutrinas da Igreja
Católica em Cartas Espirituais. A obra também foi fundamental para Soares
compreender que a vida mundana é efêmera e que só o apego à fé e aos caminhos
trilhados por Jesus Cristo e a doutrina católica o levariam à salvação do juízo final.
Com a reflexão de seus erros e com a possibilidade de reabilitação que lhe daria a vida
religiosa, motiva-se aos estudos religiosos. No século XVII, a figura cristã e a vida
religiosa eram ofertas em moda à época. Era muito comum que aqueles que, ao se
fatigar pelos abusos da vida secular, detivessem um tempo de suas vidas nas
atividades do convento.
Todavia, não foi apenas a obra de Granada o principal motivador da conversão
de Soares para a vida religiosa. Além dele, outro impulsionador dos motivos que
levaram Soares a tomar o hábito cristão foi a efemeridade das coisas do mundo, a
partir de suas experiências militares. Atuar enquanto soldado o levou a estar em
constante meditação acerca da morte e do sentimento de caducidade da vida. O valor
que ele passa a dar ao tempo da vida e ao tempo destinado ao nada, aos prazeres do
corpo, às frivolidades do mundo, acarretaram-lhe o sentimento de culpa e a
necessidade de gastar seu tempo de vida com a salvação de seu espírito. O tempo e a
vida mundana encarados como efêmeros são especificidades do homem barroco do
século XVII e estiveram presentes na cronologia de Soarea / Chagas.
12
Belchior Pontes (1953, p.6) acredita que o sentido do tempo foi o primeiro sinal
de angústia. Gastar o tempo da salvação em nadas (...) parecer-lhe-ia agora absurdo e
condenável. A efemeridade das coisas e da vida trouxe a Soares a noção de que as
coisas do mundo eram perecíveis e, portanto, ilusórias, e esta determinação é que o
encaminhará para Deus e para o descobrimento do caminho para a salvação. Foi o
desgosto das delegações breves que o obrigou a procurar consolações perenes.
A obsessão pela efemeridade das coisas, da vida e das virtudes do mundo
impulsionou Soares na escrita da alegoria poética Desengano do Mundo pelo mais
enganado delle, composta em 1662, pouco antes de assumir o hábito religioso. A obra
é seu último registro literário e é considerada por Belchior Pontes (1953) o primeiro
ensaio missionário de Chagas. A desilusão, o tédio, o desengano de todos os sucessos
de sua vida o influenciaram no estilo gongórico da obra, no que diz respeito ao culto de
imagens ousadas sobre a decadência do mundo e das coisas. Destacam-se em sua
obra passagens como não há vida tão privilegiada que não termine em tumba e, ainda,
nada no mundo tem entidade que prevaleça. Para Soares, desde a beleza das coisas
até os grandes feitos do homem são:
um pequeno barro com mais viva cor unido,
um feio cadáver com mais poderosa atenção
incarnado, um pouco de pó com mais uniforme
geometria composto. (SOARES, 1743, p.144)
A obra de Soares possui a estilística amadurecida do Barroco português, uma
vez que suas lamentações incluem antíteses que se encadeiam ritmicamente, e em
sua temática, faz uso dos conhecimentos mitológicos para categorizar e definir os
sentimentos, como, por exemplo, o amor que é um sagitário com venda e com asas, e
a vontade de amar é incêndio de Tróia, para a memória labirinto de Creta, para o
13
entendimento naufrágio de Scila. A obra possui uma riqueza de estilo que, mais tarde,
será recuperado em Cartas Espirituais.
Em maio de 1662, com 31 anos de idade, Fonseca renuncia à vida militar e, ao
realizar os votos monásticos na Ordem de São Francisco em Évora, adota o nome de
Frei Antonio das Chagas. Caracterizado como pregador de ardor e paixão, tornou-se
exagerado em seu ofício. Percorre as terras do Alentejo e de Algarve em andanças
missionárias. Seu estatuto de homem mundano convertido à palavra de Deus fez dele
ícone à sua época. De atitude penitente, atraía multidões por onde quer que passasse,
e a forma irreverente de pregar, fazendo uso de dramaturgias e exageros em seu
discurso, foi alvo de inúmeras críticas de seus contemporâneos Padre Antonio Vieira e
D. Francisco Manuel de Melo.
O percurso religioso de Chagas foi marcado pela máxima de que a vida é breve
e o homem cortal de bichos e pó (Belchior Pontes, 1953, p. 182). A efemeridade da
vida e a paixão de Cristo foram os referenciais de Chagas em seu trabalho missionário.
Durante o ano em que se preparou religioso, no noviciado de São Francisco, manteve
sempre boas relações com todos os religiosos com quem convivera. Acabado o
noviciado, partiu para Setúbal, onde retomou os estudos filosóficos.
Em Setúbal, Chagas realizou sua primeira pregação e compôs suas três
primeiras obras religiosas: Faíscas do amor divino vertidas de um pedernal humano, a
Oração do Padre Nosso comentada e a Semana Espiritual, todas em 1662. As obras
tinham por função sensibilizar e doutrinar fiéis e religiosos e estavam condimentadas
de exclamações abundantes e frases próprias para comover, o que refletia o espírito
enérgico de um recém-convertido à fé cristã. As obras compostas não lhe exigiram um
conhecimento muito profundo da doutrina cristã, mas sim o cumprimento de esquemas,
sugestões e cartilhas fornecidas pela formação de noviciado.
Os anos que Chagas passara em Beja e Coimbra, aprimorando seus estudos
filosóficos, proporcionaram-lhe uma formação mediana da doutrina cristã. Não explorou
muito a intelectualidade de seus tutores, era um homem de poucos livros e se voltava
mais para a ação do dia-a-dia da pregação. Contudo, os estudos que realizara e
14
também seu passado enquanto poeta lhe garantiram uma admirável capacidade de
argumentação e improvisação, louvados por seus contemporâneos e discípulos.
Em 1680, com a recomendação do Breve Apostólico Inocêncio XI, Chagas funda
o Seminário de Varatojo, com a finalidade de orientar os estudos de sacerdotes,
diocesanos e religiosos com vocação missionária. Com o prestígio e o sucesso do
seminário, funda, em 1682, o Convento de Nossa senhora dos Anjos de Brancanes, em
Setúbal, com a mesma finalidade.
Em 20 de outubro de 1682, Chagas falece em Varatojo. Durante todo o período
de andanças, missões e vida religiosa, escreveu as Cartas Espirituais, que serviam de
orientações, confissões e ensinamentos a seus religiosos. Foram publicadas
postumamente em dois volumes, totalizando 366 cartas espirituais..
1.2. As condições sócio-político-culturais do século XVII
Soares / Chagas viveu intensamente o período das Guerras da Restauração
portuguesas. Como todo jovem português engajado, Soares tinha os valores culturais e
a identidade pátria abalados pelo domínio espanhol. A crise política, social e cultural
que enfrentava Portugal também refletia indiretamente no discurso doutrinário de
Chagas, em Cartas Espirituais. Tanto na obra de um, quanto de outro, as condições
sócio-político-culturais foram os impulsionadores de sua existência. Os eventos
históricos que definem a realidade sócio-político-cultural do século XVII são: a
consolidação de Portugal enquanto nação na Época Moderna, correspondente à
Dinastia de Avis (1385 - 1580); a perda de independência para a nação espanhola, que
culminou na Dinastia Filipina (1581 - 1640); e o processo de retomada da
independência portuguesa, conhecido como Dinastia de Bragança.
A Dinastia de Avis (1385 – 1580) foi a segunda dinastia portuguesa, marcada
pelas consolidações das fronteiras territoriais e das alianças políticas entre Portugal e
as demais nações da Europa. Em 1383, D. João, mestre de Avis, foi nomeado rei de
Portugal após uma luta militar contra o rei de Castela, denominada Revolução de Avis.
15
Chartier (1991) compreende que o sucesso da revolução deu-se devido ao grande
apoio da burguesia portuguesa, marcando também a vitória desta classe social sobre a
sociedade agrária e feudal, predominantes na Europa. O apoio da burguesia permitiu a
centralização do poder a D. João e a expansão marítimo-comercial portuguesa, o que
fez de Portugal a primeira nação absolutista e mercantilista.
O estabelecimento da burguesia na nação portuguesa deu-se devido à prática
mercantilista de economia e foi fundamental na influência da estrutura social de
Portugal. O mercantilismo consistia em um conjunto de medidas econômicas que
tinham como pressuposto uma centralização do Estado na economia e a unificação do
mercado interno. Em um momento que a Europa encontrava-se escassa de ouro e
prata, com grandes dificuldades em suprir sua demanda de comércio, as políticas
mercantilistas pressupunham que a riqueza resumia-se no acúmulo de metais
preciosos e que a melhor maneira de adquiri-los era através de exportações do Estado
unificado e da restrição de importações. Assim, o Estado passou a intervir diretamente
na economia criando direitos alfandegários para importações, promovendo melhoras na
infraestrutura de classes sociais que moviam a economia e incentivando a colonização
de novos territórios em busca de matérias-primas e mão de obra para o trabalho.
Portugal foi o primeiro Estado a adotar tal prática na Europa, uma vez que foi o primeiro
a passar pelo processo de unificação territorial.
A posição geográfica de Portugal também influenciou para sua precoce
constituição enquanto nação. Por ser um território portuário situado na zona ocidental
da Península Ibérica, possuía vantagem frente às demais nações europeias para a
exploração marítima na África e nas Índias. A incrível ascensão marítima portuguesa
frente às outras nações da Europa marca o fim do período medieval e início do período
moderno português, já que o evento garantiu a inserção da nação como modelo de
organização econômica para países que ainda definiam suas fronteiras na Europa, o
que contribuiu para uma relação global de Portugal com o mundo europeu.
A nação portuguesa foi a primeira a financiar o mapeamento de rotas marítimas
pelo globo. Dentre tantas expedições financiadas por Portugal, destacou-se a
expedição de Vasco da Gama às Índias, em 1498. Conhecida como a mais longa
16
viagem oceânica do período, a expedição tornou mais dinâmico, para a época, o
comércio de especiarias nas Índias e o acesso à costa leste africana para a exploração
de madeiras e o tráfico de escravos.
Também foram eventos marcantes no início do período moderno as explorações
coloniais nos territórios africano e americano, assim como o povoamento das Ilhas do
Atlântico. Com o sucesso da viagem de Vasco da Gama, e o conhecimento das Terras
de Vera Cruz em 1500, Portugal se estabelece como principal nação de posses
coloniais da Europa. Desencadeia-se, nesse início de período colonial, a evangelização
indígena no Brasil pela Companhia de Jesus, o incentivou o aumento de colégios
missionários em Portugal, e a empreitada das missões no Brasil recém-descoberto.
Além da luta armada e do apoio da burguesia para a expansão marítima, foi
determinante para a hegemonia portuguesa na Dinastia de Avis a consolidação de
alianças políticas com as demais nações europeias. Os acordos entre nações se
davam, dentre outras formas, por meio de pactos familiares, que concediam direitos e
privilégios entre as nações europeias com Portugal e vice-versa. A sucessão de uniões
amorosas que juntavam famílias reais de nações distintas veio a influenciar a
consolidação do poder político português e sua inserção como Estado moderno, bem
como a delimitação de suas fronteiras.
A formação social da monarquia portuguesa na dinastia de Avis tinha como
principal influência a cultura cristã e se valeu da noção de que o Estado deveria
funcionar como um corpo místico. A expressão corpo místico, no original latino Corpus
Mysticum, foi utilizada pela primeira vez nas Escrituras Sagradas, por São Paulo, em I
Coríntios 12:12-14, com o intuito de comparar a Igreja como corpo de Jesus Cristo, em
que Cristo simbolizava a cabeça e seus apóstolos e fiéis as demais partes do corpo. No
caso do Império português, o rei simbolizava a cabeça do corpo místico do Estado, e
tinha que garantir a harmonia entre as partes-súditos que compunham a sociedade. O
rei tinha como pressuposto legislar com o intuito de manter ordem e harmonia social, e
sua função era ser o intermediário entre Deus e o mundo.
17
Os dogmas e as doutrinas da Igreja Católica eram validados como leis naturais a
todo Império cristão. Eram leis que normatizavam e orientavam o comportamento das
instituições sociais e da vida comunitária. A lei humana era realizada sob a luz das leis
naturais cristãs baseadas no texto bíblico. A união entre as leis naturais da fé e as
organizações e ordens sociais do Estado eram pautadas em reflexões de teóricos
religiosos da filosofia, o qual destacamos São Tomás de Aquino, que forneceu:
(...) princípios básicos para construção dos
eixos do pensamento político medieval com as
ideias de unidade do cosmo, da humanidade
como corpo místico, da concordância entre
civitas e Igreja. (PAES, 2006, p.44)
A filosofia tomista possibilitou a Portugal e outros Estados europeus a
construção de uma organização do poder monárquico. Contudo, este poder foi abalado
no reino português devido a questões hereditárias de sucessão do trono, já que o
último rei da Dinastia de Avis, D. Sebastião (1554 – 1578), não possuía herdeiros que
pudessem ser nomeados reis. Foi em 1581, com a sucessão ao trono por Filipe II da
Espanha, único nobre que tinha direitos hereditários ao trono, que Portugal perdeu,
além de suas fronteiras terrestres e marítimas, sua independência para os espanhóis.
Tal episódio inicia o período histórico da Dinastia Filipina (1581 - 1640). A partir dessa
data, a nação espanhola passou a ser responsável pelas expansões ultramarinas e
pelas regras de exportação e importação portuguesas frente à Europa. A perda de
independência portuguesa também gerou uma crise nas camadas sociais, intelectuais
e religiosas de Portugal, marcada pela falta de um líder que os identificasse.
Com a perda da independência de Portugal, vem também a não
representatividade da monarquia portuguesa frente às questões políticas e econômicas
da época. Nesse período, Portugal perde parte de suas principais alianças
18
estabelecidas entre as nações europeias, e todas as suas possessões coloniais
passam a ser administradas pelos espanhóis. A Dinastia Filipina imperou durante 60
anos em Portugal e foi marcada por grandes revoluções portuguesas contra os
espanhóis, já que as famílias da nobreza portuguesa buscavam retomar a liberdade e o
poder perdidos. A hegemonia espanhola e a perda de forças da nação portuguesa
também fez reflexo nas relações sociais populares. A opinião pública portuguesa era
de aversão ao domínio espanhol e D. Sebastião, último rei legítimo de Portugal, morto
na batalha de Alcácer-Quibir, tornou-se símbolo de esperança da nação portuguesa,
que idealizava que o seu retorno conquistaria a antiga posição de prestígio frente à
Europa e ao mundo. Ainda, o sebastianismo reforçou o sentimento nacionalista de
identificação com a pátria, que fora perdida com o domínio espanhol. A não aceitação
popular do comando espanhol, junto dos interesses da nobreza e da burguesia
portuguesa em retomar o poder, deu origem a inúmeras revoltas armadas contra a
nação espanhola.
A ausência de um rei português legítimo também gerou a falta de uma figura que
representasse e consequentemente oferecesse identidade divina e política à nação
portuguesa. Os homens que eram nomeados reis de Portugal, na dinastia filipina, eram
considerados mortais pecadores que não simbolizavam o absoluto da Pessoa Real.
Portugal carecia de uma representação política e divina, de um reconhecimento
enquanto nação cristã, e tal condição afetou todas as esferas da sociedade
portuguesa, incluindo a concepção de vida dos religiosos, soldados e artistas, em que
se encaixa Soares / Chagas.
Como destaque deste reflexo político na literatura e na religião seiscentistas,
temos a prosa de Vieira, observada por Hansen (1994, p.16), como a dramatização dos
fins últimos do Estado português. Vieira é contrário aos pensamentos de Lutero, que
defendia o direito divino dos reis como controle da desordem do reino, e contrário a
Maquiavel, que compreendia o Estado sob a metáfora de que o príncipe era metade
leão, metade raposa, sendo o primeiro, símbolo da força e o segundo, da astúcia,
referindo-se que a política não tinha relações com a religião e a moral, mas sim com os
instrumentos de poder e manutenção do Estado. Vieira propõe refletir acerca de uma
19
integração harmoniosa de todas as camadas da sociedade do reino português,
pregando a caridade entre uma camada social e outra. É em face desta concepção de
caridade e conscientização de harmonia entre o próximo que se dará o trabalho de
outros religiosos em Portugal, em que destacamos Chagas em Cartas Espirituais. Os
religiosos e intelectuais da época passam a espelhar-se nas releituras e nos modelos
de seus cânones e contemporâneos para dar sentido a seu tempo presente. Foi assim
que fez, por exemplo, Vieira ao repensar a filosofia de Lutero e criticar seu
contemporâneo Maquiavel, propondo um novo valor de nação e sociedade para um
Estado português sem as representações e a legitimidade tradicionais. Os trabalhos
artísticos e religiosos do século XVII acabam por esbarrar e se mesclar nos
questionamentos e anseios sociais e políticos da nação portuguesa, como
referenciação direta, em Vieira, ou constitutiva, como podemos observar no discurso de
orientação epistolar de Chagas.
O reinado monarca é marcado, no pensamento barroco seiscentista, sob uma
perspectiva finita e infinita. A finitude da vida de um rei não abala a infinitude de um
reino e suas funções devem ser preenchidas por um novo nomeado que irá governar o
povo. Hansen (1994, p.17) acredita que não só em Vieira, como nos religiosos e
demais pensadores seiscentistas, domina-se o conceito de Ordem da Razão Divina,
que irá refletir nos discursos institucionalizados da religião católica portuguesa em
ordens retórica, ética, política e teológica, capturando vulgaridades e
inverossimilhanças, desvios e ilegalismos, pecados do corpo que afetam o espírito,
dentre outros. O eterno idealizado é que dará sentido para a vida social, e esta
encontra-se desestruturada.
Os eventos políticos que ocorrem em Portugal no século XVII revelam uma
realidade finita que direciona a nação para um futuro de infinitude e eternidade que
figuram uma sacramentação do corpo para a salvação da alma. A sociedade
seiscentista era acometida por reflexões, tanto na esfera religiosa quanto artística,
sobre a antítese do ser e do desejar ser. Hansen (2004) afirma que a comoção do
corpo político com o corpo místico do Estado se dava nessa relação dual de modo
imperativo, indicativo e optativo. A tríade culmina em recursos retóricos da adesão do
20
outro a um determinado ponto de vista doutrinário. Imperava nos seiscentos a noção de
que o Estado era um corpo místico de vontades subordinadas ao Um, e que cada
estamento social, cada súdito à hierarquia natural de sua ordem, era submisso ao Rei
Esperado, à virtude católica e ao bem comum do Estado. O trabalho religioso era, além
de doutrinário, político-social, pois contribuía para o funcionamento da nação
portuguesa, tendo como fim seu progresso.
A hierarquia institucional do rei e seus súditos é observada no período
seiscentista como estamentos de divindade, recuperando o pensamento de
organização social medieval. O Estado é a Razão do Verbo Eterno. Ele sacraliza o rei
como pessoa divina, e a autonomia de seus súditos é observada como vaidade e
sonho na Luz do Verbo Eterno. A autonomia dos súditos é compreendida como
vaidade, pois no período seiscentista se tinha a concepção de que há uma missão
predestinada já no nascimento das pessoas. Esse pensamento é retomado em Cartas
Espirituais, cuja temática gira em torno de advertências e aconselhamentos a freiras e
fiéis que não cumprem as funções sociais e institucionais às quais são pressupostas.
Toda referência ao Estado é constitutiva ao discurso de Chagas, pois este viveu
expressivamente a dualidade infinito/finito em sua vida, como destacamos a
efemeridade da vida.
Os seiscentistas portugueses manifestam, em seus trabalhos intelectuais da
religião, a metáfora da Metáfora bíblica. Para o religioso, os ensinamentos bíblicos
propõem o ensinamento do saber viver a partir da prudência bíblica metaforizada no
antigo e no novo testamento. O pensamento diacrônico acerca do sucesso
contemporâneo das instituições sociais, sacralizado pela presença do divino, é
exemplificada por Hansen (1994) pelas grandes navegações sacralizadas com a
majestade soberana da razão do Estado. Os seiscentistas propõem uma dicotomia
entre o racionalismo e o sacro teocêntrico: a razão humana, para os religiosos de
seiscentos, se explica pelo divino místico da hierarquia e dos papéis sociais delimitados
e imutáveis.
A finalidade da religião nos seiscentos é investir em metáforas que justificam as
causas da escuridão em que se encontra a monarquia portuguesa, que reflete em toda
21
organização social do Estado e traça um panorama racional para sua decifração,
mesmo refletido sobre fé e crença. O trabalho religioso justifica-se social, uma vez que
denuncia a falta de visão das classes, pautados na presença universal do Bem e do
Mal como critério de julgamento até mesmo de ações cotidianas, como em Cartas
Espirituais. Tem-se um modelo de conduta pré-definido pelas instituições, que se
orientam pelos dogmas católicos. O trabalho religioso preocupa-se em orientar o
desvirtuado ao caminho da virtude padronizada institucionalmente.
A visão seiscentista é rearticulatória dos motivos neoplatônicos e agostinianos,
que se pautam na incompreensão da grandeza do divino. A ética e os juízos de valor
são fundamentados em virtude da onipresença da unidade divina. O religioso enuncia
sempre em referência À palavra divina, do absoluto, que possui natureza profética e
que direciona o comportamento ideal das instituições. As ações religiosas somente são
possíveis se edificadas sob a ótica da harmonia de classes ou estamentos sociais, da
união da parte para formar o todo que é o corpo místico do Estado. Ao mesmo tempo,
o trabalho religioso sustenta a retórica de espelhar casos importantes da Escritura e de
eventos da pátria, para a recondução de uma sociedade em declínio.
Em 1640, D. João IV, em aliança com a nação inglesa, recupera a
independência portuguesa e inicia-se a Dinastia de Bragança. A restauração da
Independência de Portugal restabelece, pouco a pouco, o funcionamento institucional
do reino português de forma independente e retoma a participação de Portugal nas
relações políticas internacionais. Contudo, suas alianças políticas com os demais
territórios europeus ficaram limitadas à nação inglesa, a nova potência da Europa, que
ditava as regras e os acordos para a exploração marítima e as leis comerciais em todo
continente europeu. A independência portuguesa da nação espanhola também tardou
em surtir efeito no comportamento das instituições sociais.
22
1.3. A religiosidade no século XVII
Frei Antonio das Chagas ficou conhecido em seu tempo pela forma inovadora de
profetizar a palavra cristã. Em seus sermões e cartas, Chagas revelava um jeito
irreverente para sua época em compreender a fé cristã, o que muitas vezes era visto
como fora do padrão estabelecido pela Igreja Católica seiscentista. A aproximação que
tinha com os fiéis e religiosos proporcionava-lhe orientá-los tanto aos caminhos
espirituais, quanto aos institucionais não só como um religioso em seu ofício, mas
como um amigo íntimo que preocupava-se com seu orientado. A Reforma Protestante
e a Contrarreforma foram eventos que determinaram, não só para Chagas como para
os demais religiosos, novos paradigmas de execução das missões institucionais, ainda
que a espiritualidade se conservava aos modelos propostos pela Filosofia medieval.
Compreender ambos os eventos possibilita-nos um maior entendimento de Cartas
Espirituais.
A passagem da Idade Média para a Idade Moderna incidiu em inúmeras
transformações não só na política, economia e cultura, como também no papel do clero
na sociedade. Um marco da passagem do feudalismo para o capitalismo foram as
Reformas Protestantes e a Contrarreforma. O avanço das ciências em virtude das
navegações coloniais, a descrença na Igreja Católica e os abusos que corrompiam a
disciplina e os costumes sociais na Europa impulsionaram a necessidade de mudanças
na estrutura religiosa da Igreja Católica.
A sociedade europeia era organizada em três estamentos: o clero, a nobreza e o
Terceiro Estado – este formado pela burguesia, pelos camponeses e pelos artesãos.
Durante o período da Idade Média, a Igreja detinha grande número de terras, concedia
grande influência sobre as questões políticas, sociais, artísticas, filosóficas e
econômicas das monarquias, e considerava de natureza pecaminosa as atividades
vinculadas à burguesia – em que se destacavam a cobrança de juros devido ao
empréstimo de moedas. O Papa representava não só uma liderança religiosa como
também política nos Estados europeus cristãos.
23
Paes (2006) compreende que o paradigma teológico do período medieval
fundamentou-se, dentre outros pensadores, na filosofia teológica de Santo Agostinho.
No período medieval, a concepção de mundo era a de que o universo se constituía
como um todo organizado e orgânico. Agostinho compreende o universo como uma
criação de Deus e pressupõe a existência de um universo teológico e um universo
histórico, utilizando a simbologia dos deuses clássicos como arquétipos de um Deus
único e criador. A origem da criação do mundo, da vida e do destino dos homens eram
por determinação e vontade divina.
Predomina-se na Filosofia medieval a especulação acerca da natureza e da
criação divinas, no lugar da busca pela sabedoria, como na Filosofia clássica. A razão
passa a ser a iluminação divina e a compreensão da luz verdadeira que era Deus. O
conhecimento se dava pela investigação do inconsciente da alma humana e de sua
comunicação com Deus. O sentimento de culpa, os pecados do corpo, as práticas
pecaminosas do cotidiano da vida mundana, eram fruto do pecado original. Agostinho
propõe que o pecado original é a prisão da alma e o homem de conhecimento é aquele
que supera os desejos do corpo e busca plenitude na verdade divina, que é de alma e
preenche a infinitude do desejo humano. O livre-arbítrio serve para a recusa do pecado
e o homem que cede ao pecado deve recorrer ao socorro divino para direcionar-se à
liberdade da alma e do vínculo ao corpo pecador.
A concepção agostiniana de sociedade era de que as leis dos homens deveriam
ser baseadas pelas leis divinas. Paes (2006) acredita que o homem, na ótica de
Agostinho, perdera o contato com as leis divinas a partir do pecado original. As leis
temporais do mundo e que organizam a rotina das instituições sociais das cidades
deveriam ser inspiradas nas leis divinas, pois caso contrário seriam leis imperfeitas na
justiça. As leis e a política, no período medieval, não remetem à moralidade humana,
como nos Gregos e Romanos, mas refletiam a moralidade cristã da fé e da
espiritualidade. Agostinho propõe, no período medieval, a reflexão sobre a existência
de duas cidades: a terrestre e a de Deus. A cidade terrestre organizava a sociedade
buscando o bem comum dos homens, a justiça e a harmonia de todos, como um corpo
orgânico cuja cabeça era o rei ou o suserano legitimado pela Igreja Católica. A cidade
24
de Deus era o Congregatio Fidelium, regido pela lei divina, a qual pressupunha que
todos eram iguais e suas diferenças resumiam-se nas funções que cada um exercia na
sociedade dos homens para a manutenção da justiça e do bem comum. Tanto a cidade
terrestre como a cidade de Deus complementavam-se, pois a terrestre estava
subordinada à lei divina para construir a cidade de Deus e garantir a salvação espiritual
de todos os homens pecadores. A sociedade proposta por Agostinho e que influenciou
a religiosidade seiscentista, era pautada na hierarquização espiritual. O rei, ou
suserano, era um encarregado de Deus para guiar o corpo místico do Estado.
Outro filósofo do período medieval que influenciou a concepção de religiosidade
dos protestantes e da Igreja Católica no século XVII foi São Tomás de Aquino. Muito
influenciado pelo pensamento aristotélico, Paes (2006) afirma que Aquino estabeleceu
uma distinção entre fé e razão diferente do que era proposto por Agostinho. Para
Aquino, fé e razão eram autônomas, mas necessitavam de uma concordância, pois se
complementavam. Observa que a criação do universo é um ato livre de Deus que, ao
criá-lo, dedicou parte de sua perfeição a cada criatura que o habitasse. O corpo físico
era o caminho que a alma encontrava para atingir o estado de plenitude e a vontade de
liberdade era o apego ao bem, que só era possível pelo auxílio da razão.
O conceito de cidade é ressignificado por Aquino. O homem, animal social e
político, necessitava da cooperação de outros homens. A sociedade era construída a
partir da necessidade humana e era realizada pela razão e vontade de constituir-se
como comunidade perfeita. Tal concepção de cidade contrapunha o que afirmava
Agostinho acerca da dualidade cidade terrestre e cidade de Deus, já que, Aquino
acreditava que os homens não eram pecadores em sua essência, mas o pecado
estava na forma com que cada um conduzia o livre-arbítrio. Contudo, compreendia
assim como Agostinho que a cidade funcionava como um corpo místico, cuja cabeça
era a autoridade do rei que tinha como função manter o controle e a harmonia das
demais partes do corpo do Estado. Ainda preservando a necessidade de hierarquias e
funções fixas a cada membro da sociedade, Aquino pressupunha que legislar era a
responsabilidade em manter a ordem e a harmonia social e o rei representava o poder
intermediário entre Deus e o mundo, sendo, em outras palavras, um intermediador.
25
Aquino propunha que as leis do mundo eram formadas por comunidades
hierárquicas e governadas por uma lei proporcional às suas naturezas. Havia a lei
divina dos desígnios de Deus, a lei natural, que era a impressão do homem às leis
divinas, e a lei humana, elaborada pela razão dos homens. A lei natural, baseada e
normatizada pelas leis divinas, era inalterável e determinava o comportamento
institucional da sociedade no que diz respeito aos valores morais, éticos e políticos. A
comunicação tomista foi uma forma de unir à fé as ordens do mundo físico,
influenciando o pensamento político medieval da humanidade como corpo místico, a
concordância entre civitas e a Igreja, e até mesmo a construção da racionalidade e
organização do poder monárquico de Portugal, em decadência no século XVII.
Com a eclosão da Idade Moderna, a burguesia passou a deter maior poder
econômico frente à nobreza, o que os motivou a participar também das decisões
políticas do Estado. Embora o Estado permanecesse absolutista, uma vez que tal
estrutura convinha às necessidades da burguesia, o clero passou por uma grande crise
de valores e princípios. Influenciado pelos conceitos e valores burgueses, o Clero
passa a ser vítima de desconfiança de seus fiéis, que questionam o comércio de
relíquias sagradas, a venda de títulos eclesiásticos e indulgências e, ainda, inúmeras
denúncias sobre a quebra do celibato, a existência de prostíbulos para clérigos, dentre
outros.
As críticas ao clero se manifestavam por meio de movimentos religiosos que
tinham como objetivo promover a renascença da religiosidade baseada nas Escrituras
Sagradas, sem a influência da Igreja Católica. Para isso, tinham como missão dar luz
às palavras dos Evangelhos e a partir delas retirar os ensinamentos religiosos e as
lições de Jesus. Surgem, na metade do século XVI, filósofos que encabeçam os
movimentos religiosos, destacando-se Lutero, Calvino, Erasmo, Melanchton, dentre
outros. As reformas foram efetivas na Europa Central e nos países baixos e os
movimentos ficaram conhecidos na história como a Reforma Protestante.
Um dos fatos que desencadeou a Reforma Protestante foi que, na Idade Média,
a cultura religiosa influenciava diretamente as atividades sociais e políticas do Estado.
Com a unificação e modernização dos principais Estados europeus, e, ainda, com a
26
ascensão da burguesia, o espaço de influências da Igreja Católica em atividades que
diziam respeito ao social, ao econômico e ao político passou a se tornar cada vez mais
polêmico e conflituoso com a burguesia em ascensão.
Com o intuito de atacar as bases católicas, o protestantismo apontava o homem
como um ser humano corrompido devido à sua malignidade. Lutero e Calvino
defendiam que o homem era marcado pelo pecado em toda sua existência e não
possuía, por si só, competência para compreender os desígnios divinos e nem deles
criar a autonomia para atingir sua redenção e salvação. Com isso, critica a
interpretação dada à vontade divina pela Igreja Católica. Lutero afirmava que Deus era
inacessível à razão humana e às instituições sociais, principalmente em um Estado
cujas leis sociais são pautadas nas leis divinas instituídas pela Igreja Católica,
inspiradas nas Escrituras Sagradas.
Lutero e Calvino acreditam que a razão da Teologia gira em torno da verdade
hermenêutica do Livro Sagrado. O acesso à palavra divina não está na razão dos
homens, nem na leitura tradicional da Igreja Católica, mas nas Escrituras Sagradas.
Com isso, desmoronam as bases institucionais da Igreja Católica, ao afirmarem que o
homem era incapaz de redimir-se a Deus apenas pelas obras de caridade e pelos
dízimos cobrados pela instituição religiosa. Deus é uma instância divina onisciente e
onipresente, e a redenção é possível através da doutrina, instituída por Lutero,
denominada solo fidei - de que a redenção humana somente é possível pelas
Escrituras Sagradas. A Igreja proposta por Lutero define-se como um Congretio
Fidelium, em que se nega a hierarquia eclesiástica e a destinação de que sacerdotes
são maiores do que os leigos, uma vez que todos possuem as mesmas condições e
capacidades para a fé. A Igreja deixa de ser o corpo místico em que cada homem
encontra sua hierarquia e passa a ser um local de comunhão de fiéis.
A reformulação do conceito de que Deus é causa primeira, criadora dos mundos
e da história, e de que a Igreja Católica não é sua representação no mundo dos
homens, adequando esse papel ao monarca, enfraquece o clero cristão tradicional.
Busca-se na Europa, especialmente nas monarquias da Espanha, França e Inglaterra,
uma disputa do poder religioso com o Papa, almejando converter a autoridade divina
27
da instituição religiosa tradicional para a autoridade do rei como figura política e
religiosa. Com isso, surgem obras como O Príncipe, de Maquiavel, Da Razão de
Estado, de Botero, classificados como espelhos de príncipes, que Hansen (2006)
define como educandários que tem por finalidade a doutrinação moral de reis e filhos
de reis e, indiretamente, a reformulação do comportamento social da comunidade
europeia. Por outro lado, a Igreja Católica inicia o trabalho de evangelização e
catequização marcado pelos religiosos da Companhia de Jesus, que educavam e
doutrinavam posicionamentos de seus fiéis por cartas, sermões, seminários, dentre
outros.
A produção intelectual que surgiu em função da Reforma Protestante abala o
paradigma religioso do século XVI. Para os maquiavélicos, que ignoravam a presença
divina no Estado, o poder era fruto da força e da astúcia; para os católicos que
preservavam a ligação com o Papa, o poder era um pacto místico com Deus, mediado
pela Igreja Católica; para os protestantes que desprezavam a ligação com a instituição
Igreja Católica, o poder era vontade imediata de Deus, mediado pelas Escrituras
Sagradas. O conceito de Estado monarca se polemiza diante de tantas visões
possíveis acerca do poder real. Questionava-se, por exemplo, se a figura do rei não
estaria acima das leis naturais em um Estado protestante ou maquiavélico; se as leis
naturais, que advêm das leis divinas, possuíam forças em um Estado mediado pela
Igreja Católica, uma vez que as leis divinas da instituição religiosa eram leis criadas por
homens pecadores; e se a crença dos protestantes de que tudo era subordinado à
vontade de um rei eximia a liberdade e os direitos dos súditos de um reino.
