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Crescimento econômico não garante iclusão Direito Achado na Rua Consórcios Públicos Socialismo Século XXI Nº 14 Julho de 2007 R$ 2,00 Constituição & Democracia C&D

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Page 1: C&DConstituição & Democracia - fsaesilva.net · ção do direito depende de suas possibilidades coletivas. É com essa perspectiva que o Observatório da Constituição e Democracia

Crescimento econômiconão garante iclusão

��Direito Achado na Rua��Consórcios Públicos��Socialismo Século XXI

Nº 14Julho de 2007

R$ 2,00 Constituição & DemocraciaC&D

Page 2: C&DConstituição & Democracia - fsaesilva.net · ção do direito depende de suas possibilidades coletivas. É com essa perspectiva que o Observatório da Constituição e Democracia

EDITORIALOObbsseerrvvaattóórriioo ddaa CCoonnssttiittuuiiççããoo ee ddaa DDeemmooccrraacciiaa

Odireito não está apenas nas leis, nos governantes ou no Estado. Em seu histórico de constru-ção política, desde as garantias constitucionais mais amplas até as mais simples regras instru-mentais, ele apenas pode ser concebido de forma plena se vivenciado cotidianamente pela so-

ciedade. Para além da tradicional composição processual de conflitos individuais, hoje a materializa-ção do direito depende de suas possibilidades coletivas. É com essa perspectiva que o Observatórioda Constituição e Democracia n° 14 direciona seu olhar para as políticas públicas de inclusão, pormeio das quais o governo pratica os preceitos constitucionais e pode permitir a todos os cidadãos oexercício de seus direitos fundamentais, independentemente de sua condição social.

Sobre políticas inclusivas voltadas para a questão espacial urbana, Alexandre Bernardino e Jan YuriAmorim relatam o histórico da Vila Telebrasília, cujo grande problema foi se localizar “próxima demais”ao centro da capital federal. No plano da economia, Thiago Pinheiro promove uma análise jurídica e de-lineia a possibilidade de o sistema financeiro se vincular a iniciativas socialmente responsáveis, atentasaos direitos humanos e à Constituição Federal.

Especialista na defesa inclusiva, Rosane Lacerda apresenta um balanço do seminário realizado pelaCâmara dos Deputados para avaliar a agenda do Congresso sobre a questão indígena. Como convida-das, Luisa Passos discute a viabilidade de uma educação includente, diante de uma visão uniformizado-ra que conflita com a diversidade dos alunos; Verônica Moura analisa se os consórcios público-privadosrepresentam a quebra ou fortalecimento do pacto federativo; e Patricia Almeida relata como a internettornou viável a solidariedade com portadores Síndrome de Down.

No Observatório do Judiciário, Sven Peterke propõe deixar de lado a discussão sobre a popularida-de de um magistrado brasileiro, que tem por hábito se manifestar publicamente. O direito penal mere-ceu especial atenção, pois para muitos cidadãos, essa é a única esfera do direito com que Estado brasi-leiro os enxerga. Inicialmente, Carmen de Campos aponta a necessidade de se adotar uma perspectivade gênero mais sensível em relação às violações de direitos humanos nos casos de violência domésticacontra as mulheres. Em seguida, além da crítica incisiva de Virgílio de Mattos ao cinismo das propostasde redução da maioridade penal, Fábio Sá e Silva denuncia o déficit de exercício da cidadania nas pri-sões e entrevista José Eduardo Faria, professor de Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito da USP,pioneiro na analise rigorosa das relações entre Direito e Sociedade.

Toda essa visão de um direito que não se limita às leis postas pelo Estado e transpassa as paredesdos tribunais é amalgamada no artigo de Menelick C. Neto, que abre este número. O português Boaven-tura de Sousa Santos finaliza esta edição traçando perspectivas para o socialismo no Século XXI.

