catolicismo popular ou religiÃo indígena? · idéia de como era o lugar: ... de outros estratos...

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- A SANTIDADE DE JAGUARIPE: CATOLICISMO POPULAR OU RELIGIÃO INDíGENA? "Nosertão desta capitania para as bandas de jaguaripe se levantou uma errônea idolatria gentilica, a qual sustentava efazia os brasis deles pagãos, e deles cristãos, e deles forros, e deles escravos, que fugiam a seus senhores para a dita idolatria (. ..J e tinham um ídolo de pedra, a que faziam suas cerimônias e adoravam dizendo que vinha já o seu Deus a livrá-Ias do cativeiro em que estavam, efazê-tos senhores da gente branca, e que os brancos haviam deficar seus cativos .:, (Depoimento de Gonçalo Femandes ao Santo Ofício, BA, 1592, citado por Azzi, 1987:87). O movimento religio- so conhecido por Santidade de jagua- ripe deu-se por volta do ano de 1585, no Recôncavo Baiano. Sua história, ainda pouco conhecida e ana- lisada, é um daqueles intrigantes episódios que se situam nos limites de fron- teiras culturais. Inicialmente organizado no lugar chamado Palmeiras Compridas, a Santidade teve como primeiro líder um ín- dio, ex-aluno de padres je- suítas, que havendo fugido do colégio em Tinharé, ca- pitania de Ilhéus, fundou o movimento. Antônio, como era chama- do o líder deste movimento antes de ser caraíba, conhecia a mitologia heróica tupinambá. Dizia-se so- brevivente do dilúvio, fazendo-se chamar por Taman- duaré -.variante de Tamendonare, um dos gêmeos que sobreviveram à grande inundação, e um dos principais ancestrais daquela nação (Vainfas, 1992). Os seus seguidores, segundo o mesmo autor, for- mavam um "ajuntamento eclético" de cativos e for- ros, que funcionava como refúgio para os arnerín- dios escravizados ou aldeados, independentemen- te de suas origens étnicas. Parte deste movimento, conta Vainfas, deslocou- se para o engenho de Fernão Cabral de Taíde, o principal senhor de terras da região. Seguiram Tomacaúna (Domingos Fernandes), mameluco enviado sob or- dens do senhor de engenho, com a incumbência de trans- ferir o movimento para suas terras, convencidos pelo emissário de Femão Cabral de que gozariam de liberdade de culto e na esperança de encontrar seu paraíso. A parte da Santidade que concordou em migrar con- tava com cerca de sessenta a oitenta índios liderados por Mãe de Deus e Santinho. O líder principal não seguiu, e sobre esta outra parte do movimento que permaneceu em seu campo de origem, por enquanto não se tem notícia. No engenho, os adeptos da seita construíram uma igreja, ao seu modo, e expandiram o número de seguidores, até mesmo entre os brancos. Sobre a igreja há relatos bem interessantes que nos dão uma idéia de como era o lugar: "Contou Simão Dias que, à porta do terreiro, na casa erigida como igrejados índios,ficava uma cruz de pau, e no interior, penduradas pelas pa- redes, diversas tabuinhas de madeira, pintadas com uns riscados 'que eles diziam serem seus li- vros'. No centro do terreiro aparecia uma estaca alta de madeira enterrada no chão, sobre a qual ISABELLE ORAl PEIXOTO DA SILVA * RESUMO Este ensaio aborda um movimento religio- so indígena no Brasil do século XVI. Tem como objetivo levantar questões sobre o seu caráter e conteúdo católico-tupinambá. Por meio da identificação dos elementos de sua composição, que denotam uma complexo estrutura de ambigüidades, tradicionalismo e mudanças, chama a atenção para a ne- cessidade de uma reflexão mais profunda, de cunho comparativo, acerco das cosmo- logias tupi e católica. * Professora de Antropologia do Departamento de Ciências Sociais e Filosofia do UFC e doutorando do Curso de Ciências Sociais do Unicamp. SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. A santidade deJaguaripe .. pp. 65 a 70 65

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-A SANTIDADE DE JAGUARIPE:CATOLICISMO POPULAR OU RELIGIÃO INDíGENA?

