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Apresentação

A excelente receptividade das publicações anteriores junto aos evangelizadores, quer sejam pastores, quer sejam leigos comprometi-dos, serviu de estímulo para que a Editora Ave-Maria desse continuidade a este projeto de comentários elaborados por Pe. Fernando Armellini. Desse modo, a presente obra Celebrando a Palavra – Festas completa o ciclo dos comentários às leituras dominicais e festivas dos anos A, B e C.

Em Celebrando a Palavra – Festas, Pe. Fernando Armellini comen-ta as festividades constantes do Missal Romano e comuns para toda a Igreja Católica, incluindo, nessa lista, as festas de alguns dos santos mais representativos da piedade dos cristãos brasileiros, como Santo Antônio de Pádua, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora de Fáti-ma. Em cada uma dessas festas, o autor explica as passagens bíblicas, situando-as no seu contexto histórico geográfico. Salienta os pontos fundamentais dos textos, aplicando-os à vida cristã hoje.

No que diz respeito aos santos de maior devoção dos brasilei-ros, Pe. Armellini fugiu dos lugares-comuns, daquelas passagens que todo mundo sabe e que nem sempre têm fundamento histórico. A conversão de São Paulo é disso um belo exemplo; em Nossa Senhora de Fátima, apresenta-nos a devoção a Maria fundamentada no que dela dizem os Evangelhos como mulher, e também como mãe do Senhor Jesus. Nos comentários à festa de Santo Antônio, deixou de lado tudo o que dele se diz e deu informações históricas, revelando-nos Santo Antônio como um homem real, modelo de humildade, de desa-pego e de amor aos pobres, apaixonado pela Sagrada Escritura.

Portanto, com a publicação dos três primeiros volumes cor-respondentes aos anos A, B, C e agora com o Celebrando a Palavra – Festas, temos a certeza de que sacerdotes e ministros da Palavra poderão contar com um rico e completo material de apoio na evange-lização e catequese de suas comunidades.

A Editora

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Apresentação

A excelente receptividade das publicações anteriores junto aos evangelizadores, quer sejam pastores, quer sejam leigos comprometi-dos, serviu de estímulo para que a Editora Ave-Maria desse continuidade a este projeto de comentários elaborados por Pe. Fernando Armellini. Desse modo, a presente obra Celebrando a Palavra – Festas completa o ciclo dos comentários às leituras dominicais e festivas dos anos A, B e C.

Em Celebrando a Palavra – Festas, Pe. Fernando Armellini comen-ta as festividades constantes do Missal Romano e comuns para toda a Igreja Católica, incluindo, nessa lista, as festas de alguns dos santos mais representativos da piedade dos cristãos brasileiros, como Santo Antônio de Pádua, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora de Fáti-ma. Em cada uma dessas festas, o autor explica as passagens bíblicas, situando-as no seu contexto histórico geográ�co. Salienta os pontos fundamentais dos textos, aplicando-os à vida cristã hoje.

No que diz respeito aos santos de maior devoção dos brasilei-ros, Pe. Armellini fugiu dos lugares-comuns, daquelas passagens que todo mundo sabe e que nem sempre têm fundamento histórico. A conversão de São Paulo é disso um belo exemplo; em Nossa Senhora de Fátima, apresenta-nos a devoção a Maria fundamentada no que dela dizem os Evangelhos como mulher, e também como mãe do Senhor Jesus. Nos comentários à festa de Santo Antônio, deixou de lado tudo o que dele se diz e deu informações históricas, revelando-nos Santo Antônio como um homem real, modelo de humildade, de desa-pego e de amor aos pobres, apaixonado pela Sagrada Escritura.

Portanto, com a publicação dos três primeiros volumes cor-respondentes aos anos A, B, C e agora com o Celebrando a Palavra – Festas, temos a certeza de que sacerdotes e ministros da Palavra poderão contar com um rico e completo material de apoio na evange-lização e catequese de suas comunidades.

A Editora

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Conversão de São Paulo (25 de janeiro)

Primeira leitura (At 9,1-22)

1 Enquanto isso, Saulo só respirava ameaças e morte contra os dis-cípulos do Senhor. Apresentou-se ao príncipe dos sacerdotes, 2 e pediu-lhe cartas para as sinagogas de Damasco, com o fim de levar presos a Jerusalém todos os homens e mulheres que achasse seguin-do essa doutrina. 3 Durante a viagem, estando já perto de Damasco, subitamente o cercou uma luz resplandecente vinda do céu. 4 Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: “Saulo, Saulo, por que me per-segues?” 5 Saulo disse: “Quem és, Senhor?” Respondeu ele: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues. [Duro te é recalcitrar contra o aguilhão”. 6 Então, trêmulo e atônito, disse ele: “Senhor, que queres que eu faça?” Respondeu-lhe o Senhor]: “Levanta-te, entra na cidade. Aí te será dito o que deves fazer”. 7 Os homens que o acompanhavam enchiam-se de espanto, pois ouviam perfeitamente a voz, mas não viam ninguém. 8 Saulo levantou-se do chão. Abrindo, porém, os olhos, não via nada. Tomaram-no pela mão e o introduziram em Damasco, 9 onde esteve três dias sem ver, sem comer nem beber. 10 Havia em Damasco um discípulo chamado Ananias. O Senhor, numa visão, lhe disse: “Ananias!” “Eis-me aqui, Senhor”, respondeu ele. 11 O Senhor lhe ordenou: “Levanta-te e vai à rua Direita e pergunta em casa de Judas por um homem de Tarso, chamado Saulo; ele está orando”.12

(Este via numa visão um homem, chamado Ananias, entrar e impor-lhe as mãos para recobrar a vista.) 13 Ananias respondeu: “Senhor, muitos já me falaram deste homem, quantos males fez aos teus fiéis em Jerusa-lém. 14 E aqui ele tem poder dos príncipes dos sacerdotes para prender a todos aqueles que invocam teu nome”. 15 Mas o Senhor lhe disse: “Vai, porque este homem é para mim um instrumento escolhido, que levará o meu nome diante das nações, dos reis e dos filhos de Israel. 16 Eu lhe mostrarei tudo o que terá de padecer pelo meu nome”.

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17 Ananias foi. Entrou na casa e, impondo-lhe as mãos, disse: “Saulo, meu irmão, o Senhor, esse Jesus que te apareceu no caminho, enviou-me para que recobres a vista e fiques cheio do Espírito Santo”. 18 No mes-mo instante caíram dos olhos de Saulo como que umas escamas, e recuperou a vista. Levantou-se e foi batizado. 19 Depois tomou alimen-to e sentiu-se fortalecido. Demorou-se por alguns dias com os discípulos que se achavam em Damasco. 20 Imediatamente começou a proclamar pelas sinagogas que Jesus é o Filho de Deus. 21 Todos os seus ouvintes pasmavam e diziam: “Este não é aquele que perseguia em Jerusalém os que invocam o nome de Jesus? Não veio cá só para levá-los presos aos sumos sacerdotes?” 22 Saulo, porém, sentia crescer o seu poder e confundia os judeus de Damasco, demonstrando que Jesus é o Cristo.

“Eu vi o Senhor, apareceu-me, apareceu também a mim.” Com esta terminologia deduzida da Bíblia, Paulo descreve seu encontro com o Ressuscitado. Mas o que realmente aconteceu ao longo do ca-minho para Damasco?

Com um punhado de guardas do templo, Saulo deixa Jerusalém e, a toda brida, lança-se em direção a Damasco para aprisionar os discí-pulos do Senhor. Está chegando às portas daquela cidade, quando, do céu, uma luz fulgurante o acerta, derruba-o da sela e o joga por terra.

É essa a dramática cena da “conversão” de Paulo que temos impressa na mente e que os artistas reproduzem em suas telas. E no entanto, por mais que se procure, no texto dos Atos não se encontra nenhuma menção nem do cavalo nem da escolta militar. Os compa-nheiros de viagem que, em um certo momento, tomam pela mão o apóstolo e o conduzem à cidade não são soldados, mas caminheiros que se encontram com ele por acaso. Nenhum cavalo brioso portan-to. Nenhum rumor de armas.

O que é que realmente aconteceu na estrada de Damasco? A conversão de Paulo foi um momento determinante na vida da

Igreja primitiva, por isso o autor do livro dos Atos a narra não uma, mas cerca de três vezes. A que é narrada na leitura de hoje é a primei-ra; as outras duas se encontram em At 22,4-16; 26,9-18.

Se alguém tiver a paciência de ler e de comparar os três textos, ficará um tanto surpreso porque o episódio é narrado com particula-ridades não apenas diferentes, mas até mesmo contraditórias. Tomo para consideração um deles, o mais evidente.

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Na primeira narrativa, os homens que caminham com Paulo detêm-se emudecidos, ouvem a voz, mas não veem ninguém (At 9,7). Na segunda narrativa, o apóstolo refere o que aconteceu em outros termos. Diz: “Os meus companheiros viram a luz, mas não ouviram a voz de quem falava” (At 22,9). Poucos capítulos adiante Paulo narra: “Eu estava em caminho quando uma luz do céu, mais fulgurante que o sol, brilhou em torno de mim e dos meus companheiros. Caímos todos nós por terra, e ouvi uma voz que me dizia em hebraico: Saulo, Saulo, por que me persegues? Dura coisa te é recalcitrar contra o aguilhão” (At 26,13-14).

Neste ponto torna-se um empreendimento difícil estabelecer quem viu, quem ouviu, quem caiu.

Trata-se – é claro – de incongruências de pequeno relevo, que todavia existem e são preciosas: sugerem-nos que não interpretemos a narrativa como um acidental fato de crônica, mas como uma experi-ência espiritual decisiva na vida de Paulo; experiência que tem muito para ensinar também nos dias atuais.

Entende que deve inverter sua caminhada

Nas suas cartas, Paulo frequentemente se refere à experiência de Damasco. A lembrança mais significativa encontra-se na carta que escreveu aos gálatas: “Certamente ouvistes falar de como outrora eu vivia no judaísmo, com que excesso perseguia a Igreja de Deus e a asso-lava; avantajava-me no judaísmo a muitos dos meus companheiros de idade e nação, extremamente zeloso nas tradições de meus pais. Mas quando aprouve àquele que me reservou desde o seio de minha mãe e me chamou pela sua graça, para revelar seu Filho em minha pessoa, a fim de que eu o tornasse conhecido entre os gentios, imediatamente...” (Gl 1,13-16).

Não descreve qualquer modalidade do encontro com Cristo. Só um realce: esta descoberta ocorreu por dom gratuito do Pai. Foi ele que revelou seu Filho e lhe confiou a missão de anunciá-lo aos pagãos.

O que mais se faz notar é que, nas suas cartas, Paulo não menciona qualquer fenômeno extraordinário no acontecimento de Damasco. Não só não fala do cavalo e dos soldados, mas nem mesmo dos outros detalhes “prodigiosos”: o relâmpago brilhante, a queda por terra, a voz misteriosa. Nas cartas tudo é muito mais sóbrio e realístico. Do evento, Paulo recorda apenas o profundo significado

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espiritual, a transformação que isto operou em sua vida, a iluminação interior que dela derivou.

Antes ele conhecia Jesus “apenas de um modo humano” (2Cor 5,16), seguia a lógica dos homens e da instituição judaica: considerava-o um der-rotado, um amaldiçoado por Deus. Esperava-se a salvação pela circuncisão, pela observância estrita das prescrições da lei. A partir do dia em que en-controu o Ressuscitado, todos esses critérios de valor caíram por terra: o que para ele constituía um título de glória tornou-se “esterco” (Fl 3,7-8).

Essa descoberta foi uma “fulguração imprevista” e operou-se por intervenção gratuita de Deus. Essa é a única verdade que Paulo quer salientar.

Ele teve uma fulguração imprevista, uma experiência profundís-sima do Ressuscitado. Dessa experiência ele saiu transformado: de perseguidor tornou-se apóstolo.

Uma experiência que se repete conosco

Converter-se não significa “encetar um retrocesso”, mas “fazer uma curva em U”. A ninguém é concedido reviver o seu passado, os er-ros cometidos permanecem, não podem ser cancelados, podem porém ser resgatados com uma inversão de roteiro, com uma mudança de dire-ção da vida, com uma transformação radical do modo de ver e de julgar, de agir e de amar.

As escamas que caem dos olhos do apóstolo parecem indicar o “véu” que cada judeu tem diante dos olhos, véu que lhe impede de des-cobrir em Jesus o Messias de Deus (2Cor 3,14-16). Para Paulo, o Senhor abre os olhos de maneira prodigiosa, a fim de que ele possa “abrir-lhes os olhos, para que se convertam das trevas à luz” (At 26,18). É um pro-dígio que o Senhor está pronto a repetir para cada um de nós.

Evangelho (Mc 16,15-18) 15 E disse-lhes: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura. 16 Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado. 17 Estes milagres acompanharão os que crerem: expulsarão os demônios em meu nome, falarão novas línguas, 18 ma-nusearão serpentes e, se beberem algum veneno mortal, não lhes fará mal; imporão as mãos aos enfermos e eles ficarão curados”.

A última página do Evangelho de Marcos descreve uma cena grandiosa: o Ressuscitado “apareceu aos Onze, quando estavam

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sentados à mesa, e censurou-lhes a incredulidade e dureza de cora-ção, por não acreditarem nos que o tinham visto ressuscitado” (Mc 16,14), depois enviou-os a pregar o Evangelho a todo o mundo.

O trecho de hoje foi escolhido para esta festa, porque Paulo foi certamente o mais ativo, o mais esforçado dos apóstolos no cumpri-mento da missão que o Ressuscitado confiou aos seus discípulos.

De não crentes a apóstolos

Reparemos nas particularidades com que é introduzida a cena: os Onze são ainda “incrédulos” e “duros de coração”, não confiam nem mesmo em quem já viu o Ressuscitado e por isso são censurados (Mc 16,14). Não parecem as pessoas mais indicadas para se tornarem missionários. Jesus, ao invés, os escolhe como testemunhas do Evan-gelho. O difícil caminho espiritual para a fé que os Onze percorreram é o mesmo caminho de Paulo e de todo apóstolo autêntico.

Certamente, caso identifique-se a adesão a Cristo com a prática de alguns ritos e cerimônias religiosas, é fácil encontrar “crentes”. Mas quando se entende o que realmente significa “ter fé em Cristo”, quando nos apercebemos de que é necessário mudar radicalmente as escolhas da própria vida, então o número dos “crentes” se reduz sen-sivelmente. Não é fácil encontrar a coragem de tomar esta decisão, e quem a toma o faz no meio de muitas dúvidas e lutas interiores.

A experiência espiritual dos Onze e de Paulo é um convite a não nos desencorajarmos, a não nos sentirmos rejeitados por Cristo quando verificamos em nós fraquezas e dificuldades para crer. Ele entende os nossos passos errados, mesmo assim nos escolhe e nos destina a tornar-nos suas testemunhas.

Em todo o mundo

Alguém procurou contar os quilômetros percorridos por Pau-lo nas suas viagens apostólicas para levar o Evangelho aos confins do mundo então conhecido. Foram calculados 1.000 km para a primei-ra viagem, 1.400 km para a segunda viagem, 1.700 km para a terceira. Se o apóstolo conseguiu realizar seu sonho de chegar à Espanha (Rm 15,24), então os quilômetros percorridos poderiam tornar-se o dobro. Dessas viagens, o apóstolo nos deixou uma descrição impres-sionante: “Três vezes fui flagelado com varas. Uma vez apedrejado.

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Três vezes naufraguei, uma noite e um dia passei no abismo [agar-rado a destroços ao sabor das ondas]. Viagens sem conta, exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos da parte de meus concidadãos, perigos da parte dos pagãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos entre falsos irmãos” (2Cor 11,25-26).

Paulo tornou-se assim “ministro de Jesus Cristo entre os pa-gãos, exercendo a função sagrada do Evangelho de Deus” (Rm 15,16), e teve como ponto de honra “anunciar o Evangelho onde ainda não havia sido anunciado o nome de Cristo, pois não queria edificar sobre fundamento lançado por outro” (Rm 15,20).

Na Igreja primitiva nem todos entenderam logo que o Mestre queria que seu Evangelho fosse anunciado a todo o mundo. Muitos estavam convencidos de que a salvação era reservada aos judeus. Também os apóstolos enfrentavam dúvidas, perplexidades e hesita-ções quando se tratava de batizar os primeiros pagãos e de entrar em suas casas. Paulo não; depois da sua conversão, teve a ideia clara do universalismo do Evangelho e a este anúncio dedicou sua vida.

A toda criatura

Esta ordem do Senhor é surpreendente. Os destinatários do Evangelho são os homens, não as árvores, as montanhas, as estrelas. Como podem as criaturas inanimadas ser remidas pelos benéficos efeitos da salvação?

Na carta aos Romanos, Paulo mostra condividir essa expecta-tiva da redenção que envolve todo ser criado: “A criação aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus (...) todavia com a esperança de ser também ela libertada do cativeiro da corrupção” (Rm 8,19-21).

Que sentido tem falar da criação que deve ser “libertada”? Quem a mantém na escravidão?

O homem que se deixa guiar pelo incontrolável impulso que o leva ao mal transtorna sempre o projeto de Deus sobre a criação. Por exemplo, movido pelo egoísmo, pela ânsia de poder e de domínio, pela desenfreada busca do prazer a qualquer preço, usa o ferro para produzir armas de morte ao invés de servir-se dele para fabricar en-xadas, foices, arados, tratores. Abusa da sexualidade. Para satisfazer a seus próprios caprichos destrói florestas e provoca o desapareci-

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mento de espécies animais, contamina os rios e envenena os frutos da terra, facilita a difusão de doenças... É assim que toda a criação é submetida à escravidão do pecado e da corrupção.

Quando chega a mensagem do Evangelho acontece um prodígio inaudito: a força divina da Palavra transforma os corações dos ho-mens e eles começam a empregar as criaturas não mais para o mal, mas as põem a serviço de uma vida fraterna e pacífica. Nascem assim uma humanidade e uma criação completamente novas.

Quem, como Paulo, torna-se anunciador do Evangelho, colabo-ra para a construção desse mundo redimido.

Fé e batismo

Quem ouviu o anúncio do Evangelho é convocado a “crer e ser batizado” .

Nessas poucas palavras é resumido o caminho para chegar à salvação. É o mesmo caminho que Paulo indica no famoso texto da carta aos Romanos: “Portanto, se com tua boca confessares que Jesus é o Senhor, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. É crendo de coração que se obtém a justiça, e é professando com palavras que se chega à salvação. (...) Porém, como invocarão aquele em quem não têm fé? E como crerão naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão falar, se não houver quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados, como está escrito: ‘Quão formosos são os pés daqueles que anunciam as boas novas’ (Is 52,7)? (...) Logo, a fé provém da pregação e a pregação se exerce em razão da palavra de Cristo” (Rm 10,9-17).

A fé autêntica baseia-se sobre o anúncio: antes de dar adesão a Cristo é necessário saber quem ele é e o que propõe, é preciso cons-tatar se merece confiança, avaliar se vale a pena dirigir a vida sobre valores que ele garante. Em uma palavra: deve-se conhecer “quem é Jesus” (Lc 19,3) e não é possível conhecê-lo sem que exista alguém que – como fez Paulo – o anuncie.

Paulo foi “um instrumento escolhido” para alicerçar este fun-damento da fé. Escrevendo aos coríntios, ele coloca bem claro o ministério ao qual foi chamado: “Cristo não me enviou para batizar, mas pregar o Evangelho” (1Cor 1,17). É o mesmo ministério que atu-almente desempenham todos aqueles que – de maneiras diversas – anunciam a Palavra.

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A “religião” (e o Batismo é uma prática religiosa) não é identifica-da nem confundida com a fé. A “religião” vem depois que se pronunciou o “sim” a Cristo. Só “depois de ter crido” é que se pode celebrar – em comunhão com os irmãos da comunidade – a própria fé. Eis pois o mo-mento do Batismo: primeiro e decisivo sinal da adesão a Cristo.

Temos refletido suficientemente sobre a responsabilidade que pesa sobre nós crentes? Do nosso anúncio depende a salvação dos irmãos.

Os sinais da presença do Reino (vv. 17-18)

Na última parte do Evangelho de hoje são elencados cinco sinais que acompanham as pessoas que creem. Alguns desses sinais são tão estranhos que nem mesmo Jesus os executou.

Alguém pode pensar que esses prodígios aconteciam nos tem-pos antigos, depois, aos poucos, foram desaparecendo. Mas nesse caso, justamente, perguntamo-nos: se são indispensáveis para mos-trar a todos os homens que Jesus continua acompanhando seus discípulos, por que não se realizam atualmente?

O evangelista Marcos sabe que está falando a pessoas que com-preendem a linguagem da Bíblia e as referências aos textos do Antigo Testamento.

“Sobre serpente e víbora andarás, calcarás aos pés o leão e o dragão” – promete o salmista ao justo (Sl 90,13). Para descrever os tempos do Messias e o mundo novo, Isaías emprega imagens seme-lhantes: “Então o lobo será hóspede do cordeiro, a pantera se deitará ao pé do cabrito. (...) A criança de peito brincará junto à toca da ví-bora, e o menino desmamado meterá a mão na caverna da áspide” (Is 11,6-8). O profeta se refere às lutas e às inimizades que existem no mundo, não certamente à mudança da natureza agressiva e perigosa dos animais. Por intermédio da imagem dos animais ele promete que, no reino de Deus, não haverá mais lugar para hostilidades, rivalida-des, agressões recíprocas entre os homens.