GGrruuppoo ddee ppeessqquuiissaa SSoocciieeddaaddee,, TTeemmppoo ee DDiirreeiittooFFaaccuullddaaddee ddee DDiirreeiittoo –– UUnniivveerrssiiddaaddee ddee BBrraassíílliiaa

02 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2007

� AA ccoonnttrriibbuuiiççããoo ddoo DDiirreeiittoo AAcchhaaddoo nnaa RRuuaa ppaarraa uumm ccoonnssttiittuucciioonnaalliissmmoo ddeemmooccrrááttiiccooMenelick C. Neto – Doutor em Direito Constitucional pela UFMG, professor de Filosofia do Direito eTeoria da Constituição dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da UnB.É Integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito 33

� CCiiddaaddaanniiaa nnaass pprriissõõeess ee pprreevveennççããoo ddaa vviioollêênncciiaaFFáábbiioo CCoossttaa MMoorraaiiss ddee SSáá ee SSiillvvaa –– Advogado graduado pela Universidade de São Paulo (USP), commestrado pela Universidade de Brasília (UnB). Foi dirigente no Departamento Penitenciário Nacional doMinistério da Justiça e consultor da Unesco no projeto Educando para a Liberdade. É doutorando emDireito, Política e Sociedade pela Northeastern University (Boston, EUA) e integrante dos grupos depesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua 44

� SSiisstteemmaa ffiinnaanncceeiirroo,, iinncclluussããoo ssoocciiaall ee cciiddaaddaanniiaaTThhiiaaggoo JJaabboorr PPiinnhheeiirroo –– Advogado, mestrando em Direito pela UnB e integrante de grupo de pesquisa Direito, Economia e Sociedade 66

� MMaaiioorriiddaaddee ppeennaall:: rreedduuzziirr aass pprrooppoossttaass iimmbbeecciissVViirrggíílliioo ddee MMaattttooss –– Professor de Criminologia na Escola Superior Dom Helder Câmara (BH) e de DireitoPenal e Criminologia, na Universidade Federal de Ouro Preto. Editor da revista Veredas do Direito ecoordenador do grupo de pesquisas Violência, Criminalidade e Direitos Humanos. Mestre em Direito pela UFMG e doutor em Direito pela Universidade de Lecce 77

� OO ddeessaaffiioo ddaa iinncclluussããoo nnaa eedduuccaaççããoo bbrraassiilleeiirraaLLuuiissaa MMaarriillaacc –– Mestre em Direito. Promotora de Justiça Cível e de Defesa da Criança e do Adolescente do Distrito Federal 88

� DDiirreeiittooss hhuummaannooss,, vviioollêênncciiaa ddee ggêênneerroo ee ddiirreeiittoo ppeennaallCCaarrmmeenn HHeeiinn ddee CCaammppooss –– Advogada, mestre em Direito pela UFSC e integra o programa LLM emReproductive And Sexual Health Law da Universidade de Toronto, Canadá 1100

� EEnnttrreevviissttaa –– JJoosséé EEdduuaarrddoo FFaarriiaaSSóó ccrreesscciimmeennttoo eeccoonnôômmiiccoo nnããoo ttrraazz iinncclluussããoo ssoocciiaallFFáábbiioo CCoossttaa MMoorraaiiss ddee SSáá ee SSiillvvaa –– Advogado graduado pela Universidade de São Paulo (USP), commestrado pela Universidade de Brasília (UnB). Foi dirigente no Departamento Penitenciário Nacional doMinistério da Justiça e consultor da Unesco no projeto Educando para a Liberdade. É doutorando emDireito, Política e Sociedade pela Northeastern University (Boston, EUA) e membro dos grupos depesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua 1122

� AA aaggeennddaa ddoo CCoonnggrreessssoo ee ooss ddiirreeiittooss iinnddííggeennaassRRoossaannee LLaacceerrddaa –– Advogada indigenista e mestra em Direito e Estado pela UnB. É integrante do grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua 1144

� VViillaa ddaa TTeelleebbrraassíílliiaa –– ""AAqquuii tteemm hhiissttóórriiaa""AAlleexxaannddrree BBeerrnnaarrddiinnoo –– Professor da Faculdade de Direito da UnB, coordenador de Extensão – FD/UnB e integrante dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na RuaJJaann YYuurrii FFiigguueeiirreeddoo ddee AAmmoorriimm –– Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB.Advogado do Núcleo de Prática Jurídica e Escritório de Direitos Humanos e Cidadania da UnB 1166

