carvão animal · desviar das labaredas e correr ... incêndios nas casas em que morou. sua...

487

Upload: vucong

Post on 11-Nov-2018

238 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

DADOS DECOPYRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizadapela equipe Le Livros e seusdiversos parceiros, com oobjetivo de oferecer conteúdopara uso parcial em pesquisas eestudos acadêmicos, bem como osimples teste da qualidade daobra, com o fim exclusivo de

compra futura.

É expressamente proibida etotalmente repudiável a venda,aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente conteúdo

Sobre nós:

O Le Livros e seus parceirosdisponibilizam conteúdo dedominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmentegratuita, por acreditar que oconhecimento e a educaçãodevem ser acessíveis e livres atoda e qualquer pessoa. Você

pode encontrar mais obras emnosso site: LeLivros.site ou emqualquer um dos sites parceirosapresentados neste link.

"Quando o mundo estiver unidona busca do conhecimento, e

não mais lutando por dinheiro epoder, então nossa sociedade

poderá enfim evoluir a um novonível."

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE

LIVROS, RJ M184c Maia, Ana Paula

Carvão animal [recurso eletrônico] /

Ana Paula Maia. – Rio de Janeiro :Record, 2011.

Recurso Digital. - (Trilogia do homem

comum)

Formato: ePub

Requisitos do sistema: Adobe Digital

Editions Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-01-09592-3

1. Romance brasileiro. 2. Livros

eletrônicos. I. Título. II. Série.

11-4067

CDD: 869.93CDU:821.134.3(81)-3

Copyright © Ana Paula Maia, 2011 Capa: Retina 78 Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Direitos exclusivos desta edição reservados pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: 2585-2000

____________________________________________________________Produzido no Brasil

ISBN 978-85-01-09592-3

Seja um leitorpreferencial Record. Cadastre-se e recebainformações sobre nossos lançamentos e nossaspromoções.

Atendimento e vendadireta ao leitor: [email protected] (21) 2585-2002.

“Tu és pó e ao pó tornarás.”

Gênesis 3:19

Apresentação

Este livro encerra a trilogia A

saga dos brutos, formada pelasnovelas Entre rinhas decachorros e porcos abatidos e Otrabalho sujo dos outros, ambascontidas no livro que dá título àprimeira novela.

Carvão animal é um romanceque se passa dez anos antes dasduas primeiras histórias, e assimencerra uma saga que teve porfundamento expor como o caráterdo ser humano pode ser moldadopelo trabalho que executa, como o

meio intervém na construção dasidentidades e como essasidentidades modificam o meio.Evidente que, se olharmos paraos lados, muito ainda deve sercontado. Ainda há muitos brutospara admirarmos.

Capítulo 1

No fim tudo o que resta sãoos dentes. Eles permitemidentificar quem você é. O melhorconselho é que o indivíduopreserve os dentes mais que aprópria dignidade, pois adignidade não dirá quem você é,ou melhor, era. Sua profissão,dinheiro, documentos, memória,amores não servirão para nada.Quando o corpo carboniza, osdentes preservam o indivíduo, suaverdadeira história. Aqueles que

não possuem dentes se tornammenos que miseráveis. Tornam-seapenas cinzas e pedaços decarvão. Nada mais.

Ernesto Wesley arrisca-se todoo tempo. Lança-se contra o fogo,atravessa a fumaça preta e densa,engole saliva com gosto defuligem e conhece o tipo dematerial dos móveis de cadaambiente pelo crepitar daschamas.

Acostumou-se aos gritos de

desespero, ao sangue e à morte.Quando começou a trabalhar,descobriu que nesta profissão háuma espécie de loucura edeterminação em salvar o outro.Seus atos de bravura não o fazemjulgar-se herói. No fim do dia,ainda sente os seus impactos. Éna tentativa de preservar algumaesperança de vida em algum lugarque todos os dias ele se levanta evai para o trabalho.

Seus fracassos são maiores do

que os sucessos. Entendeu que ofogo é traiçoeiro. Surgesilencioso, arrasta-se sobre todaa superfície, apaga os vestígios edeixa apenas cinzas. Tudo o queuma pessoa constrói e tudo o queostenta, ele devora numa lambida.Todos estão ao alcance do fogo.

Ernesto Wesley não gosta deatender a ocorrências deacidentes automobilísticos ouaéreos. Não gosta do ferroretorcido e muito menos de ter de

serrá-lo. A motosserra lhe causamal-estar. Enquanto separa asferragens, o tremor do corpo o fazperder por breves instantes asensibilidade dos movimentos.Sente-se rígido e automático. Umerro é fatal. Se alguém erra numaprofissão como esta, torna-semaldito, um condenado. É precisoarriscar-se o tempo todo. É paraisso que é pago. É para isso queserve. Foi treinado para salvar, e,quando falha, os olhares de

decepção dos outros fazem a suahonra arrastar-se em pó.

A única coisa que gosta deenfrentar é o fogo. Desviar daslabaredas e correr das chamasviolentas quando encontramabundante oxigênio. Arrastar-seno chão que range sob seu ventre,sentir o calor atravessar seuuniforme, a queda de um reboco,o desabamento de um andar sobreo outro, a fiação pendurada e asparedes partidas. O crepitar das

chamas que cronometram seutempo de resistência, o iminenteinstante da morte e, por fim,suportar um peso maior que o seusobre as costas e resgatar alguémque nunca mais esquecerá seurosto embaçado pela fuligempreta.

Ernesto Wesley é o melhor noque faz, mas pouca gente sabedisso.

Sorri para o espelho dobanheiro e em seguida passa fio

dental nos dentes. Limpacuidadosamente todos os vãos econclui a limpeza com umenxágue bucal sabor menta. Seusdentes são limpos. Poucasobturações. Um molar possui umajaqueta de ouro. Derreteu aaliança de casamento da mãemorta e revestiu o dente. Isto épara identificação, caso morratrabalhando ou em outrascircunstâncias. Ter um dente deouro é peculiar, e isto fará com

que o reconheçam com maiorfacilidade.

— Como está o Oliveira? —pergunta um homem usando omictório.

— Disseram que bem —responde Ernesto Wesley. — Mastiveram de amputar a mão.

— Diabo!O homem termina de usar o

mictório e aproxima-se da piapara lavar as mãos. Olha paraelas e suspira. A água sai num fio

de cor bege.— Essa torneira vive com

defeito — diz o homem.— Não é a torneira. Tem

pouca água aqui.— Essa água está imunda.— É o encanamento velho.

Está tudo velho.— Isso me faz sentir ainda

mais velho. Acharam a dentadurado Guimarães?

— Eu procurei nos escombros,mas não encontrei.

— Como identificaram ocorpo?

— Uma marca de nascença nospés. Aquele pé ficou praticamenteintacto justamente pra identificá-lo.

— Sem os dentes, só mesmoum lance de sorte como este.

— O Guimarães teve muitasorte mesmo. Seis corpos estãodestruídos e ainda semidentificação. Tem outro colegasumido.

— Sei... o Pereira.— Agora, só quando a perícia

liberar.— O Pereira tinha dentes

pequenos e pontudos.— Eram horríveis e estavam

cariados.Os dois homens entreolham-se

pelo espelho e permanecemescutando por alguns segundos oarrulhar inquietante da lâmpadafluorescente que crepita vez ououtra insinuando queimar a

qualquer instante.— São aqueles dentinhos

feiosos que vão salvá-lo agora —comenta Ernesto Wesley.

— Se vão. Eu mesmoencontraria o Pereira só em olharpara aqueles dentes.

— Dentes de tubarão.A porta do banheiro é aberta

por um homem baixo e de olharperscrutador. Ele segura umaprancheta.

— Vocês dois precisam

atender um sinistro.Ernesto Wesley termina de

usar o mictório e fecha abraguilha.

— Batida de dois carros e umcaminhão. Tem gente presa nasferragens.

— O Frederico é bom emserrar.

— Ele está de folga hoje. Sótem vocês dois.

— Quantas vítimas?— Seis.

— Bêbados?— Dois deles.— Me sinto mais a porcaria de

um catador de lixo — murmuraErnesto Wesley, que estavacalado até o momento.

— Não deixa de ser — diz ohomem.

Os dois homens seguem oterceiro e vão para o caminhão. Aocorrência fica a cincoquilômetros, numa autoestrada.

— Vontade de fumar — diz

Ernesto Wesley.— Eu também. Não sei como

você consegue ter dentes tãobrancos.

— Uso bicarbonato de sódiopra clarear.

— Você tem os melhoresdentes do grupamento, Ernesto.

— E você tem os melhoresincisivos que já vi em alguém.Um retângulo perfeito que deixauma mordida inconfundível nosseus sanduíches.

— Você já percebeu isso?— Eu e todo o grupamento.

Sei quando um resto é seu pelamordida.

O homem, admirado, ajeita afivela do cinto de segurança atéouvir o clic.

— Não gosto de serrar. Ficoapreensivo — murmura Ernesto.

— Talvez não será preciso.Ernesto Wesley olha para o

céu. Está estrelado e a lua aindanão apareceu. Ele estica os olhos

e revira a cabeça, mas não aencontra.

— Acho difícil. Alguma coisame dizia que hoje eu ia usar amotosserra — comenta ErnestoWesley.

— Odeio bêbados — murmurao homem.

— Eu também — concordaErnesto Wesley.

— É como se fosse ontemminha irmã morta na estrada dasColinas.

— Eu me lembro. Tive dearrancar o sujeito das ferragens.Um careca desgraçado.

— Ele partiu ela ao meio.— Me lembro disso também.— Queria matar o desgraçado

na ocasião. Cheguei a isso aqui,ó, de matar o sujeito.

— Somos pagos pra salvar atémesmo os desgraçados, carecas ebêbados filhos da puta.

— Eu tô cansado de tantamerda de gente irresponsável.

— Vamos ter de conviver como cheiro dessa merda. Afinal, nospagam pra isso — concluiErnesto.

Ernesto Wesley abaixa acabeça, resignado. Os olhosardem, lacrimejam, mas ele nãochora faz três anos. Não conseguedesde então. Suas lágrimasevaporaram.

O silêncio recai sobre oshomens. Estão cansados, masaprenderam a agir por impulso. Já

conhecem seus limites e eles sãoextensos. A autoestrada margeiaum rio e Ernesto Wesley oobserva ao largo de uma extensãoque faz seus olhos espremerem-sena tentativa de alcançar os limitesdas doces e imundas águas turvas,como se procurasse em vãos queestreitam para o fim algumsentido ou destino, mas nemsempre é possível ir além do queos olhos conseguem atingir.Ernesto Wesley é um brutamontes

de ombros largos, voz grave equeixo quadrado, porém tudo issose torna pequeno caso se repareem seus olhos. São olhosprofundos, de cor negra e deintenso brilho. Mas não é umbrilho de alegria, senão do fogoadmirado e confrontado diversasvezes. Quando se atravessa abarreira de fogo que ilumina oseu olhar, não há nada além derescaldo. Sua alma abrasa e seuhálito cheira a fuligem.

Até completar dezesseis anos,Ernesto Wesley confrontou quatroincêndios nas casas em quemorou. Sua família pacífica eraconstantemente coagida pelo fogoque começava sorrateiro emalgum cômodo da casa. Nunca seferiram gravemente. Da últimavez, salvou a vida do irmão maisvelho, Vladimilson, que ficoupreso dentro do quarto quando aporta emperrou. Ernesto Wesleytinha pavor do fogo e amolecia

até mesmo se confrontado comuma fonte de calor ou uma lufadade ar quente. Mas, quandoretornou ao interior daquela casapara resgatar o irmão, foiqueimado pela primeira vez.Estranhamente percebeu que ofogo não lhe fazia mal. Não sentiudores ou ardência. CarregouVladimilson desmaiado sobre osombros e nunca mais perdeu umachance de estar de frente para aschamas.

Ernesto Wesley não sente ofogo queimar sua pele. Possui umraro tipo de doença, analgesiacongênita: uma deficiênciaestrutural do sistema nervosoperiférico central. Isto o tornainsensível ao fogo, a facadas eespetadas. Desde então, passou aexperimentar o fogoconstantemente.

A doença foi ocultada por elepara ingressar na corporação;talvez se soubessem dos riscos

que corre nunca o admitiriam. Elepode caminhar sobre chamas,atravessar colunas ardentes e seratacado por labaredas. Ele sequeima, mas não sente.

Poucos chegam à idade adultacom tal doença. Marcas roxasestão por todo o seu corpo.

Aprendeu a se apalpar parasentir algum osso fora do lugar. Jáquebrou as pernas, costelas ededos. Ernesto Wesley é muitoatento ao próprio corpo e acredita

que essa doença vai além dapatologia clínica; é um dom.

Sem sentir dor sua coragem éengrossada a ponto de fazê-lo iraonde nenhum outro homemconseguiria; talvez apenas outrospoucos.

Faz consultas e examesregulares para saber se seu corpoe saúde estão em ordem.Convenceu-se de que podesuportar maiores provações doque os outros. Porém, existe uma

espécie de dor à qual não éinsensível. Seu coração, emcontrapartida à doença, sofre deum mal irreparável: a dor daperda. Esta o mortificaseveramente.

Luzes vermelhas e amarelasbrilham no meio da autoestrada.Dois policiais sinalizam para oscarros seguirem por uma únicafaixa. O carro para e eles descem.

À distância, Ernesto Wesleypercebe o emaranhado da lataria

esmagada. Dois carros e umcaminhão colidiram. Fundiram-se. Trabalhará mais do que haviaimaginado. Coloca um macacãoespecial, luvas de aço, umcapacete para soldar e apanha amotosserra para libertar asvítimas das ferragens. Espera seracionado. Outra equipe desocorro já havia chegado aolocal. Ernesto Wesley sóprecisará derrubar as árvores. Éo que costuma dizer quando

separa as ferragens.— São cinco vítimas, ou

melhor, seis. Três estão presasnas ferragens, incluindo umcachorro. As outras duas já foramlevadas pro hospital — diz umdos bombeiros da outra equipe.

Ernesto Wesley verifica oestado dos carros e do caminhão.O motorista do caminhão foi oúnico que não sofreu nenhumdano. Está de pé, próximo aosbombeiros, tentando ajudar. Este

é o seu quinto acidente e de todosescapou. A placa quadradapregada no caminhão preocupa osbombeiros. É líquido inflamável.Explosão química seguida defogo é uma das coisas maisdifíceis de se escapar. Um dosbombeiros fez a checagem econstatou que não há risco devazamento. Ernesto Wesley liga amotosserra e já não ouve nenhumgemido, sirene ou coisa que ovalha. Está imerso no anestésico

impacto da serra e no barulhoestridente provocado pelo atritoda lâmina contra os nós de ferro.

A única coisa que agradaErnesto Wesley neste árduotrabalho de serrar ferragens sãoas fagulhas que se lançam no ar,ao léu, dançando nervosamente.Algumas delas não se espalhamno ar, elas descem e tocam ochão.

Uma menina de cinco anos estápresa e acordada. Seu cachorro

labrador está esmagado sobre seucolo. O sangue do animal cobriuo rosto da menina e ela durantetodo o tempo chama pelo cão.Será preciso serrá-lo junto comas partes do carro; o problemaserá o trauma para a menina.Primeiro será necessário removera cabeça e depois os outrosmembros. Se não fosse ocachorro, a menina estaria morta.Ernesto Wesley não pode secomover. Ele precisa derrubar as

árvores. Ainda que sinta arder ocoração sempre que resgataalguma criança, não importampara os outros seus acidentespessoais. Nesta profissão não épossível remoer as própriastragédias. É sobremaneira umaatividade que enrijece o caráter eque o coloca de frente para aspiores situações. Tudo se tornapequeno quando deparado com amorte. Não uma morte calma,sonolenta, mas a morte que

espedaça, desfigura e transformaseres humanos em pedaçosdesconjuntados. Crâniosesfarelados, membros esmagadose decepados. Quando alguém emestado de choque percebe que seupé está a dois metros de distânciaou que sua perna caiu no vão quesepara as pistas de umaautoestrada, nunca mais seesquecerá. Podem-se perder:amor, dinheiro, respeito,dignidade, família, títulos e

posição social. Isso tudo pode serreconquistado, mas um membrodecepado, nada o trará de volta aseu lugar.

Serra a cabeça do cachorro eparte do painel do carro. Sanguee resíduos de ferro se estilhaçam.A menina está em choque. Duashoras e ela resiste e sai dasferragens segurando uma pata. Omais comovente foi o resgate damenina, mas o pior seria o deseus pais.

O pai perderia algum membro,caso Ernesto não se concentrassemuito. O que dificultou aindamais foi a chuva forte que duroucerca de quarenta minutos eencharcou seu macacão. Todos oshomens parecem fatigados.Restam poucos curiosos no local.

O mais cansado de todos éErnesto Wesley, e isto ficaevidente quando a serra trepidaentre as engrenagens do veículo,bambeia em sua mão e atinge a

panturrilha do homem. Ele paraum pouco. Respira fundo. Olhapara os lados. Está serrando fazcinco horas.

— Este homem deve sersubstituído — ordena o oficialresponsável pela operação.

O outro bombeiro, que foijuntamente designado para otrabalho com Ernesto Wesley,assume o controle da motosserra.Após vestir o uniforme deproteção, ele dá dois tapinhas nas

costas de Ernesto Wesley.— Agora é comigo. Vá

descansar um pouco. Você estáhorrível, homem.

— Eu te disse que odeioserrar. Estou com muita dor decabeça.

O bombeiro, quando tentaremover a mãe, ela já está morta.É possível verificar seusbatimentos, pois a cabeça estáreclinada sobre o banco traseiro,ao lado da janela aberta. Ele

precisa serrar por mais uma hora.Fagulhas são lançadas vez ououtra. E, quando se tem líquidoinflamável vazando sem queninguém perceba, isto é fatal. Opior nesta profissão é que o errode um atinge a todos os outros. Obombeiro que serrava foi lançadopara o outro lado da pistaenquanto Ernesto Wesley engoliaum analgésico ao lado daambulância. O corpo do homemem chamas cruzou alto o céu da

madrugada. Ele sentiu a peleenrugar, os cabelos encarapinhare, ao bater no asfalto, ainda vivo,escutou os ossos estalarem emchoque com as chamas queinflamavam rápido até asentranhas. Tornava-se carvãoanimal e podia sentir o fortecheiro queimado de sua pele,músculos, nervos e ossos.

Seus dentes estavam intactos eaté os legistas concordaram: eramos melhores incisivos que viram

num morto.

Capítulo 2

A gordura funciona comocombustível e aumenta aintensidade do fogo, sendo assim,uma pessoa magra demora maispara ser reduzida a cinzas do queuma gorda. O forno crematórioatinge uma temperatura de até1.000ºC. Inclusive para os dentesé difícil resistir ao insuportávelcalor. A fila de corpos a seremcremados é sempre longa. Sãomantidos congelados até assaremno forno, e moídos os restos

empedrados que são finalizadosem cinzas de grãos uniformes esuaves.

Enquanto um corpo écarbonizado, as extremidades secontorcem e encolhem. O que jáfoi humano parece voltar-se parao lado de dentro. A bocaescancara e se contrai. Os dentessaltam. O rosto murcha e torna-seum grito suspenso de horror.

Ronivon passa um detector demetais portátil sobre o peito

mirrado de um velho antes defechar o caixão. É uma medidaobrigatória, pois, caso haja ummarca-passo, este explode emcontato com a alta temperatura doforno.

O aparelho apita e um pequenosinal de luz pisca. Está comdefeito faz algumas semanas.Requereu um novo, mas ainda nãoo enviaram. Ronivon sacode oaparelho e, após alguns tapas, aluz verde se acende e indica que

voltou a funcionar.O velho morreu de

complicações no pulmão. Fumoupor quarenta e sete anos.Praticamente, o velho estavasendo cremado aos poucosdurante todo esse tempo. Dospulmões restou apenas um pedaçodo lado esquerdo. Sua peleamarelenta é extremamenteenrugada, parecendo uma pele decobra. Os vincos são profundos.As pontas dos dedos são de

tonalidade caramelo, manchadaspelo fumo. Mas um corpo assimtão magro e ressecado levarámais tempo para queimar. Ocaixão seguinte é uma mulher dequarenta e oito anos. Rostobonito. Cabelos lisos e pretos.Morreu de infarto, pouco comumàs mulheres. Na ficha de controleainda há seis corpos a seremcremados neste dia.

O forno crematório tem trêsmetros de largura, dois e sessenta

de comprimento e dois e quarentade altura. Neste modelo de fornoé possível cremar dois corposseparadamente ao mesmo tempo.Isto faz render mais o serviço e,desde que trocaram o forno poreste novo, Ronivon percebe oquão proveitoso se torna seutempo no trabalho. Seu horário dealmoço ganhou mais doze minutosdevido a esta melhoria.

Abre a portinhola do forno einsere os caixões cada qual em

sua prateleira. Regula atemperatura para 800ºC e verificaas horas. Os corpos são inseridosno forno quando ainda está frio.Senta-se num banco de plástico efolheia uma revista emprestada darecepção.

Nem todos sabem que doiscorpos são cremados ao mesmotempo. A “carvoaria”, como osfuncionários apelidaram o localdos fornos, está localizada nosubsolo. No andar de cima ficam

os parentes, em salas paracerimônias ecumênicasseparadas, velando pelo mortoantes de ser cremado. Adespedida dura quinze minutos.Ronivon acredita que o homemdeve retornar ao pó, pois do pófoi criado. Não concorda com ascinzas finais. Para ele, tornar-sepó é necessário. As cinzas sãosubversivas. Uma ossada, restosde tecido orgânico, fios decabelo, entre outros, são indícios

que perdurarão por anos.Restarem só as cinzas é não tervestígio algum. É não ter túmulo,moradia póstuma, flores no diados mortos e a visita de nenhumente. Os restos são reconhecíveisao menos num laboratório.Reduzido a cinzas, não é maispossível identificar a origem; sede um homem ou de um animal.

Por uma janelinha, observaque o corpo da mulher está seconsumindo bem, como havia

imaginado. O velho, ressequidofeito um graveto, parece não tersofrido muita alteração. Será umacremação demorada.

No columbário, local dedepósito das urnas, sempre hácinzas esquecidas. Nocrematório, todos os dias, porfalta de espaço, são dispensadasduas ou três urnas mantidas peloperíodo máximo de trinta diascujos parentes dos mortosdeixaram de buscar. Na recepção,

basta ler os avisos de normas eregulamentos a serem cumpridospregados num quadro.

* Não entregamos as cinzas semo protocolo.

