cartilhas/impressos: perspectivas teÓrico-metodolÓgicas de anÁlise do texto e do paratexto e suas...

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3107 CARTILHAS/IMPRESSOS: PERSPECTIVAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS DE ANÁLISE DO TEXTO E DO PARATEXTO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A HISTÓRIA DA ALFABETIZAÇÃO E DO LIVRO Isabel Cristina Alves da Silva Frade Francisca Izabel Pereira Maciel Universidade Federal de Minas Gerais RESUMO Na realização da pesquisa “Cartilhas escolares: ideários, práticas pedagógicas e editoriais – MG/MT/RS -1834-1997” temos tido acesso a um conjunto de livros pertencentes a acervos do Centro de Referência do Professor da SEE/MG e do Centro do Documentação do CEALE/FAE/UFMG, que totalizam 186 cartilhas/pré-livros e 82 manuais. Nosso objetivo geral tem sido contribuir para a construção de uma história da alfabetização e do livro no Brasil e em Minas Gerais, buscando analisar aspectos metodológicos e editoriais. Especialmente para esta comunicação pretendemos explorar algumas problemáticas teórico metodológicas envolvidas em pesquisas históricas sobre livro didático de alfabetização. De um conjunto amplo já repertoriado, selecionamos diversos livros de autores brasileiros, compreendidos entre o final do século XIX até a década de 80 do século XX, que apresentam indícios relevantes que contribuem na análise. Afirmamos que, para investigar os livros didáticos precisamos de algumas categorias conceituais: umas tomadas da história da educação e da alfabetização, outras tomadas da história do livro e da leitura. Compreendemos, como vários historiadores do livro e da leitura (Roger Chartier) e, especialmente do livro didático (Alain Chopin) , que o livro é produto de diversas materialidades e pode ser visto em duas perspectivas: como fonte e como objeto de pesquisa. Tomando-o como uma fonte para uma análise da história da alfabetização e analisando alguns dados nele contidos , tais como instruções dadas ao professor, nomes de autores, configurações textuais das lições, ilustrações, por exemplo, podemos enveredar pelas tendências metodológicas de um período e mesmo por questões ideológicas que ele carrega. E isto se constitui num dos objetivos da pesquisa. Por outro lado, se tomamos o livro como objeto físico que precisa obedecer certas regras para sua fabricação e entendemos que outros aspectos de sua materialidade se constituem em protocolo de uso, podemos ver, nos mesmos dados, outros fenômenos que não tem sido abordados em pesquisas feitas sobre os impressos destinados à alfabetização inicial. Assim, precisamos enxergar determinadas materialidades que conduzem a uma leitura e a um uso do livro, que não são apenas da ordem de disputas metodológicas entre autores. Este é o segundo objetivo. Para análise dos impressos valemo-nos de pressupostos teórico-metodológicos relacionados aos estudos dos livros, sobretudo alguns enfoques da área denominada bibliografia material ou o que se denomina uma “sociologia de textos”. Reconhecemos, como Roger Chartier e de Donald Makenzie que as formas comandam os sentidos e que há diferentes maneiras de relacionar, no texto do livro didático, elementos relativos à configuração textual (mise en texte) e elementos gráfico-editoriais que extrapolam as escolhas textuais e configuram a mise-en-page. Tudo isto se organiza num conjunto maior que denominamos mise-en-livre, produto de diferentes materialidades, que apresenta protocolos de leitura e diversos textos introdutórios para quem vai fazer uso do livro, posicionando o leitor/usuário num conjunto de instituições (gráficas, editoras, instituições escolares de formação e de ensino), num conjunto de autores presentes no livro didático (editor, “autor” do livro, ilustradores, gráficos, impressores), numa rede intelectual (autores, professores, apresentadores, comentadores) que demonstram uma extensa rede de participação de pelo menos dois campos de trabalho: o da pedagogia e o da produção editorial. Desta forma, o trabalho analisa diferentes textos, gêneros e outros recursos presentes nos livros e manuais a eles anexados , destacando: . dados paratextuais (capas, cartas, aforismos, propagandas, contratos autorais). elementos lingüísticos de

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CARTILHAS/IMPRESSOS: PERSPECTIVAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS DEANÁLISE DO TEXTO E DO PARATEXTO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA AHISTÓRIA DA ALFABETIZAÇÃO E DO LIVRO

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    CARTILHAS/IMPRESSOS: PERSPECTIVAS TERICO-METODOLGICAS DE ANLISE DO TEXTO E DO PARATEXTO E SUAS CONTRIBUIES PARA A

