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O pouco que muito diz: embates discursivos em charges que tematizam o racismo Franciele Luzia de Oliveira Orsatto (IFPR) [email protected] Davi Marchetti Giacomel (PIBIC-Jr IFPR/CNPq) [email protected] Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar uma análise de um conjunto de charges que tratam da questão do racismo. Trata-se de um assunto frequentemente tematizado nas charges, ainda nos dias atuais, demonstrando que a questão ainda não foi superada na sociedade. Sendo assim, tais textos configuram-se como um material rico para a análise, por serem críticos e mobilizarem formações discursivas específicas. O corpus de análise deste trabalho é constituído por textos de autoria do cartunista Junião, publicados no site do próprio autor e no site Ponte, um canal de informações sobre Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos. Tendo como base teórica a Análise do Discurso (AD) da linha francesa, busca-se investigar a construção de efeitos de sentido a partir dos textos do corpus, tendo em vista suas condições de produção, a(s) formação(ões) ideológica(s) e discursivas mobilizadas, além do trabalho do interdiscurso. Elegeu-se a AD como perspectiva teórica devido ao fato de essa disciplina ter como foco o olhar para o discurso e a construção de efeitos de sentido, que funcionam não independentemente, mas a partir de suas relações com o contexto histórico, social e ideológico que as sustentam. O presente trabalho é resultado do projeto PIBIC-Jr desenvolvido no IFPR-Cascavel, intitulado “Além da letra, além da imagem: leitura de charges à luz da Análise de Discurso”, que envolve um bolsista do curso técnico de Informática integrado ao ensino médio. Palavras-chave: Análise de discurso, racismo, charges. Introdução As charges são produções textuais interessantes para se observar questões atuais, considerando suas condições de produção. Seus recursos pictóricos, em sua maioria caricatos, e sua composição verbal curta e quase sempre irônica configuram um material rico e sucinto para se observar manifestações do discurso e da ideologia. Foi considerando estas questões que as charges foram selecionadas como objeto de estudo do projeto PIBIC-Jr “Além da letra, além da imagem: leitura de charges à luz da Análise de Discurso”, desenvolvido no Instituto Federal do Paraná (IFPR), campus Cascavel, do qual o presente artigo é resultado. Tal estudo tem por objetivo a compreensão do funcionamento do discurso e dos efeitos de sentido produzidos pelas charges, analisando e enfatizando como há, em sua constituição, relações inextricáveis desse discurso com o contexto histórico-social e com as formações ideológicas (FIs) e discursivas (FDs) mobilizadas. As charges a que

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Page 1: Cascavel, intitulado “Além da letra, além da imagem: leitura ...funcionaria como um sistema de signos unívoco. A AD nega, num caráter de ruptura, essa Linguística engessada

O pouco que muito diz: embates discursivos em charges que tematizam o racismo

Franciele Luzia de Oliveira Orsatto (IFPR)

[email protected]

Davi Marchetti Giacomel (PIBIC-Jr IFPR/CNPq)

[email protected]

Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar uma análise de um conjunto de charges

que tratam da questão do racismo. Trata-se de um assunto frequentemente tematizado nas

charges, ainda nos dias atuais, demonstrando que a questão ainda não foi superada na

sociedade. Sendo assim, tais textos configuram-se como um material rico para a análise, por

serem críticos e mobilizarem formações discursivas específicas. O corpus de análise deste

trabalho é constituído por textos de autoria do cartunista Junião, publicados no site do próprio

autor e no site Ponte, um canal de informações sobre Segurança Pública, Justiça e Direitos

Humanos. Tendo como base teórica a Análise do Discurso (AD) da linha francesa, busca-se

investigar a construção de efeitos de sentido a partir dos textos do corpus, tendo em vista suas

condições de produção, a(s) formação(ões) ideológica(s) e discursivas mobilizadas, além do

trabalho do interdiscurso. Elegeu-se a AD como perspectiva teórica devido ao fato de essa

disciplina ter como foco o olhar para o discurso e a construção de efeitos de sentido, que

funcionam não independentemente, mas a partir de suas relações com o contexto histórico,

social e ideológico que as sustentam. O presente trabalho é resultado do projeto PIBIC-Jr

desenvolvido no IFPR-Cascavel, intitulado “Além da letra, além da imagem: leitura de charges

à luz da Análise de Discurso”, que envolve um bolsista do curso técnico de Informática

integrado ao ensino médio.

