cdd: 150.19 reequilibraÇÃo cognitiva e instabilidade

30
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016. CDD: 150.19 REEQUILIBRAÇÃO COGNITIVA E INSTABILIDADE TEÓRICA EM FREUD E PIAGET TRISTAN TORRIANI Faculdade de Ciências Aplicadas Universidade Estadual de Campinas Limeira, SP, Brasil [email protected] Resumo: Partindo de algumas passagens metapsicológicas de 1914 e 1915, propomos uma leitura piagetiana da interpretação de L.R. Monzani a respeito do pensamento freudiano. Sugerimos que os movimentos pendulares e espiralados possam ser entendidos enquanto aquilo que, no modelo piagetiano da equilibração, seriam processos assimilativos. A seguir, acompanhamos novos desenvolvimentos que enfatizam tanto a construção diádica da autorregulação individual quanto o caráter energético e social da afetividade. Explicamos então o modelo piagetiano de equilibração e sua aplicação ao problema da instabilidade teórica em Freud. Com a manutenção da primazia piagetiana das estruturas cognitivas, pode-se dar o devido reconhecimento à irracionalidade humana sem contudo negligenciar o papel central da racionalidade na própria afetividade, como é visível nas perversões. Palavras-chave: Sigmund Freud, Jean Piaget, equilibração, conceito, instabilidade, metapsicologia. COGNITIVE REEQUILIBRATION AND THEORY-INSTABILITY IN FREUD AND PIAGET Abstract: Starting off from a couple of passages from Freud’s 1914 and 1915 metapsychological writings, we propose a Piagetian interpretation of L.R. Monzani’s analysis of movement in Freud’s thought. We suggest that pendular and spiral movements can be understood as assimilatory processes in Piaget’s equilibration model. After that, we follow new developments that emphasize both the dyadic construction of individual self-regulation and the energetic and social character of affectivity. We then explain Piaget’s equilibration model and its application to the problem of theory-

Upload: others

Post on 05-Oct-2021

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

CDD: 150.19

REEQUILIBRAÇÃO COGNITIVA E INSTABILIDADE TEÓRICA EM FREUD E PIAGET

TRISTAN TORRIANI Faculdade de Ciências Aplicadas Universidade Estadual de Campinas Limeira, SP, Brasil [email protected] Resumo: Partindo de algumas passagens metapsicológicas de 1914 e 1915, propomos uma leitura piagetiana da interpretação de L.R. Monzani a respeito do pensamento freudiano. Sugerimos que os movimentos pendulares e espiralados possam ser entendidos enquanto aquilo que, no modelo piagetiano da equilibração, seriam processos assimilativos. A seguir, acompanhamos novos desenvolvimentos que enfatizam tanto a construção diádica da autorregulação individual quanto o caráter energético e social da afetividade. Explicamos então o modelo piagetiano de equilibração e sua aplicação ao problema da instabilidade teórica em Freud. Com a manutenção da primazia piagetiana das estruturas cognitivas, pode-se dar o devido reconhecimento à irracionalidade humana sem contudo negligenciar o papel central da racionalidade na própria afetividade, como é visível nas perversões. Palavras-chave: Sigmund Freud, Jean Piaget, equilibração, conceito, instabilidade, metapsicologia.

COGNITIVE REEQUILIBRATION AND THEORY-INSTABILITY IN FREUD AND PIAGET

Abstract: Starting off from a couple of passages from Freud’s 1914 and 1915 metapsychological writings, we propose a Piagetian interpretation of L.R. Monzani’s analysis of movement in Freud’s thought. We suggest that pendular and spiral movements can be understood as assimilatory processes in Piaget’s equilibration model. After that, we follow new developments that emphasize both the dyadic construction of individual self-regulation and the energetic and social character of affectivity. We then explain Piaget’s equilibration model and its application to the problem of theory-

362 Tristan Torriani

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

instability in Freud. By keeping Piaget’s primacy of cognitive structures, it becomes possible to give due credit to human irrationality without denying the central role of rationality in affectivity itself, as is visible in cases of perversion. Keywords: Sigmund Freud, Jean Piaget, equilibration, concept, instability, metapsychology.

1. Introdução1

Para o historiador, a transformação da ciência constitui um desafio

sério, sobretudo na medida em que a mera verificação de uma teoria se torna difícil por causa de seu caráter abstrato. Para o clínico interessado em aplicações, porém, é também desorientador não encontrar uma base teórica firme sobre a qual possa alicerçar sua prática. A existência de mudanças teóricas significativas indicaria confusão por parte do cientista, o que comprometeria sua credibilidade. Daí uma baixa tolerância para aquilo que podemos denominar instabilidade teórica, ou seja, a constante reformulação de pressupostos na atividade teorizante do cientista.

Na área da Psicologia, um dos motivos de crítica com relação à Psicanálise tem sido a inconstância teórica de seu fundador, Sigmund Freud. Para melhor vermos como ele explicava a si mesmo e a seus seguidores seu processo teórico, examinaremos, na seção 2, como ele entendia aquilo que ele chamava de Metapsicologia. Contaremos, para isso, com o apoio de vários comentadores freudianos. Na seção 3, apresentaremos o modelo piagetiano de equilibração, em que, por meio da primazia conferida às estruturas cognitivas, se tenta fornecer uma abordagem à instabilidade teórica que a admite como sendo inevitável, sem contudo se entregar em modo derrotista ao irracional.

1 A versão inicial deste artigo foi apresentada enquanto comunicação oral no Colóquio Freud: Filosofia e Psicanálise (Homenagem aos 100 anos de publicação dos Escritos Metapsicológicos), que teve lugar na Universidade Federal de São Carlos de 12 a 14 de maio de 2015.

Reequilibração cognitiva e instabilidade teórica em Freud e Piaget 363

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

2. Freud e a instabilidade teórica na Metapsicologia No âmbito da literatura psicanalítica, a questão da continuidade ou

ruptura nas teorias de Freud se mostrou uma falsa alternativa, requerendo uma abordagem mais diferenciada. Após uma aprofundada análise do pensamento freudiano, Luiz Roberto MONZANI (2014, p. 295) conclui que:

Trata-se de vários procedimentos e operações. [...] O que temos é sempre uma progressiva rearticulação e redefinição dos conceitos determinada por sua lógica interna e pela progressiva integração dos dados da experiência. Ora se trata do aprofundamento e do alargamento de um conceito (sedução). Ora se trata de uma progressiva diferenciação no interior de um mesmo conceito (ego). Ora da emergência de uma noção implícita mas ordenadora (a pulsão de morte) etc. E cada uma dessas operações leva, por sua vez, frequentemente, a que se obrigue a repensar o conjunto dos conceitos que lhe são vizinhos e assim por diante. (MONZANI, 2014, p. 295)

Para um piagetiano, isto sugere imediatamente a questão da

reequilibração cognitiva do sujeito epistêmico. Os movimentos pendulares e espiralados identificados por Monzani podem ser entendidos enquanto assimilações visando lidar com diversas pressões geradas pelos dados clínicos, assim como pelas expectativas quanto ao poder explicativo e terapêutico da teoria psicanalítica.

Pelo movimento pendular, Monzani entende a alternação entre um polo e seu oposto, seu exemplo disso sendo o tratamento dado aos conceitos de ego consciente por um lado e o de inconsciente por outro lado. Freud teria inicialmente elaborado um conceito de ego no Projeto de uma psicologia para neurólogos (1895) que passaria então por um certo abandono, durante o qual ele se ocupou do conceito oposto, o inconsciente, até os anos 1920, quando voltaria a tratar do ego. Pelo movimento espiralado, trata-se de entender “[...] essa imagem no espaço e cilindricamente, em que as mesmas questões são abordadas, “esquecidas”, retomadas, mas não no mesmo nível em que estavam sendo tratadas anteriormente” (MONZANI, 2014, p. 295). Isso sugere a figura da hélice, pois a espiral em três dimensões gera um cone.

Em seus escritos metapsicológicos, Freud relaciona explicitamente a questão da instabilidade teórica com a sua compreensão do que seria um

364 Tristan Torriani

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

conceito,2 sobretudo em duas breves passagens de Introdução ao narcisismo (1914) e Os instintos e seus destinos (1915). Vejamos estes trechos na íntegra, para depois podermos comentá-los.