As pessoas da atualidade têm o direito de exigir que o anúncio do Evangelho seja acompanhado por sinais, por obras concretas que mostrem, de maneira irrefutável, que o mundo novo surgiu. Se nosso anúncio não se revela capaz de transformar os corações, a sociedade, o mundo inteiro, se não chega a pôr um fim às contendas, às guerras, às violências, se não constrói a paz, como poderão os homens ser convencidos a crer?

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Tema da festa:

AI DE MIM SE NÃO PREGO O Evangelho!

“Anunciar o Evangelho não é glória para mim; é uma obriga-ção que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho!” (1Cor 9,16).

Essa frase que Paulo dirige aos cristãos de Corinto é a síntese do seu ministério. Ele correspondeu à ordem do Ressuscitado: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15).

Paulo entendeu que a salvação do homem deriva da fé e do Batismo – como diz o Evangelho de hoje – e compreendeu também que a fé nasce do anúncio. Por isso, dedicou toda a sua vida à pre-gação e, por fim, pôde exclamar: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia, e não somente a mim, mas a todos aqueles que aguardam com amor a sua apari-ção” (2Tm 4,7-8).

A primeira leitura narra que Paulo de perseguidor tornou-se apóstolo. O que o transformou foi o encontro com o Ressuscitado, en-contro que, com modalidades diferentes, se realiza para cada um de nós.

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Apresentação do Senhor

(2 de fevereiro)

Primeira leitura (Ml 3,1-4)

1 Vou mandar o meu mensageiro para preparar o meu caminho. E imediatamente virá ao seu templo o Senhor que buscais, o anjo da aliança que desejais. Ei-lo que vem – diz o Senhor dos exércitos. 2 Quem estará seguro no dia de sua vinda? Quem poderá resistir quando ele aparecer? Porque ele é como o fogo do fundidor, como a lixívia dos lavadeiros. 3 Sentar-se-á para fundir e purificar a prata; purificará os filhos de Levi e os refinará, como se refinam o ouro e a prata; então eles serão para o Senhor aqueles que apresentarão ao Senhor as ofertas como convém. 4 E a oblação de Judá e de Jeru-salém será agradável ao Senhor, como nos anos antigos, como nos anos de outrora.

A semana é composta de 168 horas: uma ou duas dedicamos a Deus (missa, orações, cerimônias, ritos, devoções...), as outras ficam para nós, para cuidarmos dos nossos interesses, para cumprirmos as nossas tarefas.

A religião é o conjunto daquelas práticas que, com maior ou menor fidelidade, cumprimos para manter um relacionamento ami-gável com o Senhor. Talvez pensemos que seja necessário dar-lhe alguma coisa para torná-lo benigno nos nossos encontros, para dis-tinguir-nos com seus favores, para obter dele as suas bênçãos, para aplacá-lo, para afastar de nós os seus castigos. Mas é isto o que Deus espera de nós?

Também Israel praticou uma religião: ofereceu sacrifícios e in-censo no templo de Jerusalém, fez jejuns, elevou aos céus cantos e orações e, no entanto – pelos lábios dos profetas –, o Senhor declarou que não é esse o culto que lhe é agradável.

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Um exemplo da condenação desse relacionamento atrapalhado com Deus está no livro de Malaquias. Esse profeta viveu aproximada-mente 450 anos antes de Cristo, em um momento muito difícil: o povo entregava-se à dissolução moral, não praticava o amor e a justiça, os ricos aproveitavam-se dos pobres, os sacerdotes se comportavam de maneira indigna, ninguém mais se importava com a realização das promessas do Senhor.

Os versículos que antecedem imediatamente os versículos da leitura de hoje resumem, assim, a opinião do povo desalentado e de-siludido: não existe diferença entre bons e maus, “aquele que faz o mal é bem visto aos olhos do Senhor” (Ml 2,17c). Há até quem excla-me com ceticismo: “Onde está Deus, para julgar?” (Ml 2,17d).

A esta pergunta provocadora, o Senhor responde com uma so-lene promessa: “Vou mandar o meu mensageiro para preparar o meu caminho” (Ml 3,1). E continua falando que, depois da vinda desse mensageiro, aparecerá um outro personagem misterioso, chamado “Senhor”, “Anjo da aliança”, “Senhor dos exércitos”. E “virá ao seu templo o Senhor” (v. 1).

Que virá fazer esse personagem? A sequência da profecia no-lo diz: ele purificará a religião de Israel. Atuará como “o fogo do fundi-dor” e a “lixívia dos lavadeiros” (v. 2). O fogo destrói as escórias e faz aparecer, belos e reluzentes, os metais preciosos. Também a lixívia queima, causa irritação se penetra em um ferimento, mas desinfeta, purifica e limpa os tecidos e as manchas das roupas.

Essa profecia cumpre-se com a vinda de Jesus. Ele entrou no templo para purificá-lo: ele pronunciou um “basta” à religião dos ritos religiosos reduzidos simplesmente a práticas exteriores e introduziu a única religião agradável a Deus, a religião do coração e do amor às outras pessoas. A religião que não precisa de templos (Jo 4,21-24) pode ser praticada em qualquer lugar.

Têm ainda atualmente sentido as nossas igrejas? Jesus anulou todos os ritos? As nossas práticas religiosas são inúteis?

Jesus eliminou para sempre a religião inventada pelos homens, aquela que não é expressão de fé e de entrega a Deus e que se reduz a gestos quase mágicos. Mas instituiu o seu rito religioso – a Eucaristia – para exprimir a plena adesão a ele e à sua proposta de vida.

Talvez a nossa prática religiosa tenha ainda necessidade de uma purificação com o fogo e com a lixívia. O pão eucarístico, partido e

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partilhado nas nossas comunidades, nem sempre é sinal da nossa vida doada generosamente ao irmão. Com frequência ainda se reduz a um simples rito que não transforma o nosso coração, que nos dei-xa conviver tranquilos com nosso egoísmo, nossas paixões, nossas misérias, nossas infidelidades. Provavelmente para nós ainda não se cumpriu a profecia: nosso templo ainda é impuro, não permitimos ao “Anjo da aliança”, ao “Senhor dos exércitos”, a Jesus que entre com seu “fogo” e com sua “lixívia”, isto é, com seu Espírito.

Segunda leitura (Hb 2,14-18) 14 Porquanto os filhos participam da mesma natureza, da mesma car-ne e do sangue, também ele participou, a fim de destruir pela morte aquele que tinha o império da morte, isto é, o demônio, 15 e libertar aqueles que, pelo medo da morte, estavam toda a vida sujeitos a uma verdadeira escravidão. 16 Veio em socorro, não dos anjos, e sim da raça de Abraão; 17 e por isso convinha que ele se tornasse em tudo semelhante aos seus irmãos, para ser um pontífice compassivo e fiel no serviço de Deus, capaz de expiar os pecados do povo. 18 De fato, por ter ele mesmo suportado tribulações, está em condição de vir em auxílio dos que são atribulados.

Aconteceu, em um dado momento de nossa vida, encontrar-nos com dois tipos de médico. Um visitou-nos de maneira profissional e um tanto apressada: examinou os sintomas da doença, dirigiu-nos algumas rápidas perguntas, depois emitiu, sem emoção alguma, um parecer, e quase com indiferença deu o diagnóstico e nos entregou uma receita. Não fez parte das nossas ansiedades, não compartilhou das nossas preocupações.

Um outro médico, ao invés, nos recebeu com um sorriso, ou-viu-nos com atenção, interessou-se, antes de tudo, por nós mais do que pela nossa doença e, por fim, disse-nos: – Não se preocupe, também eu tive o mesmo problema, e o superei; sei quanto se so-fre, quando se vive apavorado, mas tenha coragem, verá que tudo se resolverá.

Esse segundo médico inspira-nos confiança. Infunde esperança porque, além de desenvolver competentemente seu trabalho, viveu a mesma experiência.

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O Filho de Deus não permaneceu no céu para indicar-nos, do alto, o caminho que conduz à libertação, para sugerir-nos, de ma-neira impessoal, os comportamentos a seguir. Não nos explicou detalhadamente em palavras como se resiste à tentação; deixou-se sim envolver pessoalmente nos nossos dramas, nas nossas dúvidas, nas nossas angústias, nos nossos problemas.

A passagem da carta aos Hebreus, que hoje nos é proposta, diz--nos: ele não se empenhou em auxiliar ou socorrer os anjos, mas tomou a si a tarefa de cuidar dos homens. Por isso tornou-se em tudo seme-lhante a nós e, exatamente por ter sido posto à prova e ter sofrido pessoalmente, está em condições de vir em socorro daqueles que es-tão sendo provados (vv. 17-18). Passou primeiramente pela morte e mostrou que a morte não é uma queda no nada nem o fim de tudo, mas sim o nascimento para uma vida com Deus, uma entrada na condição bem-aventurada dos ressuscitados. Dessa maneira libertou-nos do pa-vor da morte (vv. 14-15), pavor que nos torna escravos, apegados aos bens, mesquinhos, incapazes de amar e de doar a própria vida.

Evangelho (Lc 2,22-40)

22 Concluídos os dias da sua purificação segundo a lei de Moisés, levaram--no a Jerusalém para o apresentar ao Senhor, 23 conforme o que está escrito na lei do Senhor: “Todo primogênito do sexo masculino será consagrado ao Senhor” (Ex 13,2); 24 e para oferecerem o sacrifício prescrito pela lei do Senhor, um par de rolas ou dois pombinhos. 25 Ora, havia em Jerusalém um homem chamado Simeão. Este homem, jus-to e piedoso, esperava a consolação de Israel, e o Espírito Santo estava nele. 22 Fora-lhe revelado pelo Espírito Santo que não morreria sem primeiro ver o Cristo do Senhor. 27 Impelido pelo Espírito Santo, foi ao templo. E tendo os pais apresentado o menino Jesus, para cumprirem a respeito dele os precei-tos da lei, 28 tomou-o em seus braços e louvou a Deus nestes termos: 29 “Agora, Senhor, deixai o vosso servo ir em paz, segundo a vossa palavra. 30 Porque os meus olhos viram a vossa salvação 31 que prepa-rastes diante de todos os povos, 32 como luz para iluminar as nações e para a glória do vosso povo de Israel”. 33 Seu pai e sua mãe estavam admirados das coisas que dele se diziam. 34 Simeão abençoou-os e disse a Maria, sua mãe: “Eis que este menino está destinado a ser uma causa de queda e de soerguimento para muitos

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homens em Israel, e a ser um sinal que provocará contradições, 35 a fim de serem revelados os pensamentos de muitos corações. E uma espada transpassará a tua alma”. 36 Havia também uma profetisa chamada Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser; era de idade avançada. 37 Depois de ter vivido sete anos com seu marido desde a sua virgindade, ficara viúva, e agora com oitenta e quatro anos não se apartava do templo, servindo a Deus noite e dia em jejum e orações. 38 Chegando ela à mesma hora, louvava a Deus e fala-va de Jesus a todos aqueles que em Jerusalém esperavam a libertação. 39 Após terem observado tudo segundo a lei do Senhor, voltaram para a Galileia, à sua cidade de Nazaré. 40 O menino ia crescendo e se for-tificava; estava cheio de sabedoria, e a graça de Deus repousava nele.

Israel vivia na expectativa de que se cumprisse a profecia de Malaquias, que encontramos na primeira leitura deste dia. Aguardava o dia tremendo em que o Senhor entraria no templo, em toda a sua glória e majestade, para julgar e condenar quem não observava a lei.

Aguardava-se uma manifestação de força de Deus contra os seus inimigos e, ao invés – eis a surpresa –, no templo entra um menino, frágil e indefeso, tomado pelos braços de um homem. Esperava-se “o fogo e a lixívia” que queima os maus, e, ao invés, o profeta Simeão proclama o menino “luz” que iluminará todos os povos, salvador dos filhos de Abraão e dos pagãos, dos bons e dos maus.

Dividimos a passagem em quatro trechos. 1. No primeiro (vv. 22-24) é narrado o episódio da apresentação de

Jesus no templo. A lei judaica prescrevia que todos os primogênitos, tanto os dos homens quanto os dos animais, seriam oferecidos ao Senhor (Ex 13,1-16). No entanto, como as crianças não podiam ser sacrifica-das, era preciso serem resgatadas; por isso os pais levavam aos sacerdotes do templo um animal puro para que fosse imolado no lugar do filho. Os ricos ofereciam um cordeiro, os pobres ofere-ciam dois pombinhos ou rolinhas. Os pais de Jesus submetem-se a essa disposição, e Lucas não perde a oportunidade de salientar que a família de Nazaré per-tence à categoria dos pobres: não está em condições de oferecer um cordeiro. Este é um tema muito apreciado pelo evangelista Lucas, mas existe um outro que, no trecho de hoje, é repetido ao menos cinco vezes (vv. 22.23.24.27.39): a observância escrupulo-

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sa, pela Sagrada Família, de todas as prescrições da lei do Senhor. Desde os primeiros anos de sua vida, Jesus cumpriu fielmente toda a vontade do Pai, vontade que se encontra expressa nas Sagradas Escrituras. Esta primeira parte do Evangelho de hoje contém um ensinamento muito importante para nós e para nossas famílias. Os progenitores preocupam-se exatamente em proporcionar educação, instru-ção, trabalho e boa posição social aos seus filhos, mas isto não é suficiente. Têm uma outra missão, muito mais importante, a desen-volver: precisam consagrar seus filhos ao Senhor desde o início de suas vidas. Como? Não se trata de submetê-los a cerimônias parti-culares, mas de educá-los para uma vida cristã fiel e coerente com tudo aquilo que está escrito no Evangelho. Muitos pais estão convencidos de ter educado os filhos na fé por-que os obrigaram a ser fiéis a todas as práticas religiosas. Essas imposições externas não bastam; antes, frequentemente, se não forem sustentadas em convicções profundas, terminam por ser re-jeitadas quando se chega à idade adulta. Educar para a fé é muito mais que ensinar práticas religiosas: significa introduzir no coração dos próprios filhos o amor pelo “caminho” do amor e da doação de si mesmos, significa entregá-los ao Senhor para que ele os transfor-me em construtores da paz para todos os povos. Sabemos que as crianças aprendem com os olhos mais do que com o ouvido. A vida cristã dos pais é o melhor método de ensinar catequese aos filhos. Se os pais rezam em casa, os filhos aprendem a rezar com eles; se os pais leem a Bíblia, os filhos aprendem a procurar a luz para sua vida na palavra de Deus; se os pais participam fielmente dos encontros da comunidade Cristã, os filhos seguem-nos e tornam--se cristãos empenhados; se os pais praticam o amor, o perdão, a generosidade para com os irmãos, os filhos os imitam. É assim que os pais cristãos da atualidade são chamados a “consagrar” seus filhos ao Senhor.

2. A segunda parte (vv. 25-35) constitui o centro do Evangelho de hoje. Nela é apresentado Simão, um ancião que faz um gesto muito significativo: toma o menino dos braços dos pais e o oferece a to-dos os homens. Simeão é o símbolo de todo o povo de Israel que há tantos séculos espera o Messias. Ele mostra que Jesus não pertence somente a

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seu povo. Diz: ele está destinado a trazer a salvação a todos os povos e a ser luz para todas as nações (vv. 30-32). Quando começam a envelhecer, algumas pessoas tornam-se tris-tes, neurastênicas, intratáveis. Às vezes sua insatisfação é causada por doença, pelo declínio das forças, mas outras vezes é produto do medo à morte, da incapacidade de cultivar grandes esperanças, grandes ideais. Não sabem preencher de alegria e de sentido os últimos anos que o bom Deus lhes dá e passam o tempo a recla-mar, a lamentar-se, a criticar e a condenar aqueles que, ao invés, se empenham em tornar mais feliz e mais tranquila a própria vida e a vida dos outros. Simeão é um idoso exemplar: é “justo e piedoso”, deixou-se sempre guiar pelo Espírito e compreendeu o sentido de sua exis-tência. Não tem medo da morte, porque viveu na luz da palavra de Deus. Seus dias estão chegando ao fim, mas está feliz e pede ao Senhor que o acolha na sua paz. Não chora os anos da juven-tude, não se lamenta pelo mal que vê em torno de si; conversa com Deus e olha para a frente. Ainda que saiba que, em curto pra-zo, nada mudará no mundo, sente-se feliz porque tem a ventura de contemplar a aurora da salvação; alegra-se como o agricultor que, terminando a semeadura, sonha já com a boa chuva e com a colheita copiosa. Não é egoísta esse Simeão, porque não pensa em si mesmo, nos seus interesses, mas nos outros, na humanida-de inteira, na alegria que todos provarão quando o reino de Deus for instaurado. Questionemo-nos: os idosos das nossas comunidades comunicam aos jovens a mesma alegria, o mesmo otimismo, a mesma espe-rança em um futuro melhor? Cultivam o mesmo diálogo constante com o Senhor? Simeão pronuncia uma segunda profecia: desta vez dirigida a Maria. Diz-lhe: Jesus será um sinal de contradição (vv. 34-35). A imagem da espada que transpassará a alma tem sido interpretada, às vezes, como um anúncio do drama de Maria aos pés da cruz. Não é isso. A mãe de Jesus é aqui entendida como símbolo de Is-rael. Na Bíblia este povo é apresentado como uma mulher, como uma mãe que Deus torna fecunda, concebe, dá à luz e oferece ao mundo seu filho, o Salvador. Que pessoa pode, pois, representar Israel melhor que Maria?

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Simeão percebe o drama desse povo: nele – diz – acontecerá uma profunda e dolorosa laceração. Diante do Messias, o en-viado do céu, alguns abrirão a inteligência e o coração para a salvação, outros fechar-se-ão na recusa, decretando assim sua própria ruína.

3. A terceira parte (vv. 36-38) apresenta uma outra pessoa idosa: a profetisa Ana. Tem oitenta e quatro anos e este número, que é o resultado de 7 x 12, tem um significado simbólico: 7 indica a perfeição, ao passo que 12 representa o povo de Israel. Ana é, portanto, Israel que, jun-tamente com o cumprimento de sua missão, apresenta ao mundo o esperado Messias. Essa profetisa pertence à tribo de Aser, a menor, a mais insignifi-cante de todas as tribos de Israel; efetivamente, na bênção que, antes de morrer, Moisés pronuncia sobre seu povo, Aser aparece por último (Dt 33,24). Se Lucas salienta o fato de que Ana pertence a essa tribo é para mostrar, uma vez mais, que os pobres são os primeiros a reconhecer, em Jesus, o Salvador. Ana foi uma mulher que se conservou fiel ao marido a ponto de não se casar novamente. Sua escolha tem para o evangelista um significado teológico profundo: como o idoso Simeão, ela é símbolo do “resto” fiel do povo de Israel, a esposa do Senhor. Durante sua vida, Ana teve um só amor, depois viveu no luto de sua viuvez até o dia em que reconheceu em Jesus o seu Senhor. Então novamente se regozijou, como a esposa que reencontra seu esposo. Ana não se afastava do templo do Senhor (v. 37). É essa a casa do esposo. Não anda à procura de amantes, não tem tempo a perder, não vai de casa em casa para bater papo em conversa fiada, em futilidades, em bisbilhotices, para falar mal dos ou-tros. Ela sabe que os dias de sua vida são preciosos e devem ser vividos em intimidade com o Senhor e a serviço da comunida-de. As pessoas idosas não se sentem inúteis quando vivem na expectativa da vinda do Senhor: têm sempre tantos serviços hu-mildes, mas preciosos, a fazer pelos irmãos e, sobretudo, como a idosa profetisa, têm o dever de falar de Jesus a todos aqueles que estão à procura de sentido e de uma perspectiva jubilosa para a própria vida.

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4. O trecho evangélico se conclui (vv. 39-40) com o retorno da Sagrada Família para Nazaré e com a notícia referente ao desenvolvimento de Jesus. Ele não se diferencia das crianças nazaretanas a não ser pelo fato de que “está cheio de sabedoria e a graça de Deus está sobre ele”. Mesmo sendo Deus, aceitou em tudo a condição humana e dela compartilhou, desde a infância, todas as experiências dos homens.

Tema da festa: CHEGOU O TEMPO DA “PURIFICAÇÃO”

Passaram quarenta dias desde o Natal, e a Igreja, com saudade, novamente nos recorda o grande mistério que já celebramos. E o faz para dizer-nos que o Senhor, entrando no mundo, levou a efeito a nos-sa “purificação”. Nós nos sentíamos “como homens impuros; nossas boas ações são como roupa manchada; como folhas todos nós murcha-mos, levados por nossos pecados como folhas pelo vento” (Is 64,6). Deus não nos abandonou nessa situação.

Na linguagem bíblica, a impureza indica o estado de morte e o pecado é a expressão mais dramática da impureza, porque é uma escolha contrária à vida.