� OObbsseerrvvaattóórriioo ddoo LLeeggiissllaattiivvooCCoonnssóórrcciiooss ppúúbblliiccoo--pprriivvaaddooss:: qquueebbrraa oouu ffoorrttaalleecciimmeennttoo ddoo ppaaccttoo ffeeddeerraattiivvoo??VVeerrôônniiccaa FFrreeiittaass MMoouurraa –– Especialista lato sensu em Direito Constitucional pela Universidade Federal deGoiás. Oficial da Força Aérea Brasileira, na especialidade: Serviços Jurídicos, ocupando o cargo deadjunta da Divisão de Contratos e Convênios da Secretaria de Economia e Finanças da Aeronáutica 1188

� OObbsseerrvvaattóórriioo ddooss MMoovviimmeennttooss SSoocciiaaiissSSoolliiddaarriieeddaaddee ee aaççããoo vviirrttuuaall –– OO eexxeemmpplloo ddoo mmoovviimmeennttoo ddee ssíínnddrroommee ddee DDoowwnnPPaattrriicciiaa SS.. MM.. AAllmmeeiiddaa –– Jornalista, assessora técnica da Coordenadoria Nacional para a Integração daPessoa Portadora de Deficiência, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos – Presidência daRepública (CORDE/SEDH/PR), membro do Movimento pela Inclusão das Pessoas com Síndrome deDown, membro fundadora da Associação DFDown, moderadora dos grupos de discussão Síndrome deDown, RJDown e DFDown , coordenadora do Instituto Meta Social – DF, da Campanha Ser Diferente é Normal e coordenadora do Canal Down21 em português 2200

� OObbsseerrvvaattóórriioo ddoo JJuuddiicciiáárriiooLLeeggiittiimmaaççããoo ppeellaa ppuunniiççããooSSvveenn PPeetteerrkkee –– Professor visitante da Faculdade de Direito da UnB, doutor iur. e master in HumanitarianAssistance pela Ruhr-Universidade, de Bochum (RFA), Dipl. iur. pela Christian-Albrechts-Universidade,de Kiel (RFA) 2222

� OObbsseerrvvaattóórriioo ddoo MMiinniissttéérriioo PPúúbblliiccooRReettrroocceessssoo aammeeççaa oo eessttaaddoo ddeemmooccrrááttiiccoo ddee ddiirreeiittooAAnnttoonniioo CCaarrllooss AAllppiinnoo BBiiggoonnhhaa –– Presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) 2233

� SSoocciiaalliissmmoo SSééccuulloo XXXXIIBoaventura de Sousa Santos – Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra 2244

EXPEDIENTE

Caderno mensal concebido, preparado eelaborado pelo Grupo de PesquisaSociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB – Plataforma Lattes do CNPq).

CoordenaçãoAlexandre Bernardino CostaCristiano PaixãoJosé Geraldo de Sousa JuniorMenelick de Carvalho Netto

Comissão de redaçãoAdriana Andrade MirandaGiovanna Maria FrissoJanaina Lima Penalva da SilvaLeonardo Augusto Andrade BarbosaMariana Siqueira de Carvalho OliveiraMarthius Sávio Cavalcante LobatoPaulo Henrique Blair de OliveiraRicardo Machado Lourenço Filho

Integrantes do ObservatórioAline Lisboa Naves GuimarãesBeatriz Cruz da SilvaCarolina PinheiroDaniel Augusto Vila-Nova GomesDaniel Barcelos VargasDaniela Diniz

Douglas Antônio Rocha PinheiroEduardo RochaFabiana GorensteinFabio Costa Sá e Silva Fernanda-Cristinne Rocha de PaulaGuilherme Cintra GuimarãesGuilherme ScottiGustavo Rabay GuerraHenrique Smidt SimonJan Yuri AmorimJean Keiji UemaJorge Luiz Ribeiro de MedeirosJuliano Zaiden BenvindoLaura Schertel Ferreira MendesLúcia Maria Brito de OliveiraMaurício Azevedo AraújoPaulo Rená da Silva SantarémPaulo Sávio Peixoto MaiaPedro DiamantinoRamiro Nóbrega Sant´AnaRenato BigliazziRosane LacerdaSilvia Regina Pontes LopesSven PeterkeVitor Pinto Chaves

Projeto editorialR&R Consultoria e Comunicação Ltda

Editor responsávelLuiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS)