Não nos sentimos bem ao abandonar a observação em favor de estéreis disputas teóricas, mas não podemos nos furtar a uma tentativa de esclarecimento. É certo que noções como a de uma libido do Eu, energia dos instintos do Eu e assim por diante não são particularmente fáceis de apreender nem suficientemente ricas de conteúdo; uma teoria especulativa das relações em jogo procuraria antes de tudo obter um conceito nitidamente circunscrito como fundamento. Acredito, no entanto, ser justamente essa a diferença entre uma teoria especulativa e uma ciência edificada sobre a interpretação da empiria. Esta não invejará à especulação o privilégio de uma fundamentação limpa, logicamente inatacável, mas de bom grado se contentará com pensamentos básicos nebulosos, dificilmente imagináveis, os quais espera apreender de modo mais claro no curso de seu desenvolvimento, e está disposta a eventualmente trocar por outros. Pois essas ideias não são o fundamento da ciência, sobre o qual tudo repousa; tal fundamento é apenas a observação. Elas não são a parte inferior, mas o topo da construção inteira, podendo ser substituídas e afastadas sem prejuízo. Em nossos dias vemos algo semelhante na física, cujas concepções básicas sobre matéria, centros de força, atração etc. não seriam menos problemáticas do que as correspondentes na psicanálise. (FREUD, [1914] 2010, p. 13)

Tomando como referência a Física, o pai da Psicanálise esclarece que

entende a empiria como fundamento da ciência e a teoria como uma superestrutura descartável. Os fatos clínicos permaneceriam inalterados como pedras coloridas num caleidoscópio,3 e as hipóteses poderiam ser reformuladas,

2 Entenda-se por “conceito de conceito” a compreensão discursiva (ou conceito) que temos do que seria um conceito. Essa compreensão seria a resposta à pergunta “O que é um conceito?”, e é indispensável para que se possa fazer análise conceitual.

3 A analogia está em PROUST (1999, p. 412): “pareille aux kaléidoscopes qui tournent de temps en temps, la société place successivement de façon différente des éléments qu’on avait cru immuables et compose une autre figure. [...] Ces dispositions nouvelles du kaléidoscope sont produites par ce qu’un philosophe appellerait un changement de critère.” (“semelhantes aos caleidoscópios que giram

Reequilibração cognitiva e instabilidade teórica em Freud e Piaget 365

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

dando-nos múltiplas interpretações. Podemos notar inicialmente a dificuldade de que tal substitutibilidade requereria um desacoplamento total da empiria em relação à teoria, o que é impossível após a aquisição da linguagem, pois pelo menos alguns fatos terão que ser interpretados segundo conceitos (ou habilidades categorizadoras verbais).4 Em outras palavras, não é possível termos uma empiria puramente nocional (ou intuitiva, pré-verbal), logo, alguns conceitos deverão permanecer após o processo de revisão teórica.

Freud opõe uma teoria especulativa a uma ciência intérprete da empiria, reconhecendo que a primeira poderia se dar o luxo de procurar conceitos claros e fixos como fundamento. A segunda, porém, supostamente teria que se contentar apenas com conceitos imprecisos e mutáveis. Deste modo, a consulta à experiência não precisaria de maiores controles lógicos. A teoria especulativa se moveria de cima para baixo, ao passo que a ciência empírica-interpretativa avançaria no sentido inverso, de baixo para cima. Fica sugerido, pouco convincentemente, que o lidar com a empiria seria razão suficiente para eximir o pesquisador de maior rigor lógico e controle experimental.

No trecho seguinte, o pai da Psicanálise começa opondo normas a fatos na prática científica. O princípio metodológico fundamental, vigente na Psicologia científica, de ter conceitos claros antes de proceder ao exame da experiência na observação ou em experimentos, não corresponderia àquilo que os cientistas de fato fazem. Daí, num passo supostamente desmitificador, Freud mistura fato e norma, tomando o que ele alega ser a prática real do cientista como fornecendo uma norma a ser seguida. Freud comete esta falácia naturalista por meio de um uso equívoco, tanto de facto quanto de jure, do adjetivo ‘verdadeiro’ na expressão “O verdadeiro início da atividade científica” logo abaixo. Em alemão, no original, o autor usa a expressão “Der richtige Anfang”, que pode ser traduzido como “O início correto”.

de tempos em tempos, a sociedade coloca sucessivamente, de modo diverso, elementos que se supunham imutáveis e compõem uma nova figura. [...] Essas novas disposições do caleidoscópio são produzidas pelo que um filósofo chamaria de mudança de critério.”)

4 Traduzimos com esses termos o que em inglês se tem descrito pela expressão ‘verbal categorizing skills’. Conceitos, sendo discursivos, exigem habilidades categorizadoras verbalizadas e deveriam ser distintos de noções, que são intuitivas e pré-verbais.

366 Tristan Torriani

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

Não é raro ouvirmos a exigência de que uma ciência deve ser edificada sobre conceitos fundamentais claros e bem definidos. Na realidade, nenhuma ciência começa com tais definições, nem mesmo as mais exatas. O verdadeiro início da atividade científica está na descrição de fenômenos, que depois são agrupados, ordenados e relacionados entre si. Já na descrição é inevitável que apliquemos ao material certas ideias abstratas, tomadas daqui e dali, certamente não só da nova experiência. Ainda mais indispensáveis são essas ideias – os futuros conceitos fundamentais da ciência – na elaboração posterior da matéria. Primeiro elas têm de comportar certo grau de indeterminação; é impossível falar de uma clara delimitação de seu conteúdo. Enquanto se acham nesse estado, entramos em acordo quanto ao seu significado, remetendo continuamente ao material de que parecem extraídas, mas que na realidade lhes é subordinado. Portanto, a rigor elas possuem o caráter de convenções, embora a questão seja que de fato não são escolhidas arbitrariamente, mas determinadas por meio de significativas relações com o material empírico – relações que acreditamos adivinhar, ainda antes que possamos reconhecer e demonstrar. Apenas depois de uma exploração mais radical desse âmbito de fenômenos podemos apreender seus conceitos científicos fundamentais de maneira mais nítida e modificá-los progressivamente, tornando-os utilizáveis em larga medida e ao mesmo tempo livres de contradição. Então pode ser o momento de encerrá-los em definições. Mas o progresso do conhecimento também não tolera definições rígidas. Como ilustra de maneira excelente o exemplo da física, também os “conceitos fundamentais” fixados em definições experimentam uma constante alteração de conteúdo.

Um conceito básico assim convencional, provisoriamente ainda um tanto obscuro, mas que não podemos dispensar na psicologia, é o de instinto [Trieb]. (FREUD, [1915] 2010, p. 39)

Note-se que, de novo, a Física é invocada como referência

metodológica, apesar da grande diferença entre o seu objeto de estudo e o da Psicologia. Como observa Kathleen Wilkes (KITCHER & WILKES, 1988, p. 118), “Freud me parece ter sido um daqueles que acolhiam as ciências físicas como um superego para a Psicologia em geral.” Pode-se perceber agora também um cuidado maior em reconhecer a impossibilidade de se evitar o uso de conceitos na descrição dos fenômenos. Se, na passagem citada do ano anterior, poderia talvez ter havido um pressuposto mais ingenuamente empirista, agora Freud

Reequilibração cognitiva e instabilidade teórica em Freud e Piaget 367

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

parece admitir o que Immanuel Kant poderia ter considerado serem conceitos empíricos. O caráter convencional dos conceitos é aceito, pois sem maleabilidade não haveria avanços científicos, mas isso seria distinto de uma mera arbitrariedade. É bom lembrar que, na sua autocompreensão, Freud se imagina como o fundador de uma nova ciência que, por meio de sua capacidade de intervenção terapêutica, poderia trazer grandes benefícios (ou malefícios) à humanidade.

Como vimos, segundo o pai da Psicanálise, haveria pelo menos dois momentos na prática científica. O primeiro momento seria o de uma abordagem necessariamente confusa e exploratória da experiência. Não é claro, porém, porque o pesquisador não poderia e não deveria tentar buscar clareza conceitual. Freud afirma que a experiência não seria a fonte dos conceitos, mas, ao contrário, que os dados estariam submetidos aos conceitos, e o sentido destes últimos seria continuamente negociado. Deste modo, parece haver um afastamento da concepção empirista ingênua da ciência e uma aproximação a um tipo de convencionalismo ou mesmo pragmatismo.

O segundo momento seria um de rearrumação lógica, em que os conceitos seriam revistos para que se tornassem mais consistentes, mas Freud avisa que mesmo assim o progresso da ciência exigiria do teórico conceitos maleáveis.

Estas duas passagens se limitam a registrar instantes no que podemos chamar o devir (evitaremos o termo ‘desenvolvimento’) teórico freudiano, em que a reflexão metodológica se mostra incontornável. Devem ser tomadas pelo que são, sem tentativas de extrapolação ou generalização indevida.