Como reage Deus diante da impureza do homem? A essa pergunta respondem as leituras de hoje. Ele não se espan-

ta, não se enraivece, não sente desprezo, não se afasta. Vem ao nosso encontro, não para nos censurar, para humilhar-nos, para castigar-nos. Toma como sua a nossa condição e, com sua santidade, purifica-nos.

Na primeira leitura, Malaquias promete a vinda do Senhor. O Evangelho mostra a realização dessa vinda. De acordo com

a lei de Israel (Lv 12) só a parturiente devia submeter-se aos ritos da purificação. O Evangelho de hoje fala, no entanto, da “purificação de-les” (v. 22). Vai ao templo toda a sagrada Família e também Jesus se faz impuro para acompanhar-nos ao local em que Deus nos dá a pureza.

A segunda leitura desenvolve este tema. O Filho de Deus quis tornar-se em tudo participante da nossa vida. Por isso é que pode aju-dar-nos em qualquer provação.

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São José (19 de março)

Primeira leitura (2Sm 7,4-5.12-14.16)

4 Mas a palavra do Senhor foi dirigida a Natã, naquela mesma noite, e dizia: 5 “Vai e dize ao meu servo Davi: eis o que diz o Senhor: (...)12 Quando chegar o fim de teus dias e repousares com os teus pais, então suscitarei depois de ti a tua posteridade, aquele que sairá de tuas entranhas, e firmarei o seu reino. 13 Ele me construirá um templo e firmarei para sempre o seu trono real. 14 Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho. (...)16 Tua casa e teu reino estão estabelecidos para sempre diante de mim, e o teu trono está firme para sempre”.

Entre as páginas mais conhecidas do Antigo Testamento estão, por certo, aquelas em que é narrada a história comovente de José vendido por seus irmãos (Gn 37–48). José, o sonhador, a vítima da inveja e do ciúme, o escravo que se torna o salvador do seu povo. O autor do livro do Eclesiástico conclui a apresentação dos gran-des personagens de Israel dizendo: “Ninguém nasceu no mundo (...) comparável a José, nascido para ser o príncipe de seus irmãos e o sustentáculo de sua raça” (Eclo 49,16.17).

No Antigo Testamento se diz com frequência que Deus mani-festa os seus pensamentos aos homens por meio dos sonhos e, no Evangelho de Mateus, também José, o esposo de Maria tem sonhos re-veladores (Mt 1,20-24; 2,13-19). As promessas de Deus e seus projetos são tão distantes dos nossos, são tão extraordinários que aparecem como sonhos irrealizáveis. Exige-se uma grande fé para crer que o sonho se realizará.

Procuremos enquadrar as leituras das festas de hoje na pers-pectiva dos sonhos de Deus.

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Comecemos com o primeiro sonho – aquele de Davi – que nos é apresentado nesta primeira leitura.

Quase no fim da sua vida, Davi levanta uma questão: quem ocupará meu trono quando eu me reunir aos meus pais? Será um dos meus filhos ou o poder acabará indo parar nas mãos de um usurpador?

Dirige-se a Natã – o vidente da corte – e lhe confia seu problema, suas ansiedades, sua perplexidade.

Recebe uma resposta surpreendente: teu trono será estável para sempre; teu reino será eterno, o cetro permanecerá para sempre nas mãos de um filho teu. É uma promessa inaudita.

No mundo existem surgimentos e desaparecimentos de muitas dinastias, tantas famílias nobres governaram durante centenas e até milhares de anos, mas depois desapareceram. O trono de Davi, ao invés, jamais vacilará, até o fim dos tempos.

Um dia, um triste dia de julho do ano 587 a.C., aconteceu um fato dramático: depois de 400 anos de reinado, também a dinastia de Davi termina. Para Israel é um drama não somente político e militar, mas sobretudo religioso: foram abalados os fundamentos da própria fé. O Senhor – perguntamo-nos – talvez tenha se esque-cido das suas promessas? Depois de um período de desânimo o povo entendeu: as palavras de Deus são irrevogáveis. Não resta senão aguardar um novo, um grande rei, descendente de Davi, que tornará Israel poderoso e que reinará para sempre. Começa aí a expectativa sobre o Messias.

A realização da profecia superou muitíssimo quanto Davi po-dia esperar e quanto o próprio Natã entendia. O rei e seu profeta pensavam em um reino terreno, Deus, ao invés, cultivava um sonho muitíssimo maior: o sonho da salvação que se realizaria em Jesus, uma vergôntea brotada da árvore já seca e sem vida da estirpe de Davi. Veremos no Evangelho de hoje como se cumpriu a promessa.

Quando estamos em dificuldade, nos momentos de medo, quando tememos que possa ser destruído tudo o que com trabalho e canseira tivermos construído, também nós, como Davi, voltamo--nos para o Senhor. Pedimos-lhe que apoie os nossos programas, que dê cumprimento aos nossos sonhos. Ele responde sempre indo além das nossas expectativas. Ouve nossas orações e as aten-de... mas sempre do seu modo. Não se adapta aos nossos projetos

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mesquinhos, transforma-os, substitui-os pelos seus e pede-nos que confiemos. Israel esperava um rei forte, dominador, e o Senhor respon-deu com uma criança frágil, pobre, indefesa. São as surpresas de Deus. Bem-aventurados aqueles que, como Maria e José, o entendem e o aco-lhem!

Segunda leitura (Rm 4,13.16-18.22) 13 Com efeito, não foi em virtude da lei que a promessa de herdar o mun-do foi feita a Abraão ou à sua posteridade, mas em virtude da justiça da fé. (...) 16 Logo, é pela fé que alguém se torna herdeiro. Portanto, gratui-tamente; e a promessa é assegurada a toda a posteridade de Abraão, não somente aos que procedem da lei, mas também aos que possuem a fé de Abraão, que é pai de todos nós. 17 Em verdade, está escrito: “Eu te constituí pai de muitas nações” (Gn 17,5); (nosso pai, portanto) diante dos olhos daquele em quem acreditou, o Deus que dá vida aos mortos e chama à existência as coisas que estão no nada. 18 Esperando, contra toda a esperança, Abraão teve fé e se tornou pai de muitas nações, se-gundo o que lhe fora dito: “Assim será a tua descendência” (Gn 15,5). (...) 22 Eis por que sua fé lhe foi contada como justiça.

Também Abraão é depositário de uma promessa que, de acor-do com os critérios dos homens, é considerada um sonho. Tanto ele quanto Sara são de idade avançada e incapazes de gerar, e no entan-to Deus assegura-lhes uma descendência numerosa como as estrelas do céu e como os grãos de areia que se encontram na praia do mar. Diante da perplexidade de Sara, que incrédula se ri, Deus recorda a Abraão: “Será isso, porventura, uma coisa muito difícil para o Se-nhor?” (Gn 18,14). São as palavras que o anjo dirá a Maria: “A Deus nenhuma coisa é impossível” (Lc 1,37).

Abraão confia no Senhor, crê contra toda evidência que ele é ca-paz de realizar seus sonhos: do seio esvaído de Sara conseguirá fazer brotar a vida e a um arameu errante sem norte será dada uma terra.

Que obra boa praticou Abraão para merecer a bênção de Deus? Nenhuma. Seu único “mérito” foi a fé incondicional que teve.

Acreditou no dom gratuito do Senhor. Na passagem da carta aos Romanos, meditada na leitura de

hoje, Paulo responde à pergunta: quem pertence à descendência de Abraão? Quem são os herdeiros da promessa divina?

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Os israelitas acreditavam ser o único povo eleito e privilegiado. Mas Paulo esclarece: não é o fato de poder ostentar um liame de san-gue com a estirpe de Abraão que dá direito às bênçãos do Senhor, mas a fé semelhante à dele. Todo homem, qualquer que seja o povo ao qual pertença, torna-se filho de Abraão se tem a coragem de confiar em Deus como ele o fez. É nesse sentido que, já no livro Gênesis, Deus diz a Abraão: “Farei de ti o pai de uma multidão de povos” (Gn 17,5).

José, o esposo de Maria, é um descendente de Abraão segundo a carne, mas não é isso que o faz grande, e sim a sua fé. Como seu antepassado (Gn 15,5), também ele recebe, durante a noite, o anúncio do nascimento extraordinário de um filho. Não vê ainda com clareza qual seja o sonho de Deus, mas confia, acredita, torna-se disponível a levar a cumprimento seus desígnios, mesmo que permaneçam ainda envoltos no mistério. Assim José torna-se filho de Abraão também segundo a fé.

Na nossa vida existem momentos de escuridão, momentos nos quais ficamos envolvidos pelas trevas: são os sinais da dor, do abandono, da solidão, da desilusão, da derrota, da velhice sem pers-pectivas e talvez acompanhada de saudades e de remorsos. São os sinais em que vemos ruir todos os nossos projetos e as nossas expec-tativas. Somos capazes – como Abraão e como José – de continuar a crer que, ainda que se destruam nossas esperanças, a realização dos sonhos de Deus continua a acontecer?

Evangelho (Mt 1,16.18-21.24)

16 Jacó gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é cha-mado Cristo. (...) 18 Eis como nasceu Jesus Cristo: Maria, sua mãe, estava desposada com José. Antes de coabitarem, aconteceu que ela concebeu por virtude do Espírito Santo. 19 José, seu esposo, que era homem de bem, não querendo difamá-la resolveu rejeitá-la secreta-mente. 20 Enquanto assim pensava, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: “José, filho de Davi, não temas rece-ber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. (...)21 Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados”. (...)24 Despertando, José fez como o anjo do Senhor lhe havia mandado e recebeu em sua casa sua esposa.

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O Evangelho de Mateus começa com uma longa lista de nomes: é constituída pelas gerações que se sucederam de Abraão até Cristo (Mt 1,1-17). São citados os patriarcas, Davi e seus descendentes, que ascenderam ao trono depois dele em Jerusalém e, por fim, alguns perso-nagens menos conhecidos. A longa genealogia conclui-se assim: “Matã gerou Jacó. Jacó gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado Cristo” (vv. 15-16). Eis a quem queria chegar a longa lista de nomes: a Jesus de Nazaré. O objetivo era mostrar que ele pertencia à família de Davi, àquela família à qual Deus prometera um reino eterno.

Depois da genealogia, o Evangelho de Mateus continua com a narrativa da anunciação a José (Mt 1,18-24). Diferentemente de Lu-cas, que fala da anunciação do anjo a Maria (Lc 1,26-38), Mateus põe em destaque a figura de José. É por meio da paternidade de José que Jesus passa a fazer parte da família de Davi.

Para colher a mensagem da passagem evangélica, é necessário antes de tudo esclarecer alguns elementos e responder a algumas in-terrogações que suscitam.

1. O matrimônio no tempo de Jesus

O matrimônio entre os judeus ocorria em duas etapas. A primeira consistia em um contrato firmado pelos dois nubentes, pelos pais e por duas testemunhas. Depois dessa assinatura, o rapaz e a moça já eram ma-rido e mulher, todavia não iam imediatamente viver juntos. Geralmente deixavam passar ainda um ano durante o qual não podiam encontrar-se.

Esse intervalo servia às duas famílias para conhecerem-se melhor e para que esposo e esposa amadurecessem um pouco, visto que, naquele tempo, costumavam casar-se muito jovens (12 a 13 anos para a moça, 15 a 16 para o rapaz... e esta deveria ser a idade de Maria e de José).

Passado o ano de espera, era organizada uma grande festa, a espo-sa era conduzida à casa do marido e os dois começavam a viver juntos.

É durante esse intervalo que acontece a anunciação a Maria e sua gravidez por obra do Espírito Santo.

2. Surgem espontaneamente algumas perguntas

O episódio, tal como é narrado por Mateus, levanta algumas in-terrogações: Como podia José suspeitar que Maria lhe tivesse sido infiel? Por que queria mandá-la embora? Em que sentido era “justo”?

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Talvez porque tinha decidido separar-se de Maria? Mas não havia lei alguma que o obrigasse a divorciar-se da esposa infiel... e isso não te-ria sido um gesto decoroso, mesmo que feito em segredo. Maria não teria dito nada a José de quanto tinha acontecido? Ou, talvez, se lhe tivesse dito, por que José não acreditou?

A essas perguntas qualquer pessoa responderia assim: Maria deve ter dito ao marido que o filho que ela estava esperando vinha de Deus; não teria tido motivo algum para manter segredo sobre um fato que ele tinha o direito de saber.

A dúvida de José então não se prenderia à fidelidade ou infi-delidade da esposa, mas sobre o seu papel neste acontecimento extraordinário. Como poderia dar o nome a um filho que não era seu? Não seria essa uma intromissão indevida no projeto de Deus? Não sabendo qual atitude tomar, José pensa em ficar fora desse assunto e aguardar o desenvolvimento dos acontecimentos. Enquanto ele está meditando sobre essas coisas, o Senhor lhe revela seu plano: ele dará o nome a Jesus, porque assim o filho de Maria passa a ter direito na família de Davi.

Essa explicação é interessante, mas limita-se a ser uma suposi-ção à qual o texto evangélico dá um muito frágil fundamento.

Minha opinião é que é melhor não tentar encontrar no Evangelho respostas a perguntas (mesmo que legítimas) que nós costumamos fazer, mas que para Mateus não interessavam. Ele não estava preocu-pado em dar-nos informações que satisfizessem nossa curiosidade, mas quer fazer-nos entender “quem é” esse Jesus que pede nossa adesão à sua proposta de vida.

3. A mensagem central do trecho

É a realização de um sonho, o sonho de Deus. Pelos lábios de Natã o Senhor prometeu a Davi um reino eterno.

Durante quatrocentos anos Israel passou pela experiência da monar-quia. A dinastia de Davi teve momentos gloriosos, mas, no conjunto, o balanço que a Bíblia faz de todos os reis dessa família é desastro-so. Salvo algumas raras e nobres exceções, eles foram infiéis a Deus, não escutaram os profetas e conduziram o povo à ruína. A conclusão dramática do reino aconteceu no ano 587 a.C. quando Jerusalém foi destruída e o último descendente de Davi foi deportado para a Babi-lônia junto com seu povo.

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É pois o fim de tudo? É a destruição de todas as esperanças? Al-guns esperam uma restauração da dinastia de Davi, outros aguardam a vinda de um messias. Em todos existe a convicção de que apenas o Senhor poderá reerguer Israel. Mas como? Deveria tomar pessoalmen-te em suas mãos o destino de seu povo, ele mesmo proclamando-se rei em substituição aos indignos soberanos precedentes. Assim co-meça a espera do reino de Deus.

Já nos primeiros livros da Bíblia encontra-se esta promessa: “É o Senhor quem será o vosso rei” (Jz 8,23), “O Senhor é rei para sem-pre, sem fim!” (Ex 15,18).

Nos profetas Deus insiste: “É com mão forte, com braço esten-dido, no desencadeamento do meu furor, que eu reinarei sobre vós” (Ez 20,33). “Ao Senhor pertencerá a realeza” – afirma Abdias (Ab 21).

No tempo de Jesus, os judeus piedosos, oprimidos pelos roma-nos, oravam assim: “Tu, Senhor, elegeste Davi como rei de Israel e, quanto à sua descendência, juraste, pela eternidade, que o seu reino não terá fim diante de ti... Portanto, Senhor, faze surgir esse rei, filho de Davi, na época que tu, ó Deus, escolheste, a fim de que reine sobre Israel teu servo. Dá-lhe força, para que abata os poderosos injustos, purifique Jerusalém dos pagãos que a arrasam... quebrante a arrogân-cia do pecador como vaso de argila”.

Se nos recordarmos dessa expectativa – cultivada durante sé-culos pelos israelitas – estaremos em condições de compreender a carga explosiva da primeira frase, aparentemente banal, do Evange-lho de hoje: o tempo da espera terminou, chegou o reino de Deus, Jesus é filho de Davi destinado a dar início ao reino sem fim.

4. A vocação de José

José é chamado em sonho, é como que convidado a entrar no sonho de Deus e desempenhar um papel importante na sua atuação. Foram-lhe confiadas duas tarefas: acolher Maria como sua esposa (v. 20) e dar um nome ao filho que nascerá dela (v. 21).

Maria já pronunciou o seu “sim” a Deus; agora é a vez de José. Ambos veem destruírem-se os projetos que haviam feito juntos: gostam-se muito, programaram uma vida conjugal tranquila e sere-na, querem viver como pessoas piedosas e tementes a Deus como aprenderam nas Sagradas Escrituras, que cada sábado escutam na si-nagoga, mas o Senhor os chama, convida-os a abandonar os próprios

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projetos e a acolher os dele. Como fez o pai Abraão, também eles entregaram-se confiantemente a Deus. Maria pede uma explicação (Lc 1,34), José nem isso pede. É tocante a docilidade desse jovem que, sem dizer uma única palavra, faz seus os desígnios de Deus.

Uma oportunidade, um encontro imprevisto, um alegre acon-tecimento ou uma doença, um bom êxito ou uma falência podem atrapalhar os ritmos regulares de nossa vida. Forçam-nos a rever nos-sos projetos e nos colocam em novos caminhos, às vezes escuros, difíceis, comprometedores. Qual é a nossa reação: revolta, rejeição, desencorajamento ou – como aconteceu com José – plena confiança no Senhor e abandono à sua vontade?

A segunda tarefa que é confiada a José é dar um nome ao filho que nascerá de Maria. Chamá-lo-á Jesus, que significa “libertador”, “salvador” .

Seu povo cultiva grandes esperanças de libertação. Também o historiador romano Tácito recorda essa expectativa febril: “A maior parte dos judeus estava convencida de que estava escrito nos antigos textos dos sacerdotes que, naquela época, o Oriente teria demonstra-do a própria força e que homens partidos da Judeia se tornariam os donos do mundo” (Hist., 5,13).

Conquistar o mundo não é libertá-lo. O anjo do Senhor explica assim a José o nome do menino a quem “Tu porás o nome de Je-sus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados” (v. 21). Não o libertará dos seus adversários políticos, não resolverá seus proble-mas econômicos, não colocará miraculosamente remédio em todas as dificuldades nas quais os homens se debatem, mas curará pela raiz os males do mundo: erradicará do coração do homem a força que o arrasta para o mal.

Essa é a missão sintetizada no nome Jesus. Pronunciar esse nome significará, para os primeiros cristãos, professar a própria fé nele, acolher o “caminho” que ele propõe, crer que ele é “o Senhor” e, portanto, acolher sua salvação (Jo 1,12). Nesse nome as pessoas se farão batizar (At 2,38), farão milagres (Mc 16,l7-18), e por esse nome sentir-se-ão alegres por sofrer insultos e suportar persegui-ções (At 5,41).

Esse nome libertador foi pronunciado pela primeira vez neste mundo por José, foi ele o primeiro a acreditar na força salvadora des-se nome, foi o primeiro a intuir os sonhos de Deus.

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Tema da festa:

JOSÉ, HOMEM QUE SE DEIXOU ENCANTAR PELOS SONHOS DE DEUS

Nossos sonhos são em geral puramente vãs ilusões, são tentati-vas de fugir, mesmo que só por alguns instantes, da dura realidade que nos angustia, nos preocupa, nos inquieta. Os sonhos de Deus não são assim.

A primeira leitura contém o anúncio do reino eterno que Deus decidiu conceder a um “filho de Davi”. Para quem avalia a realidade deste mundo com o olhar desencantado do cético, as palavras de Natã não são outra coisa senão uma divagação: Israel é “o menor de todos os povos” (Dt 7,7), não poderá ter importância alguma na história do mundo. Ao invés, o profeta fala em nome de Deus e a palavra de Deus nunca deixa de produzir seu efeito, realiza-se sempre.

O Evangelho mostra o cumprimento da promessa feita a Davi: um seu descendente realizou, além de toda expectativa, as palavras de Natã.

A segunda leitura nos apresenta Abraão, o homem que res-pondeu com toda a sua confiança em Deus. Como Abraão, também José acreditou na realização dos sonhos de Deus. Abraão e José são a prova de que quem confia em Deus não permanece desiludido.

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Anunciação (25 de março)

Primeira leitura (Is 7,10-14)

10 O Senhor disse ainda a Acaz: 11 “Pede ao Senhor teu Deus um sinal, seja do fundo da habitação dos mortos, seja lá do alto”. 12 Acaz res-pondeu: “De maneira alguma! Não quero pôr o Senhor à prova”. 13 Isaías respondeu: “Ouvi, casa de Davi: Não vos basta fatigar a pa-ciência dos homens? Pretendeis cansar também o meu Deus? 14 Por isso, o próprio Senhor vos dará um sinal: uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e o chamará ‘Deus conosco’”.

O risco nos dá medo, por isso nos precavemos: não entramos em um carro se o chofer está embriagado, se guia de maneira maluca, se é um velho que não enxerga bem ou se é um jovem imprudente. Quando nos é proposto comprar um carro, não verificamos só o esta-do do veículo, mas queremos saber também se quem o vende é uma pessoa honesta ou um embrulhão.

“Confiar é bom, não confiar é melhor”, “o homem desconfia-do morre velho”. Refrões semelhantes encontramo-los em todas as culturas: são um convite a sermos cautelosos, a agir somente quando se está certo. Nem sempre, porém, se pode agir com a má-xima segurança.

Em medida maior ou menor, frequentemente é necessário con-fiar: quem deve submeter-se a uma intervenção cirúrgica informa-se sobre a preparação e sobre as habilidades do médico que o vai ope-rar, mas, por fim, depois de ter feito todas as averiguações, não pode senão entregar-se às mãos dele.