Editor assistenteRozane Oliveira

DiagramaçãoGustavo Di Angellis

IlustraçõesFlávio Macedo Fernandes

[email protected]

SindPD-DF

Sindicato dos Bancáriosde Brasília

Assine C&[email protected]

A contribuição do Direito Achado na Ruapara um constitucionalismo democráticoMenelick de Carvalho Netto

Temos a honra de poder afirmarque o Direito Achado na Rua éuma das principais vertentes

investigativas que integram as li-nhas de pesquisa do Programa dePós-Graduação em Direito da UnB eque atribuem densidade e relevo àsua área de concentração em “Direi-to, Estado e Constituição”. Essa cor-rente teórica, em articulação com oGrupo de Pesquisa Sociedade, Tem-po e Direito, tem sido a força motrizda criação e do desenvolvimentodeste Observatório da Constituiçãoe da Democracia. Acredito que o lei-tor possa agora melhor avaliar, por simesmo, ao conhecer, no mínimo, al-guns dos artigos publicados nesteperiódico, a razão do alto reconheci-mento acadêmico-científico nacio-nal e internacional de que goza essavertente investigativa, inclusive porhaver inovado de forma corajosa epioneira, ainda no período ditatori-al, não somente a forma de se ver eabordar o Direito, mas também porimpulsionar decisivamente a refle-xão acerca do modo como se ensi-nava o Direito, colocando em açãonovas práticas pedagógicas e exigin-do a reformulação do ensino jurídi-co como um todo.

A apropriação privada de toda aesfera pública promovida pela ideo-logia da Segurança Nacional passa-va, sem dúvida, pela redução do fe-nômeno jurídico enfocado sob a óti-ca de um monismo estatal simplistaem que a forma jurídica, esvaziadade qualquer sentido normativo quepudesse contribuir para denunciar oseu abuso, era entregue, sem peias,aos títeres militares e a seus asseclas.

Foi nesse contexto, totalmenteadverso, que Roberto Lyra Filho cu-nhou a expressão Direito Achado naRua, para com ela resgatar a dimen-são normativa emancipatória e in-clusiva inerente ao direito, apta aapreender o direito que nasce daação dos movimentos sociais e a de-nunciar a sua redução formalista eestatizante como uma instrumenta-lização abusiva. Lyra Filho, ao for-

mular o projeto da Nova Escola Jurí-dica Brasileira – Nair, supera o positi-vismo formalista e os jusnaturalis-mos não mais plausíveis, acolhendoreflexivamente a força libertária e in-clusiva da herança crítica marxiana,e faz com que o nexo interno entre osistema de direitos e a democraciasurja em toda a sua clareza expressonas lutas por reconhecimento dosmovimentos sociais, tornando visí-vel a exigência de permanente aber-tura do Direito e da política. É o plu-ralismo jurídico que postula e requero pluralismo político e o social.

A linha investigativa do Direito

Achado na Rua é hoje desenvolvidana UnB, sob a impecável e dinâmicacoordenação acadêmica de José Ge-raldo de Sousa Júnior, por um signi-ficativo grupo de professores, pes-quisadores, mestrandos, doutoran-dos e graduandos em uma série deprojetos que se realizam nos camposdo ensino, da pesquisa e da extensão,sempre articulados de modo a ga-rantir a indissociabilidade dessestrês âmbitos, atribuindo densidadee concretude ao projeto pedagógicosonhado por Lyra Filho. E essa expe-riência realizada na UnB serviu denorte para a reforma do ensino jurí-

dico levada a efeito no país.No que se refere à atualidade teó-

rica do conteúdo dessa linha investi-gativa, é interessante salientar que,portanto, muito antes da queda domuro de Berlim, Roberto Lyra Filhojá havia sido capaz de conceituar oDireito como “a legítima organizaçãosocial da liberdade”, deixando clara aparadoxal contradição performativaem que incorre qualquer ditadura aobuscar se apresentar como uma or-ganização juridicamente estrutura-da. Muitas décadas depois, será pre-cisamente este o argumento centralempregado por Jürgen Habermas noseu Direito e Democracia para com-provar a tese de que a modernidaderequereria também a liberação (con-junta com a da racionalidade instru-mental preponderante) de uma raci-onalidade comunicativa sempre pre-sente em maior ou menor grau nainstitucionalização do Direito e dapolítica modernos.