Diante desse palco de incertezas que constituíam o pensamento político e
religioso dos reinos europeus, e do enfraquecimento paulatino da Igreja Católica
enquanto instituição que direciona os dogmas morais, políticos e culturais de um
Estado, houve a necessidade de uma reforma institucional católica. Para inviabilizar o
avanço protestante, reafirmar os dogmas, cultos e bases disciplinares da instituição, o
Papa João III impulsiona o que ficou conhecido como a Contrarreforma Católica. O pilar
da contrarreforma foi o Concílio de Trento (1545 – 1563), que culminou na criação da
Companhia da Jesus e na volta da Inquisição.
28
A finalidade do Concílio de Trento era redefinir os pontos atacados pelos
protestantes e instituir normas e direcionamentos para o trabalho religioso, com a
finalidade de recuperar o poder abalado da instituição religiosa. Propõe-se um olhar
interpretativo das Escrituras Sagradas que contraponha o olhar luterano e calvinista.
Preocupa-se mais em promover as alterações na organização institucional e na
reformulação de cultos do que em propor um novo paradigma filosófico. Com relação à
oposição aos protestantes, a Igreja Católica promoveu, nos Estados em que ainda
mantinha domínio, a rejeição de quaisquer formas de individualismo protestante e
valorizou a necessidade de mediação do templo católico em valores morais e éticos da
sociedade. A instituição católica passa a ser o organismo jurídico do Estado.
Dentre as reformas propostas, o Concílio de Trento legitima que a tradição e,
consequentemente, os dogmas da Igreja Católica são fontes de fé tanto quanto a
Sagrada Escritura, e determina uma lista de livros inspirados nos textos bíblicos e
produzidos por filósofos da teologia medieval como referências da fé cristã. Propõe um
olhar interpretativo para as obras da Igreja Católica que se diferenciam do olhar dos
protestantes. Compreende que o pecado original apaga-se no batismo com a Igreja
Católica e permanece a tendência ao mal e ao desvirtuamento da moral em cada ser
humano, em virtude do livre-arbítrio. Ainda, para os contrarreformistas, apenas a fé não
garante a passagem de pecador a um homem justo, sendo necessário o trabalho de
redenção sob a influência institucional da Igreja Católica. Por fim, a colaboração da
vontade humana com a graça divina dá possibilidades, ao homem, de adquirir méritos
ao invés dele apenas justificar-se enquanto pecador, o que incide em uma crítica direta
aos protestantes. Em 1563, instaura-se o decreto que reorganiza a fundação de
seminários e institui a obrigação da residência e seleção dos candidatos à vida
religiosa. Criou-se também a instituição para educação do clero.
O Concílio de Trento também foi marcado pela iniciativa de retomar a inquisição.
Os contrarreformistas instauram o Tribunal do Santo Ofício, que teria como objetivo
vigiar, prender e punir todos aqueles que não estivessem de acordo com a doutrina
católica. Outra medida de repressão à oposição com a instituição religiosa foi a criação
do Índice de Livros Proibidos – Index Librorium Proibitorium – que divulga a relação de
29
livros que se opunham aos dogmas e ideais defendidos pela Igreja Católica. Todas as
obras apreendidas eram queimadas e os autores e leitores eram perseguidos e
punidos severamente. Inúmeros escritores e artistas desse período foram presos e
condenados em virtude de suas produções tituladas pecaminosas pela Igreja Católica.
Tal medida barrou o avanço de inúmeras doutrinas religiosas e controlou as produções
culturais da época.
Outra iniciativa de promoção da Igreja Católica foi a criação da Companhia de
Jesus, fundada por Inácio de Loyola, ex-soldado do exército espanhol, e composta por
jesuítas. Consistiu em uma ordem religiosa dedicada à evangelização e salvação das
almas. Foi introduzida em Portugal em 1538, em uma iniciativa de D. João III de
ampliar a fé cristã no território português e evangelizar as colônias. A Companhia
pregava que na formação de seu clero dever-se-ia privilegiar valores como a pobreza,
a caridade, a meditação, a pregação, o ensino, a assistência e a evangelização dos
povos. Em Portugal, a Companhia de Jesus teve função predominantemente
pedagógica, e, ao fim do século XVIII, foram consolidadas 30 escolas tradicionais de
ensino que serviam aos nobres e burgueses da época.
Paes (2006) defende que as reformas protestantes e a contrarreforma
representaram não um surgimento de novas visões sobre a espiritualidade, mas um
registro de causa e efeito já marcado pelas alternâncias expressas no pensamento
medieval. A proximidade filosófica entre os protestantes e a Igreja Católica é ofuscada
pela institucionalização do discurso de um e de outro, pois tanto os reformistas quanto
a contrarreforma têm como base a influência de Agostinho, Tomás de Aquino e outros
filósofos medievais. As sociedades ibéricas reafirmam a tradição tomista, enquanto
Lutero e Calvino voltam-se para o modelo de Agostinho, ao pressuporem que o homem
é incapaz de compreender os desígnios divinos e não tem autonomia para buscar
salvação e redenção. Contudo, podemos perceber que tanto um posicionamento
quanto outro são presentes em Cartas Espirituais, de forma constitutiva ao pensamento
religioso da época. Ambas as filosofias preocupam-se em defender a sociedade como
um corpo místico hierarquizado. Os discursos de Agostinho e Aquino refletem a
religiosidade tanto das manifestações protestantes quanto da Contrarreforma, que
30
possuem um conflito que não é marcado pela espiritualidade, mas por questões
político-sociais.
Por outro lado, a contrarreforma se apropria da oposição justiça/tirania dos
maquiavélicos, sendo critério para a formação e doutrinação social, ética e política da
memória, da vontade e da inteligência humana. Hansen (2006) propõe a tríade
memória, vontade e inteligência como os fundamentos das faculdades endofóricas –
saber/querer – e exofóricas – poder – das instituições sociais. As três faculdades
pressupõem o autocontrole do indivíduo para o bom funcionamento do corpo político e
místico do Estado, já que são guiados pela premissa do bem comum que justificam
atos de repressão e controle como os do Santo Ofício da Inquisição, a escravidão dos
índios na América e dos negros da África, os castigos e punições com fins exemplares,
dentre outros.
A Igreja Católica e o rei instituem pela memória, vontade e inteligência que são
responsáveis por manter a unidade e a segurança do reino contra inimigos internos e
externos. Para os protestantes, o rebelde que se opõe às leis naturais rebela-se contra
as leis de Deus, uma vez que no luteranismo e no calvinismo, o rei que legitima as leis
é um enviado de Deus que tem a finalidade de cuidar da ordem dos homens que
carregam o pecado original. Assim:
Quem se rebela contra as leis positivas
rebela-se contra a sacralidade do pacto
de sujeição, afirma-se na Espanha e em
Portugal, pois o poder real nasce não
imediatamente de Deus, mas de um
pacto entre o rei e a população, que se
alienou da soberania na sua pessoa
fictícia ou mística imortal como um
único corpo místico de vontades
31
unificadas na alienação. (HANSEN,
2006, p.140)
Hansen (2006) afirma que a hierarquia social é uma pirâmide cujo topo é a
cabeça real que, para os protestantes, é o rei, e para os contrarreformistas, o rei em
alienação com a Igreja Católica, e desce até os pés e membros que simbolizam os
escravos. A liberdade de cada homem é subordinada ao papel social e divino que ela
desempenha. Assim, podemos compreender que a contrarreforma se apoia nas
filosofias tomista e agostiniana ao afirmar que o reino se assemelha a um corpo místico
e que a perfeição do corpo resulta da integração harmoniosa de seus membros. A
ordem baseia-se na integração harmoniosa de todas as partes do corpo místico. A
ausência do rei em Portugal, no período seiscentista, transfere a necessidade de
direcionamento racional da sociedade para a instituição Igreja Católica e aos religiosos
portugueses. Os religiosos, por sua vez, têm por fim garantir a harmonia e a ordem
social do corpo místico do Estado. Cada instituição social que representa uma parte
desse corpo deve integrar-se hierarquicamente, como obediência, visando não ao
interesse particular, mas ao bem comum do todo. (Hansen, 2006, p.141)
1.4. O Barroco português
Durante a Contrarreforma, a instituição Igreja Católica foi tema da Arte Barroca
em Portugal. Em contrapartida, os discursos religiosos também utilizaram da estética
da Arte Barroca como base para a construção enunciativo-discursiva de seus gêneros.
A linguagem e a temática utilizada em sermões, cartas espirituais, poemas, romances,
atraía ou retraía crentes, levando-os a aceitar ou rejeitar as diretrizes da Igreja Católica.
O cultismo e o conceptismo presentes no discurso literário também são encontrados
em Cartas Espirituais como forma de legitimar um ponto de vista enunciado e garantir a
32
adesão do co-enunciador aconselhado. As características do pensamento e da
literatura do Barroco português são essenciais para o estudo de Cartas Espirituais.
O estilo barroco em Portugal nasceu de uma forte depressão política, econômica
e cultural, em virtude do grande período de dependência à Espanha. Eclodiu a partir
da crise dos valores renascentistas em função das lutas religiosas e pela falência do
comércio com o Oriente. O Renascimento, acompanhado pelo período das Grandes
Navegações portuguesas, pelas colonizações da África e da América, e pelas
expansões marítimas, alimentou um absolutismo existencial no homem português do
século XVI. Detentor dos conhecimentos científicos, dos domínios da arte, dos
domínios da razão, o homem desse século tudo podia frente ao mundo. Todavia, no
final do século XVI e início do século XVII, com os eventos históricos que culminaram
na perda da independência de Portugal, há a ressurreição de valores abandonados
desde o período medieval, junto do que era proposto pelos renascentistas.
O dualismo conceitual frente ao mundo, o estilo artístico e literário caracterizado
como pós-renascentista, que mistura elementos característicos do renascimento, do
paganismo e do sensualismo com as estruturas medievais de traços arcaizantes
promovidos pela Contrarreforma e que demonstram forte religiosidade, no aual faz
lembrar o teocentrismo medieval, é caracterizado como o Barroco. Estende-se não só à
literatura como também à pintura, escultura, arquitetura e música produzidas no século
XVII, e ainda, gêneros institucionalizados como o discurso religioso seiscentista, que
abrange dos anos 1600 ao início dos anos 1700.
A palavra barroco tem sua origem na Península Ibérica, termo advindo do
castelhano barrueco, que significa pérola de superfície irregular. Heinrich Wöfflin,
estudioso suíço das artes e da arquitetura, foi quem a utilizou para batizar o movimento
artístico seiscentista, ao afirmar trata-se de um silogismo hipotético medieval, que
denota um sentido confuso e falso. Wöfflin caracteriza o Barroco como um conjunto de
obras artísticas que possuem o exagero da forma, a sobrecarga das figuras de
linguagem nas produções textuais, reflexo de um estado de tensão e desequilíbrio do
homem do século XVII, que se encontra em conflito entre o terreno e o celestial, o
homem antropocêntrico e o homem de Deus, o pecado e o perdão, a religiosidade e o
33
paganismo. Sua classificação foi uma forma de contrapor a definição de Jacob
Buckhardt, realizada em 1855, que considerava todas as obras seiscentistas que se
opunham à linearidade clássica como um dialeto selvagem da linguagem renascentista.
A contribuição de Wölfflin foi propor uma categorização mais crítica dessas obras,
classificando inúmeros estilos que, por meio de um acúmulo de formas e cores que
exigiam atenção redobrada do co-enunciador do século XIX e XX para a compreensão
de um ponto de vista enunciado, contrapunham a clareza e a linearidade das obras
clássicas.
A classificação de barroco como pedra irregular, um silogismo escolástico, ou,
ainda, um estilo de arte e literatura que subverte o renascimento clássico do século XVI
e torna-se uma estética artística confusa, para Hansen (2008) reduzem a importância
histórico-cultural do que de fato foi o Barroco português. O termo barroco não existiu
em seu tempo histórico de produção intelectual, mas foi uma classificação dada por
Wölfflin, sob a luz do formalismo, para marcar movimentos artísticos isolados do século
XVII que se opunham à estética clássica.
Barros (2011) acredita que o discurso de Wölfflin é marcado pelo paradigma de
uma época que assistia aos primeiros passos de uma Arte Moderna e não tinha a
preocupação de examinar a produção artística relacionando-a com os reflexos
sociopolíticos seiscentistas ou pelas biografias dos artistas criadores. Wölfflin realiza
suas análises artísticas, selecionando a arquitetura e a pintura do Renascimento e do
Barroco, a partir de um processo comparativo entre os dois estilos. Fundamenta sua
análise a partir da constituição de pares opostos entre um e outro, como por exemplo, o
linear renascentista e o pictórico barroco, o planar e o recessional, a forma fechada e a
forma aberta, a multiplicidade e a unidade. Propõe, então, a constituição da arte
barroca a partir de um esquema dividido em cinco categorias, sendo elas a pictórica, a
visão em profundidade, a forma aberta, a unificação das partes em um todo e a clareza
relativa.
As definições propostas por Wölfflin reduzem a produção barroca a uma
estilística restrita à elocução psicologicamente subjetivada (Hansen, 2008, p.171). Por
serem definições muito generalizantes, os critéros que serviram de base para
34
caracterizar o Barroco possibilitou que teóricos de outras áreas do conhecimento, como
a história, a filosofia, a sociologia, à luz das teorias formalistas, classificassem as
mentalidades, a sociedade, a política, a cultura e religiosidade barrocas. As
apropriações do pensamento de Wölfflin constituíram o barroco como fato e essência
da época, levando quaisquer tipos de trabalhos que refletissem acerca do século XVII a
se questionar se tal autor, monumento, quadro, livro ou sermão fossem barrocos.
Hansen (2008) compreende que as categorizações realizadas pelos formalistas
e, especialmente, por Wölfflin, são reducionistas, quando associa-se as manifestações
artísticas com a prática social da época. As obras classificadas como barrocas são
diferentes, dependendo do lugar de produção, sendo difícil defini-las como um estilo
único. Somente em Portugal e Espanha, há duas estéticas de linguagem seiscentista
de predominância nas produções literárias, divergentes uma da outra, mas que na ótica
de Wölfflin são classificadas como integrantes de um único movimento literário: o
gongorismo e o conceptismo.
O gongorismo foi caracterizado como a retórica do jogo de palavras, o uso
abusivo de figuras de linguagens, a escolha lexical rebuscada, culta e extravagante; o
conceptismo ficou marcado pelo jogo de ideais e de conceitos, ao que segue um
raciocínio lógico e racionalista, marcado também pelos falsos silogismos lógicos, em
produções que visavam ironias. Ambas as estéticas comprometem a fluidez das
compreensões de determinadas obras produzidas, por se distanciarem dos padrões
clássicos, mas são profundamente distintas entre si.
As classificações de Wölfflin seguem o princípio de analogia e dedução
particularizadas, sendo muito subjetiva a definição de uma estética artística a partir de
características que primam pela informalidade, pelo irracionalismo, pelo contraste, pela
deformação, pelo acúmulo, excesso e exuberância. As definições propostas por
Wölfflin são reféns de uma pré-definição institucional do que é arte, mas que não
possui fundamentação empírica das obras.
Por outro lado, Hansen (2008) não despreza a classificação de Wölfflin, mas
propõe uma ampliação do conceito de barroco. O termo pode ser utilizado para
35
classificar e identificar uma obra, porém trata-se de uma classificação primeira que
necessita ser ampliada. A oposição entre classicismo e barroco é um importante ponto
de partida para a compreensão do homem e da sociedade barroca.
Clássico, para Wölfflin, é considerado formal. Por analogia, o barroco é
considerado informal, na medida em que contrapõe o clássico, sua clareza e sua
objetividade. Já para Hansen (2008), informalidade barroca pressupõe uma forma
aberta e dinâmica de produção artística, e o irracionalismo e a clareza relativa são
esclarecidos, uma vez que a prática particular do discurso prescreve racionalmente os
processos e procedimentos da sua invenção, publicação e consumo. A irracionalidade
e a clareza relativa são esclarecidas quando se tem à luz as condições sócio-histórico-
culturais do século XVII, definidas como a mentalidade barroca e a subjetividade
psicológica do homem barroco, que em seu tempo vivia sob a influência do
cientificismo antropocêntrico e da fé cristã teocêntrica. O esquema evolucionista da
história, marcada por atrasos e progressos, que justifica a angústia do homem barroco
que busca conciliar, inutilmente, o teocentrismo da Idade Média e o antropocentrismo
do Renascimento.
Em relação ao estilo de clareza relativa, Hansen (2008) afirma que os efeitos
contrastivos, a intensidade dramática dos versos e prosas, eram de básica fruição para
os autores e público do século XVII. A recombinação inesperada de versos e até de
sermões e cartas era um artifício retórico de rebuscamento e domínio da arte escrita.
Consideram-se as imagens produzidas pelos discursos do século XVII como
entimemas ou silogismos retóricos, compreendendo que são esquemas figurativos da
linguagem que pressupõem um dialogismo por definição, contradefinição e
argumentação. A falta de clareza defendida por Wölfflin corresponde a inúmeros
processos de argumentação que possuem padrões retóricos coletivizados de alguma
maneira, na prática social de gêneros específicos como as cartas espirituais, os
sermões, os poemas, os romances, dentre outros do século XVII, que se modernizaram
e modificaram em períodos posteriores.
Considerar as antíteses, hipérboles, alegorias dentre outros recursos figurativos
da linguagem barroca em decorrência de um irracionalismo, dilaceramento e angústia
36
do enunciador do século XVII, limita a produção artística de uma época. Hansen (2008)
defende que é discutível que as artes do século XVII, em especial as de influência
gongórica, sejam simplesmente a expressão de angústia dos artistas que as
produziram. Os autores representam suas angústias, paixões e anseios em um estilo
de texto estruturado segundo preceitos técnicos objetivamente partilhados. As artes
consideradas barrocas, informais, irracionais do século XVII possuem embasamento
estilístico das versões neoescolásticas do Livro III da Retórica, que compreende novas
conceituações da dialética e da retórica aplicadas no século XVII. Os tratados retórico-
poéticos eram organizados, em Portugal, principalmente pela Companhia de Jesus,
destacando o Artificio y Arte de Ingenio, de Baltazar Gracián (1644), Il Cannochiale
Aristotelico, de Emanuele Tesauro (1654), Nova Arte de Conceitos, de Francisco Leitão
Ferreira (1718), que seguiam as bases do Organon e De anima, propondo categorias e
esquemas de definição, ordenação e organização de argumentos e representações. Os
tratados neoescolásticos do século XVII recuperam a doutrina aristotélica da metáfora,
presente no Livro III da Retórica, e as leituras de Cícero e Quintiliano, com a finalidade
de definir estratégias de aplicação dialética dos temas e argumentos discursivos e suas
representações. Tal prática não foi exclusiva apenas em Portugal, mas também na
Espanha e em Roma, onde se estudavam tratados retóricos de autores gregos,
transmitidos em versões bizantinas, como o de Longino, sobre o sublime, e os de
Demétrio Falereo, Dionísio de Halicarnaso e Hermógenes, sobre a elocução.
Foi destaque no período barroco a produção de inúmeros gêneros religiosos. Os
sermões de Padre Antonio Vieira tinham como objetivo emancipar as virtudes da fé
cristã que encontrava-se em decadência, muitas vezes até para o próprio clero – como
por exemplo o Sermão da Sexagésima, que reflete sobre a arte de pregar; a prosa
doutrinária de D. Francisco Manuel de Melo e Padre Manuel Bernardes apresentam
tanto o laico como o religioso, com a intenção de a primeira expor a realidade do
mundo social, e, por sua vez, a segunda, com o intuito de edificar e pragmatizar
doutrinas cristãs, e tinha como essência estruturas pedagógicas e catequéticas; e as
Cartas Espirituais de Frei Antonio das Chagas, amostra de nossa pesquisa, tinham
37
como objetivo, a partir de uma comunicação por carta, orientar os dogmas e os valores
da vida cristã a seus religiosos.
Podemos observar, ao término desse capítulo, que, para examinarmos Cartas
Espirituais como discurso que propõe uma orientação espiritual doutrinária, é
necessário relacionarmos as cartas selecionadas com a prática social seiscentista.
Devemos levar em conta que o discurso Cartas Espirituais sofre influências da política,
da organização social, da literatura, da espiritualidade e das instituições religiosas do
século XVII. Assim, selecionamos, no capítulo seguinte, uma reflexão sobre o
referencial teórico-metodológico selecionado, a Análise do Discurso de linha francesa,
com o intuito de observar como o discurso é constituído em meio ao interdiscurso,
como ele se estabelece na sociedade desempenhando uma certa atividade humana e
como propõe, no nosso caso, um diálogo entre um enunciador e um co-enunciador, em
uma cena enunciativa que se utiliza uma instância que valida o ponto de vista
enunciado, denominada de hiperenunciador.
38
CAPÍTULO II
ANÁLISE DO DISCURSO: FRONTEIRAS E CONCEITOS
Este capítulo apresenta as categorias da Análise do Discurso de linha francesa,
doravante AD, propostas por Dominique Maingueneau, que propiciam examinar, em
nossa pesquisa, a construção das cenas da enunciação e o papel do hiperenunciador
em Cartas Espirituais de Frei Antonio das Chagas. Organizamo-lo em as formações
discursivas e o primado do interdiscurso; tipos e gêneros de discurso; as cenas da
enunciação; e a noção do hiperenunciador.
O conceito de discurso em Foucault (1987, 2012) e Deleuze (2005) é de um
lugar possível entre o pensamento e a palavra. O pensamento é revestido de signos
linguísticos e representações sociais influenciadas pelo lugar e tempo, que se tornam
visíveis por meio do texto. O discurso, para ambos os autores, carrega valores de
verdade de um determinado grupo ou instituição social, o que constituem as formações
discursivas.
Maingueneau (2008a) apropria-se do conceito de formação discursiva e propõe
a categoria do interdiscurso, que afeta a discursividade para além da relação direta
entre língua e história. Os enunciados de um discurso estabelecem uma relação
dialógica com enunciados anteriores, e é esse diálogo que permite a valorização dos
aspectos sócio-histórico-culturais para a construção dos efeitos de sentido de um
discurso, em nosso caso, de Cartas Espirituais.
Buscamos em Bakhtin (1992) a noção de gênero do discurso, que o compreende
como uma unidade da linguagem que dialoga com a prática social e discursiva. O
gênero é analisado em três dimensões: o tema, a estrutura composicional e o estilo.
Maingueneau (2008a, 2011) retoma Bakhtin (1992) e observa que os gêneros do
discurso estão suscetíveis a um sistema de coerções determinado, que opera nos
planos do discurso e na rede institucional de um grupo. Pressupõe um quadro
39
institucional ao gênero, denominado tipos de discurso, que o legitima como petencente
a uma determinada instituição.
O estudo de gêneros, para a AD, é compreendido enquanto práticas enunciativo-
discursivas cooperativas e regidas por normas e certo número de regras conhecidas e
sancionadas pela comunidade que faz uso deles. Na enunciação, há emergência de
uma categoria que encena o que é dito e define os papéis dos enunciadores e o
contrato estabelecido por eles e pelo gênero no espaço enunciativo. Maingueneau
(2008b, 2011) propõe, assim, a categoria cenas da enunciação, que amplia as
possibilidades de trabalho com o gênero e são classificadas por cena englobante, cena
genérica e cenografia.
Na cenografia, identifica-se as estratégias enunciativo-discursivas de oferta de
adesão de um ponto de vista do enunciador ao co-enunciador, a legitimidade e a
garantia de veracidade dos enunciados como pertencentes a um lugar institucional de
autoridade, o que possibilita a criação de efeitos de sentido no discurso epistolar de
Cartas Espirituais. Há, ainda, a possibilidade de mobilizar o aparelho enunciativo, a fim
de emergir uma instância que valida o ponto de vista do enunciador como
inquestionável. Maingueneau (2008a) denomina essa instância de hiperenunciador e
afirma que ela emerge nos usos do discurso citado, explícito no discurso e não no
texto. O hiperenunciador tem como função tornar inútil a presença de quaisquer outras
marcas de pontos de vista dos enunciados, que não as almejadas pelo enunciador.
Trata-se de uma instância que valida um olhar e consequentemente garante a
impossibilidade de outros olhares sobre um determinado enunciado. É fundamental
para compreendermos os efeitos de sentido possíveis de Cartas Espirituais enquanto
discurso de orientação doutrinária religiosa da Igreja Católica.
40
2.1. As formações discursivas e o primado do interdiscurso
A linguagem é uma atividade exercida pelo homem, que irá estabelecer, por
meio de enunciados, a ação entre um enunciador e um co-enunciador. Trata-se de
práticas interacionais, fruto de conhecimentos linguísticos e extralinguísticos, já que
não basta apenas o conhecimento gramatical para interagir com o outro, mas também
um conhecimento das condições sócio-históricas de produção, do papel assumido
entre os envolvidos na enunciação, do espaço, do tempo e do lugar em que
determinado processo enunciativo esteja inserido. Toda produção enunciativa detém
uma produção discursiva, que definimos como a construção de sentidos fruto da
interação entre os enunciadores, situada em um espaço histórico, social e cultural.
Brandão (2013, p.02) define discurso como toda atividade comunicativa entre
enunciadores. Toda prática enunciativa pertencente a um grupo ou comunidade, com
crenças, valores e posicionamentos culturais, políticos e sociais, é uma atividade
discursiva. Trata-se de discurso toda interação enunciativa que dispõe de uma
estruturação complexa não embasada em uma simples sequenciação de frases que
dão origem a textos, mas influenciada por elementos linguísticos e extralinguísticos
inseridos na história.
A AD é uma disciplina da linguística que estuda os efeitos de sentido dos
enunciados quando submetidos à prática social. A construção de efeitos de sentido
exige o contato com outras áreas do saber, promovendo uma reflexão que extrapola as
fronteiras linguísticas. Maingueneau (2007) postula a AD como uma disciplina
heterogênea que se situa na linguística e na intersecção de diversas áreas de estudo
do pensamento humano, fazendo fronteiras, em nosso caso, com a psicanálise
lacaniana e o materialismo histórico de Marx, reinterpretado por Althusser. O discurso
está em relação com o interdiscurso, ou seja, com um conjunto de Outros discursos
anteriores que estabelecem diálogo com o discurso analisado, sendo este o principal
objeto de investigação do analista do discurso. Para definir interdiscurso, o autor
recupera a definição de discurso e formação discursiva propostos por Foucault (1987,
2012) e Deleuze (2005).
41
Na Filosofia, define-se discurso como um lugar possível entre o pensamento e a
palavra. Trata-se de um aporte entre o pensar e o falar, já que o pensamento é
revestido de signos linguísticos e representações sociais influenciadas pelo lugar e
tempo, que se tornam visíveis por meio do texto. Foucault (2012, p. 43) compreende
discurso como as estruturas mesmas da língua postas em jogo e produzindo um efeito
de sentido.
O discurso, na perspectiva filosófica, é a reverberação de uma verdade que nos
brota aos olhos, já que tudo pode ser dito e tudo que é dito pressupõe através do dito o
discurso. Isso ocorre pois todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu
sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si (Foucault, 2012,
p.46). Nesse sentido, o discurso é constituído na prática social e no inconsciente de
cada ser empírico, e pode ser considerado um jogo de escritura, leitura e troca por
meio do signo. Na enunciação, o discurso coloca-se na ordem do significante para
alcançar as condições de produção de um significado. Os efeitos de sentido de um
discurso só são possíveis de serem estudados na prática enunciativa, já que é nela que
manifesta-se o material do que é dito.
Deleuze (2005) compreende o discurso como a defesa de um valor de verdade
dos enunciados. A partir de uma releitura de Foucault (1987), o autor afirma que em um
enunciado revela-se a realidade de razão e desrazão defendida na enunciação. A partir
dessa pressuposição, tem-se a emergência em refletir acerca do estudo de uma
metafísica da realidade de enunciados de uma determinada época, com o intuito de
conjecturar acerca do valor de razão de enunciados produzidos em um período
selecionado.
Enunciado, para Deleuze (2005), opõe-se à proposição e à frase. Trata-se de
proposição o que pode ser concebido em uma língua, o enunciado verbal que é
suscetível de verdade, uma máxima ou asserção sobre determinado tema, um juízo
que está intimamente relacionado com o sentido. A frase, por sua vez, é a
materialidade do sentido, a porta de entrada material que permite as proposições de
sentido. Já o enunciado é um conjunto de frases utilizadas em um lugar e tempo
determinados.
42
A relação entre frase e proposição vai do dizível ao dito, ou ainda, do que é dito
àquilo que está implicado no que é dito. Deleuze (2005) afirma ser esta uma relação
ontológica, já que de um lado há o possível, com as proposições que direcionam um
determinado efeito de sentido dos enunciados, e, de outro, o que é materializado de
fato pela frase. As proposições estão no âmbito do possível, pois lida com a
pressuposição de que uma frase enunciada está marcada pelo que ela diz e pelo que
ela não diz. O não dito constitui material para proposições do dito, ou seja, uma
espécie de conteúdo virtual que possibilita efeitos de sentido distintos para a frase. São
esses efeitos de sentido que tomamos, nesta pesquisa, como discurso.
Todas as proposições realizadas em uma frase possibilitam uma infinidade de
efeitos de sentido. Contudo, as frases enunciadas garantem o acesso a um mundo
virtual em que o sentido é produzido em regime de latência. Os efeitos de sentido são
possíveis somente quando em proposição, dentro de um determinado sistema possível
de proposições.
Foucault (1987) realiza uma análise histórica a partir de proposições do não dito
de uma época. Observa que só é possível atingir proposições, observando frases ditas
no período em análise, que pressupõem um universo de não dizeres. Nesse sentido,
propõe o conceito de formação discursiva, com o intuito de organizar as proposições de
efeitos de sentido possíveis de enunciados de uma determinada época. O enunciado
reflete um real unívoco da frase que detém uma verdade defendida, um ponto de vista
carregado de valores que se coadunam com os costumes específicos de uma cultura e
sociedade. Tudo que é expresso em um determinado enunciado possui valor de
verdade de um determinado grupo ou instituição social. Assim, os enunciados são
influenciados por uma formação discursiva que advém de uma formação histórica.
Ao levarmos em consideração que os enunciados são influenciados por uma
formação discursiva inscrita na prática social, compreendemos que não existe
sociedade que, na prática enunciativa, não estabeleça relações discursivas com outras
práticas discursivas anteriores. Para Foucault (2012, p.21), há conjuntos ritualizados de
discursos que se narram, conforme circunstâncias bem determinadas; coisas ditas uma
vez e que se conservam, porque nelas se imagina haver algo como um segredo ou
43
uma riqueza. Observamos que muitos discursos situam-se na origem de certas práticas
enunciativas, e estas os retomam, os transformam ou falam deles implicitamente.
Trata-se de discursos que são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer
(Foucault, 2012, p.21) em nossa sociedade, já que a retomada do dito com nova
corporalidade no processo enunciativo é a garantia dessa manutenção do dizer.
Com a intenção de ampliar a relação prática enunciativa e prática social e, ainda,
a noção de formação discursiva e formação histórica, Maingueneau (2008b) postula o
primado do interdiscurso. Trata-se de interdiscurso uma categoria que precede o
discurso, já que é impossível conhecer a prática social constante em uma prática
enunciativa sem conhecer outros discursos que dialogam com aquele em análise. O
diálogo entre um discurso e outro na prática enunciativa deve ser observado levando
em consideração um sistema de restrições e coerções globais, uma vez que é por meio
da interdiscursividade que encontramos um espaço de embate de diversas formações
discursivas, que, para o analista, serve de unidade central para o estudo do discurso.
Pressupõe-se o estabelecimento um processo dialógico, de relação nem sempre
explícita, entre um enunciado com outros enunciados provenientes de discursos
anteriores.
Maingueneau (2008b) compreende, a partir de Authier-Revuz (2004), que toda
prática enunciativa pressupõe uma heterogeneidade enunciativa, composta por duas
formas de presença do Outro em um discurso: a heterogeneidade mostrada e a
heterogeneidade constitutiva. A primeira, segundo o autor, é apreendida pelos
aparelhos linguísticos por meio do discurso citado, autocorreções, palavras entre
aspas, elementos que evidenciam a presença do Outro em um discurso. A segunda
não detém marcas textuais visíveis, mas marca a presença do Outro de forma a
incorporar-se no discurso enunciado. A hipótese do autor é de que o primado do
interdiscurso se inscreve de forma constitutiva nos discursos enunciados.
Analisar o discurso pela sua relação interdiscursiva pressupõe a investigação
dos dispositivos que conduzem a relação de um determinado discurso com outro, ou,
ainda, com um determinado universo de discursos. A relação com o Outro é o
fundamento da discursividade, partindo do pressuposto de que uma interação
44
discursiva se constitui a partir do diálogo existente com outros discursos - base do
princípio dialógico e polifônico de Bakhtin (1992). A interação enunciativa é constituída
pela forma com que um enunciador conduz diversos olhares de Outros discursos na
constituição de seu próprio discurso. A partir dessas reflexões, Maingueneau (2008b)
propõe um quadro metodológico que categoriza o interdiscurso, a partir de uma tríade
composta por: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo.
Por universo discursivo, entende-se um conjunto de formações discursivas de
todos os tipos que interagem numa conjuntura dada (Maingueneau, 2008b, p.33).
Define-se conjuntura dada como espaços histórico-sociais delimitados que servem de
condições de produção para diversos discursos. O universo discursivo é de pouca
utilidade ao analista, pois representa um todo vasto e impossível de ser apreendido em
sua totalidade. O analista tem como finalidade observar os efeitos de sentido possíveis
de um processo enunciativo, dentro de posicionamentos e formações discursivas mais
delimitadas. Contudo, o universo discursivo é útil, pois possibilita uma abertura para
delimitar os campos discursivos.
Maingueneau (2008b, p.34) define campo discursivo como um conjunto de
formações discursivas que se encontram em concorrência. Compreende-se
concorrência como um confronto de posicionamentos, ou a aliança destes, nos
discursos que possuem uma mesma função social e divergem a forma com que deve
compreender sua prática. Contudo, o recorte por campo não estabelece as fronteiras
que definem as condições de produção de um discurso. Trata-se de lugares abstratos
que apenas possibilitam a consolidação de redes de trocas de formações discursivas,
sem, ainda, delimitá-las. A noção de campo discursivo só permite que notemos a
existência de dois campos distintos que possuem uma mesma formação discursiva de
base. Tais fronteiras incidem no posicionamento discursivo dos enunciados, bem como
nas formas de desenvolvimento da prática social desempenhada pelo discurso.
A influência das formações discursivas impõe ritos e contratos de filiação de
como devem ser organizados determinados gêneros, a partir de determinadas
fronteiras pré-estabelecidas. Isto pressupõe que os campos discursivos fornecem
fronteiras de constituição para o discurso, mas não que todo discurso seja igual aos
45
demais inseridos no mesmo campo. O discurso é heterogêneo e influenciado por mais
de um campo discursivo, uma vez que há existência de uma hierarquia instável que
opõe discursos dominantes e dominados (Maingueneau, 2008b, p.34). Com isso,
pressupomos que em um mesmo campo discursivo há discursos que sejam mais
representativos e legítimos que outros, o que possibilita afirmarmos que ele seja
predominantemente marcado pelos posicionamentos de um campo discursivo
específico. Maingueneau (2008b, p.35) compreende que não conseguimos determinar
as relações entre as diversas formações discursivas de um campo senão por um
isolamento, dentro do próprio campo discursivo, de espaços discursivos.