"Nosertão desta capitania para as bandas de jaguaripe se levantouuma errônea idolatria gentilica, a qual sustentava efazia os brasisdeles pagãos, e deles cristãos, e deles forros,e deles escravos, que fugiam a seus senhores para a dita idolatria(. . .J e tinham um ídolo de pedra, a que faziam suas cerimônias eadoravam dizendo que vinha já o seu Deus a livrá-Ias do cativeiroem que estavam, e fazê-tos senhores da gente branca, e que osbrancos haviam de ficar seus cativos .:,(Depoimento de Gonçalo Femandes ao Santo Ofício, BA, 1592,citado por Azzi, 1987:87).

Omovimento religio-so conhecido porSantidade de jagua-

ripe deu-se por volta do anode 1585, no RecôncavoBaiano. Sua história, aindapouco conhecida e ana-lisada, é um daquelesintrigantes episódios que sesituam nos limites de fron-teiras culturais.

Inicialmente organizadono lugar chamado PalmeirasCompridas, a Santidade tevecomo primeiro líder um ín-dio, ex-aluno de padres je-suítas, que havendo fugidodo colégio em Tinharé, ca-pitania de Ilhéus, fundou omovimento.

Antônio, como era chama-do o líder deste movimento antes de ser caraíba,conhecia a mitologia heróica tupinambá. Dizia-se so-brevivente do dilúvio, fazendo-se chamar por Taman-duaré -.variante de Tamendonare, um dos gêmeosque sobreviveram à grande inundação, e um dosprincipais ancestrais daquela nação (Vainfas, 1992).

Os seus seguidores, segundo o mesmo autor, for-mavam um "ajuntamento eclético" de cativos e for-ros, que funcionava como refúgio para os arnerín-dios escravizados ou aldeados, independentemen-te de suas origens étnicas.

Parte deste movimento, conta Vainfas, deslocou-se para o engenho de Fernão Cabral de Taíde, o

principal senhor de terras daregião. Seguiram Tomacaúna(Domingos Fernandes),mameluco enviado sob or-dens do senhor de engenho,com a incumbência de trans-ferir o movimento para suasterras, convencidos peloemissário de Femão Cabral deque gozariam de liberdade deculto e na esperança deencontrar seu paraíso.

A parte da Santidade queconcordou em migrar con-tava com cerca de sessentaa oitenta índios liderados porMãe de Deus e Santinho. Olíder principal não seguiu, esobre esta outra parte domovimento que permaneceuem seu campo de origem,

por enquanto não se tem notícia.No engenho, os adeptos da seita construíram uma

igreja, ao seu modo, e expandiram o número deseguidores, até mesmo entre os brancos. Sobre aigreja há relatos bem interessantes que nos dão umaidéia de como era o lugar:

"Contou Simão Dias que, à porta do terreiro,na casa erigida como igrejados índios,ficava umacruz de pau, e no interior, penduradas pelas pa-redes, diversas tabuinhas de madeira, pintadascom uns riscados 'que eles diziam serem seus li-vros'. No centro do terreiro aparecia uma estacaalta de madeira enterrada no chão, sobre a qual

ISABELLE ORAl PEIXOTO DA SILVA*

RESUMOEste ensaio aborda um movimento religio-so indígena no Brasil do século XVI. Temcomo objetivo levantar questões sobre o seucaráter e conteúdo católico-tupinambá. Pormeio da identificação dos elementos de suacomposição, que denotam uma complexoestrutura de ambigüidades, tradicionalismoe mudanças, chama a atenção para a ne-cessidade de uma reflexão mais profunda,de cunho comparativo, acerco das cosmo-logias tupi e católica.

* Professora de Antropologia do Departamento de

Ciências Sociais e Filosofia do UFC e doutorando do

Curso de Ciências Sociais do Unicamp.

SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. A santidade deJaguaripe .. pp. 65 a 70 65

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se postava o ídolo de pedra 'que tinha uma carafigurada com olhos e nariz enfeitado com paninbosvelhos'; uma figura incerta - concluiu a testemu-nha, guardada por um índio a que chamavam sa-cristão" (Vainfas, 1992: 190).