* Os restos mortais só serãorecebidos mediante

o recibo de pagamento.* As cinzas são disponibilizadas

2 horasapós a cremação.

* As salas para cerimônias

ecumênicas são disponibilizadaspor 15 minutos.

* Todos os corpos deverão seridentificados pela família antes

de serem cremados.* As cinzas serão mantidas no

columbáriopor um período máximo de 30

dias.

Quando eles deixam as cinzaspara trás, em letras miudinhas lê-se que um funcionário do

crematório deve espargi-las ouinumá-las ao pé de roseiras,respeitosamente, no bem cuidadojardim do crematório. Bemcuidado na parte destinada aosparentes para espalhar as cinzasdos seus mortos, local conhecidocomo cendrário. Na parte dosfundos, o mato alto, as floresmurchas e as moscas amontoadasem valas fedorentas recebemesses restos lançados numcórrego que segue para os

esgotos. É exatamente nos esgotosque vão parar os restos mortais,ou seja, as cinzas fabricadas nacarvoaria. Respeitosamente,aquilo que já foi humano élançado às fezes.

Morremos, somos queimadosaté esturricar, moídos em grãosuniformes e depois lançados nosesgotos por estranhos. O atoecumênico é para os outros. Paraos mortos resta das cinzasvoltarem ao pó. E, para os menos

afortunados, resta-lhes aimundície dos esgotos comotúmulo.

É um trabalho simples. Desdeque se goste do fogo e se suporteo calor, não traz aborrecimentos.O cliente nunca reclama, e, caso amercadoria sofra danos, bastapreencher a urna funerária comsobras de cinzas que sãoguardadas pelo funcionário damanutenção do forno. Este sempreapanha uns punhados de cinzas

provenientes de muitas cremaçõese guarda-as num galão deplástico. Depois são moídas demodo uniforme e repõem a faltados grãos perdidos dos outros.

A porta se abre e o supervisordo crematório entra comendo umbiscoito doce. Chama-se Palmiro.Ficou cego de um olho quandopor descuido uma fagulha dacremação o atingiu. Não usa tapa-olho. Prefere permanecer com oolho cego exposto. É um olho

esbranquiçado onde deveria sernegro, lacrimeja com frequência epossui uns vasos sanguíneosdilatados que tornam seu aspectoassustador. Ronivon aprendeu anão olhar para o olho cego.

— Ronivon, como vão essesaí?

— Mais ou menos. Tem umvelho seco feito um graveto.

— Esses são os piores.— Sim. E ainda era fumante.— Me lembro desse tipo no

meu tempo de cremador. O corpojá está acostumado ao fogo e aocalor. Resistem por muito tempo.

— Infelizmente ainda tenhomais seis corpos, acho que nãovou poder ir hoje à noite.

— Mas o carteado sem vocêfica desfalcado. Olha, são seiscorpos, mas apenas trêsqueimadas.

— Acho que esse velho secovai me atrasar o dia.

— Teve pouca gente no

velório dele. Não estavam nemabatidos.

— Pelo visto alguém vai terque despejar o velho no córregolá de trás.

Palmiro suspira e abaixa acabeça. É triste este fim.Geralmente é ele quem lança osrestos no córrego. Ronivonlevanta-se e verifica atemperatura do forno, confere asengrenagens, e o corpo do velhocomeça a ceder ao fogo.

— Mas o carteado é religioso.— Eu sei, Palmiro. Tudo

depende da hora que conseguirsair.

— Tudo o que eu possodesejar neste momento é que esteforno arda mais que o inferno.

Palmiro bate a porta ao sair.Caminha lento pelo longocorredor em direção às escadas.É um homem atarracado, comalguns fios de cabelo e de olhartrêmulo. De tanto aspirar fuligem

dos muitos anos em que trabalhounuma carvoaria e dos anosseguintes em que cremou corpos,seu pulmão ficou debilitado. Suarespiração tornou-se barulhenta, econstantemente, num ruidosoescarro elimina pela boca umasecreção gosmenta em pedaços depapel higiênico que costumacarregar nos bolsos das calças.Antes de alcançar as escadas,retorna à sala dos fornos. Enfiaapenas a cabeça através de uma

portinhola.— Você está cuidando da

moagem também, Ronivon? —grita.

— Sim. Eu preciso moer todoseles depois. Estou sozinho hoje.

— Não se preocupe. Voumandar o J.G. vir te ajudar. Elepode moer.

Ronivon espreguiça-se. Estácom sede. O calor do forno o faztomar quatro litros d’água pordia. Possui os pulmões

enfraquecidos pelo desgaste daágua gelada num corpo quente.Levanta-se e apanha penduradoatrás da porta um jaleco azul emque se lê Colina dos Anjosbordado do lado esquerdo sobreo peito.

Atravessa o corredor até ofinal onde fica o banheiro dosfuncionários. Molha o rosto everifica os dentes. Tem ótimosdentes.

Antes de trabalhar no subsolo

de um crematório, Ronivon teve aexperiência de trabalhar nosubsolo de um velho prédio ondefuncionava uma fábrica de sabãoartesanal. Atravessava as horasmexendo um panelão fervente degordura. O cheiro não era como ode carvão, era de excremento,sebo e sobras. Seus olhospermaneciam fixos numredemoinho de glicerina, ácidograxo, tecido adiposo, banha etoucinho.

Enquanto trabalhava naquelafábrica nivelada aos ratos,pensava se haveria um jeito deescapar caso o prédiodespencasse. Havia rachadurasenormes, vãos rasgando-se doteto ao chão abrigando todo tipode inseto. Os que trabalhavam nosubsolo não teriam chance deescapar caso tudo viesse abaixo.Suportava o peso de seis andarese sabe-se lá o que guardavam naparte de cima. Depois de quatro

anos mexendo um panelão degordura fervente, faz cinco anosque começou a cremar os mortosem outro subsolo. Falta apenasum ano para completar umadécada que Ronivon passa maistempo ao nível dos inumados doque na parte superior. O sol lheparece estranho. Sua cor é pálida.Acostumou-se ao subterrâneo eao fogo.

Toma um pouco d’água nobebedouro ao lado do banheiro e

retorna à sala dos fornos. J.G.está de pé, olhando desconfiadopara a cremação.

— Seu Palmiro me mandoumoer os restos — diz J.G.

— Já tem dois atrás dessaporta.

J.G. olha para a porta e apertauma medalha sacra pendurada aopescoço. Ronivon conhece omedo do rapaz em moer restosmortais. Gostaria de poder ajudá-lo, mas alguém precisa moer os

restos da carvoaria, assim comoquem mói pão torrado para fazerfarinha de rosca.

J.G. é um rapaz negro e detoneladas. Sabe-se pouco de suavida, mas o fato é que J.G. tempouco de vida a se recordar. Tudofoi uma repetição. As cicatrizesno corpo são as lembranças desua mãe. Quando criançacostumava ser espancadoregularmente junto da irmãcaçula. Sua cicatriz mais visível é

no lábio inferior, uma rachaduraque o deixou com a bocadeformada.

Um dia, a mãe ao chegar dotrabalho, muito irritada, decidiuse aliviar um pouco. A caçula,nesse dia, não aguentou aspancadas. Desfaleceu no chão aolado da vasilha com a comida docachorro. J.G. conseguiusobreviver porque a mãepercebeu que a filha nãorespondia mais às pancadas. Foi

então que parou com oespancamento e socorreu osfilhos. Quando J.G. saiu dohospital, sua mãe já estava presa.Nunca mais a viu. Foi criado àrevelia por tias e outros parentesdos quais, em muitos momentos,nem sabia qual o grau deconsanguinidade.

Passou a atender prontamenteàs ordens dos outros, a respondersim senhor, sim senhora, a sedesculpar até pelo que não tinha

culpa, e seu sorriso tornou-sebreve devido ao lábio aleijado.

A única coisa que J.G.acumulou na vida foi gordura. Suagordura é o reverso de todas assuas perdas, amarguras esofrimentos. Caminha comdificuldade. Seu corpo possuidobras. Seus braços não tocam ascostas. Seu peito chia quandorespira. Sua voz é grave e lenta.Por toda a pele do corpo notam-se placas escurecidas e estrias.

Devido aos anos deespancamento contínuo, seu mioloamoleceu. Nunca conseguiu ler eescrever bem. Seu raciocínio ébreve como seu sorriso edeformado como sua boca.

— J.G., atrás dessa porta sótem dois gravetos secos.

— Seu Ronivon, o senhor nãotem medo de queimar essa gente?

— Eles já morreram. São sóas sobras. O que nós fazemosaqui, J.G.?

J.G. estica os olhos para cimae parece achar entendimentoolhando o teto descascado.

— Carvão. A gente faz carvão.Ronivon dá um tapinha no

braço de J.G. e sorri.— Exatamente. A gente faz

carvão.— Eu gosto de churrasco, seu

Ronivon. A gente usa carvão nochurrasco.

— Claro que usa. Mas nãoeste tipo de carvão.

— Não. Desse carvão a gentefaz a cinza que vai pro jardim.

O sorriso de J.G. alarga-se.Sempre que fala no jardim e nasgoiabas que adora comer dos péscarregados que margeiam oterreno do crematório, seu sorrisoestica-se.

— As roseiras gostam dascinzas desse carvão.

— Sim, J.G., elas gostam.— Eu cuido das roseiras.

Cuido bem. Eu gosto daqui, seu

Ronivon.— Sei disso.— Mas acho que não vou

poder mais dormir no quartinho.— Como assim, J.G.? Eles

vão te tirar do quartinho?— O novo zelador vai chegar

e vai ficar morando no meuquartinho. Essa é a condição,disse o gerente.

J.G. abaixa a cabeçalamuriento.

— A gente vai dar um jeito

nisso, tá bom?— Minha tia Madalena me

batia e me chamava de demente.Não quero voltar pra casa dela.Ela usava um penico e eu tinhaque esvaziar todo dia. Aquininguém me bate e não tempenico.

J.G. soluça enquanto fala.— A gente vai arrumar um

lugar pra você ficar — dizRonivon, comovido.

— Brigado. O senhor é um

homem bom.— Deixa disso. Agora vá

moer o carvão. Tem mais doissaindo do forno.

— Sim senhor, eu vou.Ele entra na sala de moagem e

fecha a porta em grande paz deespírito pensando nas cinzas queresultarão de seu trabalho paraenterrar aos pés das roseiras eque terá um novo lugar paradormir.

O funcionário que cuida dos

corpos da geladeira entra na salapuxando um carrinho com opróximo da fila.

— Ei... você está com sortehoje.

Ronivon caminha até o homeme verifica o corpo que está sobreo carrinho. Suspende umasobrancelha, inquisidor. O homemsorri.

— Olha só. Já adiantaram seutrabalho. Bombeiro morto numaexplosão.

Ronivon apenas suspira,resignado.

Capítulo 3

O dia parece não teramanhecido ainda. Está fazendomuito frio e o céu está cobertopor nuvens encrespadas. O vapordo hálito morno indica que esteinverno será rigoroso. Raramenteisso ocorre. Ernesto Wesleyveste-se com todos os casacosque encontra no armário, pois eletem baixa resistência ao frio.Toma um café quente queRonivon, seu irmão, deixoupronto antes de sair para o

trabalho. Ernesto trabalhará noturno da noite, por isso aproveitaa manhã livre para cuidar dominhocário, nos fundos doquintal. Um assunto que temtomado boa parte de seu tempo.

Ernesto Wesley tem umalambreta, 1974, branca evermelha, com a parte mecânicarevisada e pneus novos. Comproufaz três anos, parte da venda doespólio de uma família quemorava nas redondezas. Desfez-

se de um cortador de grama e umabomba-d’água para adquiri-la.Vai até a garagem, uma coberturasimples de telhas de amianto aolado da casa, e descobre alambreta que mantém protegidacom uma capa amarela.

Na rua, antes de dar a partida,retira dos bolsos um gorro de lã,com protetor de orelhas, e um parde luvas. A sessenta quilômetrospor hora, Ernesto Wesley sedesloca para um sítio que fica a

oito quilômetros de distância desua casa. O trajeto tem aspectodesolador, com depressões naestrada e cercado de morros.Existem alguns trechos em bomestado de conservação, e nocaminho cruza com carros debois, pessoas a pé, outraslambretas e alguns poucos ônibus.Na maior parte do tempo, é umtrajeto solitário e parcialmentesilencioso. Isso tudo agrada aErnesto Wesley, que segue

ritmado pelo som do motor dalambreta. Esse som estridenteameniza as sirenes do carro dosbombeiros, que soaperiodicamente em sua cabeça e omantém sempre alerta, porquepara Ernesto nunca há silêncio ousossego.

É uma região cortada por rioscontaminados e pequenos pastos.A paisagem humana mistura-se àpaisagem semirrural. A cada trêsquilômetros em média, um novo

bairro. São pequenos bairros, demovimentação confusa, comércioespalhado e pouca sinalização.Pessoas, carros, bicicletas,bêbados, crianças, porcos egaiolas de galinhas são cortadospela mesma estrada, que empontos perigosos possui umaplaca com uma caveirasinalizando o alto índice deacidentes fatais. Pois a morte éconstante por essa estradasemelhante a uma longa veia

negra. Uma região clandestinanascida ao pé de uma serra.

Atravessa o portão de ferro dosítio e para quando chega a ummoedor de cana de açúcar. Umhomem gordo e baixo coloca ascanas, uma a uma, no moedormanual. Outro sujeito, alto emagro, gira a manivela com forçapara esmagar a cana que saiprensada, apenas o bagaço.

— Bom-dia — diz Ernesto aoparar a lambreta.

— Bom-dia — responde ohomem gordo.

— Eu vim buscar estrume devaca.

— O seu Gervásio tá lá comelas.

Ernesto sinaliza a cabeça emagradecimento e segue com alambreta até próximo ao pasto.Quando avista Gervásio, desligao motor e caminha até o homem.

— Ernesto, meu filho, comovai?

— Bem, seu Gervásio. E osenhor, a família?

O homem mastiga por algunsinstantes. Apenas mastiga, poisnão aparenta estar comendo nada.De tanto conviver com suasvacas, seu Gervásio se acostumoua ruminar como elas. Ele possuium semblante de consternaçãofrequente e sua barba está semprea ponto de fazer, em média doiscentímetros de pelos. É como se ohomem aparasse a barba para

estar com aquele aspecto. Depoisde ruminar por uns dois minutos,ele decide falar.

— Minhas vacas estão bem. Opasto está bom também — ele éaprumado e só fala olhando parao infinito. Seus olhos estãosempre além do que os outrospodem enxergar. — Minha filhamais velha vai se casar — dizsério seguido de um mugido deuma vaca que pasta próximo.

— Felicitações — diz Ernesto.

Gervásio sacode a cabeça emnegação.

— Toda vez que alguém falanesse casamento minhas vacasmugem. Isso é sinal de mauagouro. Acho que a Dolinha vaifazer um péssimo negócio. Ele édoutor. Eu não gosto de doutor.Mas ela não me escuta. Nemescuta as vacas. Só pensa nessedoutor. — Ao concluir suaspalavras, volta a ruminar emsilêncio.

— Seu Gervásio, eu vimcomprar estrume.

— E como andam as suasminhocas, meu filho?

— Estão bem... estão gostandomuito do estrume das vacas dosenhor. Elas estão ficandobastante lustrosas.

— O estrume das minhasvacas é o melhor de toda essaregião. Vem gente de muito longepra comprar. Quando a vaca éboa, até a bosta é valiosa.

O homem vira-se para umempregado da fazenda. Um rapazfranzino e vesgo que temproblemas na fala. Quando dizalguma coisa, soa fanhoso e muitoagudo.

— Zeca, traz o estrume doErnesto e aquele saco que tá láseparado também.

Volta-se para Ernesto, deixa osemblante esmorecer novamente ese cala. Os dois esperam que oestrume seja trazido. A manhã

nebulosa parece mais fria empastos abertos. Há leves sinais degeada nas folhas das plantas. SeuGervásio calmamente apanha seucachimbo e o apoia num canto daboca. Retira um toco de fumo derolo do bolso da camisa deflanela e uma faquinha muitodesgastada, sem nenhum apuro decorte, raspa o toco de fumo ecoloca as raspas no cachimbo.Guarda o toco e a faquinha nobolso novamente e acende o

cachimbo com um risco nofósforo.

— Acho que vamos ter uminverno daqueles — comentaErnesto Wesley.

— É verdade. Eu precisocuidar ainda mais das vacas.

— Disseram que será o piorinverno dos últimos trinta anos.

— Está com jeito mesmo. Eunão me lembro desse frio todo.

O rapaz fanhoso traz os doissacos sobre as costas e os coloca

aos pés de Ernesto Wesley.— Ernesto, hoje eu quero te

dar uma amostra da bosta daMarlene. Marlene é aquela vacaembaixo daquela árvore lá, ó.Essa vaca produz um dosmelhores estrumes que já vi navida.

Seu Gervásio abaixa-se e abreo saco. Ele mostra orgulhoso oconteúdo.

— É uma bosta condensada esuave ao mesmo tempo. O cheiro

é forte e azedo. Eu quero te darum pouco da bosta da Marlenepra você testar lá nas suasminhocas. Mas você usa separadonuma parte do minhocário. Daquia umas duas semanas você já vaiver diferença. Como a bosta daMarlene é preciosa. Ainda nembotei preço nela.

— Ah, seu Gervásio, muitoobrigado ao senhor. Eu vou usarhoje mesmo.

— Não vai se arrepender. Meu

filho ainda nem viu esse lote daMarlene. Ta lá pras bandas dooeste, em Rio das Moscas.

— Ele foi caçar javali?— Sim, e não sei quando

volta. Estão com uma praga dejavali por lá. O bicho temdevastado tudo.

— Talvez um dia eu tomecoragem e vá atrás de um desses.

— Coragem? Mas o que nãofalta em você, rapaz, é coragem.

Ernesto apanha os sacos e os

ajeita na lambreta. Amarra bemapertado para não cair. O sacomaior ele amarra na parte de trás,onde carrega um estepe, e omenor, na frente, sob seus pés.Ele paga ao homem e despede-se.Montado na lambreta Ernesto fazmais duas rápidas paradas emlojas específicas para comprarferramenta, sementes de girassol,entre outras coisas, e volta paracasa.

* * *

Quando pequena, Jocasta teveo crânio afundado por uma tábuaque caiu sobre ela enquantocomia. Um pequeno acidente queteria passado quasedespercebido, não fossem seusgrunhidos de dor. Mas anormalidade nunca mais fez parteda vida da cadela. Seucomportamento se alterouvisivelmente, mostrando-se muitomais agitada e neurologicamente

perturbada. O seu abrir e fecharde boca a cada cinco segundos foium dos primeiros sintomas. Ababa pendurada no canto da bocae o eterno olhar de filhote foramos seguintes. Por outro lado, essaperturbação mental lhe conferiumais coragem e ousadia. Jocastanão teme nem o fogo nem a água.É capaz de perseguir um leão ecaçar leopardos. É uma cadela deaspecto simpático, pelo teso eamarelo, cauda em riste, orelhas

levemente caídas nas pontas, demusculatura esbelta e andarelegante. Gosta de trotar peloquintal, imperiosa.

Durante as tempestades, correde um lado para o outro doquintal latindo para os raios. Osraios a deixam enfurecida.Quando late para eles, é como sediscutisse abundantemente comDeus. Seus atos às vezes lheconferem divindade. Em diasensolarados, persegue a própria

sombra. Às vezes, passa horasintermináveis no encalço daprópria sombra que ainda nãoconseguiu abocanhar. Porém, senão consegue abocanhar a própriasombra, os ratos que perambulaminsidiosos e quase insuspeitospelo quintal à noite ela alcança atodos. Jocasta cuida dominhocário como uma cadela quecuida dos próprios filhotes. Éestéril feito uma besta, nunca teráseus filhotes, porém tem muitas

minhocas para cuidar. Todos osdias, ela deposita o trabalho detoda uma noite em alerta,geralmente são cinco ou seis ratosmortos, ao lado da porta dosfundos da casa de Ernesto eRonivon. Ela insiste em colocá-los ali, pois é a primeira porta aser aberta quando amanhece, e éimportante que logo cedo seusdonos vejam o resultado de seutrabalho. Uma habilidade que suaperturbação lhe confere é

encontrar focos de formigueiroainda no início. Ela para ao ladode um e rodopia em torno de sivárias vezes seguidas. Mas aatividade de que mais gosta éespantar as galinhas da vizinhaque pulam para o seu quintal natentativa de ciscar as graúdasminhocas em cativeiro.

Ernesto Wesley chega em casacom os sacos de esterco de vacae um punhado de sementes degirassol para Jocasta, o que lhe

confere um pelo iluminado quebrilha como o sol. Jocasta deita-se confortavelmente em sua cama,um amontoado de trapos que ficana improvisada garagem, e quietamastiga as sementes para emseguida tirar um cochilo.

Ernesto Wesley cria a minhocavermelha da Califórnia. Essaminhoca prefere o esterco animale é excelente na produção dehúmus, que nada mais é do que abosta da minhoca que resulta

numa substância parecida com póde café. O húmus, ele vende paraalguns pequenos agricultores,jardineiros, paisagistas equalquer um que deseje deixar ahorta nos fundos de casa com umsolo fértil. A minhoca viva, elevende uma parte como isca parapesca e a outra parte ele vendedesidratada. Em diasensolarados, logo pela manhã,coloca as minhocas dentro de umsaco plástico para ficarem

expostas ao sol. Uma vezexpostas ao calor, elas perdemágua e desidratam. Em dias emque não há sol, ele as leva aoforno. Não é raro uma pizza serassada ao lado de um tabuleirocheio de minhocas.

Sentado à mesa, toma um golede café e come duas torradassecas antes de ir trabalhar noquintal. Hoje é dia de alimentaras minhocas, e ele precisapreparar a compostagem. O café

está bem quente e o ajuda amanter-se aquecido. Seu narizestá gelado. Esfrega as mãos nascalças para aquecê-las com oatrito. Repara sobre o pequenoarmário de louça um envelopebranco. Estica o braço e inclina acadeira um pouco para trás atéalcançá-lo. Junto do envelopelacrado há um bilhete de seuirmão, Ronivon.

“Ernesto, esta chegou ontem.

É pra você de novo.Agora é uma por semana.”