Palavras-chave: Análise de discurso, racismo, charges.

Introdução

As charges são produções textuais interessantes para se observar questões atuais,

considerando suas condições de produção. Seus recursos pictóricos, em sua maioria caricatos,

e sua composição verbal – curta e quase sempre irônica – configuram um material rico e sucinto

para se observar manifestações do discurso e da ideologia.

Foi considerando estas questões que as charges foram selecionadas como objeto de

estudo do projeto PIBIC-Jr “Além da letra, além da imagem: leitura de charges à luz da Análise

de Discurso”, desenvolvido no Instituto Federal do Paraná (IFPR), campus Cascavel, do qual

o presente artigo é resultado. Tal estudo tem por objetivo a compreensão do funcionamento do

discurso e dos efeitos de sentido produzidos pelas charges, analisando e enfatizando como há,

em sua constituição, relações inextricáveis desse discurso com o contexto histórico-social e

com as formações ideológicas (FIs) e discursivas (FDs) mobilizadas. As charges a que

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direcionaremos o foco da pesquisa abordam a temática do racismo – um problema que ainda

se configura como uma temática atual por se fazer presente na realidade brasileira.

A despeito da persistência na tentativa de erradicar o preconceito histórico contra o

negro no Brasil, ainda se observa uma recorrente marginalização e preconceito, fato bastante

visível no âmbito socioeconômico do país. De acordo com dados do IBGE publicados em 2015

(GUIMARÃES, 2015), 54% da população brasileira é composta por afrodescendentes, estando

apenas 17% no cômputo dos mais ricos; 76% dos mais pobres são negros; recebem, por hora,

apenas 77,5% do que recebe um trabalhador branco... E não apenas. Os negros são notadamente

minoritários em estatísticas de acesso à educação e cultura, além de serem alvos de injustiças

com relação à segurança pública, já que a sociedade muitas vezes vê a figura do jovem negro

como “padrão de criminoso”. Ademais, não se pode deixar de observar o uso comercial do

corpo da mulher negra como objeto, em uma sexista e racista hipersexualização.

Se estatisticamente a condição desfavorável enfrentada pelo negro é visível, é possível

e pertinente examinar como tal condição é discursivizada, já que o que é dito não é mera

constatação da realidade, mas tem efeito sobre a concretude material da sociedade. Em outras

palavras, não é “só” discurso, não são meras palavras ao vento; são dizeres originados a partir

de condições de produção que interferem em como as coisas são, que garantem permanências

ou engendram transformações.

Sendo assim, é a partir dos pressupostos da Análise de Discurso de linha francesa que

as charges serão examinadas. Não porque são textos portadores de sentidos sobre o racismo

que devem ser questionados ou aceitos, mas porque mobilizam FIs e FDs e, ao fazê-lo, revelam

como a sociedade compreende essa questão, preenchendo-a de sentido(s).

Para efetuar tal investigação, será apresentada, primeiramente, uma breve abordagem

teórica dos principais conceitos utilizados. Em seguida, o corpus de análise é examinado,

levando-se em conta aspectos verbais e não-verbais para se chegar ao plano discursivo e refletir

sobre de que forma poucos elementos conseguem dizer tanto.

Análise de Discurso: efetuando rupturas

A Análise de Discurso (AD) é relativamente nova no campo da linguística, surgindo

como disciplina na França nos anos 1960, constituída, como cita Orlandi (2001, p. 19), num

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“espaço de questões criadas pela relação entre três domínios disciplinares que são ao mesmo

tempo uma ruptura com o século XIX: a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise”.

Dessa relação, então, nasce a disciplina, com um cerne na Linguística e,

necessariamente, com grande influência marxista e psicanalítica, uma vez que compreende o

discurso, seu principal objeto de análise, como a materialidade específica da língua e a língua,

por sua vez, como a materialidade específica da ideologia. (ORLANDI, 2001). Para a AD, o

discurso é entendido, fundamentalmente, como uma manifestação num meio social de relações

e confluências ideológicas.