Para completar a tríade, Maingueneau (op.cit.p.35) propõe, também, o espaço
discursivo, delimitado pelo analista, que consiste em subconjuntos de formações
discursivas. Mais delimitado que o campo discursivo, trata-se de um recorte de
discursos, realizado pelo analista, que antecedem o discurso a ser analisado e que
influenciam na constituição dos enunciados do discurso em análise. Embora não
represente a totalidade de formações discursivas que compõem seu interdiscurso, faz
parte de todo o território de influências interdiscursivas que o analista construiu para o
desenvolvimento de sua pesquisa. É a partir do espaço discursivo que se definem
como territórios da AD os espaços de trocas entre os discursos, que vêm a constituir
inúmeras formações discursivas, que possibilitam espaço de trabalho para o analista.
A inserção de um discurso em um campo é fruto de uma competência
discursiva. O discurso está submetido a um sistema de coerções semânticas, que
funciona como uma espécie de filtro que determina quais posicionamentos ele detém.
Estes sistemas de restrições pressupõem a interincompreensão dos enunciados por
uma comunidade de enunciadores e co-enunciadores e a prática discursiva que
caracterizam os discursos, filtrando-os como detentores de uma formação discursiva e
não de outra.
Por competência discursiva, Maingueneau (2008b) compreende tratar-se de um
sistema de coerções que define o discurso que deve ser tratado como processo
histórico, o que exige, daqueles que estão envolvidos na enunciação, reconhecer as
diversas formações discursivas que venham a filiar um posicionamento. Ser enunciador
46
de um discurso é ter a capacidade de produzir enunciados que pertençam a uma
determinada formação discursiva em que ele esteja filiado.
A condição de competência discursiva deve ser ampliada para competência
(inter)discursiva, já que supõe duas possibilidades: a capacidade do enunciador em
reconhecer a incompatibilidade semântica de enunciados das formações do espaço
discursivo que constituem seu Outro; e a capacidade de interpretar e traduzir esses
enunciados nas categorias de seu próprio sistema de coerções.
Há, nessa divisão, a promoção do embate entre os diversos posicionamentos de
um enunciado, pertencente a uma dada formação discursiva, e outro, pertencente a
uma formação discursiva diferente. Tal embate configura-se numa relação polêmica em
que cada um entende os enunciados a partir de uma espécie de tradução que não está
na troca de um idioma a outro, mas de uma variação de posicionamentos.
Maingueneau (2008b, p.100) afirma que cada um entende os enunciados do Outro na
sua própria língua, embora no interior do mesmo idioma.
Ao supor que cada enunciador traduz o enunciado do Outro a partir de suas
formações discursivas, Maingueneau (2008b) explica o fenômeno de
interincompreensão. Tal fenômeno permite observarmos que uma formação discursiva
não define apenas o universo em que ela se encontra, mas, também, o modo de
coexistência com os outros discursos. Em outras palavras, podemos notar que as
formações discursivas interagem em um espaço discursivo que proporciona uma rede
de interações semânticas, as quais possibilitam diversas posições enunciativas.
A diversidade de posições enunciativas faz do discurso um lugar de embate.
Souza-e-Silva (2011, p. 106) compreende que a diversidade confere um conjunto de
traços que abrangem todos os planos discursivos, sendo eles: a intertextualidade, o
vocabulário, os temas, o estatuto do enunciador e do coenunciador, a dêixis
enunciativa, o modo de enunciação e o modo de coesão. O trabalho do analista
consiste em estabelecer relações com o interdiscurso e os planos discursivos,
pressupondo um gênero que se constitui a partir de uma prática enunciativa encenada.
Como nossa pesquisa tem a finalidade de estudar o gênero carta, e, ainda, como
certificamo-nos da permanência de uma instância superior e validatória do que é dito
47
pelo enunciador, incluímos como parte constitutiva deste gênero a instância do
hiperenunciador, que emerge na cena enunciativa. Assim, faz-se necessário ampliar, a
seguir, as categorias de gêneros de discurso, cenas da enunciação e a instância do
hiperenunciador.
2.2. Tipos e gêneros do discurso
O estudo dos gêneros de discurso é ponto de partida para uma reflexão
enunciativo-discursiva da linguagem. Entendemos como gênero forças reguladoras
presentes e atuantes no discurso que estabilizam uma produção discursiva e ligam o
enunciado a um determinado lugar social.
Em Bakhtin (1992, p.279), os gêneros do discurso são classificados como tipos
relativamente estáveis de enunciados, sendo uma unidade da linguagem que dialoga
com a prática social e discursiva. Muitos teóricos não concebem um estudo discursivo
sem uma definição precisa da categoria de gênero, bem como sua relação entre o
linguístico e o social, haja vista que trata-se de uma categoria que oferece as bases
para o desenvolvimento de um estudo dialógico entre os enunciados e a prática social.
O trabalho com a categoria de gênero de discurso amplia os horizontes e as fronteiras
de compreensão para o uso da linguagem e, com isso, viabiliza diferentes abordagens
que buscam a melhor maneira de explicar o uso da linguagem em termos de contextos
e práticas sociais específicos. Atualmente, são inúmeras as abordagens de estudo dos
gêneros de discurso, uns optando por um olhar mais específico nas sequências
textuais, outros na natureza da linguagem, enquanto outros, na relação enunciativo-
discursiva do uso da linguagem.
Bakhtin (1992) classifica os gêneros a partir de três dimensões que se fundem
indissoluvelmente no todo do enunciado: o tema, a estrutura composicional e o estilo.
As três dimensões que compõem o gênero devem ser consideradas mutuamente, haja
vista que uma complementará a outra no instante da análise.
O tema é o tratamento dado ao assunto do qual o enunciado irá tratar.
Maingueneau (2008b, p.82) também contribui com reflexões sobre o plano do tema ao
48
afirmar que em seu tratamento semântico há uma relação intrínseca com o plano da
intertextualidade, na medida em que nenhum tema é realmente original, dado que ele
se reencontra em muitos outros discursos. O tema não é uma unidade que seja
específica para o trabalho do analista, já que um discurso não se define por seus
temas, mas por sua formação discursiva. Os discursos, embora não partilhem temas
semelhantes, possuem inúmeros pressupostos que os definem em um mesmo
universo, campo e espaço discursivos.
Em um estudo enunciativo-discursivo, o interesse não é a reflexão acerca dos
temas que percorrem uma obra, uma frase, um parágrafo, ou ainda, na reflexão da
noção de tema por si mesma, mas sim na relação do tema com o sistema de coerções
da formação discursiva que selecionamos para a análise. Devemos observar os temas
em Cartas Espirituais, com a finalidade de averiguar a constituição de seu sentido e de
sua relevância em uma formação discursiva específica. O tema só é observável na AD
quando relacionado com um espaço discursivo específico.
Um mesmo tema pode estar presente em discursos que não coadunam com os
mesmos posicionamentos em um determinado campo discursivo. O tema é ponto de
partida para um olhar acerca dos sistemas de coerções que direcionam os
posicionamentos que se opõem. Sendo assim, é impossível, na AD, observarmos o
tema sem estabelecer relações com o interdiscurso. Podemos resumir a relação tema e
interdiscurso da seguinte maneira:
(...) Um discurso dado integra semanticamente
todos os seus temas; ou seja, eles estão todos
de acordo com seu sistema de restrições.
(MAINGUENEAU, 2008b, p. 83 - 84)
Os temas se dividem em dois subconjuntos: temas impostos e temas
específicos. Os temas impostos podem ser compatíveis ou incompatíveis com os
sistemas de restrições de um campo discursivo. Se compatíveis, convergem com as
49
formações discursivas daquele campo; se incompatíveis, são integrados às formações
discursivas. Em nosso caso, observamos que inúmeros temas de Cartas Espirituais
estabelecem ora uma relação de compatibilidade com o campo discursivo religioso, ora
de incompatibilidade, e passam a ser integrados e adaptados ao sistema de coerções
daquele campo. Assim:
Não é fácil, mesmo quando existe um dogma
oficial, determinar exatamente os limites do
conjunto de temas impostos, porque eles são
justamente o que está em jogo num debate
permanente no interior do campo, cada
discurso procurando ser ortodoxo. Certamente,
existe um núcleo doutrinal muito estável no
catolicismo, sobretudo no século XVII, mas
zonas instáveis subsistem, há contínuos
deslocamentos (...). (MAINGUENEAU, 2008b,
p.84)
Como um discurso é constituído a partir de influências de outros discursos
pertencentes nem sempre a um único campo discursivo, é impossível decretarmos que
determinados temas sejam impostos pelas rotinas de uma única instituição social.
Devemos levar em conta outras formações discursivas que influenciam como
verdadeiros dogmas para o que é dito. Ao levarmos em conta que determinados temas
são impostos por outros campos discursivos, não devemos desprezar que tal
imposição é adequada aos sistemas de coerções daquele campo.
Por estrutura composicional, Bakhtin (1992) refere-se aos elementos textuais,
discursivos e semióticos que podem compor um enunciado. Reflete se é predominante
em determinado gênero o ato de informar, interagir, doutrinar entre outros, e, ainda,
qual a estrutura linguística e enunciativa desse gênero e como essa estrutura irá
50
influenciar no efeito de sentido que o enunciado promove socialmente. A estrutura
composicional, quando relacionada a uma formação discursiva e a um sistema de
coerções, contribui para definir o estatuto do enunciador e do co-enunciador.
Por estatuto do enunciador e do co-enunciador, Maingueneau (2008b) afirma
tratar-se dos papéis do enunciador e do co-enunciador que são legitimados no
interdiscurso. A partir de uma competência interdiscursiva, validam-se papéis
institucionais a serem seguidos tanto pelo enunciador quanto pelo co-enunciador. A
dimensão institucional que oferece um papel ao enunciador determina certa relação de
saber com o co-enunciador. Ao defini-los, observamos que, por meio da estrutura
composicional de um gênero, tem-se condições de analisar de quem parte e a quem se
dirige a enunciação, dentro de uma delimitação de papéis, contrato e jogo
estabelecidos pelo gênero.
Ao pressupor um estatuto para o enunciador e o co-enunciador, estabelecemos
contato com uma dêixis enunciativa espaçotemporal que determina um conjunto de
localizações no espaço e no tempo que um ato de enunciação apresenta-se, não de
forma a delimitar uma data e um local de acontecimento empíricos, mas do local da
instituição que representam e das suas condições históricas naquele instante de
enunciação. (Souza-e-Silva, 2011, p. 109)
Um gênero é cooperativo e regido por normas, oferecidas pelo sistema de
coerções de um determinado campo discursivo. Como prática e interação social, o
gênero proporciona a representação de papéis na prática enunciativa. A interação entre
o contrato e os papéis representados tem o funcionamento de um jogo com regras
implicadas e preestabelecidas que, se não cumpridas, implicam comprometimento da
prática social do gênero.
O estilo marca a coletividade do enunciado produzido, a partir de um campo
discursivo, de um instante sócio-histórico em que o discurso se insere e dos envolvidos
na enunciação. Bakhtin (1992) compreende que o vínculo entre estilo e gênero pode
determinar a padronização de uma manifestação discursiva, por exemplo, em cartas, já
que nos possibilita extrair, a partir do estilo de um gênero, uma dada esfera da
atividade e da comunicação humana. O estilo de um gênero do discurso está
51
associado ao modo de enunciação do discurso com outros de um mesmo campo
discursivo.
Quando ao modo de enunciar, Maingueneau (2008a) afirma que um discurso
não está associado apenas à dêixis e ao estatuto do co-enunciador e do enunciador,
mas também a uma maneira de dizer. O enunciador e o co-enunciador são integrados
em uma mesma sociabilidade ideal na enunciação. Entendemos por sociabilidade a
qualidade, ou o ato, de tornar-se sociável a partir de uma prática discursiva, o que quer
dizer que o enunciador e o co-enunciador, no instante da enunciação, são projetados a
uma prática social ideal. O texto é o processo de comunicação entre os envolvidos na
enunciação, e está submetido a moderações, ritmos e plasticidades influenciados por
uma instituição social específica. Em nosso caso, o gênero da amostra selecionada
tem a remetência de uma carta, mas por estar ligada diretamente a uma instituição
específica, tem seu estilo, e, consequentemente, seu modo de enunciação,
direcionados às especificidades da instituição social por qual se filia. Assim, a carta
passa a ser tomada como gênero epístola doutrinária da Igreja Católica do século XVII,
marcada pelas influências do estilo Barroco português.
O discurso possui também uma maneira de dizer, ou, ainda, um modo de
enunciação, que incide em um tom, um caráter e uma corporalidade daquele que
enuncia o discurso. Maingueneau (2011) defende que o tom de um enunciado
pressupõe um conjunto de características psicológicas e sociais que constituem um
caráter daquele que enuncia, e, ainda, confere-lhe uma corporalidade, o que, em outras
palavras, significa uma maneira de movimentar-se no espaço social. É essa maneira de
dizer que torna Cartas Espirituais uma produção que identifica, de certa maneira, o
enunciador como detentor de um estilo que o individualiza diante de outros
orientadores espirituais que se dedicam na produção epistolar.
Maingueneau (2011) amplia a noção de gênero de discurso apresentada por
Bakhtin (1992), ao considerar que os gêneros estão suscetíveis a um sistema de
coerções determinado, que irá operar nos planos do discurso e na rede institucional de
um grupo. O discurso pressupõe um quadro institucional ao qual está vinculado, ao
passo que este quadro também o legitima como pertencente a uma determinada
52
instituição. O gênero se organiza pelas normas de funcionamento dos grupos
institucionais em que se insere, ao mesmo tempo em que pode alterar o funcionamento
de uma instituição. Isto é possível, pois parte-se da reflexão de que os discursos
enunciados não estão sujeitos à influência de uma única instituição, mas de inúmeros
grupos e a tudo que eles implicam, tanto no âmbito da organização material do
discurso quanto nos valores que tais grupos carregam. Os gêneros cerceiam as
práticas enunciativas e delimitam o papel, o contrato e o jogo estabelecidos para o
acontecimento da cena enunciativa. A categoria de gênero de discurso é refletida a
partir de sua relação com os tipos de discurso, que juntos constituem um quadro cênico
que tem a finalidade de regularizar as diversas práticas discursivas em sociedade,
tornando-as repetitivas e sempre variáveis historicamente.
Por tipo de discurso, Maingueneau (2008a, p. 16) afirma se tratar de espaços já
pré-delineados pelas práticas verbais. São os espaços enunciativos que se relacionam
com os múltiplos setores da atividade humana, sendo estes o discurso administrativo, o
discurso literário, o discurso político e, em nossa pesquisa, o discurso religioso. Os
tipos de discurso englobam uma diversidade limitada de gêneros, que constituem as
práticas enunciativas e institucionais dessas atividades humanas. Observar os gêneros
pertencentes a diversos tipos de discurso é fundamental, na medida em que estes
fornecem um lugar e um espaço de enunciação, enquanto aqueles realizam a ação
institucional da enunciação. A possibilidade em atribuir ao gênero uma situacionalidade
em um tipo de discurso pressupõe a inserção de um lugar institucional ao gênero. Por
isso, o gênero carta é analisado como pertencente não só ao tipo de discurso religioso,
mas a uma instituição religiosa específica: a Igreja Católica.
Os gêneros de discurso são dispositivos de comunicação que só podem
aparecer quando certas condições sócio-históricas são presentes (Maingueneau, 2011,
p.61). A reflexão sobre gêneros pressupõe uma ação social efetiva, o que, para
Furlanetto (2010, p.266), significa que para cada texto está implicada uma atividade
enunciativa ligada a um gênero do discurso. Isto nos leva à reflexão de que, ao
analisar um discurso, devemos observar, a priori, que ele está inserido em uma
regularidade de enunciação ritualizada, repetida na prática social e concebida na
53
memória discursiva das diversas instituições sociais. A ritualização do gênero permite a
filiação do enunciador a uma prática enunciativa, na medida em que conserva, na
memória discursiva, os modelos daquilo que já foi dito. Além disso, o gênero é
responsável pela memorização de modelos ritualizados de enunciação que ele mesmo
institui, ao passo que os reemprega e os renova com o uso cotidiano. O gênero é
inserido em um lugar social e fornece um quadro enunciativo que desmascara, de certa
forma, a exterioridade simplista entre texto e contexto.
Maingueneau (2011) ressalta a necessidade de ater-se aos papéis que devem
assumir o enunciador e o co-enunciador na enunciação. Estes são determinados pelo
gênero e sua relação com o tipo de discurso, bem como a organização textual e o
suporte material. Compreendemos que:
Dominar um gênero de discurso é ter
consciência mais ou menos clara dos
modos de encadeamento de seus
constituintes em diferentes níveis: de
frase a frase, mas também em suas
partes maiores. (MAINGUENEAU,
2011, p.68).
O gênero de discurso é cooperativo e regido por normas e um certo número de
regras conhecidas e sancionadas pela comunidade que faz uso deste mesmo gênero.
Maingueneau (2011, p.69) afirma tratar-se o gênero de discurso de um contrato, que
pressupõe estrutura e papéis a serem seguidos, o que significa que um gênero implica
os parceiros sob a ótica de uma condição determinada e não de todas as suas
determinações possíveis.
54
Nessa perspectiva, interessa-nos refletir o gênero também como um ritual social
dos envolvidos na enunciação. Tanto o enunciador quanto o co-enunciador assumem
um papel no jogo dialógico dos gêneros, ao passo que esta relação define:
os gestos, os comportamentos,
as circunstâncias, e todo o
conjunto de signos que deve
acompanhar o discurso; fixa,
enfim, a eficácia suposta ou
imposta das palavras, seu efeito
de sentido sobre aqueles aos
quais se dirigem, os limites de
seu valor de coerção.
(FOUCAULT, 2012, p.37)
Notamos, com isso, que o gênero de discurso só é possível se encenado na
enunciação.
2.3. As cenas da enunciação
Os gêneros são manifestações enunciativas encenadas, que possuem cada qual
suas especificidades quanto aos papéis e contratos a serem desempenhados tanto por
quem enuncia quanto por quem co-enuncia o discurso. Maingueneau (2011,p.85)
afirma que um texto não é um conjunto de signos inertes, mas o rastro deixado por um
discurso em que a fala é encenada, já que por meio da enunciação há a emergência de
uma categoria que encena o que é dito e define os papéis dos enunciadores, bem
como o contrato estabelecido por eles e pelo gênero no espaço enunciativo.
55
A categoria que encena o que é dito e define a enunciação é denominada, em
Maingueneau (2008a, 2011), cenas da enunciação. O autor postula as cenas de
enunciação a partir de uma tríade composta pelos dispositivos que definem um lugar –
a cena englobante e a cena genérica – e uma forma de enunciar, a partir de um lugar
definido – a cenografia –, ambos responsáveis pela consolidação de uma espécie de
palco para o acontecimento da enunciação.
As cenas englobante e genérica, que têm a responsabilidade em consolidar e
definir o lugar da enunciação, compõem o quadro cênico. A cena englobante é
responsável por situar a enunciação em um determinado tipo de discurso e defini-la a
um quadro espaço-temporal, já que não há possibilidade de afirmar um único tipo de
discurso que seja padronizado a todas as épocas. Contudo, para a formação do quadro
cênico, também dependemos da cena imposta pelos gêneros de discurso. Neste caso,
o gênero é encenado por uma cena genérica, em que emergem a existência de papéis
a serem seguidos pelo enunciador e pelo co-enunciador na enunciação, que são
definidos pelo próprio gênero. É na cena genérica que temos condições, em Cartas
Espirituais, de observar que o discurso se trata da orientação da palavra de Deus de
um frei a seus fiéis e que esta orientação é um cumprimento do dever institucional do
discurso religioso católico.
Com a formação do quadro cênico consolida-se uma espécie de palco que
fornece os papéis e o lugar de acontecimento da enunciação, com a finalidade de dar
condições de materialização àquilo que é dito. Este palco é denominado cenografia. É
por meio da cenografia que identificamos marcas estilísticas, composicionais e
temáticas, que determinam as formas de enunciar o discurso. A cenografia garante o
dizer mostrado, o estilo e a estrutura dos enunciados e podem, ou não, serem lineares
ao que prevê o quadro cênico, já que a cenografia se dá em virtude das necessidades
enunciativas criadas pelos envolvidos na enunciação. Contudo, a cenografia jamais é
contrária ao quadro cênico. Ela é responsável por fazer com que a enunciação
aconteça, dentro de limites impostos pelas cenas genérica e englobante.
Maingueneau (2011) compreende que alguns gêneros parecem subverter o
quadro cênico, criando uma cenografia divergente do esperado em um discurso. Em
56
Cartas Espirituais, por exemplo, o código linguageiro nos leva a destacar traços de
intimidade entre o enunciador e o co-enunciador, que projeta um clima de cumplicidade
entre ambos. Porém, esta cenografia atende às expectativas institucionais do quadro
cênico: o tipo de discurso é religioso, da Igreja Católica do século XVII e o gênero tem
como finalidade a orientação doutrinária por meio da carta.
A cenografia é classificada como os parâmetros de situação de enunciação (...)
construídos pelo próprio arquivo (Furlanetto, 2010, p.270). Entende-se por arquivo as
formações discursivas que direcionam a prática enunciativa, advindas de campos
discursivos que influenciam na constituição dos enunciados. Por meio das formações
discursivas, a cenografia se consolida, já que se trata de uma categoria que relaciona
os componentes instituídos em sociedade, fruto do posicionamento sócio-histórico de
determinadas comunidades, que os seleciona e os inscreve na enunciação.
Por se tratar de uma cena que se consolida por meio das diversas formações
discursivas, a cengorafia mantém relação direta com a dêixis discursiva, fundamentada
por Maingueneau (1997, p.41) como aquela que define as coordenadas temporais
implicadas em um ato de enunciação. A dêixis discursiva responsabiliza-se em situar a
enunciação em uma tríade estabelecida pela relação abaixo descrita:
ENUNCIADOR ↔ COENUNCIADOR – CRONOGRAFIA – TOPOGRAFIA
De acordo com Maingueneau (2011, p.41), a dêixis discursiva é manifestada
pelo universo de sentido que uma formação discursiva constrói através de sua
enunciação. Por meio de uma tríade composta pelo enunciador e co-enunciador, a
cronografia e a topografia, compreendemos que a cenografia é constituída a partir da
relação entre os envolvidos na enunciação, inscritos em um tempo e em um lugar, o
que determina, dentre outras coisas, o uso vocabular e as marcas textuais escolhidas
na enunciação. Em Cartas Espirituais, notamos o uso abusivo de figuras de linguagem,
que identificam a inserção do discurso de Chagas no quadro espaço-temporal do
Barroco português do século XVII. A tríade acima apresentada é responsável por
atribuir à enunciação uma cena, que se inscreve o tempo todo no discurso,
57
desencadeada por elementos textuais da cenografia. No entanto, não é concebida a
prática discursiva como uma ação que parte, primeiramente, de um sujeito, em
segundo lugar, de um espaço, e, em seguida, de um tempo específico, mas sim da
interação entre estes três componentes, que legitimam uma cenografia para a
enunciação.
Por a dêixis discursiva situar-se em relação com as formações discursivas de
um determinado espaço discursivo, ela só pode ser instituída e legitimada se possuir
relação com uma dêixis fundadora situada no mesmo espaço discursivo. Por dêixis
fundadora, Maingueneau (1997) compreende as situações de enunciação anteriores
que garantem o acontecimento da enunciação atual. O discurso só é enunciado por
legitimar-se em uma interação entre enunciador e co-enunciador, de uma cronografia e
de uma topografia fundadoras. Em nossa pesquisa, as dêixis fundadoras, que
contribuem para a construção da cenografia do discurso Cartas Espirituais são as
extraídas de discursos que o constituem, dentre outros as Epístolas de São Paulo, e,
ainda, de discursos religiosos que regulamentam a mesma prática discursiva – outras
cartas espirituais da época.
A contribuição de Maingueneau (2008a,2008b,2011) ao propor a categoria de
cenas da enunciação é ampliar ainda mais o estudo dos gêneros do discurso. Ao nos
mostrar que o gênero é uma prática enunciativa encenada, compreendemos que as
marcas de estrutura, tema e estilo são perceptíveis inicialmente na cenografia. Ainda,
podemos afirmar que, em se tratando do gênero carta, a cenografia que é enunciada
nos faz refletir acerca da noção do hiperenunciador como uma das marcas de estilo na
prática enunciativa em discursos religiosos do século XVII.
2.4. A noção do hiperenunciador
Pela cenografia e, mais especificamente, pela dêixis discursiva, Maingueneau
(2008a) observa a mobilidade da instância do hiperenunciador. Esta instância emerge
por meio de um sistema de citações presentes no discurso. Ao analisar os usos do
58
discurso citado, o autor classifica-os, inicialmente, a partir de dois planos: dos
procedimentos e dos lugares.
O plano dos procedimentos consiste no uso do discurso citado como um
processo, categorizando-os à base de critérios diversos como: enunciativos - ao afirmar
que as citações estão presentes nos enunciados; tipográficos - elas possuem marcas
impressas e aparentes no texto; prosódicos - no que diz respeito à forma com que as
citações são enunciadas, por exemplo, por meio do discurso direto, indireto, direto livre,
etc.
O plano dos lugares constituem as citações selecionadas em função dos
gêneros, dos tipos de discurso e dos posicionamentos. Dependendo do gênero com
que estamos lidando, temos regras instituídas de como realizar determinada citação. O
gênero notícia jornalística necessita da explicitação da fonte e de seu enunciador;
Cartas Espirituais trazem o discurso citado como parte constitutiva dos demais
enunciados. O mesmo acontece com relação aos tipos de discurso, que são
responsáveis por conferir a institucionalidade do gênero, o que também determina um
tipo de uso do discurso citado. O discurso jornalístico tem quase que um compromisso
jurídico com o que é citado explicitamente em seus gêneros; o discurso religioso
constitui suas citações marcadas nos enunciados por um enunciador que assume o
papel de um porta-voz de um SUJEITO UNIVERSAL, hiperenunciado, fruto do discurso
teológico. Na enunciação, também podemos encontrar citações que carregam ou
legitimam determinados posicionamentos, como o político, o partidário, religioso, dentre
outros.
Contudo, Maingueneau (2008a) propõe a reflexão de um outro sistema de
citações: um sistema que funda participação e citação, que esteja presente na
enunciação, mas não esteja explícito no texto, mas sim no discurso. Ele denomina esse
conjunto de citações como particitação. Trata-se de um sistema de citações que
atravessa vários gêneros do discurso, sem conter marcas de registro textual.
Para ampliar tal definição, recuperamos Benveniste (1989), no que diz respeito
aos sistemas enunciativos, destacando a relação entre enunciado e situação de
enunciação. O autor afirma que a língua possui um caráter essencialmente social, a
59
partir de um consenso coletivo. A origem da linguagem está intimamente relacionada
com a origem das sociedades já que:
Somente a língua torna possível a
sociedade. A língua constitui o que
mantém juntos os homens, o
fundamento de todas as relações que
por seu turno fundamentam a
sociedade. (BENVENISTE, 1989, p.23)
Por meio da função social humana, o homem se apropria, estabelece
encadeamentos e adaptações de diferentes signos linguísticos, com o intuito de
ressignificá-los e significá-los em sociedade. O homem é capaz de refazer a língua,
concebendo novos conceitos, a partir de um processo dinâmico de interação língua-
meio.
Benveniste (1989) acredita que o conceito de signo linguístico é reformulado no
que diz respeito à forma de significar. O signo possui duas modalidades de sentido: o
semiótico, que condiz com o signo linguístico saussureano, ao pressupor um sistema
de significantes que possuem sentidos significados, e o semântico, definido como o
sentido, ou significado, que só é possível e constituído em função do encadeamento
com a circunstância na qual o signo é empregado. O sentido semântico do signo só é
possível na língua em uso.
A noção de signo linguístico teorizada por Saussure é ampliada por Benveniste
(1989). O signo possui função de sistema formal, mas também uma função semântica,
possível no enunciado, a partir do uso efetivo da linguagem por um enunciador. A
linguagem é refletida em relação a seu funcionamento, é simbólica e tem poder de
significação e ressignificação. O significante saussureano passa a ser considerado
simbólico, quase que icônico, e tem como significado uma representação que advém
60
do seio de uma sociedade e de uma cultura. Nenhuma língua separa-se de sua função
social.
Benveniste (1989) retoma, então, uma questão central sobre a língua: o
esclarecimento de que o signo possui uma nova dimensão de significância, que passa
a denominar por discurso. Reflete, assim, a função da língua como produtora de
mensagens, já que esta não se reduz a uma sequência de sentidos, mas sim a um
conjunto de signos que possuem sentido entre si. O sentido é intencionado por um
enunciador e concebido na interação com o co-enunciador, a partir de um lugar e de
um tempo. A língua:
1º se manifesta pela enunciação, que
contém referência a uma situação dada;
falar é sempre falar-de;
2º ela consiste formalmente de
unidades distintas, sendo que cada uma
é um signo;
3º ela é produzida e recebida nos
mesmos valores de referência por todos
os membros de uma comunidade;
4º ela é a única atualização da
comunicação intersubjetiva.
(BENVENISTE, 1989, p.63)
A língua passa a ser um sistema produtor de sentidos, por meio de enunciados
que refletem uma prática social. Os sistemas de particitação agregam-se ao enunciado,
tomam valor distinto de seu lugar de origem, de seu discurso original, e produzem um
novo discurso, ao serem inseridos em um novo sistema de enunciação e sentido.
61
Os sistemas de particitação não são tipos, nem gêneros e nem marcadores
linguísticos. Maingueneau (2008a) compreende que as citações por particitação
associam-se nos gêneros do discurso com o intuito de mobilizar o aparelho
enunciativo. A particitação não é, portanto, uma citação tradicional marcada por um
corte de um fragmento textual e por uma explicitação de fonte, mas é classificada de
forma distinta.
Na particitação o enunciado citado é um enunciado autônomo, ou porque ele já é
utilizado na prática social, ou porque ganhou essa autonomia na prática enunciativa. O
enunciado particitado deve ser reconhecido e conhecido pelo enunciador e pelo co-
enunciador, sem que se evidencie a fonte ou deixe marcas textuais de que o discurso
foi citado. A citação é reconhecida por marcar um deslocamento enunciativo que pode
ser de natureza gráfica, uma vez que há uma mudança no uso da linguagem, quer seja
de vocabulário, quer seja de estrutura sintática, que incide na tonalidade e na alteração
na voz de quem enuncia o discurso. No instante do enunciado citado, que se define
como uma espécie de alteração de voz, ou sons linguísticos, daquele que enuncia, há
uma alternância paralinguística que revela uma alteração, também, no estado
psicológico do enunciador.
O enunciado citado apresenta-se, no sistema de particitação, em uma lógica do
discurso direto, pois tratar-se da voz do outro expressa por si mesma na enunciação.
Contudo, não consiste em simular o que o outro diz, mas de permiti-lo na enunciação,
restituindo aquilo que disse. Em outras palavras, o significante é restituído em uma
nova enunciação, o que, consequentemente, garante-lhe uma nova significação.
O enunciador que cita mostra adesão ao enunciado citado. Este, por sua vez,
pertence a um Thesaurus de enunciados de uma comunidade que os faz circular e os
compartilha. O enunciador que o cita pressupõe também a adesão de seu co-
enunciador ao enunciado citado. Maingueneau (2005) afirma que o enunciador cita
aquilo que o co-enunciador deveria pensar e refletir acerca do que é enunciado,
criando, assim, uma validação do ponto de vista daquilo que é dito.
Por se tratar de um enunciado extraído de um Thesaurus de enunciados
validados na prática social e enunciativa de uma comunidade, Maingueneau (2008a)
62
observa que sua enunciação recorre a uma instância que valida sua autoridade. Tal
instância é denominada de hiperenunciador e garante menos a verdade do enunciado -
uma vez que ele adéqua o enunciado citado ao conjunto de outros enunciados,
contemplando um sistema de enunciação diferente do seu lugar original. A instância do
hiperenunciador valida os demais enunciados, bem como os valores neles contidos,
aos fundamentos de uma coletividade.
Com relação à instância do hiperenunciador, Maingueneau (2008a) recupera
Rabatel (2012), refletindo que o sistema de particitação é uma forma particular de co-
enunciação, uma vez que há um acordo em torno do Ponto de Vista (PDV).
Para Rabatel (2012), a noção de valores determina o PDV de quem enuncia
como uma única e indivisível consciência literária. Como exemplo, reflete acerca de
como o descobrimento das Américas é enunciado em livros de História, observando
que estes assumem como única consciência literária possível o ato de descobrimento
americano como feito dos europeus, compreendendo que os nativos que já habitavam
as terras americanas não eram seus reais nativos. Assim, troca-se o valor semântico
de conquista e exploração por descoberta. A construção enunciativa leva em conta o
fato de que o co-enunciador desconhece o tema que é enunciado, e toma
conhecimento deste naquele momento, o que permite tornar válido o PDV expresso na
enunciação.
O que torna evidente a naturalização de um PDV é o efeito de anulação ou
apagamento enunciativos. Os PDVs manifestos em um enunciado são naturalizados a
partir do diálogo existente entre o enunciador e o co-enunciador no momento da
enunciação. Tal diálogo se dá a partir de escolhas de referenciação e predicação.
Rabatel (2012) e Maingueneau (2008b) compreendem que a referenciação é o
ato de situar o co-enunciador em um determinado campo discursivo, por meio de um
gênero de discurso específico, e por predicação, a mobilização do aparelho enunciativo
em fazer-se predicar, doutrinar e convencer o outro por meio de um PDV. São os
enunciados predicados que são, muitas vezes, naturalizados na enunciação, ou
validados por um discurso particitado, que possibilitará uma instância hiperenunciada.
63
O interesse em observar os enunciados referenciados por um PDV está na
análise das razões pelas quais os enunciadores compartilham seu PDV e,
consequentemente, rejeitam outros no instante em que validam o seu. Notamos que se
estabelece, no instante de defesa de um PDV, a defesa de valores sociais e a negação
de outros. Compreendemos que a defesa de um PDV em uma enunciação gera, em
contrapartida, a negação de outros PDVs, o que impossibilita, de certa forma, a
neutralidade de um discurso.
Contudo, antes dos valores manifestarem-se no discurso, eles existem na língua
enquanto sistema. O valor está relacionado com o sentido, ou com um efeito de
sentido, ligado a uma categoria linguística e a uma unidade lexical ou de expressão de
enunciado. Porém, o valor não é a significação em si, mas o pedestal sobre o qual ele
se constrói. No que diz respeito à significação, compreendemos que:
(...) nenhum signo é, portanto, limitado
no total de ideias positivas que ele é, ao
mesmo tempo, chamado a concentrar
em si mesmo; ele só é limitado
negativamente, pela presença
simultânea de outros signos; é,
portanto, inútil procurar qual é o total de
significações de uma palavra.