Ele olha a carta e a colocasobre a mesa. Batuca de leve osdedos sobre ela. Sente o coraçãocomprimir. Pensa em abri-la.Aperta com os dedos os olhos epermanece assim por algumtempo. Quando precisa pensar,Ernesto Wesley afunda o polegare o indicador sobre as pálpebrasdos olhos fechados e as

pressiona. Está aborrecido. Tomao restante do café que está nocaneco, deixa a carta lacradasobre a mesa e vai para o quintal.

Ernesto retira algumas blusasque veste, mantém o gorro nacabeça e troca as luvas de lã porum par de luvas de couro.Aproxima-se da compostagem,um amontoado de um metro dealtura de matéria orgânica emdecomposição que permaneceufermentando por uma semana, e

começa a revirá-lo. O cheiro é depodre. São sobras de alimentos,papéis, frutas, folhas secas erestos de grama. Ronivon haviapreparado o amontoado e asegunda etapa ficou para Ernestoconcluir. Quando a temperaturada massa estabiliza em torno datemperatura ambiente, é omomento ideal para colocar nocanteiro de minhocas. E esse é omomento. Coloca o esterco e acompostagem no canteiro.

Aparentemente não há sinais deformigas ou outras pragas.

A vizinha, dona Zema,aproxima-se da cerca do quintal egrita seu nome. Ele para com otrabalho para ir até a mulher.

— Bom-dia, dona Zema.— Bom-dia, Ernesto. É que eu

tô precisando muito falar comvocê e não tenho encontrado nemvocê nem o seu irmão.

— Pois não?— Acontece que essa sua

cadela tem feito arruaça com asminhas galinhas. Só na semanapassada duas ficaram muitomachucadas e uma delas acaboumorrendo. Tava terminando dechocar uns ovos lá no ninho e osovos ficaram abandonados e eumesma tive que terminar oserviço.

— A senhora chocou os ovos,dona Zema?

— Com a ajuda de Deus, né, agente faz muita coisa. Você sabe

que é com esse dinheiro dos ovose das galinhas que boto comidaaqui em casa.

— Sei, sim senhora.— A minha vida é muito

sacrifício. Sou sozinha pra tudo.— Sim senhora.— Eu queria que você desse

um jeito nessa cachorra. Ela tá meprejudicando. Ela tem miolomole, todo mundo sabe.

— Dona Zema, o que aconteceé que as suas galinhas têm pulado

essa cerca aqui pra vir ciscar asminhas minhocas. A Jocasta sótem feito o trabalho dela, que étomar conta do minhocário.

— Eu não sei, Ernesto. Ela éuma abusada, essa cachorra.Esses dias tava aqui no meuquintal.

— No seu quintal? A senhoratem certeza de que era a minhacachorra? Porque a Jocasta tomaconta direitinho daqui. Caça osratos, acha os formigueiros e

espanta as galinhas da senhoraque pulam pra cá.

— Olha, Ernesto, eu tôpedindo com educação, mas, seessa cadela aprontar com asminhas galinhas, ela é que secuide. Eu vou dar um jeito nisso.

Batem no portão da casa deErnesto Wesley. Ele desconversaa mulher e diz que tudo vai ficarbem e vai para dentro de casaapressado. Tudo vai ficar bem éuma expressão que Ernesto

Wesley usa corriqueiramente.Praticamente todos os dias dizisso para alguém.

* * *

O fogo se multiplica sempreem fogo, e o que o mantém vivo éo oxigênio, a mesma coisa quemantém o homem vivo. Semoxigênio o fogo se extingue, e ohomem também. Assim como ohomem, o fogo também precisa sealimentar para permanecer

ardendo. Vorazmente devora tudoao redor. Se o homem forsufocado, morre por não poderrespirar. Se abafar a chama, elatambém morre.

As chamas se mantêm acesasenquanto queima um pedaço demadeira, um colchão, cortinas,entre outros produtos inflamáveis.Inclusive, os seres humanos sãoum produto inflamável quemantém o fogo crepitando pormuito tempo. Ambos sobrevivem

da mesma coisa, e, quandodeparados, querem destruir um aooutro; consumir um ao outro. Ohomem descobriu o fogo e desdeentão passou a dominá-lo. Mas ofogo nunca se deixou dominar.

Em geral, os incêndios emedifícios têm como causaprincipal uma sobrecarga na parteelétrica que superaquece osaparelhos eletrônicos que estãoligados. Mas, neste caso, amoradora do oitavo andar, uma

mulher atarracada, de peitosfartos, bigodes crespos e decabelos tosados, insinuando levedemência, foi a responsável peloinício da fatalidade. Uma velaacesa para Santo Antão, protetordos animais domésticos, daspessoas com furúnculos e doscoveiros, teria tombado após suaspreces em favor de Titi, suacadelinha com reumatismo, edado início ao fogo quando amulher foi tomar banho.

O edifício de oito andares érevestido por ladrilhos decerâmica de cor amarela. Asjanelas possuem armação deesquadrias de alumínio comvidros granulados. Umaarquitetura de concreto, um blocoarmado com seis apartamentospor andar. Todos habitados. Ovento ajuda a espalhar as chamas.As labaredas avançam para forade algumas janelas e lambem afachada do prédio. Um incêndio é

uma espécie de espetáculo.Quando pequeno Ernesto Wesleyteve raras oportunidades deassistir a algum espetáculo. Oentretenimento limitava-se abrincadeiras de moleque e vertelevisão após o jantar, porém afalta de energia elétrica eraconstante no bairro. Era comumele e sua família reunirem-se numcômodo da casa, envoltos pelobrilho oscilante de uma únicavela em riste sobre um pires de

louça. As grandes sombrasdisformes produzidas nas paredesforam lhe parecendo familiares. Aluz elétrica dispersava a todos;cada um ficava numa parte dacasa, mas era a luz da vela que osunia e os tornava uma família.Sentia falta das sombrasdeformadas nas paredes quandohavia energia. Assim, com atitubeante eletricidade, a famíliapassava algumas horas emconversas e brincadeiras.

Aprendeu que essa sensação deser iluminado por uma chamadesperta certa nostalgia e umaespécie de recolhimento o qualnunca sentiu em nenhum outromomento. O fogo iluminadoracolhia e acalentava. ErnestoWesley passava boa parte dotempo ouvindo histórias dafamília embalado pela visão dachama, delicadamente arrebitadae firme.

O fogo pode ser fascinante,

mas é assassino. Diante de umincêndio não basta água paraapagá-lo, é preciso ciência,conhecimento de suas artimanhas.Ocorrem explosões súbitas, odeslocamento do ar modifica areação do fogo, e às vezes é comose ele olhasse para você,sondasse suas intenções eesquadrinhasse seu entendimento.O fogo pode se esconder em vãosque não se percebem, e, numaprimeira lufada de ar, ele avança.

Combustão em madeira, papel ouplástico combate-se com água.Em líquido inflamável ou deorigem elétrica, usa-se dióxido decarbono. Quando ocorremincêndios propagados em metaisinflamáveis, como titânio, usamum pó químico com cloreto desódio capaz de criar uma pesadacrosta sobre o metal flamejanteque evita seu contato com ooxigênio. Cada fogo é de umaespécie. Em todas as suas formas,

é preciso sufocá-lo e deixá-losem oxigênio. Pois isso é a únicacoisa capaz de extingui-lo. Se nãofor sufocado a tempo, o fogo équem nos sufoca.

Ernesto Wesley termina devestir sua roupa de proteçãocompleta e, com a ajuda de outrobombeiro, ele coloca oequipamento de proteçãorespiratória. Apanha uma lanternae um rádio portátil para acomunicação com o comandante

da operação. O total de pesoacrescido sobre ele é de trinta eum quilos. Isso dificulta atranspiração, a respiração eagride a estabilidade física eemocional. Geralmente, após asubida de vários andares pelasescadas, ele retorna carregandoum corpo desmaiado sobre o seu.Ernesto Wesley consegue suportarduas vezes o seu peso. Arepetição de esforço desmedidonão pode ser calculada. É um dos

poucos bombeiros que conseguemalcançar alturas elevadas notempo requerido.

O fogo espalhou-se até oterceiro andar. Uma guarniçãoapaga o incêndio do lado de foracom o auxílio de uma escadamecânica que alcança o topo doprédio e outra invade o edifíciopara a contenção do fogo internoe o resgate de vítimas. ErnestoWesley ajeita o capacete, apanhaum machado e segue para dentro

do prédio ao lado de outrosbombeiros.

Um posto de comandoestabelecido no saguão do prédiopermanece em comunicação comos soldados e dá os detalhes daoperação.

Os bombeiros precisam lidarcom a euforia de quem assistepela primeira vez a um incêndio,com o desespero dos que têmparentes e conhecidos dentro doprédio.

De onde todos querem sair,Ernesto Wesley precisa entrar.Ele sobe as escadas apressado,num ritmo similar ao dos outroscolegas, até atingir o oitavoandar. Quanto mais avança para oalto, mais intensos o calor e acortina negra de espessa fumaçaque precisa atravessar. Ao chegarno oitavo andar, ouve os gritos dealgumas pessoas que ainda estãopresas em seus apartamentos. Suaaudição é aguçada, e entre o

trepidar e os estalos provocadospelo fogo juntamente com o calorque pode afetar seu raciocínio e opeso que carrega sobre si, eleprecisa distinguir todos os sons àsua volta. Crava o machado naporta do apartamento 802,arrebenta-a e em seguida seprotege do fogo que avança sobreele. As chamas estão elevadas eErnesto corre para o fundo dasala atravessando o fogo. O calordemora para sufocá-lo. Seus

pulmões já estão acostumados esua pele também. A mulherencolhida num canto e sem roupasé abraçada por Ernesto enquantogrita que seu pai está no quarto.Ela insiste em seguir para ocômodo gritando pelo pai.Ernesto é frio em meio ao fogo.Ele precisa socorrer um de cadavez. Não dá importância aosclamores da mulher, pois existeuma ordem de salvar uma vidapor vez e isto não deve ser

quebrado. A mulher lhe dá algunstapas implorando para buscar opai. “Ele é aleijado!”, ela grita.“Está na cama.” Ele atravessa asala com ela envolta em seusbraços e outro bombeiro aampara no corredor. ErnestoWesley segue por um sombriocorredor carvoento e derruba achutes uma porta. O quarto estátomado pelo fogo, apenas pelofogo. Ele escuta um gemido.Avança até o final do corredor

sem enxergar, ultrapassando seuslimites, sufocando-se, sentindoum pouco de vertigem, arrebentaa porta com o machado e ohomem está deitado na cama comfogo ao seu redor. O velho gritade pavor e agarra-se à cama. Elesegura o homem magro eenrugado no colo envolvido pelacolcha da cama quando umpedaço de reboco cai ao seu lado.O fogo se alastrou por todo ocorredor. Ernesto está preso. Mas

é por cima das chamas que elecaminha. O calor atravessa asbotas e a roupa pesada. Aslabaredas avançam comoserpentes. Desce com o velho nocolo e sai do prédio. Uma equipede socorristas apanha o homemcom uma maca e Ernesto Wesleyretorna para dentro do prédio. Hárelato de que alguém está presono quinto andar, onde o fogo estámais intenso. Uma das grandespreocupações é a liberação do

gás cianídrico produzido pelaqueima de espumas e plásticos,altamente venenoso e que podematar em questão de minutosdezenas de pessoas. Quando seescapa do fogo, é possível seralcançado pela fumaça, o quecausa envenenamento imediato. Ofogo envenena o ar e mata. Obrilho das chamas lhe conferemagnitude, é um espetáculo dedestruição que enfeitiça. Noquinto andar o fogo ainda não foi

controlado. Ernesto Wesley nãoconsegue adentrar osapartamentos tomados pelafumaça. Pelo rádio comunicador,recebe a informação de que oandar está desocupado e que devedescer imediatamente, pois sãograndes os riscos dedesabamento. Ernesto Wesley nãoconsegue descer as escadas, poisé impossível enxergar através dacortina de fumaça, então sobepara o sétimo andar onde o fogo

já está controlado. Comunica-secom o posto de comando atravésdo rádio e eles dizem que esperenovas ordens e informações sobreas condições dos andaresinferiores. O chão e as paredescrepitam. Dentro de um dosapartamentos, Ernesto aproxima-se da janela da sala com vistapara a rua e observa o trabalhodos colegas. A escada mecânicaestá posicionada na altura doquinto andar e parece que o fogo

está sendo também controlado poroutra equipe de dentro do prédio.

Ernesto Wesley caminha entredestroços aos quais estáacostumado. Resta apenasrescaldo por toda parte. Verificatodos os cômodos do apartamentoe decide conferir o estado detodos eles. Apoia o machadosobre o ombro esquerdo ecaminha intrigado pelo corredor.É importante que a averiguaçãoseja feita após combater um

incêndio, pois o fogo dissimula-se aos olhos em lugares comoentreforros, vazios entre paredes,entrepisos, poços dos elevadorese dutos de telefonia. Ernesto écauteloso. Empurra a portaentreaberta de um dosapartamentos com a ponta dosdedos e inspeciona o local. Cadacômodo é analisado. Uma portaestá trancada. Percebe pela baseda porta que havia fogo dentro docômodo e estranha o calor da

porta. Abaixa-se e não conseguever nada pela espremida frestaembaixo da porta. Ernesto Wesleypoderia arrombar a porta com omachado, mas isso é para os depouca experiência. O fogo éinsidioso.

— Eu preciso de alguém aquicom a mangueira.

— A checagem no sétimoandar já foi concluída.

— Acho que esqueceram deum detalhe.

— Está tudo sob controle.— Eu gostaria de falar com o

comandante do meu grupamento.— Eu estou no comando. Você

já pode descer, sargento.— Senhor, preciso de um

homem aqui com uma mangueira.— A ordem é para deixar o

pavimento e descer.— Tem alguma coisa errada.Uma interferência no rádio não

deixa Ernesto Wesley prosseguir.Ele debruça na janela da sala e

acena para um colega de seugrupamento. O homem apanha amangueira e caminha para dentrodo prédio. O comandante que jáhavia suspendido as operaçõesimpede a entrada do bombeiro.Pelo rádio, ele aciona outrobombeiro de sua equipe que estánum dos andares abaixo, eprontamente chega ao sétimo.

— Tem alguma coisa aqui. Aporta está trancada. Não fizeram averificação neste cômodo — diz

Ernesto Wesley.O homem se posiciona com a

mangueira protegendo-se ao ladoda porta, enquanto ErnestoWesley crava o primeiro golpe demachado contra a porta que separte na terceira investida.Quando a porta rompe finalmentecom um chute, o fogo, apoucado,levanta-se intensamente e é sobreErnesto que se lança. O homemcom a mangueira inicia o controledo fogo que se espalha

rapidamente pelo cômodo.Ernesto pelo rádio acionanovamente o posto de comando econsegue ser atendido. Trêssoldados efetuam o reforço.Evitam que o fogo recomecepelos cômodos e, quando tudoestá sob controle, é triste a visãodo que parece duas crianças e umadulto abraçados. Os corposfundiram-se parcialmente entre sie a objetos metálicos; retorcidos,criam uma nova forma.

Depois de dominar o fogo,Ernesto Wesley ajuda acontabilizar os mortos. Junto deoutro colega, eles carregam oscorpos para fora do prédio.

É um trabalho sujo e pesado.Os corpos cozidos fedem aenxofre, carniça e fumaça. Depoisde apagar o fogo, os bombeirosrecolhem os mortos e oscontabilizam nas calçadas. Nestaoperação, cinco pessoasmorreram e, pelo estado dos

corpos, só os dentes valerão paraum reconhecimento exato. Porém,em casos como este, aidentificação é ligeiramente maissimples, pois cada corpo foiencontrado em um determinadoapartamento.

Uma hora depois o fogo estáamortecido em todos os andares.Tudo se restringe a estreitos focosde fumaça.

Ernesto Wesley sobe nocaminhão que já está de saída.

Seu turno terminou e retornará aoquartel. Senta-se entre doisbombeiros e sacodem emsilêncio, pois as sirenes estãodesligadas.

Um dos bombeiros sacode acabeça em negação enquanto olhavagamente para as próprias botas.Tem um olhar fosco e amortecido.Balbucia algumas palavras atélevantar a voz.

— Uma vela pra Santo Antão!Minha mãe rezava pra ele quando

eu tinha furúnculos — diz. — Àsvezes não se pode nem rezar.

A fuligem que cobredelicadamente os homens tornacada um levemente sombrio. Opesar na voz do soldado soalamuriento e dolorido.

— Às vezes tudo o que sedeve fazer é rezar — retrucaErnesto Wesley.

— Como você sabia doscorpos dentro do quarto? —pergunta outro bombeiro.

Ernesto Wesley respira fundo.Tem um olhar cansado, a órbitados olhos avermelhada e a vozrouca que lhe é própria.

— Depois de algum tempotrabalhando nisso, eu posso sentiro cheiro de corpos queimados aquilômetros — responde Ernesto.

— É verdade — completaoutro bombeiro calado até omomento. — O Ernesto conhece ameia suja de cada um no quartelsó pelo cheiro. É o melhor

farejador que conheço.O homem dá uma risada.— É por isso que decidiu ser

bombeiro?Ernesto Wesley suspira e coça

os olhos. Está muito cansado.— Não. Me tornei bombeiro

porque eu tinha coragem para iraonde ninguém queria ir —responde Ernesto Wesley.

Os homens emudecidosrefletem por breve instante esacodem as cabeças em ligeiro

sim. O caminhão entra na garagemdo corpo de bombeiros e logoque desce Ernesto Wesleycaminha até o vestiário. Nu,apalpa o próprio corpo.Aparentemente está bem. Usa umapomada contra queimadura emalgumas regiões, principalmentenas mãos e nos pés. Sai parafumar um cigarro no pátio doquartel. A madrugada é muito fria,com um céu parcialmente nubladoe uma semilua opaca esforçando-

se para permanecer fixa entre asestrelas.

Capítulo 4

O planeta é mensurável etransitório. Assim como o espaçopara armazenar lixo está sefindando, para inumar oscadáveres também. Daqui aalgumas décadas ou uma centenade anos haverá mais corposembaixo da terra do que sobreela. Estaremos pisando emantepassados, vizinhos, parentes einimigos, como pisamos emgrama seca; sem nosimportarmos. O solo e a água

estarão contaminados pornecrochorume, um líquido que saidos corpos em decomposição epossui substâncias tóxicas. Amorte ainda pode gerar morte. Elase espalha até quando não épercebida.

Apesar de certa melancoliaquando pensa nos incinerados,Ronivon sabe que a melhormaneira de garantir assepsia équando se apagam os restosmortais no fogo. Pensar no fim do

mundo é pensar em montanhas delixo e solos encharcados deinumados.

Suspende a gola do casaco eesfrega as mãos uma na outra.Olha pela janela de cinquentacentímetros ao nível da grama dojardim e percebe a fina garoa dodia. O inverno deste ano será omais rigoroso dos últimos trintaanos e espera que os fornos deemconta de todo o trabalho e daemissão de todo o calor possível.

Retira do bolso a carta que haviadeixado sobre o armário paraErnesto Wesley, que decidiumantê-la lacrada. Dias sepassaram, nem ele nem Ernesto aabriram ainda. Imagina que daquia alguns dias estarão recebendooutra e dias depois outra e assimsucessivamente.

A porta da sala dos fornos seabre e Palmiro entra em passadaslentas resmungando o reumatismoque se acentua nos dias frios. Está

vestido com duas calças, trêscasacos, e certamente este pesoextra no vestuário lhe dificultacaminhar. Ele traz uma garrafatérmica com café fresco e coposdescartáveis. Ronivon guarda acarta no bolso, apanha um copo eserve-se do café quente.

— Hoje acordei com dorespor todo o corpo — diz Palmiro.

— Você precisa se cuidar.— Eu preciso me aposentar,

isso sim. Estou velho, cansado e

doente. Este lugar é tudo o quetenho. Se eu for embora talvezfique jogado por aí.

— E a sua filha? Nunca maisfalou com ela?

— Nunca mais. Escrevi praela novamente faz duas semanas eainda não respondeu.

— Qual foi a última vez quevocês se falaram?

— Acho que faz uns oito anos.Suspira o homem cansado.

Ronivon bebe mais um pouco do

café e contempla um pouco do diapelos cinquenta centímetros quelhe são possíveis.

— Como está o movimentohoje?

— Está mais ou menos. Achoque não teremos muito trabalho.

— As quartas-feiras sãosempre assim, não é mesmo?Pouco trabalho. Poucos corpospra cremar — comenta Ronivonenquanto aquece as mãossegurando o copo quente.

— É, parece que sim. Achoque há dias mais propícios para amorte.

Ronivon parece concordarcom um discreto balançar decabeça. Estende o copo e Palmirocoloca mais café.

— Acho que vou levar o J.G.lá pra casa. O novo zelador vaichegar e ficar com o quartinhodele — diz Ronivon.

— É uma boa coisa que vocêfaz. J.G. precisa de amigos. É um

pobre coitado que certamente vaipassar a vida toda nesse lugar edepois ser enterrado embaixo deuma das roseiras que ele mesmoplantou e cuidou.

Ronivon sorri. Pensar nisso ofaz sentir-se bem de um certomodo.

— Acho que o J.G. sonha comisso. Ele adora esse lugar, asgoiabas e as roseiras.

— Mas se caga de medo dosmortos — diz Palmiro rindo.

Eles ficam em silêncio poralguns instantes. Palmiro secacom um lenço o olho cego quelacrimeja. Palmiro dividiria comJ.G. o quarto em que mora nosfundos do crematório casohouvesse espaço. O quarto émínimo: uma cama de solteiro,um armário embutido de duasportas, um fogão de duas bocas,uma pia encardida e um velhocriado-mudo com uma televisãode vinte polegadas sobre ele. A

televisão é nova. Palmiro pagouquatrocentos reais em dezparcelas sem juros. J.G. mora noquarto ao lado, de mesmaproporção, e eles dividem oúnico banheiro e uma geladeiraque fica instalada noalmoxarifado, um cômodo estreitoentre os dois quartos. O zeladorantigo não morava no crematório,por isso J.G. podia usar oquartinho. Palmiro sentirá muitafalta de J.G. e das conversas

bestas que têm. Ele é como umbom cachorro que podepermanecer horas ao seu lado emsilêncio. Não reclama de nada.Sempre satisfeito, tem um sorrisocurto nos lábios caso alguém oencare por mais de cincosegundos. Leal e companheiro.Nos fins de semana, é comum sesentarem num banco, lado a lado,e observarem em silêncio aextensão verde e bem cuidada dojardim do crematório. Palmiro

costuma carregar um radinho apilha nesses dias de folga e umagarrafa de cachaça. São sujeitosmuito simples, sem ansiedadeaparente e que suportam fardosem silêncio.