    HISTRIA DA ALFABETIZAO E DO LIVRO

    Isabel Cristina Alves da Silva Frade

    Francisca Izabel Pereira Maciel

    Universidade Federal de Minas Gerais

    RESUMO Na realizao da pesquisa Cartilhas escolares: iderios, prticas pedaggicas e editoriais MG/MT/RS -1834-1997 temos tido acesso a um conjunto de livros pertencentes a acervos do Centro de Referncia do Professor da SEE/MG e do Centro do Documentao do CEALE/FAE/UFMG, que totalizam 186 cartilhas/pr-livros e 82 manuais. Nosso objetivo geral tem sido contribuir para a construo de uma histria da alfabetizao e do livro no Brasil e em Minas Gerais, buscando analisar aspectos metodolgicos e editoriais. Especialmente para esta comunicao pretendemos explorar algumas problemticas terico metodolgicas envolvidas em pesquisas histricas sobre livro didtico de alfabetizao. De um conjunto amplo j repertoriado, selecionamos diversos livros de autores brasileiros, compreendidos entre o final do sculo XIX at a dcada de 80 do sculo XX, que apresentam indcios relevantes que contribuem na anlise. Afirmamos que, para investigar os livros didticos precisamos de algumas categorias conceituais: umas tomadas da histria da educao e da alfabetizao, outras tomadas da histria do livro e da leitura. Compreendemos, como vrios historiadores do livro e da leitura (Roger Chartier) e, especialmente do livro didtico (Alain Chopin) , que o livro produto de diversas materialidades e pode ser visto em duas perspectivas: como fonte e como objeto de pesquisa. Tomando-o como uma fonte para uma anlise da histria da alfabetizao e analisando alguns dados nele contidos , tais como instrues dadas ao professor, nomes de autores, configuraes textuais das lies, ilustraes, por exemplo, podemos enveredar pelas tendncias metodolgicas de um perodo e mesmo por questes ideolgicas que ele carrega. E isto se constitui num dos objetivos da pesquisa. Por outro lado, se tomamos o livro como objeto fsico que precisa obedecer certas regras para sua fabricao e entendemos que outros aspectos de sua materialidade se constituem em protocolo de uso, podemos ver, nos mesmos dados, outros fenmenos que no tem sido abordados em pesquisas feitas sobre os impressos destinados alfabetizao inicial. Assim, precisamos enxergar determinadas materialidades que conduzem a uma leitura e a um uso do livro, que no so apenas da ordem de disputas metodolgicas entre autores. Este o segundo objetivo. Para anlise dos impressos valemo-nos de pressupostos terico-metodolgicos relacionados aos estudos dos livros, sobretudo alguns enfoques da rea denominada bibliografia material ou o que se denomina uma sociologia de textos. Reconhecemos, como Roger Chartier e de Donald Makenzie que as formas comandam os sentidos e que h diferentes maneiras de relacionar, no texto do livro didtico, elementos relativos configurao textual (mise en texte) e elementos grfico-editoriais que extrapolam as escolhas textuais e configuram a mise-en-page. Tudo isto se organiza num conjunto maior que denominamos mise-en-livre, produto de diferentes materialidades, que apresenta protocolos de leitura e diversos textos introdutrios para quem vai fazer uso do livro, posicionando o leitor/usurio num conjunto de instituies (grficas, editoras, instituies escolares de formao e de ensino), num conjunto de autores presentes no livro didtico (editor, autor do livro, ilustradores, grficos, impressores), numa rede intelectual (autores, professores, apresentadores, comentadores) que demonstram uma extensa rede de participao de pelo menos dois campos de trabalho: o da pedagogia e o da produo editorial. Desta forma, o trabalho analisa diferentes textos, gneros e outros recursos presentes nos livros e manuais a eles anexados , destacando: . dados paratextuais (capas, cartas, aforismos, propagandas, contratos autorais). elementos lingsticos de

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    alguns textos propriamente ditos ( anlise de algumas lies). pistas que permitem verificar possveis relaes entre ilustrao e texto, entre manuais dirigidos ao professor e o contedo apreendido no interior dos livros, entre marcas grficas e cultura escolar.. algumas pistas de anlise advindas da comparao de mais de uma edio de um mesmo livro. . possveis contribuies de anlises comparativas de alguns livros Os resultados permitem concluir que mtodos e iderios de alfabetizao podem se constituir num foco privilegiado para pensar os livros didticos voltados para o ensino inicial da leitura e da escrita, mas estes mtodos no existem sozinhos e dialogam com mtodos de ensino em geral, com frmulas editoriais, com recursos tipogrficos e grficos e com a posio de autores e editores no mercado editorial e intelectual. Mtodos de alfabetizao tambm possuem realizaes diversas. Por outro lado, livros no so s textos e muitas das anlises feitas sobre o seu contedo se concentram na esfera metodolgica, lingstica ou ideolgica, sem considerar um conjunto muito mais complexo que seu interior e exterior revelam. Finalmente, ao mesmo tempo em que possuem singularidades que os destacam, os livros didticos tambm se nutrem de modelos grfico-editoriais existentes nos repertrios de livros que circulam na sociedade: tanto para rupturas, como para continuidades. Assim pedagogia da alfabetizao, cultura escrita e produo editorial se cruzam, de maneira complexa, nas pginas de um mesmo livro didtico.