(SAUSSURE, 1989, p.78)
Saussure (1989) postula que a dimensão diferencial de um valor pauta-se em
diferenças de ordem paradigmática, que afetam sua significação na ordem
sintagmática. Tal jogo permite:
64
(...) evoluções do sistema linguístico,
com inovações que compreendem
verdadeiramente sentidos no
interdiscurso que se abstrai do contexto,
ou seja, entrando em um sistema de
diferenças abstratas na ordem
paradigmática. (RABATEL, 2012, p.12)
A evolução do sistema linguístico, que compreende diferentes valores de
sentido, depende da língua em uso e de sua relação com os variados campos
discursivos em que tal prática enunciativa esteja inserida. Os valores não são
absolutos, mas sim restritivos em função do lugar em que se fala e dos sistemas de
coerções que determinam as possibilidades de dizer nesse lugar. Maingueneau (2005)
afirma que o sistema de particitação é uma forma particular de co-enunciação, já que
estabelece um acordo em torno do PDV. Tal acordo, por sua vez, possui uma forma
particular de co-enunciação, já que torna inútil a possibilidade de outros valores de
significação para aquilo que é enunciado. O autor compara o sistema de particitação
como uma espécie de discurso direto livre, que compreendemos como a fala do outro
reproduzida indiretamente pela fala do enunciador.
Contudo, a relação entre discurso direto livre e o sistema de particitação são
apenas relacionáveis como critério de exemplificação. Tanto no discurso direto livre
como na particitação, há o apagamento da fonte do enunciado citado. Porém, no
discurso direto livre evidencia-se, por meio de um clichê, ou uma doxa, o
reconhecimento de segmentos atribuídos a uma pessoa qualquer (Maingueneau, 2005,
p.78). Por outro lado, a particitação cria um desnivelamento entre a voz do enunciador
e a voz do hiperenunciador em lógica de co-enunciação. No discurso direto livre, o
enunciador coloca-se em posição dominante no discurso citado.
O sistema de particitação está em contato estreito com as situações sócio-
históricas. Torna-se difícil observar o sistema de particitação sem distingui-lo segundo
65
a recorrência do enunciado citado. Para tanto, Maingueneau (2008b) define diversos
agrupamentos de particitação, selecionados em função da situação de uso do
enunciado citado. O primeiro agrupamento são as particitações sentenciosas. Elas
consistem em particitações cujo apagamento enunciativo é mais evidente. Para
exemplificá-las, o autor reflete acerca da enunciação proverbial.
A enunciação proverbial tem como característica o deslocamento daquele que
profere o provérbio àquele que garante sua verdade. O deslocamento de voz do
enunciador para um hiperenunciador garante o que é dito como verdadeiro e admite a
existência de duas instâncias de fala: o enunciador e o SUJEITO UNIVERSAL,
hiperenunciado. No caso da particitação de provérbios, o sujeito que enuncia é
garantido por um SUJEITO UNIVERSAL validante do que é dito, já que seu dizer faz
parte de um conjunto de valores de uma comunidade cultural e linguística em que
circulam esses discursos.
O hiperenunciador em provérbios é designado como a "sabedoria das nações", a
"sabedoria popular", sendo a instância de garantia de verdade do Thesaurus de
enunciados daquela comunidade específica. Por isso, justifica-se sua denominação por
SUJEITO UNIVERSAL, uma vez que é aquele quem impossibilita outras verdades além
do que é dito. O mesmo acontece com relação ao adágio jurídico. Entendemos por
adágio um dito popular, um provérbio ou um aforismo que detenha um pensamento
moral marcado institucionalmente. Constituídos como Thesaurus em uma comunidade,
eles reforçam o sentimento de pertencimento daqueles que o usam em uma prática
enunciativa. A importância em se distinguir o adágio jurídico do provérbio está ligado na
relação que o primeiro tem com a sabedoria instaurada nas nações, enquanto o
segundo liga-se, exclusivamente, a uma sabedoria característica de uma instituição
social. Por exemplo, o SUJEITO UNIVERSAL que é invocado pertence a uma
comunidade de ordem profissional, religiosa, científica etc.
Também faz parte do sistema de particitações as citações conhecidas. Para
Maingueneau (2008b), circulam em sociedade enunciados curtos, de fácil memorização
e com significados e significantes que garantem livre circulação em uma comunidade.
Tais enunciados são marcados e reconhecidos pela prosódia das palavras enunciadas,
66
pelas rimas internas, pelos tropos, que, de certa forma, trata-se de recursos de
expressão que têm como pressuposto a garantia de valor de sentido em um grupo.
Tais citações circulam em uma comunidade ampla. Podemos exemplificar algumas
citações conhecidas como "aqui se faz, aqui se paga", "olho por olho, dente por dente",
"aquilo que é bem elaborado é claramente enunciado" etc. O reconhecimento e a
autonomização desses enunciados de citações conhecidas se dão em função de uma
estrutura rítmica e quase poética de enunciação.
O conjunto de enunciados citados dos discursos bíblico e religioso é outro
sistema possível de particitação. O sistema de particitação implica uma instância
impositiva, sinônimo de fonte de valores. No caso das religiões escritas, tal imposição
se dá por ordem doutrinal. No cristianismo e em outras religiões, o Thesaurus que
possibilita a particitação é um único livro, considerado o Livro Sagrado. O
hiperenunciador que funda, por exemplo, o discurso católico, é o próprio Deus. O
enunciador tem como função estabelecer o encadeamento do discurso hiperenunciado.
A consequência disto é que nos discursos religiosos há o desaparecimento de marcas
do discurso citado e cabe ao co-enunciador reconhecê-lo. Ainda, compreendemos que,
por a enunciação perceber a um tipo de discurso que tem como institucionalização a
religião, tudo que é enunciado naquele discurso possui seu valor de hiperenunciador
divino.
No entanto, os enunciados citados pertencentes a um Thesaurus do discurso
teológico, por exemplo o Bíblico, não se constituem de falas e enunciados de Deus,
mas de autores anônimos, situados em lugares e épocas distintos. Porém, os co-
enunciadores do discurso religioso compreendem que os enunciadores desses
discursos são porta-vozes de um hiperenunciador divino. A instância hiperenunciada do
discurso teológico é compreendida como aquela que inspira e garante a produção
enunciativo-discursiva daquele conjunto de saberes e doutrinas. A inexistência dessa
crença invalida a hermenêutica religiosa, por isso o hiperenunciador é condição
fundamental para a existência de discursos de fé.
Em resumo, Maingueneau (2005) acredita que o hiperenunciador tem como
função, através do enunciado particitado, tornar inútil a presença de outras marcas de
67
PDV, que não as almejadas pelo enunciador. O hiperenunciador é uma instância que
valida um olhar e consequentemente garante a impossibilidade de outros olhares sobre
um determinado PDV, a partir de enunciados citados que pertençam a um Thesaurus
de enunciados de uma determinada prática e instituição social. O particitador tem uma
função quase que teatral na enunciação. Ele se apaga diante de um hiperenunciador e
as práticas enunciativas de seu discurso são ligadas a um ethos discursivo que causa
desnivelamento na enunciação: o enunciador, ao mostrar-se porta-voz de uma
instância reconhecida como validante por ele e pelo co-enunciador, valida, também,
sua enunciação.
A validação de um discurso por meio de um hiperenunciador funciona como uma
crença, ou uma hermenêutica divina. Assim, compreendemos que a instância do
hiperenunciador é necessária, em nossa amostra de pesquisa, para a composição do
gênero do discurso carta. Para analisarmos a seguir a instância de hiperenunciador e
compreendermos sua mobilidade no discurso Cartas Espirituais, de Chagas, devemos
associá-la às categorias de gênero e de cenas da enunciação. Estas categorias -
gênero do discurso, cenas de enunciação e hiperenunciador – selecionadas para essa
pesquisa, garantem veracidade e validam o discurso em seu espaço histórico-social,
possibilitando que observemos Cartas Espirituais como tesouro do discurso teológico e
linguístico-literário do século XVII, em Portugal, como examinaremos no capítulo a
seguir.
68
CAPÍTULO III
CENAS DA ENUNCIAÇÃO E O PAPEL DO HIPERENUNCIADOR EM CARTAS
ESPIRITUAIS
3.1. Procedimentos de análise
Cartas Espirituais de Frei Antonio das Chagas foi compilada e publicada
postumamente em dois volumes: o primeiro em 1684, com 100 cartas, e o segundo em
1697, com 166. Inseridas nos campos discursivos espiritual e religioso, tem o objetivo
de orientar e doutrinar fiéis missionários do século XVII aos caminhos da fé cristã e aos
dogmas da Igreja Católica. Escritas durante o período de vida missionária de Frei
Antonio das Chagas, entre os anos de 1662 a 1682, refletem o pensamento da época,
marcadas pela dualidade entre o sagrado e o profano, o teológico e o institucional,
característica do campo discursivo da arte barroca do século XVII. Como forma de
fazer perdurar no tempo as doutrinas institucionais e os entendimentos dos valores de
espiritualidade seiscentistas, Cartas Espirituais retrata sócio-historicamente
particularidades do século XVII. Trata-se de um meio de comunicação por escrito, entre
o enunciador e o co-enunciador, que não implica apenas uma intenção noticiosa, mas
colocar em comunhão um sentimento, um fato e uma doutrina.
Com a finalidade de examinar a amostra selecionada como discurso que
desempenha uma função social de orientação e doutrina espiritual e religiosa, e que
pela construção das cenas da enunciação evidencia-se o papel do hiperenunciador no
gênero carta, selecionamos as cartas espirituais I, IV, V, VI, VII, VIII e XX, com o
objetivo de verificar o modo como o interdiscurso e o gênero do discurso são
constituintes para o surgimento do hiperenunciador; identificar, no discurso encenado,
a mobilidade do hiperenunciador por meio dos aspectos que fundamentam os
diferentes pontos de vista expressos pelo enunciador; e reconhecer, pelas formações
discursivas impressas nas cartas espirituais selecionadas, marcas da estética barroca
e da espiritualidade do século XVII que reforçam a mobilidade do hiperenunciador.
69
3.2. O gênero carta: uma orientação doutrinária institucional e espiritual
As cartas espirituais selecionadas em nossa pesquisa são tomadas como
gênero do discurso carta, que tem como finalidade social orientar e doutrinar os fiéis
espiritual e institucionalmente. Considera-se o gênero como uma unidade da linguagem
que dialoga com a prática social e discursiva, conforme observamos no Capítulo II
desta pesquisa. Assim, a função social que desempenham os discursos selecionados é
de orientar o fiel pessoal e individualmente, tal qual em uma orientação confessionária
da rotina institucional da Igreja Católica, como se observa no recorte abaixo:
Recorte 1
Elle vos guarde, e guarde a todos os que lerem este papel, que foi vontade sua,
que este indigno, e miserável, inutil, falso, e mentiroso a Deos, de sua vontade o
escrevesse para sua Gloria, honra, e bem de todas as Almas de todos aquelles, que o
guardarem á risca. Guardai ao menos este papel, que algum dia póde ser que me
aproveite do que elle diz.
No Recorte 1, extraído da Carta I, no fim do corpo do texto, após desenvolver
todos os argumentos de sua orientação, o enunciador justifica os motivos que escreve
a para o co-enunciador. Ao enunciar e guarde a todos os que lerem este papel, que foi
vontade sua, o enunciador revela que a epístola fora encomendada pelo co-
enunciador, por meio de um contato anterior. Trata-se de uma carta que responde a um
incômodo do co-enunciador, que pede os aconselhamentos do enunciador, observando
nele seu porto-seguro. O enunciador assume o papel de orientador e o co-enunciador,
de orientado, o que nos possibilita afirmar que se trata de uma orientação doutrinária
que tem, como ponto de partida, uma confissão anterior.
Além de tratar-se de uma orientação doutrinária, a concebemos como uma
orientação pessoal, espiritual e institucional. A escrita da epístola, como identificada no
enunciado que este indigno, e miserável, inutil, falso, e mentiroso a Deos, de sua
70
vontade o escrevesse, foi obra de livre e espontânea vontade do enunciador que se
dedica à Gloria, honra e bem de todas as Almas. A orientação se faz pessoal, uma vez
que o enunciador se propõe a orientar o co-enunciador de livre e espontânea vontade,
em seu particular, na escrita de uma epístola que se supõe personalizada, que pode
servir somente a seu destinatário. Encontramos, no decorrer do Recorte 1, enunciados
como Guardai ao menos este papel, que algum dia póde ser que me aproveite do que
elle diz., que revelam proximidade e afetividade do enunciador com o co-enunciador, o
que torna o discurso pessoal.
Os enunciados constituem-se a partir da influência das formações discursivas da
instituição religiosa da qual o enunciador faz parte e representa. O enunciador afirma-
se institucional na medida em que enuncia ser seu papel, enquanto frei e religioso,
cuidar da Gloria, honra, e bem de todas as Almas, e que a epístola dirigida ao co-
enunciador pode servir de orientação a outros fiéis. Faz parte do trabalho missionário
do religioso seiscentista semear as doutrinas religiosas e espirituais, com o intuito de
livrar todas as Almas dos atos pecaminosos que serão julgados no dia do juízo final. A
missão de doutrinar o fiel, além de adequá-lo à instituição Igreja Católica, também tem
por finalidade reforçar sua espiritualidade, uma vez que o enunciador assume a função
de mediador entre o divino e o fiel. Trata-se de um porta-voz que auxilia o co-
enunciador a compreender melhor sua fé e sua ligação com Deos.
As cartas selecionadas são desenvolvidas a partir de um contato anterior do
enunciador com co-enunciador, ou seja, possuem uma temática pré-ordenada pelo co-
enunciador, que tem o desejo de ser orientado pelo enunciador. Contudo, mais do que
uma orientação doutrinária pessoal, as cartas espirituais selecionadas são cartas-
resposta que se assemelham, muitas vezes, com as epístolas doutrinárias de São
Paulo, no discurso bíblico, já que busca orientar seu fiel espiritualmente, evidenciando
a necessidade de que só é possível alcançar a espiritualidade plena se adequar-se às
doutrinas institucionais religiosas, como observa-se no recorte abaixo:
71
Recorte 2
Senhora: as arvores podem estar cheyas de fructos, e juntamente estar verdes,
e com alguma flor: nas do espírito requere-se, que se acabe a flor, e que se acabe a
verdura, para chegar à transformaçaõ de Christo crucificado, que he o que eu prego,
sem ser S.Paulo: e assim deve estar crucificado tudo na árvore da mortificaçaõ, que eu
estimo mais que a Oraçaõ. Necessario he que se seque a flor da discriçaõ,e se seque
a verdura de nossas paixoes e inclinaçoes naturaes, e que se ponha todo o cuidado em
sazonar os fructos das obras virtuosas, sem que concorra a arvore para a folha, e para
a flor com a substancia, que tira os fructos.
O recorte 2, retirado da carta VI, evidencia que a finalidade da carta é doutrinar o
co-enunciador ao posicionamento institucional e espiritual defendido como ideal pelo
enunciador. Para isso, o enunciador faz uso de um processo metafórico que busca
referências de outros campos discursivos, no caso o da botânica, ao enunciar o
amadurecimento dos frutos e o nascimento de flores em uma árvore, para alcançar, no
co-enunciador, a compreensão da fé cristã e adesão ao posicionamento do campo
discursivo religioso. A partir de uma analogia entre a natureza e a espiritualidade, o
enunciador constrói seu discurso doutrinário.
No enunciado as árvores podem estar cheyas de fructos, e juntamente estar
verdes, e com alguma flor, as árvores cheias de frutos são aquelas muito produtivas,
que alimentam o homem e, portanto, são boas. Contudo, uma árvore com frutos verdes
é aquela que ainda não está preparada para alimentar o homem, deve esperar o tempo
de seu amadurecimento para exercer seu papel de fruto bom para o alimento humano.
Ao propor tal analogia, o enunciador possibilita o efeito de sentido de que o espírito
deve ter seu tempo de amadurecimento, independente dos frutos que possui. A
analogia tem por função, na enunciação, aderir o co-enunciador ao posicionamento do
enunciador.
Em assim deve estar crucificado tudo na árvore da mortificaçaõ, que eu estimo
mais que a Oraçaõ, o enunciador pressupõe que o caminho ideal para o
72
enriquecimento espiritual é, mais que a oração de contemplação, a compreensão dos
sacrifícios mundanos a que o missionário religioso deve se sujeitar. Uma árvore com
frutos não está preparada para alimentar o homem, pois os frutos não estão maduros;
porém, uma árvore sem frutos é aquela que já alimentou os homens, já exerceu sua
função missionária, ou seja, os frutos já amadureceram e já serviram de alimento ao
outro. O enunciador associa uma árvore sem frutos com Christo crucificado e defende
o ponto de vista de que o missionário deve fazer germinar frutos bons, inspirados na
vida de Cristo, em seu trabalho religioso. Para atingir a condição de Christo crucificado,
é necessário esgotar os frutos a ponto de deixá-los amadurecer até que não se
sustentem mais na árvore.
O amadurecimento dos frutos, para o enunciador, pressupõe a renúncia da vida
mundana e seguir os caminhos institucionais propostos pela Igreja Católica. Cultivar
bons frutos e semeá-los significa executar boas missões, dar bons alimentos espirituais
e doutrinários aos homens e, no fim da vida mundana do missionário, ser uma árvore
sem frutos, mas ter cumprido com sua missão institucional que é alimentar o próximo
espiritualmente, através da doutrina cristã. O enunciador eleva o posicionamento
institucional da Igreja Católica e a espiritualidade cristã à idealização perfeita de uma
vida. O bom viver não significa desfrutar dos prazeres mundanos, das práticas que
exaltam o material, o corpo e o efêmero. O bom viver, observado e legitimado pelo
enunciador como o melhor a ser adotado, significa cumprir a missão institucional à qual
se é encarregado, com apego espiritual ao divino, sem privilegiar os atos pecaminosos
e efêmeros do mundo.
A antítese criada e a legitimação de um posicionamento sob uma de suas teses
é o que caracteriza o radicalismo do barroco seiscentista, observado no Cap. I de
nossa pesquisa. Em enunciados como Necessario he que se seque a flor da discriçaõ,
e se seque a verdura de nossas paixoes e inclinaçoes naturaes, o enunciador propõe
um distanciamento entre o missionário religioso e seu trabalho com a discrição, as
paixões e as inclinações naturais, características típicas dos homens mundanos que
não optam pela vida religiosa, ou estão distantes dela. Mesmo que não se trate de uma
antítese evidenciada em texto, ela emerge em discurso, nas formações discursivas que
73
legitimam cartas espirituais como discurso religioso. No século XVII, os homens que
possuíam inclinações às paixões e aos sentimentos naturais do corpo eram
considerados pecadores perante a Igreja Católica, imorais em suas atitudes. Por se
tratar de um discurso doutrinário, o enunciador propõe orientar o co-enunciador de que
as inclinações à vida mundana são ruins, pois são caminhos opostos para se alcançar
o cume da perfeição espiritual. É o caminho proposto pela religião que tem como
função estabelecer o elo do homem ao divino, que direciona o fiel à perfeição. O
enunciador orienta que são pelas inclinações aos estudos bíblicos que há o
enriquecimento do espírito do fiel.
O uso do verbo sazonar, no enunciado e que se ponha todo o cuidado em
sazonar os fructos das obras virtuosas, sem que concorra a arvore para a folha, e para
a flor com a substancia, que tira os fructos., possibilita efeitos de sentido como o ato de
tornar madura as obras virtuosas, assim como dar bom sabor, temperar ou
condimentá-las. No trabalho missionário desempenhado pelo enunciador e pelo co-
enunciador, é necessário tornar maduro a compreensão das obras sagradas e, ainda,
ter a capacidade de aplicar suas doutrinas, adequando-as às condições socioculturais
seiscentistas. O trabalho missionário do religioso consiste em tornar clara a mensagem
do texto bíblico, segundo as coerções institucionais que influenciam na constituição da
espiritualidade seiscentista. O enunciador afirma, ainda, que se deve sazonar sem que
as partes da árvore concorram entre si, o que pressupõe que o fiel deve executar suas
funções levando em consideração as hierarquias impostas no trabalho missionário,
respeitando-as, haja vista que a hierarquia é, além de institucional, espiritual, já que a
Igreja e o Estado consistem na representação do corpo místico divino na Terra.
O enunciador preocupa-se em afirmar, no enunciado que he o que eu prego,
sem ser S.Paulo, que prega e semeia a vida de Christo crucificado, sem ser São Paulo.
A negação de sua semelhança com São Paulo não consiste em deslegitimar os passos
do santo, mas de admirá-lo a ponto de ser humilde perante a ele, ou seja, não ser tanto
quanto foi São Paulo em suas orientações epistolares. O papel assumido pelo
enunciador é semelhante ao papel social assumido por São Paulo quando compõe
suas epístolas para as comunidades que visitava em suas peregrinações. São Paulo
74
ensinava as máximas cristãs e compôs parte representativa do Novo Testamento
bíblico a partir do discurso epistolar. A epístola de Paulo aos romanos, sexto livro do
Novo Testamento, por exemplo, trata da salvação do homem que é oferecida por meio
do Evangelho de Jesus Cristo. Considerada como a epístola mais importante do legado
teológico cristão, nela, Paulo pressupõe que todo e qualquer tipo de prática social deve
realizar-se à luz da vida e das palavras de Cristo crucificado. O enunciador realiza
trabalho semelhante, mas não pode se igualar a Paulo devido à grandeza deste.
Enunciativamente, ao referir-se inferior a Paulo, pretende provocar no co-enunciador a
associação de um discurso a outro. Esta associação tem por finalidade validar o
discurso da carta em semelhança, mesmo que em nível menor, às cartas paulíneas e,
consequentemente, ao discurso bíblico do Novo Testamento.
Assim, o desenvolvimento temático é marcado por pontos de vista que revelam o
posicionamento institucional do enunciador no aconselhamento que se compromete
pessoal e espiritual. Ao mesmo tempo que o enunciador assume um papel de amigo
pessoal e orientador missionário do co-enunciador, há a doutrina de um
posicionamento religioso e espiritual que norteará a maneira de ver e de ser na prática
social. O papel assumido pelo enunciador na enunciação é polêmica, pois no decorrer
do desenvolvimento temático de Cartas Espirituais, pretende provocar, como podemos
observar no recorte abaixo, a adesão do co-enunciador quer pelos dogmas
institucionais, quer pelas palavras de um conselheiro próximo que lhe quer o bem,
exercendo a função oras de um amigo, oras de um religioso missionário:
Recorte 3
Em meus pobres Sacrifícios, quanto posso, desejo merecer a V.S. a lembrança,
que tem de mim diante de Deos, e que vá a diante a concordia, que em todas as
cousas de V.S., e de sua casa, filhos, netos, e sobrinhos, se continuem, e augmentem
as felicidades d'Alma, e da vida, que lhe desejo. Mas em bons desejos se me vay tudo.
Nada he o que obro, porque o mais que faço he nada. As melhores caldas do mundo,
saõ a Graça de Deos, a santa Oraçaõ, e conformidade com Deos, caridade e paciência
75
nas contrariedades, que desejamos. Se nestas se metter a Senhora Condessa, terá
quanto quizer de Deos, e saberá pacificar-se, naõ querendo de Deos nada, senaõ o
que elle quer, que sempre he melhor.
No recorte 3, pertencente ao corpo do texto da carta VII, o enunciador orienta
um co-enunciador fiel que não possui uma vida voltada à missão religiosa a apegar-se
a Deos em todos os momentos, inclusive os de contrariedade. O enunciador tem como
pressuposto legitimar o ponto de vista de que por mais adversa que é uma situação, ao
possuir a fé em Deos e compreendê-lo como onisciente e onipresente a tudo, tem-se a
tranquilidade ao encarar os problemas mundanos. Os papéis assumidos pelo
enunciador e pelo coenunciador são diferentes dos recortes 1 e 2, uma vez que nestes
tratam-se de co-enunciadores missionários, que assumiram o hábito e os votos da vida
religiosa, enquanto naquele, trata-se de um co-enunciador que não tem por hábito a
vida missionária, mas é um religioso que encontra no enunciador a segurança em
confessar-se e esperar uma resposta que acalme seu espírito incomodado.
O enunciador busca legitimar seu ponto de vista nos enunciados Mas em bons
desejos se me vay tudo. Nada he o que obro, porque o mais que faço he nada., uma
vez que introduz a antítese vida mundana e devoção espiritual na enunciação do
recorte 3. Para o enunciador, todas as ações da vida mundana devem ser coordenadas
com a devoção espiritual e espontâneas do co-enunciador. O enunciador afirma-se
disposto a ajudar o co-enunciador, a orar por ele e pelos seus, mas afirma que nada
adianta se o co-enunciador não reproduzir em atos e obras a Deos as orações que
realiza e que lhe dedicam.
Os enunciados revelam a função social do enunciador ao buscar legitimar o
ponto de vista e doutrinar o comportamento espiritual do co-enunciador, nos
enunciados As melhores caldas do mundo, saõ a Graça de Deos, a santa Oraçaõ, e
conformidade com Deos, caridade e paciência nas contrariedades, que desejamos. Ao
propor que o coenunciador deve apegar-se a Deus acima de tudo, compreendê-lo
onisciente, onipotente e onipresente de todas as ações mundanas, o enunciador afirma
76
a necessidade do compromisso espiritual do fiel orientado. Identificamos que Graça de
Deos é posto em simetria com santa Oraçaõ, o que pressupõe o apego a Deos uma
busca pela adequação espiritual do co-enunciador e a oração, uma legitimação
institucional, já que as orações católicas distinguem das orações protestantes, mesmo
ambas pautando-se no mesmo discurso bíblico. Assim, o enunciador possui, no
discurso da carta VII, a função de orientador doutrinário espiritual e institucional.
Nos três recortes analisados, a organização temática dos enunciados possibilita
compreender as cartas espirituais selecionadas como discurso passível de ser situado
no campo discursivo da literatura barroca seiscentista. O enunciador desenvolve e
organiza os enunciados de seu discurso de forma a estabelecer um jogo de ideais e
conceitos típicos do cultismo e do conceptismo barrocos. A opção por um estilo cultista
e conceptista tem como pressuposto a busca de adesão do posicionamento do co-
enunciador e a construção de enunciados que revelem respostas para os anseios da
sociedade seiscentista, hiperenunciados por um SUJEITO-UNIVERSAL.
A relação das cartas espirituais selecionadas com a realidade literária do barroco
português não deve ser ignorada, pois a presença do sagrado e do profano, o
predomínio de antíteses, são abundantes, colocando Chagas como um grande cultor
da época. Assim como em um poema barroco, na amostra selecionada, há
emancipação do espírito e o desapego do corpo, pois este é compreendido pelo
enunciador como uma passagem, é efêmero e vai embora. O discurso religioso da
época lida com a concepção de que se deve viver para evitar os pecados e limpar a
alma pecadora, como se a vida mundana fosse apenas uma passagem para o caminho
espiritual. Tal característica é reproduzida não só nas cartas em análise como também
em obras representativas do barroco português.
Já acerca da espiritualidade do século XVII, os temas das cartas espirituais em
análise resumem um conjunto de formas de orar, que difundem a oração metódica. No
século XVII, o que entusiasmava os devotos eram as visões e revelações de milagre
exploradas em sermões e cartas eclesiásticas, o que é desmotivado por Chagas no
desenvolvimento do tema, ao passo que frisa aos destinatários sua condição não de
profeta, mas sim de servo indigno tal qual seus orientandos. Assim, a orientação busca
77
conseguir, através da doutrina cristã e espiritual, um resultado prático nos deveres
mundanos. Para isso, Chagas utilizará como base os valores de espiritualidade da
época, a fim de transmitir saberes doutrinários. O discurso religioso retrata que o
caminho da espiritualidade é a adequação ao mundo social, e, na condição de
sociedade teocêntrica do século XVII, só é possível conceber harmonia entre o mundo
das coisas e o mundo espiritual, se prevalecer a qualidade de fiel missionário que
detém uma função divina no mundo terreno, o que é extremamente marcante no
desenvolvimento temático das cartas em análise.
Cartas espirituais possuem uma regularidade estilística e estrutural
relativamente estáveis, já que Chagas constituiu um padrão de escrita que foi base
para muitas outras orientações epistolares no decorrer do século XVII e XVIII. Ficou
famoso em Portugal pela prática adotada, e pelos bons resultados que elas
desencadeavam dentro do convívio religioso. Analisamos, assim, a estrutura e o estilo
das cartas que selecionamos como amostra de nossa pesquisa como registros que
consolidam a cenografia e o hiperenunciador na prática enunciativa.
3.3. As cenas da enunciação e a legitimidade da instância do hiperenunciador
como formas de adesão do posicionamento do co-enunciador
Os dispositivos que definem o lugar e uma forma de enunciar preestabelecida
são a cena englobante e cena genérica. Em Cartas Espirituais, tratam-se,
respectivamente, do discurso religioso e da orientação espiritual.
A cena englobante pressupõe os tipos de discursos a que pertencem os
enunciados. O tipo de discurso que constitui nossa amostra de pesquisa é o religioso,
com um atravessamento dos discursos da espiritualidade e da literatura seiscentista.
Para que um discurso seja legitimado como religioso na sociedade portuguesa do
século XVII, é imprescindível o contato com as formações discursivas da teologia
medieval. Pensadores como Santo Agostinho, Tomás de Aquino, dentre outros,
constituem a base de compreensão dos textos bíblicos para o enunciador e o co-
enunciador de nossa amostra. As condições sócio-históricas de Portugal, as reformas
78
religiosas e científicas e o pensamento barroco influenciam na maneira com que o
enunciador exerce sua função de orientador espiritual e definem um quadro espaço-
temporal na enunciação peculiar dos seiscentistas religiosos, como identificamos no
recorte abaixo:
Recorte 4
Costumaõ dizer alguns: ou bem dentro, ou bem fora. Senhora, bem fora de tudo.
Isto he o que eu aconselho. E naõ cuide V.S. que em ter grande paciencia no que lhe
digo, tem grande merecimento. Naõ basta huma virtude, saõ necessárias todas. Naõ
basta que, V.S. de tudo a Deos, senaõ que se dê a si despida até de si mesma: que
isto he o que este Senhor quer de nós mais que tudo.
No recorte 4, extraído da carta V, o enunciador orienta o co-enunciador à
necessidade de apegar-se a Deos acima de tudo. O enunciado Costumaõ dizer alguns:
ou bem dentro, ou bem fora introduz uma antítese entre fora e dentro, que possibilita a
escolha do co-enunciador por dois caminhos: ou estar dentro das experiências
mundanas, influenciado por elas, ou fora, ligado a Deos espiritualmente. A opção
constitui uma referência ao discurso bíblico que pressupõe o livre-arbítrio dos homens.
Contudo, no enunciado Senhora, bem fora de tudo., o enunciador orienta, segundo as
coerções da instituição de onde enuncia, qual o lugar ideal de dedicação espiritual para
o co-enunciador. Buscar respostas fora das experiências mundanas compreende-se
fazer uso do livre-arbítrio segundo São Tomás de Aquino, que afirmava que o homem
nasce predestinado a uma missão e o livre-arbítrio consiste em como ele irá
desempenhar essa missão na Terra sem se desvirtuar para outros caminhos.
Os caminhos da luxúria, do cientificismo, das práticas pagãs, das releituras
protestantes dos textos bíblicos, opõem-se à instituição a qual o enunciador representa
e, consequentemente, ao que ele observa como a doutrina ideal para seu orientado. O
enunciador legitima que a instituição a qual ele faz parte detém o caminho pelo qual se
atinge a salvação espiritual proposta nos textos bíblicos. A partir de um jogo de ideais e
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conceitos, como no enunciado Costumaõ dizer alguns: ou bem dentro, ou bem fora.
Senhora, bem fora de tudo., em que fora pressupõe dentro de Deos e dentro do
caminho da salvação espiritual e dentro o caminho da perdição da alma, há a
legitimidade do PDV do enunciador e a busca pela doutrina do co-enunciador.
A cena genérica, no recorte 4, define a funcionalidade do gênero quanto aos
papéis que serão exercidos pelo enunciador e pelo co-enunciador na enunciação,
levando em consideração os sistemas de coerções do lugar e do tempo do discurso
analisado. No recorte 4, a função do enunciador é cativar e orientar o co-enunciador,
legitimando um PDV enunciado como o ideal para se adequar às formações
discursivas da Igreja Católica seiscentista. Marca-se, no discurso enunciado, a
legitimidade da Igreja Católica como paradigma de conhecimento, conduta de vida,
manifestação da fé e vivência cotidiana do enunciador e do co-enunciador.
A cena englobante e a cena genérica constituem um quadro cênico na
enunciação. A formação do quadro cênico determina a cenografia do discurso
enunciado, que garante o dizer mostrado, o estilo, a estrutura dos enunciados emo
surgimento da instância do hiperenunciador. Esta instância assume a responsabilidade
de um SUJEITO-UNIVERSAL que mobiliza o aparelho enunciativo para legitimar o
PDV do enunciador e convencer o co-enunciador a aderir um posicionamento. A
orientação é essencial para a prática social do discurso religioso doutrinário e a
instância do hiperenunciador, que emerge, discursivamente, no decorrer do corpo do
texto de todas as cartas que constituem nossa amostra de pesquisa, é responsável por
validar os enunciados de orientação religiosa e institucional como verdades espirituais,
indiscutíveis e únicas na enunciação.
A seguir, analisamos a epígrafe e o corpo do texto de cada uma das cartas em
análise, sequencialmente, para identificarmos a instância do hiperenunciador. Temos
como objetivo identificar a mobilidade do hiperenunciador por meio dos aspectos que
fundamentam os diferentes pontos de vista expressos pelo enunciador e, ainda,
reconhecer, pelas formações discursivas impressas nas cartas espirituais
selecionadas, marcas da estética barroca e da espiritualidade do século XVII que
reforçam a mobilidade dessa instância.
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3.3.1. A epígrafe
As cartas que constituem a amostra de nossa pesquisa apresentam as
seguintes epígrafes:
O amor de Deos arda, e ferva em nossas almas – Carta I
O Amor de Deos more, e arda em vosso coração – Carta IV
O Amor de Deos more na Alma de V.M. – Carta V
O Amor de Deos arda, e ferva na Alma de V.S. – Carta VI
O Amor de Deos more na Alma de V.S. – Carta VII
O Amor de Deos more na Alma de V.S. – Carta VIII
O Amor de Deos more na Alma de V.M. – Carta XX
A epígrafe tem como função situar o co-enunciador ao lugar institucional do
discurso. Tudo que será enunciado após a epígrafe é conduzido e direcionado por um
sistema de coerções que determina o discurso como pertencente ao campo religioso. A
epígrafe pressupõe efeitos de sentido submetidos a uma espécie de filtro que propõe
um lugar de pertencimento reconhecido pelo co-enunciador.
Por se tratar de um discurso institucionalizado como religioso, há, na epígrafe, a
validação do estatuto do enunciador e do co-enunciador. O enunciador assume o papel
daquele que detém o poder de mediação entre a instância divina, no caso Deos, e o
co-enunciador. Os enunciados de epígrafe buscam mobilizar o aparelho enunciativo
elevando o enunciador ao status de um porta-voz de uma entidade maior, ou seja, de
um SUJEITO-UNIVERSAL divino. O co-enunciador, por sua vez, é projetado na
enunciação como um receptor passivo na mediação, crente e consciente de sua
passividade e dependente da mediação do enunciador. Essa relação, se não for
realizada, implica o comprometimento da prática social do gênero.
O estatuto do enunciador é constituído pelo lugar institucional que ele ocupa.
Como Frei, o enunciador está autorizado na prática social a exercer o papel de
mediador entre Deos e o co-enunciador fiel. O papel assumido pelo enunciador garante
81
legitimidade ao enunciado de epígrafe, que só pode ser outorgado pelo enunciador
autorizado institucionalmente.