— Eu espero o mesmo pramim. Espero poder descansarminhas cinzas embaixo daquelagoiabeira que fica lá na entrada.Não se esqueça disso, Ronivon.

Palmiro abre a boca, afasta oslábios com os dedos e mostra a

Ronivon oito jaquetas de ouro.— Não esqueça de remover

isso, tá bem? E manda pra minhafilha. Está valendo um bomdinheiro. Sempre estará. Todo oinvestimento que fiz nessa vidaestá na minha boca. O ladrão nãorouba, ninguém toma de você, osbancos não te pressionam. Nadadisso. Ficam aqui na minha bocamurcha embalados pelo meuhálito de pinga.

Palmiro dá uma risada rouca e

tosse em seguida. Tossecontinuamente até escarrar numlenço. Dá meia-volta, abre aporta da sala e segue pelo extensocorredor até as escadas.

Ronivon volta sua atençãopara o forno e confere atemperatura. Tudo funciona bem.Repousa os olhos sobre o relógiode parede e percebe que em trintaminutos a cremação estaráencerrada. Geverson, o moedor,funcionário responsável pela

moagem dos restos mortais, saida pequena sala em que trabalha.Ele retira as luvas e os óculos deproteção.

— Terminei mais dois — dizGeverson. — Está tão frio queeles estão levando menos tempopra esfriar.

— Palmiro acabou de passaraqui com um café fresco — falaRonivon.

— Vou aproveitar esseintervalo e me aquecer também.

— Ele subiu com a garrafaquase agora.

Geverson tira dos bolsos umpequeno pedaço de metal. Entre odedo indicador e o polegar, elevao objeto contra a luz do diafiltrada pela pequena janela e oobserva com atenção.

— Encontrei isso aqui quandopassava o ímã nas cinzas.

— Foi nas cinzas de quem?— Do homem — murmura

intrigado.

Ronivon apanha a pranchetasobre a mesa e verifica o nomedo morto.

— Deve ser do senhor Aníbal.É, deve ser dele mesmo.

— Isso estava dentro dele.— Me deixa dar uma olhada.Ronivon verifica o pequeno

objeto e lembra-se que não haviadetectado nenhum objeto metálicono corpo do homem quandopassou o detector de metais.

— Será que estava nos dentes?

— pergunta Geverson.— Talvez.— É.... a gente nunca sabe

mesmo. O que importa, não é? —comenta Geverson dando deombros.

Os corpos incinerados, nãoraro, quando moídos, permitemem suas cinzas detectar pequenosfragmentos os quais esses homensnunca descobrem do que são.Geverson apanha o objeto devolta e o coloca dentro de uma

lata sobre a mesa contendo umpunhado de outros pequenosobjetos metálicos nãoidentificados.

Geverson tira o avental e opendura atrás da porta. Bate apossível poeira que possa existirde sobre o corpo e estala osdedos. Estica-se e bocejaprolongadamente.

— Este ano vamos ter o piorinverno dos últimos trinta anos —comenta.

— Sim, eu li sobre isso — dizRonivon.

Eles ficam calados, lado alado, contemplando o frio do diapelos cinquenta centímetros devista.

— Você não vai tomar café?— Estou com um pouco de

azia. Sinto frio e meu estômagoqueima feito o inferno.

Geverson aperta a boca doestômago e dá um gemidinho. Osdois homens continuam

contemplando o frio do dia pelaespremida janela.

— Tente arranjar um pouco deleite quente com a Nadine.

— Boa ideia. Vou ver o queconsigo arranjar.

Ronivon verifica a temperaturado forno. Pela portinhola tudosegue perfeito. Novamente dianteda janelinha, ele bebe o últimogole de café. Gostaria de mais umpouco, mas a nova ronda dePalmiro ocorrerá somente em

duas horas.— Amanhã vão fazer

manutenção nos fornos — dizRonivon.

— O triturador estáprecisando de manutençãotambém. Fica difícil trabalharcom ele desse jeito.

— Não vai ter expediente naparte da manhã.

— Onde você viu isso?— Na recepção. Tá no quadro

de aviso.

— Eu nunca reparo nessascoisas.

Palmiro abre a porta aindacom a garrafa térmica.

— Ainda sobrou café. Passeipra saber se queria mais umpouco.

Ronivon estende seu copo eGeverson apanha um para ele.Eles se servem e comentam entresi sobre o dia frio.

— Amanhã vai termanutenção, né, Palmiro? —

pergunta Geverson.— Sim. Vão fazer manutenção

no conversor termoelétricotambém. Estão esperando muitofrio pra este ano. Vão ligar osaquecedores — fala Palmiro.

— Espero que haja mortosuficiente pra gerar toda essaenergia — diz Ronivon. — Senãovamos ter um período difícil.

— Sempre contamos com osmortos — comenta Geverson.

Os outros dois concordam com

um aceno de cabeça.— Acho que não haverá

problema. O gerente estánegociando a cremação dosmortos de um grande acidente.Todos queimados — diz Palmiro.

— Acidente aéreo? —pergunta Geverson.

— Me parece que sim — dizPalmiro.

— Não ouvi falar — respondeGeverson.

— Eu ouvi no rádio alguma

coisa — fala Ronivon.— Bem, se o carregamento

chegar, teremos calor suficiente— conclui Palmiro antes de irembora.

Ronivon e Geverson bebemmais um pouco do café admirandoo dia pela janelinha.

— Até que o dia está bonitohoje, mesmo embaçado —suspira Geverson.

— Às vezes é melhor assim.Embaçado — retruca Ronivon.

Geverson concorda com umaceno da cabeça. Os dois homenscontinuam ali, a admirar o diaembaçado, a pouca visibilidade,e a esperar pelo carregamento demortos que garantirá o calor e aenergia suficientes para os vivosprosseguirem.

Capítulo 5

O calor gerado pelos fornoscrematórios passa por umatubulação ligada a um conversortermoelétrico, que transforma ocalor em energia elétrica. O calordos mortos ajuda a suprir parte daenergia usada tanto no crematórioquanto no hospital que fica a umquilômetro dali, além de emalguns estabelecimentoscomerciais da redondeza. Osmortos do hospital,principalmente os indigentes, são

cremados no Colina dos Anjos eseu calor transformado emenergia para abastecer os vivos.Os vivos de Abalurdes sabemaproveitar bem os seus mortos.

A cafeteira, a música sacraque toca na capela, todas aslâmpadas dos postes do jardim,os computadores, o triturador,tudo é acionado pela energiaproveniente do calor dos fornos.No hospital, que atende aspessoas que moram num raio de

cento e cinquenta quilômetros, aenergia produzida pelo conversoré vital para o seu funcionamento.Os mortos do hospital são vitaispara o funcionamento dos fornos;por conseguinte, para a energia aser gerada no conversor.

A escassez de energia elétricacomeçou há cerca de cinco anos.Em toda a região carvoarias eminas de carvão tornaram-se asfontes que mais abastecem apopulação. O carvão animal

gerado pela queima dos mortosainda é um experimentosegregado, porém uma prática queem anos se tornará comum. Ascidades estão em colapso. Ossolos encharcados de inumados.O fogo em seu estado bruto tem setornado uma fonte primordial deenergia. É como voltar aostempos primitivos. Regiõesafastadas e em áreas isoladas sãoas primeiras a sentir os sintomasda escassez. Com o passar dos

anos, todos sentirão. A região deAbalurdes está à margem dodescobrimento e no imaginário dealguns visionários.

Abalurdes é uma cidadeencravada na face alcantilada deum penhasco. O rio é morto eespelha a cor do sol. Não hápeixes e as águas estãocontaminadas. O céu, mesmoquando azul, torna-se carvoentonos fins de tarde. Uma regiãolamacenta e gelada nos dias de

inverno. Nas áreas maisafastadas, ainda existem casas dealvenaria que são simples edesbotadas. A pavimentação éprecária em algumas partesisoladas da cidade, comresquícios de um antigo asfalto. Aestrada principal é mal iluminada,sem sinalização e com curvasacentuadas que margeiam longosdespenhadeiros.

Abalurdes é uma regiãocarbonífera. Funciona uma

estrada de ferro que transporta ocarvão mineral explorado noterritório. O tempo de exploraçãojá dura cinquenta anos; o tempoem que os milhares de toneladasde carvão mineral continuam aser extraídos.

Os homens que moram naregião voltam das minasirreconhecíveis, revestidos defuligem densa. Por todo o local afina camada de cinzas cobre assuperfícies. A outra parte dos

trabalhadores mora emalojamentos próximos à mina.

A lavagem do carvão ainda éfeita nos rios, e ao longo dos anosas águas se tornaram alaranjadasdevido à oxidação do ferro quecompõe a pirita, material extraídodas minas com o carvão. Grandeparte do solo é improdutiva; deaspecto ressequido e sem cor. Aágua potável para o consumo estáse extinguindo, mais de cinquentapor cento da população apresenta

alguma disfunção das viaspulmonares. A doença do pulmãonegro está liquidandosorrateiramente os antigos e osatuais mineiros, homensflagelados, de aspecto murcho epele sulcada por sinais do tempo.

Homens que mergulham emdensas trevas num nível maisprofundo que os inumados,respirando pó de carvão edistantes da luz do sol. Osacidentes nas minas são comuns e

muitos morrem soterrados. Nemtodos possuem coragem paraescavar as minas. Aovislumbrarem a profundeza e totalprivação da luz solar, com osaltos riscos de soterramento,desistem. Para atingir níveisprofundos dentro da escuridão épreciso ter coragem de ir aondeninguém quer ir.

Mas sempre existem aquelesque possuem coragem para ir atoda parte. Edgar Wilson, aos

vinte e três anos de idade, é umdos trabalhadores mais jovens damina que gera emprego para centoe treze homens. Trabalha na minadesde os vinte anos, sem férias,com apenas duas folgas de um diapor ano, e nunca sofreu nenhumferimento grave. Ele usa umcalção e botas velhas de couro.Coloca um capacete, amarra umalanterna de bateria à cintura eapanha sua pá escavadeira. Eledirige-se para o elevador seguido

de um colega que o acompanha. Éhora do expediente de EdgarWilson, que vive junto de outroshomens num alojamento a umquilômetro da mina. Sua pelebranca tornou-se encardida com otempo. Edgar Wilson possui umtom amarelado, com fuligem nasaliva e cinzas nos olhos. Cinza éa cor do seu olhar desde quepassou horas incontáveis aduzentos metros de profundidaderespirando fumaça tóxica,

privado do sol e do céu. O dia emque deixar esse trabalho, ele estádecidido a contemplar o céu todoo tempo que lhe for possível.

Os dois homens, cada umcarregando uma garrafa d’água,uma garrafa térmica de café esuas respectivas marmitasembrulhadas em panos de pratoencardidos, entram no elevadorde ferro, um tipo de elevadorusado em construção, que possuiduas plataformas uma sobre a

outra, e comporta em cada umaaté seis homens. Eles completama leva de mineiros e um doshomens aciona a alavanca. Sãoquatro minutos de descida atéatingir os duzentos metros deprofundidade. Os vestígios de luznatural duram apenas vintesegundos. A partir disso, somenteescuridão. É quando EdgarWilson acende sua lanterna de luzamarela e hesitante. O som doelevador enquanto avança para as

profundezas ganha um eco comoum uivo distorcido.

A escuridão de uma mina éúmida, com constantes barulhosde gotejamento, iminência dedesabamentos e um ar muitopesado. É uma escuridão quecomprime os sentidos. Quedificulta a respiração. Aospoucos, esses homens tornam-separte dela; acobertados pelastrevas tóxicas do ar poluído.Quando está fora da mina, Edgar

Wilson gosta de acender umcigarro. Acostumou-se ao gostode fuligem, ao queimado, ao fogo.Foi com os homens do alojamentoque aprendeu a fumar. Porém,alguns homens fumam dentro damina. É impossível controlar atodos. É difícil tratar com peões.São homens brutos, de índoleprimária e arredios à obediência.Lidar com peões é comoapascentar jumentos no deserto. Olocal de uma mina de carvão é

uma espécie de deserto. Isolado,abafado, muita poeira, e, mesmocom tantos trabalhadores, existesolidão. A imensidão dasextensas proporções de terras aoredor pode esmagar a condiçãohumana que existe até no maisbruto dos homens. Os jumentossão animais difíceis de dominar.Arredios, tentam derrubar quemneles monta; e, quando derrubam,eles pisam em cima e aindatentam morder. São bestiais em

muitos sentidos, esses homens eos jumentos.

O outro homem que entra noelevador junto com Edgar Wilsonchama-se Rui. Este trabalha hávinte anos em minas de carvão.Tem o dobro da idade de EdgarWilson e já não consegueexecutar outra tarefa a não seressa. Rui pretende escavar carvãomineral enquanto viver. O fóssilnegro, da cor de sua pele, jápercorre o seu sangue. Sofre da

doença do pulmão negro, porém adoença ainda não o impediu detrabalhar. Constantemente tosse ecospe uma secreção espessa decor negra e gosmenta. Elepretende terminar seus dias alimesmo, naquela mina, pois tudo oque fez na vida foi trabalhar. Nãosabe fazer mais nada, nem filhosele soube fazer. Assim comoEdgar, também vive noalojamento próximo à mina queabriga cerca de cinquenta

homens. A outra parte volta parasuas famílias. A maioria delesvisita a família duas ou três vezesno ano, devido à longa distância.A jornada diária de trabalho duradoze horas. Edgar desce para amina às cinco e meia da manhã esó retorna às cinco e meia datarde. As refeições são feitas emuma das galerias da mina. Há trêsanos, esse homem conhece apenaso crepúsculo da manhã e doentardecer. Às vezes, quando está

quieto numa parte do alojamento,tem dificuldades para se lembrarda cor do dia, da claridade do sole do seu calor.

Eles descem calados. Todo ocorpo sente escavar a terra eentranhar-se em suas dimensõesde negrume. Rui mastiga a línguae isso espuma a saliva que seacumula no canto da boca. Nasdimensões profundas da terra ossons e os sentidos se amplificam.O elevador desce por um espaço

justo, e é possível esbarrar nasparedes do longo poço por ondeele passa. O escoramento tende aceder, pois entra água por todosos lados.

Após dois minutos de descida,Rui salta em uma das galerias esolta um grito como se seguissepara um confronto. O homemsegue por um soturno corredorlamacento, usando botas devaqueiro bastante surradas,camisa estampada e uma calça

jeans desbotada.Edgar Wilson continua a

descida até a região mais fundada mina. Ele observa as paredesque estão a poucos centímetros dedistância dele. São escavaçõesrústicas. A única coisa que teme éficar sem bateria em sua lanterna.A escuridão absoluta no centro daTerra é algo que o apavora. Nãosaberia voltar. Não saberiaencontrar a saída. Quanto maisprofundo ele está, mais pensa nas

minhocas, porém seuspensamentos tendem a ser tépidosquando está nas profundezas. Asminhocas são próprias para aumidade e escuridão. Mas oshomens não. Deve ser por issoque muitos adoecem. O elevadorpara e ele desce. Agora, precisaavançar em direção ao interior damina. São dois quilômetrosadentro em um labirinto alagado.Outros quatro homens esperampor ele. Edgar Wilson acomoda-

se dentro de um vagonete puxadopor um pequeno trator. Elesacoleja em linha reta em direçãoa outra profundidade até atingir agaleria em que trabalha, enquantoos homens discutem a partida defutebol do dia anterior entre risose lamúrias.

* * *

Há três horas escavando umaparede de carvãoincessantemente, Edgar Wilson

para por pouco tempo para beberágua. O trabalho dos homensdaquela galeria já rendeu doisvagonetes de carvão que sãoempurrados sobre trilhos por doishomens responsáveis por essatarefa. O som das marretadasperfurando o carvão éinterminável. Todas as noites,quando tudo ao seu redor se fazsilêncio, ele continua a ouvi-las.Edgar Wilson tem uma sensaçãoeternizada por alguns ralos

segundos. É um estranhopressentimento que o faz olharpara trás, por cima do ombro.Uma suave corrente de ar passapor suas costas, muito suave, masperceptível aos seus sentidosaguçados. As trevas se fazemainda mais densas. Quando seescava o carvão mineral, podeocorrer a liberação de gás grisu,que é inodoro e formado por gásmetano. Ao ser inalado não causatontura nem outro sintoma, mas é

de fácil combustão quandoacumulado em grande quantidade.Uma simples fagulha de umalâmpada serve de ignição para aexplosão. Os exaustores de dentroda mina estavam desligados pordois dias devido à escassez deenergia elétrica e voltariam afuncionar no fim da tarde. Foiuma rajada de vento quearremessou os homens adistâncias de dez ou doze metrose os escoramentos começaram a

desabar. O gás em combustãoqueima e provoca morte porsufocamento, além de servenenoso. Edgar Wilson abre osolhos, mas está cego devido àextrema escuridão. Sua lanternadesapareceu quando foiarremessado para as profundezasda Terra como um habitante dasfalhas subterrâneas. Sem nenhumvestígio mínimo de luz, levanta-seda grande poça de água e lamapara a qual foi lançado. Cair

dentro de uma poça daquelasevitou que se queimasse. Apalpadolorosamente as paredes. Estáum pouco machucado e pareceque foi só. Ele ouve gritos desocorro, gemidos abafados eapavora-se pela primeira vez emtoda a sua vida. Tenta se guiarpelo som dos gotejamentos. Afumaça é tão pesada e sólidaquanto um muro de concreto. Eletira a camisa, molha-a na poça ecoloca contra o rosto numa

espécie de filtro para conseguirrespirar.

É impossível pensar emprocurar alguém naquelascircunstâncias, ele precisa sairpara voltar e buscar os outros.Pensa em todos os homens queestão ali embaixo, quetrabalhavam como ele. Balbuciauma prece agarrado a umamedalha no pescoço. Ele rompe anuvem de fumaça conformeavança contra ela e seu esforço o

faz atravessá-la impetuoso. Arespiração parece extinguir-se e acabeça lateja. Edgar avançasentindo o peito dolorido,pesado, as pernas atrapalhadas.Segue orando pelo caminhotenebroso e apalpando osescoramentos destruídos.Caminha cego sem saber ondefica a entrada do túnel principal.Na entrada principal, à espera desocorro, estão outros homens.Eles se recolhem no chão

apavorados e somente aguardam.Edgar Wilson fecha os olhos epensa no céu azul. Se morresse,morreria com esta recordação. Sesaísse dali, nunca mais invadiriaas entranhas da Terra etrabalharia debaixo do sol todosos dias. Nunca mais se ausentariadele.

Um fio de luz corta aescuridão. Javêncio, oencarregado do grupo, grita peloshomens que possam estar vivos.

Eles gritam de volta e, através dofio de luz da lanterna de Javêncio,um grupo de vinte e três homensconsegue sair daquele sepulcro.São guiados até o elevador, quenão foi atingido pela explosão, echegam à superfície da Terra.

* * *

A distância percebe-se apaisagem lunar; um aspectodesolador, cercado de montanhasnegras de carvão embaladas pela

fumaça que horas depois aindapermanece parada no ar, sufocaqualquer vestígio de esperança.Ernesto Wesley trabalha há oitohoras. A primeira equipe debombeiros não tardou em atenderà ocorrência, porém quandochegaram havia uma altaconcentração de gás carbônico,devido à queima de óleos,madeira e do próprio carvão. Apossibilidade de novas explosõesera temida e os bombeiros

permaneceram durante horasaflitos por não poder fazer coisaalguma. O trabalho é pesado e omais arriscado na carreira deErnesto Wesley. O cheiro quevem de dentro da mina é decarvão, tanto mineral quantoanimal. Os corpos, mais decinquenta, se amontoam do ladode fora à medida que sãoresgatados de dentro da mina e amaioria está irreconhecível.Ernesto Wesley precisou de mais

coragem do que havia precisadoaté o momento para invadir ocentro da Terra incendiado, numaprofundidade de mais de duzentosmetros. Isto, para ele, é a certezade que não há nada mais que nãopossa fazer e que sua ousadia éilimitada. A sua e a dos outroscolegas. Ele está imundo. Afuligem, a fumaça, o cheiro tóxicode poluentes, a devastação e ocalor do fogo misturado ao diafrio querem esmorecer os

homens, mas todos avançam paradentro das trevas e retornam comhomens mortos de expressõestenebrosas. Muitos corpos estãoretorcidos e mutilados. Os dedosdas mãos estão rasgados e algunsdecepados, como se eles tivessemse arrastado em busca de ar. Amorte por sufocamento é lenta ecausa desespero. Comprime opeito e permite à vítima muitotempo para sofrer. É uma mortecheia de dor. Depois de oito

horas trabalhando, ErnestoWesley tem autorização paradescansar.

Ele tira o capacete e lava orosto e a boca com a água quedespeja de uma garrafa. Emseguida, bebe toda a água e secao rosto com um pedaço de panoque apanha no caminhão. Encheum copo descartável com café,servido por uma senhora quedesde o início do acidenteprocura trazer alento a todos. Ela

serve bolo e café e percebe-seque é uma mulher pobre, como amaioria das pessoas da região.Porém, é uma espécie de mulherque não permanece inerte diantedas dificuldades dos outros. Raramulher que com bondade fazmultiplicar bolo e café, o quetorna a jornada de descida até ossubterrâneos menos sombria.

— Pelo visto, vocês terãomuito trabalho ainda — comentaa mulher.

— Sim, senhora — respondeErnesto Wesley.

— Eu sabia que isso iaacontecer um dia. Todo mundosabe o perigo do gás que fica láembaixo. Graças a Deus, o meufilho Douglas pediu as contassemana passada, senão ele estarialá embaixo também. Já agradecitanto a Deus que vim aqui ajudaros outros como posso. Deuslivrou meu filho da morte.

Alguns homens aproximam-se

da mulher para se servirem debolo e café, e ela começa a contarpara eles a mesma história quehavia acabado de contar.

Ernesto Wesley senta afastadoa alguns metros da mina naintenção de respirar um ar menoscontaminado. Alisa os cabelos eacende um cigarro. Toma o cafésem pressa. Ele tem vinte minutospara descansar e aprendeu queesse curto tempo de folga deveser apreciado sem ansiedade. A

fuligem faz pesar as pestanas deseus olhos. Olha comovido apilha de carvão animal ao lado dapilha de carvão mineral. Não épossível identificar qual é maisnegro. Se misturados, homens efósseis se confundiriam.