    TRABALHO COMPLETO

    1 - Introduo Na realizao da pesquisa Cartilhas escolares: iderios, prticas pedaggicas e editoriais

    MG/MT/RS -1834-1997 temos tido acesso a um conjunto de livros pertencentes a acervos do Centro de Referncia do Professor da SEE/MG e do Centro do Documentao do CEALE/FAE/UFMG, que totalizam 186 cartilhas/pr-livros e 82 manuais.

    Nosso objetivo geral tem sido contribuir para a construo de uma histria da alfabetizao e do livro no Brasil e em Minas Gerais, buscando equilibrar, na anlise, aspectos metodolgicos e editoriais

    Especialmente para este trabalho pretendemos explorar algumas problemticas terico-

    metodolgicas envolvidas em pesquisas histricas sobre livro didtico de alfabetizao. De um conjunto amplo j repertoriado, selecionamos diversos livros de autores brasileiros, compreendidos entre o final do sculo XIX at a dcada de 80 do sculo XX, que apresentam indcios relevantes.

    Afirmamos que para investigar os livros didticos precisamos de algumas categorias

    conceituais: umas tomadas da histria da educao e da alfabetizao, outras tomadas da histria do livro e da leitura. Compreendemos, como vrios historiadores do livro e da leitura (Roger Chartier) e, especialmente do livro didtico (Alain Chopin) , que o livro produto de diversas materialidades e pode ser visto em duas perspectivas: como fonte e como objeto de pesquisa. Tomando-o como uma fonte para uma anlise da histria da alfabetizao e analisando alguns dados nele contidos , tais como instrues dadas ao professor, nomes de autores, configuraes textuais das lies, ilustraes, por exemplo, podemos enveredar pelas tendncias metodolgicas de um perodo e mesmo por questes ideolgicas que ele carrega. E isto se constitui num dos objetivos da pesquisa. Por outro lado, se tomamos o livro como objeto fsico que precisa obedecer certas regras para sua fabricao e entendemos que outros aspectos de sua materialidade se constituem em protocolo de uso, podemos ver, nos mesmos dados, outros fenmenos que no tem sido abordados em pesquisas feitas sobre os impressos destinados alfabetizao inicial. Assim, precisamos enxergar determinadas materialidades que conduzem a uma leitura e a um uso do livro, que no apenas da ordem de disputas metodolgicas entre autores.

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    Desta forma, o trabalho aborda diferentes textos, gneros e outros recursos presentes nos livros e manuais a eles anexados , destacando:

    . dados paratextuais (capas, cartas, aforismos, propagandas, contratos autorais)

    . elementos lingsticos de alguns textos propriamente ditos pela anlise de algumas lies,

    . pistas que permitem verificar possveis relaes entre ilustrao e texto, entre manuais dirigidos ao professor e o contedo apreendido no interior dos livros, entre marcas grficas e cultura escolar

    . algumas pistas de anlise quando se trabalha com a comparao de mais de uma edio de um mesmo livro

    2 - O estudo dos impressos: algumas possibilidades metodolgicas relacionadas ao estudo do paratexto e do texto

    Para anlise dos impressos valemo-nos de pressupostos terico-metodolgicos relacionados aos estudos dos livros, sobretudo alguns enfoques da rea denominada bibliografia material ou o que se denomina uma sociologia de textos. Reconhecemos, como Roger Chartier e de Donald Makenzie que as formas comandam os sentidos e que h diferentes maneiras de relacionar, no texto do livro didtico, elementos relativos configurao textual (mise en texte) e elementos grfico-editoriais que extrapolam as escolhas textuais e configuram a mise-en-page. Tudo isto se organiza num conjunto maior que denominamos mise-en-livre, produto de diferentes materialidades, que apresenta protocolos de leitura e diversos textos introdutrios para quem vai fazer uso do livro, posicionando o leitor/usurio num conjunto de instituies ( grficas, editoras, instituies escolares de formao e de ensino), num conjunto de autores presentes no livro didtico (editor, autor do livro, ilustradores, grficos, impressores), numa rede intelectual (autores, professores, apresentadores, comentadores) que demonstram uma extensa rede de participao de pelo menos dois campos de trabalho: o da pedagogia e o da produo editorial.

    Buscamos em Roger Chartier a inspirao para realizar algumas anlises da materialidade, mas com a licena de pens-la do ponto de vista pedaggico. Roger Chartier (l996) apresenta uma distino entre procedimentos da colocao em textos (mise en texte) e procedimentos da colocao em livro (mise en livre). A esse respeito, vale recuperar suas posies quanto a quadros tericos e possibilidades de tratamento:

    Os procedimentos de colocar em texto so constitudos pelo conjunto dos

    procedimentos retricos, dos comandos que so dados ao leitor, dos meios pelos quais o

    texto construdo, dos elementos que devem conduzir convico ou ao prazer. Existe, de

    outra parte, os procedimentos de colocar em livro, que podem apropriar-se diferentemente

    do mesmo texto. Eles variam historicamente e tambm em funo de projetos editoriais que

    visam usos ou leituras diferentes. Portanto, sobre um mesmo texto, que tem suas prprias

    regras de ser como texto, os procedimentos de ser em livro podem variar de maneira

    extremamente forte. A pergunta histrica deve atuar justamente sobre esses dois registros.