Outra referência que completa o panorama so-bre a igreja cita um altar com castiçais, pia de batis-mo e confessionário, e a figuração do ídolo comoum gentio (Azzi, 1987: 198).

O fim deste movimento foi trágico: consideradoheresia, os índios foram expulsos, o dono do enge-nho punido e a igreja destruída. Entre os anos de1591 e 1592 a Santidade foi reprimida e devassadapelo governador e pelo Santo Ofício.

Durante o processo inquisitorial, por ocasião davisitação do Santo Ofício, foi constatada significati-va participação dos brancos na Santidade. Haviafreqüentadores ilustres, como a esposa do grandesenhor de engenho - Margarida da Costa -, queconfessou ter participado durante dois meses dosritos indígenas, por ter convicção de que se tratavade prática católica:

'Tinha para si e dizia que não podia ser aquilodemônio, senão alguma coisa santa de Deus, poistraziam cruzes de que o demônio foge, e pois fa-ziam reverências às cruzes e traziam contas enomeavam Santa Maria. "(Depoimento citado porAzzi, 1987: 196).

Outros depoimentos, como o de Luíza Barbosa,não confirmam a livre adesão ao movimento, sobreo que resta dúvida quanto a sua veracidade,mediante a circunstância do relato:

"Confessando-se disse que sendo ela moça de 12anos pouco mais ou menos, se alevantou nesta ca-pitania, entre os gentios e índios deste Brasil cris-tão, se alevantou uma abusão chamada entre eles asantidade, como muitas vezes depois disso se ale-vantou também nesta capitania.

A qual era que diziam os ditos brasis, assim cris-tãos como gentios, que aquela sua santidade eraum Deus que eles tinham que lhes dizia que nãotrabalhassem porque os mantimentos por si pró-prios haviam de nascer, e que quem não cressenaquela santidade se havia de converter em pause pedras, e que a gente branca se havia deconverter em caça para eles comerem, e que a leidos cristãos não prestava, e assim diziam, e ti-nham muitos outros despropósitos. "(Depoimentocitado por Azzi, 1987: 196).

Tudo leva a crer que houve uma grande pene-tração deste movimento na sociedade colonial, par-ticularmente na esfera dogmática e litúrgica da Igre-ja. ão fora isto, não se justificaria a reação arrasa-dora das instituições coloniais contra ele. De cará-

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ter eminentemente anticolonial, representou umaameaça por causa de sua capacidade de arregímen-tar escravos fugidos de toda a capitania e membrosde outros estratos étnicos e sociais, além de esti-mular a formação de outros núcleos de rebelião(Vainfas, 1992).

O desafio teórico que a Santidade de ]aguaripenos impõe é entender o caráter de seu conteúdocatólíco-tupinambá.

Das descrições do movimento podemos pinçaros componentes que são expressão de ambigüida-de: o céu, o batismo, os nomes, as orações, as con-fissões, as reverências ao ídolo e os objetos quecompunham a igreja (altares, mesa, sacristia, pia debatismo, água benta, castiçais de pau, livros de fo-lhas de casca de árvore, cadeiras para confessarmulheres, instrumentos musicais, rosários e cruzes).

Destes componentes tomamos o céu e o batis-mo, por reunirem mais elementos, a partir dos quaispodemos levantar algumas idéias.

Em sua pregação, a Santidade era o verdadeirocaminho para se chegar ao céu. Porém, "a qual céuse referia a pregação? Ao paraíso cristão ou à terrasem mal?" (Vainfas, 1992). O autor admite a possi-bilidade da noção do paraíso cristão ter sido inte-grada ao universo simbólico da Santidade. Por outrolado, cita a parábola tupi freqüentemente enuncia-da pelo caraíba, de que não seria mais necessáriotrabalhar, posto que, caso a Santidade triunfasse, osalimentos nasceriam espontaneamente da terra ouseriam caçados pela ação das próprias flechas.

Isso o leva a concluir por uma "confusão entre osdois paraísos", justífícada pela heterogeneidade dosadeptos da seita, não só índios, mas também ne-gros e brancos.