Encolhido, próximo a umpoço, Edgar Wilson escarra nochão uma secreção escura. Seuolhar é fixo no horizonte e seusemblante imperturbável. Por trásda crosta de carvão que reveste

sua pele, escondendo sua corclara e seus cabelos castanhos,ele parece inabalável.

Ernesto Wesley olha para ele eEdgar não se move.

— Ei, homem! — grita ErnestoWesley.

Sem resposta.— Ei, homem... você estava lá

embaixo?Edgar permanece quieto.

Ernesto Wesley insiste maisalgumas vezes e Edgar Wilson

retorna seu olhar e sua atençãodaquele ponto imutável que o fazsucumbir em silêncio.

— Sim? — reage EdgarWilson.

— Você estava lá embaixo?Na mina? — pergunta ErnestoWesley.

Edgar demora um pouco pararesponder, mas sacoleja a cabeçasuavemente em respostaafirmativa.

— Você está bem? Qual o seu

nome? Você está se sentindo bem,rapaz? — insiste Ernesto.

— Acho que sim — falaEdgar.

Ernesto Wesley levanta-se esegue para vê-lo de perto, poisaté ali a fumaça atrapalha a visão.

— Ei, rapaz, como você está?Você precisa ir pro hospital.

— Eu estou bem — suspiraEdgar Wilson. — Eu estou mesmobem.

Edgar coça os olhos

avermelhados.— Você não me parece bem.— Eu não sei como devia

parecer alguém que se desviou damorte. Mas essa é a minha cara,senhor.

Ernesto toma um gole do caféjá morno. Uma fina garoa começaa cair deixando uma camadadelicada de água sobre oshomens.

— Tá vendo lá aquelescorpos? Eu arrastei um punhado

deles comigo até a boca do túnel.Quando alcancei a entrada dotúnel, havia outros homens láesperando socorro, gritando...todo mundo pensou que ia morrer.

Edgar Wilson escarra no chãomais uma vez. Seus pulmões estãoimpregnados de carvão e fumaça.Ele tosse.

— Até que o seu Javêncio,encarregado do grupo, apareceucom uma lanterna pra ajudar atirar a gente de lá. Ele tinha outra

lanterna com ele. Todos os outrosforam com ele, mas eu peguei aoutra lanterna e fui buscar meuscolegas que ficaram pra trás. Naescuridão.

Edgar Wilson faz uma pausa.Olha para o céu. É um dianublado, sem vestígios do sol,mas ainda há vestígios do dia.Isso o conforta.

— Eu consegui trazer dezhomens até a entrada do túnel.Repeti o caminho tantas vezes que

a lanterna já nem fazia diferença.Eu parecia a porcaria de ummorcego — ele dá uma leverisada e logo seu aspecto cai emamargura. — Eu trouxe um porum no meu lombo. Dois aindaestavam vivos: o Everaldo e oRui. O Everaldo ia se casar nasemana que vem e a gente tavaprogramando uma festa pra ele. ORui era um sujeito mais velho,trabalhador das minas a vidatoda. O Rui morreu lá embaixo

mesmo e me pediu pra ficar lá.Disse que não queria serenterrado não, que queria ficar namina, então eu obedeci, porque eusempre obedeço ao Rui. Ele sabedas coisas. Levei ele pra dentrode uma galeria e coloquei eledentro de um vão espremidoaberto durante a explosão e cobricom entulhos. Quando voltei oEveraldo tinha morrido. Não vaiter mais festa aqui.

Ernesto Wesley ouviu tudo

calado. Consternado, abaixa osolhos. Ele entende perfeitamenteo mineiro e sabe que esse homemnunca mais esquecerá o queaconteceu ali. Espera que issofaça dele melhor em tudo, poiscertamente essa experiênciainterferirá em seu caráter efortalecerá o seu espírito. EdgarWilson ameaça ir embora.

— Vai aonde? — questionaErnesto Wesley.

— Vou embora. Não tenho

mais nada aqui.— Você deveria ficar e prestar

depoimento. Você estava láembaixo e sobreviveu.

— Não tenho mais nada aqui.— E o que você vai fazer,

rapaz?— Vou aceitar um trabalho que

me ofereceram faz tempo. Vou verse estão precisando ainda.

— Você tem certeza que ficarábem?

— Acho que sim.

— No que vai trabalhar?— Vou abater porcos e nunca

mais perder o céu de vista.Edgar Wilson vira-se e segue

em direção ao alojamento, ondeapanhará seus pertences e odinheiro que conseguiu juntar. Elenunca mais perdeu o sol de vista.

Capítulo 6

Depois de alguns mesestrabalhando, Ernesto Wesleypercebia que uma promoçãoestava por perto, caso continuassea executar bem o seu trabalho.Depois de um ano trabalhandoapenas duas vezes na semana numdos fornos do crematório Colinados Anjos, que atende aosindigentes e aos animais, elevivia com dívidas e um saláriomuito pequeno. Houve uma festaem sua casa quando vestiu a farda

de bombeiro pela primeira vez.As coisas se resolveriam a partirdesse momento, era o quepensava enquanto comia uma fatiado bolo com glacê feito por suamulher e compartilhado pela filhade quatro anos.

No dia do aniversário de cincoanos de sua filha, ele trocou oturno da noite pelo dia, devido àfestinha que sua mulher preparavapara a menina. A mulher tambémhavia trocado de horário para sair

mais cedo do trabalho. Ela eracaixa em um supermercado queficava a dois quilômetros de casa.

Vladimilson, irmão mais velhode Ernesto Wesley e Ronivon,passou para buscar a sobrinha, aquem havia prometido umpresente. A babá, uma garota dequinze anos, vizinha da família,não queria deixar a menina saircom o tio sem a permissão dospais. Ela tentou ligar de umtelefone público para eles, mas

não conseguiu. Rosilene sentiu umaperto na boca do estômagoquando viu Vladimilson colocar acriança no carro. Insistiu para irjunto, mas ele se recusou. Disseque voltaria logo, que iriam até acidade para comprar um presente.Rosilene tentou ligar maisalgumas vezes para Ernesto, quenaquela hora estava no quartel eera sempre mais fácil conseguirfalar com ele do que com a mãeda criança, mas o número estava

ocupado. Insistentementeocupado. Rosilene voltou paradentro de casa; aflita, não podiafazer mais nada. Decidiu lavaralgumas peças de roupa damenina e terminar o almoço: ummacarrão com carne moída emolho de tomate. Ela pendurou asroupas no varal. O dia ensolaradoe com vento ajudaria a secá-lasdepressa. Duas panelas sobre ofogão: uma com o macarrão e aoutra com a carne moída,

refogada com extrato de tomate echeiro-verde. Rosilene sentou-seà mesa da cozinha e, mesmo comfome, não conseguiu almoçar. Oaperto na boca do estômago nãohavia passado.

Da mesa da cozinha ela via asroupas balançando no varal.Estavam bem pregadas. Ventavabastante. Estava envolvida pelocheiro da comida, as roupassacudindo no varal e o silêncio.Ela permaneceu ali, apenas

sentada. Quieta. Percebeu quechorava sem sentir quando umalágrima caiu sobre a mesa. Secouo canto dos olhos. Olhou para asroupas no varal e elas pararamlentamente de balançar e poralguns segundos nada se moveu.O vento passava ao largo.Rosilene foi até o lado de fora, noquintal, e estava tudo quieto.Eternizado. Olhou para trás, enovamente as roupas voltaram asacudir embaladas pelo vento.

Foi para a frente da casa, sentou-se na calçada e esperou.

Foi a mãe de Rosilene aprimeira a aparecer. Ela usavavestido de algodão, um aventalsujo e trazia nas mãos um pano deprato. Caminhava cruzando aspassadas. Era um mau sinalquando ela caminhava desse jeito.A notícia chegou primeiro aotelefone de uma quitanda ao ladoda casa dela. Rosilene abraçou amãe antes que ela contasse o

ocorrido.Aquele trecho da estrada era

conhecido como “a curva daespinha do diabo”. Outrosapelidaram de lordose do capeta.Após bater numa muretadesgastada, o carro capotou trêsvezes. A menina estava sentadano banco de trás, segurando aboneca que havia ganhado do tio.Ele se lembrava que ela gritouduas vezes assim que bateram edepois uma espécie de eco surdo

abafou seus ouvidos. O rosto deum rapaz foi a primeira coisa queviu ao abrir os olhos. Perguntavase estava bem. Vladimilson sentiao impacto da batida, mas estavabem. A porta ao lado do motoristaestava emperrada e os outroshomens que apareceramcomeçaram a forçá-la. Ele olhoupara trás e viu o braço da meninaesmagado entre um emaranhadode ferros. Ele chamava por ela.Ainda estava viva quando os

bombeiros chegaram.Vladimilson conseguiu sair docarro quando arrancam a porta, eestava de pé, com alguns cortesno rosto e tronco, quando ErnestoWesley chegou para fazer osocorro. Ernesto Wesley nuncagostou de usar a motosserra, enaquele dia ele foi poupado.Quando tiraram a sua filha, elaestava morta. Ele também haviamorrido ali.

Vladimilson foi preso, pois

foram detectados indícios deembriaguez. Ernesto Wesleynunca mais falou com o irmão,que foi condenado a oito anos decárcere.

A mulher de Ernesto Wesleycomeçou a definhar após a morteda filha. Tirou licença do trabalhoe permanecia sentada durantehoras numa cadeira de plástico,ambas esquecidas no quintal.Assim, meses se passaram.Ernesto Wesley tornou-se mais

calado e ganhou um aspectosombrio. Numa noite, quandovoltou do trabalho, encontrou amulher caída no chão da sala. Elese sentou ao lado dela e aabraçou ternamente durante umahora. Já estava morta. Haviatomado remédios em excesso. Elenão se abalou em momento algum.

Cremou o resto de sua famíliano dia seguinte e enterrou ascinzas da mulher ao lado da filha,sob os pés de uma roseira no

cendrário do crematório Colinados Anjos.

Tirou dois meses de folga, edurante esse tempo não houvequem tivesse notícias suas. Masele voltou e parecia se sentirmuito bem. Nunca disse por ondeandou, e, quando o questionavam,dizia que isso nunca deveria serperguntado.

Alugou uma nova casa echamou seu irmão, Ronivon, paramorar com ele. Os dois pintaram

as paredes e fizeram todos osreparos necessários na casavelha, desde o encanamento até afiação. Conseguiram três mesesde abono no aluguel devido àsmelhorias. Algumas semanasmorando na nova casa, ErnestoWesley encontrou Jocasta,abandonada dentro de uma caixade papelão na porta de umaquitanda do bairro. Ele haviasaído cedo para comprar jornal,era sábado e seu dia de folga.

Levou a cadela para casacarregada com cuidado na palmada mão. Alimentou-a com leiteem uma mamadeira e a viucrescer. Depois de algumassemanas, decidiu dar esse nome aela. Jocasta é a que cura doveneno. É a única mulher da casa,ele costuma dizer.

* * *

Fazia duas semanas que J.G.morava no quartinho ao lado da

cozinha na casa de Ronivon.Jocasta o tinha como estranhoainda e J.G. não podia nempensar em ver as minhocas.Decidiu plantar algumas rosasnuma parte vazia do quintal.Jocasta, durante a noite, cavava aroseira plantada e a espalhavapor todo canto. Assim aconteciadesde a chegada de J.G.

— Não liga não, J.G. Logo aJocasta acostuma com você. Ela épraticamente a dona desse

quintal, mas tem juízo pra saber aquem deve obedecer — dizErnesto Wesley.

— Ela é uma boa cachorra,não é seu Ernesto? — diz J.G.terminando de tomar seu café damanhã.

— Sim. Ela é uma boacachorra.

— Quero muito que ela gostede mim. Mas ela ainda não gosta.Nem de mim nem das roseiras.

— Tudo vai ficar bem —

conclui Ernesto ao se levantar.As palmas batem no fundo do

quintal. Ronivon vai atender aosapelos de dona Zema, a vizinhaque cria galinhas. Dona Zemasegura uma de suas criasdegolada e bastante machucada.

— Ronivon, eu falei com oErnesto faz dias e ele não feznada ainda com essa cachorra.Olha isso! Essa cachorra támatando todas as minhas galinhas.

— Dona Zema, eu...

— E não adianta me pedircalma. Eu quero saber: o quevocês vão fazer?

— Vamos tentar ajeitar acerca.

— Essas galinhas é tudo o quetenho de mais valioso na vida.Nem essa casa aqui é minha, é domeu irmão. Só tenho as galinhaspra me valer.

— Sim senhora, dona Zema. Oproblema são as minhocas. Asgalinhas da senhora pulam pela

cerca pra ciscarem nominhocário, e a Jocasta não deixaninguém chegar perto dasminhocas, só eu e o Ernesto.

— Olha, Ronivon, eu te digouma coisa. Eu vou dar um jeitonessa cachorra se vocês nãofizerem nada. Se mais umagalinha minha aparecer com umarranhãozinho, eu vou dar umjeito nessa cachorra. — DonaZema, ameaçadora, vira-se sobreos calcanhares e volta para o

galinheiro.Ronivon volta para dentro de

casa, preocupado.— Ernesto, a mulher está

enfurecida. Ela está ameaçando aJocasta — fala Ronivon.

— Eu vou reforçar essa cercaassim que tiver tempo.

— Uma vez eu tive umcachorro... — diz J.G. — Masderam veneno pra ele e eleacabou morrendo com a línguapra fora.

— A dona Zema pode fazeralguma maldade com a Jocasta —diz Ronivon.

— Vou dar um jeito nisso.Pode deixar.

— Ah, antes que eu meesqueça: o Palmiro quer umasminhocas desidratadas.

— Acho que tenho algumas nalata.

Ernesto Wesley verifica oconteúdo da lata e o pesa numabalança sobre a pia.

— Dá cinco reais. Diga a eleque depois eu mando mais. É prafazer farinha?

— Sim. Ele tem moído essasminhocas e come no café damanhã. Tem reclamado menos dasdores no corpo.

— Eu também gosto da farinhade minhoca do seu Palmiro. Elesempre me dá um pouquinho —comenta J.G.

Ronivon e J.G. vestem seusagasalhos e gorros antes de

saírem. Caminham dez minutosaté chegarem ao ponto de ônibusque os levará ao crematório. Nosúltimos dias o frio tem se tornadomais bruto. O aspecto carvoentodo céu se intensificou. Aimpossibilidade de os raios desol atravessarem tanto a camadade fuligem que cobre o teto dacidade quanto as nuvenscarregadas transforma Abalurdesnum lugar desolador. Umaespécie de deserto de cinzas; com

o céu pesado, formado por blocosde nuvem que aparenta concreto.Um céu sem dimensões. Ao largodo horizonte, em qualquer direçãoque se olhe, existe uma sensaçãode infinito, como se aquelavastidão desoladora seestendesse até os limitespossíveis do entendimento decada cidadão.

O novo zelador trabalhoudurante trinta anos como coveironum cemitério próximo a uma

cidade vizinha. Chama-seAparício e tem uma perna maiscurta que a outra. Quandopequeno enfiou o pé num bambu,porém o pai não deixou que fosselevado ao hospital. Disse queficaria bom em casa com banhosde ervas e compressas. O péficou aleijado e, quando voltou aandar, meses depois, com o apoiode muletas, o mundo passou a teruma ondulação especial atravésde seus próprios movimentos. O

pé aleijado mal se firmava nochão e por anos permaneceupendurado, inútil. Seus braçosganharam tônus e firmeza e podiacavar sete palmos em um tempoconsideravelmente bom. Coveirofoi seu único emprego por toda avida. Enterrou mais de vinte ecinco parentes e familiares.Quando seu pai morreu, fez paraele uma cova mais profunda. Comum palmo a mais. Essa cavidadeextra foi por conta dos anos de

ignorância e estupidez do pai. Umhomem grosso, severo com afamília e boa-gente com osvizinhos. Falso e dissimulado.Tinha amantes e gostava dehumilhar o empregado quetrabalhava para ele na vendinhaque tinha orgulho de dizer que eradele, um negócio que tocava commão firme. Era comum debochardo pé aleijado do filho e issofazia Aparício sentir mais ódiodo pai. Depois de enterrar o pai a

oito palmos de profundidade,sentiu um alívio especial. Foiorientado a passar por umacirurgia e conseguiu recuperar opé em cinquenta por cento.Depois de meses de fisioterapia,passou a usar um sapatoortopédico com um salto oitocentímetros mais alto no pé quefoi operado. Achou graça por tersido oito centímetros e seu paidescansar a oito palmos. Aindacaminha com alguma dificuldade,

mas as ondulações devem terdiminuído em oito graus, é o queimagina.

Aparício é um bom homem. Semudou para Abalurdes depois deenterrar a mulher. É viúvo faz umano e não pretende se casar mais.Os filhos moram em outra cidadee estão todos casados. É umhomem pacífico que em todos osdias de sua vida teve o choro dosoutros, a desesperança e oarrependimento muito próximos.

Folgava nos domingos e no Natal,em todos os outros dias ele abriacovas. Em todos os anos detrabalho foram cerca de trinta ecinco mil mortos. Mortos de todaespécie. Gosta de fumarcachimbo e faz seu próprio fumo,que aprendeu a preparar com oavô. Um fumo aromático quedeixa um sabor de menta na boca.Ele cheira a ervas queimadas eem suas blusas é comum verpequenos furos abertos pelas

pequenas fuligens que caem deseu cachimbo. Aparício inspiraconfiança e é um homemagradável a todos.

Logo depois de se levantar etomar café da manhã no seuquartinho cheirando a mijo seco,Aparício sai ainda bem cedo paracaminhar às margens docendrário. Gosta de jardins, eeste do Colina dos Anjos éespecial e muito bem-cuidado.Existe uma neblina, devida ao

frio da manhã, que dificultaenxergar a distância. Muitoagasalhado e usando um gorro delã, ele suspende a gola do casacoe caminha como é habitual.Percebe uma mancha escura eestática na neblina a metros dedistância, no meio do jardim. Eleevita caminhar sobre a grama ousobre os mortos, pois é assim quecompreende. O seu respeito aosmortos foi um dos primeirostemores que aprendeu, desde

cedo. As neblinas das manhãs defrio são cerradas e de umabrancura espectral. Ele avançasobre a grama e segue até amancha.

A mancha é Palmiro sentadonum banco, com o radinho apilhas ainda ligado no bolso docasaco. Caída aos seus pés umagarrafa de pinga, sem rótulo,como costumava tomar. Umacachaça que ele comprava todasemana de um alambique nos

arredores de Abalurdes.Seus lábios estavam roxos, sua

expressão engessada e o corpoaparentava rigor mortis.Aparício não tocou em nada.Colocou o dedo indicador sob onariz, mas não havia respiração.Estava imóvel, como as estátuasde gesso espalhadas pelocendrário.

Ninguém havia chegado ainda.Ligou a cobrar para o gerente, deum telefone público em frente ao

crematório. O homem nãodemorou a chegar.

Foi um dia de luto num lugarde luto. Ronivon olhou para osaco de minhocas desidratadas eas colocou dentro da mochila.J.G. permaneceu apenas calado emuito triste. Palmiro morreu deenfarto na noite anterior. Estavamuito frio e era comum ele sesentar naquele banco para ouvirrádio e beber. Estava bêbadodemais quando passou mal, tanto

que não conseguiu pedir ajuda.Depois de liberado, o corpo

de Palmiro foi para o frigoríficodo crematório onde permaneceupor dois dias. Como não tinhaparentes a quem recorrer, eraapenas cremar e enterrá-lo ao péda goiabeira, como ele queria.

* * *

Aparício abre a porta da salados fornos com uma garrafa decafé. Ronivon confere a

temperatura e anota umainformação numa folha de papelsobre a mesa.

— Bom-dia, Ronivon.O homem mostra a garrafa

térmica sorrindo.— Estava precisando de um

café — diz Ronivon.— Eu mesmo passei esse café.

Espero que vocês gostem. Sei queo Palmiro vai fazer muita falta.

— É verdade. Ainda nem dápra acreditar nisso.

— Hoje é a cremação dele?— É hoje, sim. Logo depois

desse que já está acabando. Vaiser difícil torrar o velho.

— Eu imagino. Já enterreivinte e cinco pessoas da minhafamília e parentes também.Amigos, foi um bocado. É duromesmo. Enterrei minha mãe, noveirmãos, meu pai...

— Eu sei como é. É duromesmo despachar todo essepessoal todos os dias.

— Mas eu acho que nãoconseguiria cremar ninguém.Deixar só as cinzas, o pó... euacho que não.

— É, Aparício, eu pensava amesma coisa, mas eu apago osvestígios. Apago dias, anos edécadas de existência. É isso oque eu faço aqui.

Aparício dá um sorriso curto evira-se para Geverson, a quemserve um pouco de café.Geverson reclama da azia e ainda

assim toma café regularmente. Ostrês ficam parados olhando pelajanela de cinquenta centímetrosao nível do chão, contemplando odia cinza e gelado com seus cafésquentes.

O responsável pelos corpos dofrigorífico empurra a porta com amaca que carrega o caixão com ocorpo de Palmiro.

— O nosso velho está aqui,Ronivon. Inteirinho. Não esqueçade devolver o caixão — diz o

homem e sai em seguida.Aparício dá uma boa olhada

em Palmiro.— Nem tive a chance de

conhecê-lo.— Era um bom homem — diz

Geverson pedindo mais café.Eles ficam em silêncio e

terminam seus cafés enquantoolham pela janela. É uma espéciede despedida, já que em tantosoutros momentos conversaramsobre coisas banais naquele

mesmo local.

* * *

Aparício foi embora faz algumtempo e Geverson já levou para asala de moagem o corpo recém-cremado que já estava frio.Ronivon abre o caixão dePalmiro. Como o velho não tinhadinheiro para um, esse caixão sófoi emprestado para sair dofrigorífico. Não será cremadodentro do caixão nem haverá ato

ecumênico ou coisa que o valha.Ele será cremado sem caixão,direto na bandeja. Ronivoncoloca o corpo de Palmiro sobreuma mesa de mármore e verificaos seus dentes. Sente alívio aosaber que todos os dentes de ouroestão lá. Ele conta os oito dentesmais uma vez.

Abre a porta da sala demoagem.

— Geverson, você viu aquelealicate pequeno?

Geverson desliga o triturador,que é bastante barulhento.

— O que você disse?— Você viu aquele alicate

pequeno?— Tá aqui comigo. Às vezes

eu preciso dele aqui nessetriturador. Esse troço está umaporcaria. Fica difícil trabalharassim. Meu serviço não rende.