3. Metapsicologia como Epistemologia e/ou Metafísica: uma discussão insuficiente

Se for lícito tomar essas passagens como base para nossa discussão do

conceito de conceito freudiano, como isso nos ajuda a entender a instabilidade e o estatuto epistemológico de sua assim chamada Metapsicologia? Seria ela uma “Psicologia da Psicologia”, uma Psicologia de “nível superior”? Se sim, o que impediria uma iteração infinita de “Psicologias da Psicologia da Psicologia”, de “Metametametapsicologias”? Não teria sido melhor ter concebido a Metapsicologia simplesmente como uma Epistemologia da Psicanálise? Ou será

368 Tristan Torriani

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

que a saída seria tratar a Metapsicologia como uma Metafísica? A Metapsicologia freudiana é usualmente entendida como sendo

comparável a um tipo de Metafísica que daria conta das forças (dinâmica), da energia (econômica) e dos lugares (tópica) dos processos psíquicos. A chamada primeira tópica diria respeito a dois sistemas: o pré-consciente/consciente e o inconsciente. A segunda tópica se referiria a três instâncias: o id, o ego e o superego.

Patricia KITCHER (1988) considera que a definição de Metapsicologia fornecida por LAPLANCHE & PONTALIS (2001, p. 284), no Vocabulário da psicanálise, aliena psicólogos voltados para a empiria e clínicos voltados para a prática, ao enfatizar seu caráter abstrato e supostamente distanciado da realidade, e que culmina na aproximação feita pelos autores dela com a Metafísica. Ela registra a hostilidade contra a Metapsicologia entre os próprios estudiosos da Psicanálise como Adolf GRÜNBAUM (1984) e Frank SULLOWAY (1979).

Segundo a filósofa estadunidense, o interesse de Freud pela Metapsicologia não tinha nada a ver com a Metafísica, mas residia na questão metodológica de coordenar como a Psicologia, enquanto aquilo que poderia ser considerado a ciência cognitiva da época, seria completada interdisciplinar-mente. Para isso, ela se baseia nas passagens de Freud em que ele descreve uma formação multidisciplinar para o psicanalista, abrangendo desde a história cultural até a neurofisiologia.

Como o leio, o anseio real de Freud não era ser um metafísico, mas se tornar o cientista cognitivo interdisciplinar completo, ou pelo menos o pai de uma ciência cognitiva interdisciplinar completa. Seu plano de treinamento para analistas é nada menos que um currículo para uma educação interdisciplinar em ciência cognitiva. (KITCHER & WILKES, 1988, p. 103)

Além do seu caráter metodológico, a Metapsicologia, a despeito do que

Freud teria sugerido, não seria em nenhum momento descartável, mas englobaria quase tudo na Psicanálise, deixando de fora apenas técnicas terapêuticas específicas. Surge deste modo uma oposição entre forma e conteúdo: se a Metapsicologia constitui um arcabouço metodológico formal, quanto permaneceria nela de conteúdo em termos de hipóteses específicas,

Reequilibração cognitiva e instabilidade teórica em Freud e Piaget 369

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

essas sim descartáveis? Esta questão é importante também para determinar até que ponto Freud teria conseguido ou não prover resultados metapsicológicos substanciais. Kitcher considera claro que o próprio Freud se mostrou cético com relação à sua teorização metapsicológica, não hesitando em desmerecer seus construtos como sendo ficções ou especulações. Negar sua indispensabilidade para a Psicanálise teria sido então uma tática sensata e compreensível.

Kitcher considera dois caminhos possíveis. Por um caminho, poder-se-ia alegar a instabilidade teórica de Freud. Isto ela rejeita por acreditar poder fornecer uma interpretação ao mesmo tempo caritativa, global e coerente do pensamento freudiano. O outro caminho, então, seria considerar que as teses metapsicológicas substantivas teriam sido para ele hipóteses de trabalho a serem tratadas instrumentalmente no âmbito da Metapsicologia, entendida por sua vez como ideal de pesquisa (no original inglês, research ideal), ao qual ele teria sido fiel por toda sua vida. Para explicar esse ideal de pesquisa, a estudiosa considera indispensável tratar dos aspectos dinâmicos, econômicos e topográficos.

Antes de mais nada, Kitcher considera importante destacar a especificidade da explicação psicanalítica. Ao contrário do que entusiastas e críticos poderiam pensar, a Psicanálise não pode explicar tudo. Seu foco específico seria o comportamento produzido por motivação inconsciente. Deveríamos acionar explicações psicanalíticas “somente quando os determinantes de um ato são ambos psíquicos e inobservados” (KITCHER &

WILKES, 1988, p. 106). O aspecto dinâmico é entendido por Kitcher como sendo a parte

clinicamente mais importante e teoricamente menos carregada da Metapsicologia. Ela investigaria causas inobservadas, psíquicas e próximas dos nossos comportamentos, incluindo ideias particulares e as forças agindo sobre elas como o recalque, a sublimação e a formação reativa. Assim, ela forneceria relatos qualitativos dos determinantes imediatos do comportamento, substituindo explicações médicas inadequadas e versões ingênuas do senso comum.

Por motivos óbvios, não haveria como o psicanalista ignorar a parte dinâmica da Metapsicologia. Mas justamente aí surge, segundo Kitcher, o problema com o que ela chama a visão convencional (em inglês, standard view) da Metapsicologia, na qual ela inclui Frank Sulloway.

370 Tristan Torriani

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

Um problema com a visão convencional é que ela não tem um relato separado do que a parte dinâmica da Metapsicologia deveria ser; o aspecto dinâmico é simplesmente jogado com o topográfico e o econômico, e o pacote todo é rejeitado como sendo um mecanismo mal concebido. (minha tradução) (KITCHER & WILKES, 1988, p. 107)

A solução de Kitcher é simples: não há outra dinâmica metapsicológica

senão a clínica. Logo, não há como o psicanalista dispensar a Metapsicologia. A sinonímia entre o termo alemão ‘Tiefenpsychologie’ (psicologia profunda) e o termo ‘Metapsicologia’ reforçaria, para ela, este ponto.

O aspecto topográfico consiste, segundo Kitcher, no esforço de Freud em delinear as unidades funcionais da mente, evitando assim o caos. O inconsciente, portanto, é concebido como um sistema unitário ao qual se poderia atribuir a execução de processos segundo princípios como os da atemporalidade e da isenção de contradição mútua. A estudiosa encontra nas ciências cognitivas atuais muitas tentativas similares, e por isso, supõe que esse aspecto topográfico de Freud deveria ser bem considerado pelos leitores contemporâneos. Ela menciona também a influência de John Hughlings Jackson sobre Freud.

Assim, se considerarmos o que Freud estava tentando fazer, no lugar de nos preocuparmos com suas teorias substantivas, então sua abordagem topográfica parece ser uma estratégia razoável na construção teórica psicológica pelos padrões de seu tempo e do nosso. Os herdeiros de Freud tentam renegar este aspecto da Metapsicologia em parte porque querem revisar as divisões freudianas da mente. Isto, porém, não é razão para criticar a abordagem topográfica. (minha tradução) (KITCHER &

WILKES, 1988, p. 110)

Contrariamente ao que Kitcher sugere, é costumeiro reconhecer na

filosofia analítica da mente que, no que diz respeito a este aspecto tópico, não há sentido em buscar a localização espacial numa identificação entre processos neurológicos e psíquicos. Se, contudo, entendermos a mente como estando encarnada (embodied mind), podemos considerar a pessoa como um todo enquanto lugar dos processos psíquicos. Se quiséssemos ser mais precisos, seria necessário explicar como funcionariam esses conceitos para atribuirmos sua

Reequilibração cognitiva e instabilidade teórica em Freud e Piaget 371

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

localização exata. Na ausência disso, seria melhor abandonar a tentativa, pois em pouco diferiria de um discurso inverificável sobre fantasmas e espíritos. Há uma confusão em Kitcher entre o aspecto funcional, esse sim importante, e a questão da suposta localização, que é secundária.

O aspecto econômico é entendido por Kitcher como sendo relacionado à energia no funcionamento cerebral. Evitando como Hughlings Jackson toda dúvida filosófica sobre a interação mente-cérebro, Freud teria se limitado a aceitar possíveis restrições provenientes da neurofisiologia para a teorização psicanalítica. Se a questão energética seria tão central, então por que usar o termo ‘econômico’, que usualmente mais remete a dinheiro do que outra coisa? Segundo W.D. Hart, citado por Wilkes, a importância da “economia” se explica porque havia o pressuposto de que o conceito de causalidade requeria o de conservação, que por sua vez seria indispensável aos modelos econômicos. Sem um princípio de conservação, não haveria uma estrutura causal possível, e sem esta desabaria o projeto de uma psicologia científica. É importante considerar, porém, que no modelo de equilibração piagetiano o sistema cognitivo procura se reestabelecer, e deste modo se conservar, mas, enquanto sistema auto-organizado, pode buscar um novo ponto de equilíbrio, passando assim a um novo estágio de desenvolvimento. Ou seja, a busca pela conservação, se tomada como princípio máximo, impede a gênese das estruturas.