Quem confia está sempre se colocando em risco, em perigo. Também a moça que durante três anos encontrou-se repetidas vezes com seu namorado, que estudou atentamente o modo de

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ele comportar-se, que perscrutou os aspectos mais secretos do seu temperamento e do seu caráter, frequentemente – sabemo--lo muito bem – na vida de casal encontra-se diante de surpresas desagradáveis.

Na primeira leitura desta festa é narrado um episódio que ilus-tra o que o Senhor pede ao homem: ele quer que o homem creia em sua palavra, que confie nele de maneira cega e sem condições. Esse abandono total e confiante entre os braços de Deus é o que a Bíblia chama de “fé”.

Procuremos entender como se desenvolveram os fatos. Estamos em Jerusalém no ano 733 a.C. O reino de Judá sofreu uma arrasadora derrota e agora precisa enfrentar uma coalizão aguerrida de inimigos. O rei Acaz – um jovem de apenas vinte anos – está temeroso de ser vencido. É um descendente de Davi e pertence àquela nobre família à qual o profeta Natã prometeu um reino eterno (2Sm 7,14-16).

Deveria confiar em Deus e na promessa divina, mas não confia; confia mais nos cálculos humanos, na astúcia, nos ardis, nas coliga-ções políticas em vez de confiar no Senhor. Conta com um exército muito fraco, sabe que não pode resistir ao assalto dos inimigos e, então, o que é que faz? Pede ajuda a uma nação muito poderosa, a Assíria.

Assim que teve conhecimento dessa escolha insensata, Isaías percebe os perigos que essa aliança acarreta: os assírios poderosos virão – certamente – em ajuda do pequeno reino de Judá, mas o con-duzirão à apostasia. Aliar-se com eles implica adorar seus deuses, aceitar os cultos pagãos e suas práticas imorais.

O profeta está preocupado e decide ir falar com o rei. Encontra-o junto da fonte superior, ao norte de Jerusalém (Is 7,3). Está apavo-rado e está procurando organizar as defesas da cidade. Diz-lhe: não existe razão para ter medo; tem confiança nas promessas de Deus, abandona os assírios. Os teus inimigos logo serão derrotados e a tua família continuará a reinar em Jerusalém para sempre, como o Se-nhor prometeu.

Nada resta a fazer. Acaz é teimoso e continua a acreditar que é melhor apoiar-se na Assíria mais do que confiar em Deus.

Depois de alguns dias, Isaías vai encontrá-lo de novo, dessa vez no palácio real. É nesse ponto que começa nossa leitura. Diz-lhe: se tu não crês nas minhas palavras, “pede um sinal!” (vv. 10-11).

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Acaz não está disposto a voltar atrás nas suas decisões e não lhe interessa nem mesmo ter um sinal do céu. Isaías lho dá assim mesmo: “Uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e o chamará ‘Deus conosco’ [Emanuel]” (v. 14).

O que significa esse sinal? A virgem à qual Isaías se refere é a jovem esposa de Acaz. Esta moça – diz o profeta – terá um filho cujo nome será “Emanuel” que significa “Deus conosco”. Ele será um grande rei, sucederá a seu pai Acaz e nele continuará a realizar-se a promessa feita pelo Senhor a Davi.

A palavra do profeta se realizará: o filho de Acaz, Ezequias, será concebido pela “virgem”, nascerá, será um bom rei e tornar-se-á o sinal da presença de Deus no meio de seu povo. A ele se poderá, pois, aplicar o nome de “Emanuel – Deus conosco”.

Ezequias, porém, não foi absolutamente em nada o rei excep-cional que Isaías esperava. Por isso, o próprio profeta logo percebe que as palavras que, em nome de Deus, havia pronunciado tinham um significado muito mais amplo do que aquilo que, em um primeiro momento, ele havia entendido. O oráculo do Emanuel não se tinha cumprido plenamente em Ezequias; era preciso esperar um outro rei, um filho de Davi, que correspondesse a tudo quanto o Senhor havia prometido, um rei que fosse realmente “Deus conosco”. Começou, pois, em Israel a expectativa do Messias.

A profecia de Isaías nos oferece a chave de leitura da festa da Anunciação do Senhor: convida-nos a vê-la como a celebração da fidelidade de Deus. Na concepção de Jesus no seio da virgem Maria, Deus deu provas da sua confiabilidade. Ele mantém a pa-lavra dada.

Esclareçamos logo um perigoso equívoco que surge na mente de muitos crentes: confiar em Deus não é equivalente a ter sucesso garantido neste mundo, não significa receber a certeza de que se es-tará livre das doenças e das desventuras que caem sobre as outras pessoas. O cristão não espere tratamento privilegiado. Deverá supe-rar todas as dificuldades que cada pessoa deve enfrentar. Mas ele recebeu como dom a luz que vem do alto, uma luz que guia sua vida, que lhe permite descobrir em tudo o que acontece – nos aconteci-mentos alegres e nos acontecimentos tristes – o projeto de amor que o Pai vai levando a cumprimento... e confia nele mesmo quando não está em condições de entender.

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Segunda leitura (Hb 10,4-10)

4 Pois é impossível que o sangue de touros e de carneiros tire pecados. 5 Eis por que, ao entrar no mundo, Cristo diz: “Não quiseste sacrifício nem oblação, mas me formaste um corpo. 6 Holocaustos e sacrifícios pelo pecado não te agradam. 7 Então eu disse: Eis que venho (porque é de mim que está escrito no rolo do livro), venho, Ó Deus, para fazer a tua vontade” (Sl 39,7ss). 8 Disse primeiro: “Tu não quiseste, tu não recebeste com agrado os sacrifícios nem as ofertas, nem os holocaus-tos, nem as vítimas pelo pecado” (quer dizer, as imolações legais). 9

Em seguida, ajuntou: “Eis que venho para fazer a tua vontade”. Assim, aboliu o antigo regime e estabeleceu uma nova economia. 10 Foi em virtude desta vontade de Deus que temos sido santificados uma vez para sempre, pela oblação do corpo de Jesus Cristo.

As pessoas que saravam de uma grave enfermidade, que se livra-vam de qualquer perigo, que se sentiam impuras e tinham necessidade de pedir perdão dos próprios pecados, iam ao templo, compravam um cabri-to, entregavam-no aos sacerdotes e eles o ofereciam em sacrifício a Deus.

O Antigo Testamento aprova e regulamenta essas manifestações de religiosidade, todavia os profetas não mostraram muita simpatia para com essas práticas. Por quê? Porque em geral reduziam-se a puros gestos exteriores, aos quais não correspondia uma autêntica conversão do coração.

Na passagem da carta aos Hebreus, que nos é proposta nesta festa, são-nos referidas as palavras de um homem que, no templo, agradece a Deus por ter sido libertado de uma doença mortal. Diz: Eu sei, Senhor, que tu não te aprazes com o aroma do incenso ou com o sabor da carne dos cordeiros imolados sobre o altar; por isso eu te prometo outra coisa: cumprirei sempre a tua vontade; isto – estou certo – te é agradável (vv. 5-7).

O autor da carta aos Hebreus afirma que Cristo levou a cum-primento de maneira perfeita as palavras deste salmo. Jesus ia frequentemente ao templo, mas nunca para oferecer sacrifícios; o único sacrifício que ele ofereceu é explicitado com estas palavras:

“Eis que venho para fazer a tua vontade”. Assim ele pôs fim às antigas oferendas e inaugurou os novos tempos (vv. 8-10).

Proposta na festa da Anunciação do Senhor, essa leitura quer iluminar-nos sobre o significado da encarnação do Filho de Deus.

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Ele veio ao mundo não para procurar o sofrimento e a morte (o crime do seu assassínio por ação dos homens não agradou a Deus), veio para testemunhar o amor do Pai pelos homens, amor que se ma-nifestou no dom da vida.

Esta festa é um convite para unir-nos a ele na liturgia que ele inaugurou, liturgia que não se reduz a faustosas cerimônias exterio-res ou na execução impecável de práticas rituais, mas consiste na adesão à vontade do Pai.

Evangelho (Lc 1,26-38) 26 No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, 27 a uma virgem desposada com um homem que se chamava José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. 28 Entrando, o anjo disse-lhe: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo”. 29 Perturbou-se ela com essas palavras e pôs-se a pensar no que significa-ria semelhante saudação. 30 O anjo disse-lhe: “Não temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus. 31 Eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. 32 Ele será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; e reinará eternamente na casa de Jacó, 33 e o seu reino não terá fim”. 34 Maria perguntou ao anjo: “Como se fará isso, pois não conheço homem?” 35 Respondeu-lhe o anjo: “O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua som-bra. Por isso o ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus. 36

Também Isabel, tua parenta, até ela concebeu um filho na sua velhice; e já está no sexto mês aquela que é tida por estéril, 37 porque a Deus nenhu-ma coisa é impossível”. 38 Então disse Maria: “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra.” E o anjo afastou-se dela.

Para compreender a mensagem deste texto evangélico, é preciso evitar um perigo, o de interpretá-lo como uma página de crônica especí-fica e exata em todos os mínimos detalhes. Lucas não está interessado em fornecer informações que satisfaçam à curiosidade dos seus leito-res. Seu objetivo é outro: quer fazer entender quem é o filho de Maria. Para isto, o que é que faz? Emprega um modo de narrar que era usado naquele tempo e que seus leitores compreendem muito bem: apresenta a anunciação a Maria, servindo-se de algumas citações muito famosas do Antigo Testamento. Procuremos entender o gênero literário empregado por ele, para poder colher a mensagem da passagem evangélica.

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1. Os anúncios de nascimentos extraordinários

Iniciamos com uma observação: na Bíblia não é a primeira vez que é anunciado o nascimento extraordinário de uma criança. To-dos, por certo, recordamos os anúncios do nascimento de Isaac (Gn 17–18), de Sansão (Jz 13), de Samuel (1Sm 1) e de João Batista (Lc 1,5-25). Poderão também perguntar-nos por que é que estes homens, aos quais foi confiada uma missão extraordinária, nascem todos de uma maneira “anormal”, não são – por assim dizer – frutos naturais da fe-cundidade humana. Nascem de progenitores idosos, de mães estéreis ou – como no caso de Maria – de uma mulher que ainda não manteve relações com o marido. É curioso que nos Evangelhos apócrifos tam-bém o nascimento de Maria é apresentado da mesma maneira: seus progenitores – Ana e Joaquim – são idosos e a mãe é estéril.

Apresentando dessa maneira a vinda ao mundo desses perso-nagens, a Bíblia quer salientar uma verdade teológica: eles são um presente do céu. A salvação (ou a esperança, ou a libertação) que eles trazem não é devida à capacidade humana, mas vem de Deus.

Se a estes anúncios de nascimentos extraordinários acrescen-tarmos também os trechos que narram a vocação de Moisés (Ex 3,2-12) e de Gedeão (Jz 6,12-22), verificaremos um outro detalhe in-teressante: estas narrativas são construídas todas do mesmo modo, apresentam o mesmo esquema, contêm os mesmos elementos, em outras palavras, assemelham-se como tijolos saídos da mesma fôr-ma. É fácil verificar, por exemplo, como em todas estas narrativas: primeiro aparece o anjo do Senhor; depois todo aquele que recebe o anúncio tem medo; o anjo então anuncia o nascimento de uma crian-ça, diz qual é seu nome e qual é a missão que lhe é destinada; a seguir é exposta uma dificuldade ou é apresentada uma objeção; o anjo res-ponde e dá um sinal que, efetivamente, se realiza.

A repetição sistemática de todos esses elementos indica que o autor segue um esquema fixo. Não está escrevendo um trecho de crô-nica. Portanto não têm sentido perguntas como estas: Por que Maria teve medo? O anjo andando entrou pela porta ou entrou voando pela janela? Por que Maria – que era casada para ter filhos – se espanta que lhe seja anunciado que vai ser mãe?

Levando em consideração estas observações, procuremos re-colher a mensagem que Lucas nos quer fazer assimilar

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2. O messias pobre entre os pobres

Dissemos, no comentário à primeira leitura, que a partir da pro-fecia de Natã e do anúncio do nascimento do Emanuel iniciou-se a espera do Messias.

O Messias era imaginado como um grande rei, forte, rico e po-deroso, por isso os olhos de todos estavam fixos sobre Jerusalém, a grande cidade onde se situavam o templo e o sinédrio, onde se praticava a religião em toda sua pureza e onde residiam os grandes mestres que instruíam o povo na lei de Deus.

O Senhor, porém, segue uma lógica diferente da dos homens. Ele costuma realizar seus projetos servindo-se de meios humil-

des, pequenos, frágeis. Vejamos nas particularidades as suas escolhas. • Antes de tudo seus olhos pousam sobre um minúsculo povoado da

Galileia, perdido entre as montanhas, um vilarejo que nunca é nome-ado no Antigo Testamento. Os galileus eram gente rústica, ignorante e também impura porque, vivendo em contato com os pagãos, eram algo assemelhados a bastardos. Os sacerdotes de Jerusalém os con-sideravam como “meio pagãos”. A Filipe, que fala com entusiasmo de Jesus de Nazaré, Natanael responde ironicamente: “Pode, por-ventura, vir coisa boa de Nazaré?” (Jo 1,46).

• Depois, a quem se dirige Deus? Quem é que ele escolhe? Não chama um grande libertador como Gedeão ou um homem forte como San-são, nem um rei sábio como Salomão, mas uma mulher, uma virgem.

O qualificativo de “virgem” para nós é uma honra, é sinal de valor, de dignidade, de grandeza. Em Israel não era assim. Apreciava-se a vir-gindade antes do casamento, mas permanecer nessa condição de virgem por toda a vida era entendido como vergonhoso para uma moça: era a demonstração de sua incapacidade de se expor ou atrair os olhares de um homem. Quem não tinha filhos era uma árvore seca que não dava frutos.

A palavra “virgem” assumiu assim uma conotação depreciativa. Nos momentos mais dramáticos da sua história, Jerusalém derrota-da, humilhada, destruída e sem esperanças, é chamada a “virgem de Israel” (Jr 31,4; 14,17). Nela a vida foi interrompida, é como uma mu-lher incapaz de gerar filhos.

Maria é virgem não só em sentido biológico (como a Igreja sempre acreditou), mas também em sentido bíblico: é pobre e está disposta a deixar-se “encher da graça” do Senhor.

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No dia da Anunciação não festejamos a integridade moral de Maria (da sua perfeição – é certo – não duvidamos), mas somos con-vidados a contemplar as “grandes coisas” que nela operou aquele que é “Poderoso” e “Santo é o seu nome”. Se ele realizou uma obra maravilhosa em uma “sua serva” que podia oferecer-lhe somente sua “nulidade” (Lc 1,48-49), saberá extrair uma obra-prima também da nossa miséria, da nossa baixeza, da nossa pobreza. • Lucas é o evangelista dos pobres e, desde a primeira página de

seu livro, salienta que as escolhas de Deus são para os últimos da terra. O homem que se abate diante do próprio pecado, das próprias fraquezas, das próprias falhas é um presunçoso. Está convencido de que são agradáveis a Deus somente aqueles que – como o fariseu no templo – estão em condições de apresentar-se diante dele revestidos de um belo manto de boas obras (Lc 18,9-14). Ao invés, a Deus nós só podemos oferecer nossa pobreza. É ele que transforma o deserto em gramado e os gramados em floresta (Is 32,15), como mostrou saber tornar fecundo o ventre “desértico” de uma virgem.

3. O diálogo do Anjo com Maria

Neste ponto podemos introduzir a mensagem central do Evan-gelho de hoje. • As primeiras palavras do anjo são: “Ave, cheia de graça, o Senhor

é contigo” (v. 28). O mensageiro celeste não inventou ali naquele instante esta expressão nem lhe foi ensinada no paraíso, antes de sair de lá. Trata-se de uma frase que Lucas tomou dos profetas e pôs na boca do anjo. Foi pronunciada pela primeira vez por Sofonias. Em um momento de grande decadência moral, esse profeta, depois de ter ameaçado com os castigos de Deus, dirige a Jerusalém este convite surpreen-dente: “Solta gritos de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, ó Israel! Alegra-te e rejubila-te de todo o teu coração, filha de Jerusa-lém (...). Não temas, Sião. O Senhor teu Deus está no meio de ti” (Sf 3,14-18; Zc 9,9). Se a cidade considerasse as maldades que cometeu, deveria esperar a destruição e a ruína. O profeta, ao invés, a convida para alegrar-se e exultar. Não se deve abater porque “o Senhor está nela e pronto para salvá-la”.

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O que Lucas quer dizer é que, no filho de Maria, realizaram-se to-das as profecias: a virgem concebeu – como Isaías anunciou (Is 7,14) – e Deus tornou-se presente como salvador do seu povo em Maria, identificada com a filha de Sião, da qual falou Sofonias.

• Na Bíblia, quando Deus dirige uma mensagem a alguém, geralmen-te o chama pelo nome. Na presente narrativa o nome de Maria é substituído por cheia de graça ou amada por Deus, e quando Deus muda o nome de uma pessoa significa que a destina a uma missão particular. Qual é então a missão confiada a Maria? É a de procla-mar a todos que o que está é para realizar o amor gratuito de Deus. Ao Senhor ela pôde oferecer – como já dissemos antes – só a sua pobreza, e ele a enriqueceu com seus dons; ofereceu sua virginda-de e ele a tornou fecunda. Olhando para Maria, cada pobre deve alegrar-se porque percebe encontrar-se na condição ideal para ser “amado por Deus”, como Maria.

• Depois da saudação, o anjo anuncia a Maria o nascimento de um filho, ao qual o Senhor Deus dará o trono de seu pai Davi; e rei-nará eternamente na casa de Jacó e o seu reino não terá fim (vv. 32-33). Também estas palavras não foram inventadas por Lucas; encontram-se, quase idênticas, na boca de Natã (2Sm 7,12-17). O evangelista quer dizer que, no filho de Maria, realizou-se a profecia feita a Davi: é Jesus o esperado Messias cujo reino será eterno. Jamais nos esqueçamos disto: Jesus é o único Messias; não haverá outro; ninguém o pode substituir. Atualmente, como no passado, sempre surgem pessoas que se apresentam como novos messias ou novos cristos, como novos salvadores (eles existem em todos os segmentos: políticos, economistas, religio-sos, intelectuais, visionários...). Quem pretende ser substituto de Jesus, e indica caminhos diferentes dos do Senhor (quem, por exemplo, estimula a odiar, a matar, a acumular egoistica-mente os bens, a viver de maneira imoral, a abortar...) não pode ser seguido. Mesmo que esses “messias” possam ter seu mo-mento de glória, consola-nos o fato de que não é a eles que Deus prometeu um reino eterno. Retorna pelos lábios do anjo o tema dos pequenos que se torna-ram grandes pela benevolência de Deus. Davi era um pastor, era o

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menor dos seus irmãos; Deus o tomou dos pastos onde apascenta-va o rebanho e o fez um rei glorioso e poderoso. Agora, Deus parte de uma situação de pobreza: a família de Davi já não é poderosa, decaiu, perdeu todo poder. O “Poderoso” intervém: toma um re-bento, um filho da descendência de Davi e lhe dá o reino eterno.

• À objeção de Maria o anjo responde: A força do Altíssimo te envol-verá com sua sombra (v. 35). No Antigo Testamento a sombra e a nuvem indicam a presença de Deus. Durante o êxodo, por exemplo, Deus precedia seu povo em uma coluna de nuvens (Ex 13,21), uma nuvem cobria a tenda onde Moisés entrava para encontrar Deus (Ex 40,34-35); quando o Senhor descia sobre o Sinai para falar com Moisés, o monte era coberto por uma nuvem densa (Ex 19,16). Dizendo que sobre Maria pousou a sombra do Altíssimo, Lucas nos diz que nela tornou-se presente o próprio Deus. Estamos, pois, diante de uma profissão de fé deste evangelista na divindade do filho de Maria.

• As últimas palavras do anjo são: A Deus nenhuma coisa é impossí-vel (v. 37). São as mesmas palavras que o Senhor disse a Abraão quando lhe anunciou o nascimento de Isaac (Gn 18,14). Diante de Deus nos sentimos muitíssimo pobres, por demais in-dignos. Considerando a nossa vida talvez encontremos tantos pecados, tanta coisa errada, tantos maus hábitos. Não podemos desencorajar-nos e pensar que para nós não pode existir salvação. Recordemos: para Deus “nada é impossível”. Ele costuma iniciar suas obras-primas onde encontra maior pobreza, maior miséria.

• Uma última palavra sobre a resposta de Maria: Eis aqui – diz – a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra (v. 38). Nin-guém havia entendido o projeto de Deus. Não o haviam entendido Davi, Natã, Salomão, os reis de Israel. Todos lhe haviam contrapos-to seus próprios sonhos e de Deus esperavam apenas uma coisa: que ajudasse a realizá-los. Maria não se comporta dessa maneira, não contrapõe a Deus nenhum projeto seu. Pergunta apenas que papel ele quer confiar-lhe e aceita docilmente sua iniciativa.