Geverson coloca os óculosprotetores e liga o triturador antesque Ronivon conclua que logo o

trará.Com os dedos Ronivon abre a

boca de Palmiro e arranca osincisivos de ouro. Esses são maissimples de remover, porémnecessita de esforço. Os maisdifíceis são os molares. Osmolares são todos de ouro.Ronivon apanha um martelo euma pequena faca. Enterra a facasob um dos molares e martela otopo do cabo até que o dente sedesprenda. Dentes são difíceis de

remover, são cravados até o osso,enraizados profundamente.Quando consegue desprendê-lo,puxa-o com o alicate. A remoçãodura cerca de uma hora.

— Você fez mesmo, não é? —comenta Geverson olhando ocorpo de Palmiro sobre a mesa demármore.

— Ele pediu e eu precisavafazer.

Ronivon está removendo oúltimo dente. Este está difícil de

sair. Geverson pede para ajudar.— Pode deixar... acho que está

saindo — fala Ronivon numesforço muito grande.

Todo o seu corpo treme com aforça que faz. O dente sai,Ronivon quase escorrega devidoao impulso. Coloca o dente emum copo de lata junto dos outrosremovidos. Ele seca o suor datesta, sente-se abafado e tira ocasaco.

— Pronto, velho. Tirei todos.

Toda a sua fortuna está aquidentro.

Ronivon sacode o copo.— Me ajuda a colocar ele na

bandeja.— O que vai fazer com os

dentes?— Mandar pra filha dele, não

foi isso que ele pediu? Agorapreciso achar essa filha doPalmiro.

Os dois colocam o corpo delena bandeja. Ronivon e Geverson

fazem uma prece antes de cremá-lo e cada um diz algumaspalavras de despedida ao amigo.Ronivon aciona o sistema queabre a porta do forno e empurra abandeja. Palmiro começa a serengolido pelo fogo. Em uma horae meia, restará só carvão.

Capítulo 7

Em Abalurdes os corposcontinuam a ser cremados e, aocontrário do que se imaginousobre a escassez de matéria-prima nos fornos crematórios,dezenas de indigentes e bêbadosmorrem durante o frio damadrugada em toda acircunvizinhança. Astemperaturas atingem níveis muitobaixos. Nem os animais resistem,como as vacas do pasto de seuGervásio. Muitos cães vira-latas

que perambulam pela cidade sãorecolhidos durante o dia, todosmortos. Os ratos que comumenterodeiam o minhocário estãodistantes. Jocasta precisa dormirdentro da casa para se protegerdo frio, porém permanece emestado de alerta. Logo pelamanhã, quando abrem a porta dacozinha, ela corre para o quintalno intuito de conferir asminhocas. Lambe as patas quandotermina a inspeção.

Ernesto Wesley anda inquietonos últimos dias e Ronivon pelasétima vez tenta escrever umacarta para a filha de Palmiro.Desde as cinco da manhã ele seesforça, mas não consegue.Ernesto passa um café fresco emexe alguns ovos na frigideira.J.G. permanece sentado à mesa,quieto, aguardando o seu café.Hoje ele vai enterrar as cinzas dovelho ao pé da goiabeira que ficana entrada do crematório.

Ronivon tem um endereço da filhade Palmiro, o mesmo para onde ovelho escreveu durante oito anose nunca houve resposta.

— Seja direto, Ronivon. Digaque o velho morreu e que deixouuma herança pra ela.

Ronivon coça a cabeça,arranca a última folha do bloco ese coloca a escrever novamentesem dizer nada. Ernesto serve osovos e o café para eles e senta-seà mesa.

— Acho que é isso mesmo.Vou ser direto. Ainda hoje querocolocar essa carta no correio.

Ronivon come parte de seusovos mexidos e bebe meia canecade café até criar coragem.Alimentado, sente-se mais firme.

— Chegou outra carta dele,Ernesto.

Ernesto Wesley não responde.— Eu vou abrir dessa vez —

diz Ronivon.— Por quê?

— Acho que ele quer dizeralguma coisa.

— É claro que quer dizer, maseu não quero saber.

Ernesto come o restante dosovos mexidos que estão em seuprato e bebe o que resta do café.Ronivon hesita.

— Eu sinto um peso por isso,Ernesto. Eu acho...

— Se você quer falar com ele,fale você.

— Mas as cartas são pra você.

— Eu não vou ler nenhumadelas.

— Mas também não joganenhuma fora.

Ernesto Wesley fica calado.Coloca o gorro de lã e veste umcasaco pesado.

— Hoje eu pego o plantão dequarenta e oito horas. Coloca aração pra Jocasta e as sementesde girassol que estão aí noarmário. Bom-dia pra vocês.

Ronivon responde ao

cumprimento e apanha a carta deVladimilson que está no seubolso. Ele não consegue abrir acarta do irmão preso e nãoconsegue escrever a carta para afilha de Palmiro. Apanha o bloconovamente e decide terminar comaquilo.

“Cara Marissol,Seu pai está morto. Deixou uma

herança. Suas cinzas estão enterradasno Colina dos Anjos. Precisamos nosfalar.”

Assina o seu nome e deixa oendereço e um telefone paracontato. Dobra o papel e o colocadentro de um envelope branco.Preenche o endereço e deixa paralacrá-lo na agência dos correios.A carta de Vladimilson ele decidedeixar para mais tarde. Prega-acom um ímã na porta dageladeira.

* * *

A fila de corpos está longa.

Serão quatorze cremações eRonivon sabe que precisará fazerhora extra para dar conta de todoo trabalho. Os dois primeiroscorpos cremados estão sendomoídos e o som agudo dotriturador ricocheteia na sala.Antes de ir trabalhar, passou naagência dos correios e está empaz por ter enviado a carta.Gostaria muito de ter notícias dafilha do velho e, estranhamente,Ronivon sente que terá em breve.

Certamente uma herança aguçaqualquer interesse. Ele aencontrará e fará sua parte paraque Palmiro descanse em paz epara que ele mesmo tenha honraentre os mortos.

O trabalho no crematório temsido intenso. A outra sala dosfornos tem funcionadoprincipalmente para dar fim aosrestos mortais de exumados,animais e indigentes. São horasde serviço executado por outro

cremador que trabalha três vezesna semana. Os dias intercaladossão de responsabilidade deRonivon. Ainda que haja escassezde tantas coisas, de mortos nuncahá. A morte não folga. Quantomais difícil a vida, mais a vidagera a morte. O trabalho queexecuta é interminável. Ronivoncuida das duas salassimultaneamente. Primeiro passao detector de metais sobre o peitodos dois mortos. Tudo parece

estar em ordem. Coloca-os dentrodo forno e só precisa esperarpelo trabalho das chamas. Nasegunda sala, sobre uma bandejade aço, estão restos exumados devários corpos enterrados numavala comum. São partesmisturadas, sem identificaçãopossível. Esses restos mortais sãode pessoas que doaram seusórgãos para a ciência. Aexumação foi necessária paraabrir espaço para novos túmulos.

Coloca um avental, luvas emáscara antes de manuseá-los.Liga o rádio numa estação denotícias e os arruma em outrabandeja, a que vai para o forno.Crânio, antebraço, mãos, a ossadaé bastante misturada. Enterradosnuma vala comum, agora serãocremados numa bandeja comum esuas cinzas se misturarão parasempre. Os vestígios serãodepositados nos fundos docrematório, na vala comum cheia

de excrementos e lixo. Apósarrumar os restos na bandeja,insere-os no forno. Quandotermina, retira as luvas e amáscara. Permanece com oavental.

O aquecedor do crematórioestá funcionando há semanas. Oambiente é agradável, porém nosubsolo o efeito não é o mesmoque na parte de cima, que deveser bem aquecida pararecepcionar os parentes dos

falecidos e realizar os seus atosecumênicos. O aquecedor centralajuda a manter centenas de casasaquecidas num inverno rigorosocomo este.

Ronivon sabe muito pouco oque acontece lá em cima. Desde ahora em que chega, ele permaneceno subsolo. Faz suas refeições,almoço e lanche, num pequenocômodo próximo às escadas. Elenunca sobe para o andar de cima.Tem permissão apenas para

caminhar na parte de baixo, e,com seu trabalho delicado e querequer vigilância, Ronivon nuncapode se ausentar dos incinerados.Comunica-se com o andarsuperior do crematório por uminterfone instalado em sua mesa,onde apanha dentro da gaveta oalicate de Geverson e o leva paradevolver quando escuta umapausa na moagem.

— Geverson, eu vim trazer oalicate.

— Pode deixar aí.Geverson coloca o conteúdo

do copo do triturador dentro deuma urna com uma etiqueta.

— Prontinho... a dona Brigidaestá guardadinha — dizGeverson, satisfeito com seutrabalho. — Olha isso aqui,Ronivon... veja as cinzas, osgrãos fininhos e uniformes!

Ronivon olha para dentro daurna e admira-se. Geversoncoloca os óculos protetores e

apanha uma nova leva de carvãoanimal etiquetado no balde como“Mário”.

— Isso é um liquidificador?Parece um — pergunta Ronivonintrigado.

— Isso aqui é umliquidificador, Ronivon. Eu nãoposso trabalhar só com essetriturador velho. Disseram quevão comprar um novo; mas atéagora, nada.

— Você trouxe de casa?

— Sim, eu trouxe. Acho queagora meu trabalho vai rendermais. É bem potente esseliquidificador. Tem váriasvelocidades, veja só. Foipresente de Natal da minha sogra.

Ronivon cruza os braços eapoia-se num canto da salaenquanto Geverson trabalha econversa um pouco. É um diatranquilo e frio, como têm sidotodos os últimos dias, e esperaapenas ter coragem para abrir a

carta do irmão ainda hoje.Decide ir ao banheiro e

caminha até o final do corredor. Alâmpada está queimada, e precisausá-lo na penumbra em que seencontra. A porta da sala dosfornos é aberta ao empurrão damaca com o caixão. Mais umaentrega está sendo feita. É umsom seco que desfila pelocorredor até ricochetear ao finalde sua extensão. Todos os sonsproduzidos no subsolo são

ecoados e têm efeito sobrenatural.Ronivon sai do banheiro e no

corredor cruza com o funcionárioresponsável pelos corpos nofrigorífico. Cumprimentam-secom um aceno breve e seguem,para extremidades opostas docorredor. A dois passos de abrir aporta da sala, uma explosão vemdo lado de dentro. Ele tirita desusto e sente sob seus pés e nasparedes do corredor a vibraçãodo impacto. A porta trepida

intensamente, e as duas placas devidro que permitem olhar paradentro da sala trincam numa sériede estalidos.

O forno principal explodiu eos dois corpos incinerados porincompleto foram lançados aospedaços pela sala, e suas partescrepitantes atiradas ao ar sãocomo pequenos fogos de artifício.Essas partes em fogo espalhadaspela sala provocam pequenosfocos de incêndio sobre os muitos

papéis e objetos inflamáveis.Geverson sai da sala de moagemcom o extintor de incêndio eapaga os focos. Ronivon liga parao andar superior e pede socorro.Em meia hora uma equipe debombeiros chega ao local,inclusive Ernesto Wesley,bastante preocupado.

— Foi o marca-passo — dizErnesto Wesley.

— Mas eu verifiquei —retruca Ronivon.

— A perícia comprovou.Ronivon apanha dentro da

gaveta da mesa o detector demetais e entrega a Ernesto.

— Eu já testei várias vezes.Não está funcionando — dizRonivon.

Ernesto liga o aparelho, testasobre alguns objetos metálicosespalhados pela sala e comprovao defeito.

— A coisa estava muito piorantes de vocês chegarem. Eu e o

Geverson recolhemos todos osrestos dos dois corpos. Ficaramespalhados pela sala. Misturados.

Ronivon está visivelmenteconsternado. Terá o resto do diade folga assim que terminar deexplicar pela segunda vez aospoliciais o ocorrido. Para osparentes dos mortos que sereuniam em ambas as capelas,disseram que foi uma explosãoem um forno antigo que cremavarestos mortais exumados e que

suspenderam a cremação. Todosficaram abalados. O outro forno(o antigo), que funciona na salaao lado, não foi atingido, porémteve suas atividades suspensas atéo local ser liberado pela polícia evoltar a funcionar em segurança.O gerente do crematório estátranstornado.

— As atividades de cremaçãoestão suspensas até uma novainspeção para liberar ofuncionamento. A ordem não deve

ser descumprida sob pena demulta e punição.

Foram essas algumas daspalavras do policial responsávelpelo boletim de ocorrência. Aninguém foi atribuída culpa peloacontecido. Ronivon tinhaenviado duas solicitações para oescritório do gerente pedindo oreparo ou a compra de um novodetector de metais. O aparelhoenguiçado foi levado pela períciacomo prova, juntamente com a

cópia das duas solicitaçõesescritas e enviadas por ele.Ronivon deixou a sala dos fornosainda com vestígios de fumaça esem saber quando as coisasvoltariam ao normal.

* * *

A fila de corpos não para decrescer. Chegam em média cincomortos por dia e eles começam ase espremer no frigorífico. Onovo forno demorará algumas

semanas para chegar. Asburocracias demandam tempo eexigem paciência. O gerente nãoconsegue dormir, pensando numasolução. Em três dias ocrematório receberá a visita deuns investidores e é preciso quetudo funcione bem. A pilha decorpos amontoados no frigoríficoé uma visão lastimável. Porém, opior são os olhos humanosquestionando o que fazer comaquele amontoado.

O gerente convoca umareunião e entre os que participamestão Ronivon, Geverson, J.G. eAparício.

— Em três dias vamos ter avisita de alguns investidores quevão ampliar as atividades doColina dos Anjos, transformandoeste lugar no polo nacional damorte — ele alisa alguns fios decabelo e faz uma breve pausa.

O gerente chama-se Filomeno.Um homem branco, com veias

salientes nos braços e mãos. Usaóculos de lentes grossas quedeformam sua expressão eaumentam o globo ocular. Possuiuma corcunda que se acentua comos anos. Seus cabelos estão emqueda. Há muitas falhas por todaa grande cabeça. Ele os penteiade baixo para cima na tentativa deesconder a imensa careca.Evidente que isso torna seupenteado excêntrico, porém essepenteado mostra muito do seu

caráter. Filomeno é um homemque tenta encobrir qualquervestígio daquilo que pode abalarsua reputação. Sejam os indíciosde velhice com uma careca àmostra, seja a incompetência dedar cabo dos mortos.

— Nós temos um grandeproblema aqui e sei que ninguémquer perder seu emprego.

Os homens sacodem a cabeçaem negação.

— Acontece que eu preciso

tocar esse negócio. Tenho certezaque em pouco tempo estaremosmuito melhor do que estamosagora. Muito mesmo. E os seussalários provavelmente terão umreajuste de vinte por cento. O queme dizem?

Os homens sorriem eentreolham-se. Estão animados.

— Mas diante do queaconteceu temos uma sala cheiade corpos e não podemos rejeitarnenhum. Nós somos os melhores

da região. Num raio de seiscentosquilômetros não há nada que secompare ao Colina dos Anjos.

Os homens sacodem a cabeçaem afirmação e expressambaixinho entre lábios retraídosque não há lugar que se compareao Colina dos Anjos.

— Eu vou precisar da ajuda devocês. De todos vocês — salientaFilomeno com o dedo em riste. Econtinua: — Vocês precisam darcabo dos oitenta e sete corpos

que estão superlotando o meufrigorífico. Não sei o que vãofazer, mas sei que quero aquelelugar esvaziado em dois dias.Disso depende o emprego decada um aqui.

Os homens entreolham-senovamente, mas sem entusiasmoou ruídos de comemoração.Permanecem calados. Filomenoespera por uma resposta. Elesenta-se à sua mesa. Ajeita-se atéencontrar uma posição

confortável e todo esse ritual épara dar tempo aos homens deencorajarem-se.

Filomeno apanha um pente dobolso e, de baixo para cima,penteia os cabelos. Com as mãosabertas, ele alisa e ajuda aassentar todos os fios.

— Homens, não me olhem comessa cara. A morte não folga. Nósprecisamos dar um jeito pra quetudo fique bem. Amanhã teremosmuita mercadoria chegando de um

acidente que aconteceu ontem.Soube que até agora são trintamortos. Todos devem vir pra cá.O que faremos? Eu não possorejeitar essa mercadoria, já disseque vou aceitá-la.

Ronivon dá um passo à frente.Cauteloso.

— Senhor, não temos ondecolocar tantos corpos.

— Eu sei. E vocês têm doisdias para esvaziarem ofrigorífico.

— E o que faremos com osmortos? — questinona Geverson.

— Eu gostaria de não saber —responde Filomeno.

O telefone toca. Filomenoatende e pede um instante. Dizaos homens que estão liberados eque em dois dias fará novainspeção para saber se tudo estáem nova ordem. Volta ao telefonee os homens saem da salacalados, sem norte.

Reunidos numa parte do

cendrário, encolhidos de frio elesdiscutem o que parece ser umatarefa tenebrosa e sem alternativa.

— Acho que enterrar oscorpos é a única solução — dizAparício.

— Não sei. Chamaria muitaatenção abrir tanta cova assim —retruca Geverson.

— Mas podemos colocartodos numa vala comum — falaAparício em tom de conclusão.

Eles discutem um pouco e

exaltam-se em intervalos, até queuma possibilidade parece ser amais sensata.

— Acho que devemos queimartodos eles — fala Ronivon.

— Não podemos fazer umafogueira — diz um dos homens.

— A uns vinte quilômetrosdaqui tem uma carvoaria. Elestêm muitos fornos de barro lá enão trabalham à noite.

— Você acha que conseguiriacom eles? — pergunta Aparício.

— Podemos tentar. Não vaisair de graça, mas acho queconseguimos algum dinheiro como seu Filomeno.

— E um caminhão também? —questiona Geverson.

— Isso também. Eu conheço ocapataz da carvoaria, o homemresponsável por todo o lugar. Agente joga carteado todas asquintas — diz Ronivon.

— Vamos fazer mais carvão?— Sim, J.G., vamos precisar

fazer mais carvão.Ronivon puxa os protetores de

orelha de seu gorro e suspende oolhar para o céu. Todos oshomens se mantêm pensativos. Océu está menos nebuloso depoisde alguns dias com os fornos docrematório desativados. Para oslados da carvoaria as nuvenspesam mais, como imensosblocos de concreto, e as cinzasescurecidas são ainda maisvisíveis do que em toda a região.

Capítulo 8

A paisagem lunar é insufladapor calombos de barrofumegantes. São espécies decasulos muito semelhantes aninhos de cupins, com uma fendavertical similar a uma vagina ecom diversos furos por toda aestrutura bojuda para a saída docalor. Essas rústicas construçõessão fornos de barro alinhadoslado a lado ocupando uma amplaextensão de terras, cercados porvegetação ainda viva; a pouca

que se mantém. O cenário éembaçado, por entre os muitosrastros de fumaça que deslizampelo ar e tornam sinuosa einfernal a paisagem da carvoaria.Ainda distante, os olhos ardemcom a fumaça espalhada pelovento, e, na parte alta do vale,Ronivon admira os homensmiudinhos que caminham porentre os fornos, alimentando-oscom lenha através da fenda eoutros que com uma pá retiram a

lenha já transformada em carvãoe a depositam em uma pilha alta enegra.

Quando os solos sãocontaminados e os rios poluídos,a cidade jaz na esterilidade. Masos habitantes de Abalurdesvalem-se da natureza morta docarvão para subsistirem. Osfornos são como mulheresfecundadas que geram a vida. Avida é o carvão, mas que tambémé morte.

A fuligem cobre os olhos, osouvidos, a boca. Esses homenscarvoeiros são cegos, surdos emudos pelas cinzas. Não usamluvas, botas, filtros para respirarou roupas adequadas. Manuseiamtudo com o corpo exposto, a peleà mostra e os pulmões infectados.Enquanto trabalham, sãoirreconhecíveis. São todos iguaisdurante o trabalho que dura dezhoras por dia, seis dias porsemana. Passam a maior parte do

tempo cobertos de um negrumeque não sai mais, pois todos osdias eles voltam para o mesmolugar. Assim, vistos de longe,esses homens são apenassombras. Todos negros e semdistinção. São sombrasproduzidas pelo trabalho duroque é transformar natureza vivaem morta para subsistir.

Alguns trabalhadores têm osdedos esmagados ou decepadospor alguma das ferramentas

durante o manuseio nas atividadesdiárias. Perde-se lá o dedo, masisso não altera a condição denenhum deles. São todos homense sombras.

Melônio Macário caminhaatento entre as vielas formadaspelos fornos. Verifica ofuncionamento de um por um comolhar experiente. Suas roupas sãoda cor do céu; carvoento. Seuolhar é enegrecido e até os cíliossão pesados de fuligem. O

paladar é amargo e o cheiroardido das chamas do carvão nãolhe permite sentir outro perfume.Diante de um tonel de águaamarelenta, ele tira o chapéu depalha e enfia a cabeça por algunspoucos segundos. Apesar do frio,o calor nas vielas dos fornos éintenso. Suspende a cabeça eseca-se com um pedaço de panoque carrega no bolso da calça.Coloca novamente o chapéu e vaipara a improvisada casa do

alojamento.Aproxima-se de um homem

deitado numa cama de colchãoencardido e rasgado. O ambientedo alojamento é embaçado defumaça. Por toda parte os olhosde qualquer um ardem e arespiração é difícil. MelônioMacário toca em seu braço emurmura o nome do homem. Eleestá doente faz dois dias. Temuma infecção intestinal e sentemuitas dores. Hoje, outros dois

homens vão levá-lo embora paraa sua casa.

— Seu Melônio, eu tô commuita dor.

— Calma, eles já vêm tebuscar, rapaz.

O homem faz sinal para umbalde próximo da cama. Melônioestende a mão e o puxa. O homemsuspende a cabeça e vomitadentro do balde. Está muito fracoe as dores aumentam sempre quevomita.

— Eles já devem estarchegando.

Melônio apanha o pano quecarrega no bolso e seca o suor datesta do homem, acalentando-o.

— Seu Melônio, eu não queromorrer aqui.

— Calma, você não vaimorrer, rapaz. Eu que tô velho, játive tudo que foi doença e tô aquide pé. Você vai ficar bom.

O homem sinaliza novamentepara o balde e vomita mais uma

vez. Melônio está preocupado,mas não aparenta. Tira dopescoço a corrente com amedalhinha sacra que carrega hátrinta anos e a deixa com odoente.

— Toma. Tenha fé, rapaz, vocêvai melhorar. Aperta combastante força e ela vai te ajudar.