As palavras Amor e Deos se repetem em todos os enunciados do Recorte 5. A
expressão Amor de Deos, utilizada como sujeito simples em todos os enunciados,
possibilita-nos compreender que se trata de um sentimento que realiza ação sob
alguém, identificado na enunciação como nossas ou vossos - o qual o enunciador se
inclui na enunciação - e V.S. - da qual se exclui. O fato de incluir-se na enunciação de
epígrafe revela que o enunciador coloca-se em igualdade com o co-enunciador. Ao
excluir-se, o enunciador não se refere ao co-enunciador como um tu, mas utiliza um
pronome de tratamento que acentua sua importância social, ora com V.S., ora com
V.M.
A inversão de um sentimento realizando a ação sob alguém e não alguém
sentindo o Amor de Deos é uma marca do estilo cultista do barroco seiscentista, que
subverte o que é regular na prática social para destacar um posicionamento
determinado. O fato de Amor de Deos ser sujeito da ação nos possibilita refletir que
Deos é quem age pelo fiel, que o fiel é meio pelo qual Deos se manifesta, é parte de
um todo, o que recupera o paradigma teológico da época: o indivíduo é desde o
nascimento predestinado por Deos. O livre-arbítrio consiste em cumprir as missões
pelas quais Deos determinou o indivíduo, e cumpri-las bem em sociedade. O indivíduo
é dependente da graça, do julgamento e do Amor de Deos. Já de início, o enunciador
marca essa necessidade do homem com Deos e não de Deos com o homem.
A locução Amor de Deos compreende o Amor que Deos sente pelas coisas e
pelos seres. Deos, na perspectiva do indivíduo seiscentista, é onisciente e onipresente,
pois tudo passa por sua ciência e julgamento. Deos, para os fiéis, ao abençoar e punir,
não é mal nem parcial, pois realiza todas suas ações sob o sentimento de Amor e
justiça divinas. As punições pelas quais o fiel é submetido são boas para Deos e,
consequentemente, boas em sua essência, mesmo que o fiel não as compreenda
dessa maneira. O ser mundano tem, para os religiosos, uma visão limitada sob o
julgamento e o amor de Deos.
82
Quando o enunciador afirma a necessidade do Amor de Deos como essência
para o co-enunciador, compreende a condição de fé e amor que o fiel religioso deve ter
com o julgamento divino. O enunciador reforça a noção de que os julgamentos e as
bênçãos realizadas pela instituição Igreja Católica devem ser compreendidos para o
julgado em semelhança com o julgamento divino, se tais ações são realizadas sob a
luz do Amor de Deos.
Os verbos arda e ferva nos possibilita a compreensão de que o Amor de Deos,
em sentido metafórico, deve ser a chama que aquece o corpo do enunciador e do co-
enunciador. Tanto arder como ferver nos remete ao sentido de estado de ebulição ou
desconforto que deva ser sanado. O Amor é um estado de desconforto positivo, que
incide na exteriorização de boas ações, de dedicação afetuosa com o outro, de
devoção e compreensão. O Amor é uma forma de ebulição da Alma e,
metaforicamente, do coração. No paradigma teológico seiscentista, a Alma é o que
determina e paga pelas ações do corpo. O corpo é efêmero, a Alma é eterna. A Alma
carrega as chagas e as virtudes das ações cometidas pelo corpo e é pela Alma que o
fiel aproxima-se e devota-se a Deos. Assim, o enunciador compreende que os
trabalhos e funções pelos quais os indivíduos são destinados devem ser realizados sob
a ebulição do amor divino.
3.3.2. Corpo do texto
3.3.2.1. Corpo do texto da Carta I
Recorte 5
83
Irmaã, ou morrer na empresa, ou alcançar a Victoria, ou chegar ao monte da perfeiçaõ,
ou morrer nos suspiros da devoçaõ. Seguir a Christo he o mais alto cume. O seguir a
Christo não consiste em cuidar altas cousas de sua Divindade, senaõ em seguir os
passos de sua vida, e crucifficada Humanidade. Oh quem fizera isto! Imitar, e seguir a
Christo he fazer o que elle fez, exercitar as virtudes, que elle exercitou; convém a
saber: louvar a seu Eterno Pay, dar-lhe toda a Gloria, e honra, e ser esta a tenção de
todas as nossas obras: ter misericórdia do proximo, ou seja maô, ou seja bom; se he
bom, amá-lo, pois Deos o ama, e se he mao, soffrê-lo, pois Deos o sofre.
A cenografia do Recorte 5 é a de uma orientação confessionária. O enunciador
refere-se ao co-enunciador como Irmaã, o que pressupõe relações de intimidade, ao
considerá-la pertencente à sua vida, e institucional, pois todos os fiéis são filhos de
Deos e irmãos de fé e espírito.
O ato de aconselhar pressupõe os papéis dos envolvidos na enunciação. O
enunciador é quem fala de um determinado lugar institucional e assume a autoridade
de mediador entre o divino e o fiel. O co-enunciador é quem pode assumir a adesão ao
ponto de vista dos enunciados do discurso e, ao ser identificado de forma
institucionalizada, buscar legitimar a função do enunciador, pois é quem pede o
aconselhamento e valida o discurso como verdadeiro. Sem essa relação, o discurso
religioso é insustentável.
A relação dos enunciados com a dêixis fundadora, que configura o arcabouço
coercivo do co-enunciador e do enunciador, nos enunciados Irmaã, ou morrer na
empresa, ou alcançar a Victoria, ou chegar ao monte da perfeiçaõ ou morrer nos
suspiros da devoçaõ, marca o lugar institucional no qual o discurso é enunciado e o
respectivo tempo histórico. Os enunciados destacados refletem escolhas do co-
enunciador marcadas por oposições que determinam o que é ideal e o que não é ideal
para o fiel religioso. Ao enunciar ou morrer na empresa, ou alcançar a Victoria, o
enunciador cria uma relação de antítese entre empresa e Victoria, morrer e alcançar.
Empresa pode remeter ao sentido de empregar-se dos ritos e cerimônias
convencionalizados pela instituição, mas que não refletem os passos de Christo, como
84
identificado nos enunciados O seguir a Christo não consiste em cuidar altas cousas de
sua divindade, senaõ em seguir os passos de sua vida, e crucifficada Humanidade.
Também cria oposição entre divindade e humanidade, em sentido metaforizado,
alertando que o trabalho do fiel não é tornar-se divino, mas ser humano tal qual Jesus.
A oposição divindade e humanidade revela características do tempo histórico da
enunciação, durante o qual a Igreja Católica passa por reformas de suas bases
doutrinárias, em virtude, dentre outros motivos, da falta de compromisso missionário
dos religiosos com o trabalho de fé. O enunciador acentua a importância do ofício
religioso em aproximar-se dos passos de Jesus em sua humanidade, para que o
religioso não se confunda divino tal qual Jesus. O enunciador também chama atenção
para a função pré-determinada do religioso em doutrinar social e culturalmente o corpo
místico do Estado, que não tem um representante legítimo e enxerga na Igreja Católica
seu sucessor, mas que o religioso não ostente os luxos da nobreza, e sim sinta-se
munido da responsabilidade do rei do Estado, que é o nomeado divino que organiza o
corpo místico, representado como a cabeça do corpo do Estado.
Outra oposição significativa é morrer e alcançar, pois a morte é enunciada como
o fim de uma vida, ou de um ciclo, e alcançar a Victoria é a concretude desse ciclo,
com resultados positivos e a continuidade do trabalho missionário mesmo depois da
despedida do religioso do mundo terrestre. Para o enunciador, a morte é a pregação
sem frutos, o trabalho missionário sem resultados, o que justifica a antítese empresa e
Victoria. O jogo de conceitos é uma estratégia retórica do conceptismo barroco que
busca levar o co-enunciador à adesão do ponto de vista criado pelo enunciador, pois a
base que edifica o discurso cristão é a vida de Jesus, seu percurso terrestre até sua
divindade, e ignorar os passos de vida de Jesus é ir contra os fundamentos do
Cristianismo. A adesão do co-enunciador a uma resposta, se este é cristão, supõe-se
definitiva e inquestionável à antítese criada pelo enunciador.
Os enunciados Irmaã, ou morrer na empresa, ou alcançar a Victoria, ou chegar
ao monte da perfeiçaõ ou morrer nos suspiros da devoçaõ, são particitados da voz do
enunciador, que utiliza de um Sujeito-universal hiperenunciado para expandir seu ponto
de vista, como identificamos em O seguir a Christo não consiste em cuidar altas cousas
85
de sua divindade, senaõ em seguir os passos de sua vida, e crucifficada Humanidade.
Oh quem fizera isto!. O hiperenunciador legitima os pontos de vista criados no discurso
como verdadeiros e serve de referência para a orientação do enunciador, o que
também ocorre no enunciado louvar o seu Eterno Pay, dar-lhe toda a Gloria, e honra, e
ser esta a tençaõ de todas as nossas obras, em que se tem o posicionamento do
enunciador às antíteses particitadas.
Ao afirmar que as glórias e honras das obras religiosas são do Eterno Pay,
silogismo de Deos, o enunciador pressupõe que o religioso é missionário em função, e
não detém bens materiais, luxos, riquezas ou quaisquer benefícios que sirvam para
desviá-lo de suas obrigações institucionais. Todas e quaisquer honrarias em virtude
dos trabalhos de fé devem ser ofertadas ao Eterno Pay, pois o religioso é mediador de
Deos e do fiel. O pronome nossas inclui o enunciador no papel de servo inutil, de Irmaõ
sem proveito, tal qual o enunciador assina e identifica-se no final da epístola, o que
eleva ainda mais as possibilidades de adesão e doutrinação do ponto de vista do co-
enunciador. Ser inutil e sem proveito, para o enunciador, significa ser apenas meio pelo
qual Deos se manifesta ao fiel. Deos é tudo, a alma e o apego a Deos é o caminho
ideal para a salvação, a ostentação das glórias e a centralização das palavras divinas à
figura humana do religioso é o caminho oposto que morre e fecha o ciclo de
ostentações materiais e não orientam espiritualmente o fiel.
Os enunciados do Recorte 5 servem como ponto de partida para o
aconselhamento ao fiel, pois a temática predominante de apego ao exemplo dos
passos de Christo será retomada nos enunciados seguintes. Não se trata de um
recurso particular do enunciador, mas sim a maneira com que os cultores religiosos da
época organizam seus discursos doutrinários, visando à criação de uma definição, uma
contradefinição e a defesa final de um argumento.
O cuidado estético em iniciar o discurso com enunciados particitados que, ao
criarem a antítese, inferem um argumento de predominância que faz parte de um
cânone, é tomado como um ponto de partida possivelmente aceito na memória
discursiva do co-enunciador que assume uma função na instituição religiosa, como
observamos no enunciado seguir a Christo he o mais alto cume. A contradefinição
86
reforça a definição hiperenunciada e valoriza o argumento presente no discurso
religioso, o que é um recurso recorrente no barroco. As antíteses empresa, Victoria,
monte da perfeiçaõ e suspiros da devoçaõ, referem-se à morte durante o trabalho
missionário, que foi uma característica de Christo. No entanto, Ele transcendeu a
simples morte, o fim do ciclo, deixando na história seus ensinamentos e seu exemplo.
O mesmo podemos observar na sua busca pela perfeição espiritual, que só é
alcançada em sua crucificação e pelos atos praticados, em equilíbrio com a devoção,
ou seja, sua dedicação e veneração a Deos. As antíteses fazem parte do próprio
percurso de vida de Christo, determinando, ao estabelecer oposições, a preferência de
um trabalho coletivo de práticas institucionais e doutrinárias com a sociedade e a
cultura local, e um trabalho mais introspectivo, centrado no engrandecimento espiritual,
ou a reprodução de conceitos católicos na prática missionária exigida pela instituição.
Os enunciados que finalizam o recorte 5, ter misericórdia do proximo, ou seja
maô, ou seja bom; se he bom, amá-lo, pois Deos o ama, e se he mao, soffre-lo, pois
Deos o soffre, serve de ponto de partida para os temas dos enunciados seguintes. O
enunciador propõe que o trabalho missionário deve contemplar todos os tipos de
homens, sejam bons ou maus. O julgamento de bom e mau tem como referencial as
coerções do campo discursivo religioso da Igreja Católica. É, assim, institucional e
arbitrário. A necessidade do trabalho missionário é integrar os homens aos sistemas de
coerções do campo discursivo religioso que determina o funcionamento político e social
de Portugal no século XVII. Novamente, ao retomar Santo Agostinho, lembramos que,
no século XVII, as leis do Estado eram inspiradas pelas leis divinas interpretadas, no
caso dos países católicos, pela instituição Igreja Católica. O trabalho missionário no
século XVII faz-se, então, político, social, cultural, espiritual e religioso.
Recorte 6
Haveis de desejar a salvaçaõ de cada hum, como a vossa mesma. Tanta pena
vos ha de dar vêr que se perde qualquer Alma, como se fôra a vossa propria: se nao
fazeis isto pefeitamente, naõ guardais a Ley de Deos perfeitamente. Vede vós, que
87
poucos a guardaõ! Chorai isto muito. Porque Deos, que tenha piedade dos maos, sem
vos escandalizar de nenhum. Oh doutrina do Ceo, quem te guardára á risca, que logo
fôra Santo!
Nos enunciados Haveis de desejar a salvação de cada hum, como a vossa
mesma. Tanta pena vos ha de dar vêr que se perde qualquer Alma, como se fôra a
vossa propria, há presença de uma instância hiperenunciada que desloca a voz do
enunciador para um sujeito-universal que particita a concepção de vida missionária de
Jesus. Os enunciados do recorte 6 possuem relações de ampliação do tema que
predomina nos enunciados do recorte 5, servindo de argumento para validar a
definição do pregador de vida ativa e menos contemplativa: o fiel deve espelhar-se na
vida e nos passos de Christo para realizar o trabalho missionário dentro do que
pressupõe a Igreja Católica.
O enunciador utiliza de uma instância hiperenunciada para definir a importância
do trabalho missionário, a salvaçaõ de cada hum, bem como a forma com que deve ser
compreendida como a vossa mesma. Pressupor que a salvação do outro deve ser
encarada como a própria salvação do religioso é compreender que os homens
constituem uma unidade mística, como uma espécie de corpo que representa um todo.
Se as partes vão mal, o todo vai mal. Ao observar o papel político que a instituição
Igreja Católica detém no século XVII, e, ainda, os religiosos e seus discursos, cujo
intuito é orientar, dentro de Portugal, as pessoas a se adequarem aos valores éticos,
culturais e sociais, suprir uma ausência de representatividade com a coroa espanhola e
a ausência da cabeça racional do corpo místico do Estado, que é o símbolo de controle
institucional do Estado português, o enunciado se naõ fazeis isto perfeitamente, naõ
guardais a Ley de Deos perfeitamente revela qual o papel institucional e pré-
determinado do religioso no século XVII.
Os enunciados revelam referência ao pensamento medieval da sociedade
organizada por estamentos com papéis pré-definidos por suas funções: se os escravos
são os membros do corpo místico do Estado, o clero passa a assumir a função de
cabeça, orientando os homens para a salvação do espírito. Essa é uma missão divina,
88
como observamos nos enunciados particitados, que se pragmatiza pelo trabalho
missionário institucional da Igreja Católica.
Compreender que o trabalho de doutrina espiritual oferta a salvaçaõ do homem
dos pecados mundanos é uma característica do pensamento seiscentista, que
delimitava forte dualidade entre o carpediem do corpo e o carpediem do espírito,
opondo-se, de certa forma, ao pensamento renascentista. Ainda, por se tratar de um
discurso marcado pelas influências institucionais, a salvaçaõ do não fiel da Igreja
Católica significa mais adeptos à própria instituição que busca renovar-se, passa por
crises de legitimidade e possui forte concorrência com a hegemonia dos protestantes.
Se a salvaçaõ do outro é espiritual, também é religiosa, no sentido de que é uma
salvaçaõ de influência institucional, posto que o discurso particitado institucionaliza os
aconselhamentos enunciados.
Ainda nos enunciados particitados, o enunciador valida seu ponto de vista,
introduzindo o argumento por uma instância hiperenunciada. Muito comum em
discursos religiosos da época, dentre os cultores que mais utilizavam essa estratégia
estava Pe. Antônio Vieira, com seus Sermões, que ao iniciar uma prosa doutrinária, o
primeiro argumento ou era um enunciado diretamente citado do Thesaurus bíblico ou
uma particitação que desloca a voz do enunciador para segundo plano, e quem lhe
toma o lugar é uma instância que tem por fim tornar verdade única o ponto de vista
defendido nos enunciados seguintes. No recorte 6, identifica-se claramente o
deslocamento enunciativo de um hiperenunciador para um enunciador no uso do
aposto se não fazeis isto perfeitamente, naõ guardais a Ley de Deos perfeitamente, em
que o enunciador conclui os enunciados particitados, como se os tivesse explicando ao
co-enunciador, alertando-o de que o não cumprimento deles não é uma negação ao
que o enunciador afirma, mas às Leys de Deos, que tal qual compreende Santo
Agostinho, são base para as Leis Naturais dos homens e as Leis do Estado.
Nos enunciados por que Deos, que tenha piedade dos maos, sem vos
escandalizar de nenhum e Oh doutrina do Ceo, quem te guardára á risca, que logo fôra
Santo!, o enunciador conclui o ponto de vista proposto pelos enunciados particitados,
ao afirmar que o religioso missionário deve ter piedade daqueles que desvirtuam as
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Leys de Deos, pois Deos tem piedade deles. Contudo, a piedade expressa é sem
escândalos, no sentido de comover-se e encobrir passivamente aquelas ações que se
opõem à doutrina. Nas mudanças que ocorreram na organização institucional da Igreja
Católica no século XVII, com o Concílio de Trento, uma das propostas foi o Tribunal do
Santo Ofício, que tinha por finalidade julgar e condenar as práticas dos fiéis e dos
homens dos Estados católicos que se diziam pecaminosos e ameaçavam a salvação
cristã. Muitas obras e muitos artistas que compactuam do pensamento renascentista,
antropocêntrico e cientificista, que se opunham às estruturas culturais da Igreja
Católica, foram julgados e condenados pela inquisição. Assim, ao enunciar que deve-
se ter piedade dos maos, sem vos escandalizar, a missão institucional é garantir a
salvação dos homens, mesmo que para isto os homens tenham que passar pelo
julgamento do corpo, dos achaques da carne para lhe purificar o espírito. O enunciador
atribui a prática à doutrina do Ceo, isentando o julgamento institucional, e que é Santo
aquele que a pratica com esmero. Não é a Igreja Católica quem julga e condena de
forma arbitrária, mas a Igreja Católica seguindo as doutrinas do Ceo, racionalizadas
pela onisciência e onipresença de Deos.
Recorte 7
Melhor he, Irmaã, obrar bem, que conhecer o bem. Por isso a santidade naõ
consiste em muito contemplar, senaõ em muito obrar. Mais val hum dia, em que andais
fazendo obras de charidade, ou de humildade, ou de obediencia, ou de paciencia, que
estar hum mez em contemplaçaõ, extasis, e em raptos. Por que isto he comer a iguaria
sem a merecer, e aquillo é merecê-la, ainda que não a chegueis a comer. Finalmente,
naõ tenho tempo, ainda que a maré he boa. Lembraivos do que aqui vos digo. Entendei
que vo-lo manda dizer o Espirito Santo, e a todos os que o lerem.
O enunciador orienta o co-enunciador sobre o trabalho missionário religioso, e
vale-se dos argumentos contidos e analisados nos recortes V e VI para posicionar-se
acerca de um ponto de vista específico: obrar bem (...) que conhecer o bem.
90
Novamente, há uma antítese presente e criada pelo enunciador, ao enunciar obrar e
conhecer. No recorte 6, o enunciador valoriza o trabalho prático do religioso, sua
atuação missionária e institucional, em detrimento de sua contemplação espiritual e o
estudo dos conhecimentos teológicos contidos nos passos e na vida dos cânones
cristãos. O mesmo acontece no recorte 7.
No enunciado mais val hum dia, em que andais fazendo obras de charidade, ou
de humildade, ou de obediencia, ou de paciencia, que estar hum mez em
contemplaçaõ, extasis, e em raptos, o enunciador deixa claro o ponto de vista
defendido na enunciação, o que no recorte 5, nos enunciados introdutórios ou morrer
na empresa, ou alcançar a victoria, ou chegar ao monte da perfeiçaõ, ou morrer nos
suspiros da devoçaõ, fica implícita sua adesão a um dos pontos de vista criados, já que
ele oferece ao co-enunciador a possibilidade de escolha. No recorte 7, a escolha
independe do co-enunciador, haja vista o uso dos termos melhor he, naõ consiste e
mais val.
O destaque que o enunciador concede às obras de charidade, paciencia,
obediencia e humildade revelam a razão de seu aconselhamento. Ao enunciar o que
mais val e listar trabalhos religiosos que implicam o bom comportamento, na aceitação
do outro, podemos pressupor a prática contrária do co-enunciador no trabalho religioso.
Por tratar-se esta de uma orientação religiosa, tudo que é enunciado como ideal e
necessário para o trabalho missionário é refletido como contrário na prática social do
co-enunciador até o momento da orientação.
A seleção das palavras revelam o tipo de personalidade que um religioso cristão
deve ter em seu trabalho missionário, e o conhecimento da necessidade de ser
caridoso, humilde, paciente e obediente são adquiridos pela contemplação das
doutrinas católicas e pelo estudo da vida e dos atos dos Santos. A contemplação só faz
sentido se refletida na prática do dia-a-dia do religioso. Podemos conceber que o co-
enunciador é mais contemplativo do que participativo no dia-a-dia institucional. Porém,
sua missão, ou função religiosa, consiste em realizar obras e não em contemplar o
espírito em extasis e raptos.
91
No enunciado Mais val hum dia, em que andais fazendo obras de charidade, ou
de humildade, ou de obediencia, ou de paciencia, o repertório semântico das palavras
que configuram o bom obrar do religioso aconselhado carrega inferências tanto do
discurso teológico do Thesaurus bíblico quanto do discurso institucional da Igreja
Católica. A palavra charidade pode ser compreendida como a ação que beneficia o
próximo sem que aquele que realiza a ação almeje quaisquer recompensas ou
retornos. A prática de caridade está relacionada a atos voluntários de bondade, amor
ao próximo, compaixão, assim como ao cumprimento de um dever sem a cobiça da
recompensa. No cristianismo, a caridade refere-se à forma de compreender e pregar as
doutrinas e os ensinamentos divinos com amor. O amor que não é do religioso que
prega, mas de Deos refletido no pregador.
A caridade é o alimento da alma cristã que apaga os pecados do corpo e
estabelece um contato maior do religioso com Deos. Consiste também em reatar a
relação do fiel com o corpo místico divino, uma vez que a caridade pode ser
compreendida, a partir do (1 cor. 6-27), como: se um membro sofre, todos os membros
compartilham seu sofrimento; se um membro é honrado, todos os membros
compartilham sua alegria. Ora vós sois o Corpo de Cristo e sois seus membros, cada
um por sua parte, refletindo que a caridade é uma forma de conceber o trabalho
religioso como um ato de comunhão ao benefício de todos os religiosos. A caridade,
assim, é fim para todas as ações cristãs, levando em consideração que suscita a
reciprocidade e o amor, ampliando o elo entre aquele que realiza a ação com Deos e o
próximo que a recebe. O trabalho missionário só é realizado com amor e caridade se o
religioso compreende os passos de Cristo e a importância teológica e espiritual de suas
ações.
A oração contemplativa é importante para o entendimento do papel que o
missionário deve cumprir institucionalmente, pois eleva o espírito do fiel ao contato de
Deos e oferece condições para o trabalho missionário. Contudo, o enunciador subverte
a condição de caridade, afirmando que ela se dá, principalmente e de forma mais
efetiva, no dia-a-dia institucional da Igreja Católica. Ao enunciar por isso a santidade
92
naõ consiste em muito contemplar, senaõ em muito obrar, o enunciador determina o
valor da contemplação em detrimento do ato de obrar.
A oração, para o enunciador, é segundo plano, posto que o que vem primeiro
são as ações realizadas como atos de fé em semelhança com os Santos e Jesus
Cristo. O jogo de ideias utilizado pelo enunciador é uma característica comum no
conceptismo barroco. Na enunciação, ele eleva a importância do ato em detrimento da
contemplação, mesmo estando em desacordo com o discurso teológico que não
propõe níveis de prioridade entre obrar e orar. No entanto, os enunciados não
subvertem o campo discursivo religioso, mas instaura a polêmica em conformidade
com a dêixis fundadora presentes nos dogmas institucionais. O discurso é enunciado
sob as bases edificatórias das práticas sociais anteriores que servem de arcabouço
para as coerções do enunciador e do co-enunciador.
Na prática social do século XVII, a instituição Igreja Católica necessita de
religiosos que conquistem fiéis. O foco da orientação enunciada é garantir o
funcionamento institucional da Igreja Católica. A humildade significa a ausência do
orgulho, o rebaixamento voluntário, a modéstia e a submissão. No cristianismo, a
humildade consiste no sentimento de que todas as conquistas dos fiéis são conquistas
de Deos. A compreensão do cristão está na revelação das palavras de Deos, ou seja, a
compreensão da verdade e dos caminhos corretos a serem seguidos não é fruto da
inteligência do religioso, mas depende da graça divina. O conceito cristão de humildade
isenta quaisquer arbitrariedades dos discursos religiosos institucionalizados. Tudo que
é dito pressupõe a homologação de uma graça divina superior, que não é a
organização institucional nem o enunciador, sendo eles apenas meio pelo qual se
manifestam as doutrinas cristãs.
Da humildade, pressupõe-se a obediência como princípio de vivência cristã.
Obedecer é o dever de todo cristão que ouve a voz de Deos, sendo a finalidade da vida
o caminho da obediência para o atendimento das missões que lhe são determinadas.
Na cultura cristã, a desobediência de Adão causou a condenação dos homens, e a
obediência de Cristo, a justificação. Aqueles que servem a Deos devem obedecer aos
mandamentos do Senhor e cumprir com suas missões, assumindo os compromissos
93
de alma e corpo. A responsabilidade missionária não é uma obrigação do religioso,
mas uma aliança de amor com seu dever, o que é retomado posteriormente pelo
enunciador, ao observar as falhas do co-enunciador no desenvolvimento dos trabalhos
missionários. A obediência constitui-se das atitudes sinceras no trabalho missionário,
posto que Deos é onipresente, onipotente e onisciente.
A paciência cristã consiste no estado de fé do fiel em conceber que Deos sabe
qual o melhor tempo para tudo, por ser onipresente e amoroso. O conceito cristão para
paciência está ligado ao significado de tolerância, em que o fiel aguenta todas as
dificuldades necessárias e persevera, com a esperança do Céu. Trata-se de uma
síntese da fé cristã em atingir o Reino dos Céus. Na enunciação, quando o enunciador
propõe uma antítese entre as obras de caridade, humildade e obediência e a
contemplação de raptos e êxtases, ele faz uso das características que edificam a
essência do religioso cristão para opor ao ato contemplativo e legitimar seu ponto de
vista. Pressupõe-se que o co-enunciador, se cristão, não tem outra escolha senão
aderir aos posicionamentos do enunciador.
No enunciado Por que isto he comer a iguaria sem a merecer, e aquillo é
merecê-la, ainda que não a chegueis a comer., há um discurso particitado que se
destaca perante os demais, hiperenunciado por uma instância que torna universal os
aconselhamentos do enunciador, a partir de uma ressignificação dos argumentos
anteriormente expostos, ancorando-os em um juízo de valor social, presente na
memória discursiva dos envolvidos da enunciação.
O discurso particitado retoma as antíteses criadas anteriormente pelo
enunciador em obrar e conhecer o bem, legitimando um ponto de vista e um
determinado valor no sentido da antítese. Obrar bem é merecer comer iguarias, sem vir
a comê-las. Conhecer o bem é comer a iguaria sem merecê-la. A comparação
hiperenunciada poder ser compreendida como o ato de louvar e repetir os dogmas e
ensinamentos de Cristo, sem os colocar em prática na vida missionária. O religioso que
adota esta prática, para o enunciador, é aquele que carrega o título e recebe as
honrarias do trabalho missionário e institucional sem realizar suas obrigações da
maneira que deveria. Comer iguarias é ter o reconhecimento material do trabalho
94
missionário, que se opõe ao trabalho de caridade do religioso que, mesmo o
merecendo, não vem a comê-la. Para legitimar o ponto de vista defendido, o
enunciador faz uso do discurso particitado que homologa a enunciação em argumentos
universais, quase que teológicos, mesmo pressupondo um compromisso institucional:
orientar o co-enunciador a realizar as missões que lhe são passadas.
A orientação missionária do recorte 7 é argumento para a advertência que o
enunciador aplica à religiosa orientada. Em resumo, o discurso particitado legitima os
argumentos defendidos pelo enunciador, torna válido seu ponto de vista sobre a vida
missionária e atribui valor ao ato de contemplação doutrinária sem a praticidade
institucional da mensagem contemplada.
O enunciador afirma que a maré he boa para o trabalho missionário, o que
sugere uma referência às condições sócio-históricas da religião católica do século XVII.
Portugal vive sob a fragilidade de não ter um rei que os represente. A coroa espanhola
usa das possessões portuguesas e de suas riquezas para legitimar-se. A instituição
Igreja Católica assume função política e de organização do Estado português, sendo o
referencial de doutrinação moral e ética, no lugar do rei. As leis do Estado devem ser
recuperadas e lembradas pelo trabalho missionário dos religiosos, pelo discurso da boa
moral e dos bons costumes, que se opõem às práticas pecaminosas e aos excessos
renascentistas. A Igreja Católica tem papel fundamental na adequação social do
português seiscentista. Ainda, a maré he boa, pois a instituição passou por uma
Contrarreforma que reestruturou o trabalho missionário, focando-o como uma prática
religiosa que incentivava, dentro e fora de Portugal, uma atuação mais vigilante e
incorporativa dos religiosos com os fiéis, em detrimento das práticas contemplativas
individuais.
Nos enunciados finalmente, naõ tenho tempo e Lembrai-vos do que aqui vos
digo. Entendei que vo-lo manda dizer o Espirito Santo, e a todos os que o lerem, o
enunciador coloca-se em posição de fragilidade perante o co-enunciador, reforçando a
importância deste no trabalho missionário. O enunciador não tem tempo, ou por estar
ao fim de sua vida missionária, ou por ocupar-se de outros trabalhos, cabendo ao co-
enunciador cumprir o papel institucional de sua missão. Afirmar que a maré he boa
95
pressupõe que o cumprimento missionário só depende da vontade e dos esforços do
co-enunciador.
Ao fim do recorte 7, o enunciador chama atenção para que o co-enunciador se
lembre sempre de seus conselhos, pois as palavras enunciadas não são deles, mas
ditas pelo Espírito Santo. O enunciador é porta-voz do divino, o que torna os limites do
discurso religioso e teológico muito tênues para o co-enunciador. Se quem aconselha é
o Espírito Santo a partir do enunciador, as obrigações a serem cumpridas pelo co-
enunciador não são institucionais, mas divinas. O Espírito Santo representa, para a
Igreja Católica, a terceira pessoa da Santíssima Trindade, completada por Deos pai e
Deos filho. Trata-se do Deos onipotente, que foi enviado pelo Deos Triuno, para
santificar e dar vida à Igreja e dividir e tornar prósperas as palavras do Filho Jesus.
Ainda, pode-se compreender o Espírito Santo como o Espírito da verdade, o qual Jesus
promete, durante a Santa Ceia, enviar e que surge como as línguas de fogo dos
discípulos e apóstolos de Cristo durante a Pentecostes, que inicia a Igreja de Jesus na
Terra, e o início dos trabalhos missionários dos discípulos e apóstolos. A relação
Espírito Santo, trabalho missionário e instituição Igreja Católica reforçam os
argumentos do enunciador ao posicionar-se a favor daquele que mais obra do que o
que mais contempla, sendo, para ele, o único caminho possível para a santidade,
transcendendo seus aconselhamentos ao divino, e não apenas ao trabalho
institucional.
3.3.2.2. Corpo do texto da Carta IV
Recorte 8
Vois sois hum pouco de pó, e cinza, huma pouca de terra esteril, e cheya de espinhos,
e hum sacco de podridaõ, hoje que pareceis melhor. E daqui a pouco, esterco, e
mantimento de bichos. E nada tendes de vosso, mais que peccary, e naõ saber
agradecer a Deos os favores, que vos faz. Tudo que em vós sentis do amor de Deos,
saõ obras de seu amor. E Deos o que está fazendo em vós, pode faze rem qualquer
96
creatura, que melhor lho agradecerá. Por seus altissimos juizos mostra que vos quer
bem, e que vos ama a vós, ao mesmo tempo que na redondeza do Mundo deixou
outros muito melhores que vós, e de melhores inclinações. E neste conhecimento
haveis de ir sempre, para que naõ percais a Humildade, que he o alicerce de todas as
virtudes. E quanto mais esta se mette por baixo da terra, conhecendo a sua vileza, e a
sua ingratidaõ, tanto mais sabe crecer, e entra pelo Ceo o amor de Deos, que mora nos
humildes de coraçaõ, mais que em todos. E para saber isto como he, tende sentido
bem no que vos digo.
A carta IV tem como objetivo orientar, espiritual e institucionalmente, um co-
enunciador que almeja iniciar a vida religiosa missionária. O discurso é constituído, já
no início do Recorte 8, pelos enunciados particitados Vos sois um pouco de pó, e cinza,
huma pouca de terra esteril, e cheya de espinhos, e hum sacco de podridaõ, hoje que
pareceis melhor. E daqui a pouco, esterco, e mantimentos de bichos. E nada tende de
vosso, mais que peccar, e naõ saber agradecer a Deos, os favores que vos faz. Os
enunciados marcam o valor da vida do homem e sua representatividade enquanto
sujeito individual, autônomo e antropocêntrico. Refere-se ao corpo do homem e não à
sua alma. Ao constituí-los, o enunciador tem como pressuposto diminuir o valor da vida
mundana do fiel e reforçar a necessidade do co-enunciador em unir-se ao divino
espiritual e institucionalmente. Tomamos os enunciados como particitados, pois
identificamos certa mobilização do aparelho enunciativo, alterando a voz do enunciador
em relação aos enunciados seguintes.
Com o intuito de definir o homem mundano, o enunciador utiliza uma voz
institucional e universal que transcende os lugares ocupados por ele mesmo e pelo co-
enunciador. Os pontos de vista dos enunciados particitados são aceitos por ambos
como incontestáveis, pois são legitimados na enunciação e na prática social como
Thesaurus hiperenunciados por um sujeito universal pertencente ao campo discursivo
religioso. No enunciado Vois sois um pouco de pó, e cinza, o enunciador propõe a
relação entre a existência física do co-enunciador e sua inexistência mundana ao final
de sua vida carnal. Associar a existência humana às palavras pó, cinza, utilizadas pelo
97
enunciador como predicativo que adjetiva uma característica do homem seiscentista,
marcam a efemeridade da vida, a passagem do nascimento à morte.