A cerimónia do batismo dos novatos era presidi-da pelo caraíba, que fazia uso de água e de óleosno ofício. O nome do estreante era escolhido pelochefe religioso e tanto podia ser nome cristão comotupi. São nomes como Papa (o do caraíba), Mãe deDeus (líder da Santidade em jaguaripe), Santinhoou Santíssimo (auxiliar de Mãe de Deus). Bispos evigários são também nomeados, não ficando clarose estas nomeações denotavam a reprodução dainstituição clerical ou apenas o uso dos nomes, semos seus significados.

Em todo caso, embora a cerimônia do batismofosse uma afirmação do ritual católico, o seu signifi-cado era a negação do batismo cristão. Mas aqui secoloca uma questão: esta negação levava de volta àcondição indígena ou apontava para uma purifica-ção do ritual católico? Embora este evento possa servisto como a negação do batismo cristão, poroutro lado ele pode ser percebido como um

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aperfeiçoamento deste sacramento.Nesse caso, o batismo não seria a negação dos

preceitos do catolicismo. Seria a negação da práticados padres, considerada incongruente com os seuspreceitos doutrinários.

Enfim, tanto para o tema do céu como para otema do batismo, é necessário uma investigaçãomais profunda para que se possa perceber mais acontendo os sentidos que tiveram.

Elementos mais genuinamente indígenas nósencontramos na virtude do caraíba de falar com osespíritos, na separação entre homens, mulheres ecrianças, durante os cortejos que seguiam o líder, nosbailes, no uso da erva-santa, nas possessões, noscantos e nas defumações. Sobre esses componentesnão há equívoco quanto a sua origem nativa.

Deixando um pouco de lado a Santidade de Ja-guaripe, façamos uma incursão pelas primeiras nar-rações sobre Santidades, por meio das cartas dosjesuítas dos anos de 1550, para podermos compa-rar a Santidade de 1585 com suas predecessoras.

As cartas dos jesuítas Pero Correia e João de Azpi-lcueta informam sobre a grande autoridade que osditos "santos" exerciam sobre os demais, as prediçõesque faziam quando incorporados por espíritos e acapacidade de dar saúde e vitória (Navarro, 1988:121,123,173). Tudo isso contado com espanto pelosreligiosos, a título de "errores", sendo os santos vistoscomo embusteiros, antes de qualquer coisa.

Apesar do teor dos relatos, as descrições são muitoricas. O mesmo Pero Correia assim descreve a ma-nufatura do ídolo, o festejo em sua honra e o poderde vida e de morte do santo:

"Estesfazem umas cabaças a maneira de cabe-ças, com cabeltos, olhos, narizes e bocca com mui-tas penas de cores que lhes apegam com ceracompostas á maneira de lavores e dizem queaquelle santo que tem virtude para lhespoder valere diligenciar em tudo, e dizem quefalta, e á honradisto inventam muitos cantares que cantam diantedelle, bebendo muito vinho de dia e de noite, fa-zendo harmonias diabólicas, e já aconteceu queandando nestas suas santidades (que assim a cha-mam elles)foram duas línguas, as melhores destaterra, lá e mandaram-as matar. Têmpara si queseus santos dão a vida e a morte a quem querem. "(Navarro, 1988:123-24).

A hostilidade dos "santos" em relação aos missio-nários aparece constantemente nas cartas. Por outrolado, não ficava por menos a revanche dos jesuítasdirigida contra os santos e também contra osfeiticeiros, estes de grau inferior na hierarquia dapajelança indígena, a quem os padres tributavam omaior empecilho à catequese. Podemos ver isto na

história narrada pelo jesuíta Antonio Blasquez, queconta um caso em que um feiticeiro foi denunciado,em confissão, após o que foi preso por umempregado do governador. A repercussão deste fatofoi tão assustadora que provocou a denúncia deoutros feiticeiros (incitada pelos padres), dos quaismais dois foram presos e depois de libertos sesubmeteram aos jesuítas. Como conseqüência,ninguém mais se atreveu a usar publicamentefeitiçaria (Navarro, 1988: 333-34).