A problemática levantada pela te-oria acerca da relação entre o Direitoe a democracia encontra-se assimno cerne do debate e da produçãoreflexiva da filosofia, da filosofia po-lítica, da ciência política e da histó-ria das idéias e das instituições, de-saguando na necessária revisão e re-construção da doutrina constitucio-nal. Sendo imperativo concluir queos abusos institucionais não maispodem ser aceitos seja como demo-cracia, seja como Direito, e nemmesmo como constitucionais.

A democracia só é democráticaquando constitucionalmente cons-truída, a Constituição só é constitu-cional quando democrática. Domesmo modo, a legitimidade im-põe que a igualdade que reciproca-mente nos reconhecemos constitu-cionalmente só possa ser entendidacomo o direito à diferença, pois car-rega em si também o sentido opos-to do reconhecimento recíproco dodireito à liberdade de cada um. Porisso mesmo o Direito só pode seratualmente compreendido em suacomplexidade que se tornou visívelcomo a “legítima organização so-cial da liberdade”.

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2007 UnB – SindjusDF | 03

A legitimidade impõe que a igualdade só possa ser entendida

como o direito à diferença

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Fábio Costa Morais de Sá e Silva

As recentes mudanças no co-mando do Ministério da Justi-ça trouxeram à tona, mais

uma vez, este que é um dos maioresdesafios à construção de uma verda-deira ordem democrática no país: anecessidade de concebermos estra-tégias responsáveis para mediar anossa relação com a violência. Assu-mir esse desafio está longe de ser ta-refa das mais fáceis quando crescemclamores por soluções simplistas,como a redução da maioridade pe-nal ou a adoção da pena de morte.Em todo caso, é o que tem feito emsucessivas oportunidades o novo ti-tular da Pasta, Ministro Tarso Genro,com a reivindicação de uma maiorinterface entre políticas sociais e po-líticas de segurança pública.

A proposta do Ministro está emsintonia com o que de mais atualiza-do existe no assunto: a ênfase na pre-

venção, ou seja, na conjugação de es-forços entre Poder Público e Socieda-de para reduzir os fatores de riscos eaumentar os fatores de proteção dosindivíduos e grupos sociais em rela-ção aos crimes e à violência. No en-tanto, sugere uma revisão crítica doque até agora vimos concebendo co-mo segurança pública: mais que asimples aplicação da lei, trata-se defirmar um compromisso com a pro-dução de novos e mais solidários sen-tidos para a vida em comunidade.

É nessa mudança de abordagemque se torna pertinente voltarmos osolhos a um tema esquecido na agen-da nacional: as prisões. E o motivo ébem simples: embora exista entre nósum grande ressentimento de estatísti-cas seguras, nunca houve estudo queconcluísse por um índice de reinci-dência criminal inferior a 60%. To-mando por base esse número, temosque dos cerca de 400 mil presos queintegravam o sistema em dezembro

de 2006, 240 mil já registravam passa-gens anteriores por cadeias publicasou estabelecimentos penitenciários.

Não é para menos. Uma passa-gem de olhos pela nossa execuçãopenal é suficiente para demonstrarque ela não tem servido para nadaalém de aumentar a vulnerabilidadeque via de regra já é um elementoconstitutivo dos itinerários de vidade apenados e apenadas. Pesquisasrealizadas no decorrer do primeiroGoverno Lula indicavam, por exem-plo, que daquele imenso contingen-te de detentos menos de 20% encon-travam-se envolvidos em atividadeseducacionais e menos de 25% ematividades produtivas, ainda que bai-xíssimos sejam os níveis de escolari-dade e de acesso prévio ao mundodo trabalho registrados em meio aessa população. A essa completa oci-osidade, somem-se ainda a conside-rável fragilização dos vínculos fami-liares e a escassez de programas de

apoio ao egresso depois que este ob-tém o alvará de soltura.