O enunciador compara, também, a existência do homem com a terra esteril,
cheya de espinhos, e sacco de podridaõ, associando-o como um ser humano que não
gera frutos – estéril – cujos atos está contido o pecado – espinhos, podridão. A
associação é pertinente à época se levarmos em consideração a concepção de vida
mundana e vida espiritual presente no pensamento barroco seiscentista. O homem
encontra-se dividido entre os prazeres do corpo e os prazeres do espírito, entre o
cientificismo e o pensamento renascentista e a cultura medieval, o teocentrismo e as
Leis do Estado em semelhança com as Leis Divinas propostas pela religião. Os
costumes, as práticas sociais, a concepção de vida, são regulados sob a base de tais
coerções conflitantes à época, que geram a antítese do homem barroco. Por estar o
enunciador inserido em um lugar institucional, assumindo o papel de representante da
doutrina cristã, há um posicionamento definido na enunciação em relação ao bem e o
mal. Considera-se pecado quaisquer tipos de práticas que não coadunem com o
proposto pelas doutrinas religiosas.
Nos pensamentos teológicos de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, os
quais consideram o homem meio pelo qual manifesta-se Deos, aquele que não tem
ligação de alma com Deos não cumpre sua missão, usa mal seu livre-arbítrio. O
enunciador recupera tal concepção e afirma que o homem, mesmo sob a missão de
Deos, é dispensável e pecador. Trata-se de um jogo de conceitos e ideais, identificados
no enunciado hoje que pareceis melhor, já que pressupõe-se que o co-enunciador
pretende iniciar a vida missionária e utilizar seu livre-arbítrio de forma adequada à
instituição Igreja Católica. No conceito divino, o co-enunciador também é pecador e é a
humildade, que pressupõe também a obediência institucional do co-enunciador à Igreja
Católica, que o guiará ao caminho divino.
No século XVII, considera-se pecador o homem que realiza quaisquer tipos
de práticas, sejam elas culturais, políticas, econômicas, sociais ou religiosas que não
coadunem com o proposto pelas doutrinas religiosas. É pecado o pensamento e as
práticas de influência renascentistas, os exageros artísticos e intelectuais, assim como
98
a louvação de outras doutrinas religiosas de mesma base teológica. Contudo, o
enunciador pressupõe a antítese do bem e do mal dentro da instituição o qual ele
representa. Inicia o recorte 9 com os pronomes vois, vosso e vos, da 2ª pessoa do
plural, o qual pode estar presente um tu, referente ao co-enunciador, um eles, que se
refere a todos os homens, e um eu, que retoma o próprio enunciador e seu percurso de
vida do nascimento ao tempo da enunciação.
Os registros da vida de Chagas enquanto Soares podem servir para legitimar o
argumento enunciado. Soares foi capitão das boninas, famoso em seu ciclo social,
polêmico devido à sua poética e seus atos pecaminosos, nas coerções da Igreja
Católica. Mas obteve a redenção e tornou-se um fiel exemplar. O ato de assumir o
hábito religioso e tornar-se Chagas pode estar presente na memória discursiva do co-
enunciador e reforçar sua adesão aos enunciados particitados. Ainda, ao enunciar na
2ª pessoa do plural, o discurso passa a orientar o co-enunciador e servir de
autorreflexão para o enunciador.
Os enunciados Vos sois um pouco de pó, e cinza, huma pouca de terra
esteril, e cheya de espinhos, e hum sacco de podridaõ, hoje que pareceis melhor.
podem ser compreendidos como uma orientação e um desabafo, simultaneamente.
Trata-se o enunciador também de um pecador, e, ao enunciar E nada tendes de vosso,
mais que peccar, e não saber agradecer a Deos os favores que vos faz, reforça a ideia
de que o homem, enquanto antropocêntrico, renascentista, centralizador de seus atos,
é um pecador que não sabe agradecer os favores de Deos. Já o homem teocêntrico,
missionário, que cumpre com os deveres de seu lugar social, que compreende sua
condição, também é pecador, mas pareceis melhor, está em vantagem ao outro, pois
permite a ação de Deos em seus atos, relembrando que se o fiel religioso cumpre com
seu dever, é Deos quem age por ele, sendo o fiel meio pelo qual as ações de Deos se
materializam. Ao enunciar e nada tendes de vosso, o enunciador recupera a noção de
corpo místico e afirma a função social do co-enunciador, que é filiar-se às doutrinas
religiosas que são o único caminho para elevar-se espiritualmente.
Nos enunciados posteriores ao particitado, o enunciador amplia os argumentos
analisados, direcionando-os à temática de como o co-enunciador deve compreender e
99
realizar o trabalho missionário. No recorte 8, o enunciador reflete como Deos atua no
fiel e como o fiel deve compreender a ação de Deos em seus atos. Reafirma a
necessidade do co-enunciador em valorizar o trabalho de Deos em suas ações, e não
se vangloriar daquilo que faz parte de uma missão maior, identificado nos enunciados
tudo que em vós sentir do amor de Deos, são obras de seu amor. E Deos o que está
fazendo em vós, pode faze rem qualquer creatura, que melhor lho agradecerá. O
enunciador busca retirar do co-enunciador a concepção de sujeito individual, e lhe
concede a identidade de um sujeito comunitário. Deos, para o enunciador, atende por
todos, pois todos são iguais.
Nas práticas sociais do século XVII, a emancipação do sujeito comunitário em
detrimento do sujeito individual é papel institucional da Igreja Católica e de outras
instituições religiosas, posto que o poder político e de organização social é de
responsabilidade do trabalho destas instituições. Principalmente em Portugal, a ordem
social e o cumprimento das leis são de responsabilidade da Igreja Católica, devido à
falta de referência do povo português com a liderança política espanhola. O enunciador
reforça a necessidade do pensamento de que o fiel deve compreender o trabalho
missionário como uma ação coletiva, ao enunciar Por seus altissimos juizos mostra que
vos quer bem, e que vos ama a vós, ao mesmo tempo que na redondeza do Mundo
deixou outros muito melhores que vós, e de melhores inclinações., já que o co-
enunciador não é único e nem está sozinho no trabalho missionário. Os enunciados
destacados também servem para orientar que o missionário deve possuir humildade
em seu trabalho, acima de tudo. Ao enunciar que há outros muito melhores que vós, e
de melhores inclinações, o enunciador recupera a necessidade de humildade e da
valorização coletiva no trabalho e convívio missionário e orienta o co-enunciador a
sentir-se privilegiado por ser agraciado por Deus, mas não se ostentar disso, e sim
cumprir com seu dever missionário.
O enunciador finaliza o Recorte 8 enaltecendo a necessidade de humildade no
trabalho missionário e chamando atenção para o fato de o religioso ter como alicerce
de todas suas práticas a humildade, o que fará com que ele cresça e entre no Ceo.
Para o enunciador, a humildade, que consiste na valorização do trabalho coletivo e a
100
noção de que o missionário assume uma função institucional que complementa o corpo
místico do Estado, sem privilegiar-se, encarando como parte de Deos, é sinônimo do
amor de Deos compreendido. Ao realizar tal analogia, o enunciador busca esgotar a
possibilidade de contra-argumentação do co-enunciador, já que legitima seu ponto de
vista como universal, a partir de um jogo de conceitos e ideias. Ser humilde tal qual
defende o enunciador pressupõe a realização de quaisquer trabalhos missionários sem
a contestação do co-enunciador à organização institucional. Se é o homem
desvalorizado em sua individualidade, a instituição Igreja Católica é meio pelo qual o
sujeito se coletiviza e se aproxima do Ceo e o confronto institucional é um confronto
divino. Ao enunciar humildade, pressupõe-se também a obediência institucional do
coenunciador à Igreja Católica, ou ao convento no qual atua.
Recorte 9
A Graça de Deos, e o Amor de Deos, he a natureza, e o ser de Deos, que todo he
Amor, assim como nós somos Corpo, e Alma. E daqui vem, que quem vive em graça, e
em amor, vive em Deos, e Deos vive nelle, e Deos he o que obra nelle. E porque como
entaõ a creatura participa da Divina Natureza, assim como a vide, que vive unida á
cepa, della recebe o succo, e o humor, de que vive, e de que dá fructo: assim a
creatura unida com seu Creador, cresce cada vez mais, e dá fructo de boas obras. E
como a Graça, e Amor de Deos, he infino; logo que a creatura tem alguma cousa della,
ferve, e deseja ardentemente sahir de si toda, e chegar-se áquelle infinito Senhor,
como a panella, que tem grande fogo, este sahe em cachões fora da panella, e se
deseja ir, e sahe.
No recorte 9, o enunciador associa a Graça Divina e o Amor de Deos à natureza
e exemplifica, a partir dessa associação, como deve ser compreendida a fé do co-
enunciador com Deos e sua necessidade de torná-la exterior no trabalho missionário.
Nos enunciados A Graça de Deos, e o Amor de Deos, he a natureza, e o ser de
Deos, que todo he Amor, assim como nós somos Corpo e Alma., o enunciador cria um
101
conceito para Graça, Amor, Corpo e Alma, associando-os à natureza. Graça remete ao
dom de Deos que eleva o homem ao estado sobrenatural de santidade, ou o aproxima
desse estado. Também pode pressupõe à ideia de prática do bem, das palavras e dos
atos de Deos por parte do fiel. Amor refere ao sentimento predisposto de desejar o bem
do próximo, com afeto, apego e dedicação. O Amor de Deos pode ser compreendido
como um sentimento de atração, paixão e inclinação pelo divino. O Amor e a Graça de
Deos estão relacionados com o sentimento de adoração, veneração e devoção a Deos,
e quando associados à natureza por comparação, em A Graça de Deos e o Amor de
Deos, he a natureza, identificamos que as condições necessárias para o trabalho
missionário e o enriquecimento espiritual do co-enunciador – a Graça e o Amor de
Deos – são naturais, no sentido de que são regulados por fenômenos universais e
inquestionáveis, inatos e inerentes a si mesmos, que independem da vontade e da
atuação humana.
Trata-se o natural como algo genuíno, puro, o originário e oriundo de todas as
coisas, a antítese de artificial. Por natureza, entende-se como aquilo que é exterior ao
homem, que possui um Sistema de leis e um funcionamento autônomo e que explicam
o mundo como um todo. A natureza possui uma organização, uma lógica indiscutível e
exata, uma essência que, mesmo não conhecida pelo homem, existe e funciona. A
natureza é o berço de nascimento de todos os seres e o estado primitivo do homem,
antes de fazer parte da civilização. Associar a Graça Divina e o Amor de Deos à
natureza é reforçar o pensamento teocêntrico de que tudo está suscetível e
centralizado em Deos. A associação permite, também, uma oposição ao cientificismo
do século XVII, que busca distanciar e dissociar o divino dos fenômenos naturais e
sociais, compreendendo o meio e a sociedade de forma mais racional do que
metafísica. Muitos cientistas do século XVII eram rotulados de pecadores imorais por
negarem, em suas pesquisas, a associação de um fenômeno natural ou de uma lei
institucional com o divino. Destacam-se pensadores como Maquiavel, Descartes,
Spinoza, Leibniz, que polemizaram esta relação entre o natural e o divino, muito
presente na edificação do pensamento teocêntrico.
102
O enunciador associa a Graça e o Amor de Deos à constituição do ser de Deos,
comparando-o aos homens – assim como nós – constituídos por Corpo e Alma. Em
São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, no que se refere à relação Corpo e Alma, o
Corpo é necessário e fundamental para o cumprimento da missão e do papel o qual o
indivíduo está pré-determinado na sociedade estamental e que carrega em sua Alma.
O Corpo é sagrado, pois é ele quem executará as funções preestabelecidas pelo divino
materializado nas instituições Estado e Igreja Católica. O fiel é parte do Corpo do
Estado, sendo o Estado a simetria perfeita do Corpo Místico de Deus. A Igreja Católica
tem a função de estabelecer o elo entre o Corpo do fiel com Deos, e esta ligação só é
possível pela Alma do fiel. A Alma é o que transcende o Corpo e continua após a morte
do fiel. O Corpo é efêmero, morre, vira pó e cinzas; a Alma é o que permanece e será
julgada pelas Leis Divinas no dia do juízo final. A simetria perfeita de Corpo e Alma
para o enunciador, e segundo o paradigma cristão seiscentista, é o cumprimento
missionário do fiel em suas funções institucionais, com a Alma preenchida de Graça e
Amor de Deos. Ao definir Graça e Amor, pressupõe-se uma ação missionária e uma
contemplação espiritual em harmonia. Retomando o recorte 8, compreende-se que a
antítese criada entre o homem antropocêntrico e autônomo e o sujeito comunitário está
implicada nos enunciados que reforçam a necessidade de harmonia entre Corpo e
Alma pela Graça e Amor de Deos, já que se constrói, anteriormente, a concepção de
que o indivíduo é parte de um todo que constitui um corpo unificado.
Como forma de legitimar os posicionamentos contidos nos enunciados
destacados, o enunciador mobiliza o aparelho enunciativo com o enunciado particitado
que quem vive em graça, e em amor, vive em Deos, e Deos vive nelle, e Deos he o que
obra nelle. Compreendê-lo como uma particitação é pertinente, pois o enunciado tem
caráter definitivo do que foi dito anteriormente. Ainda, é posterior ao enunciado E daqui
vem e recorre a uma voz de outro dentro da própria voz enunciada. O hiperenunciador
desta particitação não é identificável pelos envolvidos na enunciação, mas é aceito e
tomado como valor de verdade por contemplar os campos discursivos que constituem
as coerções do discurso religioso do século XVII.
103
A relação expressa entre vive nelle e obra nelle constitui o ponto máximo pelo
qual o enunciador busca a adesão do co-enunciador ao discurso enunciado. Desde o
recorte 8, o enunciador constrói o ponto de vista de que o ser-humano sem a presença
de Deos é pó e cinza. Ainda, quando o ser-humano realiza ações doutrinárias e
missionárias de Deos, ele não é o agente da ação, mas meio pelo qual manifesta-se o
divino. O ser-humano se reafirma, para o enunciador, pó e cinza mesmo no
cumprimento de sua missão religiosa, o que reafirma a necessidade da humildade do
fiel. O enunciado particitado reforça a noção de que o fiel constitui parte do corpo
místico e divino, o que é aceito pelo co-enunciador que almeja iniciar-se no trabalho
missionário e na vida religiosa, posto que o cumprimento missionário como parte
constitutivo do corpo místico divino e do Estado é condição sine qua non para a vida
religiosa do século XVII. O enunciado particitado, recuperando tudo que já foi
argumentado e defendido em enunciados anteriores, reforça o ponto de vista criado
pelo enunciador e busca adesão do co-enunciador para fornecer base para o
desenvolvimento dos enunciados posteriores.
Nos enunciados E porque como entaõ a creatura participa da Divina Natureza,
assim como a vide, que vive unida à cepa, della recebe o succo, e o humor, de que
vive, e de que dá fructo, o enunciador estabelece uma relação de comparação entre
Deos e natureza, com a finalidade de defender o ponto de vista criado de que Deos é
natureza, no sentido de que ele age nos fenômenos internos da Alma para valorizar o
Corpo. Assim como a natureza é responsável pela união de vide, que é o braço ou a
vara da videira, ou se recorrermos à etimologia latina, vitis.is, que significa cordão
umbilical, com a cepa, que é o tronco da videira, se ampliarmos para um efeito de
sentido possível no campo religioso, a parte principal da árvore, o organismo materno,
ou que permite a vida da vide, é responsável pela alimentação vital da videira, assim
como a criatura, segundo o enunciador, é pela Divina Natureza.
O enunciado anteriormente destacado acentua a noção de corpo místico e a
responsabilidade da missão do religioso, a partir de um jogo de ideias que
institucionaliza seu discurso. Ao afirmar que a criatura é responsável pela Divina
Natureza, pressupõe-se que a criatura que estiver unida a Deos está plantada em um
104
solo fértil e dará bons frutos. Por sua vez, aquele que não serve a Deos, está em solo
ruim e prejudicará os frutos. Trata-se de uma institucionalização do discurso, ao passo
que o enunciador propõe uma relação de bem e mal com aquele que está ligado a
Deos e àquele que tem outra postura religiosa ou de espiritualidade, que é identificado
nos enunciados assim a creatura unida com seu Creador, cresce cada vez mais, e dá
fructo de boas obras. O enunciado serve também de alternativa para o destino traçado
no início do recorte 8. O uso das palavras creatura e Creador pressupõe a
institucionalização de seu discurso às coerções cristãs.
Com a finalidade de reforçar a adesão do co-enunciador aos enunciados
analisados, o enunciador utiliza, novamente, um enunciado particitado: e como a Graça
e Amor de Deos, he infinito. Afirmar que a Graça e o Amor são infinitos pressupõe que
Deos é eterno e contrapõe com a efemeridade da vida apresentada no início da Carta
IV, a qual destacamos no Recorte 8. Pressupõe-se afirmar que Deos é superior ao fiel,
mas por ser bom e constitutivo a ele, é o único caminho para livrar a Alma da
efemeridade do Corpo. Reforça, ainda, a condição de Graça e Amor, a bondade e o
trabalho missionário, que para o fiel são finitos mas para Deos não. Reforça, então, a
noção de sujeito coletivo, em detrimento do sujeito individual, sem Deos. A repetição de
Graça e Amor busca reforçar a adesão do co-enunciador e a legitimidade do ponto de
vista criado pelo enunciador.
Nos enunciados seguintes, o enunciador amplia a definição particitada e conclui
os argumentos contidos em todo o recorte 9. Para ele, o Amor e a Graça de Deos é a
essência das ações do missionário. São infinitos não pela vida terrestre, mas pelo que
o fiel missionário semeia e deixa para a posteridade. Para explicar a definição de Graça
e Amor infinitos, compara ambos os sentimentos com a ação da panela sob grande
chama. A conclusão do recorte, bem como a comparação do Corpo com a panela e a
Alma com o fogo, recuperam a noção de que todos os fenômenos são naturais e
devem ser compreendidos, aceitos e inquestionáveis pelo co-enunciador, já que estão
no âmbito da espiritualidade, ao propor a sintonia Corpo e Alma, justificando a
existência de cada um. Também se propõe institucional ao passo que a panela ao fogo
serve para cozer o alimento, assim como o Corpo e a Alma servem para garantir um
105
produto maior ao outro, que é o cumprimento missionário do fiel com Graça e Amor. A
espiritualidade do co-enunciador, o apego à Graça e ao Amor de Deos, servem para a
realização de um bom trabalho missionário e para a compreensão da necessidade
deste e sua prática com Graça e Amor. A comparação entre panela e Corpo, fogo e
Alma traduzem a necessidade do equilíbrio espiritual para o bom trabalho institucional.
3.3.2.3. Corpo do texto da Carta V
Recorte 10
Todas as de V. Reverencia me tem chegado, e todas me parece que tenho lido, e até
hoje li huma, que me escreveo ha hum anno, em que me fallava em N., a quem todos
devemos muito recommender a Deos, para que das presentes quedas naõ pare em
maiores ruinas. E livremos Deos das mesmas, que nos mesmos males podemos cahir,
se Deos nos desamparar. Naõ he possível responder a tudo pelo miudo, nem ainda
pelo grosso: faremos o que pudermos.
O recorte 10 introduz a carta V e a orientação espiritual confessionária realizada
pelo enunciador. Tem a cenografia de uma orientação religiosa confessionária, uma
vez que instituem-se os papéis de cada um dos envolvidos na enunciação, situando-os
a um espaço e uma rotina específicos: trata-se o enunciador de um orientador que se
depara com um co-enunciador que solicita seus aconselhamentos espirituais e
doutrinais.
No recorte 10, há a descrição de como se dá a mediação do orientador com o
orientado. O enunciador relata que recebeu uma carta do co-enunciador e responde a
carta com uma epístola doutrinária, como observa-se nos enunciados: Todas as de V.
Reverencia me tem chegado, e todas me parece que tenho lido, e até hoje li huma, que
me escreveo ha um anno. O enunciador revela-se, ainda, detentor de inúmeras cartas
do co-enunciador, mas não temos condições de precisar se todas foram ou não
106
respondidas. Contudo, é eleita uma, escrita há um ano pelo co-enunciador, como ponto
de partida para a orientação religiosa e elaboração da carta-resposta.
As marcas enunciativas que institucionalizam o discurso como pertencente ao
religioso, contidas na epígrafe e na identificação do enunciador, contribuem para a
construção da cenografia de uma orientação confessionária. Compreende-se que quer
o enunciador responda às cartas do co-enunciador com frequência, quer não, ele
assume um papel de orientador espiritual confessionário, pois tem, para o co-
enunciador, a confiança de receber frequentemente as cartas e ser um ouvinte dos
problemas e anseios pelos quais passam seu orientado. Ambas as situações de
resposta às cartas do co-enunciador são importantes no discurso enunciado, pois
constituem o ponto inicial para o processo enunciativo. A carta V só existe, porque na
prática social ela foi necessária e requisitada, outrora, pelo co-enunciador.
Nos enunciados em que me fallava em N., a quem todos devemos muito
encomendar a Deos, para que das presentes quedas naõ pare em maiores ruinas, é
possível compreender os motivos que levaram o co-enunciador a escrever para o
enunciador e qual o ponto de partida para a orientação espiritual. O co-enunciador
escreve sobre N., que, para o enunciador, deve ser encomendado a Deos. O verbo
encomendar possui efeitos de sentido que possibilitam reflexões no campo discursivo
religioso. O ato de encomendar alguém pode ser compreendido como ordená-lo a uma
determinada função, ou ainda, entregá-lo à proteção de alguém, pois necessita do
cuidado, dos aconselhamentos, do amparo e do auxílio divinos. Aquele que necessita
do auxílio de Deos, tem-no distante em um momento presente, o que revela a condição
de N. no instante da enunciação e necessita ser confiado aos cuidados de Deos.
O ato de encomendar a Deos também pode remeter a ideia do pedido insistente
dos fiéis para que se adéque a determinados padrões ou valores os quais não se
encaixava. O fato de não estar sob proteção de Deos, não tê-lo próximo e refletido em
suas ações, faz de N. alguém que possui problemas doutrinais e espirituais. Todos
necessitam reforçar a ligação com Deos, para que se afastem do pecado, ou da
trajetória inadequada que vêm trilhando. No paradigma teológico seiscentista, o ser-
humano nasce com o pecado original de Adão e Eva e possui o livre-arbítrio para
107
decidir se trilhará o caminho dos pecados ou se se adequará ao que recomenda a
Igreja Católica, como porta-voz institucional de Deos na Terra. O fato de o homem
decidir-se pelo caminho da fé não o faz bom, já que ele ainda vive contido pelo pecado
original. As ações realizadas por ele e que são julgadas boas não são realizações
humanas, mas práticas de Deos mediadas pelo homem. As boas ações são de Deos e
o homem é apenas meio pelo qual ele se manifesta. Ressalta-se aqui a noção de
homem como sujeito coletivo e, portanto, se alguém deve ser encomendado a Deos é
para ter seu livre-arbítrio direcionado ao caminho correto.
No enunciado para que das presentes quedas não pare em maiores ruinas,
identifica-se a confirmação do que representa o ato de encomendar a Deos e depara-
se com o enunciado particitado das presentes quedas naõ pare em maiores ruinas.
Para que o enunciador justifique o argumento contido no enunciado o qual ele
recomenda N. a Deos, com o intuito de que este repense suas ações, o enunciador faz
uso de um enunciado que confirma as indagações do enunciado anterior, mas não é
dito por ele, mas por uma voz hiperenunciada que se sobressai na enunciação.
O enunciador apenas recupera o enunciado para comprovar seu raciocínio e
torná-lo soberano nas coerções do discurso religioso. Todos, o tempo todo, segundo os
paradigmas medievais da Igreja Católica, devem ser encomendados a Deos. Contudo,
o enunciador afirma que se deve muito encomendar N. a Deos, maximizando essa
necessidade que, no enunciado particitado, justifica essa diferença de N. para os
outros. Quer o co-enunciador concorde com o enunciador, quer não, ao se deparar
com o enunciado particitado que coloca em relação de causa e efeito quedas e ruínas,
pressupõe-se que ele não se depara com um julgamento subjetivo e individual, mas
sim objetivo e coletivizado, sob os valores da Igreja Católica e do paradigma teológico
medieval, já que é constituído por uma voz que sobrepõe ambos os enunciados da
enunciação. Não é, ainda, um julgamento que serve somente a N., mas algo já
ritualizado e concebido na prática social: aqueles que se comportam assim entram no
fluxo causal da ruína, por isso, deve-se encomendar quem tem tais comportamentos a
Deos, pois Ele é a salvação do indivíduo que ruma à ruína.
108
Sob o olhar cristão, a palavra queda refere-se ao fato de que todos os homens
estão suscetíveis e caem em tentação à ruína, pois são reféns do corpo pecador. Nas
práticas sociais do século XVII, uma das questões que levam o homem a rever seus
conceitos sociais e muitas vezes assumir o hábito religioso é o medo da ruína eterna, o
temor pelo sofrimento espiritual da Alma. Acredita-se que nem todos estão fadados à
ruína, pois tem a chance de se ligarem a Deos por meio da religião, que é o grande
escapismo da Alma do homem seiscentista, opondo-se aos escapismos do Corpo
influenciados pelo pensamento e cultura renascentistas. A função do missionário
religioso é reforçar essa ligação para que as pessoas não sucumbam à ruína, para que
caiam menos em tentações.
Assim, o enunciado justifica-se particitado, pois homologa o ponto de vista do
enunciador como inquestionável: se é cristão, deve concordar que as quedas do corpo
levam à ruína, e que todos devem se apegar a Deos cada vez mais. Além do
enunciado particitado, há outras garantias de que o co-enunciador está propenso a
aderir ao posicionamento do enunciador, já que solicita o aconselhamento, conhece o
enunciador empiricamente e citou N. em carta originária.
Nos enunciados E livremos Deos das mesmas, que nos mesmos males
podemos cahir, se Deos nos desamparar, o enunciador reflete que, como religiosos
missionários, devem livrar Deos das mesmas, que refere-se anaforicamente tanto a
quedas quanto a ruínas. Tanto uma como outra são tomadas como causa e
consequência e, portanto, possíveis de serem agrupadas. O enunciador aconselha que
não determine as ruínas e as quedas a Deos, no sentido de que se é este onisciente e
onipresente, seria ele culpado pelas falhas do homem. Reafirma o livre-arbítrio de que
o homem tem poder de escolha do seu destino ao enunciar nos mesmos males
podemos cahir, incluindo-se na possibilidade de pecado se não estiver o tempo todo
atento às ações de queda e ruína. O homem cai em ruína se Deos o desampara, por
isso a necessidade de ser novamente encomendado a Ele, como enunciado na
particitação anterior.
No recorte 10 tem-se a conclusão dos argumentos construídos, o que
pressupõe uma estratégia característica dos conceptistas do século XVII. Primeiro, o
109
enunciador oferece uma definição de homem pecador. Em seguida, uma
contradefinição particitada e hiperenunciada das consequências do homem pecador,
para, por fim, construir o argumento que edificará a carta V, de que o homem que sede
à ruína é aquele que não está de acordo com as doutrinas de Deos e, portanto, está
desamparado Deste e deve ser encomendado a Ele, independente de ser religioso
missionário ou não.
Recorte 11
Primeiro que tudo: até agora mortifiquei a V.M., em quanto naõ fizesse o que me
dizia; pois sendo isto nada, a vi taõ pegada a esta ninharia, que era necessario tirar-
lha: agora vejo que V.M. naõ tem nenhum desapego; nem resignação; pois por lhe
dizerem que eu estava enfermo, chorou. Que sentimentos são estes? Quem serve a
Deos não sente nada, louva a Deos em tudo, e por tudo lhe dá graças. Cuidava eu que
tinha feito a V.M. alguma cousa. Cuidava que se lhe chegassem novas que eu era
morto, se alegrasse muito em Deos, e dissesse: Ou este frade era bom, ou mao, ou foi
ao Inferno, ou ao Ceo. Se ao Ceo, naõ ha que sentir. Se ao Inferno, convem conformar
com Deos, e louvá-lo.
No recorte 11, o espaço construído pela cena, no qual o enunciador reflete
acerca da maneira com que o co-enunciador deve compreender a morte, compreende
a espiritualidade seiscentista e características da instituição da qual o enunciador e o
co-enunciador fazem parte. Constituído pela estrutura retórica concepstista de
definição, contradefinição e argumentação, os enunciados buscam legitimar o ponto de
vista enunciado por uma contradefinição particitada.
Nos enunciados até agora mortifiquei a V.M., em quanto naõ fizesse o que me
dizia, e pois sendo isto nada, a vi taõ pegada a esta ninharia, que era necessario tirar-
lha, há a institucionalização da orientação no uso da palavra mortifiquei, que carrega o
sentido do castigo que enfraquece a vitalidade do corpo, o reprime e o atormenta,
devido a uma conduta inadequada do co-enunciador.
110
Os motivos pelo qual houve a mortificação foram baseados no fato de o co-
enunciador não ter cumprido uma promessa feita para o enunciador: em quanto naõ
fizesse o que me dizia. O enunciador estabelece, na cena enunciativa, uma relação de
poder com o co-enunciador que se prolonga na prática social. Este poder pode ser
institucional, de um Frei para seu religioso missionário, ou pessoal, de um amigo que
tem uma promessa não cumprida com outro amigo.
No enunciado seguinte, o enunciador afirma que o co-enunciador apega-se
por uma ninharia, por um nada, o qual deixa para definir e contradefinir no decorrer da
enunciação. O fato de julgar os sentimentos do outro como nada ou ninharia carrega
juízos de valor subjetivos do enunciador, submetidos a um sistema de coerções que o
faz concluir que tal coisa é supérflua. O Recorte 11 oferece uma base de argumento
para o desenvolvimento de toda a orientação, já que as coerções que determinam e
julgam os valores contidos já são postas, quando o enunciador cita, na introdução da
Carta V, as condições de N. e as consequências de seus atos ao estar afastado de
Deos.
O enunciador, ao utilizar nada e ninharia, modaliza o suposto pecado do co-
enunciador, em comparação com os pecados de N., expressos no Recorte 10. São
falhas julgadas pelo enunciador e fáceis de resolver. O fato da ninharia ser revelada no
decorrer da enunciação nos leva a um efeito de sentido de que o enunciador inicia o
aconselhamento do Recorte 10 com a argumentação, antes de defini-lo e contradefini-
lo. O jogo de conceitos provoca o efeito de sentido de uma advertência, levando o co-
enunciador a construir, paulatinamente, o sentido de ninharia e nadas em sua prática
social e intensificando, no co-enunciador, sentimentos como ansiedade e culpa do que
está por vir. A inversão é uma estratégia do cultismo barroco e tem como pressuposto
acentuar as possibilidades de adesão do co-enunciador ao discurso doutrinário.
A institucionalização contida no enunciado que era necessario tirar-lha consiste
no fato de que o enunciador assume o papel de responsável pela doutrinação do co-
enunciador. Ele busca transparecer a sabedoria de como o co-enunciador deve agir e o
que deve sentir, dentro das coerções nas quais ambos se institucionalizam, e o
enunciador responsabiliza-se em adequar o co-enunciador se este não estiver em
111
conformidade com o exigido pela instituição à qual pertencem. Ao enunciar era
necessario, questionamos quem ordenou essa necessidade ao enunciador, se um
outro religioso, que percebera as falhas do co-enunciador, ou se o próprio enunciador,
que tirara as conclusões a partir da observação da conduta do co-enunciador.
Quando o enunciador afirma ser necessário tirar as ninharias do co-enunciador,
ele se coloca no cumprimento de seu papel de orientador missionário, de doutrinador
religioso e até mesmo amigo íntimo do co-enunciador, e este pode atribuir parcialidade
ou não aos atos realizados pelo enunciador. Parcial, se este fez sob os laços de
amizade que ligam um e o outro; imparcial, se fez com o compromisso de cumprir com
uma orientação institucional. Quaisquer que sejam os efeitos de sentido criados pelo
co-enunciador, eles tendem a legitimar a imagem do enunciador como alguém que
deseja o bem do co-enunciador, ou seja, servem de mais um recurso que configure o
discurso como doutrinário de um ponto de vista.
Nos enunciados agora vejo que V.M. naõ tem nenhum desapego, ou resignaçaõ,
pois por lhe dizerem que eu estava enfermo, chorou, há a explicitação dos motivos que
justificam as palavras ninharia e nada. O enunciador, por meio de uma enunciação que
estabelece relação de causa e consequência, afirma que os motivos pelos quais
castiga o co-enunciador são em virtude de sua falta de apego e resignação,
consequência do ato de chorar por saber que o enunciador encontrava-se enfermo.
As palavras desapego e resignação são postas como que equiparadas ao
mesmo sentido. Resignar-se, a partir das coerções já impostas nos enunciados
anteriores, significa o ato de ceder-se voluntariamente, ou em missão, a um cargo, a
alguma atividade ou a outrem. Trata-se de abdicar com conformidade de seu papel
institucional, de sua função missionária como religioso. Para o enunciador, o co-
enunciador encontra-se sem resignação com o trabalho missionário, isto é,
desapegado de suas funções institucionais, o que acarreta o desapego espiritual do fiel
com Deos, refletido no Recorte 11 e retomado no enunciado implicitamente.
O enunciador não adverte o co-enunciador pelo fato deste lamentar a
enfermidade de seu orientador espiritual, mas pelo fato de que o sofrimento pela
enfermidade do enunciador revela que o co-enunciador encontrava-se desapegado das
112
coerções que determinam, na prática social da Igreja Católica e da espiritualidade
cristã, a vida mundana efêmera. A morte para o cristão deve ser compreendida como
uma passagem necessária para a purificação da Alma, para o dia do juízo final. O
lamento do co-enunciador revela sua fraqueza de fé e de compromisso com a
instituição a qual ele representa. A orientação é uma advertência institucional, com a
possibilidade de construção de efeitos de sentido particularizados, como a intimidade
que possuem o co-enunciador e o enunciador, o que justifica a reação do orientado ao
receber a notícia da enfermidade de seu amigo.
A institucionalização do discurso enunciado se dá pelo fato de que o
missionário seiscentista serve a Deos em primeiro lugar, e que o co-enunciador
permitiu que as emoções e os sentimentos do Corpo, como a saudade, o medo, a dó,
dentre outros, prevalecesse sobre os sentimentos da Alma, que são o apego e a
resignação a Deos. Tal sentimento afeta no trabalho missionário do religioso.
Nos enunciados Quem serve a Deos não sente nada, louva a Deos em tudo, e
por tudo lhe dá graças, o enunciador faz uso de um enunciado particitado para legitimar
os pontos de vista dos enunciados anteriores. O enunciado destaca-se da enunciação,
pois consiste em uma reflexão que universaliza um pensamento institucional da Igreja
Católica, espiritual da cultura cristã, e do fiel missionário: Deos serve, louva e dá graças
a todos. Dentro das coerções que determinam a prática social do cristão, todos
legitimam o enunciado em destaque como verdadeiro e inquestionável, já que ele
sintetiza a essência da fé cristã.
Independente das enfermidades do enunciador, na perspectiva teológica
seiscentista, Deos sabe os motivos pelos quais ele passa pela situação em que se
encontra e as consequências desse estado de enfermidade, pois Ele é onipresente e
onisciente, conforme ressaltado no Recorte 11. O enunciado particitado reflete, então,
uma condição fundamental de espiritualidade cristã, que irá influenciar na maneira com
que o co-enunciador observa o funcionamento das instituições e o destino dos homens.