Kitcher sintetiza então sua reconstrução da Metapsicologia freudiana nos seguintes termos:

Por acreditar que a atividade mental deveria ser entendida em termos das operações cerebrais, Freud acreditava que uma psicologia completa deveria ter um aspecto econômico e que o conhecimento atual sobre como o cérebro funciona deveria limitar e guiar as especulações psicológicas. Freud acreditava que a psicologia deveria usar uma abordagem topográfica, pois acreditava que a atividade mental é muito complexa e provavelmente o resultado da interação de sistemas que evoluíram em épocas diferentes para finalidades diferentes e, logo, operam sob princípios diferentes. E, mais obviamente, Freud acreditava que a psicologia deveria ter uma parte dinâmica, por causa da descoberta revolucionária pela psicanálise da motivação inconsciente disseminada. Entendo as substantivas hipóteses dinâmicas, topográficas e econômicas de Freud como tentativas de pôr em prática este grande plano para uma

372 Tristan Torriani

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

ciência completa da psicologia. Assim, considero as partes metodológica e substantiva da metapsicologia como englobando toda a psicanálise exceto várias técnicas clínicas. Dado este posicionamento, minha tese inicial de que a metapsicologia é essencial à psicanálise segue trivialmente. (KITCHER & WILKES, 1988, p. 114)

Vemos, portanto, que para Kitcher não há porque se preocupar com

uma suposta instabilidade teórica em Freud. Ele teria sido coerente de início a fim. Bastaria ter clara a distinção entre o substantivo e o metodológico, considerar os aspectos dinâmico, topográfico e econômico, e terminaríamos com um projeto cientificamente defensável ainda nos dias de hoje. Com exceção do termo ‘dinâmico’ relativamente consagrado, os termos ‘topográfico’ e ‘econômico’, pelos motivos acima aduzidos, encontram compreensivelmente receptividade menor do que sugerido por Kitcher.

Sua interlocutora Kathleen Wilkes concorda sobre a indispensabilidade da Metapsicologia para a Psicanálise, mas considera que, enquanto superestrutura da teoria psicanalítica, ela designaria seu nível teórico mais elevado, cujo manejo Freud teria se reservado com especial cuidado.

Meu ponto geral é que não há nada de esquisito na metapsicologia. O que o rótulo destaca é comum a toda teoria elaborada, a saber, o nível altamente “teórico”. É possível que seja o nome que desencaminhe: afinal, afirmações teóricas da física não são (ou não são simplesmente) “metafísica” no sentido tradicional dos filósofos; não há um rótulo tal como “metaquímica” [...] (KITCHER & WILKES, 1988, p. 125)

Dada a centralidade da Metapsicologia, torna-se compreensível, segundo Wilkes, o zelo com que Freud procurava excluir seus colaboradores de alterarem seus pressupostos: “É inegável que Freud era o único autorizado a reformular o tronco da teoria; Jung e Adler, que tentaram, foram caracterizados como opositores [...]” (KITCHER & WILKES, 1988, p. 128). Além disso, ela examina a preocupação de Freud em se apresentar como um pensador radicalmente original, o que o levava a queimar suas anotações, notoriamente em 1885 e 1907, com a intenção deliberada de dificultar o trabalho de biógrafos futuros.

Wilkes considera que a instabilidade teórica de Freud não pode ser

Reequilibração cognitiva e instabilidade teórica em Freud e Piaget 373

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

apenas explicada pela sua prolixidade ou pela dificuldade de validação empírica dos construtos psicanalíticos. Tão importante quanto isso é a mútua dependência entre pressupostos, modelos e analogias. Por exemplo, a descrição do inconsciente dinâmico condiciona quais mecanismos defensivos teriam que ser postulados, assim como quais princípios estruturariam o dinamismo. Segundo ela, a teoria psicanalítica, apesar de ser impressionante, seria “um dos casos mais extremos de subdeterminação [underdetermination] nos anais da ciência.” (KITCHER & WILKES, 1988, p. 129). Contra esse lado especulativo, os dados clínicos serviriam como suporte mais sólido possível para suas teses, mas havia pressão a partir de cima, vindo, por um lado, da Metapsicologia por causa dos aspectos dinâmicos, topográficos e econômicos, e, por outro lado, das “exigências de consistência, simplicidade, escopo explicativo, adequação empírica, coerência, coerência com outras teorias nas ciências humanas, plausibilidade biológica, etc.” (KITCHER & WILKES, 1988, p. 129).

Wilkes repudia em Kitcher a referência às ciências cognitivas, pois a redução da Psicologia a elas excluiria as dimensões moral, afetiva e social. Além disso, ela esclarece que o mérito de Freud deve ser buscado mais na incorporação do anormal e do patológico na Psicologia do que com os modelos de inteligência artificial das ciências cognitivas. Embora Kitcher assevere que sua leitura “não é anacrônica” (KITCHER & WILKES, 1988, p. 109), há nela um quê de infeliz na aceitação acrítica do status quo representado pelas ciências cognitivas. Sua reconstrução da Metapsicologia é até simpática e coerente, mas enfatiza demais a suposta sintonia de Freud com o espírito científico geralmente compartilhado pelo século XX como um todo, sem ponderar suficientemente os pontos onde ele foi muito pouco científico e mesmo antiético.

Explorando um caminho oposto ao de Kitcher, Oswaldo Giacoia concorda com Joel Birman que a Metapsicologia freudiana teria tido sim um propósito metafísico, o que seria sugerido pelo próprio uso do prefixo grego meta-. Isto teria consequências importantes para viabilizar uma leitura propriamente filosófica de Freud. Além disso, permitiria situar melhor a relação entre empiria e alta teoria que o pai da Psicanálise pretendia gerir com exclusividade, reservando-se o direito de, se necessário, fazer reformulações radicais.

Ora, se uma vez que podemos admitir uma relação entre o projeto de

374 Tristan Torriani

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

metapsicologia e os interesses cognitivos da Metafísica, então a Psicanálise tem também de supor uma ontologia como dimensão necessária do conjunto de seu edifício teórico, a saber, um domínio de entidades fundamentais, que constitui a base teórica do saber psicanalítico. É nesse registro que se poderia inscrever a relação entre a clínica psicológica e a metapsicologia de Freud. (GIACOIA, 2012, p. 125).

Uma vez devidamente reconhecida a dimensão metafísica da

Metapsicologia, GIACOIA (2012, p. 125) procura então mostrar que “o dualismo entre pulsões, tal como Freud os concebe na oposição entre pulsões de vida e de morte, pode ser caracterizado como a base ontológica da Metapsicologia freudiana e, por conseguinte, também como o estrato fundamental da superestrutura teórica da Psicanálise”. Isto é importante para nossa indagação sobre a instabilidade teórica em Freud, pois sugeriria, no nível metafísico, uma resposta de tipo dualista. Se metafisicamente ele tendia para abordar questões como oposições entre dois polos, tornam-se então compreensíveis movimentos como os chamados por Monzani de pendulares.

As leituras de Kitcher, Wilkes e Giacoia nos ajudam a perceber as limitações que a discussão em torno do caráter epistemológico e/ou metafísico da Metapsicologia tem para responder à nossa indagação sobre a instabilidade teórica. Decerto, colhemos alguns pontos importantes, mas eles permanecem insuficientes, pois, não obstante a leitura de Kitcher, a Psicanálise não situa o cognitivo como sendo central, como faz Piaget. Por isso, ao explicar suas próprias dificuldades epistemológicas, tem apenas como recorrer a aspectos inconscientes (dinâmicos), energéticos (“econômicos”) ou topográficos. Isso nada ou pouco nos ajuda.

Sobre a questão da cientificidade da Psicanálise, o já mencionado Frank Sulloway é categórico:

A psicanálise pode ter sido uma ciência em 1895, talvez até mesmo em 1900; mas a partir de 1915 ou 1920 – ou seja, a época em que ela tornou a análise didática em um elemento obrigatório da formação psicanalítica –, esta disciplina não podia mais pretender ser realmente científica. Por causa de seu modo de formação rígido, a psicanálise cessou de ser uma ciência; quando uma disciplina cessa de ser uma ciência, ela se torna uma pseudociência. Não tenho dúvida por um só instante do fato de que a

Reequilibração cognitiva e instabilidade teórica em Freud e Piaget 375

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

teoria psicanalítica se tornou em nossos dias uma pseudociência. Não é, porém, porque a teoria psicanalítica seria inverificável ou não refutável. Como mostrou Adolf Grünbaum, há numerosos elementos na teoria psicanalítica que são plenamente testáveis. O problema está nos psicanalistas, a quem não se ensinou a verificar suas teorias de maneira científica. A rigor, a psicanálise em si não é uma pseudociência. São mais os psicanalistas que são pseudocientistas – e essa é uma distinção importante –, mesmo se o resultado final for que a psicanálise adota ideias pseudocientíficas e que ela é incapaz de questioná-las. (SULLOWAY, [1994] 2005, p. 63)

O psicanalista enquanto pesquisador se encontra então na condição do

cientista empírico que precisa constantemente reinterpretar seus dados a partir de hipóteses ou conjeturas novas. No entanto, os dados podem requerer revisão teórica. Não basta a construção de conceitos qualitativos. É preciso poder dimensionar os fenômenos quantitativamente através de métodos estatísticos.