O fato, que para muitos pode pa-recer inusitado, é que uma das maio-res fontes de violência instaladas noBrasil é administrada pelo próprioEstado: são as prisões, por mais queisso não fique claro quando de foradelas avistamos apenas muros e gua-ritas. Daí porque elas devem consti-tuir uma parada obrigatória de qual-quer ação preventiva em matéria desegurança pública, como a que cons-ta das intenções do novo Ministro. Aquestão é saber como fazer isso, jáque os investimentos sociais nas pri-sões estão definitivamente fora dasnossas práticas de gestão. Não à toa,uma auditoria realizada pelo TCUpara investigar a “profissionalizaçãodo preso” constatou imensa dispari-dade entre a aplicação de recursosfederais para a construção de novospresídios e para a implementação deprogramas de reintegração social.

04 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2007

Cidadania nas prisões eprevenção da violência

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2007 UnB – SindjusDF | 05

Talvez um bom ponto de partidaseja tomar como exemplo o que omesmo Tribunal de Contas reconhe-ceu como uma das poucas boas ini-ciativas na área: o projeto “Educandopara a Liberdade”, desenvolvido combase numa parceria entre a UNES-CO, o Ministério da Educação e o Mi-nistério da Justiça.

Tendo por objetivo construiruma política pública para a amplia-ção da oferta da educação nas pri-sões, o projeto gerou maior aproxi-mação entre as Secretarias Estadu-ais de Administração Penitenciária ede Educação para a discussão de es-tratégias de atendimento que con-templassem: a gestão compartilha-da, a adoção de metodologias e/oufundamentos pedagógicos adequa-dos ao público em questão e a for-mação/valorização dos profissio-nais envolvidos na oferta (de agen-tes penitenciários a professores).

Paralelamente, o projeto criouoportunidades inéditas de financia-mento que aos poucos foram esti-mulando a adesão e o compromissodas Unidades Federativas, a pontode em dois anos de existência teremsido celebrados convênios com 12(doze) Estados. E mais: fez convergiressa trajetória de realizações paraum processo participativo de cons-trução de referenciais políticos, téc-nicos e gerenciais sobre a questão, aculminar com a realização do “I Se-minário Nacional pela Educação nasPrisões” em julho de 2006. Umexemplo dos resultados desse ricodiálogo foi a consolidação de umprojeto de lei voltado a instituir ex-pressamente na Lei de Execução Pe-nal a chamada “remição da pena pe-lo estudo”, criando um importantesistema de incentivos para que osapenados e apenadas se engajemnas práticas educativas.

Mas a despeito de conquistassubstantivas, o que de mais impor-tante o projeto legou foi um novomodo de fazer política criminal e pe-nitenciária. Na medida em que o Mi-nistério da Justiça estabeleceu cone-xão com uma Pasta da área social pa-ra a elaboração de uma agenda deinclusão; que a parceria foi estendi-da aos Estados na forma de assistên-cia técnica e mobilização de progra-mas; que recursos públicos foram re-direcionados para financiar açõesestruturantes em diálogo com atoresrelevantes; uma pequena janela deoportunidades se abriu para que ti-

véssemos algo mais próximo do queAlessandro Baratta definiu há muitotempo como “um cárcere melhor,porque menos cárcere”.

A tarefa agora é enraizar essaperspectiva, o que poderá ser alcan-çado com a fixação de duas variá-veis para orientar a atuação dos ges-tores frente à questão: o “déficit devagas”, mas também o que tenhochamado por “déficit de atendi-mento”. A partir daí, a elaboração denovos pactos e planos que induzamo acesso a trabalho, geração de ren-da e recomposição de vínculos fa-miliares nas prisões brasileiras seráapenas uma questão de exercitar aimaginação, desenvolver instru-mentos e estabelecer metas.

Outros desafios – Ao lado dissotudo, a experiência do “Educandopara a Liberdade” indica que doispontos devem ser tomados comoestruturantes de uma tal mudançade enfoque: a atenção para com osprofissionais da execução penal e odiálogo com a sociedade. No pri-meiro caso, o Ministério da Justiçadeve mais uma vez tomar a lideran-ça e alavancar a elaboração de umpacote de ações para resignificar evalorizar o trabalho prisional nopaís, partindo notadamente dos te-mas de formação, carreira e contro-le. No mínimo, isso ajudaria a con-tornar falsos dilemas, como o de“mais uma vez os Direitos Huma-nos estariam sendo tratados como

coisa de preso”.Já no segundo caso, trata-se de

construir um novo imaginário sobrecrime e criminoso, a fim de que to-dos nos tornemos mais capazes deenxergar nas prisões um espaço dereconciliação. No médio prazo, aliás,esta deve ser a grande aquisição de-mocrática proporcionada pela inter-face entre políticas sociais e gestãoprisional: a transformação no modode encarar a violência para que, apartir do ideário da inclusão, os sis-temas de justiça e segurança se tor-nem mais comprometidos com a re-alização de direitos e a promoção dacidadania, sem o que dificilmentepoderemos falar numa sociedademais segura.