    Um remete para o lado da anlise e da pragmtica dos textos, da anlise das formas

    retricas, do estudo literrio. O outro remete para um saber mais tcnico, o da histria do

    livro, da bibliografia material, da histria da tipografia. Creio que de seu cruzamento

    poder nascer uma reinterrogao do objeto/ livro em funo dos problemas que

    colocamos hoje. (p. 251)

    Trabalhando dados dos impressos constantes no instrumento ficha analtica que

    elaboramos, podemos dividir no impresso denominado cartilha ou pr-livro em pelo menos duas dimenses: paratexto e texto.

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    2.1 - Dados do paratexto

    Numa anlise do paratexto, que pode ser definido como protocolos textuais que acompanham os livros e que antecedem o texto principal do autor ( dedicatrias, apresentaes, normas de uso) e mesmo o prolongam em extenso ( comentrios finais (posfcios, quarta capa, etc.) e que posicionam o livro no plano editorial (autor, editor, local, ano, ilustrador, nmeros de edio, tiragem, preo, etc.) temos trabalhado com dados bibliogrficos que do conta de alguns aspectos da materialidade envolvida na produo/circulao dos textos. Dados constantes na segunda ou quarta capa nos indiciam para produo da uma editora ou mesmo do prprio autor e permitem verificar tanto uma forma de produo/divulgao coordenada, como o dilogo que se estabelece com a produo de um perodo. Neste item, apresentaremos dois exemplos: os dados encontrados nos livros de um autor mineiro, Arthur Joviano e de um autor paulista, Arnaldo Barreto, que produziram seus livros no incio do sc. XX. Estes livros foram escolhidos pela riqueza de dados constantes no prprio impresso e por haverem circulado em Minas Gerais no mesmo perodo.

    No livro Primeira Leitura, de Arthur Joviano, editado pela Francisco Alves, em 1945, aparece nas pginas iniciais uma listagem de livros de sua autoria, com a observao de que so aprovados pelo conselho superior de Instruo Pblica de Minas Gerais e pela Diretoria de Instruo Pblica da Capital Federal. Na anlise dos ttulos encontraremos informaes adicionais sobre colees graduadas envolvendo o ensino de leitura produzidas pelo mesmo autor e sobre cadernos destinados ao treino caligrfico, contedo do ensino inicial da escrita que demandou a criao de materiais especficos naquele perodo.

    No comum se apresentarem dados, no paratexto, sobre direitos autorais, mas no livro Primeira Leitura Methodo para ensinar a ler, 3a ed. editado pela Imprensa Oficial, deste mesmo autor, constam cpias de petio e registros de direitos autorais que informam sobre prticas ligadas a uma profissionalizao e legalizao de direitos de autor, que o prprio Arthur Joviano busca publicizar .

    De outra forma, na edio de 1945, o livro de Arthur Joviano traz uma dedicatria que indica para mais de um destinatrio e talvez mais de uma instituio que poder utilizar seu livro: a todos quantos, na escola e no lar, combatem o analfabetismo

    Tambm pelo paratexto possvel constatar o peso da interveno do Estado na adeso e circulao de determinado livro. Temos, por exemplo, dados relativos edio do Primeira Leitura Methodo para ensinar a ler de Arthur Joviano, publicado pela Imprensa Oficial, em 1910, que indicam a tutela do estado na produo e ainda consta uma observao relativa primeira edio A primeira edio, de 20.000 exemplares, desta obra, foi mandada imprimir, especialmente, pelo governo de Minas Gerais

    Uma carta de Arthur Joviano anexada s pginas iniciais de seu Primeira Leitura, talvez para agregar maior prestgio obra, demonstra que o autor estava respondendo a demandas da reforma Joo Pinheiro, de 1906. A correspondncia deixa a entender que sua contribuio foi solicitada e que est prestando um servio s escolas, pois estas no dispem de material adequado ao novo processo de ensino da leitura pela palavra.

    Ainda no paratexto, buscamos registrar uma srie de informaes que antecedem ou finalizam o livro e que servem como protocolo de leitura para professores (capas, prefcios, dedicatrias, dados biogrficos do autor, aforismos, citaes, chancela para publicao ou comentrios sobre adoo oficial, etc.) e que permitem verificar o nvel de prestgio de uma obra,

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    seus co-usurios/divulgadores do iderio e do uso e tambm a possvel rede de intelectuais ou instituies oficiais que o aprovam e incentivam a sua utilizao.