O fundador da Análise do Discurso, Michel Pechêux, compreendendo o discurso dessa

forma, bebe nas leituras marxistas que Althusser realiza sobre a ideologia e sua relação com o

Estado. Daí vem a principal influência marxista da Análise do Discurso (MALDIDIER, 2003).

Como explica Mussalim (2001), no cenário da Linguística da época, encontravam-se

em evidência as vertentes estruturalistas, que partilhavam da ideia de que a linguagem

funcionaria como um sistema de signos unívoco. A AD nega, num caráter de ruptura, essa

Linguística engessada. Para o estruturalismo, como discorre Mussalim (2001),

A língua não é apreendida na sua relação com o mundo, mas na estrutura

interna de um sistema autônomo. Daí “estruturalismo”: é no interior do

sistema que se define, que se estrutura o objeto, e é este objeto assim definido

que interessa a esta concepção de ciência em vigor na época (MUSSALIM,

2001, p. 114).

Assim, as correntes conteudistas e estruturalistas se constituem como formas de

entender a significação dos textos/enunciados considerando apenas aspectos linguísticos, sem

considerar outros fatores. Não dispunham, portanto, de um olhar suficientemente abrangente

para compreender o fenômeno da constituição do sentido. E essa é uma das principais críticas

da AD, que, segundo Possenti (2005), mais nega do que propõe quaisquer características. A

AD nega, assim, a ideia de um sentido unívoco no discurso, pois entende os efeitos de sentido

como algo mais complexo que isso, como algo variável em diferentes inscrições na história e

sociedade.

Ainda sobre o que diferencia a AD enquanto teoria, Possenti (2001, p. 360)) considera

a ruptura com a filologia a maior das caracterizações da AD, especificando várias das suas

negações quanto à linguística tradicional. O autor explica que a disciplina, em suma:

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[...] rompe com a concepção de sentido como projeto de autor; com a de um

sentido originário a ser descoberto; com a concepção de língua como

expressão das ideias de um autor sobre as coisas; com a concepção de texto

transparente, sem intertexto, sem subtexto; com a noção de contexto cultural

dado como se fosse uniforme. (POSSENTI, 2013, p. 360).

É considerando o resultado de todas essas rupturas que se pretende observar o corpus

de análise deste trabalho, composto por três charges do cartunista Junião, que perfazem uma

pequena seleção relacionada à temática do racismo. O autor, em sua produção, utiliza-se de

recursos imagéticos bastante caricatos e linguagem verbal breve e direta, criando e veiculando

textos curtos, críticos e humoristicamente irônicos.

Para isso, são mobilizados os seguintes autores: Orlandi (2001), Maldidier (2003),

Mussalim (2001) e Possenti (2001 - 2005), que exploram a disciplina da AD com focos

relevantes a nosso propósito, como: o contexto de surgimento e a ruptura que a AD representa

e especificidades terminológicas e conceituais prementes na constituição das Análises, como,

por exemplo, o conceito de Formação Discursiva.

Pretende-se observar, no discurso anti-racista presente nas charges, elementos

essenciais à constituição do sentido como polissêmico e dependente das condições de

produção. Buscaremos compreender as formações discursivas mobilizadas, a ideologia

pressuposta no discurso e a relevância dos elementos verbais e não verbais nos efeitos de

sentido proporcionados pela leitura das charges. Buscamos observar não o sentido em si, mas

compreender como ele se dá e o que o constitui, compreendendo não “o que”, mas “o como”.

Outro jovem negro assassinado: só mais um

Figura 1 – Apenas estatísticas

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Fonte: Junião (2014)

A primeira charge analisada, publicada em 25 de abril de 2014, ilustra um agente

policial reportando um assassinato a uma pessoa sentada em uma escrivaninha com um enorme

arquivo por detrás. É possível identificar o personagem que enuncia como policial por suas

vestimentas e pelo coldre em que carrega sua arma. Sentado, quem recebe o papel das mãos do

policial é um funcionário cujo cargo não se pode saber ao certo; porém, sua indumentária, terno

e gravata, o identifica como um burocrata, cuja função é receber e arquivar os relatórios das

ações policiais. Nota-se que tal recebimento não parece provocar nenhuma mudança a não ser

acumular papel: enganos continuam acontecendo (o engano em questão é só “mais um”) e, ao

que tudo indica, essa situação provavelmente se repetirá no futuro.