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Tema da festa:

A VIRGEM DARÁ À LUZ UM FILHO

O Deus de Israel está pronto, a todo momento, para realizar prodígios inauditos, mas só com a condição de que nos abandonemos nas suas mãos, que nele tenhamos uma confiança total.

A primeira leitura apresenta o jovem Acaz, o rei de Israel que é posto diante de uma escolha embaraçosa: seguir as lógicas humanas da política e da diplomacia ou confiar nas promessas feitas por Deus. Não escuta o profeta Isaías que o convida a confiar no Senhor e prefere apoiar-se na força das armas dos assírios. Será causa da decadência social e religiosa do seu povo. A essa infidelidade o Senhor responde com um sinal: a Acaz dará um filho – Ezequias – que dará continuida-de à dinastia de Davi. Esse filho será a demonstração da fidelidade de Deus nos confrontos de Israel.

Os pensamentos de Deus não são nossos pensamentos. Ele não manifesta sua presença e sua força favorecendo os projetos de sucesso e de glória do homem e considera ínfimos os sonhos de quem aspira aos reinos deste mundo. São bem diversas as provas de onipotência que ele dá. No trecho do Evangelho de hoje é narrada uma das suas obras maravilhosas, aquela que realizou em Maria, a virgem que, dife-rentemente de Acaz, depositou no Senhor plena confiança, pôs à sua disposição toda sua “nulidade”. Ele a transformou em uma obra-prima.

Cada pessoa é chamada a fazer essa experiência do amor oni-potente de Deus. A segunda leitura nos diz de que maneira: não por intermédio da oferta de sacrifícios e holocaustos, mas “cumprindo a vontade do Senhor” como fizeram Cristo e Maria.

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Conversão de São Paulo (25 de janeiro)

Primeira leitura (At 9,1-22)

1 Enquanto isso, Saulo só respirava ameaças e morte contra os dis-cípulos do Senhor. Apresentou-se ao príncipe dos sacerdotes, 2 e pediu-lhe cartas para as sinagogas de Damasco, com o �m de levar presos a Jerusalém todos os homens e mulheres que achasse seguin-do essa doutrina. 3 Durante a viagem, estando já perto de Damasco, subitamente o cercou uma luz resplandecente vinda do céu. 4 Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: “Saulo, Saulo, por que me per-segues?” 5 Saulo disse: “Quem és, Senhor?” Respondeu ele: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues. [Duro te é recalcitrar contra o aguilhão”. 6 Então, trêmulo e atônito, disse ele: “Senhor, que queres que eu faça?” Respondeu-lhe o Senhor]: “Levanta-te, entra na cidade. Aí te será dito o que deves fazer”. 7 Os homens que o acompanhavam enchiam-se de espanto, pois ouviam perfeitamente a voz, mas não viam ninguém. 8 Saulo levantou-se do chão. Abrindo, porém, os olhos, não via nada. Tomaram-no pela mão e o introduziram em Damasco, 9 onde esteve três dias sem ver, sem comer nem beber. 10 Havia em Damasco um discípulo chamado Ananias. O Senhor, numa visão, lhe disse: “Ananias!” “Eis-me aqui, Senhor”, respondeu ele. 11 O Senhor lhe ordenou: “Levanta-te e vai à rua Direita e pergunta em casa de Judas por um homem de Tarso, chamado Saulo; ele está orando”.12

(Este via numa visão um homem, chamado Ananias, entrar e impor-lhe as mãos para recobrar a vista.) 13 Ananias respondeu: “Senhor, muitos já me falaram deste homem, quantos males fez aos teus �éis em Jerusa-lém. 14 E aqui ele tem poder dos príncipes dos sacerdotes para prender a todos aqueles que invocam teu nome”. 15 Mas o Senhor lhe disse: “Vai, porque este homem é para mim um instrumento escolhido, que levará o meu nome diante das nações, dos reis e dos �lhos de Israel. 16 Eu lhe mostrarei tudo o que terá de padecer pelo meu nome”.

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17 Ananias foi. Entrou na casa e, impondo-lhe as mãos, disse: “Saulo, meu irmão, o Senhor, esse Jesus que te apareceu no caminho, enviou-me para que recobres a vista e �ques cheio do Espírito Santo”. 18 No mes-mo instante caíram dos olhos de Saulo como que umas escamas, e recuperou a vista. Levantou-se e foi batizado. 19 Depois tomou alimen-to e sentiu-se fortalecido. Demorou-se por alguns dias com os discípulos que se achavam em Damasco. 20 Imediatamente começou a proclamar pelas sinagogas que Jesus é o Filho de Deus. 21 Todos os seus ouvintes pasmavam e diziam: “Este não é aquele que perseguia em Jerusalém os que invocam o nome de Jesus? Não veio cá só para levá-los presos aos sumos sacerdotes?” 22 Saulo, porém, sentia crescer o seu poder e confundia os judeus de Damasco, demonstrando que Jesus é o Cristo.

“Eu vi o Senhor, apareceu-me, apareceu também a mim.” Com esta terminologia deduzida da Bíblia, Paulo descreve seu encontro com o Ressuscitado. Mas o que realmente aconteceu ao longo do ca-minho para Damasco?

Com um punhado de guardas do templo, Saulo deixa Jerusalém e, a toda brida, lança-se em direção a Damasco para aprisionar os discí-pulos do Senhor. Está chegando às portas daquela cidade, quando, do céu, uma luz fulgurante o acerta, derruba-o da sela e o joga por terra.

É essa a dramática cena da “conversão” de Paulo que temos impressa na mente e que os artistas reproduzem em suas telas. E no entanto, por mais que se procure, no texto dos Atos não se encontra nenhuma menção nem do cavalo nem da escolta militar. Os compa-nheiros de viagem que, em um certo momento, tomam pela mão o apóstolo e o conduzem à cidade não são soldados, mas caminheiros que se encontram com ele por acaso. Nenhum cavalo brioso portan-to. Nenhum rumor de armas.

O que é que realmente aconteceu na estrada de Damasco? A conversão de Paulo foi um momento determinante na vida da

Igreja primitiva, por isso o autor do livro dos Atos a narra não uma, mas cerca de três vezes. A que é narrada na leitura de hoje é a primei-ra; as outras duas se encontram em At 22,4-16; 26,9-18.

Se alguém tiver a paciência de ler e de comparar os três textos, �cará um tanto surpreso porque o episódio é narrado com particula-ridades não apenas diferentes, mas até mesmo contraditórias. Tomo para consideração um deles, o mais evidente.

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Na primeira narrativa, os homens que caminham com Paulo detêm-se emudecidos, ouvem a voz, mas não veem ninguém (At 9,7). Na segunda narrativa, o apóstolo refere o que aconteceu em outros termos. Diz: “Os meus companheiros viram a luz, mas não ouviram a voz de quem falava” (At 22,9). Poucos capítulos adiante Paulo narra: “Eu estava em caminho quando uma luz do céu, mais fulgurante que o sol, brilhou em torno de mim e dos meus companheiros. Caímos todos nós por terra, e ouvi uma voz que me dizia em hebraico: Saulo, Saulo, por que me persegues? Dura coisa te é recalcitrar contra o aguilhão” (At 26,13-14).

Neste ponto torna-se um empreendimento difícil estabelecer quem viu, quem ouviu, quem caiu.

Trata-se – é claro – de incongruências de pequeno relevo, que todavia existem e são preciosas: sugerem-nos que não interpretemos a narrativa como um acidental fato de crônica, mas como uma experi-ência espiritual decisiva na vida de Paulo; experiência que tem muito para ensinar também nos dias atuais.

Entende que deve inverter sua caminhada

Nas suas cartas, Paulo frequentemente se refere à experiência de Damasco. A lembrança mais signi�cativa encontra-se na carta que escreveu aos gálatas: “Certamente ouvistes falar de como outrora eu vivia no judaísmo, com que excesso perseguia a Igreja de Deus e a asso-lava; avantajava-me no judaísmo a muitos dos meus companheiros de idade e nação, extremamente zeloso nas tradições de meus pais. Mas quando aprouve àquele que me reservou desde o seio de minha mãe e me chamou pela sua graça, para revelar seu Filho em minha pessoa, a �m de que eu o tornasse conhecido entre os gentios, imediatamente...” (Gl 1,13-16).

Não descreve qualquer modalidade do encontro com Cristo. Só um realce: esta descoberta ocorreu por dom gratuito do Pai. Foi ele que revelou seu Filho e lhe con�ou a missão de anunciá-lo aos pagãos.

O que mais se faz notar é que, nas suas cartas, Paulo não menciona qualquer fenômeno extraordinário no acontecimento de Damasco. Não só não fala do cavalo e dos soldados, mas nem mesmo dos outros detalhes “prodigiosos”: o relâmpago brilhante, a queda por terra, a voz misteriosa. Nas cartas tudo é muito mais sóbrio e realístico. Do evento, Paulo recorda apenas o profundo significado

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espiritual, a transformação que isto operou em sua vida, a iluminação interior que dela derivou.

Antes ele conhecia Jesus “apenas de um modo humano” (2Cor 5,16), seguia a lógica dos homens e da instituição judaica: considerava-o um der-rotado, um amaldiçoado por Deus. Esperava-se a salvação pela circuncisão, pela observância estrita das prescrições da lei. A partir do dia em que en-controu o Ressuscitado, todos esses critérios de valor caíram por terra: o que para ele constituía um título de glória tornou-se “esterco” (Fl 3,7-8).

Essa descoberta foi uma “fulguração imprevista” e operou-se por intervenção gratuita de Deus. Essa é a única verdade que Paulo quer salientar.

Ele teve uma fulguração imprevista, uma experiência profundís-sima do Ressuscitado. Dessa experiência ele saiu transformado: de perseguidor tornou-se apóstolo.

Uma experiência que se repete conosco

Converter-se não signi�ca “encetar um retrocesso”, mas “fazer uma curva em U”. A ninguém é concedido reviver o seu passado, os er-ros cometidos permanecem, não podem ser cancelados, podem porém ser resgatados com uma inversão de roteiro, com uma mudança de dire-ção da vida, com uma transformação radical do modo de ver e de julgar, de agir e de amar.

As escamas que caem dos olhos do apóstolo parecem indicar o “véu” que cada judeu tem diante dos olhos, véu que lhe impede de des-cobrir em Jesus o Messias de Deus (2Cor 3,14-16). Para Paulo, o Senhor abre os olhos de maneira prodigiosa, a �m de que ele possa “abrir-lhes os olhos, para que se convertam das trevas à luz” (At 26,18). É um pro-dígio que o Senhor está pronto a repetir para cada um de nós.

Evangelho (Mc 16,15-18) 15 E disse-lhes: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura. 16 Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado. 17 Estes milagres acompanharão os que crerem: expulsarão os demônios em meu nome, falarão novas línguas, 18 ma-nusearão serpentes e, se beberem algum veneno mortal, não lhes fará mal; imporão as mãos aos enfermos e eles �carão curados”.

A última página do Evangelho de Marcos descreve uma cena grandiosa: o Ressuscitado “apareceu aos Onze, quando estavam

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sentados à mesa, e censurou-lhes a incredulidade e dureza de cora-ção, por não acreditarem nos que o tinham visto ressuscitado” (Mc 16,14), depois enviou-os a pregar o Evangelho a todo o mundo.

O trecho de hoje foi escolhido para esta festa, porque Paulo foi certamente o mais ativo, o mais esforçado dos apóstolos no cumpri-mento da missão que o Ressuscitado con�ou aos seus discípulos.

De não crentes a apóstolos

Reparemos nas particularidades com que é introduzida a cena: os Onze são ainda “incrédulos” e “duros de coração”, não con�am nem mesmo em quem já viu o Ressuscitado e por isso são censurados (Mc 16,14). Não parecem as pessoas mais indicadas para se tornarem missionários. Jesus, ao invés, os escolhe como testemunhas do Evan-gelho. O difícil caminho espiritual para a fé que os Onze percorreram é o mesmo caminho de Paulo e de todo apóstolo autêntico.

Certamente, caso identi�que-se a adesão a Cristo com a prática de alguns ritos e cerimônias religiosas, é fácil encontrar “crentes”. Mas quando se entende o que realmente signi�ca “ter fé em Cristo”, quando nos apercebemos de que é necessário mudar radicalmente as escolhas da própria vida, então o número dos “crentes” se reduz sen-sivelmente. Não é fácil encontrar a coragem de tomar esta decisão, e quem a toma o faz no meio de muitas dúvidas e lutas interiores.

A experiência espiritual dos Onze e de Paulo é um convite a não nos desencorajarmos, a não nos sentirmos rejeitados por Cristo quando veri�camos em nós fraquezas e di�culdades para crer. Ele entende os nossos passos errados, mesmo assim nos escolhe e nos destina a tornar-nos suas testemunhas.

Em todo o mundo

Alguém procurou contar os quilômetros percorridos por Pau-lo nas suas viagens apostólicas para levar o Evangelho aos con�ns do mundo então conhecido. Foram calculados 1.000 km para a primei-ra viagem, 1.400 km para a segunda viagem, 1.700 km para a terceira. Se o apóstolo conseguiu realizar seu sonho de chegar à Espanha (Rm 15,24), então os quilômetros percorridos poderiam tornar-se o dobro. Dessas viagens, o apóstolo nos deixou uma descrição impres-sionante: “Três vezes fui �agelado com varas. Uma vez apedrejado.

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Três vezes naufraguei, uma noite e um dia passei no abismo [agar-rado a destroços ao sabor das ondas]. Viagens sem conta, exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos da parte de meus concidadãos, perigos da parte dos pagãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos entre falsos irmãos” (2Cor 11,25-26).

Paulo tornou-se assim “ministro de Jesus Cristo entre os pa-gãos, exercendo a função sagrada do Evangelho de Deus” (Rm 15,16), e teve como ponto de honra “anunciar o Evangelho onde ainda não havia sido anunciado o nome de Cristo, pois não queria edi�car sobre fundamento lançado por outro” (Rm 15,20).

Na Igreja primitiva nem todos entenderam logo que o Mestre queria que seu Evangelho fosse anunciado a todo o mundo. Muitos estavam convencidos de que a salvação era reservada aos judeus. Também os apóstolos enfrentavam dúvidas, perplexidades e hesita-ções quando se tratava de batizar os primeiros pagãos e de entrar em suas casas. Paulo não; depois da sua conversão, teve a ideia clara do universalismo do Evangelho e a este anúncio dedicou sua vida.

A toda criatura

Esta ordem do Senhor é surpreendente. Os destinatários do Evangelho são os homens, não as árvores, as montanhas, as estrelas. Como podem as criaturas inanimadas ser remidas pelos bené�cos efeitos da salvação?

Na carta aos Romanos, Paulo mostra condividir essa expecta-tiva da redenção que envolve todo ser criado: “A criação aguarda ansiosamente a manifestação dos �lhos de Deus (...) todavia com a esperança de ser também ela libertada do cativeiro da corrupção” (Rm 8,19-21).

Que sentido tem falar da criação que deve ser “libertada”? Quem a mantém na escravidão?

O homem que se deixa guiar pelo incontrolável impulso que o leva ao mal transtorna sempre o projeto de Deus sobre a criação. Por exemplo, movido pelo egoísmo, pela ânsia de poder e de domínio, pela desenfreada busca do prazer a qualquer preço, usa o ferro para produzir armas de morte ao invés de servir-se dele para fabricar en-xadas, foices, arados, tratores. Abusa da sexualidade. Para satisfazer a seus próprios caprichos destrói �orestas e provoca o desapareci-

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mento de espécies animais, contamina os rios e envenena os frutos da terra, facilita a difusão de doenças... É assim que toda a criação é submetida à escravidão do pecado e da corrupção.

Quando chega a mensagem do Evangelho acontece um prodígio inaudito: a força divina da Palavra transforma os corações dos ho-mens e eles começam a empregar as criaturas não mais para o mal, mas as põem a serviço de uma vida fraterna e pací�ca. Nascem assim uma humanidade e uma criação completamente novas.

Quem, como Paulo, torna-se anunciador do Evangelho, colabo-ra para a construção desse mundo redimido.

Fé e batismo

Quem ouviu o anúncio do Evangelho é convocado a “crer e ser batizado” .

Nessas poucas palavras é resumido o caminho para chegar à salvação. É o mesmo caminho que Paulo indica no famoso texto da carta aos Romanos: “Portanto, se com tua boca confessares que Jesus é o Senhor, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. É crendo de coração que se obtém a justiça, e é professando com palavras que se chega à salvação. (...) Porém, como invocarão aquele em quem não têm fé? E como crerão naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão falar, se não houver quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados, como está escrito: ‘Quão formosos são os pés daqueles que anunciam as boas novas’ (Is 52,7)? (...) Logo, a fé provém da pregação e a pregação se exerce em razão da palavra de Cristo” (Rm 10,9-17).

A fé autêntica baseia-se sobre o anúncio: antes de dar adesão a Cristo é necessário saber quem ele é e o que propõe, é preciso cons-tatar se merece con�ança, avaliar se vale a pena dirigir a vida sobre valores que ele garante. Em uma palavra: deve-se conhecer “quem é Jesus” (Lc 19,3) e não é possível conhecê-lo sem que exista alguém que – como fez Paulo – o anuncie.

Paulo foi “um instrumento escolhido” para alicerçar este fun-damento da fé. Escrevendo aos coríntios, ele coloca bem claro o ministério ao qual foi chamado: “Cristo não me enviou para batizar, mas pregar o Evangelho” (1Cor 1,17). É o mesmo ministério que atu-almente desempenham todos aqueles que – de maneiras diversas – anunciam a Palavra.

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A “religião” (e o Batismo é uma prática religiosa) não é identi�ca-da nem confundida com a fé. A “religião” vem depois que se pronunciou o “sim” a Cristo. Só “depois de ter crido” é que se pode celebrar – em comunhão com os irmãos da comunidade – a própria fé. Eis pois o mo-mento do Batismo: primeiro e decisivo sinal da adesão a Cristo.

Temos re�etido su�cientemente sobre a responsabilidade que pesa sobre nós crentes? Do nosso anúncio depende a salvação dos irmãos.

Os sinais da presença do Reino (vv. 17-18)

Na última parte do Evangelho de hoje são elencados cinco sinais que acompanham as pessoas que creem. Alguns desses sinais são tão estranhos que nem mesmo Jesus os executou.

Alguém pode pensar que esses prodígios aconteciam nos tem-pos antigos, depois, aos poucos, foram desaparecendo. Mas nesse caso, justamente, perguntamo-nos: se são indispensáveis para mos-trar a todos os homens que Jesus continua acompanhando seus discípulos, por que não se realizam atualmente?

O evangelista Marcos sabe que está falando a pessoas que com-preendem a linguagem da Bíblia e as referências aos textos do Antigo Testamento.

“Sobre serpente e víbora andarás, calcarás aos pés o leão e o dragão” – promete o salmista ao justo (Sl 90,13). Para descrever os tempos do Messias e o mundo novo, Isaías emprega imagens seme-lhantes: “Então o lobo será hóspede do cordeiro, a pantera se deitará ao pé do cabrito. (...) A criança de peito brincará junto à toca da ví-bora, e o menino desmamado meterá a mão na caverna da áspide” (Is 11,6-8). O profeta se refere às lutas e às inimizades que existem no mundo, não certamente à mudança da natureza agressiva e perigosa dos animais. Por intermédio da imagem dos animais ele promete que, no reino de Deus, não haverá mais lugar para hostilidades, rivalida-des, agressões recíprocas entre os homens.

As pessoas da atualidade têm o direito de exigir que o anúncio do Evangelho seja acompanhado por sinais, por obras concretas que mostrem, de maneira irrefutável, que o mundo novo surgiu. Se nosso anúncio não se revela capaz de transformar os corações, a sociedade, o mundo inteiro, se não chega a pôr um �m às contendas, às guerras, às violências, se não constrói a paz, como poderão os homens ser convencidos a crer?

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Tema da festa:

AI DE MIM SE NÃO PREGO O Evangelho!

“Anunciar o Evangelho não é glória para mim; é uma obriga-ção que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho!” (1Cor 9,16).

Essa frase que Paulo dirige aos cristãos de Corinto é a síntese do seu ministério. Ele correspondeu à ordem do Ressuscitado: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15).

Paulo entendeu que a salvação do homem deriva da fé e do Batismo – como diz o Evangelho de hoje – e compreendeu também que a fé nasce do anúncio. Por isso, dedicou toda a sua vida à pre-gação e, por fim, pôde exclamar: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia, e não somente a mim, mas a todos aqueles que aguardam com amor a sua apari-ção” (2Tm 4,7-8).

A primeira leitura narra que Paulo de perseguidor tornou-se apóstolo. O que o transformou foi o encontro com o Ressuscitado, en-contro que, com modalidades diferentes, se realiza para cada um de nós.

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Apresentação do Senhor

(2 de fevereiro)

Primeira leitura (Ml 3,1-4)

1 Vou mandar o meu mensageiro para preparar o meu caminho. E imediatamente virá ao seu templo o Senhor que buscais, o anjo da aliança que desejais. Ei-lo que vem – diz o Senhor dos exércitos. 2 Quem estará seguro no dia de sua vinda? Quem poderá resistir quando ele aparecer? Porque ele é como o fogo do fundidor, como a lixívia dos lavadeiros. 3 Sentar-se-á para fundir e puri�car a prata; puri�cará os �lhos de Levi e os re�nará, como se re�nam o ouro e a prata; então eles serão para o Senhor aqueles que apresentarão ao Senhor as ofertas como convém. 4 E a oblação de Judá e de Jeru-salém será agradável ao Senhor, como nos anos antigos, como nos anos de outrora.