    Pode-se observar, nas pginas introdutrias da Cartilha Analytica, de Arnaldo Barreto, um conjunto de informaes que do conta de uma rede da qual ele fazia parte:

    Ao OSCAR THOMPSON, o mais dedicado propagandista, no Estado de So

    Paulo, do ensino da leitura pelo mtodo analytico

    -e-

    Ao THEODORO MORAES

    O seu mais fino executor,

    Com preito da mais justa homenagem

    Offerece o

    ARNALDO

    Na segunda capa ainda encontramos referncias de acordos possveis entre estado e autor : Cartilha Analytica, baseada sobre rigorosos princpios pedaggicos por Arnaldo de Oliveira Barreto. 22

    a ed. Completamente refundida, e posta de acrdo com as instruces

    recommendadas pela Directoria Geral do Ensino Pblico de So Paulo

    Alm disso determinadas informaes podem se referir a matrizes epistemolgicas que estiveram na construo de determinado pensamento pedaggico. A pgina de rosto da Cartilha Analytica, de Arnaldo Barreto, editada em 1923, apresenta de entrada os Aphorismos de Pestalozzi: - cultivae as faculdades em sua ordem natural; formae primeiro o esprito, para instruil-o depois. Primeiro a syntese, depois a analyse. No a ordem do assunto, mas a ordem da natureza

    Este aforismo coerente com a proposta pedaggica encontrada nas pginas iniciais de seu livro. Abaixo, eis o texto que inicia o dilogo do autor com os professores, que anuncia brevemente posies tericas presentes no livro, que podem ser incorporadas pelos professores e realizadas externamente e anteriormente ao trabalho com a cartilha propriamente dita:

    Provocar, em palestra, a observao dos alumnos sobre um objecto ou estampa

    qualquer, levando-os a enunciarem sentenas ( cinco ou seis nas primeiras lies)

    relacionadas umas com as outras, de modo que o objeto lgico de uma seja empregado

    com o sujeito da sentena immediata, formando o todo uma sentena descritiva do objeto

    ou estampa que sirva de assumpto da lio. Deve-se esforar para que as sentenas

    correspondam a natural vivacidade do esprito infantil. Demais, preciso ter-se em vista os

    dois fins da educao: o disciplinar e o instrutivo. Sob o aspecto disciplinar, cada

    disciplina ( como a prpria palavra o est significando) tem por objeto, alm de treinar as

    faculdades mentaes, acostumar o alumno a observar, a raciocinar e a exprimir com clareza

    as suas idias. (p.95 Arnaldo Barreto)

    O trecho parece bastante compatvel com a divulgao do mtodo de ensino intuitivo ou

    mtodo de lies de coisas, criado no sculo XIX, que teve como grande divulgador Calkins, autor Lies de Cousas, tambm publicado pela Francisco Alves e circulao comprovada em MG.

    Por outro lado, podemos tambm buscar, no paratexto, o iderio pedaggico e os

    pressupostos metodolgicos. Para tanto buscamos no prefcio, na bibliografia indicada, na

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    apresentao ou nas instrues dadas em manual anexado ao volume do aluno ou parte, e tambm no prprio corpo do livro, as tomadas de posio quanto aos mtodos de ensino e de alfabetizao.

    No caso da descoberta de posies metodolgicas existentes no miolo do livro, difcil descrever posies metodolgicas que no sejam inicialmente aquelas expressadas claramente pelo prprio autor, tanto pela diversidade verificada na estrutura do livro, como por certos desencontros entre o que se anuncia e o que se faz. Assim, se cruzarmos as intenes ou esclarecimentos quanto ao uso, anunciados no manual do professor, com o prprio livro, evitamos construir uma viso distorcida da posio metodolgica que se defende. Isto tambm porque descobrimos que h manuais que indicam uma srie de procedimentos pedaggicos que so anteriores ao uso do livro e compreendemos realmente como se alfabetiza, de fato, pelo recurso a estas informaes (conforme, por exemplo, a Cartilha Analytica, de Arnaldo Barreto, edio de 1923). Um exemplo interessante encontrado em Arnaldo Barreto que apresenta com instrues sobre o trabalho que deveria vir antes do trabalho com o livro que explicita, de forma muito clara, a necessidade de construo de determinadas competncias a serem construdas previamente e que permitiria a sua utilizao.

    Pela leitura do manual que acompanha a Cartilha Analytica de 1923 constata-se que eram propostos quatro meses de trabalho no quadro-negro antes da entrega do livro impresso aos

    alunos. O trabalho do professor consistia em incentivar a observao mediante o uso de estampas

    ou objetos presentes na sua coleo particular1, que se transformavam em textos de pelo menos

    seis ou cinco frases encadeadas, que viriam como respostas a perguntas dirigidas pelo professor a

    respeito das gravuras. As crianas decorariam as sentenas e as leriam de baixo para cima e de

    cima para baixo, reproduzindo oralmente o texto inteiro. Com a mesma estampa haveria uma

    ampliao das frases a cada nova lio (com descries mais refinadas dos personagens, suas

    caractersticas e aes). Esta estratgia de produzir textos com as crianas em sala de aula

    objetivava que lessem primeiro o seu texto, para depois ler textos alheios. (Frade, 2004)

    Apenas na 10a lio, feita ainda no quadro-negro, que se destacariam as frases que,

    colocadas em colunas verticais e analisadas em componentes como palavras, possibilitariam a construo de novas frases. Sugere-se que, ao enunciar cada palavra o professor v indagando: em quantas vezes se profere esta palavra e com que slaba comea?