Melônio Macário sai doalojamento e chama um dosfuncionários, que empilha carvãonuma das muitas montanhas

negras que se espalham pelolocal. O homem, ao breve sinaldo seu capataz, atende suasordens e vai ter com ele.

— O Xavier tá muito doente.Os homens disseram a que horasvêm?

— Não disseram, não, seuMelônio.

— Mas você telefonou comoeu te mandei?

— Telefonei, sim senhor. Maseles não disseram quando vêm.

— Eu vou mandar o Zé Chicoligar de novo. Diz pra ele vir aquie manda o Chouriço ficar no lugardele.

— Sim senhor.O homem sai correndo para

cumprir as ordens e em seguidaZé Chico prontifica-se a ir até otelefone, que fica a seisquilômetros de distância, na beirada estrada, em frente a um postode gasolina.

— Zé Chico, diz pra eles que

o homem tá muito doente. Homemmeu não morre quando eu tôcomandando. Diga isso pra eles.Entendeu bem? Pega o meucavalo e vai rápido. Eu precisotirar o Xavier daqui.

Melônio Macário entrega a elealgumas moedas para comprar umcartão telefônico no posto degasolina e pede que vá o maisdepressa possível.

Antes que Melônio volte aatenção completamente para o

trabalho entre as vielas de fornos,Ronivon, que até o momentoandava insuspeito pelo local,encoberto pela fumaça,cumprimenta Melônio.

— Rapaz, o que você faz aqui?— diz Melônio surpresoestendendo a mão paracumprimentá-lo.

— Oi, seu Melônio, eu vimfalar com o senhor.

— Então diga, rapaz.— Eu nem sei como começar,

mas...— Espera só um instante que

eu já volto.Melônio segue até uma das

vielas e verifica a leva de lenhaque vão depositar num dosfornos. Grita com um dos homenspara remover a pilha de carvãoque se encontra em frente aoforno para o outro lado da viela,apontando a direção exata. Aspilhas de carvão são colocadasdentro da caçamba de um

caminhão e levadas para seremembaladas na distribuidora quefica distante da carvoaria.

Melônio Macário tira do bolsoum charuto pela metade e oacende enquanto caminha de voltapara falar com Ronivon, que oespera um pouco aturdido emmeio ao caos que é esse lugar.Eles se afastam alguns metrospara longe dos fornos atéRonivon sentir os olhos menosardidos.

— E então, já sabe comocomeçar? — questiona Melônio.

— Seu Melônio, um dosfornos lá do crematório explodiue agora só temos o forno velhopra trabalhar. Mas o serviço émuito grande e no frigorífico temuma pilha de corpos que nemcabem mais na geladeira e acremação no forno velho é lenta enão dá conta de todo mundo. Lá,só um de cada vez.

Melônio baforeja o charuto e

respira a fumaça aromática.Balbucia alguma coisa entre oslábios finos, mas Ronivon nãopercebe.

— Amanhã chegam unsinvestidores lá, foi isso que onosso gerente disse. Uns homensimportantes que vão investir nocrematório. O meu emprego e detodo o pessoal depende da genteconseguir dar um jeito noscorpos, o senhor entende?

Melônio faz que sim com a

cabeça e traga o charuto mais umavez. Fica em silêncio por algunsinstantes, pensativo.

— Eu só vou ter os fornosliberados à noite. Volte às seis etraga os corpos. Quantos são?

— Oitenta e sete.Melônio desvia o olhar para o

charuto entre os seus dedos. Fazalgumas contas com a outra mão,balbucia para si qualquer coisanovamente.

— É muito, não?

— Sim, e eles não param dechegar.

— Eu tenho forno suficienteaqui, mas você precisa trazertodos os homens que tiver lá,porque vai ser uma noite muitolonga.

— E como acertamos, senhor?— Eu quero uma garrafa de

rum e outra de uísque. Masprecisa ser coisa boa.

Ronivon concorda com acabeça.

— E outra coisa: tenho umhomem aqui muito doente epreciso levar ele pra um hospitale precisa ser logo. Você veiodirigindo?

— Eu vim com a lambreta domeu irmão.

— Ele é bem magro. Acha queconsegue levar ele com você?

— Acho que sim.Com a ajuda de outro homem,

eles colocam Xavier montado namoto e enrolado num lençol.

Amarram Xavier ao corpo deRonivon, pois ele está muitofraco e não tem forças para seagarrar a nada, somente àmedalhinha. Ronivon liga alambreta.

— Xavier, você precisaaguentar firme, tá bom? É o únicojeito. Ronivon, eu te espero àsseis em ponto.

— Sim senhor, e muitoobrigado.

Ronivon volta para a estrada

principal guiando a lambreta omais rápido possível. Leva vintee cinco minutos para chegar aohospital mais próximo. Xaviervomitou quatro vezes durante aviagem. Ronivon estava deestômago vazio e pôde aguentarnão vomitar também.

Xavier foi atendido emedicado. Deixou o homeminternado e extremamenteagradecido. Ele volta para casamolhado de vômito, fedendo e

com mais frio. Porém as coisasestavam se resolvendo, e até anoite tudo estaria terminado.

* * *

Ernesto Wesley cuidou dominhocário durante todo o seu diade folga. Estranhou o fato de donaZema não importuná-lo sobre asperseguições de Jocasta às suasgalinhas e não escutou nenhumbarulho vindo da casa da mulher.É comum dona Zema ficar boa

parte do tempo na varanda dosfundos costurando, fazendo massapara pão ou bolo e cuidando dogalinheiro, onde passa bastantetempo incentivando suas galinhasa trabalhar. Pensou que pudesseser o frio que a tivesse espantadoou talvez tivesse ido visitar algumparente que mora nas redondezasde Abalurdes. Ernesto Wesleyverificou a cerca de arame quesepara o seu quintal do da vizinhae constatou muitos fiapos de

pelos de Jocasta. A cadelacostumava se coçar contra aspontas do arame farpado. Assimque tivesse dinheiro disponível,Ernesto faria uma cerca demadeira bem mais firme e segura.Já vinha economizando para isso.

Passou o dia em casa sem tercolocado a cara na rua. À tarde,depois do almoço, dormiu umpouco e acordou com alguémbatendo à sua porta. Ele jogou umcobertor por cima da cabeça e se

enrolou todo. Abriu a porta e erao rapaz que trabalhava naquitanda do bairro. Era sobre umtelefonema que recebeu a respeitode seu irmão Vladimilson e que oquitandeiro precisava falar comele. Ernesto se trocou, vestiu acabeça com o gorro de lã ecolocou dois casacos. Ainda aalguns metros do quitandeiro,percebeu sua apreensão de pé nacalçada, cabeça altiva como sesondasse a distância e os cabelos

finos eriçados. Quando ErnestoWesley chegou, ele o levou paraos fundos da quitanda, numapequena sala amontoada quechama de escritório.

Ronivon chega em casa e vaidireto para o banheiro. Tira todaa roupa vomitada e a deixa navaranda dos fundos. Se metedebaixo do chuveiro de águaquente e, dez minutos depois, estárevigorado. Quando sai dobanheiro, já vestido, depara-se

com Ernesto Wesley sentado àmesa da cozinha, perturbado.Ronivon aproxima-se do irmão eo toca no ombro. Ernesto agarrasua mão.

— O que foi, Ernesto?— É o Vladimilson.— O que tem ele?— Tentaram matar ele.— Tentaram?— Tá no hospital e quer ver a

gente.— Como foi isso?

— Uma briga entre os presos eum sujeito esfaqueou ele e depoistocou fogo. Disseram que équestão de horas até morrer e quesó fala que quer ver a gente.

Ronivon desmorona sobre umacadeira e arria a cabeça entre asmãos. Eles ficam quietos. Jocastaenfia a cabeça pela portaentreaberta da cozinha e entravagarosa. Deita-se aos pés deErnesto Wesley e solta umgemido. Depois de algum tempo

desconcertados, Ronivon levanta-se.

— Eu preciso resolver umproblema no trabalho e voupassar a noite toda lá nacarvoaria do seu MelônioMacário.

— O que houve?— Vamos cremar oitenta e sete

corpos lá. Estamos comproblemas no Colina dos Anjos.

Ernesto, de olhos marejados,parece não se importar.

— Pela manhã, passa lá e meapanha. A gente precisa ir logo.

Ernesto concorda com acabeça.

— Acho que consigo a Kombido quitandeiro emprestada — dizErnesto.

— Não quer ir na lambreta?— Acho que vamos ter que

trazer ele com a gente.— É... provavelmente.Ernesto Wesley e Ronivon

despedem-se na calçada. Ernesto

segue em direção à quitanda paratentar conseguir a Kombiemprestada e Ronivon,carregando uma mochila, apanhaum ônibus até o crematório paraacertar os preparativos da longanoite.

* * *

Uma hora antes do anoitecer,todos os homens que conseguiramreunir no crematório, ao todooito, trabalham na árdua tarefa de

empilhar os corpos dentro de umcaminhão-baú. Filomeno, ogerente, conseguiu o caminhãoemprestado com seu cunhado queé caminhoneiro e lhe deve algunsfavores.

Os homens improvisaram umarampa na parte traseira docaminhão e com a ajuda de duasmacas eles levam os corpos até oseu interior. Lá dentro, J.G., comsua desmedida robustez, empilhaum por um. Ronivon, que lida

com uma das macas, lembra-se docenário avistado horas antes. Alenha sendo depositada dentro doforno e a retirada do carvão horasdepois. Em pouco tempo, todosos corpos estão empilhados. Umdos funcionários do crematóriodirige o caminhão, pois antes detrabalhar como preparador decadáveres ele foi caminhoneiro.Três homens vão sentados naboleia e os outros cinco vãodentro do baú com os mortos e

um lampião para iluminá-los naescuridão.

Vinte quilômetros de percursoinóspito, por uma estradaabandonada e sem asfalto namaior parte de sua extensão, eleschegam ao local.

Melônio Macário está sozinho.Todos os homens já foram emborapara o alojamento que fica a doisquilômetros do lugar ou voltarampara as suas casas, aqueles quemoram nas redondezas.

Está sentado dentro doimprovisado alojamento bebendorum e escutando o noticiário emum rádio a pilha. Ele escuta ocaminhão chegar, mas espera queRonivon venha até ele. Estácansado, está velho, mas devecontinuar prosseguindo, pois issofoi tudo o que fez em sua vida.

Ronivon enfia a cabeça pelaporta e dá um toque contra amadeira velha que forra oalojamento.

— Seu Melônio, boa-noite. Jáestá tudo aí.

— Trouxe quantos homenscom você?

— Comigo são oito, senhor.— Bom.Ele dá o último gole em seu

rum e guarda a garrafa em umaprateleira junto do copo de vidroemborcado. Um copo amarelentopelo uso constante de rum e quenunca é lavado.

Ronivon tira da sacola duas

garrafas e as entrega a Melônio.Ele as apanha e sob a luz fraca dolampião constata com um rosnadoa qualidade das bebidas. Eraexatamente o que queria.

— Vamos agora. Temos queterminar antes do amanhecer.

Os homens, sob as ordens deMelônio Macário, organizam-secomo os seus peões de dia.Acostumado a queimar madeiraviva, a lenha, para se transformarem carvão, explica aos homens

que o procedimento será omesmo. Os fornos já estão acesose bem aquecidos. Quinze fornosserão utilizados, ou seja,trabalharão numa das muitasvielas da carvoaria. Por não terluz elétrica, o local é iluminadopor tochas em toda a extensão daviela. O capataz diz que o carvãoanimal deve ser removido dosfornos e empilhado do lado defora, e outro homem deve colocá-lo no carrinho e empilhá-lo num

local determinado. O carvãoanimal será ensacado peloshomens e no dia seguinte Melônioo venderá para algumas famíliasda região que ainda utilizam ocarvão vegetal em suas casaspara cozinhar e se aquecer do friodurante esse inverno rigoroso.Melônio Macário misturará osdois tipos de carvão, animal evegetal, para efetuar a venda.Assim, apagam-se todos osvestígios para todos. Com o

dinheiro que ganha como capataz,mal consegue sobreviver, e aindaprecisa enviar parte do seusalário para duas filhas pequenas,fruto de seu último casamento.

Os homens começam otrabalho. A noite fria ainda nãodemonstra no que se tornará coma chegada da madrugada. Oshomens levaram café e cachaçapara se aquecerem enquantotrabalham e o intenso calor dosquinze fornos vai ajudar a mantê-

los aquecidos.Os homens removem a

primeira leva de corpos docaminhão. Melônio Macário jácontabilizou tudo. São oitenta esete corpos para serem cremadosem quinze fornos. Cada fornosuporta dois corpos e issosignifica que terão um rodízio detrês queimadas. O tempo decremação será em torno de quatrohoras e isso significa doze horasde trabalho, para que pela manhã,

antes de os homens chegarem,eles já tenham terminado. Paraintensificar o calor dos fornos, oshomens os abastecem de lenha eos corpos são inseridos, nus esem caixão, nos fornos em brasa.

Melônio supervisiona e dámuitas ordens, porém todos oshomens obedecem ao capataz ecumprem suas funções calados.Quando a primeira leva estásendo cremada, ele senta-se emsua habitual cadeira e assiste a

tudo. Ele apanha a garrafa de rume o copo amarelento, quepermanecerá ao seu alcance, emcima de um toco de árvore, portoda a noite. Diferente do cheiroda lenha torrada é o dos corpos.O fedor é tão insuportável quantoa pesada fumaça. É carniça embrasa. Ronivon alertou que todosos homens levassem um panopara cobrirem o rosto, pois eleconhece o cheiro queimado damorte. A fuligem que começa a

cobrir o local e a envolver oshomens é fúnebre e eles evitamtocar no assunto. Todos estãocobertos de cinzas e bebem parasuportar o frio e o sacrilégio. Ocheiro é terrível e espalha-se portoda a região. Nem mesmo pelamanhã terá se dissipado, e jamaisse dissipará da lembrança dosenvolvidos.

Melônio Macário dá sinal paraque a primeira leva sejaremovida e que imediatamente a

segunda seja colocada. Controlatudo pelo relógio sem pulseiraque carrega no bolso do casaco.Três carrinhos estão disponíveise começam a remoção desde oinício da viela. Com uma pá elesremovem o conteúdo dos fornose, sim, resta apenas carvão.Mesmo não sendo possívelidentificar nenhum osso porinteiro, ainda em alguns sepercebem algumas partes daanatomia humana. Enquanto um

grupo remove os corpos, outrogrupo preenche novamente osfornos com uma dupla decadáveres. Melônio preocupa-secom os possíveis vestígios e, napilha que se forma dos restoscozidos e algumas partescarbonizadas, ordena que elespassem com as rodas docaminhão por cima, para que tudoseja triturado.

Depois de moído, o carvão émisturado a uma pilha de carvão

vegetal numa parte que fica nosfundos da carvoaria. Depois demoído pelas rodas do caminhão,quase tudo se tornou pó. O quenão fosse aproveitado seriaespalhado pelo vento.

O trabalho se alongou por todaa noite e madrugada. Depois daprimeira leva retirada do forno,ninguém mais teve tempo de parare descansar. Dividiam a bebida, ea viela dos fornos os mantinhaaquecidos. Quase doze horas de

trabalho, e, quando o sol apontano horizonte nublado de mais umdia frio, estão todosirreconhecíveis devido aoexcesso de fuligem, feito homens-sombra. Há silêncio entre todos eo som das passadas de um ladopara o outro e o empilhamento doque resta do carvão é todo obarulho que se ouve. Ronivonestá sentado no chão com ascostas apoiadas num tronco deárvore. Observa os homens se

moverem nos minutos finais paraconcluírem o trabalho. É aretirada. Assim como na guerra,eles tentam disfarçar os destroçose agrupados vão embora. Estámuito cansado e satisfeito com ofim de tudo aquilo. O caminhãoestá vazio, nenhum vestígio emcanto algum.

O ronco da Kombi pode serouvido a distância. Cambaleandosobre as depressões salientes,Ernesto Wesley estaciona e desce.

Ronivon permanece sentadoobservando o irmão procurá-lo.Ele cumprimenta alguns doshomens e percebe Ronivonesmorecido. Aproxima-se e dáuma bela olhada ao redor. Retirao gorro por alguns instantes e batea poeira de fuligem.

— Pelo visto vocês tiverammuito trabalho — diz ErnestoWesley.

Ronivon concorda com umaceno de cabeça.

— Você está bem?— Eu não sei — responde

Ronivon.Ernesto estende a mão para o

irmão e o ajuda a se colocar depé.

— Não fica assim, irmão.— Foi um sacrilégio, Ernesto.

Acho que nunca vou me perdoar.— Ronivon, isso demora, mas

passa. Você vai ver.— Não sei.— Eu já me esqueci de

quantas pilhas de corpos vicrescer na minha frente nessesanos como bombeiro. O cheiro dacarne torrada, a deformidade, adestruição.

— Mas isso foi diferente.— Você faz isso todos os dias,

Ronivon. Você é cremador decorpos. É isso que você faz.

— Apago os vestígios —completa Ronivon.

Ernesto Wesley abraça o irmãoe caminham até os homens que

finalizam o serviço. Eles selimpam, cada um com um pedaçode pano molhado num dos tonéisde água barrenta, que usam atépara beber, e removem a sujeirados braços, rostos e pescoços.

Todos, exceto Ronivon, entramno caminhão poucos minutosantes de os carvoeiros chegarem.Ronivon e Ernesto Wesley entramna Kombi e vão embora depoisde se despedirem de MelônioMacário.

— Não esqueça o carteado naquinta-feira, rapaz. Sem você ficadesfalcado.

— Sim, seu Melônio, eu vouestar lá.

Ernesto Wesley, assim comoRonivon, passou a noite em claro.Decidiu fazer uma broa de milho,duas garrafas de café fresco e umcreme de milho verde. Colocoutudo dentro de uma caixa deisopor embalada em papel-alumínio. Enquanto Ernesto

dirige, Ronivon recobra as forçasalimentando-se e descansando umpouco. Mas não consegue dormir.Os dois estão apreensivos com oencontro.

— Até resolver tudo, achomelhor a gente dormir por lá —diz Ronivon.

— Eu não vou com você.Ronivon olha desacreditado

para Ernesto Wesley.— Eu tenho que estar no

quartel daqui a duas horas. Vou te

deixar na rodoviária.— Não, Ernesto. Você não vai

fazer isso comigo. Ele é seuirmão também.

— Você é o meu único irmão,Ronivon. Eu passei a noite emclaro e sei que não quero ver ele.

Silêncio.— Eu fiz café, broa e uma

sopa. Leva com você.— Isso não está certo, Ernesto.— É assim que será. Se você

não for, eu não me importo.

Durante a viagem até chegaremà rodoviária não trocaramnenhuma outra palavra. Pareciam,assim, suportar um o peso dooutro.

Ronivon desceu da Kombicarregado da mochila e da bolsacom os preparativos de ErnestoWesley e não disse uma palavra.Ernesto gritou seu nome e ele sevoltou com alguma esperança nocoração.

— Você revirou a

compostagem? Hoje é dia dealimentar as minhocas.

— Sim. Já está no ponto.Revirei ontem.

Volta-se cabisbaixo e segue acaminhar até o guichê depassagens.

Capítulo 9

Com uma pá, um homem cortao barro e o despedaça pelo chão,enquanto dois peneiram o barro,formando uma montanhaesfarelada. Um outro coloca obarro peneirado num carrinho,com a ajuda de uma pá. Leva ocarrinho até uma áreadescampada, onde, agachadosdiante de tijolos de barro recém-fabricados, homens trabalham.Cerca de vinte cuidam damodelagem. Trabalham de

cócoras e costas arqueadasdurante todo o tempo.

Com as mãos desprotegidasmoldam o barro em formasretangulares de madeira simples.Dois homens são responsáveispor misturar a água e o barro paramelhorar a consistência damatéria-prima, que tambémpossui areia na sua composição.Eles retornam com um galão deágua suja, jogam aos poucos napequena montanha para em

seguida revirá-la com uma pá.Por todo lado estão policiais

armados e cães treinados. Elesrodeiam a olaria e observam otrabalho dos presos. Se não fossepelos policiais, seria uma olariaqualquer, mas esta trata deacolher presos sentenciados dapenitenciária de Abalurdes.Situada distante da cidade, longedas carvoarias e minas de carvão,o local é uma região barrenta eisolada. O trabalho da olaria

acontece nos fundos dapenitenciária. Os presostrabalham oito horas por dia comuma folga semanal. Outro grupode homens cuida da horta, dapocilga e do galinheiro. Todosrecebem salário pelo trabalho queexecutam. Para alguns, estarpreso é sinônimo de uma vidamelhor para suas famílias, poiscom o que ganham garantem osustento de quem está longe.Existem aqueles que temem a

hora em que os portões serãoabertos e, assim, postos emliberdade. Liberdade para amaioria é não ter o que comer,abrigo e trabalho. Do lado de forados portões, eles temem o quevão encontrar.

Nem todo preso pode serprodutivo dessa maneira. Existe aala de segurança maior, e nesselugar ficam os cães. Aqueles quedificilmente poderiam convivercom os outros. Indivíduos cuja

maldade é a verdadeira prisão.São maus. Não existe reabilitaçãopara isso.

Enfileirado e agachado,Vladimilson apanha um punhadode barro e o coloca na forma.Com as mãos, ele acomoda obarro e, de palmas esticadas,alisa o topo. Espera poucossegundos para, com a ajuda docabo de um martelo, dar algumasestocadas nas laterais do molde edesprender o tijolo úmido.

Terminado, ele avança meiopasso para o lado e repete oprocesso.

Depois de algumas horas, otijolo será levado para um grandegalpão coberto por telhas deamianto. No período de inverno ecom os dias chuvosos, toda aprodução é armazenada nogalpão. Nos dias quentes, ficaexposta ao sol.

Ainda não chove, mas dentrode algumas horas choverá. Dois

homens levam os tijolosmodelados para dentro do galpão,onde serão empilhados emprateleiras e permanecerão assimpor dias, antes de irem ao forno.

Quando a chuva cai, elescontinuam o trabalho debaixo deum toldo de proteção. Proteçãopara os tijolos, nem tanto assimpara os condenados.

Vladimilson tem boa reputaçãoe nunca teve problema com osoutros presos. É um sujeito

falante e prestativo. Para cadatrês dias de trabalho, um dia éreduzido de sua pena. O dinheiroque ganha está depositado numaconta. Quando sair, poderárecomeçar sua vida do lado defora. Tudo para ele caminha bem,porém o que aperta seu coração éo silêncio dos irmãos. Nunca teveresposta de nenhum deles, masinsiste em escrever. Quase todasemana ele manda uma carta.