A semana é composta de 168 horas: uma ou duas dedicamos a Deus (missa, orações, cerimônias, ritos, devoções...), as outras �cam para nós, para cuidarmos dos nossos interesses, para cumprirmos as nossas tarefas.

A religião é o conjunto daquelas práticas que, com maior ou menor �delidade, cumprimos para manter um relacionamento ami-gável com o Senhor. Talvez pensemos que seja necessário dar-lhe alguma coisa para torná-lo benigno nos nossos encontros, para dis-tinguir-nos com seus favores, para obter dele as suas bênçãos, para aplacá-lo, para afastar de nós os seus castigos. Mas é isto o que Deus espera de nós?

Também Israel praticou uma religião: ofereceu sacrifícios e in-censo no templo de Jerusalém, fez jejuns, elevou aos céus cantos e orações e, no entanto – pelos lábios dos profetas –, o Senhor declarou que não é esse o culto que lhe é agradável.

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Um exemplo da condenação desse relacionamento atrapalhado com Deus está no livro de Malaquias. Esse profeta viveu aproximada-mente 450 anos antes de Cristo, em um momento muito difícil: o povo entregava-se à dissolução moral, não praticava o amor e a justiça, os ricos aproveitavam-se dos pobres, os sacerdotes se comportavam de maneira indigna, ninguém mais se importava com a realização das promessas do Senhor.

Os versículos que antecedem imediatamente os versículos da leitura de hoje resumem, assim, a opinião do povo desalentado e de-siludido: não existe diferença entre bons e maus, “aquele que faz o mal é bem visto aos olhos do Senhor” (Ml 2,17c). Há até quem excla-me com ceticismo: “Onde está Deus, para julgar?” (Ml 2,17d).

A esta pergunta provocadora, o Senhor responde com uma so-lene promessa: “Vou mandar o meu mensageiro para preparar o meu caminho” (Ml 3,1). E continua falando que, depois da vinda desse mensageiro, aparecerá um outro personagem misterioso, chamado “Senhor”, “Anjo da aliança”, “Senhor dos exércitos”. E “virá ao seu templo o Senhor” (v. 1).

Que virá fazer esse personagem? A sequência da profecia no-lo diz: ele puri�cará a religião de Israel. Atuará como “o fogo do fundi-dor” e a “lixívia dos lavadeiros” (v. 2). O fogo destrói as escórias e faz aparecer, belos e reluzentes, os metais preciosos. Também a lixívia queima, causa irritação se penetra em um ferimento, mas desinfeta, puri�ca e limpa os tecidos e as manchas das roupas.

Essa profecia cumpre-se com a vinda de Jesus. Ele entrou no templo para puri�cá-lo: ele pronunciou um “basta” à religião dos ritos religiosos reduzidos simplesmente a práticas exteriores e introduziu a única religião agradável a Deus, a religião do coração e do amor às outras pessoas. A religião que não precisa de templos (Jo 4,21-24) pode ser praticada em qualquer lugar.

Têm ainda atualmente sentido as nossas igrejas? Jesus anulou todos os ritos? As nossas práticas religiosas são inúteis?

Jesus eliminou para sempre a religião inventada pelos homens, aquela que não é expressão de fé e de entrega a Deus e que se reduz a gestos quase mágicos. Mas instituiu o seu rito religioso – a Eucaristia – para exprimir a plena adesão a ele e à sua proposta de vida.

Talvez a nossa prática religiosa tenha ainda necessidade de uma puri�cação com o fogo e com a lixívia. O pão eucarístico, partido e

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partilhado nas nossas comunidades, nem sempre é sinal da nossa vida doada generosamente ao irmão. Com frequência ainda se reduz a um simples rito que não transforma o nosso coração, que nos dei-xa conviver tranquilos com nosso egoísmo, nossas paixões, nossas misérias, nossas in�delidades. Provavelmente para nós ainda não se cumpriu a profecia: nosso templo ainda é impuro, não permitimos ao “Anjo da aliança”, ao “Senhor dos exércitos”, a Jesus que entre com seu “fogo” e com sua “lixívia”, isto é, com seu Espírito.

Segunda leitura (Hb 2,14-18) 14 Porquanto os �lhos participam da mesma natureza, da mesma car-ne e do sangue, também ele participou, a �m de destruir pela morte aquele que tinha o império da morte, isto é, o demônio, 15 e libertar aqueles que, pelo medo da morte, estavam toda a vida sujeitos a uma verdadeira escravidão. 16 Veio em socorro, não dos anjos, e sim da raça de Abraão; 17 e por isso convinha que ele se tornasse em tudo semelhante aos seus irmãos, para ser um pontí�ce compassivo e �el no serviço de Deus, capaz de expiar os pecados do povo. 18 De fato, por ter ele mesmo suportado tribulações, está em condição de vir em auxílio dos que são atribulados.

Aconteceu, em um dado momento de nossa vida, encontrar-nos com dois tipos de médico. Um visitou-nos de maneira pro�ssional e um tanto apressada: examinou os sintomas da doença, dirigiu-nos algumas rápidas perguntas, depois emitiu, sem emoção alguma, um parecer, e quase com indiferença deu o diagnóstico e nos entregou uma receita. Não fez parte das nossas ansiedades, não compartilhou das nossas preocupações.

Um outro médico, ao invés, nos recebeu com um sorriso, ou-viu-nos com atenção, interessou-se, antes de tudo, por nós mais do que pela nossa doença e, por �m, disse-nos: – Não se preocupe, também eu tive o mesmo problema, e o superei; sei quanto se so-fre, quando se vive apavorado, mas tenha coragem, verá que tudo se resolverá.

Esse segundo médico inspira-nos con�ança. Infunde esperança porque, além de desenvolver competentemente seu trabalho, viveu a mesma experiência.

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O Filho de Deus não permaneceu no céu para indicar-nos, do alto, o caminho que conduz à libertação, para sugerir-nos, de ma-neira impessoal, os comportamentos a seguir. Não nos explicou detalhadamente em palavras como se resiste à tentação; deixou-se sim envolver pessoalmente nos nossos dramas, nas nossas dúvidas, nas nossas angústias, nos nossos problemas.

A passagem da carta aos Hebreus, que hoje nos é proposta, diz--nos: ele não se empenhou em auxiliar ou socorrer os anjos, mas tomou a si a tarefa de cuidar dos homens. Por isso tornou-se em tudo seme-lhante a nós e, exatamente por ter sido posto à prova e ter sofrido pessoalmente, está em condições de vir em socorro daqueles que es-tão sendo provados (vv. 17-18). Passou primeiramente pela morte e mostrou que a morte não é uma queda no nada nem o �m de tudo, mas sim o nascimento para uma vida com Deus, uma entrada na condição bem-aventurada dos ressuscitados. Dessa maneira libertou-nos do pa-vor da morte (vv. 14-15), pavor que nos torna escravos, apegados aos bens, mesquinhos, incapazes de amar e de doar a própria vida.

Evangelho (Lc 2,22-40)

22 Concluídos os dias da sua purificação segundo a lei de Moisés, levaram--no a Jerusalém para o apresentar ao Senhor, 23 conforme o que está escrito na lei do Senhor: “Todo primogênito do sexo masculino será consagrado ao Senhor” (Ex 13,2); 24 e para oferecerem o sacrifício prescrito pela lei do Senhor, um par de rolas ou dois pombinhos. 25 Ora, havia em Jerusalém um homem chamado Simeão. Este homem, jus-to e piedoso, esperava a consolação de Israel, e o Espírito Santo estava nele. 22 Fora-lhe revelado pelo Espírito Santo que não morreria sem primeiro ver o Cristo do Senhor. 27 Impelido pelo Espírito Santo, foi ao templo. E tendo os pais apresentado o menino Jesus, para cumprirem a respeito dele os precei-tos da lei, 28 tomou-o em seus braços e louvou a Deus nestes termos: 29 “Agora, Senhor, deixai o vosso servo ir em paz, segundo a vossa palavra. 30 Porque os meus olhos viram a vossa salvação 31 que prepa-rastes diante de todos os povos, 32 como luz para iluminar as nações e para a glória do vosso povo de Israel”. 33 Seu pai e sua mãe estavam admirados das coisas que dele se diziam. 34 Simeão abençoou-os e disse a Maria, sua mãe: “Eis que este menino está destinado a ser uma causa de queda e de soerguimento para muitos

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homens em Israel, e a ser um sinal que provocará contradições, 35 a fim de serem revelados os pensamentos de muitos corações. E uma espada transpassará a tua alma”. 36 Havia também uma profetisa chamada Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser; era de idade avançada. 37 Depois de ter vivido sete anos com seu marido desde a sua virgindade, ficara viúva, e agora com oitenta e quatro anos não se apartava do templo, servindo a Deus noite e dia em jejum e orações. 38 Chegando ela à mesma hora, louvava a Deus e fala-va de Jesus a todos aqueles que em Jerusalém esperavam a libertação. 39 Após terem observado tudo segundo a lei do Senhor, voltaram para a Galileia, à sua cidade de Nazaré. 40 O menino ia crescendo e se for-tificava; estava cheio de sabedoria, e a graça de Deus repousava nele.

Israel vivia na expectativa de que se cumprisse a profecia de Malaquias, que encontramos na primeira leitura deste dia. Aguardava o dia tremendo em que o Senhor entraria no templo, em toda a sua glória e majestade, para julgar e condenar quem não observava a lei.

Aguardava-se uma manifestação de força de Deus contra os seus inimigos e, ao invés – eis a surpresa –, no templo entra um menino, frágil e indefeso, tomado pelos braços de um homem. Esperava-se “o fogo e a lixívia” que queima os maus, e, ao invés, o profeta Simeão proclama o menino “luz” que iluminará todos os povos, salvador dos �lhos de Abraão e dos pagãos, dos bons e dos maus.

Dividimos a passagem em quatro trechos. 1. No primeiro (vv. 22-24) é narrado o episódio da apresentação de

Jesus no templo. A lei judaica prescrevia que todos os primogênitos, tanto os dos homens quanto os dos animais, seriam oferecidos ao Senhor (Ex 13,1-16). No entanto, como as crianças não podiam ser sacri�ca-das, era preciso serem resgatadas; por isso os pais levavam aos sacerdotes do templo um animal puro para que fosse imolado no lugar do �lho. Os ricos ofereciam um cordeiro, os pobres ofere-ciam dois pombinhos ou rolinhas. Os pais de Jesus submetem-se a essa disposição, e Lucas não perde a oportunidade de salientar que a família de Nazaré per-tence à categoria dos pobres: não está em condições de oferecer um cordeiro. Este é um tema muito apreciado pelo evangelista Lucas, mas existe um outro que, no trecho de hoje, é repetido ao menos cinco vezes (vv. 22.23.24.27.39): a observância escrupulo-

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sa, pela Sagrada Família, de todas as prescrições da lei do Senhor. Desde os primeiros anos de sua vida, Jesus cumpriu �elmente toda a vontade do Pai, vontade que se encontra expressa nas Sagradas Escrituras. Esta primeira parte do Evangelho de hoje contém um ensinamento muito importante para nós e para nossas famílias. Os progenitores preocupam-se exatamente em proporcionar educação, instru-ção, trabalho e boa posição social aos seus �lhos, mas isto não é su�ciente. Têm uma outra missão, muito mais importante, a desen-volver: precisam consagrar seus �lhos ao Senhor desde o início de suas vidas. Como? Não se trata de submetê-los a cerimônias parti-culares, mas de educá-los para uma vida cristã �el e coerente com tudo aquilo que está escrito no Evangelho. Muitos pais estão convencidos de ter educado os �lhos na fé por-que os obrigaram a ser �éis a todas as práticas religiosas. Essas imposições externas não bastam; antes, frequentemente, se não forem sustentadas em convicções profundas, terminam por ser re-jeitadas quando se chega à idade adulta. Educar para a fé é muito mais que ensinar práticas religiosas: signi�ca introduzir no coração dos próprios �lhos o amor pelo “caminho” do amor e da doação de si mesmos, signi�ca entregá-los ao Senhor para que ele os transfor-me em construtores da paz para todos os povos. Sabemos que as crianças aprendem com os olhos mais do que com o ouvido. A vida cristã dos pais é o melhor método de ensinar catequese aos �lhos. Se os pais rezam em casa, os �lhos aprendem a rezar com eles; se os pais leem a Bíblia, os �lhos aprendem a procurar a luz para sua vida na palavra de Deus; se os pais participam �elmente dos encontros da comunidade Cristã, os �lhos seguem-nos e tornam--se cristãos empenhados; se os pais praticam o amor, o perdão, a generosidade para com os irmãos, os �lhos os imitam. É assim que os pais cristãos da atualidade são chamados a “consagrar” seus �lhos ao Senhor.

2. A segunda parte (vv. 25-35) constitui o centro do Evangelho de hoje. Nela é apresentado Simão, um ancião que faz um gesto muito signi�cativo: toma o menino dos braços dos pais e o oferece a to-dos os homens. Simeão é o símbolo de todo o povo de Israel que há tantos séculos espera o Messias. Ele mostra que Jesus não pertence somente a

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seu povo. Diz: ele está destinado a trazer a salvação a todos os povos e a ser luz para todas as nações (vv. 30-32). Quando começam a envelhecer, algumas pessoas tornam-se tris-tes, neurastênicas, intratáveis. Às vezes sua insatisfação é causada por doença, pelo declínio das forças, mas outras vezes é produto do medo à morte, da incapacidade de cultivar grandes esperanças, grandes ideais. Não sabem preencher de alegria e de sentido os últimos anos que o bom Deus lhes dá e passam o tempo a recla-mar, a lamentar-se, a criticar e a condenar aqueles que, ao invés, se empenham em tornar mais feliz e mais tranquila a própria vida e a vida dos outros. Simeão é um idoso exemplar: é “justo e piedoso”, deixou-se sempre guiar pelo Espírito e compreendeu o sentido de sua exis-tência. Não tem medo da morte, porque viveu na luz da palavra de Deus. Seus dias estão chegando ao �m, mas está feliz e pede ao Senhor que o acolha na sua paz. Não chora os anos da juven-tude, não se lamenta pelo mal que vê em torno de si; conversa com Deus e olha para a frente. Ainda que saiba que, em curto pra-zo, nada mudará no mundo, sente-se feliz porque tem a ventura de contemplar a aurora da salvação; alegra-se como o agricultor que, terminando a semeadura, sonha já com a boa chuva e com a colheita copiosa. Não é egoísta esse Simeão, porque não pensa em si mesmo, nos seus interesses, mas nos outros, na humanida-de inteira, na alegria que todos provarão quando o reino de Deus for instaurado. Questionemo-nos: os idosos das nossas comunidades comunicam aos jovens a mesma alegria, o mesmo otimismo, a mesma espe-rança em um futuro melhor? Cultivam o mesmo diálogo constante com o Senhor? Simeão pronuncia uma segunda profecia: desta vez dirigida a Maria. Diz-lhe: Jesus será um sinal de contradição (vv. 34-35). A imagem da espada que transpassará a alma tem sido interpretada, às vezes, como um anúncio do drama de Maria aos pés da cruz. Não é isso. A mãe de Jesus é aqui entendida como símbolo de Is-rael. Na Bíblia este povo é apresentado como uma mulher, como uma mãe que Deus torna fecunda, concebe, dá à luz e oferece ao mundo seu �lho, o Salvador. Que pessoa pode, pois, representar Israel melhor que Maria?

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Simeão percebe o drama desse povo: nele – diz – acontecerá uma profunda e dolorosa laceração. Diante do Messias, o en-viado do céu, alguns abrirão a inteligência e o coração para a salvação, outros fechar-se-ão na recusa, decretando assim sua própria ruína.

3. A terceira parte (vv. 36-38) apresenta uma outra pessoa idosa: a profetisa Ana. Tem oitenta e quatro anos e este número, que é o resultado de 7 x 12, tem um signi�cado simbólico: 7 indica a perfeição, ao passo que 12 representa o povo de Israel. Ana é, portanto, Israel que, jun-tamente com o cumprimento de sua missão, apresenta ao mundo o esperado Messias. Essa profetisa pertence à tribo de Aser, a menor, a mais insigni�-cante de todas as tribos de Israel; efetivamente, na bênção que, antes de morrer, Moisés pronuncia sobre seu povo, Aser aparece por último (Dt 33,24). Se Lucas salienta o fato de que Ana pertence a essa tribo é para mostrar, uma vez mais, que os pobres são os primeiros a reconhecer, em Jesus, o Salvador. Ana foi uma mulher que se conservou �el ao marido a ponto de não se casar novamente. Sua escolha tem para o evangelista um signi�cado teológico profundo: como o idoso Simeão, ela é símbolo do “resto” �el do povo de Israel, a esposa do Senhor. Durante sua vida, Ana teve um só amor, depois viveu no luto de sua viuvez até o dia em que reconheceu em Jesus o seu Senhor. Então novamente se regozijou, como a esposa que reencontra seu esposo. Ana não se afastava do templo do Senhor (v. 37). É essa a casa do esposo. Não anda à procura de amantes, não tem tempo a perder, não vai de casa em casa para bater papo em conversa �ada, em futilidades, em bisbilhotices, para falar mal dos ou-tros. Ela sabe que os dias de sua vida são preciosos e devem ser vividos em intimidade com o Senhor e a serviço da comunida-de. As pessoas idosas não se sentem inúteis quando vivem na expectativa da vinda do Senhor: têm sempre tantos serviços hu-mildes, mas preciosos, a fazer pelos irmãos e, sobretudo, como a idosa profetisa, têm o dever de falar de Jesus a todos aqueles que estão à procura de sentido e de uma perspectiva jubilosa para a própria vida.

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4. O trecho evangélico se conclui (vv. 39-40) com o retorno da Sagrada Família para Nazaré e com a notícia referente ao desenvolvimento de Jesus. Ele não se diferencia das crianças nazaretanas a não ser pelo fato de que “está cheio de sabedoria e a graça de Deus está sobre ele”. Mesmo sendo Deus, aceitou em tudo a condição humana e dela compartilhou, desde a infância, todas as experiências dos homens.

Tema da festa: CHEGOU O TEMPO DA “PURIFICAÇÃO”

Passaram quarenta dias desde o Natal, e a Igreja, com saudade, novamente nos recorda o grande mistério que já celebramos. E o faz para dizer-nos que o Senhor, entrando no mundo, levou a efeito a nos-sa “purificação”. Nós nos sentíamos “como homens impuros; nossas boas ações são como roupa manchada; como folhas todos nós murcha-mos, levados por nossos pecados como folhas pelo vento” (Is 64,6). Deus não nos abandonou nessa situação.

Na linguagem bíblica, a impureza indica o estado de morte e o pecado é a expressão mais dramática da impureza, porque é uma escolha contrária à vida.

Como reage Deus diante da impureza do homem? A essa pergunta respondem as leituras de hoje. Ele não se espan-

ta, não se enraivece, não sente desprezo, não se afasta. Vem ao nosso encontro, não para nos censurar, para humilhar-nos, para castigar-nos. Toma como sua a nossa condição e, com sua santidade, purifica-nos.

Na primeira leitura, Malaquias promete a vinda do Senhor. O Evangelho mostra a realização dessa vinda. De acordo com

a lei de Israel (Lv 12) só a parturiente devia submeter-se aos ritos da purificação. O Evangelho de hoje fala, no entanto, da “purificação de-les” (v. 22). Vai ao templo toda a sagrada Família e também Jesus se faz impuro para acompanhar-nos ao local em que Deus nos dá a pureza.

A segunda leitura desenvolve este tema. O Filho de Deus quis tornar-se em tudo participante da nossa vida. Por isso é que pode aju-dar-nos em qualquer provação.

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São José (19 de março)

Primeira leitura (2Sm 7,4-5.12-14.16)

4 Mas a palavra do Senhor foi dirigida a Natã, naquela mesma noite, e dizia: 5 “Vai e dize ao meu servo Davi: eis o que diz o Senhor: (...)12 Quando chegar o �m de teus dias e repousares com os teus pais, então suscitarei depois de ti a tua posteridade, aquele que sairá de tuas entranhas, e �rmarei o seu reino. 13 Ele me construirá um templo e �rmarei para sempre o seu trono real. 14 Eu serei para ele um pai e ele será para mim um �lho. (...)16 Tua casa e teu reino estão estabelecidos para sempre diante de mim, e o teu trono está �rme para sempre”.

Entre as páginas mais conhecidas do Antigo Testamento estão, por certo, aquelas em que é narrada a história comovente de José vendido por seus irmãos (Gn 37–48). José, o sonhador, a vítima da inveja e do ciúme, o escravo que se torna o salvador do seu povo. O autor do livro do Eclesiástico conclui a apresentação dos gran-des personagens de Israel dizendo: “Ninguém nasceu no mundo (...) comparável a José, nascido para ser o príncipe de seus irmãos e o sustentáculo de sua raça” (Eclo 49,16.17).