Um bom exemplo disso seria a teoria junguiana dos tipos introvertido e extrovertido. Tentativas de constatar empiricamente sujeitos pertencentes a esses tipos fracassaram, pois observou-se na distribuição estatística que um número muito pequeno poderia ser classificado como sendo introvertido ou extrovertido, ao passo que a maioria parecia possuir características de ambos tipos. Criou-se então a categoria dos ambivertidos e tratou-se a distinção junguiana não como uma teoria dos tipos, mas como uma teoria dos traços. Esta revisão estatística da teoria dos tipos a partir dos resultados obtidos permitiu a operacionalização de um conceito originariamente psicanalítico no teste MBTI (indicador de tipo Myers-Briggs) (WILDE, 2011).

Seja pelo lado qualitativo, seja pelo lado quantitativo, porém, nada indica a possibilidade de podermos escapar da instabilidade teórica. Ela chega a parecer mesmo uma marca da condição humana. E, contudo, toma-se a instabilidade teórica como sinal negativo no pesquisador, comprometendo sua credibilidade, pois indicaria falta de convicção ou mesmo falta de conhecimento ou informação.

Neste momento fica claro que o aspecto cognitivo é central, pois mesmo que haja fatores afetivos envolvidos, eles não dão conta do problema em termos que permitam uma solução epistemológica. É aqui que o modelo piagetiano da equilibração se mostra necessário para quebrarmos a ilusão gerada pelo privilégio indevido ao aspecto afetivo inconsciente, que nos

376 Tristan Torriani

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

mantém enredados num debate emocionado sobre sentimentos. Ao entender a inteligência como adaptação que prolonga nossa condição biológica de organismos e postular a centralidade do desequilíbrio no desenvolvimento, PIAGET (1976) permite trazer à questão da instabilidade teórica uma consistência própria, em que o teorizar instável se justifica por (e para) si mesmo.

4. Piaget e o modelo de equilibração cognitiva

Um pouco como Freud, Piaget trabalha com um modelo abstrato, mas assumidamente biológico, de equilibração, que é entendida como um invariante funcional no decorrer do desenvolvimento humano. Segundo o epistemólogo suíço, o ser humano é fundamentalmente um organismo. Diferentemente de um mecanismo, o organismo está aberto para um ambiente externo e tem trocas com ele para sobreviver e viver bem. A inteligência se desenvolve como extensão da nossa capacidade biológica de adaptação. Ao nos adaptarmos, incorporamos por assimilação certos hábitos estruturados (esquemas) e os ajustamos ao ambiente por acomodação. Assimilação e acomodação são, portanto, entendidos como subprocessos complementares que permitem a equilibração das estruturas cognitivas e seu desenvolvimento progressivo.

Como nota Bonnie LITOWITZ (1999), Freud e Piaget compartilhavam o legado darwiniano, manifesto nos seguintes pontos:

(1) a crença na formulação de explicações biológicas para fenômenos mentais;

(2) o foco em estruturas que resultam da adaptação de organismos a seus ambientes;

(3) a busca por formas transicionais dessa adaptação gradual; (4) a homeostase enquanto finalidade do organismo; (5) o estudo de casos individuais para revelar padrões ou regularidades

universais; (6) o ímpeto para a mudança, situado no conflito dentro dos indivíduos

e entre eles.

Nos anos 1970 e 1980, relata Litowitz, as premissas estruturalistas

Reequilibração cognitiva e instabilidade teórica em Freud e Piaget 377

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

compartilhadas por Freud e Piaget se tornaram menos populares. No lugar de uma separação entre indivíduo e ambiente, passou-se a tratar a criança e a mãe como uma entidade dupla que permaneceria articulada. No lugar de estruturas, transferiu-se o foco para funções que comportamentos poderiam ter na díade mãe-filho. Resultados começaram a ser tomados na sua particularidade, sem pretensões universalizantes como em Freud e Piaget. A linguagem passou a constituir o conhecimento, e não apenas veiculá-lo ou representá-lo.

Na tradição piagetiana, Lev Vygotsky é tido como líder dessa tendência, assim como John Bowlby o é na tradição freudiana. O psicanalista britânico priorizava o estabelecimento do vínculo afetivo sobre a descarga pulsional, deste modo favorecendo modelos baseados na construção de relações intersubjetivas. Por sua vez, o psicólogo russo tomava por princípio que toda função do desenvolvimento cultural infantil aparecia primeiro como uma relação interpessoal para só depois ser internalizada como uma categoria subjetiva. A consequência importante desta mudança de perspectiva é que a autorregulação deixa de ser apenas uma propriedade inerente a estruturas abstratas de um indivíduo, mas passa a ser uma função que constitui a finalidade de um sistema diádico. O eu em um sistema eu-outro internaliza primeiro uma regulação diádica para então se tornar um si-mesmo autorregulado, explica LITOWITZ (1999).5

Embora tanto Freud quanto Piaget possam ser considerados estruturalistas em algum sentido, o mestre suíço insistia que estruturas tinham para ele um estatuto meramente metodológico e jamais ontológico. Além disso, estruturas eram atribuídas tendo por base a observação de comportamentos. Deste modo, em termos chomskianos, a performance seria conceito necessário, mesmo que não suficiente, para a atribuição de competência.

Em O estruturalismo, Piaget critica, além disso, a ilusão pós-moderna da “morte do sujeito”.

Sustentar, então, que o sujeito desapareceu para dar lugar ao impessoal e ao geral seria esquecer que, no plano dos conhecimentos (como, talvez, dos valores morais ou estéticos, etc.), a atividade do sujeito supõe uma contínua descentralização que o liberta de seu egocentrismo intelectual

5 A referência mitológica mais célebre à condição diádica do ser humano é dada por Aristófanes no Banquete de PLATÃO (2010, 189d-193e).

378 Tristan Torriani

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

espontâneo em proveito, não precisamente de um universal já pronto e exterior a ele, mas de um processo ininterrupto de coordenações e de reciprocações: ora, é esse próprio processo que é gerador das estruturas em sua construção ou reconstrução permanentes. Em resumo, o sujeito existe porque, de maneira geral, o “ser” das estruturas é sua estruturação. (PIAGET, 1970, p. 114)

Se adotamos, então, por um lado, a compreensão diádica da

internalização gradual da autorregulação nos indivíduos, por outro lado, temos a manutenção da primazia das estruturas cognitivas em Piaget.

No afã de atender a esses desenvolvimentos, mas também à suposta negligência piagetiana dos aspectos afetivo e social, Hans FURTH (1987) elaborou uma síntese entre Freud e Piaget articulada a partir da construção representacional-simbólica do período dos dois aos cinco anos, em que os fatores dinâmico e energético (“econômico”) do desenvolvimento psicossexual serviriam como motor. Assim, o desenvolvimento cognitivo continuaria a seguir o grande plano delineado pelo mestre suíço, mas permaneceria aberto a estímulos ou bloqueios provenientes da dimensão afetiva investigada pelo pai da Psicanálise.

Esta solução, porém, era buscada pelo próprio PIAGET (1972), haja vista sua conferência de 1970 para o congresso da Associação Psicanalítica Americana sobre o inconsciente afetivo e o inconsciente cognitivo. Nem o fator inconsciente (“dinâmico”), nem o energético (“econômico”) eram ignorados por ele. Em sua entrevista com Jean-Claude Bringuier, Piaget se explica:

Piaget: [...] Se o problema que se estuda é a construção das estruturas,

a afetividade, bem entendido, é essencial como motor, mas não constitui explicação das estruturas.

Bringuier: É estranho que, mesmo assim, ela não apareça no mesmo nível das estruturas! Porque um indivíduo é uma totalidade, é um todo.

Piaget: É isto, mas no estudo dos sentimentos, quando você encontra estruturas, são estruturas de conhecimento. Nos sentimentos de afeição mútua, por exemplo, há um elemento de compreensão, há um elemento de percepção. Tudo isto é cognitivo. Nas condutas você tem – e eu creio que todos os autores estão de acordo a este respeito – uma estrutura de conduta e uma energética da conduta. Há o motor e há o mecanismo. (BRINGUIER, 1993, p. 72)

Reequilibração cognitiva e instabilidade teórica em Freud e Piaget 379

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

De fato, a afetividade termina por fornecer o que poderíamos chamar

de uma coloração subjetiva à cognição, ora mais positiva, ora mais negativa. Por mais importante que seja reconhecer nossa irracionalidade, isso não é suficiente para fazer jus à complexidade cognitiva dos objetos com os quais estabelecemos atitudes afetivas e disposições volitivas.