O crime que cometeu foi

acidental, mas ele foi imprudente.Terrivelmente imprudente.Trabalhar com o barro e modelartijolos o faz sentir-se melhor. Ocontato com aquilo que acreditater sido o início da criação dohomem o faz sentir-se redimidoperante Deus.

Há meses um dos presos temprovocado Vladimilson. Tudocomeçou durante uma partida defutebol. Um desentendimentosobre a marcação de um pênalti

foi o início do fim de seus dias depaz. Ele sente os olhares dohomem espreitando-o, como umcão que o fareja. Ele trabalha noforno da olaria junto de outroshomens, entre eles ErasmoWagner, amigo de Vladimilson.

Os dias são duros. Há poucotempo para pensar e muitasobrigações a serem cumpridas.Na penitenciária de Abalurdes omodelo adotado tem alcançadobons resultados, mas sabe-se que

nela mora a escória e todos estãomarcados para sempre.

Enquanto molda o barro,Vladimilson tenta moldar opróprio caráter através doesforço. Mas ele é exceção. Amaioria dos homens é moldada aconcreto. São duros feito rocha.Inquebrantáveis de espírito,torpes.

Os fornos da olaria ficamencravados num morro. Grandesaberturas, espécie de cavernas, e

sobre uma superfície plana ostijolos são acomodados e assadosdurante longo tempo.

Quando retirados, sãoempilhados para resfriarem edepositados dentro do galpão atéserem transportados por umcaminhão para a distribuidora.

Erasmo Wagner está semprecom o corpo quente, mesmo nosdias frios. Já teve duaspneumonias e seu pulmão ficouenfraquecido depois que teve

tuberculose. Faz um ano que nãotem doença alguma.Provavelmente o corpo está seadequando às instabilidades detemperatura.

O trabalho já havia terminadopara a maioria e os condenadoscomeçavam a se agrupar paravoltarem às suas celasescoltados. Vladimilson lavavaas mãos em um balde de água, jábastante suja, próximo de um dosfornos. Estava sozinho, quando

sentiu a facada pelas costas. Ohomem não dizia uma palavra,somente sua respiração estavaacelerada. Vladimilson não caiuno chão. Foi sendo empurradopelo homem enquanto este oesfaqueava e jogado dentro doforno próximo e ainda fumegante,pois os fornos nunca sãoapagados. Muito ferido, nãoconseguiu sair, mas gemiaabafado.

O homem juntou-se ao grupo e

na contagem faltava um. ErasmoWagner pressentiu por todo o diaum vestígio negro rondando olocal. Sentia a morte que assolavaaquele lugar. Olhou para o homemque se mantinha intacto, semdemonstrar qualquer sinal do quehavia feito. Dois policiais vão àprocura de Vladimilson. Outrosforam acionados. Uma horadepois o encontraram torrandodentro do forno, mas ainda comvida.

Erasmo Wagner, dois diasdepois, numa oportunidadepreparada por outros presosamigos de Vladimilson, matou ohomem com as próprias mãos. Oesganou até a morte em sua cela.Pela manhã os policiais somenterecolheram seu corpo e nãotocaram no assunto. Consta nolaudo que morreu de paradacardíaca. Não se deve perdertempo com a escória. Pelatamanha habilidade de Erasmo

Wagner em esganar pescoços,especularam que ele poderiaremover o lixo excessivo dacadeia, mas ele disse que não.Que precisaria de motivos paraisso. Motivos pessoais. É umhomem de princípios.

* * *

É madrugada quando ErnestoWesley ouve uma agitação vindado quintal. Jocasta, que costumaestar sempre alerta, porém

silenciosa, está agitada. Ele ouveo impacto de seu corpo correndode um lado para o outro, eufórica.Veste um agasalho pesado e vaiaté o quintal com uma lanterna. Alâmpada dos fundos estáqueimada. Chama pela cachorra enão nota nada de diferente.Jocasta mantém seu semblante deanormalidade e baba pelaslaterais da boca. Ele caminhapelo quintal, verifica ominhocário, a cerca de arame, os

cantos, e não encontra nada.Murmura com a cadela,questionando o porquê de suaagitação. Imagina serem os ratos.Chama a atenção de Jocasta evolta para a cama. ErnestoWesley acorda algumas horasdepois com a claridade do diaperpassando as frestas da janelade seu quarto. Esqueceu ascortinas abertas. No dia anteriortrabalhou poucas horas e foiliberado cedo, mas hoje precisa

cumprir um plantão de quarenta eoito horas.

Tenta não pensar em Ronivon eem tudo o que pode estaracontecendo com ele. Mas nãoconsegue. Isso é tudo em que eletem pensado. Para preparar ocafé, coloca um canecão de águapara ferver. Enquanto a águaferve, toma um rápido banhoquente. Num coador de pano compó de café encaixado na boca dagarrafa térmica, ele despeja a

água fervente. Termina e fecha agarrafa. Veste-se e vai até apadaria próxima de sua casacomprar pão, fatias de mortadelae manteiga.

Volta para casa em seguida esenta-se para tomar seu café damanhã. Liga o rádio numa estaçãode notícias e passa cerca dequinze minutos comendo, sempressa. Já está vestido para ir aotrabalho. A bolsa com seuuniforme e itens pessoais está

sobre o sofá da sala. Para eleserá importante que o dia sejacheio. Precisa se manter bastanteocupado.

Terminado o café da manhã,apanha embaixo da pia o saco deração de Jocasta e abre a portados fundos. A cadela vemcumprimentá-lo. Ele troca a suaágua e deposita um punhado fartode ração em duas tigelas, paraque haja comida suficienteenquanto ficar fora.

Há dois ratos mortos próximosda porta. Ele os embala e oscoloca no lixo. Volta à cozinha eapanha um pacote de sementes degirassol. Num pote plástico,deposita um punhado delas paraJocasta, que imediatamente seassenta para comer sossegada.

Ernesto estranha o fato de asgalinhas de dona Zema estaremciscando em seu quintal. Olhapara o quintal ao lado e tudo estásilencioso. Deserto. Há dias não

vê qualquer movimento do outrolado de sua cerca.

As galinhas, muitas delas,estão ciscando dentro de um vãoaberto em seu quintal.

Estranha, pois as galinhassempre avançaram em direção aominhocário, e próximo dele nãohá nenhuma delas.

Ernesto Wesley aproxima-sedas aves com a intenção deespantá-las. Acredita que possamestar ciscando alguma coisa

morta, como ratos, por exemplo.Algum morto por Jocasta. Mas,enquanto caminha até o localinfestado de galinhas, pensa queJocasta jamais deixaria asgalinhas bicarem seus ratosmortos. É uma cadela possessivae já está acostumada a deixar ofruto de sua vigília ao lado daporta de seus senhores.

Ernesto espanta as galinhas atéchegar ao centro do rebuliço,onde a maioria se encontra. Elas

não recuam, avançam em direçãoao buraco. Ernesto espanta-ascom força e cacarejando elasesvoaçam para as laterais. Orosto, as mãos e parte dos braçosde dona Zema estão emfrangalhos. Os ossos já estão àmostra. Ernesto segura umengulho. Espantado, tentaimaginar o que aconteceu. Olhapara Jocasta, que está comendo assementes de girassol.

Corre o mais rápido que pode

até um telefone público que ficana padaria. Liga para o seuquartel e pede para entrarem emcontato com a polícia. Semdemora, uma equipe de resgatechega à sua casa e em seguida apolícia.

Dona Zema, irritada com osataques às suas galinhas queinsistiam atravessar a cerca dearame para ciscarem nominhocário de Ernesto Wesley,decidiu envenenar Jocasta.

Preparou salsichas com venenode rato em grande quantidade ejogou no quintal para a cadela.Ficou de tocaia por algum tempoesperando que ela comesse, masJocasta apenas cheirou assalsichas e não comeu nenhuma.Dona Zema apanhou o único bifena geladeira, que descongelavapara o almoço do dia seguinte, eo envenenou. Decidiu pular acerca de arame e insistir maiscom a cadela. A madrugada

estava gelada, tanto que punha atémesmo Jocasta para se recolher.Quando a mulher chegou aoquintal, a cadela veio até ela echeirou o que tinha nas mãos.Dona Zema jogou o bife no chão eesperou. Sentiu algumas pontadasno peito e falta de ar. As pernasficaram pesadas e não conseguiamais caminhar. Dona Zemadesmaiou, no que fosse talvez umprincípio de derrame ou coisaque o valha. Caída no quintal,

Jocasta passou toda a madrugadaabrindo uma cova, um buraco quefosse o suficiente para cobrir apequena mulher que ela era. DonaZema ainda estava viva quandofoi enterrada. As salsichas e obife envenenados, a cadelaempurrou com o focinho para oscantos do quintal. Pela manhã,Jocasta estava muito suja de terra,mas tudo o que Ernesto Wesleyfez foi lhe dar um banho com águamorna e chamar sua atenção para

não se sujar tanto.Os policiais chegaram e

liberaram os bombeiros pararetirarem a mulher. Encontraram obife e as salsichas espalhadaspelos cantos do quintal. Levaramo material para um laboratório.Constataram o veneno, e omédico-legista descobriu que amulher foi enterrada viva e que serevirou para tentar sair da covaem que estava. No dia seguinte,Ernesto Wesley começou a

construção de um muro. Issoimplicava suas economias, mascom a ajuda do senhorio ele fariao muro e teria alguns meses dedesconto no aluguel.

* * *

Depois de todo o incidente,Ernesto Wesley foi trabalhar noturno da noite. Ronivon não haviachegado ainda, mas tudo já estavaem ordem no quintal. Não haviavestígios do que acontecera logo

pela manhã. Ele estavapreocupado com o irmão e deixouum bilhete pedindo para queRonivon ligasse assim quechegasse em casa. Deixou umcartão telefônico para a ligaçãojunto do bilhete sobre a mesa dacozinha.

Não houve telefonema, masassim que o sol nasceu houve umsinistro na estrada para atender.Um cavalo havia sido morto faziatrês dias, provavelmente

atropelado por um veículogrande. A estrada tem poucamovimentação, o que facilita afuga de responsáveis poracidentes. Ninguém viu, mas apopulação nas imediaçõescomeçou a sentir o terrível maucheiro. Os pedaços do cavaloestavam espalhados em algunspontos da estrada. Não havianenhum abutre sobrevoando. Fatocurioso é que em Abalurdesnunca se veem abutres. A

população se responsabiliza pordevorar seus mortos e restos,transformando-os em cinzas. Ocavalo apodrecido exalava o piorcheiro que Ernesto Wesley jásentira em sua vida. Era possívelpercebê-lo a um quilômetro dedistância. Quanto mais os homensse aproximavam, mais a carniçaardia em seus sentidos.Protegidos por máscaras, luvas ebotas, eles se espalham pelaestrada removendo com uma pá

os pedaços do animal ecolocando-os em sacos plásticos.Terminado o serviço, estão todosimpregnados. No quartel, todostomam banho para retirarem ocheiro. Talvez o banho sirva paraErnesto Wesley remover tambémalgumas pesadas lembranças, jáque se tratava do mesmo trechoda estrada em que a filha foramorta. Era comum jogar uma rosanaquele local. Mas o banho sóremove o cheiro da carniça, as

lembranças permanecem e eleprecisa conviver com elas, todosos dias. Ele passa mal e vomita,ainda debaixo do chuveiro.Mesmo acostumado a ver tantascoisas terríveis, o que oenfraquece é pensar na filhamorta.

Terminado seu plantão, elevolta para casa. Ronivon aindanão chegou. Anda pelominhocário e remove alguns focosde formigueiro indicados pela

cadela. Depois de tudo arrumado,senta-se no quintal, enrolado numcobertor, e adormece com Jocastaaos seus pés.

Acorda com uma batida noportão. Levanta-se e entra emcasa. Ronivon passa direto para oquarto e não atende aoscumprimentos de Ernesto. Elesenta-se no sofá da sala e esperaque o irmão fale com ele. Depoisde vinte minutos, Ronivon decidefalar. Está visivelmente cansado.

— Como foi lá?— Foi tudo bem.— Tudo bem como?Ronivon tira da mochila uma

garrafa plástica de desinfetantecom capacidade para dois litros,com rótulo cor de violeta efragrância lavanda. Está cheiopela metade com as cinzas doirmão.

— Diga alô ao Vladimilson.Ernesto olha para a garrafa

enquanto Ronivon a coloca em

cima de uma mesinha à sua frente.Ronivon senta-se em umapoltrona e coloca os pés namesinha. Está mais confortável,porém não menos consternado.

— Resolvi tudo por lá mesmo.Não teria feito nenhuma diferençase você tivesse ido. Quando eucheguei lá, ele olhou pra mim,estendeu a mão e teve uma paradacardíaca. Ele queria dizer algumacoisa, mas só gemeu. A únicacoisa que eu disse foi “porra”.

Fiquei muito assustado. Não deupra dizer mais nada. Corri echamei uma enfermeira, mas elesnão conseguiram reanimá-lo.

Ernesto Wesley apanha agarrafa de desinfetante sobre amesinha e coloca em seu colo.

— Consegui arranjar tudo comum pequeno crematório de lámesmo. Um amigo meu que écremador me quebrou o galho epassou o Vlad na frente pra eunão esperar muito e poder voltar

hoje.— E como ele estava?— Muito mal. O Vlad parecia

um pedaço de carvão. Não iaaguentar mesmo. Estavadestruído. Sem rosto. Todoqueimado.

Eles ficam em silêncio.— Quem fez isso com ele?— Disseram que foi uma

discussão com outro preso e tudocomeçou numa partida de futebol.

— Ele nem gostava muito de

futebol.— Foi o que eu pensei.— E o que vão fazer?— Nada. Não vão fazer nada.Ernesto Wesley sacode a

cabeça em sinal positivo epermanece em silêncio olhandopara os seus próprios pés.

— Por que não vão fazernada?

— Soube que outro presomatou o sujeito que matou o Vlad.Era amigo do Vlad e vingou ele.

Foi muita covardia o que oassassino fez com ele. Jogou oVlad dentro do forno da olaria.Antes disso, deu várias facadasnele. Um miserável.

— Acho que precisamosescrever pro preso que vingou oVlad pra agradecer.

— Eu não tinha pensado nisso.Acho que sim.

— Você sabe o nome dele?— Erasmo Wagner. Falta

muito pouco pra terminar de

cumprir a pena, foi o quedisseram.

— Eu vou escrever pra ele.Após dizer isso, Ernesto

Wesley caiu em trevas.Permaneceu imóvel e pensativo.Durante muito tempo recusou ascartas do irmão, mas agora queriasaber mais sobre Vladimilson.Ernesto Wesley abaixou a cabeçae chorou segurando a garrafa dedesinfetante. Ronivon o abraçou eos dois choraram pelo resto do

dia. Choveu muito durante todo otempo.

Naquela noite ele começou aescrever uma carta para ErasmoWagner. Uma longa carta. ErasmoWagner nunca recebeu cartas naprisão, e essa, ele a manteve nobolso. Quando foi solto, visitouErnesto Wesley e Ronivon.Passaram algumas horasconversando sobre Vladimilson erindo de como ele eradesajeitado. Foi assim por toda

uma tarde de verão. Em momentoalgum falaram de desgraças,mesmo cercados e aterrorizadospor elas. As lembranças de doreseram suprimidas pelo que tinhamde melhor, e o melhor que tinhamera a vida, e chegará o momentoem que ela deixará de existir paratodos. Eles celebravam o fato deestarem vivos, mesmo semperceberem. São eles homens queaprenderam a seguir em frente e adirecionar o olhar para o foco

menos miserável possível.

Capítulo 10

Dias depois, Ronivon levaJ.G. até a sua casa. Jocasta oreconhece assim que ele chega,porém mostra-se impertinente eimporta-se apenas em comer assementes de girassol da suatigela. Ernesto Wesley termina dedesidratar três bandejas deminhocas no forno de tijolosrecém-construído no quintal.Havia recebido uma encomendagrande dos colegas do trabalhoque sairiam para pescar no dia de

folga.J.G. anda pelo quintal e

localiza o melhor lugar paraplantar a muda de rosas brancasque traz. Uma muda de uma dasroseiras plantadas por ele nocendrário do crematório. ErnestoWesley e Jocasta juntam-se aeles. J.G., com dificuldade,ajoelha-se e cava um buraco naterra. Ronivon deposita as cinzasde Vladimilson que continuavamguardadas dentro da garrafa de

desinfetante. Ele passa a garrafaao irmão que termina de esvaziá-la. J.G. ajeita a terra e planta amuda de rosas brancas. Os irmãosfazem o sinal da cruz em silêncio.J.G. olha desconfiado paraJocasta que nunca permitiu queele plantasse qualquer coisa noquintal durante o curto tempo emque morou lá. Mas a cadelapermanece quieta e deitadaobservando tudo durante todo otempo.

— Já terminei — diz J.G.levantando-se.

— Agora é só esperar — dizRonivon.

— Daqui a pouco é primavera— fala J.G.

Ernesto Wesley não diz nada,mas coloca algumas estacas depau ao redor da planta paraprotegê-la de Jocasta, até acadela se acostumar com anovidade no quintal. Ronivonapanha um terço que foi da mãe e

o coloca pendurado em uma dasestacas.

Ernesto Wesley sente paz aoconcluir essa tarefa. Todos osdias, ele espiará a roseira e sobseus olhos ela crescerá eflorescerá. Apanha sua bolsa evai para o trabalho. Novamentefaz o sinal da cruz e lê umaoração pregada atrás da porta dasala. Nessa profissão, nunca épossível prever o que podeacontecer e se voltará para casa.

Mas já está acostumado aoimprevisível, à morte e aoshorrores.

* * *

O crematório Colina dosAnjos volta a funcionar. Sobre oque aconteceu noites atrás,ninguém dá um pio. Tornou-seproibido falar do assunto. O novoforno é recebido com entusiasmo.Pela manhã, quando Ronivonatravessa os portões do Colina

dos Anjos, percebe uma mulherparada a poucos metros dedistância. É Marissol, filha dePalmiro. É jovem, mas deaparência cansada. Tem oscabelos pintados de louro, veste-se com roupas apertadas ebotinha roxa de verniz. Estáfumando e parece agitada.

— Você é o Ronivon?— Pois não?— Eu sou a Marissol.Ronivon sente-se zonzo, pois

achava que a mulher nuncaapareceria. Pensava que Marissolpudesse ser fantasia do velhoPalmiro, mas ali estava. Eleestica a mão e a cumprimenta.Convida a mulher para entrar nocrematório e esperá-lo narecepção. Minutos depoisRonivon retorna do subsolo.

— Ele te escreveu muitasvezes nesses oito anos.

— Eu recebi algumas cartas,mas me mudo muito. Não paro em

lugar nenhum.— Ele esperava todos os dias

você dar notícia.Ela permanece calada e

acende outro cigarro.— Ele te deixou tudo o que

tinha de valor. Está aqui.Ronivon entrega o saquinho

com os dentes de ouro. Elaconfere o conteúdo.

— Estão todos aí. Pode contarse quiser.

Ela faz que não com a cabeça.

— Tem um bom dinheiro aí.Ele tinha uma fortuna na boca.

Ela ri timidamente. Nervosa.— Me deixou os dentes. Eu

nunca pensei que pudesse serisso.

— Ele só falava de você e queos dentes eram seus quandomorresse.

Ela coloca o saquinho dentroda bolsa, agradece e perguntaonde ele está. Ronivon apontapara a goiabeira e diz que está

enterrado aos pés da árvore.— Vocês torraram ele? — a

mulher pergunta com certa ironia.— A gente cremou ele, sim.— Eu já imaginava. Nessa

porcaria de lugar tudo terminadesse jeito. Tudo vira cinza.

Ela se cala. Ronivonpermanece à sua frente,esperando que ela fume mais umpouco.

— É o lugar mais triste queconheci na vida — ela diz.

— Eu nunca conheci outrolugar — responde Ronivon,consternado.

Ela termina o cigarro e joga aponta no chão. Diz obrigada aRonivon e vira-se sobre asbotinhas de verniz. Marissolsegue até a árvore onde o pai estáenterrado. Ronivon cumprimenta-a com um aceno de cabeça e seabaixa para apanhar a ponta docigarro. Geverson aproxima-sedele ao perceber que a mulher se

afastou e os dois ficam parados,lado a lado, observando-a sedistanciar até a árvore.

— É a filha do Palmiro, né?— Sim. Veio buscar os dentes.— Boa bisca essa aí. O que

ela disse?— Não muito.Marissol fica algum tempo

olhando para a árvore. Fala umpouco e chora um pouco também.Tudo em Marissol é um pouco.Depois atravessa o portão do

Colina dos Anjos e desaparece aovirar à direita.

* * *

Ernesto Wesley recolhe osmortos dos escombrosincendiados após retalhar o fogocom jatos d’água. Foi um dialongo e o frio não deu trégua.Choveu em momentosintercalados e nem mesmo issoarrefeceu o fogo, pois estequando desperta está pronto para

consumir sem cessar. A chuva decinzas foi contínua por um longotempo, e, assim como a nevebranca e delicada queembranquece a paisagem e a tornafeérica, dá-se o oposto com oderramamento de cinzas, quetorna tudo sombrio e devastaqualquer resquício de esperança.O fogo começou numa fábrica detecidos a cerca de vintequilômetros do centro deAbalurdes e tomou conta de todo

um quarteirão. Residências,estabelecimentos comerciais,escolas, tudo foi sendo devoradoem lambidas espalhadas peloforte vento. A volumosa fumaçanegra e espessa feito um muro deconcreto foi vista de muito longee, misturada ao vermelho do fogo,criou imagens distorcidas no arque sinalizavam fúria, desesperoe morte.

Depois de controlar o fogo, épreciso ter cuidado com o que

restou, ou seja, os escombros.Estes desabam a todo instante eauxiliam na destruição, pois, àsvezes, alguém que escapa do fogopode ser interditado pela quedade estruturas imensas que oesmaga.

É uma profissão complicadaessa. Todos os dias ErnestoWesley está disposto a se lançarpara a morte; não para morrer,mas para se salvar. Assim comoPalmiro entendeu que os seus

dentes eram um bem precioso,Ernesto Wesley também sabe que,no fim, tudo o que resta são osdentes, e que devem ser cuidadospara que, se um dia não escapardo fogo que enfrentacorajosamente, não se torneapenas carvão animal.

Este e-book foi desenvolvido em formatoePub

pela Distribuidora Record de Serviços deImprensa S. A.