No Antigo Testamento se diz com frequência que Deus mani-festa os seus pensamentos aos homens por meio dos sonhos e, no Evangelho de Mateus, também José, o esposo de Maria tem sonhos re-veladores (Mt 1,20-24; 2,13-19). As promessas de Deus e seus projetos são tão distantes dos nossos, são tão extraordinários que aparecem como sonhos irrealizáveis. Exige-se uma grande fé para crer que o sonho se realizará.

Procuremos enquadrar as leituras das festas de hoje na pers-pectiva dos sonhos de Deus.

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Comecemos com o primeiro sonho – aquele de Davi – que nos é apresentado nesta primeira leitura.

Quase no �m da sua vida, Davi levanta uma questão: quem ocupará meu trono quando eu me reunir aos meus pais? Será um dos meus �lhos ou o poder acabará indo parar nas mãos de um usurpador?

Dirige-se a Natã – o vidente da corte – e lhe con�a seu problema, suas ansiedades, sua perplexidade.

Recebe uma resposta surpreendente: teu trono será estável para sempre; teu reino será eterno, o cetro permanecerá para sempre nas mãos de um �lho teu. É uma promessa inaudita.

No mundo existem surgimentos e desaparecimentos de muitas dinastias, tantas famílias nobres governaram durante centenas e até milhares de anos, mas depois desapareceram. O trono de Davi, ao invés, jamais vacilará, até o �m dos tempos.

Um dia, um triste dia de julho do ano 587 a.C., aconteceu um fato dramático: depois de 400 anos de reinado, também a dinastia de Davi termina. Para Israel é um drama não somente político e militar, mas sobretudo religioso: foram abalados os fundamentos da própria fé. O Senhor – perguntamo-nos – talvez tenha se esque-cido das suas promessas? Depois de um período de desânimo o povo entendeu: as palavras de Deus são irrevogáveis. Não resta senão aguardar um novo, um grande rei, descendente de Davi, que tornará Israel poderoso e que reinará para sempre. Começa aí a expectativa sobre o Messias.

A realização da profecia superou muitíssimo quanto Davi po-dia esperar e quanto o próprio Natã entendia. O rei e seu profeta pensavam em um reino terreno, Deus, ao invés, cultivava um sonho muitíssimo maior: o sonho da salvação que se realizaria em Jesus, uma vergôntea brotada da árvore já seca e sem vida da estirpe de Davi. Veremos no Evangelho de hoje como se cumpriu a promessa.

Quando estamos em di�culdade, nos momentos de medo, quando tememos que possa ser destruído tudo o que com trabalho e canseira tivermos construído, também nós, como Davi, voltamo--nos para o Senhor. Pedimos-lhe que apoie os nossos programas, que dê cumprimento aos nossos sonhos. Ele responde sempre indo além das nossas expectativas. Ouve nossas orações e as aten-de... mas sempre do seu modo. Não se adapta aos nossos projetos

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mesquinhos, transforma-os, substitui-os pelos seus e pede-nos que con�emos. Israel esperava um rei forte, dominador, e o Senhor respon-deu com uma criança frágil, pobre, indefesa. São as surpresas de Deus. Bem-aventurados aqueles que, como Maria e José, o entendem e o aco-lhem!

Segunda leitura (Rm 4,13.16-18.22) 13 Com efeito, não foi em virtude da lei que a promessa de herdar o mun-do foi feita a Abraão ou à sua posteridade, mas em virtude da justiça da fé. (...) 16 Logo, é pela fé que alguém se torna herdeiro. Portanto, gratui-tamente; e a promessa é assegurada a toda a posteridade de Abraão, não somente aos que procedem da lei, mas também aos que possuem a fé de Abraão, que é pai de todos nós. 17 Em verdade, está escrito: “Eu te constituí pai de muitas nações” (Gn 17,5); (nosso pai, portanto) diante dos olhos daquele em quem acreditou, o Deus que dá vida aos mortos e chama à existência as coisas que estão no nada. 18 Esperando, contra toda a esperança, Abraão teve fé e se tornou pai de muitas nações, se-gundo o que lhe fora dito: “Assim será a tua descendência” (Gn 15,5). (...) 22 Eis por que sua fé lhe foi contada como justiça.

Também Abraão é depositário de uma promessa que, de acor-do com os critérios dos homens, é considerada um sonho. Tanto ele quanto Sara são de idade avançada e incapazes de gerar, e no entan-to Deus assegura-lhes uma descendência numerosa como as estrelas do céu e como os grãos de areia que se encontram na praia do mar. Diante da perplexidade de Sara, que incrédula se ri, Deus recorda a Abraão: “Será isso, porventura, uma coisa muito difícil para o Se-nhor?” (Gn 18,14). São as palavras que o anjo dirá a Maria: “A Deus nenhuma coisa é impossível” (Lc 1,37).

Abraão con�a no Senhor, crê contra toda evidência que ele é ca-paz de realizar seus sonhos: do seio esvaído de Sara conseguirá fazer brotar a vida e a um arameu errante sem norte será dada uma terra.

Que obra boa praticou Abraão para merecer a bênção de Deus? Nenhuma. Seu único “mérito” foi a fé incondicional que teve.

Acreditou no dom gratuito do Senhor. Na passagem da carta aos Romanos, meditada na leitura de

hoje, Paulo responde à pergunta: quem pertence à descendência de Abraão? Quem são os herdeiros da promessa divina?

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Os israelitas acreditavam ser o único povo eleito e privilegiado. Mas Paulo esclarece: não é o fato de poder ostentar um liame de san-gue com a estirpe de Abraão que dá direito às bênçãos do Senhor, mas a fé semelhante à dele. Todo homem, qualquer que seja o povo ao qual pertença, torna-se �lho de Abraão se tem a coragem de con�ar em Deus como ele o fez. É nesse sentido que, já no livro Gênesis, Deus diz a Abraão: “Farei de ti o pai de uma multidão de povos” (Gn 17,5).

José, o esposo de Maria, é um descendente de Abraão segundo a carne, mas não é isso que o faz grande, e sim a sua fé. Como seu antepassado (Gn 15,5), também ele recebe, durante a noite, o anúncio do nascimento extraordinário de um �lho. Não vê ainda com clareza qual seja o sonho de Deus, mas con�a, acredita, torna-se disponível a levar a cumprimento seus desígnios, mesmo que permaneçam ainda envoltos no mistério. Assim José torna-se �lho de Abraão também segundo a fé.

Na nossa vida existem momentos de escuridão, momentos nos quais �camos envolvidos pelas trevas: são os sinais da dor, do abandono, da solidão, da desilusão, da derrota, da velhice sem pers-pectivas e talvez acompanhada de saudades e de remorsos. São os sinais em que vemos ruir todos os nossos projetos e as nossas expec-tativas. Somos capazes – como Abraão e como José – de continuar a crer que, ainda que se destruam nossas esperanças, a realização dos sonhos de Deus continua a acontecer?

Evangelho (Mt 1,16.18-21.24)

16 Jacó gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é cha-mado Cristo. (...) 18 Eis como nasceu Jesus Cristo: Maria, sua mãe, estava desposada com José. Antes de coabitarem, aconteceu que ela concebeu por virtude do Espírito Santo. 19 José, seu esposo, que era homem de bem, não querendo difamá-la resolveu rejeitá-la secreta-mente. 20 Enquanto assim pensava, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: “José, �lho de Davi, não temas rece-ber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. (...)21 Ela dará à luz um �lho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados”. (...)24 Despertando, José fez como o anjo do Senhor lhe havia mandado e recebeu em sua casa sua esposa.

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O Evangelho de Mateus começa com uma longa lista de nomes: é constituída pelas gerações que se sucederam de Abraão até Cristo (Mt 1,1-17). São citados os patriarcas, Davi e seus descendentes, que ascenderam ao trono depois dele em Jerusalém e, por �m, alguns perso-nagens menos conhecidos. A longa genealogia conclui-se assim: “Matã gerou Jacó. Jacó gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado Cristo” (vv. 15-16). Eis a quem queria chegar a longa lista de nomes: a Jesus de Nazaré. O objetivo era mostrar que ele pertencia à família de Davi, àquela família à qual Deus prometera um reino eterno.

Depois da genealogia, o Evangelho de Mateus continua com a narrativa da anunciação a José (Mt 1,18-24). Diferentemente de Lu-cas, que fala da anunciação do anjo a Maria (Lc 1,26-38), Mateus põe em destaque a �gura de José. É por meio da paternidade de José que Jesus passa a fazer parte da família de Davi.

Para colher a mensagem da passagem evangélica, é necessário antes de tudo esclarecer alguns elementos e responder a algumas in-terrogações que suscitam.

1. O matrimônio no tempo de Jesus

O matrimônio entre os judeus ocorria em duas etapas. A primeira consistia em um contrato �rmado pelos dois nubentes, pelos pais e por duas testemunhas. Depois dessa assinatura, o rapaz e a moça já eram ma-rido e mulher, todavia não iam imediatamente viver juntos. Geralmente deixavam passar ainda um ano durante o qual não podiam encontrar-se.

Esse intervalo servia às duas famílias para conhecerem-se melhor e para que esposo e esposa amadurecessem um pouco, visto que, naquele tempo, costumavam casar-se muito jovens (12 a 13 anos para a moça, 15 a 16 para o rapaz... e esta deveria ser a idade de Maria e de José).

Passado o ano de espera, era organizada uma grande festa, a espo-sa era conduzida à casa do marido e os dois começavam a viver juntos.

É durante esse intervalo que acontece a anunciação a Maria e sua gravidez por obra do Espírito Santo.

2. Surgem espontaneamente algumas perguntas

O episódio, tal como é narrado por Mateus, levanta algumas in-terrogações: Como podia José suspeitar que Maria lhe tivesse sido in�el? Por que queria mandá-la embora? Em que sentido era “justo”?

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Talvez porque tinha decidido separar-se de Maria? Mas não havia lei alguma que o obrigasse a divorciar-se da esposa in�el... e isso não te-ria sido um gesto decoroso, mesmo que feito em segredo. Maria não teria dito nada a José de quanto tinha acontecido? Ou, talvez, se lhe tivesse dito, por que José não acreditou?

A essas perguntas qualquer pessoa responderia assim: Maria deve ter dito ao marido que o �lho que ela estava esperando vinha de Deus; não teria tido motivo algum para manter segredo sobre um fato que ele tinha o direito de saber.

A dúvida de José então não se prenderia à �delidade ou in�-delidade da esposa, mas sobre o seu papel neste acontecimento extraordinário. Como poderia dar o nome a um �lho que não era seu? Não seria essa uma intromissão indevida no projeto de Deus? Não sabendo qual atitude tomar, José pensa em �car fora desse assunto e aguardar o desenvolvimento dos acontecimentos. Enquanto ele está meditando sobre essas coisas, o Senhor lhe revela seu plano: ele dará o nome a Jesus, porque assim o �lho de Maria passa a ter direito na família de Davi.

Essa explicação é interessante, mas limita-se a ser uma suposi-ção à qual o texto evangélico dá um muito frágil fundamento.

Minha opinião é que é melhor não tentar encontrar no Evangelho respostas a perguntas (mesmo que legítimas) que nós costumamos fazer, mas que para Mateus não interessavam. Ele não estava preocu-pado em dar-nos informações que satis�zessem nossa curiosidade, mas quer fazer-nos entender “quem é” esse Jesus que pede nossa adesão à sua proposta de vida.

3. A mensagem central do trecho

É a realização de um sonho, o sonho de Deus. Pelos lábios de Natã o Senhor prometeu a Davi um reino eterno.

Durante quatrocentos anos Israel passou pela experiência da monar-quia. A dinastia de Davi teve momentos gloriosos, mas, no conjunto, o balanço que a Bíblia faz de todos os reis dessa família é desastro-so. Salvo algumas raras e nobres exceções, eles foram in�éis a Deus, não escutaram os profetas e conduziram o povo à ruína. A conclusão dramática do reino aconteceu no ano 587 a.C. quando Jerusalém foi destruída e o último descendente de Davi foi deportado para a Babi-lônia junto com seu povo.

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É pois o �m de tudo? É a destruição de todas as esperanças? Al-guns esperam uma restauração da dinastia de Davi, outros aguardam a vinda de um messias. Em todos existe a convicção de que apenas o Senhor poderá reerguer Israel. Mas como? Deveria tomar pessoalmen-te em suas mãos o destino de seu povo, ele mesmo proclamando-se rei em substituição aos indignos soberanos precedentes. Assim co-meça a espera do reino de Deus.

Já nos primeiros livros da Bíblia encontra-se esta promessa: “É o Senhor quem será o vosso rei” (Jz 8,23), “O Senhor é rei para sem-pre, sem �m!” (Ex 15,18).

Nos profetas Deus insiste: “É com mão forte, com braço esten-dido, no desencadeamento do meu furor, que eu reinarei sobre vós” (Ez 20,33). “Ao Senhor pertencerá a realeza” – a�rma Abdias (Ab 21).

No tempo de Jesus, os judeus piedosos, oprimidos pelos roma-nos, oravam assim: “Tu, Senhor, elegeste Davi como rei de Israel e, quanto à sua descendência, juraste, pela eternidade, que o seu reino não terá �m diante de ti... Portanto, Senhor, faze surgir esse rei, �lho de Davi, na época que tu, ó Deus, escolheste, a �m de que reine sobre Israel teu servo. Dá-lhe força, para que abata os poderosos injustos, puri�que Jerusalém dos pagãos que a arrasam... quebrante a arrogân-cia do pecador como vaso de argila”.

Se nos recordarmos dessa expectativa – cultivada durante sé-culos pelos israelitas – estaremos em condições de compreender a carga explosiva da primeira frase, aparentemente banal, do Evange-lho de hoje: o tempo da espera terminou, chegou o reino de Deus, Jesus é �lho de Davi destinado a dar início ao reino sem �m.

4. A vocação de José

José é chamado em sonho, é como que convidado a entrar no sonho de Deus e desempenhar um papel importante na sua atuação. Foram-lhe con�adas duas tarefas: acolher Maria como sua esposa (v. 20) e dar um nome ao �lho que nascerá dela (v. 21).

Maria já pronunciou o seu “sim” a Deus; agora é a vez de José. Ambos veem destruírem-se os projetos que haviam feito juntos: gostam-se muito, programaram uma vida conjugal tranquila e sere-na, querem viver como pessoas piedosas e tementes a Deus como aprenderam nas Sagradas Escrituras, que cada sábado escutam na si-nagoga, mas o Senhor os chama, convida-os a abandonar os próprios

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projetos e a acolher os dele. Como fez o pai Abraão, também eles entregaram-se con�antemente a Deus. Maria pede uma explicação (Lc 1,34), José nem isso pede. É tocante a docilidade desse jovem que, sem dizer uma única palavra, faz seus os desígnios de Deus.

Uma oportunidade, um encontro imprevisto, um alegre acon-tecimento ou uma doença, um bom êxito ou uma falência podem atrapalhar os ritmos regulares de nossa vida. Forçam-nos a rever nos-sos projetos e nos colocam em novos caminhos, às vezes escuros, difíceis, comprometedores. Qual é a nossa reação: revolta, rejeição, desencorajamento ou – como aconteceu com José – plena con�ança no Senhor e abandono à sua vontade?

A segunda tarefa que é con�ada a José é dar um nome ao �lho que nascerá de Maria. Chamá-lo-á Jesus, que signi�ca “libertador”, “salvador” .

Seu povo cultiva grandes esperanças de libertação. Também o historiador romano Tácito recorda essa expectativa febril: “A maior parte dos judeus estava convencida de que estava escrito nos antigos textos dos sacerdotes que, naquela época, o Oriente teria demonstra-do a própria força e que homens partidos da Judeia se tornariam os donos do mundo” (Hist., 5,13).

Conquistar o mundo não é libertá-lo. O anjo do Senhor explica assim a José o nome do menino a quem “Tu porás o nome de Je-sus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados” (v. 21). Não o libertará dos seus adversários políticos, não resolverá seus proble-mas econômicos, não colocará miraculosamente remédio em todas as di�culdades nas quais os homens se debatem, mas curará pela raiz os males do mundo: erradicará do coração do homem a força que o arrasta para o mal.

Essa é a missão sintetizada no nome Jesus. Pronunciar esse nome signi�cará, para os primeiros cristãos, professar a própria fé nele, acolher o “caminho” que ele propõe, crer que ele é “o Senhor” e, portanto, acolher sua salvação (Jo 1,12). Nesse nome as pessoas se farão batizar (At 2,38), farão milagres (Mc 16,l7-18), e por esse nome sentir-se-ão alegres por sofrer insultos e suportar persegui-ções (At 5,41).

Esse nome libertador foi pronunciado pela primeira vez neste mundo por José, foi ele o primeiro a acreditar na força salvadora des-se nome, foi o primeiro a intuir os sonhos de Deus.

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Tema da festa:

JOSÉ, HOMEM QUE SE DEIXOU ENCANTAR PELOS SONHOS DE DEUS

Nossos sonhos são em geral puramente vãs ilusões, são tentati-vas de fugir, mesmo que só por alguns instantes, da dura realidade que nos angustia, nos preocupa, nos inquieta. Os sonhos de Deus não são assim.

A primeira leitura contém o anúncio do reino eterno que Deus decidiu conceder a um “filho de Davi”. Para quem avalia a realidade deste mundo com o olhar desencantado do cético, as palavras de Natã não são outra coisa senão uma divagação: Israel é “o menor de todos os povos” (Dt 7,7), não poderá ter importância alguma na história do mundo. Ao invés, o profeta fala em nome de Deus e a palavra de Deus nunca deixa de produzir seu efeito, realiza-se sempre.

O Evangelho mostra o cumprimento da promessa feita a Davi: um seu descendente realizou, além de toda expectativa, as palavras de Natã.

A segunda leitura nos apresenta Abraão, o homem que res-pondeu com toda a sua confiança em Deus. Como Abraão, também José acreditou na realização dos sonhos de Deus. Abraão e José são a prova de que quem confia em Deus não permanece desiludido.

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Anunciação (25 de março)

Primeira leitura (Is 7,10-14)

10 O Senhor disse ainda a Acaz: 11 “Pede ao Senhor teu Deus um sinal, seja do fundo da habitação dos mortos, seja lá do alto”. 12 Acaz res-pondeu: “De maneira alguma! Não quero pôr o Senhor à prova”. 13 Isaías respondeu: “Ouvi, casa de Davi: Não vos basta fatigar a pa-ciência dos homens? Pretendeis cansar também o meu Deus? 14 Por isso, o próprio Senhor vos dará um sinal: uma virgem conceberá e dará à luz um �lho, e o chamará ‘Deus conosco’”.

O risco nos dá medo, por isso nos precavemos: não entramos em um carro se o chofer está embriagado, se guia de maneira maluca, se é um velho que não enxerga bem ou se é um jovem imprudente. Quando nos é proposto comprar um carro, não veri�camos só o esta-do do veículo, mas queremos saber também se quem o vende é uma pessoa honesta ou um embrulhão.

“Con�ar é bom, não con�ar é melhor”, “o homem descon�a-do morre velho”. Refrões semelhantes encontramo-los em todas as culturas: são um convite a sermos cautelosos, a agir somente quando se está certo. Nem sempre, porém, se pode agir com a má-xima segurança.

Em medida maior ou menor, frequentemente é necessário con-�ar: quem deve submeter-se a uma intervenção cirúrgica informa-se sobre a preparação e sobre as habilidades do médico que o vai ope-rar, mas, por �m, depois de ter feito todas as averiguações, não pode senão entregar-se às mãos dele.

Quem confia está sempre se colocando em risco, em perigo. Também a moça que durante três anos encontrou-se repetidas vezes com seu namorado, que estudou atentamente o modo de

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ele comportar-se, que perscrutou os aspectos mais secretos do seu temperamento e do seu caráter, frequentemente – sabemo--lo muito bem – na vida de casal encontra-se diante de surpresas desagradáveis.

Na primeira leitura desta festa é narrado um episódio que ilus-tra o que o Senhor pede ao homem: ele quer que o homem creia em sua palavra, que con�e nele de maneira cega e sem condições. Esse abandono total e confiante entre os braços de Deus é o que a Bíblia chama de “fé”.

Procuremos entender como se desenvolveram os fatos. Estamos em Jerusalém no ano 733 a.C. O reino de Judá sofreu uma arrasadora derrota e agora precisa enfrentar uma coalizão aguerrida de inimigos. O rei Acaz – um jovem de apenas vinte anos – está temeroso de ser vencido. É um descendente de Davi e pertence àquela nobre família à qual o profeta Natã prometeu um reino eterno (2Sm 7,14-16).

Deveria con�ar em Deus e na promessa divina, mas não con�a; con�a mais nos cálculos humanos, na astúcia, nos ardis, nas coliga-ções políticas em vez de con�ar no Senhor. Conta com um exército muito fraco, sabe que não pode resistir ao assalto dos inimigos e, então, o que é que faz? Pede ajuda a uma nação muito poderosa, a Assíria.

Assim que teve conhecimento dessa escolha insensata, Isaías percebe os perigos que essa aliança acarreta: os assírios poderosos virão – certamente – em ajuda do pequeno reino de Judá, mas o con-duzirão à apostasia. Aliar-se com eles implica adorar seus deuses, aceitar os cultos pagãos e suas práticas imorais.