O exemplo dado por Piaget na entrevista a Bringuier ilustra esse ponto: dois garotos poderão ter motivações muito desiguais para estudar matemática, mas as estruturas cognitivas permanecem as mesmas. A diferença, explica ele, reside na variedade de acomodações possíveis, observáveis mesmo entre os matemáticos. É claro que o mesmo pode ser estendido aos psicólogos e psicanalistas.

Podemos completar o plano dos estágios cognitivos piagetianos com a sequência psicossexual freudiana, lembrando que, mesmo que a afetividade possa bloquear ou estimular o desenvolvimento cognitivo, ela própria só pode construir seus objetos de amor ou ódio valendo-se de estruturas cognitivas. Se a criança ainda não tem a capacidade de construir o objeto permanente fora do seu campo perceptual até os dois anos, não há como fantasiar nesse período, pois isso requer representação mental, além do desejo. A ausência dos pré-requisitos cognitivos é algo que pode ser comprovado empiricamente nos bebês, ao passo que afirmações psicanalíticas a respeito de fantasias infantis não passam de especulações.

Diferentemente de Melanie Klein, Piaget entendia que o objeto desejado, fosse ele tido como bom ou mau, precisava ser construído pela cognição. Além disso, mostrou que era possível criar testes experimentais para avaliar o desenvolvimento cognitivo. Antes da construção do objeto permanente, a criança considera que a mamadeira, o rosto ou o seio da mãe desaparecem quando saem do seu campo perceptual. Certamente, isso tem tudo para gerar angústia. No entanto, não é possível, segundo Piaget, estabelecer que haja construção representacional simbólica desses objetos antes dos dois anos, quando termina o período sensoriomotor.

Sobretudo no que diz respeito à precedência ou não de objetos parciais em relação a objetos totais, Jean-Michel Petot procura minimizar o desacordo entre Klein e Piaget, mas se vê obrigado a tomar partido pelo segundo.

É preciso confessar que o que Freud, Abraham e Melanie Klein

380 Tristan Torriani

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

afirmaram não teria adesão, atualmente, dos psicólogos de crianças. A ideia de que a percepção dos órgãos separados preceda a percepção do corpo humano inteiro corre um sério risco de ser apenas um pré-julgamento associacionista. A percepção sincrética do todo precede muito provavelmente o entendimento analítico dos detalhes ou das partes separadas desse todo. [...] No estado atual do conhecimento, o único meio de salvar a noção kleiniana de objeto parcial é, sem dúvida o de lhe atribuir um sentido que Melanie Klein não poderia, em absoluto, conhecer em 1935 e considerar, assim como Piaget propôs em 1937, que o objeto é percebido inicialmente sob a forma de quadros que circulam em registros sensoriais distintos, entre os quais a criança, durante muito tempo, não estabelece nenhuma correspondência. (PETOT, 1988, p. 81)

Em sua pesquisa posterior, PIAGET (2010) investiga a interiorização de

símbolos com significados associativos fortemente subjetivos, devendo, portanto, ser distintos de signos, que já passam a ter significados regulados socialmente. Nesse período imaginativo, dito pré-operacional, a dificuldade da criança em realizar processos cognitivos reversíveis lhe impede de compreender transformações de objetos que se conservam. Pelo brincar, ela assimila o mundo, mas precisa da imitação para se ajustar (acomodar) a ele. Se supusermos uma criança nessa fase que afirma odiar o Estado em que habita, precisamos considerar não só o aspecto afetivo, mas o cognitivo. Sabemos que o Estado, enquanto ente público, é abstrato. Logo, a construção desse objeto odiado requer pelo menos capacidade de raciocínio formal que Piaget identifica somente a partir dos 11 anos. Não seria consistente, por isso, afirmar que uma criança antes dessa idade seja anarquista num sentido filosófico, mas que no máximo tenha possivelmente alguma dificuldade com a autoridade dos pais ou mesmo da comunidade em que vive.

Cumpre, portanto, reconhecer que a afetividade é ela mesma construída cognitivamente. Ao mesmo tempo, contudo, não há como negar que a afetividade provê tanto a energia quanto o direcionamento da cognição. Tampouco se pode negar, como reconhece PIAGET (1972) em sua conferência aos psicanalistas americanos em 1970, que muitos processos cognitivos ocorrem inconscientemente. É normal que o adulto não tenha noção alguma de que por bom tempo na sua infância não conseguia perceber a constância de comprimentos, superfícies, volumes e pesos que sofriam ligeiras alterações.

Reequilibração cognitiva e instabilidade teórica em Freud e Piaget 381

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

A tomada de consciência para Piaget, porém, vai além do sentido usual cotidiano e inclui uma transformação do objeto sobre a qual ocorre. Ela não é introspectiva, mas uma reflexão analítica do juízo que tem uma dimensão construtiva para o sujeito. Para a criança que realiza uma tarefa cognitiva, não há ainda uma compreensão reflexiva que conceitualize sua ação até que seus esquemas assimilados possam descrevê-la. Nas palavras de Piaget, “Em resumo, a tomada de consciência é uma reconstituição conceitual do que tem feito a ação.” (BRINGUIER, 1993, p. 126)

Para as teorias tradicionais do desenvolvimento, a passagem da criança de uma etapa para outra seria explicada por fatores externos como a influência do mundo natural ou a do mundo sociocultural. No entanto, Piaget objeta que esses fatores ambientais, sejam naturais ou socioculturais, ficam aquém como explicações, pois não dão conta da universalidade no desenvolvimento observado dos sistemas cognitivos. Crianças de ambientes muito diferentes seguem necessariamente, por exemplo, a sequência dos quatro grandes períodos (sensoriomotor, simbólico-representacional, operacional concreto e operacional formal). Por mais que varie o ambiente, não há criança que salte da coordenação sensoriomotora para o pensamento formal, sem ter antes passado por um período imaginativo seguido de outro dominado por manipulações concretas.

No que diz respeito a processos internos, a visão tradicional privilegia a maturação. Trata-se de um processo biológico, geneticamente condicionado, como a mielinização dos neurônios ou a lateralização do cérebro. Se fatores externos, ambientais, não explicam as regularidades universais no desenvolvimento cognitivo, a maturação supostamente forneceria a solução. Piaget objeta, porém, que se a cognição fosse um processo puramente biológico, seria necessário pressupor a pré-formação das estruturas, ao passo que o que se observa é um processo pessoal de construção na criança por interação com objetos e sujeitos. O pré-formismo e o inatismo (de Noam Chomsky, por exemplo) não nos permitem fazer jus à plasticidade individual no desenvolvimento cognitivo.

Ao comparar o desenvolvimento de sistemas biológicos e cognitivos, Piaget destaca o fato de que os sistemas cognitivos, sobretudo formais ou abstratos, conseguem se reorganizar sem necessariamente dependerem de conteúdos externos. O fato de que sistemas cognitivos aplicados à realidade incorporem conteúdos exteriores preserva, contudo, um vínculo com os

382 Tristan Torriani

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

sistemas biológicos.

[...] a diferença entre os sistemas biológicos e cognitivos está em que os primeiros não chegam à elaboração de formas sem conteúdos exógenos: ou melhor, a conservação mútua dos elementos do ciclo A, B, C, etc., não é possível sem sua alimentação contínua por meio dos elementos exteriores A’, B’, C’, etc. Ora, se a maioria dos sistemas cognitivos se aplica à realidade, sua forma A, B, C, [...] assimilando-se também a um conteúdo exterior A’, B’, C’, [...] há, em compensação, sistemas formais tais que o sujeito só considera, como objetos tematizados de pensamento, os primeiros desses elementos com sua estrutura, mas sem lhes fornecer conteúdos exteriores. (PIAGET, 1976, p. 13)

É importante então entender a equilibração como uma terceira via

entre aprendizagem, que prioriza causas exógenas e não faz jus à estruturação interna dos sujeitos, e a maturação, que não abre espaço para a construção individualizada do saber. “O sistema de Piaget”, explica BATTRO (1976, p. 323), “desconsidera a dicotomia entre processos de maturação por desenvolvimento de fatores inatos e processos de aprendizagem por experiência adquirida; isto se deve principalmente à introdução dos processos de equilibração que não podem se reduzir nem a um nem a outro.”

Em termos de aceitação, o modelo piagetiano da equilibração se apresenta como referência, por exemplo, para a linha psicanalítica da Análise Transacional inicialmente proposta por Eric Berne e desenvolvida por Thomas A. Harris. Em seu conhecido livro Eu estou Ok, você está Ok, Harris se remete à construção da noção de causalidade descrita por Piaget nos dois primeiros anos (período sensoriomotor).