A imagem mostra uma notável abundância de papéis, que abarrotam o arquivo e se

empilham em frente a ele, semelhantes ao que o policial traz, que imaginamos ser uma espécie

de registro de ocorrência ou similar. Os elementos verbais se constituem em um curto título:

“Outro jovem negro assassinado”; e na fala do policial à pessoa sentada: “Cometemos mais um

engano!” Podemos observar, com o uso do pronome indefinido “outro”, uma inespecificidade

quanto a quem foi morto, à vítima; não interessa identificar quem foi morto nem o porquê:

estes são dados que, aparentemente, ficarão restritos ao arquivo – se existirem. Importa muito

mais a “conclusão” a que se chega com o ocorrido: trata-se de um descuido, uma desatenção

que ocasionou uma morte. Assim, atenua-se o assassinato que é exposto no título; ele não é

denominado dessa forma pelo policial, que o resume a um mero engano, uma eventualidade

rotineira da qual um jovem negro é vítima. Deve-se destacar, então, que não se trata de uma

simples referência neutra, isenta... Para a família do jovem, este fato poderia ser denominado

como um assassinato, um ato incompreensível, uma tragédia, enquanto para o cômputo da

polícia, a denominação utilizada é a de “mais um engano”.

A partir desse título, é possível refletir sobre a mobilização de FDs distintas, entre as

quais se pode citar a FD da família do jovem e a FD midiática. Para a FD da família do jovem,

“assassinato” seria o termo exato para denominar o ocorrido – e não “engano”, “acidente”,

“descuido”. Há, além disso, a mobilização da FD midiática, visto que o título se assemelha a

uma manchete jornalística. Assassinatos viram notícia porque não deveriam ocorrer, são atos

brutais, violam da lei penal, e a mídia tem o papel de torná-los públicos. Tanto a FD da família

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do jovem como a FD midiática reconhecem que o ocorrido não é nem aceitável, nem um fato

isolado: motivo de denúncia para a sociedade e para os órgãos responsáveis em puni-lo.

Ainda sobre o título, pode-se destacar que a caracterização do jovem como negro é o

que justifica – para algumas FDs – o assassinato. Dizer apenas “Outro jovem é assassinado”,

sem qualquer caracterização, não justificaria o engano; soaria como uma manchete de jornal

incompleta. É o fato de o jovem ser negro (característica que também poderia ser pobre,

favelado etc.) que oferece uma justificativa para ele ter sido confundido com um bandido e,

assim, ter sido assassinado pela polícia, “merecendo” o fim que levou.

A autoria do assassinato é identificada quando o policial usa a primeira pessoa do plural:

“Cometemos mais um engano”. Essa fala configura-se como materialização da FD policial –

que se configura a partir de um Aparelho Repressor do Estado (ARE), segundo Althusser

(1985), que visa garantir, pela força física, quando necessário, as condições políticas dos

Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE). Para essa FD, o assassinato é um engano, conforme já

explorado; se fosse preciso escolher uma palavra apenas para designar o ocorrido, esta seria

“engano” e não “assassinato”, por carregar uma carga negativa muito menor do que o outro

termo – cujo sentido remete ao maior atentado contra a vida humana.

Tal enunciado, aliás, é sintomático ao trazer revelações sobre o procedimento e os

objetivos da polícia: sua função seria acabar com os bandidos, seja prendendo-os ou

assassinando-os. O extermínio da vida é, muitas vezes, visto como medida louvável e

necessária – dialogando com o provérbio popular “Bandido bom é bandido morto”. Tal

provérbio demonstra que não é na polícia ou qualquer outra instituição repressora do Estado

que a ideologia é produzida. Na verdade, a ideologia se realiza nas instituições (ALTHUSSER,

1985).

O uso da força pelo ARE polícia é notado quando se fala em assassinato. Porém, é a

partir das outras FDs que o uso da força em seu extremo é designado dessa forma. A FD policial

prefere silenciar esse uso, ainda que não haja dúvidas de que ele ocorra. Isso é feito com o uso

do termo “engano”, que, ao contrário de “assassinato”, não pode ser necessariamente associado

à força e brutalidade. Entendese, então, “engano” como “assassinato” à partir da interação, da

polêmica entre uma FD, a policial, e outras (MAINGUENEAU, 1993), como a da família do

jovem, que, neste caso, caracterizam a polícia como um órgão repressor e assassino.