O profeta está preocupado e decide ir falar com o rei. Encontra-o junto da fonte superior, ao norte de Jerusalém (Is 7,3). Está apavo-rado e está procurando organizar as defesas da cidade. Diz-lhe: não existe razão para ter medo; tem con�ança nas promessas de Deus, abandona os assírios. Os teus inimigos logo serão derrotados e a tua família continuará a reinar em Jerusalém para sempre, como o Se-nhor prometeu.

Nada resta a fazer. Acaz é teimoso e continua a acreditar que é melhor apoiar-se na Assíria mais do que con�ar em Deus.

Depois de alguns dias, Isaías vai encontrá-lo de novo, dessa vez no palácio real. É nesse ponto que começa nossa leitura. Diz-lhe: se tu não crês nas minhas palavras, “pede um sinal!” (vv. 10-11).

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Acaz não está disposto a voltar atrás nas suas decisões e não lhe interessa nem mesmo ter um sinal do céu. Isaías lho dá assim mesmo: “Uma virgem conceberá e dará à luz um �lho, e o chamará ‘Deus conosco’ [Emanuel]” (v. 14).

O que signi�ca esse sinal? A virgem à qual Isaías se refere é a jovem esposa de Acaz. Esta moça – diz o profeta – terá um �lho cujo nome será “Emanuel” que signi�ca “Deus conosco”. Ele será um grande rei, sucederá a seu pai Acaz e nele continuará a realizar-se a promessa feita pelo Senhor a Davi.

A palavra do profeta se realizará: o �lho de Acaz, Ezequias, será concebido pela “virgem”, nascerá, será um bom rei e tornar-se-á o sinal da presença de Deus no meio de seu povo. A ele se poderá, pois, aplicar o nome de “Emanuel – Deus conosco”.

Ezequias, porém, não foi absolutamente em nada o rei excep-cional que Isaías esperava. Por isso, o próprio profeta logo percebe que as palavras que, em nome de Deus, havia pronunciado tinham um signi�cado muito mais amplo do que aquilo que, em um primeiro momento, ele havia entendido. O oráculo do Emanuel não se tinha cumprido plenamente em Ezequias; era preciso esperar um outro rei, um �lho de Davi, que correspondesse a tudo quanto o Senhor havia prometido, um rei que fosse realmente “Deus conosco”. Começou, pois, em Israel a expectativa do Messias.

A profecia de Isaías nos oferece a chave de leitura da festa da Anunciação do Senhor: convida-nos a vê-la como a celebração da fidelidade de Deus. Na concepção de Jesus no seio da virgem Maria, Deus deu provas da sua confiabilidade. Ele mantém a pa-lavra dada.

Esclareçamos logo um perigoso equívoco que surge na mente de muitos crentes: con�ar em Deus não é equivalente a ter sucesso garantido neste mundo, não signi�ca receber a certeza de que se es-tará livre das doenças e das desventuras que caem sobre as outras pessoas. O cristão não espere tratamento privilegiado. Deverá supe-rar todas as di�culdades que cada pessoa deve enfrentar. Mas ele recebeu como dom a luz que vem do alto, uma luz que guia sua vida, que lhe permite descobrir em tudo o que acontece – nos aconteci-mentos alegres e nos acontecimentos tristes – o projeto de amor que o Pai vai levando a cumprimento... e con�a nele mesmo quando não está em condições de entender.

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Segunda leitura (Hb 10,4-10)

4 Pois é impossível que o sangue de touros e de carneiros tire pecados. 5 Eis por que, ao entrar no mundo, Cristo diz: “Não quiseste sacrifício nem oblação, mas me formaste um corpo. 6 Holocaustos e sacrifícios pelo pecado não te agradam. 7 Então eu disse: Eis que venho (porque é de mim que está escrito no rolo do livro), venho, Ó Deus, para fazer a tua vontade” (Sl 39,7ss). 8 Disse primeiro: “Tu não quiseste, tu não recebeste com agrado os sacrifícios nem as ofertas, nem os holocaus-tos, nem as vítimas pelo pecado” (quer dizer, as imolações legais). 9

Em seguida, ajuntou: “Eis que venho para fazer a tua vontade”. Assim, aboliu o antigo regime e estabeleceu uma nova economia. 10 Foi em virtude desta vontade de Deus que temos sido santi�cados uma vez para sempre, pela oblação do corpo de Jesus Cristo.

As pessoas que saravam de uma grave enfermidade, que se livra-vam de qualquer perigo, que se sentiam impuras e tinham necessidade de pedir perdão dos próprios pecados, iam ao templo, compravam um cabri-to, entregavam-no aos sacerdotes e eles o ofereciam em sacrifício a Deus.

O Antigo Testamento aprova e regulamenta essas manifestações de religiosidade, todavia os profetas não mostraram muita simpatia para com essas práticas. Por quê? Porque em geral reduziam-se a puros gestos exteriores, aos quais não correspondia uma autêntica conversão do coração.

Na passagem da carta aos Hebreus, que nos é proposta nesta festa, são-nos referidas as palavras de um homem que, no templo, agradece a Deus por ter sido libertado de uma doença mortal. Diz: Eu sei, Senhor, que tu não te aprazes com o aroma do incenso ou com o sabor da carne dos cordeiros imolados sobre o altar; por isso eu te prometo outra coisa: cumprirei sempre a tua vontade; isto – estou certo – te é agradável (vv. 5-7).

O autor da carta aos Hebreus a�rma que Cristo levou a cum-primento de maneira perfeita as palavras deste salmo. Jesus ia frequentemente ao templo, mas nunca para oferecer sacrifícios; o único sacrifício que ele ofereceu é explicitado com estas palavras:

“Eis que venho para fazer a tua vontade”. Assim ele pôs �m às antigas oferendas e inaugurou os novos tempos (vv. 8-10).

Proposta na festa da Anunciação do Senhor, essa leitura quer iluminar-nos sobre o signi�cado da encarnação do Filho de Deus.

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Ele veio ao mundo não para procurar o sofrimento e a morte (o crime do seu assassínio por ação dos homens não agradou a Deus), veio para testemunhar o amor do Pai pelos homens, amor que se ma-nifestou no dom da vida.

Esta festa é um convite para unir-nos a ele na liturgia que ele inaugurou, liturgia que não se reduz a faustosas cerimônias exterio-res ou na execução impecável de práticas rituais, mas consiste na adesão à vontade do Pai.

Evangelho (Lc 1,26-38) 26 No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, 27 a uma virgem desposada com um homem que se chamava José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. 28 Entrando, o anjo disse-lhe: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo”. 29 Perturbou-se ela com essas palavras e pôs-se a pensar no que signi�ca-ria semelhante saudação. 30 O anjo disse-lhe: “Não temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus. 31 Eis que conceberás e darás à luz um �lho, e lhe porás o nome de Jesus. 32 Ele será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; e reinará eternamente na casa de Jacó, 33 e o seu reino não terá �m”. 34 Maria perguntou ao anjo: “Como se fará isso, pois não conheço homem?” 35 Respondeu-lhe o anjo: “O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua som-bra. Por isso o ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus. 36

Também Isabel, tua parenta, até ela concebeu um �lho na sua velhice; e já está no sexto mês aquela que é tida por estéril, 37 porque a Deus nenhu-ma coisa é impossível”. 38 Então disse Maria: “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra.” E o anjo afastou-se dela.

Para compreender a mensagem deste texto evangélico, é preciso evitar um perigo, o de interpretá-lo como uma página de crônica especí-�ca e exata em todos os mínimos detalhes. Lucas não está interessado em fornecer informações que satisfaçam à curiosidade dos seus leito-res. Seu objetivo é outro: quer fazer entender quem é o filho de Maria. Para isto, o que é que faz? Emprega um modo de narrar que era usado naquele tempo e que seus leitores compreendem muito bem: apresenta a anunciação a Maria, servindo-se de algumas citações muito famosas do Antigo Testamento. Procuremos entender o gênero literário empregado por ele, para poder colher a mensagem da passagem evangélica.

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1. Os anúncios de nascimentos extraordinários

Iniciamos com uma observação: na Bíblia não é a primeira vez que é anunciado o nascimento extraordinário de uma criança. To-dos, por certo, recordamos os anúncios do nascimento de Isaac (Gn 17–18), de Sansão (Jz 13), de Samuel (1Sm 1) e de João Batista (Lc 1,5-25). Poderão também perguntar-nos por que é que estes homens, aos quais foi con�ada uma missão extraordinária, nascem todos de uma maneira “anormal”, não são – por assim dizer – frutos naturais da fe-cundidade humana. Nascem de progenitores idosos, de mães estéreis ou – como no caso de Maria – de uma mulher que ainda não manteve relações com o marido. É curioso que nos Evangelhos apócrifos tam-bém o nascimento de Maria é apresentado da mesma maneira: seus progenitores – Ana e Joaquim – são idosos e a mãe é estéril.

Apresentando dessa maneira a vinda ao mundo desses perso-nagens, a Bíblia quer salientar uma verdade teológica: eles são um presente do céu. A salvação (ou a esperança, ou a libertação) que eles trazem não é devida à capacidade humana, mas vem de Deus.

Se a estes anúncios de nascimentos extraordinários acrescen-tarmos também os trechos que narram a vocação de Moisés (Ex 3,2-12) e de Gedeão (Jz 6,12-22), veri�caremos um outro detalhe in-teressante: estas narrativas são construídas todas do mesmo modo, apresentam o mesmo esquema, contêm os mesmos elementos, em outras palavras, assemelham-se como tijolos saídos da mesma fôr-ma. É fácil veri�car, por exemplo, como em todas estas narrativas: primeiro aparece o anjo do Senhor; depois todo aquele que recebe o anúncio tem medo; o anjo então anuncia o nascimento de uma crian-ça, diz qual é seu nome e qual é a missão que lhe é destinada; a seguir é exposta uma di�culdade ou é apresentada uma objeção; o anjo res-ponde e dá um sinal que, efetivamente, se realiza.

A repetição sistemática de todos esses elementos indica que o autor segue um esquema �xo. Não está escrevendo um trecho de crô-nica. Portanto não têm sentido perguntas como estas: Por que Maria teve medo? O anjo andando entrou pela porta ou entrou voando pela janela? Por que Maria – que era casada para ter �lhos – se espanta que lhe seja anunciado que vai ser mãe?

Levando em consideração estas observações, procuremos re-colher a mensagem que Lucas nos quer fazer assimilar

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2. O messias pobre entre os pobres

Dissemos, no comentário à primeira leitura, que a partir da pro-fecia de Natã e do anúncio do nascimento do Emanuel iniciou-se a espera do Messias.

O Messias era imaginado como um grande rei, forte, rico e po-deroso, por isso os olhos de todos estavam �xos sobre Jerusalém, a grande cidade onde se situavam o templo e o sinédrio, onde se praticava a religião em toda sua pureza e onde residiam os grandes mestres que instruíam o povo na lei de Deus.

O Senhor, porém, segue uma lógica diferente da dos homens. Ele costuma realizar seus projetos servindo-se de meios humil-

des, pequenos, frágeis. Vejamos nas particularidades as suas escolhas. • Antes de tudo seus olhos pousam sobre um minúsculo povoado da

Galileia, perdido entre as montanhas, um vilarejo que nunca é nome-ado no Antigo Testamento. Os galileus eram gente rústica, ignorante e também impura porque, vivendo em contato com os pagãos, eram algo assemelhados a bastardos. Os sacerdotes de Jerusalém os con-sideravam como “meio pagãos”. A Filipe, que fala com entusiasmo de Jesus de Nazaré, Natanael responde ironicamente: “Pode, por-ventura, vir coisa boa de Nazaré?” (Jo 1,46).

• Depois, a quem se dirige Deus? Quem é que ele escolhe? Não chama um grande libertador como Gedeão ou um homem forte como San-são, nem um rei sábio como Salomão, mas uma mulher, uma virgem.

O quali�cativo de “virgem” para nós é uma honra, é sinal de valor, de dignidade, de grandeza. Em Israel não era assim. Apreciava-se a vir-gindade antes do casamento, mas permanecer nessa condição de virgem por toda a vida era entendido como vergonhoso para uma moça: era a demonstração de sua incapacidade de se expor ou atrair os olhares de um homem. Quem não tinha �lhos era uma árvore seca que não dava frutos.

A palavra “virgem” assumiu assim uma conotação depreciativa. Nos momentos mais dramáticos da sua história, Jerusalém derrota-da, humilhada, destruída e sem esperanças, é chamada a “virgem de Israel” (Jr 31,4; 14,17). Nela a vida foi interrompida, é como uma mu-lher incapaz de gerar �lhos.

Maria é virgem não só em sentido biológico (como a Igreja sempre acreditou), mas também em sentido bíblico: é pobre e está disposta a deixar-se “encher da graça” do Senhor.

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No dia da Anunciação não festejamos a integridade moral de Maria (da sua perfeição – é certo – não duvidamos), mas somos con-vidados a contemplar as “grandes coisas” que nela operou aquele que é “Poderoso” e “Santo é o seu nome”. Se ele realizou uma obra maravilhosa em uma “sua serva” que podia oferecer-lhe somente sua “nulidade” (Lc 1,48-49), saberá extrair uma obra-prima também da nossa miséria, da nossa baixeza, da nossa pobreza. • Lucas é o evangelista dos pobres e, desde a primeira página de

seu livro, salienta que as escolhas de Deus são para os últimos da terra. O homem que se abate diante do próprio pecado, das próprias fraquezas, das próprias falhas é um presunçoso. Está convencido de que são agradáveis a Deus somente aqueles que – como o fariseu no templo – estão em condições de apresentar-se diante dele revestidos de um belo manto de boas obras (Lc 18,9-14). Ao invés, a Deus nós só podemos oferecer nossa pobreza. É ele que transforma o deserto em gramado e os gramados em �oresta (Is 32,15), como mostrou saber tornar fecundo o ventre “desértico” de uma virgem.

3. O diálogo do Anjo com Maria

Neste ponto podemos introduzir a mensagem central do Evan-gelho de hoje. • As primeiras palavras do anjo são: “Ave, cheia de graça, o Senhor

é contigo” (v. 28). O mensageiro celeste não inventou ali naquele instante esta expressão nem lhe foi ensinada no paraíso, antes de sair de lá. Trata-se de uma frase que Lucas tomou dos profetas e pôs na boca do anjo. Foi pronunciada pela primeira vez por Sofonias. Em um momento de grande decadência moral, esse profeta, depois de ter ameaçado com os castigos de Deus, dirige a Jerusalém este convite surpreen-dente: “Solta gritos de alegria, �lha de Sião! Solta gritos de júbilo, ó Israel! Alegra-te e rejubila-te de todo o teu coração, �lha de Jerusa-lém (...). Não temas, Sião. O Senhor teu Deus está no meio de ti” (Sf 3,14-18; Zc 9,9). Se a cidade considerasse as maldades que cometeu, deveria esperar a destruição e a ruína. O profeta, ao invés, a convida para alegrar-se e exultar. Não se deve abater porque “o Senhor está nela e pronto para salvá-la”.

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O que Lucas quer dizer é que, no �lho de Maria, realizaram-se to-das as profecias: a virgem concebeu – como Isaías anunciou (Is 7,14) – e Deus tornou-se presente como salvador do seu povo em Maria, identi�cada com a �lha de Sião, da qual falou Sofonias.

• Na Bíblia, quando Deus dirige uma mensagem a alguém, geralmen-te o chama pelo nome. Na presente narrativa o nome de Maria é substituído por cheia de graça ou amada por Deus, e quando Deus muda o nome de uma pessoa signi�ca que a destina a uma missão particular. Qual é então a missão con�ada a Maria? É a de procla-mar a todos que o que está é para realizar o amor gratuito de Deus. Ao Senhor ela pôde oferecer – como já dissemos antes – só a sua pobreza, e ele a enriqueceu com seus dons; ofereceu sua virginda-de e ele a tornou fecunda. Olhando para Maria, cada pobre deve alegrar-se porque percebe encontrar-se na condição ideal para ser “amado por Deus”, como Maria.

• Depois da saudação, o anjo anuncia a Maria o nascimento de um �lho, ao qual o Senhor Deus dará o trono de seu pai Davi; e rei-nará eternamente na casa de Jacó e o seu reino não terá fim (vv. 32-33). Também estas palavras não foram inventadas por Lucas; encontram-se, quase idênticas, na boca de Natã (2Sm 7,12-17). O evangelista quer dizer que, no �lho de Maria, realizou-se a profecia feita a Davi: é Jesus o esperado Messias cujo reino será eterno. Jamais nos esqueçamos disto: Jesus é o único Messias; não haverá outro; ninguém o pode substituir. Atualmente, como no passado, sempre surgem pessoas que se apresentam como novos messias ou novos cristos, como novos salvadores (eles existem em todos os segmentos: políticos, economistas, religio-sos, intelectuais, visionários...). Quem pretende ser substituto de Jesus, e indica caminhos diferentes dos do Senhor (quem, por exemplo, estimula a odiar, a matar, a acumular egoistica-mente os bens, a viver de maneira imoral, a abortar...) não pode ser seguido. Mesmo que esses “messias” possam ter seu mo-mento de glória, consola-nos o fato de que não é a eles que Deus prometeu um reino eterno. Retorna pelos lábios do anjo o tema dos pequenos que se torna-ram grandes pela benevolência de Deus. Davi era um pastor, era o

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menor dos seus irmãos; Deus o tomou dos pastos onde apascenta-va o rebanho e o fez um rei glorioso e poderoso. Agora, Deus parte de uma situação de pobreza: a família de Davi já não é poderosa, decaiu, perdeu todo poder. O “Poderoso” intervém: toma um re-bento, um �lho da descendência de Davi e lhe dá o reino eterno.

• À objeção de Maria o anjo responde: A força do Altíssimo te envol-verá com sua sombra (v. 35). No Antigo Testamento a sombra e a nuvem indicam a presença de Deus. Durante o êxodo, por exemplo, Deus precedia seu povo em uma coluna de nuvens (Ex 13,21), uma nuvem cobria a tenda onde Moisés entrava para encontrar Deus (Ex 40,34-35); quando o Senhor descia sobre o Sinai para falar com Moisés, o monte era coberto por uma nuvem densa (Ex 19,16). Dizendo que sobre Maria pousou a sombra do Altíssimo, Lucas nos diz que nela tornou-se presente o próprio Deus. Estamos, pois, diante de uma pro�ssão de fé deste evangelista na divindade do �lho de Maria.

• As últimas palavras do anjo são: A Deus nenhuma coisa é impossí-vel (v. 37). São as mesmas palavras que o Senhor disse a Abraão quando lhe anunciou o nascimento de Isaac (Gn 18,14). Diante de Deus nos sentimos muitíssimo pobres, por demais in-dignos. Considerando a nossa vida talvez encontremos tantos pecados, tanta coisa errada, tantos maus hábitos. Não podemos desencorajar-nos e pensar que para nós não pode existir salvação. Recordemos: para Deus “nada é impossível”. Ele costuma iniciar suas obras-primas onde encontra maior pobreza, maior miséria.

• Uma última palavra sobre a resposta de Maria: Eis aqui – diz – a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra (v. 38). Nin-guém havia entendido o projeto de Deus. Não o haviam entendido Davi, Natã, Salomão, os reis de Israel. Todos lhe haviam contrapos-to seus próprios sonhos e de Deus esperavam apenas uma coisa: que ajudasse a realizá-los. Maria não se comporta dessa maneira, não contrapõe a Deus nenhum projeto seu. Pergunta apenas que papel ele quer con�ar-lhe e aceita docilmente sua iniciativa.

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Tema da festa:

A VIRGEM DARÁ À LUZ UM FILHO

O Deus de Israel está pronto, a todo momento, para realizar prodígios inauditos, mas só com a condição de que nos abandonemos nas suas mãos, que nele tenhamos uma confiança total.

A primeira leitura apresenta o jovem Acaz, o rei de Israel que é posto diante de uma escolha embaraçosa: seguir as lógicas humanas da política e da diplomacia ou confiar nas promessas feitas por Deus. Não escuta o profeta Isaías que o convida a confiar no Senhor e prefere apoiar-se na força das armas dos assírios. Será causa da decadência social e religiosa do seu povo. A essa infidelidade o Senhor responde com um sinal: a Acaz dará um filho – Ezequias – que dará continuida-de à dinastia de Davi. Esse filho será a demonstração da fidelidade de Deus nos confrontos de Israel.

Os pensamentos de Deus não são nossos pensamentos. Ele não manifesta sua presença e sua força favorecendo os projetos de sucesso e de glória do homem e considera ínfimos os sonhos de quem aspira aos reinos deste mundo. São bem diversas as provas de onipotência que ele dá. No trecho do Evangelho de hoje é narrada uma das suas obras maravilhosas, aquela que realizou em Maria, a virgem que, dife-rentemente de Acaz, depositou no Senhor plena confiança, pôs à sua disposição toda sua “nulidade”. Ele a transformou em uma obra-prima.

Cada pessoa é chamada a fazer essa experiência do amor oni-potente de Deus. A segunda leitura nos diz de que maneira: não por intermédio da oferta de sacrifícios e holocaustos, mas “cumprindo a vontade do Senhor” como fizeram Cristo e Maria.