    Constata-se que o autor sugere que sejam abordadas todas as consoantes e que se s ento se passe a ler os textos escritos por outrem, de onde sero selecionadas palavras que sero desmembradas em slabas que formaro outras palavras novas ( com o conselho de que esta diviso em slabas no atrapalhe a leitura corrente). Segue-se a sugesto, no manual, de que se trabalhe rimas, que se faam comutaes de letras iniciais de palavras como janela, canela, panela , assim como de letras no meio e final de palavras, para que o aluno perceba diferenas no comeo, meio ou final de palavras

    Historiadores da leitura vo dizer que as prticas usuais dos professores no deixam rastros facilmente. Assim, podemos dizer que as instrues do autor indicam para prticas que esto fora do livro. Pelas poucas pginas de instrues ao professor dadas por Arnaldo Barreto e mesmo com a presena de exerccios na edio de 1923, vemos que no corpo livro, em si, so mais opacas as pistas sobre como alfabetizar. E assim terminam suas prelees:

    Terminados estes exerccios, que devem ocupar o professor durante quatro mezes, passe-

    se para o Meu Livro ou outro qualquer, compondo-se com os alumnos, como se fez no

    primeiro passo, cada lio pela estampa respectiva e intercalando-se na historieta todas as

    1 Ou talvez de um repertrio de imagens j definido nas instrues do governo de So Paulo, conforme comentrio e sugesto de que sejam utilizadas nas primeiras lies assumpto da lio a estampa das INSTRUES, isto , uma menina com a boneca no clo (p. 101)

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    sentenas impressas no livro. Tambm no mister seguir lio por lio das que

    contiverem o livro empregado, e sim somente aquelas cujas estampas se mostrarem mais

    suggestivas. Quando faltarem dois mezes para finalizar o curso escolar, deve-se adoptar

    francamente um Primeiro Livro de Leitura.

    Observao: quer neste livro, porm, como no segundo, no se deve abandonar, embora

    commedidamente, a analyse de palavras, de acordo com os passos 2o, 3

    o ,4

    o e 5

    o processo

    adoptado nestas instrues. P. 100

    A respeito dos comentrios do autor, dois pontos podem ser problematizados: a meno a um livro que no sabemos ser ou no da mesma editora. Isto indica uma incipincia de livros, o que sugere no uma concorrncia entre ttulos, mas o recurso a outras cartilhas. Outro fato marcante no discurso do autor que a abordagem da anlise no deve ser abandonada no decorrer do uso do livro ( embora os procedimentos referidos a esta anlise no apaream com tantas distines no corpo do impresso, mas sobretudo nas instrues). Isto indicia para um uso diversificado de textos, para alm dos publicados pela editora e pelo autor? Supe-se, de outra forma, que o que se faz antes do livro e no apenas com ele, que alfabetiza as crianas? Estes dados so importantes para verificarmos as ltimas pistas de uso que somem nas edies posteriores que analisamos, j que nestes exemplares, so tambm retiradas as instrues do autor aos professores.

    Mas trazendo mais desafios para a anlise do impresso e da sua forma ideal de uso, encontramos um problema: nem sempre houve manuais anexados aos livros, nem sempre conseguimos exemplares de manuais e algumas instrues de uso so exguas no paratexto, sobretudo no incio do sculo XX ( 10 pginas para o livro de Arthur Joviano e 12 pginas para o livro de Arnaldo Barreto). Sobre este ltimo, encontramos curiosamente no interior das primeiras pginas das instrues a assinatura de trs autores paulistas: Mariano de Oliveira, Ramon Rocca Dordal e Arnaldo Barreto. Ao contrrio das cartilhas do incio do sculo, encontramos instrues muito minuciosas a partir do manual dO Livro de Lili, por exemplo, que se apresenta em volume separado do livro com 101 pginas. Isso no prerrogativa dos mtodos globais pois tambm encontramos manuais volumosos em diferentes mtodos e autores das dcadas de 70/80.

    2.2 - Dados do texto

    Voltemo-nos agora, mais detalhadamente, para o texto propriamente dito existente no corpo/miolo dos livros de alfabetizao. O texto final de uma pgina ou de um conjunto de pginas pode ser compreendido no sentido do gnero textual, mas tambm como resultado de um jogo entre forma (a mise-en-page) e contedo, este ltimo distribudo entre as configuraes textuais de vrios tipos: nos textos principais, nos exerccios, nas mensagens que aparentemente no combinam com um ordenamento lingstico ou metodolgico, mas que esto ali para serem lidas, como aforismos e expresses ou frases de cunho moral ou cvico que podemos encontrar em algumas cartilhas (Frade & Maciel, 2003). Finalmente, podemos ampliar esta noo de texto para as configuraes imagticas e grficas que do uma visualidade pgina.

    Esta visualidade acrescida de recursos do mundo editorial que nos escapam, mas que nos incitam a compreender o porqu de sua existncia numa pgina, uma vez que trazem em si modos de olhar e modos de usar.