Ainda sobre a fala do policial, é possível comentar como o elemento “Mais um”, que

sugere repetição, é reforçado em termos de imagens. O aspecto de rotina trazido pelos

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elementos verbais é reafirmado pela quantidade massiva de documentos que podemos observar

no arquivo. Há a representação de numerosas ocorrências anteriores, sendo esse “número”

reafirmado pela prancheta na mão do policial, acrescendo a característica de estatística ao fato.

Além disso, há a expressão indiferente do sujeito sentado à escrivaninha, que não indica

nenhuma surpresa. Esse aspecto numeroso, junto da inexpressão do arquivista, nos faz pensar

na ocultação dessa quantia de ocorrências de jovens negros assassinados. Com a retenção da

informação, o ARE “polícia” conseguiria esconder do conhecimento popular o preconceito

envolvido nas ações policiais contra negros.

Nesse ponto, é possível fazer uma relação com outra FD, a FD jurídica. Não é da alçada

da polícia julgar, mas executar, fazer cumprir a lei. No Estado democrático, as duas funções

não devem estar na mesma instituição ou grupo; a função de julgamento é, então, de

responsabilidade da esfera judiciária. Mais amplamente, denominaremos a FD que envolve a

produção desse discurso sobre julgamento como FD jurídica. Na charge em análise, falar dessa

FD parece menos previsível do que as outras já comentadas. Isto, porque ela é marcada pela

pouca força ou pela quase ausência. Embora se saiba que é preciso uma instância responsável

por esse julgamento, não se mostra se ela realmente age, ou se age com eficácia e rapidez – e

o que não é dito/mostrado significa. Em outras palavras, esse não dito leva a crer que a

existência de julgamento é questionável, que há a possibilidade de provas serem “perdidas”, de

os casos de abuso “caírem no esquecimento”, etc.

Engano corriqueiro

Figura 2 – Mais uma regra de sobrevivência

Fonte: Junião (2014)

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A segunda charge analisada mostra um homem negro, vestido socialmente, se

despedindo da esposa e do filho, também negros, para ir trabalhar, acenando e sorrindo. A

esposa está levando o filho do casal para a escola, fato que pode ser notado pela mochila às

costas do menino e seu uniforme. Ele se despede do pai: “Tchau papai!!! Bom trabalho!!”, e a

mãe complementa: “E cuidado para não ser preso por engano na volta!!!”. O texto é legendado

com a frase “Cenas do cotidiano”.

Aqui, observamos uma cena comum, cotidiana, e naturalizada pela família: a

preocupação com uma ação discriminatória que a polícia pode vir a cometer. E a legenda, com

o uso do plural na palavra “casos”, acrescenta a ideia de número, de repetição dessa cena e da

preocupação da esposa com o marido negro na volta do trabalho. Temos também mais um

exemplo claro da ação do AIE polícia, através do uso do termo “prender”, que é associado ao

sistema prisional, orientada pelo estereótipo da figura marginalizada e criminalizada do negro,

na construção de um cenário de perseguição e na mobilização de um discurso racista para pautar

sua ação discriminatória. E o medo da discriminação policial, como nos aponta o autor com a

naturalidade da cena envolvendo uma criança em idade escolar, atravessa gerações. O discurso

racista ganha materialidade quando esse medo é concreto.

A mãe mostra um medo pela saída do pai que parece ser incorporado na rotina,

naturalizado e assimilado. A recomendação “e cuidado para não ser preso” é tão natural para

eles quanto seria a frase “e não esqueça de levar o casaco”, demonstrando, através do nosso

entendimento do “discurso de mãe”, como agora é uma realidade assimilada e não mais vista

como o grande problema social que é, mas sim como algo comum, cotidiano. A personagem

mãe é, portanto, uma determinada posição sujeito – conceito que designa o resultado da relação

do sujeito e a forma-sujeito de uma dada FD. O sujeito pode enunciar de diversos lugares

sociais: de mãe, de trabalhador, de aluno, de eleitor.... Não se trata de uma escolha consciente,

mas de um lugar que é determinado pela FI e pela FD, ou seja, já predeterminado: de uma

forma ou de outra, sabe-se de antemão o que é ser mãe na estrutura social e sua ação e seu dizer

influenciam a família.