É importante construir um novo imaginário sobre crime e criminoso

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Fábio Costa Morais de Sá e Silva

As recentes mudanças no co-mando do Ministério da Justi-ça trouxeram à tona, mais

uma vez, este que é um dos maioresdesafios à construção de uma verda-deira ordem democrática no país: anecessidade de concebermos estra-tégias responsáveis para mediar anossa relação com a violência. Assu-mir esse desafio está longe de ser ta-refa das mais fáceis quando crescemclamores por soluções simplistas,como a redução da maioridade pe-nal ou a adoção da pena de morte.Em todo caso, é o que tem feito emsucessivas oportunidades o novo ti-tular da Pasta, Ministro Tarso Genro,com a reivindicação de uma maiorinterface entre políticas sociais e po-líticas de segurança pública.

A proposta do Ministro está emsintonia com o que de mais atualiza-do existe no assunto: a ênfase na pre-

venção, ou seja, na conjugação de es-forços entre Poder Público e Socieda-de para reduzir os fatores de riscos eaumentar os fatores de proteção dosindivíduos e grupos sociais em rela-ção aos crimes e à violência. No en-tanto, sugere uma revisão crítica doque até agora vimos concebendo co-mo segurança pública: mais que asimples aplicação da lei, trata-se defirmar um compromisso com a pro-dução de novos e mais solidários sen-tidos para a vida em comunidade.

É nessa mudança de abordagemque se torna pertinente voltarmos osolhos a um tema esquecido na agen-da nacional: as prisões. E o motivo ébem simples: embora exista entre nósum grande ressentimento de estatísti-cas seguras, nunca houve estudo queconcluísse por um índice de reinci-dência criminal inferior a 60%. To-mando por base esse número, temosque dos cerca de 400 mil presos queintegravam o sistema em dezembro

de 2006, 240 mil já registravam passa-gens anteriores por cadeias publicasou estabelecimentos penitenciários.

Não é para menos. Uma passa-gem de olhos pela nossa execuçãopenal é suficiente para demonstrarque ela não tem servido para nadaalém de aumentar a vulnerabilidadeque via de regra já é um elementoconstitutivo dos itinerários de vidade apenados e apenadas. Pesquisasrealizadas no decorrer do primeiroGoverno Lula indicavam, por exem-plo, que daquele imenso contingen-te de detentos menos de 20% encon-travam-se envolvidos em atividadeseducacionais e menos de 25% ematividades produtivas, ainda que bai-xíssimos sejam os níveis de escolari-dade e de acesso prévio ao mundodo trabalho registrados em meio aessa população. A essa completa oci-osidade, somem-se ainda a conside-rável fragilização dos vínculos fami-liares e a escassez de programas de

apoio ao egresso depois que este ob-tém o alvará de soltura.

O fato, que para muitos pode pa-recer inusitado, é que uma das maio-res fontes de violência instaladas noBrasil é administrada pelo próprioEstado: são as prisões, por mais queisso não fique claro quando de foradelas avistamos apenas muros e gua-ritas. Daí porque elas devem consti-tuir uma parada obrigatória de qual-quer ação preventiva em matéria desegurança pública, como a que cons-ta das intenções do novo Ministro. Aquestão é saber como fazer isso, jáque os investimentos sociais nas pri-sões estão definitivamente fora dasnossas práticas de gestão. Não à toa,uma auditoria realizada pelo TCUpara investigar a “profissionalizaçãodo preso” constatou imensa dispari-dade entre a aplicação de recursosfederais para a construção de novospresídios e para a implementação deprogramas de reintegração social.