Uma outra carta muito instigante que trata da re-lação entre santos e padres é a do Pe.VicenteRodrigues. Apesar de extensa, vale a pena a suareprodução:

"Nacapitania de Peranambuco vinham os Gen-tios de seis, sete léguas á fama dos Padres, carre-gados de milho e do que tinham para lhes oJferecer,e si sabiam por onde haviam de passar, sabiam-lhes ao caminho com muito mantimento, dizendo-lhes que lhes deitasse a bençam. Na mesma capi-tania em uma aldêa onde puzeram uma cruz,aguardavam os Padres com muita offerta ao péda cruz para que o Padre que por ali fosse lhesdeitasse abençam, e haveria naquella aldêa cemhomens dos quaes a maior parte se fizeramcatechumenos. Pala qual aldêa aconteceu d'abi apoucos dias passar um seu feiticeiro em que ellestêmgrande credito e ajuntaram-se os catechumenose lançaram-no fóra, dizendo que já tinham outralei em que viviam. Estefeiticeiro, vendo o créditoque os Padres tinham com o Gentio, dizia queera seu parente e que os Padres diziam verdade eque ellejá morrera epassara desta vida e tornaraa viver como diziam os mesmos Padres, e queportanto cressem nelle, pedindo-lhe suas filhas edavam-lhas. Neste tempo tornaram os Padres apassar por aquella parte e disseram-lhe comoaquillo tudo era mentira. Tomaram disto tantapaixão que foram em busca do feiticeiro e omataram. "(Navarro, 1988:144).

A narração nos faz ver a semelhança entre o ritualde recepção aos padres e a cerimônia de chegadados santos nas aldeias, que consistia na oferenda demantimentos e na expectativa de receber bênçãos.

O episódio do feiticeiro é fabuloso. Já nos dá umamostra da capacidade de criação ardilosa do profeta,como ele conseguiu lidar e manipular elementosda cosmologia cristã, para no final reafirmar a suacondição de profeta, ainda que o resultado tenhasido desastroso para ele.

A descrição mais completa de uma cerimônia deSantidade está numa carta mais antiga, do Pe.Nóbrega, que assim relata:

"Somente entre eltes sefazem umas cerimonias

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da maneira seguinte: de certos em certos annosvem uns feiticeiros de mui longes terras, fingindotrazer santidade e ao tempo de sua vindo lhe man-dam limpar os caminhos e vão recebê-los com dan-ças e festas, segundo seu costume; e antes quecheguem ao Ioga r andam as mulheres de duas emduas pelas casas, dizendo publicamente as faltasque fizeram a seus maridos umas ás outras e pe-dindo perdão deltas. Em chegando ofeiticeiro commuita festa ao logar entra em uma casa escura epõe uma cabaça que traz em figura humana, emparte mais conveniente para os seus enganos. Mu-dando a propria voz em a de menino junto dacabaça lhes diz que não curem de trabalhar, nemvão á roça, que o mantimento por si crescerá, eque nunca lhes faltará que comer, e que por sivirá á casa, e que as enxadas irão a cavar, e asfrechas irão ao mato por caça para seu senhor eque hão de matar muitos dos seus contra rios ecaptiuarâo muitos para seus comeres e promete-lhes larga vida, e que as velhas se hão de tornarmoças e as filhas que as deem a quem quiserem eoutras cousas semelhantes lhes diz epromette, comque os engana, de maneira que creem haver dentroda cabaça alguma cousa santa e divina, que lhesdiz aqueltas cousas, as quaes creem. Acabando defalar ofeiticeiro começam a tremer, principalmenteas mulheres, com grandes tremores em seu corpo,que parecem endemoninhadas (como de certo osão), deitando-se em terra, e escumando pelas bocase nisto lhespersuade ofeiticeiro que então lhes entraa santidade. "(Navarro, 1988: 419-20, nota 200).

Há ainda os relatos leigos que se referem a socie-dades não submetidas à catequese. Aparecem no-vamente os bailes, o fumo, a cabana como lugar dacerimônia, a pintura e o enfeite dos maracás, aoferta de presentes ao pajé, a exclusão das mulhe-res e das crianças do ritual, o transe místico do pajé,a defumação dos maracás, os diálogos com a santi-dade incorporada nos maracás, e a transformaçãodos chocalhos em ídolos, que eram fincados no chãoe presenteados com comida e cabanas individuais.