Assim, a mãe aparenta demonstrar apenas uma preocupação direta, pessoal, com o pai,

que se limita ao âmbito da família. Em outras palavras, não se demonstra uma preocupação

direcionada à sociedade como um todo, ou seja, uma indignação com o sistema e a sua

característica situação de insegurança à qual a família é submetida, apenas por serem negros.

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Embora provavelmente possa haver ciência de que esse problema não é pontual ou individual,

ele é tratado como tal nesse momento: pensa-se, assim, o que é possível fazer, em termos de

cuidado individual, para não sofrer as consequências do pensamento racista.

Ao caráter cotidiano que é colocado sobre a cena, acrescenta-se o uso, pelo autor, dos

mesmos recursos de pontuação para a despedida do filho e a recomendação da mãe, que

complementa a frase do filho, aparentando colocar as duas falas num mesmo grau de

importância, num mesmo tom, o que reforça a ideia de naturalidade com a qual o medo

cotidiano é tratado.

Assim, pode-se observar a relação mantida entre duas FDs: a FD familiar e a FD racista.

Esta afeta não só como os enunciados da FD familiar são constituídos, mas também afeta as

atitudes da própria família. Certos enunciados só são ditos pela FD familiar porque há uma FD

racista com a qual é preciso se confrontar; certas atitudes são tomadas porque é preciso, de

alguma forma, prever e se proteger do que pode acontecer.

Ainda sobre o medo natural da mãe de o marido ser preso, podemos pensar em como,

mesmo com a ideia de prestígio social que suas vestimentas nos trazem, a preocupação existe.

Mesmo com a aparentemente boa condição social – inferível a partir da maleta na mão do pai,

que indica que ele é algum tipo de executivo, advogado ou algo do gênero – existe a

preocupação com a ação discriminatória da polícia, passando a ideia de um racismo

extremamente engendrado na sociedade, até nas mais altas camadas, com uma família padrão.

“É só mimimi”

Figura 3 – Apresentador Marcão do Povo é demitido após chamar cantora Ludmilla de macaca

Fonte: Junião (2017)

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A segunda charge analisada mostra, com um fundo negro, uma televisão transmitindo

o pronunciamento de uma figura trajada com uma bata, como uma espécie de monge, e

encapuzada com um capuz branco de forma cônica. Esse personagem segura uma tocha e diz:

“Um Absurdo! Estão me crucificando porque eu chamei aquela artista negra de macaca!”. No

sofá, três indivíduos vestidos com a indumentária, como a vista no televisor, estão sentados,

também segurando tochas, e defendendo o pronunciamento anterior, dizendo: “Esse negros

reclamam de tudo!”, “Muito mimimi!” e “Não entendem piadas!”.

Primeiramente, ao olhar para o texto, podemos observar a indumentária atípica das

pessoas representadas. Essa roupa, uma veste branca alongada e um capuz branco cônico,

caracteriza um integrante dos movimentos KKK (Ku Klux Klan), que defendiam e ainda

defendem, nos EUA, bandeiras extremistas e reacionárias, como: a supremacia branca,

nacionalismo branco, antissemitismo, anticatolicismo e demais correlatas. Esse movimento

sempre se posicionou contra políticas de inclusão, o que nos faz entender o sentido de seus

membros apoiando e justificando o que seria um ato racista. As tochas seguradas são

características do KKK e também denotam o que seria uma espécie de “caça às bruxas”, no

caso, uma caça aos negros que se acham no direito de reclamar de piadas depreciativas.

Também sobre a caracterização das personagens, e observando que uma máscara, em

princípio, oculta ou altera o semblante do usuário, podemos inferir que o grupo da charge não

quer ser relacionado ao próprio discurso racista. Aqui, o ocultamento da identidade real isenta

o ocultado de responsabilidade sobre o que é dito, dando liberdade a quem fica por detrás da

máscara para dizer o que bem entender.