Todos são suscetíveis à ciência, à presença e ao julgamento de Deos. O enunciado
particitado legitima os enunciados anteriores por sua voz hiperenunciada que não é
nem do enunciador nem do co-enunciador, mas de um SUJEITO-UNIVERSAL
113
constituído pela razão e crença de todos os fiéis religiosos. O enunciado, ainda, serve
de contradefinição para o ato de o co-enunciador comover-se com a enfermidade do
enunciador e buscar adesão ao posicionamento do enunciador, devido à pressuposição
de que quaisquer religiosos do século XVII estão predispostos a crer no que define o
enunciado particitado. A maneira como a cenografia é criada, onde o enunciador
realiza um jogo de conceitos e ideais, busca influenciar a adesão do co-enunciador ao
ponto de vista do enunciador, o que legitima o discurso como uma orientação
doutrinária religiosa e espiritual. O enunciador prepara toda a cena enunciativa para
isso, mostrando-se próximo, amigo, conservador dos bons costumes e da fé cristã.
Nos enunciados Cuidava eu que tinha feito a V.M. alguma cousa. Cuidava que
se lhe chegassem novas que eu era morto se alegrasse muito em Deos, o enunciador
completa a contradefinição da ação do co-enunciador – sofrer pela enfermidade de seu
orientador – e amplia a contradefinição do enunciado particitado, reforçando sua
importância universal.
Ao enunciar cuidava eu e cuidava que, o enunciador centraliza-se como
responsável por doutrinar o co-enunciador aos atos corretos, segundo as formações
discursivas que constituem a instituição Igreja Católica. O verbo cuidar pode ser
compreendido no sentido de responsabilizar-se com a proximidade do apego, da
intimidade, da subjetividade de quem se responsabiliza. Cuidar que algo aconteça é
acompanhar com proximidade todos os passos daquilo que foi planejado acontecer e,
ainda, admitir-se responsável por tudo que tenha sido feito.
Compreende-se o sentido de cuidar como a maneira com que o enunciador
supõe ou julga o controle das emoções do co-enunciador e sua compreensão do que é
a morte no paradigma cristão seiscentista: a morte do Corpo é o caminho para a
plenitude da Alma. O fato de o enunciador afirmar que cuidava que o co-enunciador
recebesse a notícia de sua enfermidade e com ela compreendesse o valor da morte
reforça o enunciado particitado, tomado como universal, no sentido de que o
enunciador implica em sua enunciação a afirmação de que cumpre com seus deveres
espirituais e institucionais de apegar-se ao divino acima de tudo, e ao trabalho
missionário deste. A ação de cuidar que tal fato acontecesse foi cumprimento de um
114
dever institucional e um exemplo de que o enunciador tem clareza no que tange à sua
espiritualidade: o apego a Deos acima de tudo.
Nos enunciados Ou este frade era bom, ou mao, ou foi ao Inferno, ou ao Ceo.
Se ao Ceo, naõ ha que sentir. Se ao Inferno, convêm conformar com Deos e louvá-lo.,
o enunciador exemplifica qual deveria ser o julgamento do co-enunciador, segundo os
paradigmas espirituais e institucionais, respectivamente, do cristianismo e do
catolicismo. Ainda, o enunciador, para legitimar os enunciados que exemplificam a
maneira como lidar com a morte, toma como base o tema principal presente no
enunciado particitado por tudo dar graças a Deos.
O enunciador cria uma antítese entre Ceo e Inferno, entre nada sentir e
conformar-se, compreendendo que diante do julgamento divino, o fiel religioso é
passivo, se conforma com o veredicto ou nada sente. Deos é onisciente e onipresente
e o homem tem posição passiva diante dele, o que recupera as características de como
as instituições Igreja Católica e Estado compreendem o próprio ser humano
seiscentista: é necessário que seja teocêntrico, que tenha em sua essência o poder de
Deos como determinante de todas as suas escolhas. A orientação opõe-se à cultura do
antropocentrismo, e, na enunciação, podemos supor que leva em consideração que o
apego à morte do Corpo, a lamentação do fim da vida terrestre, não só é um desapego
à palavra divina, como também uma propensão à valorização da vida.
Os enunciados legitimam o enunciado particitado, pois reforçam a noção de
que o homem perante Deos é inexpressivo e não tem condições de compreender as
razões da onisciência e da onipresença divina. Sem essa capacidade, todos os
julgamentos que elevam a emoção particular do co-enunciador não podem ser tomados
como bons ou corretos. Para o enunciador, o fiel deve se apegar com fé aos
julgamentos e decisões de Deos, sem questioná-los. O enunciado particitado é, então,
legitimado e reforçado nos enunciados seguintes, pois servem de base para construir a
contradefinição do enunciador, com o intuito de convencer o co-enunciador a um novo
entendimento sobre a morte e a necessidade espiritual e institucional deste.
115
3.3.2.4. Corpo do texto da Carta XX
Recorte 12
Dei agora em rebelde, e até contra meus achaques me quero levantar a maiores. Estes
dias andei de corpo similhante ao espírito, que não he pouco mal: porem Nosso Senhor
sempre me trata bem. Se me não curár prégando, estivera morrendo. Porque me cahio
muita agoa na cabeça nos Sermões do Campo, em Braga, e em Barcellos, Ponte de
Lima, e nesta Terra; até que cahi, e tenho por experiencia, que o remedio he ir prégar
em a Igreja, aonde fue, e saya para fóra o mal, que entrou para dentro. Assim o fiz, e
assim melhorei. Mas ainda a cabeça anda como minha: porém tudo he meyo, e motivo
de louvar a Deos, que põem esses despertadores, para que não durma a Alma; antes
véle em sua presença. Seja Deos bendito.
No início do corpo do texto, o enunciador relata um pouco de sua experiência
religiosa e de seu estado de espírito. A cenografia presente nos enunciados do primeiro
recorte é a de uma orientação confessionária acerca da rotina missionária do
enunciador, refletindo como ela faz bem à fé e ao espírito, mas excesso de trabalho lhe
é prejudicial ao Corpo, uma vez que o enunciador revela-se enfermo.
O fato de utilizar o Corpo em seu limite para o trabalho espiritual o enunciador
revela para o co-enunciador que executa as missões que lhe são desempenhadas,
institucional e espiritualmente, de forma exemplar. Também revela as influências do
paradigma teológico da época, que pressupunha a sociedade como um corpo místico
em que cada membro desempenha uma função social e divinamente preestabelecida.
O enunciador desempenha essa função transcendendo os limites do corpo.
O enunciador, como já identificado anteriormente, ocupa o papel de frei
missionário em um lugar institucionalizado, a Igreja Católica do século XVII. Nos
enunciados Estes dias andei de corpo similhante ao espírito e porem Nosso Senhor
sempre me trata bem além de reflexões acerca de sua enfermidade, marca-se de um
posicionamento teológico do enunciador acerca da compreensão de Deos, o mundo e
116
a fé. Como vimos no capítulo I dessa pesquisa, o paradigma teológico do século XVII
baseava-se, entre outras coisas, nos pensamentos de Santo Agostinho. Para
Agostinho, o homem deveria viver sob a missão de atingir a iluminação divina. Esta só
era possível a partir da investigação do inconsciente da alma humana e de sua
comunicação com Deos. Os pecados do corpo, as práticas pecaminosas do cotidiano,
eram fruto do pecado original. Assim, quando o enunciador afirma que o corpo andou
em semelhanças com o espírito, compreendemos que o discurso de Santo Agostinho é
uma das formações discursivas que constituem o discurso enunciado, já que não há
um equilíbrio entre corpo e espírito, mas a sobreposição do espírito ao corpo, a
valorização da Alma e a desvalorização do Corpo. O enunciador mostra-se mais
próximo da cidade de Deos e mais distante do mundo pecaminoso presente na cidade
dos homens.
No enunciado porem Nosso Senhor sempre me trata bem, com uso da
conjunção adversativa porem, o enunciador concede a Deos todas as virtudes de sua
conquista. Não foi o enunciador sozinho quem atingiu o estado de iluminação espiritual,
mas sim o fez sob a luz e a boa vontade de Deos. É a Deos atribuída a glória do
sucesso espiritual do enunciador.
É importante considerar que os enunciados analisados encontram-se no início
do corpo do texto e parecem não estabelecer uma unidade semântica com os demais
recortes. Contudo, tal impressão é desprezada ao observar que o papel exercido pelo
enunciador no discurso é o de um frei-missionário e orientador espiritual. O fato de o
enunciador encontrar-se espiritualmente equilibrado, tendo o corpo tal qual o espírito e
não o espírito tal qual o corpo, legitima sua função social no discurso. O enunciador
constrói um espaço de autoridade discursiva no recorte 12.
No enunciado e tenho por experiencia, que o remedio he ir pregar em a Igreja,
aonde fue, e saya fóra o mal, que entrou para dentro, a instituição Igreja é o caminho
apontado pelo enunciador para a purificação do espírito. O discurso possui, assim, um
lugar institucional claro e, consequentemente, é mais uma das formações discursivas
que influenciam os enunciados.
117
Em seguida, no enunciado mas ainda a cabeça anda como minha, mesmo o
enunciador encontrando-se com o corpo semelhante ao espírito, ainda possui as
influências da vida mundana, já que seu trabalho espiritual não está completo. Ao
enunciar que ainda tem muito a percorrer e crescer em sua vida espiritual, valida-se
enquanto frei-missionário e orientador espiritual, mas ainda humano, à semelhança de
seu orientado, suscetível ao pecado do corpo. Afirma, ainda, que é o apego e louvação
a Deos que garantem esses despertadores para que a Alma não sucumba ao corpo.
O acesso a Deos dá-se por meio da Igreja, o que revela uma postura
institucional do enunciador, já que no século XVII existia de um lado a Igreja Católica
com a Contrarreforma, propondo a ligação do fiel e do Estado às estruturas
institucionais, e, do outro, os movimentos protestantes que questionavam o papel da
Igreja Católica, dentre outros motivos, pela falta de legitimidade desta enquanto
representante da cidade de Deos e as excessivas intervenções político-econômico-
culturais. O enunciador revela claramente sua filiação institucional e mostra-se, no
recorte 12, como um missionário católico e orientador espiritual.
No recorte 12, a composição dos enunciados é atravessada pelo campo
discursivo do Barroco português. Nos enunciados dei agora em rebelde, até contra
meus achaques me quero levantar a maiores. e porém Nosso Senhor sempre me trata
bem, temos uma construção enunciativa marcada pela definição de um estado do
corpo – o enunciador encontra-se debilitado, doente – e uma contradição que
pressupõe, no primeiro enunciado, o fato do enunciador ir contra seus achaques e
pregar, e, no segundo enunciado, ser essa uma exigência divina, pois se não está
pregando, acaba morrendo.
A definição primeira de encontrar-se debilitado seguido da contradefinição de
que o corpo doente não afeta a paz de espírito e o trabalho missionário do enunciador
propõe uma relação de antítese, ou desequilíbrio, entre Corpo e Alma, e ainda, o
resultado de um ponto de vista final, defendido pelo enunciador e compactuado na
enunciação, de que o trabalho de fé fortalece o espírito e com o fortalecimento tem-se
a cura dos achaques do Corpo. A fé deve ser trabalhada sob a luz, vigília e contato do
fiel com Deos e a instituição Igreja Católica. Corpo e Alma compreendidos como uma
118
relação de antítese é uma das características do Barroco português, assim como o
recurso retórico de definição e contradefinição, que serve para validar um ponto de
vista específico e conflituoso na prática social.
Recorte 13
Vamos responder. Não quero já que V.M. se ponha taõ ruins titulos, nem que saya taõ
cedo por fóra o que está solpado dentro. Tudo tem seu tempo, sua maré virá, e com
ella a viraçaõ do Ceo. Já escrevi a V.M., que Trás dos Montes não he possivel ir.
Porque em cada terra ha muito que fazer. Deixaremos a Provincia para esta segunda
jornada, se Deos dér por isso vida.
No recorte 13, o enunciador inicia o aconselhamento ao co-enunciador. Revela
que se trata de uma carta-resposta, ao utilizar o enunciado Vamos a responder. O
enunciado possibilita a criação da cenografia de uma orientação confessionária, prática
comum no século XVII.
Os enunciados a seguir, inseridos no campo discursivo religioso, carregam uma
visão institucional do discurso teológico bíblico e tem a finalidade de doutrinar o
posicionamento do co-enunciador, adequando-o às regras institucionais da Igreja
Católica. Os enunciados revelam a rotina de seleção de religiosos para participar de
missões, e a negação ou aceitação do pedido, realizado pelos fiéis, que sentem
vontade de atuar em lugares distintos daqueles em que vêm atuando.
O fato de ser uma carta-resposta possibilita identificar que o co-enunciador e o
enunciador possuem um contato anterior, em que o co-enunciador solicita
aconselhamento ao enunciador. Também nos possibilita identificar que o co-enunciador
e o enunciador possuem uma identidade consolidada anterior à enunciação, que é
legitimada no decorrer do discurso enunciado. Os papéis, os lugares, a função
institucional de um e de outro já são constituídos antes do ato enunciativo acontecer. O
simples recebimento da carta, com a identificação de seu enunciador, atribui papéis e
valores à enunciação e aos pontos de vista construídos no discurso.
119
Nos enunciados Não quero que V.M. se ponha taõ ruins titulos, nem que saya
taõ cedo por fóra o que está solpado dentro. Tudo tem seu tempo, sua maré virá, e
com ella a viraçaõ do Ceo., o enunciador responde negativamente a um pedido de seu
co-enunciador, construindo justificativas para que a negação seja aderida pelo co-
enunciador.
Ao enunciar a negação institucional, o enunciador vale-se dos argumentos
construídos anteriormente, no recorte 11, de que o apego institucional e a paciência
são a única maneira de se aproximar de Deos e salvar o espírito, para buscar a adesão
do co-enunciador e coloca as decisões institucionais em semelhança com as decisões
divinas. No recorte 12, referente à introdução da Carta XX, o enunciador constrói um
conceito de que a ligação da Alma com os trabalhos institucionais do Corpo, levam o
fiel a uma ligação maior com Deos. Esse pressuposto será recuperado
semanticamente durante toda a carta, sendo o fio condutor coercivo para as temáticas
desenvolvidas.
O jogo de ideias e conceitos contidos no recorte 12 é recuperado no recorte 13
nos enunciados Tudo tem seu tempo, sua maré virá, e com ella a viração do Ceo e
Deixaremos a Provincia para esta segunda jornada, se Deos dér por isso vida,
recuperando a noção de que Deos é soberano nas escolhas do destino do fiel, e que o
fato de não ser destinado a outras missões é um despertador divino de que o momento
ainda não chegou. Este tipo de enunciado é muito utilizado pelos cultistas barrocos. O
enunciador vale-se da afirmativa de que com o apego a Deos, ou ao divino, tem-se
inclusive, a cura dos achaques do Corpo, e de que até mesmo ele não está preparado
para todos os trabalhos que pretende realizar, para conformar o co-enunciador de sua
necessidade de obediência e o cumprimento do papel a ela atribuído pela Igreja
Católica.
O fato de o co-enunciador ser impedido, institucionalmente, de ir para Trás dos
Montes é justificado como um alerta divino de que se algo não aconteceu, é porque
ainda não era o momento do fiel. No enunciado Tudo tem seu tempo, sua maré virá, e
com ella a viração do Ceo, o enunciador utiliza um discurso particitado de sua
enunciação. Nesse momento, há um deslocamento de voz enunciativa do enunciador
120
para um hiperenunciador divino que valida os argumentos anteriormente enunciados e
reforça a necessidade de adesão do fiel com a palavra e a vontade de Deos
hiperenunciado.
A voz divina hiperenunciada invalida qualquer opinião contrária do co-
enunciador e atribui uma única possibilidade coerciva para o entendimento enunciativo
e, consequentemente, para a prática social. O enunciado mobiliza o aparelho
enunciativo atribuindo valor de verdade universal àquilo que é enunciado
posteriormente. O enunciado, se destacado dos demais enunciados da Carta XX,
possui autonomia de sentido, como se fosse, de fato, uma citação divina
hiperenunciada. O sentido contido no enunciado compactua um valor comum no
paradigma cristão e na fé religiosa, de que a paciência e a calma são virtudes para um
bom religioso, que aguarda o momento certo chegar. Há, inclusive, um deslocamento
enunciativo que força o co-enunciador a perceber a ênfase que o enunciador busca dar
a seu discurso particitado.
O sentido contido no enunciado particitado serve de base coerciva para a
construção dos demais enunciados, que não refletem uma generalidade, mas uma
rotina institucional. O enunciado particitado é abstrato em seu aconselhamento, pois
serve para quaisquer práticas sociais. O enunciador adéqua o conceito à sua realidade,
como se retirasse o enunciado particitado de um conjunto de Thesaurus Bíblicos, ou
sagrados, e realizasse a mediação interpretativa para o co-enunciador, facilitando-lhe a
compreensão, justificando o posicionamento institucional da Igreja Católica e
reforçando a busca pela adesão do co-enunciador ao ponto de vista dos enunciados.
Recorte 14
Em todas as tentações tenho experiência, que não ha melhor defensivo, que a
memoria, e presença de Deos; examinando nella, e olhando para a Alma, se repartio,
121
ou diminuio o Amor de Deos; esforçando nessa presença o proposto de não o offender.
E tudo isto com huma suavidade pacífica, sem tumultos, nem violencias dos sentidos,
nem grande eficacia de palavras: que a força quebra a cabeça, e não desaffoga a
Alma, até ter perfeita saúde. Faça V.M. quanto puder por ella, e louve o Nosso Senhor,
que lhe quer mostrar, que até nas cousas do corpo he bem obedecer. Seja Deos
louvado pelos repiques: que em dia das memorias da morte, melhor parecem outros
signaes. Quererá Nosso Senhor, que tudo seja para sua gloria, e honra: que não será
pequena, que os vivos se pareção com os mortos; pois he certo, que os estrondos das
maiores estatuas párao em cinzas. V.M. obedeça aos medicos, como aos Prelados,
que S. Francisco Xavier assim o fazia. E em quanto tiver impedimento na vista, ou nos
olhos doi, não me escreva muito, senão o menos que puder ser. A voz, com que V.M.
ha de servir a Deos, he quando for ao Côro rezar mais alto que puder; como não seja
modo extraordinario, que possa perturbar: que S. Vicente Ferrer assim o aconselha,
que levantemos a voz ao louvor de Deos, ou quando se canta, ou quando se reza.
Nos enunciados Em todas as tentações tenho experiência que não ha melhor
defensivo, que a memoria, e presença de Deos o enunciador apresenta-se como um
religioso que também sofre com as tentações do mundo, mas tem Deos em presença,
o que o conforta e o fortalece para não sucumbir às tentações do Corpo. Alerta, ainda,
que o apego à memória pode repartir ou diminuir o Amor de Deos, refletindo que, ao
longo da vida, sucumbimos às tentações diminuindo a presença de Deos em nossa
Alma, mas que tal reflexão não deve ser realizada com pesares, pois é típico do
percurso do homem cair em tentação e o importante é estar com Deos no tempo
presente.
A reflexão revela o conflito presente no pensamento barroco, também
encontrado em poemas de Gregório de Matos, que refletem o comportamento humano
diante dos julgamentos de certo e errado pressupostos pela instituição Igreja Católica,
que denuncia quaisquer práticas mundanas como o pecado da carne que sucumbe o
espírito e afasta o fiel de Deos. O pecado, no século XVII, não se resumia apenas no
122
desrespeito de dogmas da fé, mas infringir também as leis que regiam a sociedade.
Cair em tentações da carne, como expressa o enunciador, era corromper o elo entre o
espírito do fiel e Deos, desrespeitar as leis divinas e as leis naturais, sucumbir o livre-
arbítrio e ir contra o papel social predestinado que cada um possuía na sociedade. Cair
em tentação significava corromper-se, e corromper-se era a mesma coisa que
corromper parte do corpo místico do Estado.
O enunciador busca, com isso, fortalecer o sentimento de fé do co-enunciador,
que se encontra fragilizado. Ainda, não são as palavras, nem a violência de sentidos,
ou seja, as revelações, que irão acalmar o espírito do co-enunciador, mas a suavidade
pacífica de sua ligação com o divino. O enunciador tem o intuito de adequar o co-
enunciador às suas funções institucionais e equilibrá-lo no trabalho de fé. As
revelações lidam com o subjetivo humano e podem ser expressas por quaisquer dos
cinco sentidos, a partir da percepção que o revelado tem de seu cotidiano e de sua fé.
Orientar revelações de alma, epifanias divinas, é um trabalho que não cabe ao
enunciador e está além de suas funções no discurso. O papel por ele assumido é de
um orientador institucional e espiritual. Compreende ser um mediador entre o fiel, a
instituição e a espiritualidade.
O enunciador mostra-se ao co-enunciador como crente de que o espírito e o
corpo apegados à fé e aos trabalhos missionários institucionalizados preparam-nos
para a compreensão das revelações divinas, que só surgem quando Deos acha por
bem que elas devem surgir. Ao recuperar Santo Agostinho, observa-se que, para a
sociedade medieval, o destino do homem já era predefinido antes de seu nascimento,
no plano divino, e que o livre-arbítrio era a compreensão do papel que ele deveria
exercer, e o bom desempenho deste, para preparar-se para o dia do juízo final. Cabia
ao religioso o papel de orientador dos dogmas, e também era responsável por alertar
os fiéis e todas as camadas sociais no cumprimento de suas funções na sociedade e
no respeito às morais divinas. Tanto o enunciador quanto o co-enunciador possuem
este papel e esta função, que devem ser realizados independente de quaisquer
revelações divinas, pois a fé religiosa não precisa ser comprovada fisicamente, mas
sentida pelos fiéis no plano metafísico, pela crença de sua realidade.
123
Com o intuito de reforçar esse posicionamento e buscar a adesão do co-
enunciador, há novamente um deslocamento do aparelho enunciativo para uma voz
que transcende a voz do enunciador, no enunciado particitado que a força quebra a
cabeça, e não desaffoga a Alma, até ter perfeita saúde. Nesta particitação, o
enunciador chama atenção para o fato de que o corpo deve servir ao trabalho de fé e
estar saudável para isso, e que a força não desafoga a Alma, não ajuda no
engrandecimento do espírito. O discurso particitado eleva a orientação realizada pelo
enunciador a um status que transcende o plano puramente institucional. O enunciador
assume a função de mediador espiritual, orientando o co-enunciador a cuidar do
espírito e do corpo com paz e paciência. Na filosofia teológica de Agostinho e Aquino, o
corpo é canal para o engrandecimento do espírito, ou seja, não serve a si mesmo e
nem o espírito serve a ele, mas é o corpo que deve manter-se bem para engrandecer o
espírito e a ligação deste com o divino. É somente pelo apego ao divino, e a Deos, que
se tem a redenção dos pecados, que se está livre do status de pecador. O enunciador
reforça essa reflexão ao colocar-se como exemplo, sendo conhecedor das tentações,
mas controlado por ter a presença do Amor de Deos em sua memória.
No enunciado particitado, há a validação do ponto de vista do enunciador de que
as revelações não são os principais objetivos do trabalho de fé. Ao enunciar que a
força quebra a cabeça e não desaffoga a Alma, o enunciador orienta o co-enunciador
quanto à busca incessante de revelações e respostas para os achaques do corpo, pois
esta leva à loucura e não ao que é esperado pelo trabalho de fé, que é acalmar a Alma.
A particitação é imprescindível para validar toda a orientação do enunciador,
uma vez que o co-enunciador encontra-se com a saúde comprometida, como podemos
identificar nos enunciados V.M. obedeça aos Medicos, como aos prelados e Em quanto
tiver impedimento na vista, ou nos olhos dôr, o que, ao ser elevado com uma voz
hiperenunciada, busca forçar a adesão do co-enunciador e transcender aquele
aconselhamento ao plano universal, mas de uma globalidade. O jogo de ideias e
conceitos, típico dos conceptistas barrocos, faz uso de um enunciado particitado que
traz a voz e imagem de um hiperenunciador, para legitimar todas as analogias criadas
no discurso: a relação corpo e alma, instituição e espiritualidade, missão e fé.
124
Outro enunciado particitado presente no Recorte 14 é que em dia das memorias
da morte, melhor parecem outros signaes. O enunciador reforça a ideia primeira,
presente no recorte 13, de valorização da Alma e desvalorização do Corpo. Ao
enunciar que a lembrança da morte, sua reflexão e sua aproximação revelam sinais, o
enunciador faz referência à liberdade da Alma do corpo, sendo esta a fonte dos
pecados. A morte, para a sociedade medieval, simboliza o momento do juízo final e o
fim das possibilidades de pecado. É o momento de redenção com o divino, e
compreendê-la dessa forma fortalece o espírito e as convicções do co-enunciador.
A relação do enunciado particitado com as experiências do enunciador relatadas
no recorte 13 e os enunciados a seguir reforçam o jogo de conceitos que tem, por
finalidade, buscar maior adesão do co-enunciador ao posicionamento contido no
discurso. Ainda, ao se tratar de um co-enunciador identificado na enunciação como
detentor de uma saúde debilitada, o aconselhamento de que o corpo é meio pelo qual
se manifesta o espírito e este se apega ao divino é reconfortante.
O co-enunciador, por ser identificado Madre, parte das mesmas coerções que o
enunciador com relação à crença no plano divino. A ideia de que o corpo é passagem e
há uma Cidade de Deos que aguarda o fiel após a morte do corpo é reconfortante para
o co-enunciador suportar os achaques e as doenças que lhe acometem o corpo e
manter-se equilibrado espiritual e institucionalmente em seu trabalho missionário.
Ainda, nos enunciados A voz, com que V.M. ha de servir a Deos, he quando for ao
Côro rezar mais alto que puder são aconselhamentos que tem por finalidade abrandar
o trabalho institucional do co-enunciador e reforçar sua ligação com Deos, sua
espiritualidade, utilizando as resistências que ainda existem no corpo para a ligação
com o divino. Os enunciados destacados também estabelecem um jogo de conceitos
com o enunciado particitado e o recorte 13, que, como afirmamos anteriormente,
oferece base para a construção de todos os pontos de vista expostos no discurso Carta
XX.
125
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por nossa pesquisa fundamentar-se nos estudos enunciativo-discursivos da
linguagem, examinamos o funcionamento social das cartas espirituais em análise,
tomando-as como atividade humana institucionalizada do discurso religioso. As cartas
espirituais são gêneros que tem como pressuposto orientar e doutrinar o
posicionamento de fiéis e religiosos aos paradigmas da Igreja Católica e da
espiritualidade cristã seiscentistas. O enunciador, inserido em um lugar social, interage
enunciativamente com um co-enunciador que também possui especificidades
socioculturais, com a finalidade de convencê-lo de que a orientação epistolar detém
direcionamentos que solucionam as inquietações da vida cotidiana do homem
seiscentista.
Tanto o enunciador como o co-enunciador são instâncias que influenciam e são
influenciadas pela instituição a qual representam. O gênero carta institui um padrão de
orientação epistolar que, além de cumprir com o dever missionário de um frei ao
orientar seus fiéis, pode substituir, na prática social, a orientação confessionária
pessoal. O enunciador, distante de seu orientado, através da epístola mostra-se
próximo, íntimo e amigo de um co-enunciador que pede por suas orientações,
necessita de suas palavras para resolver tanto questões do espírito quanto incômodos
sociais e pessoais. Exercendo o papel social que lhe é instituído, o enunciador é
missionário na busca de adesão do ponto de vista de seu orientado e acredita que o
papel que desempenha é fundamental na condução do homem ao progresso espiritual
e social. O enunciador assume, na enunciação, a função racional da cabeça do co-
enunciador, desempenhando o papel do clero no Estado português seiscentista, que é
substituir a racionalidade de um Rei ausente na dinastia filipina e doutrinar a sociedade
seiscentista, direcionando o que é certo e o que é errado, segundo as formações
discursivas da instituição Igreja Católica e da espiritualidade cristã.
Os enunciados constituídos revelam posicionamentos e formações discursivas
que nos permitem a consolidação de um espaço discursivo que determina o que pode
126
e o que não pode ser dito. Ao examinar as condições sócio-histórico-culturais de
produção dos enunciados analisados, identificamos que tanto o enunciador quanto o
co-enunciador se deparam com a polêmica do sacroprofano, das reformas religiosas,
da valorização do cientificismo e da decadência da espiritualidade, e buscam
posicionar-se de forma a não estabelecer um equilíbrio entre um posicionamento e
outro, mas institucionalizar-se e defender uma verdade absoluta. Assim, o enunciador
mostra-se adepto a um posicionamento de forma a invalidar todos os demais, utilizando
da retórica gongórica do cultismo e do conceptismo, também frequentes na arte
Barroca, para convencer o co-enunciador, que possui sensação de fragilidade de sua
fé e de sua devoção institucional frente às antíteses do mundo seiscentista, quanto a
qual posicionamento deve aderir.
Nesse sentido, o hiperenunciador assume função dentro do discurso encenado
como aquele que legitima e garante os enunciados do enunciador, assim como o ponto
de vista expresso no discurso epistolar. Diante de inúmeros pontos de vista possíveis
que marcam temas do século XVII, o hiperenunciador auxilia na adesão do co-
enunciador a um ponto de vista ideal, uma vez que tanto o enunciador quanto o co-
enunciador integram uma comunidade que reconhece os enunciados particitados que
emanam da autoridade de um SUJEITO-UNIVERSAL hiperenunciado. O uso de uma
instância hiperenunciada, na amostra selecionada, é uma estratégia enunciativa do
enunciador, que tem como finalidade valorizar a instituição a qual representa e a
mensagem espiritual a qual permite transmitir. A utilização de tal instância pauta-se em
um jogo de ideias, conceitos e palavras, que inserem o discurso como estético do
Barroco português, da mesma forma que autores institucionalizados do discurso
religioso como cultores da Literatura Barroca, dos quais destacamos Padre Antonio
Vieira, Padre Manuel Bernardes, dentre outros.
Portanto, notamos que Chagas é tomado como grande cultor da palavra cristã e
um estudioso humilde dos cânones religiosos. Sua estratégia era fortalecer os laços
dos fiéis com a instituição Igreja Católica e a espiritualidade cristã, como que tornando-
se íntimo e amigo de cada orientado, o que influenciava na busca pela adesão do
ponto de vista do outro, a seu discurso. Tal prática reflete na enunciação das cartas
127
espirituais selecionadas, ao passo que notamos confissões que, se tomadas no
universo institucional o qual ambos os envolvidos da enunciação vivenciam,
implicariam severas punições, levando em consideração o ambiente rígido e tradicional
que era o universo formal dos conventos e seminários. O fato de o enunciador mostrar-
se cúmplice e caridoso ao co-enunciador fortalece a adesão deste ao discurso
enunciado, somando isso ainda às demais estratégias que encenam cartas espirituais
como discurso de doutrina espiritual e institucional.
128
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língua portuguesa, publicado pelo Coord. Dr. Ataliba de Castilho.
http://pt.scribd.com/doc/51314989/Analisando-o-discurso-helena-brandao-UERN - dia
06.05.13
131
ANEXOS
CARTA I
O Amor de Deos arda, e ferva em nossas almas
Irmaã, ou morrer na empresa, ou alcançar a Victoria, ou chegar ao monte da
perfeiçaõ, ou morrer nos suspiros da devoçaõ. Seguir a Christo he o mais alto cume. O
seguir a Christo naõ consiste em cuidar altas cousas de sua Divindade, senaõ em
seguir os passos de sua vida, e crucificada Humanidade. Oh quem fizera isto! Imitar, e
seguir a Christo he fazer o que elle fez, exercitar as virtudes, que elle exercitou;
convem a saber: louvar a seu Eterno Pay, dar-lhe toda a Gloria, e honra, e ser esta a
tençaõ de todas as nossas obras: ter misericordia do proximo, ou seja máo, ou seja
bom; se he bom, amá-lo, pois Deos o ama; e se he máo, soffrê-lo, pois Deos o sofre.
Haveis de desejar a salvaçaõ de cada hum, como a vossa mesma. Tanta pena
vos ha de dar ver que se perde qualquer Alma, como se fora a vossa propria: se naõ
fazeis isto perfeitamente, naõ guardais a Ley de Deos perfeitamente. Vede vós, que
poucos a guardaõ! Chorai isto muito. Porque isto he o que faz chorar aos bons,
encommendar muito a Deos, que tenha piedade dos máos, sem vos escandalizar de
nenhum. Oh doutrina do Ceo, quem te guardára á risca, que logo fora Santo!
Melhor he, Irmaã, obrar bem, que conhecer o bem. Por isso a santidade naõ
consiste em muito contemplar, senaõ em muito obrar. Mais val hum dia, em que andais
fazendo obras de charidade, ou de humildade, ou de obediencia, ou de paciencia, que
estar hum meze m contemplaçaõ, extasis, e em raptos. Porque isto he comer a iguaria
sem a merecer, e aquillo he merecê-la, ainda que a naõ chegueis a comer. Finalmente,
naõ tenho tempo, ainda que a mare he boa. Lembrai-vos do que aqui vos digo.
Entendei que vo-lo manda dizer o Espirito Santo, e a todos os que o lerem.
Começar: começa quem bem deseja, aproveita quem se resolve, chega á
perfeiçaõ quem poem por obra tudo. O alicerse desta casa he a humildade. A virtude
da humildade consiste em vos ter por peyor que todos quantos ha no Mundo, ainda que
132
sejaõ más mulheres, e homens perdidos; entendendo, que se Deos lhes déra o que
vos deo a vós, que elles foraõ melhores que vós. Desta humildade nasce o
conhecimento de nossa grande vileza, deste conhecimento nasce o odio, que temos a
nós mesmos, tratando mal o corpo; mas isto com prudencia: que o demasiado fogo á
panella a faz rebentar. Deste odio nasce a mortificaçaõ de nós mesmos, desta
mortificaçaõ o amor de Deos, deste amor de Deos o aborrecimento de tudo o mais, e
desprezo do Mundo. Deste aborrecimento nasce o exercicio da penitencia, contra a
qual se levanta o Mundo, o Diabo, e Carne com grande perseguiçaõ, tentaçaõ, e
tribulaçaõ, que servem como de fornalhas para provar o espirito: se o espirito he falio,
como palha vaã, e inutil, se abraza na fornalha; e se o espirito he verdadeiro, como o
ouro se apura nas levaredas, sahe mais lustroso nestas tribulações, que ou vem de
Deos para nossa próva, ou do proximo pela murmuraçaõ, ou de nós por nossa natural
fraqueza. Exercita-se a paciencia, da paciencia nasce a mansidaõ, da qual Deos muito
se enamora. Desta mansidaõ nasce a devoçaõ, que he hum desejo ardente de Deos,
deste ardente desejo de Deos nasce a pura intençaõ, que he amar a Deos, naõ por nos
salvar, nem por nos dar gosto, nem por interesse algum, senaõ por sua immense e
sobre infinita, e alem de amavel bondade, benignidade, e formosura. Desta pureza
nasce o tratarmos de ajuntar a nossa com a sua vontade. E aqui está o ponto de tudo.