04 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2007

Cidadania nas prisões eprevenção da violência

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2007 UnB – SindjusDF | 05

Talvez um bom ponto de partidaseja tomar como exemplo o que omesmo Tribunal de Contas reconhe-ceu como uma das poucas boas ini-ciativas na área: o projeto “Educandopara a Liberdade”, desenvolvido combase numa parceria entre a UNES-CO, o Ministério da Educação e o Mi-nistério da Justiça.

Tendo por objetivo construiruma política pública para a amplia-ção da oferta da educação nas pri-sões, o projeto gerou maior aproxi-mação entre as Secretarias Estadu-ais de Administração Penitenciária ede Educação para a discussão de es-tratégias de atendimento que con-templassem: a gestão compartilha-da, a adoção de metodologias e/oufundamentos pedagógicos adequa-dos ao público em questão e a for-mação/valorização dos profissio-nais envolvidos na oferta (de agen-tes penitenciários a professores).

Paralelamente, o projeto criouoportunidades inéditas de financia-mento que aos poucos foram esti-mulando a adesão e o compromissodas Unidades Federativas, a pontode em dois anos de existência teremsido celebrados convênios com 12(doze) Estados. E mais: fez convergiressa trajetória de realizações paraum processo participativo de cons-trução de referenciais políticos, téc-nicos e gerenciais sobre a questão, aculminar com a realização do “I Se-minário Nacional pela Educação nasPrisões” em julho de 2006. Umexemplo dos resultados desse ricodiálogo foi a consolidação de umprojeto de lei voltado a instituir ex-pressamente na Lei de Execução Pe-nal a chamada “remição da pena pe-lo estudo”, criando um importantesistema de incentivos para que osapenados e apenadas se engajemnas práticas educativas.

Mas a despeito de conquistassubstantivas, o que de mais impor-tante o projeto legou foi um novomodo de fazer política criminal e pe-nitenciária. Na medida em que o Mi-nistério da Justiça estabeleceu cone-xão com uma Pasta da área social pa-ra a elaboração de uma agenda deinclusão; que a parceria foi estendi-da aos Estados na forma de assistên-cia técnica e mobilização de progra-mas; que recursos públicos foram re-direcionados para financiar açõesestruturantes em diálogo com atoresrelevantes; uma pequena janela deoportunidades se abriu para que ti-

véssemos algo mais próximo do queAlessandro Baratta definiu há muitotempo como “um cárcere melhor,porque menos cárcere”.

A tarefa agora é enraizar essaperspectiva, o que poderá ser alcan-çado com a fixação de duas variá-veis para orientar a atuação dos ges-tores frente à questão: o “déficit devagas”, mas também o que tenhochamado por “déficit de atendi-mento”. A partir daí, a elaboração denovos pactos e planos que induzamo acesso a trabalho, geração de ren-da e recomposição de vínculos fa-miliares nas prisões brasileiras seráapenas uma questão de exercitar aimaginação, desenvolver instru-mentos e estabelecer metas.

Outros desafios – Ao lado dissotudo, a experiência do “Educandopara a Liberdade” indica que doispontos devem ser tomados comoestruturantes de uma tal mudançade enfoque: a atenção para com osprofissionais da execução penal e odiálogo com a sociedade. No pri-meiro caso, o Ministério da Justiçadeve mais uma vez tomar a lideran-ça e alavancar a elaboração de umpacote de ações para resignificar evalorizar o trabalho prisional nopaís, partindo notadamente dos te-mas de formação, carreira e contro-le. No mínimo, isso ajudaria a con-tornar falsos dilemas, como o de“mais uma vez os Direitos Huma-nos estariam sendo tratados como

coisa de preso”.Já no segundo caso, trata-se de

construir um novo imaginário sobrecrime e criminoso, a fim de que to-dos nos tornemos mais capazes deenxergar nas prisões um espaço dereconciliação. No médio prazo, aliás,esta deve ser a grande aquisição de-mocrática proporcionada pela inter-face entre políticas sociais e gestãoprisional: a transformação no modode encarar a violência para que, apartir do ideário da inclusão, os sis-temas de justiça e segurança se tor-nem mais comprometidos com a re-alização de direitos e a promoção dacidadania, sem o que dificilmentepoderemos falar numa sociedademais segura.

É importante construir um novo imaginário sobre crime e criminoso