É possível reconhecer as personagens como pertencentes a um determinado grupo

principalmente devido à vestimenta uniformizada e à defesa coletiva ao pronunciamento da

TV. O fundo preto, em contraste com a imagem que se assemelha muito a um ritual, já nos

denota, antes de assimilar os ditos verbais, certa agressividade, uma relação visual com a Idade

das Trevas. A cor preta, principalmente chapada, nos desenhos, frequentemente remete a um

quê de obscurantismo e de violência, e aqui não é diferente na leitura desta charge.

Quando lida, a charge de imediato gera um impacto por defender o que seria

indefensável, o racismo, porque iria contra o censo geral do discurso “politicamente correto”.

E, assim, ela se constrói semanticamente e discursivamente com ironia, mostrando um absurdo

dito pela boca de pessoas que materializam um discursivo advindo de uma formação discursiva

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racista. E é justamente na relação que podemos produzir com a realidade, por entendermos os

membros do KKK como pessoas reais, dizendo coisas que realmente são pensadas e, não

raramente, ditas e registradas, que se observa a constituição metafórica, relacional, do discurso.

Também pensando em relações metafóricas, o autor é feliz em colocar o discurso racista do

KKK como um discurso cotidiano, trazendo para a realidade preconceito em grau quase irreal

que, na verdade, como nota o leitor, já faz parte dela. A característica de constituição metafórica

da língua (ORLANDI, 2001) se faz presente e fundamental, portanto, para a compreensão e

construção do efeito de sentido da charge.

Com humor ácido, a criticidade da charge também atinge os sujeitos que sustentam o

discurso racial como “opinião própria”, requerendo o direito a livre expressão. Quando é

representada a discriminação vinda de um grupo reconhecidamente discriminatório, o KKK,

com falas comuns no dia-a-dia de muitos, o autor consegue mostrar o absurdo do discurso

racista de maneira escancarada e impactante.

Assim, estamos falando de um “tapa na cara” de quem dissemina o discurso racista,

mostrando que esse discurso nada tem de diferente do discurso de um grupo tão violento e

maligno como o KKK. Afinal, o discurso de ambos tem origem comum na mesma formação

discursiva, a qual podemos nominar formação discursiva racista, e, também, de certa maneira,

da mesma formação ideológica, observando o ódio dos dois lados.

Considerações finais

A partir da análise das charges em questão, pode-se observar que o discurso manifesta-

se não apenas de forma explícita ou verbal. Na verdade, a imagem e o implícito tem um papel

fundamental, se não mais, tão importante quanto os elementos verbais para a constituição de

sentido. Os textos são capazes de dizer muito com pouco – e só o fazem porque mobilizam o

que não está materialmente em sua composição, isto é, porque mobilizam discursos.

A polícia, a família, a mídia: diversas instituições aparecem nos textos e são

reconhecidas pela forma como funcionam e como as FDs a que estão ligadas organizam os

dizeres possíveis. Ao debruçar-se sobre esses elementos, é possível visualizar como o racismo

se manifesta nessas instituições; é uma questão que interfere na forma como a polícia lida com

a criminalidade, na forma como a família negra se organiza para se proteger de ações racistas,

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na forma como a mídia retrata a questão, muitas vezes não apenas noticiando ou abordando o

tema, mas também reproduzindo discursos racistas.

Como se ressaltou ao longo do trabalho, as charges em questão ainda fazem sentido

porque o racismo é realidade, porque a FD racista ainda tem força e voz na sociedade. Os textos

tocam em algo ainda não superado e que precisa ser discutido, seja na mídia – local primeiro

de publicação das charges –, seja no ensino, que deve estimular uma leitura crítica, além da

linearidade.

Assim, pode-se pensar que há novos caminhos de pesquisa que se mostram,

aproximando a AD da prática do professor de língua, cujo papel não pode se limitar ao ensino

da norma-padrão ou ao trabalho com a leitura em um nível tão linear quanto propõe o

estruturalismo. Por promover uma leitura menos “ingênua” ou decodificadora, a AD e seus

dispositivos teóricos pode contribuir para levar à sala de aula temas de discussão importantes

para a formação cidadã.

Referências

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. 2. ed. Trad. de Valter José

Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

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