Piaget diz: “No curso dos dois primeiros anos da infância a evolução da inteligência sensoriomotora, e também a correlata elaboração do universo, parecem levar a um estado de equilíbrio beirando o pensamento racional.” Penso que este estado de equilíbrio, evidente ao final do segundo ano ou durante o terceiro ano, é o produto da conclusão da criança sobre si mesma e os outros: sua posição vital. Uma vez que esta posição está decidida, ela tem algo sólido com o que operar, alguma base de predizibilidade. Piaget diz que estes processos mentais iniciais não são capazes de “saber ou afirmar verdades”, mas estão limitados a desejar

Reequilibração cognitiva e instabilidade teórica em Freud e Piaget 383

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

sucesso ou adaptação prática: se EU NÃO ESTOU OK e VOCÊ ESTÁ OK, o que tenho que fazer para que você, uma pessoa OK, seja boa para mim, uma pessoa NÃO OK? A posição pode parecer desfavorável, mas é uma impressão verdadeira, para a criança, e é melhor do que nada. Eis então o estado de equilíbrio. (HARRIS, 1967, p. 42; tradução minha)

A título de exemplo, a aprendizagem de língua estrangeira pode ilustrar

bem o modelo piagetiano de equilibração. O falante em país estrangeiro sairá do equilíbrio e terá que se adaptar assimilando inicialmente cumprimentos diários. Além disso, terá que acomodar sua pronúncia à fonologia da nova língua para ser compreendido. Sua competência será julgada a partir de sua performance, que, com a repetição, adquirirá maior consistência. Ele vivenciará interferência entre sua língua nova e sua língua materna se elas forem suficientemente próximas, e isso será resolvido por uma atenção maior à fonologia para mantê-las distintas. A língua em desuso tenderá a ser perdida ou empobrecida. No entanto, estágios de competência já adquiridos não são reversíveis, pois não podem ser totalmente apagados ou desconstruídos. A introdução de uma terceira língua desequilibrará as outras duas já aprendidas. Haverá processos conscientes e inconscientes. Habilidades passivas (ler e ouvir) predominarão sobre as ativas (falar e escrever). No estado de manutenção da língua, a equilibração será simples, e o falante permanecerá no mesmo estágio de competência. Ao passar para um novo estágio, haverá o que Piaget denomina equilibração majorante.

O conceito central que nos parece impor-se na explicação do desenvolvimento cognitivo (quer se trate de história das ciências quanto de psicogênese) é, pois, o de um melhoramento das formas de equilíbrio, ou seja, de uma “equilibração majorante”. Nosso esforço consistiu em procurar-lhes os mecanismos, constituindo o problema em explicar suas duas dimensões inseparáveis: a compensação das perturbações responsáveis pelo desequilíbrio motivador da pesquisa e a construção das novidades que caracterizam a majoração. (PIAGET, 1976, p. 156)

Na equilibração simples, o estado ideal de equilíbrio do sistema

permanece inalterado. Isso significa que a pessoa pode dar conta dos desafios com os recursos que já assimilou, dispensando a acomodação, em que seria necessário um ajuste ao exterior que alterasse as estruturas assimiladas. A

384 Tristan Torriani

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

equilibração simples é, portanto, uma situação de conforto para o organismo, em que a adaptação está bem-sucedida. Sem dúvida, a maior parte dos adultos preferiria passar sua existência nessa condição.

Infelizmente, a vida cria situações em que o sistema se vê confrontado com perturbações que não podem ser estabilizadas com os esquemas assimilados. O organismo terá que passar por uma reorganização em que o ponto de equilíbrio ideal será alterado. Isto envolverá ajuste ao exterior (acomodação externa), o que poderá exigir a assimilação de novas habilidades e a reordenação das já adquiridas (acomodação interna). Teremos então a equilibração majorante que marcará a passagem para um novo estágio de desenvolvimento. No caso clássico da transição entre o estágio sensoriomotor e o simbólico-representacional (dito pré-operacional), todas as habilidades de manuseio adquiridas pelo bebê terão que ser reaprendidas a partir dos dois anos num plano de representação mental anteriormente não disponível. Na transição desse estágio imaginativo para o próximo nível, a criança a partir dos sete anos terá que adquirir a capacidade de perceber a conservação de comprimento, superfície, volume e peso reconhecendo a reversibilidade das modificações realizadas sobre os objetos. Este reconhecimento da reversibilidade de transformações sobre objetos concretos caracteriza o estágio operacional concreto. Na última transição, a criança a partir dos 12 anos conseguirá dispensar o apoio nas sensações e percepções, e abordará problemas formalmente, partindo de relações lógicas modais aléticas, envolvendo possibilidade e necessidade.

Como vimos na citação acima de Piaget, a equilibração majorante teria dois aspectos fundamentais. O primeiro seria a capacidade de o sistema conseguir encontrar um modo de acionar regulações que compensem as perturbações causadoras do desequilíbrio. Como haverá o deslocamento interno do ponto de equilíbrio ideal, as regulações assimiladas precisam pelo menos dar conta do funcionamento básico do sistema durante essa reestruturação. O segundo aspecto fundamental é a construção de um novo ponto ideal de equilíbrio, o que não estaria biologicamente pré-determinado e dependeria da atividade mental individual. No caso do bebê que passa para o estágio pré-operacional, ele terá agora um outro centro, o representacional, a partir do qual reorganizar sua inteligência. Na passagem do estágio operacional concreto para o operacional formal ocorreria, de novo, uma majoração, em que

Reequilibração cognitiva e instabilidade teórica em Freud e Piaget 385

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

no lugar de ter que raciocinar sempre com base na experiência dada, a criança conseguiria abordar problemas a partir de uma compreensão abstrata das possibilidades e necessidades, o que marcaria o deslocamento de seu centro de equilíbrio para a inteligência formal.

O modelo de equilibração piagetiano não deixa de ter problemas próprios, mas é relativamente parcimonioso e conservador em seus pressupostos. Basta comparar a diferença na recepção pública entre os modelos de desenvolvimento psicossexual freudiano e o cognitivo piagetiano. De fato, Piaget privilegia a adaptação, suscitando por vezes a crítica por Jiddu Krishnamurti, de que não é um sinal de saúde estar bem-adaptado a um mundo profundamente doente. O sábio indiano deixa contudo indefinido, com essa objeção, o que seria para ele um mundo sadio, o que por sua vez abre toda uma outra discussão.

ROS (1983) aponta a recaída de Piaget no pré-formismo por não conseguir dar conta da equilibração majorante em modo que não pressuponha um finalismo pré-determinado. O problema é que o todo deve prover a regulação das partes. Na equilibração simples, o todo se mantém constante, então não há dificuldades. Na equilibração majorante, porém, as partes deverão constituir um todo novo, e não é claro como o todo antigo poderia direcionar a regulação das partes durante esse processo. Segundo Ros, a causa da aporia na concepção piagetiana da equilibração majorante residiria na insistência do mestre suíço em manter uma concepção estritamente dedutiva de gêneses (tanto no nível filo- quanto onto-), o que, porém, exclui logicamente a possibilidade de surgir algo novo, devido ao princípio da identidade que se aplica à inferência dedutiva. A tradição darwinista, ao adotar uma interpretação estatística-probabilística, teria obtido uma vantagem enorme em relação à tradição lógica-dedutiva seguida por Piaget, que exige necessidade lógica na sequência do desenvolvimento.

Piaget tem certamente razão com sua tentativa na teoria da evolução e do desenvolvimento de construir modelos mais diferenciados para a interação entre o interior e o exterior de um sistema do que aqueles que são comumente usados. Mas ele procedeu de modo excessivamente radical na sua crítica à concepção de Darwin, e por isso no final das contas se reaproximou, apesar de tudo, a uma concepção pré-formista. (ROS, 1983, p. 68)

386 Tristan Torriani

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

Esta reaproximação ao pré-formismo ocorreria pelo uso indevido da concepção de sujeito epistêmico enquanto portador do plano final para o desenvolvimento cognitivo. Para evitar petição de princípio, Ros nota que a equilibração majorante teria que ocorrer sem pré-determinação. Uma saída para a dificuldade, apontada pelo próprio Piaget, seria tratar a majoração como um evento probabilístico em que, a cada nível de desenvolvimento, aumentaria a chance do sistema se reorganizar de certas maneiras. As partes se transformariam então em um novo todo, sem que o todo velho tivesse que guiar o processo de antemão. Segundo Ros, as duas vantagens disto seriam que (a) se poderia renunciar a uma concepção forte do sujeito epistêmico que impediria logicamente a majoração, e que (b) as probabilidades em cada nível seriam restritas às estruturas cognitivas ali disponíveis, evitando-se assim a arbitrariedade extrema de possibilidades adaptativas que Piaget compreensivelmente repudiava no neodarwinismo.

No que diz respeito à equilibração na instabilidade teórica nas ciências, Piaget reconhece sua inevitabilidade, mesmo para as matemáticas.