    A anlise de cada um desses elementos ou de sua relao permite compreender que o resultado final fruto dos recursos expressivos provenientes do processo de fabricao do livro e tambm da sua proposta didtica. Assim Pedagogia cruza-se com edio. E a Pedagogia da

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    alfabetizao que marca a diferena entre livros que visam uma aquisio inicial da escrita e da leitura, com o livros de leitura que visam o desenvolvimento da leitura.

    Dessa forma e contando com tantos recursos preciso ter cautela com uma anlise apenas ideolgica das imagens e contedos. Por exemplo, realizamos um estudo que explorou contedos visuais e textuais que evidenciassem a relao entre uma cartilha e as influncias do civismo e nacionalismo (Frade&Maciel, 2003). Para tanto, fizemos tambm uma anlise comparativa de vrios ttulos, para verificar tanto fenmenos especficos da cartilha, como outros especficos de momentos histricos em que houve maior controle de determinados governos em torno do livro didtico. Numa anlise de diversos livros, foi possvel verificar determinados fenmenos relativos ao contedo civismo e nacionalismo em pouqussimas lies principais que visavam ensinar a ler e mais em textos aparentemente extras/suplementares (mximas) cujo objetivo no era apenas decifrar.

    Assim para a anlise do contedo textual e do contedo visual, no podemos nos esquecer que se trata de um livro que ocupa uma posio de intervalo: a maioria dos livros de alfabetizao, sobretudo os de marcha sinttica, no so ainda um livro para leitura de outros contedos alm daqueles que vo sistematizar os sistema de escrita, mas so livros que, antes de mais nada, preparam a leitura. Este ltimo objetivo nos obriga a ter tambm uma especificidade de anlise desse gnero.

    2.2.1. Alguns textos de mtodos analticos: qual a lgica do gnero?

    Para a compreenso de caractersticas do impresso destinado ao ensino das primeiras letras precisamos sempre relacion-lo aos mtodos de alfabetizao divulgados em determinada poca. Alm disso, a compreenso do papel da imagem e de certos gneros textuais existentes melhor alcanada quando tambm relacionamos mtodos de alfabetizao com a divulgao de mtodos de ensino, em geral. Por exemplo, sabemos que o papel da imagem e do gnero textual em cartilhas analticas e sintticas do incio do sculo XX diferenciado. Podemos compreender o que distingue o gnero textual presente na Cartilha Analytica de Arnaldo Barreto dos textos de outros livros relacionados aos mtodos sintticos, e mesmo em relao a outros livros do mtodos globais, quando pesquisamos o mtodo intuitivo, perspectiva epistemolgica que extrapola a alfabetizao. Esta perspectiva pode condicionar muito o modelo de texto, conforme as lies de diversos pre-livros que adotam a descrio como tipo. Alm da descrio como procedimento textual e cognitivo, alguns textos ainda incentivam o exerccio do sentido da viso no conjunto de disposies a serem construdas no leitor iniciante. Isto se torna mais forte ainda quando conformam o texto gravura:

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    Gravura 1 - Lio da Cartilha Analytica, de Arnaldo Barreto, edio de 1923.

    1. Eu vejo um menino 2. Este menino chama-se Paulo 3. Paulo tem uma bola. 4. Vocs esto vendo a bola? A bola azul.

    Gravura 2 - Lio de O livro de Lili de Anita Fonseca, edio de 1961

    Por outro lado, poderamos dizer que outros pre-livros referidos aos mtodos globais de historietas esto livres da influncia deste gnero textual descritivo to singular ? Suas escolhas

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    textuais permitem dizer que eles podem entrar de uma vez na narrativa literria e em suas frmulas tpicas , conforme texto inicial da histria dos Trs Porquinhos, do livro As mais Belas Histrias, de Lcia Casasanta?

    Era uma vez ...

    Era uma vez...

    Trs porquinhos.

    Palhao, Pedrico e Palito

    Quando se analisa a estrutura textual de outras lies percebe-se que, se o texto se aproxima de uma estrutura textual presente histrias infantis, com os verbos conjugados no pretrito e com uso de operadores como a palavra mas, no conjunto das lies do livro, assim como na comparao com outros de uma mesma tendncia, como O Livro de Lili, , aparecem textos que ficam no meio do caminho entre a narrativa e a descrio e que tambm se utilizam de outras estratgias, tais como as frases interrogativas no final de algumas lies para chamar a ateno dos alunos ou mant-los interessados no que vir na prxima pgina.

    Mas o que no diramos desta relao histrica entre os textos dos mtodos analticos e o

    mtodo intuitivo se constatamos a existncia do mesmo gnero, j na dcada de 90, em cartilhas do mtodo global em Minas? Temos exemplos nos livros de Elisa Barbosa inauguram temticas como, por exemplo, da fico espacial, com seu livro Luninho, o amigo da Lua ou o livro O Barquinho Amarelo, de Ida Dias, repleto de lirismo mas que conservam caractersticas descritivas do gnero textual. Mesmo com mudana temtica, temos a fora das escolhas lexicais que selecionam expresses como veja, olhe, presentes em diversos livros dos mtodos analticos que parecem direcionar o olhar para a pgina, no sentido da viso, sentido muito utilizado na virada global dos mtodos analticos.