Desta vontade, que temos de naõ ter vontade, nasce a resignaçaõ. A resignaçaõ he
huma entrega, que fazemos a Deos da vontade propria.
Esta resignaçaõ se exercita de dous modos: hum em conformidade com Deos,
dando-lhe graças por tudo quanto nos succeder, ou seja bem, ou mal, como naõ seja
peccado: ou por indifferença, que leva indeterminaçaõ, com que nos pomos a esperar
de Deos igualmente as consolações, com tençaõ de entender a vontade de Deos, pelo
que nos succeed, como naõ seja culpa. Desta indeterminaçaõ, que he altissima virtude,
nasce a uniaõ com Deos; desta uniaõ huma paixaõ doce na Alma, que bem se sente
na Alma, que nos abraça Deos. Desta paz nasce a liberdade do espirito. Liberadde do
espirito he estar a Alma livre de todos os desejos da terra, e de seus vicios, ou sejaõ
por memoria, ou por desejo de voar a Christo, de despir as prizões da carne, e de
morrer, e gozar a Deos claramente na Celestial Patria, tudo he suspirar ao Ceo, e
133
chorar pelos bens da Gloria. E como vemos que naõ quer Deos soltar-nos taõ depressa
do carcere deste corpo, viremos a padecer solidaõ, isto he andar fugindo da gente, e
communicaçaõ, buscar lugares tristes, e solitaries, solilloquios interiores com Christo.
Estes se apertaõ mais com a sagrada Communhaõ, com a qual se une o Senhor muito
á Alma. Desta conversaçaõ com Deos nasce desejo da Cruz para acabar crucificados
com Christo, e para que mais cedo subamos ao Ceo por essa Cruz. E desta, tomada
por Gloria, nasce a esperança certa, e infallivel, de que Deos ha de salvar-nos. E aqui
acaba o pégo, ou para melhor dizer, se chega ao cume do monte da perfeiçaõ, quanto
ao nosso conhecimento, ainda que muito ha de perfeiçaõ daqui para diante. Mas quem
chegar aqui, bem póde dizer com S. Paulo: eu ja naõ vivo em mim; porque vive em
mim Jesu Christo. Elle vos guarde, e guarde a todos os que lerem este papel, que foi
vontade sua, que este indigno, e miseravel, inutil, falso e mentiroso a Deos, de sua
vontade o escrevesse para sua Gloria, honra, e bem de todas as Almas de todos
aquelles, que o guardarem a risca. Guardai ao menos este papel, que algum dia póde
ser que me aproveite do que elle diz. E Deos vos faça Santa.
Irmaõ inutil, e sem proveito.
Frei Antonio das Chagas
134
CARTA IV
O Amor de Deos more, e arda em nosso coraçaõ.
Minha Irmaã, e Senhora. Vós sois hum pouco de pó, e cinza, huma pouca de
terra esteril, e cheya de espinhos, e hum sacco de podridaõ, hoje que pareceis melhor.
E daqui a pouco, esterco, e mantimento de bichos. E nada tendes de vosso, mais que
peccary, e naõ saber agradecer a Deos os favores, que vos faz. Tudo que em vós
sentis do amor de Deos, saõ obras de seu amor. E Deos o que está fazendo em vós,
póde faze rem qualquer creatura, que melhor lho agradecerá. Por seus altissimos
juizos mostra que vos quer bem, e que vos ama a vós, ao mesmo tempo que na
redenodeza do Mundo deixou outros muito melhores que vós, e de melhores
inclinações. E neste conhecimento haveis de ir sempre, para que naõ percais a
Humildade, que he o alicerse de todas as virtudes. E quanto mais esta se mette por
baixo da terra, conhecendo a sua vileza, e a sua ingratidaõ, tanto mais sabe crescer, e
entra pelo Ceo o amor de Deos, que mora nos humildades de coraçaõ, mais que em
todos. E para saber isto como he, tende sentido bem no que vos digo.
A Graça de Deos, e o Amor de Deos, he a natureza, e o ser de Deos, que todo
he Amor, assim como nós somos Corpo, e Alma. E daqui vem, que quem vive em
graça, e em amor, vive em Deos, e Deos vive nelle, e Deos he o que obra nelle. E
porque como entaõ a creatura participa da Divina Natureza, assim como a vide, que
vive unida á cepa, della recebe o succo, e o humor, de que ive, e de que dá fructo;
assim a creatura unida com seu Creador, vive, e respire os alentos da Graça Divina,
que com ella cresce cada vez mais, e dá fructo de boas obras. E como a Graça, e
Amor de Deos, he infinito Senhor, como a panella, que tem grande fogo, este sobe em
cachões fora da panella, e se deseja ir, e sahe. Porque aquelle calor de fogo, que
entrou na agoa, deseja unir-se com o fogo, que está fora, que he o seu centro; e deseja
tambem deitar for a toda a goa, que lho impede: que isto he a nossa vida, e a panella
nosso corpo, e a quentura o Amor de Deos, de que as fervuras nascem. He necessario
135
saber isto, para que quando huma Alma se sente cheya de amor, que he o melhor que
póde ter neste mundo, saiba que aquelle amor, ou aquella fervura, naõ nasceo da
agoa, que bem fria he por natureza, nem do barro do nosso corpo, que bem grosseiro
he tambem; mas que só nasceo do amor de Deos, que em nós se ferve de fazer
maravilhas para sua Gloria; e para que nos favores espirituaes perca esta carne mortal
as suas friezas, e se purgue das immundicias, que tem antes de cozer-se, e depois se
temper com as virtudes. E ultimamente quando parece que arrefece, se componha com
a vontade de Deos, que ja quer gostar della. Desorte, que o nosso ponto ate aqui naõ
he mais que conhecermos bem, e verdadeiramente que Deos he o que obra, quando
obramos bem, e naõ nós: e que naõ cuidemos que he humildade dizer, que Deus obra
em nós, senaõ conhecimento certo, que entaõ he só certo, quando nos conhecemos. E
conhecer isto, naõ he humildade, senaõ verdade certa, e conhecimento verdadeiro de
nossa vileza.
Segue-se agora tratarmos de como huma pessoa, que pela Graça de Deos se
sente já fora do Mundo, sentindo-se sem outros desejo que os desejos do Amor de
Deos, como se alongará mais do Mundo. Porque muitos deixaõ o Mundo. E para isto,
basta fugir de suas vaidades. Mas naõ se alongaõ muito, porque naõ chegaõ á solidaõ:
isto he, solidaõ de espirito. E solidaõ de espirito nenhuma outra cousa he mais, que
viver só com Deos. Porque assim como a solidaõ he huma cousa taõ só, que nella naõ
vive ninguem: assim a solidaõ do espirito he taõ solitaria, e só, que naõ acha nella mais
que Deos, e fica a Alma feita hum deserto, os sentidos hum ermo, onde Deos, como
acha sozinha a sua creatura, vem logo fallar-lhe ao coraçaõ, e em ardentes suspiros, e
abrasados desejos de se unir com Deos, que he o seu principio, donde sahio, a fonte
donde nasceo, a origem donde manou, e o centro, onde finalmente aquieta, quando
nelle se recolhe, e se mette, e se entra de todo, para, depois de estar mettida nelle, se
estender pela immensidade daquele ser infinito, para se alargar naquelle pégo de
amor, para arder naquelle mar de luz, para se derramar, e transformer de todo naquelle
summo bem, sobre infinito, sobre admiravel, e sobre eterno. Para isto he necessario
que vivamos sem creaturas na Memoria, sem discursos no Entendmineto, sem outro
amor na Vontade, mais que o Amor de Deos; e que juntamente andem sempre os
136
sentidos como pasmados nas maravilhas de Deos, em tudo o que se puzer diante do
sentido em oraçaõ continua. Na oraçaõ particular he necessario que agora entremos.
De dous modos vemos a Deos, e de dous modos he a visaõ de Deos: huma he
visaõ clara, e esta só a tem os Bem-aventurados no Ceo: outra se chama visaõ
obscura, e esta a tem os que no Mundo chegaõ a fazer actos de Fé. Este acto de Fé
naõ he mais que dizer huma creatura com todo seu coraçaõ: Meu Deos, eu creyo de
todo meu coraçaõ, que vós estais aqui dentro de mim, for a de mim, sobre mim, e ao
redor de mim. E logo crer isto sem duvida nenhuma, e naõ pôr a cuidar como elle alli
está; que isto entaõ se cuida, e menos se considera, entaõ se crê melhor. Porque em
vós crendo que Deos está em vós, e comvosco, sem saber como, e que vos está como
espreitando, logo vos ascendeis em amor, que he o maior bem de todos, melhor que
ter visões, e extasis, e revelações, que isto tudo se póde ter em peccado mortal. Só o
amor de Deos se naõ póde ter, senaõ em Graça. Antes importa muito ás pessoas
espirituaes, que totalmente irem de si o desejo de visões, e consolações. Porque he
golozina espiritual. E em quanto a creatura naõ chega á uniaõ de Deos, ainda que se
déra caso, que vos apparecêra hum Christo crucificado, tinheis obrigaçaõ de duvidar se
o era, e de lhe dizer: senhor, naõ he isto o que eu quero, nem desejo: o que quero he,
que se faça em mim a vossa vontade: e tratar de vos pôs na solidaõ; isto he, dizendo:
Deos na minha Memoria, Deos na minha Vontade, Deos no meu Entendimento; e nada
mais. E como a solidaõ do espirito he nada, he necessario pôr-vos nesse nada deste
modo> nada quero, nada desejo, nada tenho, nada mereço, nada procure mais que o
amor de meu Senhor Jesu Christo. E isto vos encommendo muito. Porque neste nada,
e na solidaõ, com que se diz: Deos na minha vontade, e nada mais, etc. está quase
toda a chave do jogo. E a razão he: porque Christo naõ está sempre comvosco, quanto
á Humanidade, e por isto se vai: está sempre quanto á Divindade. E quanto esta he
melhor que a Humanidade, tanto a deveis querer mais. Porem sempre convêm que
comeceis pela vida de Christo. E sabei, que agora estais no Cabo da Boa Esperança>
que isto saõ as sequidões, froxidões, e mais impedimentos do espirito. Se passares
adiante, vivereis em altissimos favores de Deos, e vivereis nelle, e andareis por cima
dos Ceos. Se vos deixares vencer das froxidoes, desgostando, e apartando-vos da
137
Oraçaõ, perdereis a Deos, e predereis tudo. por isso, aindaque naõ seja mais que
offerecer a Deos o tempo, convêm que lhe offereçais sempre as horas, que costumais
ter de Oraçaõ. Sobre aquillo do Convento, cedo nos veremos, e entaõ fallaremos. Bem
me parece isto. Porque he final de Matrimonio espiritual, que he o mais alto estado, a
que se chega no Mundo. He sinal; porque assim como huma pessoa, que se casa,
deixa pay, e mãy, como dizia Christo, pelo seu Esposo: assim quem casa com Deos,
que deixa por elle tudo, dá mostras de que Deos a quer furtar, e casar-se com ella. Mas
sobre isto fallaremos. E o que importa he fazer agora esses exercicios todos os dias,
começando sempre por Christo, até que nos vejamos. Sobre a resa, me parece bem
que rezeis as vossas obrigações, e que vos naõ canceis em ter o sentido na resa,
senaõ em Deos. E melhor resareis assim, e naõ vos fará nenhum impedimento deste
modo. Por isso resai em todo caso, cuidando só em Deos, e passando-o pela resa.
Antes que entreis na Oraçaõ, fazei muito por dizer estas palavras com devoçaõ: Meu
Deos, e meu Senhor, se pudéra vir aqui com pureza da Virgem Santissima, Senhora
Nossa, ella for a a minha alegria. Se pudéra vir com o amor de todos os Serafins, e
com a reverencia, e louvor de todos os Anjos do Ceo, essa for a a minha Bem-
aventurança. Se aqui trouxera o mesmo amor, com que vós vos amais, essa for a a
minha Gloria. Se de todos os corações do mundo pudera fazer hum só coraçaõ, eu vo-
lo déra, meu Deos, e só para vós o quizera. Se de cada areya do mar, de cada Estrella
do Ceo, de cada argueiro da terra, de cada hervinha do campo, de cada folha das
arvores, de cada letra dos livros pudéra fazer mil Mundos de Almas, mil Reynos de
vidas, mil mares de corações, mil Ceos de espiritos, todos, meu Deos, e meu Amor,
foraõ poucos, e me parecêraõ limitados para entregar-vos, e render-vos. Se for a Deos,
como vós fois, vos adorára por meu Deos, e andára fazendo sempre creaturas, que vos
adoráraõ, Córos de Anjos, que vos louváraõ, Templos, em que vos serviraõ, e Almas,
que vos amáraõ. Se fora o mesmo, que vós sois, deixara de ser Deos, porque vós o
fosseis, e me contentára, pondo-me aos vossos pés, com que huma vez
amorosamente puzesseis em mim os vossos olhos, e me naõ quizesseis mal. Meu
Deos, e meu Senhor, se me derais licença que nesse Ceo furtasse alguma cousa, nem
a Gloria furtaria, nem a Bemaventurança: só huma cousa furtará, e esta he o vosso
138
Amor, a todos os Anjos, e Serafins, a todos esses Espiritos Bemaventurados deixaria
eu Bemaventurados, mas o amor, que vos tem, havia de furtar-lho. Nem a Virgem
vossa Mãy escaparia, de que eu para vos amar andentissimamente lhe furtasse
tambem o amor. Dai-me vosso amor, meu Deos Pay, dai-me huma migalha de amor a
esta pobrezinha, que vo-lo pede de esmola por amor de meu Senhor Jesu Christo. Dai-
me vosso amor, meu Deos Filho. Dai-me vosso amor, meu Deos Espirito Santo. Amen.
Deos vos guarde. Coimbra, 2 de janeiro de 1664.
Irmaõ, e Amigo d´Alma.
Frei Antonio das Chagas.
139
CARTA V
O Amor de Deos more na Alma de V.S.
Muito reverenda Madre Soror N., e Senhora minha. Todas as de V.Reverencia
me tem chegado, e todas me parece que tenho lido, e até hoje li huma, que me
escreveo ha hum anno, em que me fallava em N., a quem todos devemos muito
encommendar a Deos, para que das presentes quedas naõ pare em maiores ruínas. E
livre-nos Deos das mesmas, que nos mesmos males podemos cahir, se Deos nos
desemparar. Naõ he possivel responder a tudo pelo miudo, nem ainda pelo grosso;
faremos o que pudermos.
Primeiro que tudo: até agora mortifiquei a V.M., em quanto naõ fizesse o que me
dizia; pois sendo isto nada, a vi taõ pegada a esta ninheria, que era necessario tirar-
lha: agora vejo que V.M. não tem nenhum desapego, nem resignaçaõ; pois por lhe
dizerem que eu estava enfermo, chorou. Que sentimentos saõ estes? Quem serve a
Deos, naõ sente nada, louva a Deos em tudo, e por tudo lhe dá graças. Cuidava eu que
tinha feito em V.M. alguma cousa. Cuidava que se lhe chegassem novas que eu era
mroto, se alegrasse muito em Deos, e dissesse: ou este Frade era bom, ou máo, ou foi
ao Inferno, ou ao Ceo. Se ao Ceo, naõ ha que sentir; se ao Inferno, convêm conformar
com Deos, e louvá-lo. Porque, levando-o taõ cedo, lhe escusou o cometter mais
peccados, a que se seguem maiores tormentos. Santa Maria Ogniaca, apparecendo-
lhe sua mãy depois da morte, e dizendo-lhe que estava condenada, louvou a Nosso
Senhor, e alegrou-se na justiça de Deos, aborrecendo aquella, a quem Deos aborrecia.
He possivel que se poem V.M. a chorar por Fr. Antonio! Estive arriscado a naõ lhe
escrever mais. Aposto eu que naõ chora V.M. tanto por seus peccados. Miseravel de
mim, que sou peyor, pois lhe custo maior sentimento. Depois de me passer a paixaõ,
estive para lhe mandar por obediencia, que me considerasse morto, e até naõ folgar
muito com isto, naõ me escrevesse; mas compadeço-me d miseravel espirito de V.M.
cheyo dessas sensibilidades. Que ha de dizer quem isso vir? Oh Padre, Christo chorou
na morte de Lazaro, e Santo Agostinho, e S. Bernardo na morte de sua mãy, e seu
140
irmaõ. Oh como sabemos canonizar os delictos, fazendo das culpas merecimento, e
vestindo o erro de desculpas. Faça-se V.M. de marmore, que até naõ perder o
sentiment de tudo, naõ farei grande caso do seu espirito. Naõ me dirá, que he o que
tem aproveitado em tantos annos? Ainda está por saber este ABC do Amor de Deos,
quem nos ensina como Doutora as regras do espírito? Considere-se, abata-se,
humilhe-se, e já que lhe parece que chegou a indeifferença; veja se se alegra com isto,
se dá graças a Deos de descobrir esta mina de sua fraqueza, engano, e vaidade.
Ora já lá vai a atrovoada. Necessario he que a luz appareça, e que tenha algum
allivio, quem soffreo a minha pena. Até que eu ordene outra cousa, em quanto V.M.
tiver saude, tomará cada semana tres disciplinas, que entraraõ em numero com as da
Communidade, se nesse tempo as houver. Jejuará cada semana, tendo perfeita saude,
os Sabbados, ou Sextas feiras a paõ, e agoa diante da Communidade. O jejum se
entende a semana, que não for Cozinheira, ou tiver grande trabalho. E trará por
exercicio o mais do tempo, além da Santa Oraçaõ, as palavras, que disse Nosso
Senhor a Santa Catharina de Sena, huma semana: eu sou o que sou, tu es o que nao
es. E faça por remoê-las bem, como agora; Eu sou o que sou santo. Eou sou o que sou
puro. Tu es a que naõ es, nem pura, nem santa. Outra semana terá por exercicio o
amis do tempo: tem tu cuidado de mim, que eu terei cuidado de ti. E cuidando em
Deos, faça por se descuidar de si. Outra semana aquellas palavras, que lhe disse:
Escolhe as cousas amargosas por doces, e tem as doces por amargosas. Estima como
refrigeiro as Cruzes, que na verade para a Alma saõ refrigerio. E naõ dirá V.M. que lhe
naõ dou algum, pois lhe inculco estes allivios.
Com a resoluçaõ de N. me alegrei. E naõ lhe está mal padecer para se
aproveitar, que Deos cura humas feridas com outras. Alegro-me tambem, de que V.M.
se houvesse com indifferença. E o que importa he, naõ esperdiçar isto com alguma
palavra, ou sentiment voluntario: que os naturaes, ainda que mostraõ as paixões pouco
mortificadas, saõ fructa da natureza. Ame V.M. quem amis lhe dér que merecer, que
essas saõ as verdadeiras amigas no mundo que os que nos gabaõ, e adullaõ, inimigos
saõ. A lanceta, que nos tira o sangue, mais amiga he nossa que o comer gostoso, com
que adoecemos. A Christo tentou o Demonio. Todo o que naõ he tentado, tenho quase
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por vencido. Porque ninguem poem demanda á sua fazenda: e assim nem o Demonio.
O que importa he, em elles vindo, dar graças a Deos, sem fazer grandes aballos pela
resistenca: que a maior consiste em pôr em Deos a memoria, e a vontade. Estimei
muito o que o Padre N. assistisse a N., porque poderá ser que importasse naõ menos
que a sua salvaçaõ esta assistencia. Tenha Deos misericordia de todos, e conserve a
muitos servos seus para salvaçaõ das Almas.
Eu me levo muito boa vida, e me acho muito bem disposto. Tudo isto se pode
acabar em huma hora. E cumprio-se a profecia de Viseu. Mas pelo que vou vendo de
presente, até para a saude foi boa esta vinda, para o espirito no recolhimento; para a
saude nas medicinas, onde temos confiança. Seja Deos bandito! Naõ era necessario,
que houvesse la petições ao Padre Provincial, para naõ haver penitencias, que aqui
naõ temos outra, que disciplina todos os dias, o paõ, e agoa. Cadêas já naõ as trago.
Todos me mandaõ comer, e nenhum jejuar, nem affligir. Faça-se a vontade de Deos,
que com isto folgo muito. Assim folgue eu no que for próva, e tormento. Os quarenta
dias, que tinha determinado, por causas efficazes, que o haõ impedido, se convertêraõ
nos nove, que V.M. me diz. E darei conta, naõ dos resplandores, que trago do monte,
se naõ das sombras, que descobri neste vale. Queira Deos que seja de lagrimas, para
que, sendo diluvio, se affoguem culpas, e se desaffogue a consciencia. Estimo muito a
medida, e quererá Nosso Senhor que com ella, onde a puz, se melhore taõ má cabeça,
que já para o corpo fica bõa. Ao Padre Fr. N. consulte V.M. em tudo o que for
necessario, como a mim mesmo. E faça mais caso do seu parecer, que do meu: e
assim lho mando, até que depois do Capítulo vá assistir a V.M. de mais perto, se cá
vier o Géral; que se naõ vier, fico-me por cá outro anno. Porque naõ fique sem Missão
Trás os Montes. Aindaque já encommendei esta Provincia a Jeronymo Ribeiro, que
andou pregando por aquellas partes, e fez nellas practices. Seja Deos bem ditto! As
cartas de Santa Thereza, com as Notas de Palafoz, tive depois de Frade. Naõ li muito
dellas; porque sempre me falta tempo para mim. As memorias de meus annos
agradeço a V.M. e bem haõ mister os meus esquecimentos as suas memorias. E
quererá Deos Nosso Senhor, que em a emenda de alguns dias, se repárem as ruinas
de tantos annos agradeço a V.M. e bem haõ mister os meus esquecimentos as suas
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memorias. E quererá Deos Nosso Senhor, que em a emenda de alguns dias, se
reparem as ruinas de tantos annos, que só se contaõ para o pranto, naõ tendo que
descontar para o merecimento. Naõ entendo bem esta pergunta de V.M. declare-se
V.M., ou faça tudo o que entender naõ he peccado, e póde ser causa de impedi-lo sem
damno nenhum. Já pode V.M. chamar-se filha, e seja-o diante de Deos, para que por
meyo de V.M. me perdoa Deos minhas culpas, e me conceda suas misericordias.
Agora naõ posso amis, quando puder será melhor. Entretanto recommende-me ás
amigas, e a todos peça roguem por mim a Sua Divina Magestade, que guarde a V.M.
quanto lhe peço, e desejo.
Viseu, 16 de julho de 1678.
De V.M. servo muito obrigado.
Frei Antonio das Chagas
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CARTA VI
O Amor de Deos arda, e ferva na Alma de V.S.
Minha Senhora. Estre grilhaõ, que me deitaraõ meus males, ou meus bens, ha tanto
tempo, tem sido a causa de eu naõ escrever a V.S. como desejava; mas se tenho para mim
que morreo todo o desejo do espirito, que muito he que adecesse o primor. Dê-me V.S., se
assim for servida, muito boas novas suas, porque de todas farei a devida estimaçaõ.
Eu fico melhorado, seja Deos bandito, mas com grande fraqueza: e esta me tem maõ,
par que naõ esteja mais longe. Mas espero em Sua Divina Magestade, que algum dia possa de
mais perto dizer a V.S. o que entendo no particular, em que V.S. me falla no seu ultimo papel.
Senhora: as arvores podem estar cheyas de fructose, e juntamente estar verdes, e com alguma
flor; nas do espirito requere-se, que se acabe a flor, e que se acabe a verdure, para chegar á
transformaçaõ de Christo crucificado, que he o que eu prégo, sem se S.Paulo: e assim deve
estar crucificado tudo na arvore da mortificaçaõ, que eu estimo mais que a Oraçaõ. Necessario
he que se seque a flor da discriçaõ, e se seque a verdure de nossas paixões, e inclinações
naturaes, e que se ponha todo o cuidado em sazonar os fructose das obras virtuosas, sem que
concorra a arvore para a folha, e para a flor com a substancia, que tira aos fructose. V.S. tem
hum juizo muito malfazejo para si, porque lhe sahe muitas vezes pela porta fora. Necessario he
fechar a porta, e fechar-se V.S. dentro de Christo, se trata de ser santa, e naõ dizer, nem fazer,
nem cuidar o que naõ cuidará, fizera, ou dissera este Senhor. E com sua licença, e por sua
Gloria, e honra, fazer entaõ o que elle ao coraçaõ lhe fallar. Prouvera a Deos, que todas as
Senhoras foraõ como V.S. Naõ tenha vaidade. Porque V.S. he huma creatura vil, e miseravel,
como as outras. Mas eu naõ me content, já que V.S. tomou esse caminho, senaõ com que
emprenda as virtudes heroicas sem Imperfeiçaõ, e saya dos desalentos de mulher para a
grandeza de animo, com que deve ser senhora de suas paixões. V.S. ainda está cheya de
vaidades, presumpçaõ, cuidado do seculo, e satisfaçaõ com o mundo. Isto naõ ha de ser
assim. Costumaõ dizer alguns: ou bem dentro, ou bem fora. Senhora, bem fora de tudo. isto he
o que eu aconselho. E naõ cuide V.S. que em ter grande paciencia no que lhe digo, tem grande
merecimento. Naõ basta huma virtude, saõ necessarias todas. Naõ basta que, V.S. dê tudo a
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Deos, senaô que se dê a si despida até de si mesma: que isto he o que este Senhor quer de
nós mais que tudo.
Ainda assim peço perdaõ a V.S. de quanto lhe tenho ditto. Porque poderá ser que a
curta vista de meu juizo se engansse em tomar a altura ao espirito de V.S., como quem
entende taõ pouco de espíritos, como eu. Mas aproveite-se V.S. desta vibora, pois ainda que
nella haja a maior peçonha, dizem os Naturaes, que tambem da sua cabeça se faza melhor
triage. Seja Deos muito bandito! E em castigo desta minha ousadia, mande-me V.S. este
Christo aqui a Monte-mór, para que elle me reprehenda, posto em huma Cruz, e desta Cadeira
me ensine, o que sem escrupulo de minha grande soberba direi entaõ a V.S. e por amor deste
Senhor naõ se esqueça de encommendar-lhe esta taõ pobre Alma, pois sabe V.S. o que
merece a charidade, o que trata bem aos peyores. Eu, tal qual sou, em meus pobres sacrificios
encommendo, e peço a Sua Divina Magestade, que guarde a V.S., e lhe dê todas as
felicidades de espirito, em cuja comparaçaõ todas as do mundo saõ engano, e vaidade. Monte-
mor.
De V.S. servo, e Capellaõ inutil.
Frei Antonio das Chagas.
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CARTA VII
O Amor de Deos more na Alma de V.S.
Minha Senhora. Todos se queixaõ das minhas faltas, e todos tem razaõ, se de
mim se queixaõ e V.S. muito mais. Mas hum homem taõ deitado a longe, que pode
fazer que bom seja! Quando he maior a minha tibieza, e negligencia com Deos, e com
os proximos, tanto maior espero que seja a caridade de V.S. em rogar por mim a Deos.
Em meus pobres sacrificios, quanto posso, desejo merecer a V.S. a lembrança.
Que tem de mim diante de Deos, e que vá adiante a Concordia, que em todas as
cousas de V.S., e de sua casa, filhos, netos, e sobrinhos, se continuem, e augmentem
as felicidades d´Alma, e da vida, que lhe desejo. Mas em bons desejos se me vay tudo.
Nada he o que obro, porque o mais que faço he nada. As melhores Caldas do mundo,
saõ a Graça de Deos, a santa Oraçaõ, e conformidade com Deos, caridade, e
paciencia nas contrariedades, que desejamos. Se nestas se metter a Senhora
Condessa, terá quanto quizer de Deos, e saberá pacificar-se, naõ querendo de Deos
nada, senaõ o que elle quer, que sempre he o melhor.
Eu vou continuando esta peregrinaçaõ por esta banda, já vay para o fim, e
desejara começar de novo para Mirranda. Naõ sei se terei tempo, vida, e espirito. Faça-
se a Divina vontade. Os Companheiros andaõ bons. O padre Fr. Luiz entendo escreve
a V.S. Agora fica com huma grande ciatica. Isto tambem he bom para os servos de
Deos. Encommende-nos V.S. a sua Divina Magestade, que guarde a V.S. quanto lhe
peço, e desejo.
Barcellos, 18 de fevereiro de 1678.
De V.S. servo inutil, e muito obrigado.
Frei Antonio das Chagas
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CARTA VIII
O amor de Deos more na Alma de V.S.
Minha Senhora. Naõ perco eu com V.S. o tempo, antes o dou por muito bem
empregado; mas falta o tempo, e cresceo o labirintho. E quem anda taõ perdido como
eu, naõ he muito que perca o fio para as suas importancias; que por taes avalio as
tarefas, em que me faço lembrado a V.S. Ajude-me V.S. com as suas Orações, e
Concordia, que eu no que posso ajudar, ainda que taõ pouco valho, naõ me descuido.
Naõ se podem dizer verdades de taõ longe. Deos nos chegará a tempo, que tenha V.S.
o merecimento de ouvir-me, assim como já agora o de soffrer-me. Encommendo muito
a V.S. a presença, e memoria de Deos. Porque este Espelho diante dos olhos d´Alma
basta para exercicio, pois alli nos vemos, e vemos, como he possivel, a Deos, e a sua
vontade. E quem traz os olhos no Sol, naõ anda em trevas.
Tambem dou a V.S. as graças por esta penitencia. Já fez seu papel em publico.
Queira Deos, que a consideraçaõ desta pena seja meyo, paraque algumas Almas
busquem o caminho da Graça. A V.S. peço que cada vez mais me encommende a
Deos, e sua Divina Magestade guarde a V.S. muitos annos.
Vianna, 28 de março de 1678.
De V.S. servo inutil.
Frei Antonio das Chagas
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CARTA XX
O Amor de Deos more na Alma de V.M.
Madre N., e Senhora minha. Senhora, ainadque naõ queira, pois he Esposa de
meu Senhor. Dei agora em rebelled, e até contra meus achaques me quero levanter a
maiores. Estes dias andei de corpo similhante ao espirito, que naõ he pouco mal:
porém Nosso Senhor sempre me trata bem. Se me naõ curára prégando, estivera
morrendo. Porque me cahio muita agoa na cabeça nos Sermões do Campo, em Braga,
e em Barcellos, Ponte de Lima, e nesta Terra; até que cahi, e tenho por experiencia,
que o remedio he ir pregar em a Igreja, aonde fue, e saya para for a o mal, que entrou
para dentro. Assim o fim, e assim melhorei. Mas ainda a cabeça anda como minha:
porém tudo he meyo, e motive de louvar a Deos, que poem estes despertadores, para
que naõ durma a Alma, antes véle em sua presença. Seja Deos bandito.
Vamos a responder. Naõ quero já que V.M. se ponha taõ ruins títulos, nem que
saya taõ cedo por fora o que está solapado dentro. Tudo tem seu tempo, sua mare virá,
e com ella a viraçaõ do Ceo. Já escrevi a V.M., que a Trás dos Montes naõ he possivel
ir. Porque em cada terra ha muito que fazer. Deixaremos a Provincia para esta
segunda jornada, se Deos de para isso vida. Naõ cayo no que V.M. me diz das
Communhões espirtuaes. Se he pedir lecença para faze-las, parece-me mui bem. Lá
foi huma medida, que mandei este Correio passado, que trazia commigo havia muito
tempo, de Nossa Senhora. Em V.M. fica melhor quando eu lá for. Basta-me o Sangue
de Christo Senhor nosso, que trago commigo. Das culpas commetidas, ou que V.M.
commetter até a segunda ordem, naõ faça V.M. mais penitencias, que conhcer que naõ
he capaz de nenhuma, nem a fez nunca, como a devia fazer. E cuide sempre, que he
peior do que cuida: que se naõ achará nisso muito enganda. E eu crerei a V.M. sem
virem a balha os Santos Evangelhos para prova de sua grande humildade. Ora seja
Deos bandito, e queira Deos que assim seja.
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Em todas as tentações tenho experiencia, que naõ ha melhor defensive, que a
memoria, e presença de Deos: examinando nela, e olhando para a Alma, se repartio,
ou diminuio o amor de Deos, esforçando nesta presença o proposito de o naõ offender.
E tud isto com huma suavidade pacifica, sem tumultos, nem violencias dos sentidos,
nem grande efficacia de palavras: que a força quebra a cabeça, e naõ desaffoga a
Alma, até ter perfeita saude. Faça V.M. quanto puder por ella, e louve a Nosso Senhor,
que lhe quer mostrar, que até nas cousas do corpo he bem obedecer. Seja Deos
louvado pelos repiques: que em dias das memorias da morte, melhor parecem outros
signaes. Quererá Nosso Senhor, que tudo seja para sua Gloria, e honra: que naõ será
pequena, que os vivos se pareçaõ com os mortos; pois he certo, que os estrondos das
maiores estatuas páraõ em cinzas. V.M. obedeça aos Medicos, como aos Prelados,
que S. Francisco Xavier assim o fazia. E em quanto tiver impedimento na vista, ou nos
olhos dôr, naõ me escreva muito, senaõ o menos que puder ser. A voz, com que V.M.
ha de servir a Deos, he quando for ao Côro rezar mais alto que puder; como naõ seja
modo extraordinario, que possa perturubar: que S. Vicente Ferrer assim o aconselha,
que levantemos a voz ao louvor de Deos, ou quando se canta, ou quando se reza.
Eu bem folgára de ter onde parar, e recolher-me algum tempo no meyo destas
Missões. Mas somos muitos, e naõ ha onde fora de Viseu, ou da Provincia. Apenas
começamos huma terra, já nos chamaõ para outra: e assim lidando com varias fadigas,
he preciso descansar, trabalhando nellas.
Lea V.M., quando puder, essas quintas essencias do Padre Puente> aindaque
me parece, que quem lhe resumio a substancia, naõ terá o mesmo espirito. Ainda que
naõ tive tempo de ler a Infancia de Christo, tenho o seu Author por Varaõ perfeito. Ler
tudo, sempre he bom; mas nem a todos he concedido ir pelo caminho, que se lê em
todos. Comforme o espirito de cada hum deve ser o exercicio, e o emprego. No ler naõ
ha engano. Do Senhor Bispo de Lamego espero grandes fructose, pelo fervor que vejo
em seu espirito, e no pastoral cuidado, com que se desvela pelo bem das Almas: tudo
he necessario nestes miseraveis tempos. Porque os peccados saõ os maiores, que
houve nunca no mundo. O Senhor Bispo do Porto he hum grande Prelado: e eu lhe
devo viver sempre muito aggradecido, pela mercê que me tem feito. Estimo que a
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Madre Soror N. ande taõ alentada, que chegue a ser Cozinheira. Entre os tições póde
arder o coraçaõ: e ente o fogo da terra soprar-se o do Ceo. Peço-lhe V.M., que nessas
fadigas se lembre de quem merece o do Inferno. V.M. festeje o Senhor S. Joseph,
quanto puder, que eu folgara de fazer o mesmo: mas cá, como posso, faço o meu
officio. Na Enfermaria naõ ha regra de mortificações. Amor de Deos, compunçaõ
comsigo, caridade com o proximo, seja o commum exercicio, e presença de Deos, que
guarde a V.M. quato lhe peço.
Viana, 28 de Março.
Servo inutil, e mais obrigado a V.M.
Frei Antonio das Chagas