[...] por mais diversos que sejam os fins perseguidos pela ação e pelo pensamento (modificar os objetos inanimados, os vivos e a si próprio, ou simplesmente compreendê-los), o sujeito procura evitar a incoerência e tende, pois, sempre na direção de certas formas de equilíbrio, mas sem jamais atingi-las, senão às vezes a título de etapas provisórias: mesmo no que concerne às estruturas lógico-matemáticas cujo fechamento assegura a estabilidade local, este acabamento se abre, constantemente, sobre novos problemas devidos às operações virtuais que ele torna possível construir sobre os precedentes. A ciência mais elaborada permanece, assim, num vir-a-ser contínuo e, em todos os domínios, o desequilíbrio desempenha papel funcional de primeira importância enquanto necessitando de reequilibrações. (PIAGET, 1976, p. 156)

Há assim, em Piaget uma concepção dialética do pensamento. A

equilibração majorante, em que ocorreria auto-superação, corresponde, como poderia sugerir Thomas KESSELRING (1999), à Aufhebung de Hegel. No entanto, Monzani nos alerta que:

Reequilibração cognitiva e instabilidade teórica em Freud e Piaget 387

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

[...] é necessário precisar com maior clareza esse conceito de superação no interior da obra de Freud. Nem sempre se trata de uma superação do tipo hegeliano. Nesse último sentido, pode-se dizer com segurança que o pensamento de Freud é muito pouco dialético. Essa superação em Freud parece estar muito mais ligada a um movimento em que essas oscilações, das quais já falamos, acabam por se compor numa unidade, sem que, no entanto, haja necessariamente uma síntese no sentido hegeliano. Isso parece estar muito mais ligado a uma progressiva redefinição, retificação ou explicitação dos conceitos. (MONZANI, 2014, p. 294)

Sendo assim, tentando pensar o movimento do pensamento freudiano

em termos do modelo de equilibração piagetiano, o que se sugere é que não teria havido equilibração majorante, mas apenas simples. Os movimentos pendulares apontados por Monzani podem ser explicados pelo dualismo pulsional identificado por Giacoia. A rotação em espiral, correspondente à mudança de perspectiva permitida no carrossel, seria resultante da posição privilegiada da Metapsicologia, como sugerem Wilkes e Kitcher. Na dinâmica adaptativa desses movimentos teria predominado a assimilação sobre a acomodação. Na assimilação, é a atividade do sujeito que predomina, permitindo o uso livre da imaginação. Na acomodação, são as características do ambiente externo que se impõem ao sujeito, obrigando-o a alterar-se. Eventualmente, a intensidade dessas perturbações pode exigir uma reorganização do sujeito na realização de uma equilibração majorante, sujeita mais à probabilidade do que à necessidade lógica. No entanto, o caráter altamente especulativo do pensamento freudiano sugere ter havido, ao contrário, o predomínio do subjetivo sobre o objetivo, e a manutenção da equilibração simples. O tratamento brutal dado a dissidentes (Adler e Jung) que tentassem alterar a Metapsicologia tampouco sugere disponibilidade para a acomodação ou para a equilibração majorante por parte do pai da Psicanálise.

5. Considerações finais Um pouco como Freud, Piaget pensa a instabilidade teórica como

sendo inerente à inteligência humana e a explica no âmbito de uma concepção adaptativa ao ambiente natural e social, mas afirma a plasticidade, a integridade, e a autonomia (mesmo que não energética) da construção cognitiva individual

388 Tristan Torriani

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

em relação à afetividade. Esta flexibilidade deu condições ao mestre suíço de enfrentar desafios cognitivos supremos ao manter relações inter- e multidisciplinares com matemáticos, físicos, analistas de sistemas, cibernéticos, biólogos, historiadores da ciência, sociólogos, psicólogos, antropólogos e filósofos em seu centro genebrino, o que contrasta muito com o isolamento buscado pelas sociedades psicanalíticas. Seu modelo de equilibração nos permite apreciar o movimento do pensamento freudiano enquanto adaptação, de caráter predominantemente assimilativo, a um material clínico em constante variação. A razão mais fundamental da instabilidade teórica de Freud pode residir na subordinação que ele impôs do cognitivo ao afetivo, em que não há estruturas, mas apenas energia. Submetido: 08.10.2016; Aceito: 14.10.2017

Referências

BATTRO, A.M. (1976). O pensamento de Jean Piaget: psicologia e epistemologia. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Original em castelhano: Buenos Aires, 1969.

BRINGUIER, J.-C. (1993). Conversando com Jean Piaget. Trad. Maria José Guedes. 2a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. Orig. em francês: 1976.

FREUD, S. ([1895] 2010). Projeto para uma psicologia científica. In: FREUD (2010), op. cit., v. 1. Manuscrito em alemão de 1895, publicado em 1950.

–––––– ([1914] 2010). Introdução ao narcisismo. In: FREUD (2010), op. cit., v. 12, p. 9-37.

–––––– ([1915] 2010). Os instintos e seus destinos. In: FREUD (2010), op. cit., v. 12, p. 38-59.

–––––– (2010). Obras completas de Sigmund Freud. Trad. Paulo César de Souza. São

Reequilibração cognitiva e instabilidade teórica em Freud e Piaget 389

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

Paulo: Companhia das Letras.

FURTH, H. G. (1987). Knowledge as desire: an essay on Freud and Piaget. New York: Columbia University Press.

GIACOIA Jr., O. (2012). Ontologia e metapsicologia: considerações sobre o dualismo pulsional. Idéias (Campinas) 3(1): 123-43.

GRÜNBAUM, A. (1984). The foundations of psychoanalysis. Los Angeles: University of California Press.

HARRIS, T.A. (1967). I’m OK – You’re OK: a practical guide to transactional analysis. New York & Evanston: Harper & Row. Em português: (1969). Eu estou OK, você está OK. Trad. E. Arthen. Rio de Janeiro: Artenova.

KESSELRING, T. (1999). Jean Piaget. 2a edição revista. Munique: Beck.

KITCHER, P. & WILKES, K.V. (1988). What is Freud’s metapsychology? Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary Volumes 62: 101-137. Texto de Kitcher: p. 101-15; texto de Wilkes: p. 117-37.

LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J.-B. (2001). Vocabulário de psicanálise. 4a ed. sob a direção de D. Lagache. Trad. P. Tamen. São Paulo: Martins Fontes. Orig. em francês: 1967.

LITOWITZ, B.E. (1999). Freud and Piaget: une fois de plus. The Genetic Epistemologist 27(4). Online: http://www.piaget.org/GE/1999/GE-27-4.html

MONZANI, L.R. (2014). Freud: o movimento de um pensamento. 3a ed. Campinas: Editora da UNICAMP.

PETOT, J.-M. (1988). Melanie Klein II. O ego e o bom objeto, 1932-1960. Trad. B.P. Haber. São Paulo: Perspectiva. Orig. em francês: 1982.

390 Tristan Torriani

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 4, v. 2, n. 2, p. 361-90, jul.-dez. 2016.

PIAGET, J. (1970). O estruturalismo. Trad. M.R. de Amorim. São Paulo: Difusão Europeia do Livro.

–––––– (1972). Inconsciente afetivo e inconsciente cognitivo. In: PIAGET, J. Problemas de psicologia genética. Trad. C.E.A. Di Piero. Rio de Janeiro: Forense, p. 33-47. Orig. em francês: 1971.

–––––– (1976). A equilibração das estruturas cognitivas: problema central do desenvolvimento. Trad. A. Cabral. Rio de Janeiro: Zahar.

–––––– (2010). A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação. Trad. A. Cabral & C.M. Oiticica. 4a ed. Rio de Janeiro: LTC.

PLATÃO (2010). O banquete. [Simpósio]. Trad. C.A. Nunes. Edição bilíngue. Belém: EDUFPA. Original em grego: c. 380 ACE.

PROUST, M. (1990). À l’ombre des jeunes filles en fleurs. À la recherche du temps perdu, tome 2. Paris: Gallimard. Original: 1918. Em português: (2006). À sombra das raparigas em flor. Em busca do tempo perdido, v. 2. Trad. M. Quintana. 3a ed. São Paulo: Globo.

ROS, A. (1983). Die Genetische Epistemologie Jean Piagets: Resultate und offene Probleme. Philosophische Rundschau, Beiheft 9. Tübingen: Mohr.

SULLOWAY, F.J. (1979). Freud, biologist of the mind: beyond the psychoanalytic legend. New York: Basic Books.

–––––– (2005). Freud recycleur: cryptobiologie et pseudoscience. Entretien avec M. Borch-Jacobsen, Cambridge (MA), 1994. Trad. M.-C. Politzer. In: MEYER, C. (org.). Le livre noir de la psychanalyse: vivre, penser et aller mieux sans Freud. Paris: Éditions des Arènes, p. 49-65.

WILDE, D. (2011). Jung’s personality theory quantified. London: Springer.