A descrição de Jean de Léry 0557-58) traz dediferente o fato de que os caraíbas vistos por eleandavam em grupos de até doze homens, a men-ção às cançôes que se referiam explicitamente àmitologia heróica dos tupi, particularmente ao dilú-vio e à sobrevivência dos antepassados trepadosnas árvores, e o período de três semanas que osmaracás passavam até adquirirem santidade e opoder de transmitir a fala dos espíritos, quando sa-cudidos (segundo Vainfas).

De todos esses relatos transcritos, façamos umareflexão sobre os temas do caraimonhaga, do ido-

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10, das pregações e da cruz.Pensamos que a cerimônia do caraimonhaga era

o centro do ritual da santidade. Por meio dela cadamaracá passava a ser receptáculo da santidade, por-tanto objeto sagrado, digno de receber oferendas.Apresenta-se então uma distinção entre o caraíba ea santidade. O profeta era aquele que se comunica-va, incorporava, tinha o poder de transmitir e dialo-gar com a santidade, mas não era ele próprio divi-no. Havia uma entidade que se diferenciava dele,que tinha existência própria.

A permanência desta cerimônia do caraimonbagana Santidade de Jaguaripe é citada por Vainfas, ain-da que não explorada com a ênfase que lhe é devi-da (acreditamos):

"Na igreja sempre iluminada, para o que seutilizavam tocheiros e castiçais de pau, o ápiceda cerimônia residia no uso do petim ou erva-santa. Razão de ser do culto, a defumação com asfolhas da erva ou a sucção de sua fumaça era oque transmitia a 'santidade' (ou o caraimonhaga)para os fiéis. Transmitia-se inicialmente para osprincipais' da seita, e depois para os outros, quea sorviam 'até caírem bêbados' ou começarem adançar e a se movimentar 'com todos os membrosdo corpo '.A própria fumaça era, por isso, divina,o que se pode claramente perceber na exaltaçãofervorosa de um certo adepto: 'Bebamos o fumo,que este é o nosso Deus que vem do Paraíso!'(Vainfas, 1992: 193).

Diríamos que há aí uma pequena sutileza, em quea ênfase dada ao petim na verdade deve ser dirigidaao caraimonhaga. A razão de ser do culto não esta-va no petim, mas na transmissão da santidade. Atransmissão não era decorrência, mas o essencial dacerimônia. O petim, embora de extrema relevân-cia, era o veículo de contato com a santidade.

De todo modo, também aqui é preciso investigarmais, até mesmo para constatar ou não diferençasno sentido desta cerimônia, entre as primeiras San-tidades e a de 1585.

Não obstante, ainda que centrada no uso do petim(e não na transmissão da santidade), a cerimônia docarairnonbaga talvez fosse o que havia de funda-mental na Santidade de Jaguaripe, em termos decontinuidade das Santidades descritas nos primei-ros relatos dos jesuítas.

A Idéia e a figura do ídolo estavam completa-mente instauradas em Jaguaripe. A sua imagem foiconstruída em mármore, media 66 centímetros e seapresentava vestido com panos.

UNaSantidade do sertão de Frio Grande prega-va-se que o deus dos índios iria livrá-los do cati-veiro e tornâ-los senhores dos brancos - rnensa-

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gem que atraía copioso número de escravos brasispara as fileiras do movimento. O deus que os li-vraria da escravidão era o ídolo Tupanasu (deusgrande) ou o próprio caraiba que o encarnaua, oqual também se dizia deus e senhor do mundo."(Vainfas, 1992: 186).

A nova figuração do ídolo pode ser compreendi-da como uma espécie de continuação adaptada,enriquecimento do culto indígena, que lhe deu novaroupagem sem mudar o conteúdo. Como lembraAzzi, os índios também assimilaram elementos doculto católico, ou como forma de defesa do próprioculto ou como meio de promoção da própria re-ligião, abrilhantada com elementos da cultura dosconquistadores, de quem admiravam o nível de ci-vilidade. Este autor sugere mesmo, no reverso damedalha, uma pedagogia catequética, em que osindígenas usariam técnicas análogas às dos jesuítas,para a conversão ao seu culto.a conteúdo das primeiras pregações tinha um

caráter heróico e idílico (não plantar, não caçar, re-moçar, longa vida, saúde, vitória sobre os inimigos).A sua associação ao mito da terra sem mal foipensada inicialmente por Metraux, que via umareedição ou continuação da tradição tupí naquelesmovimentos do século XV1.

Metraux supunha uma diferenciação entre osmovimentos messiânicos dos índios tribalízados e dosdestribalizados. Embora nas duas situações represen-tem soluções tradicionais diantes da desorganizaçãosocial e cultural provocada pela condição colonial,que ameaça a tradição e a existência, os movimentosdos destribalizados se caracterizam por uma "mesclaheteróclita de temas pagãos e cristãos":

"Alguns movimentos têm tido um carátersincrético; outros, apesar de certospréstimos do ca-tolicismo, expressavam crenças e valorespuramen-te indigenas. (. ..) Em uma tipologia do messianismosul-americano, tais movimentos [dosmessias Tuka-no, de 1880]se aparentam com os que seproduzi-ram em 1578[?] na região da Babia entre os índiostupinambâs meio cristiariizados, assim como nazona missioneira do Paraguai. Distinguem-se dosmessianismos da Terra sem mal pelos préstimos docristianismo epor suas tendências xenófobas. Sãorevoltas de índios desgraçados e não-tribalizados. "(Metraux,1973: 15,29).

As tendências xenófobas são evidentes na Santi-dade de ]aguaripe. Há sempre o apelo a "livrar docativeiro" e "tornarem-se senhores dos brancos".Talvez até pudéssemos dizer que há uma acentua-ção no caráter messiânico deste movimento. A san-tidade agora tem nome próprio (Tupanasu) e dife-rentemente dos movimentos originais, cujas men-

sagens enfatizavam o advento da terra sem mal (ca-ráter mais rnilenarista), a ênfase passa a ser no Deus,no messias que vem salvar.a que temos de realmente novo em ]aguaripe é o

símbolo da cruz, a prinápio usada no lugar das maracáse que depois adquire lugar próprio, na porta da igreja.Este pode ser um sinal verdadeiramente sincrético,que se separa dos outros pontos consideradosanteriormente. Parece ser o caso de uma absorção doculto católico, a merecer maior apreciação.

Contudo, mesmo com todas as modificações de-tectadas até agora no movimento religioso doRecõncavo Baiano, consideramos prematuro che-gar a uma posição conclusiva sobre o seu carátersincrético ou de religião "puramente" indígena, dadaa complexidade de sua composição que reúne ele-mentos ambíguos, tradicionais, transformados enovos. Algumas questões fundamentais, colocadaspelo próprio Metraux, ainda carecem de um olharmais profundo e completo:

"Que importância devemos atribuir às práticascristãs adotadas pelos profetas? Trata-se de sim-ples imitações destinadas a acrescentar seu prestí-gio ou de um verdadeiro sincretismo? São estesmovimentos o resultado de um efeito de desorga-nização social ou cultural produzida pelo contatocom a civilização européia ou são simplesmenteformas mais agudas de um misticismo indígena?"(Metraux, 1973:7).

Ao lado dessas questões, há ainda uma outra or-dem de problema que, pensamos, precisa ser en-frentada. Trata-se de cogitar sobre as homologias,uma certa similitude entre elementos da cosmologiatupi e cristã; o que poderia estar na base do imbri-camento tupinambá-católico presente no movimen-to de ]aguaripe.

Por outro lado, é fundamental não perder de vistaa dinâmica inerente à própria cosmologia Indígena,que também desenvolveu (e desenvolve) o seuprocesso particular de transformações.

Sabe-se lá se, ao final de um longo mergulho naSantidade de ]aguaripe, não se chegará simplesmen-te à conclusão de que procurar por "fronteiras cul-turais" é coisa de antropólogo ...

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