    Seria esta repetio indicativa de um tipo de texto que apenas se herda, ou a recuperao dos princpios dos mtodos intuitivos e dos mtodos globais que parecem ter gerado os primeiros textos?

    2.2.1 Analisando marcas de escolarizao e escolhas metodolgicas

    As marcas da escolarizao dos contedos de alfabetizao podem tambm ser buscadas no corpo do texto. Neste sentido, precisamos descrever a organizao das lies e no apenas lies exemplares retiradas do livro como um todo. Temos constatado que as lies se alteram sutilmente, o que d a cada livro uma especificidade na escolha de uma seqncia lingstica e pedaggica. Afirmamos que alguns livros representativos do mtodo silbico fazem escolhas diferentes na apresentao e sistematizao de slabas. Um exemplo a grande diferena existente entre os mtodos silbicos que adotam uma sistematizao de famlia silbica, como a cartilha Caminho Suave (1974/lio da pgina 24) e a Cartilha Sodr (1965/lio da pgina 9) na qual se aborda mais de um tipo de unidade silbica. Nesta ltima no so reproduzidas famlias mas a juno de duas consoantes (p e n ) com a vogal a . Por outro lado uma observao minuciosa dos livros permite encontrar lies modelares citadas/reproduzidas em livros de vrios autores diferentes.

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    Gravura. 3 - Cartilha Sodr , de Sthal Sodr, edio de 1965

    Gravura 4 - Caminho Suave, de Branca Alves da Lima, edio de 1974

    Os livros podem trazer, alm dos exerccios, outras marcas de escolarizao dos textos e de outros contedos, como a presena de sinais grficos tais como numerao de sentenas, sinais que indicam uma forma de ler, pistas que indiciam para o ensino separado ou simultneo de leitura e escrita, alm de outros que remetem forma escolar ou cultura escolar tais como objetos e materiais escolares. Sobre isto, interessante consultar as pginas do Primeiro Livro de Leitura de

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    Maria Guilhermina de Sousa, com primeira edio em 1894, em que sugere que os exerccios sejam feitos na pedra e apresenta na pgina, rplicas de possveis lousas ou pedra-ardsia, e tambm o livro portugus Cartilha Escolar (ler, escrever e contar) , de Domingos Cerqueira, publicada em 1912, que apresenta, ao fim de muitas pginas, um quadro negro com exerccios de matemtica e linguagem.

    Sobre marcas de escolarizao, citamos a anlise feita por Frade (2004) sobre a Cartilha Analytica

    Gravura 5 Cartilha Analytca, de Arnaldo Barreto, edio de 1923

    observando a pgina 31 da edio de 1923, entre outras, constatamos a existncia de sinais de interrogao e exclamao, antes da frase, assim como o uso de numerao da cada frase do

    texto a ser lido que possivelmente apresentam-se como pistas exclusivamente pedaggicas: no

    primeiro recurso, tenta-se garantir uma leitura expressiva e com compreenso, fornecendo-se

    pistas sobre pontuao, no segundo caso preciso direcionar as atividades coletivas e tambm

    treinar os alunos na localizao de frases a partir da numerao que o professor indica. Esta

    numerao talvez tenha servido tambm para uma leitura salteada e oral na sala de aula2, talvez

    relevante controle pedaggico mas problemtica para uma certa linearidade que ajuda na

    compreenso da leitura

    Encontramos o mesmo recurso de numerao de frases na Nova Cartilha Analtico-sinttica, de Mariano de Oliveira, publicada pela Editora Melhoramentos, na 173a Ed, em 1956 e Ensino Completo de Leitura, de Anna Cintra, cartilha de mtodo ecltico, cuja 3a edio de que dispomos foi publicada em 1922. Percebemos assim um certo dilogo com autores contemporneos tais como Arnaldo Barreto e Mariano de Oliveira. Numa breve anlise de outras cartilhas que circularam antes e, na mesma poca, no se verifica o recurso de numerao, talvez porque na escolarizao da alfabetizao ou no manuseio da lio, no seja mais considerada necessria para alguns autores.

    Um texto de livro, sem seu caderno de exerccios e sem recurso ao manual, ou seja, sem indcios de sua escolarizao, pode confundir o pesquisador em termos de sua metodologia.

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    Constatamos que numa cartilha representativa do mtodo fnico - Casinha Feliz, de Iracema Meireles e Elosa Meireles - no h, no livro texto, nenhuma proposta de exerccio escrito a ser feito pelos alunos, o que possibilita um uso diferenciado do texto apenas para leitura ou uma anlise equivocada de seu texto como representativo de mtodos analticos. Assim, seus textos, sem os exerccios, no parecem caracterizar o mtodo fnico. No entanto, se junto a ele for utilizado o exemplar com exerccios aparecem outras significaes para as escolhas textuais. Por outro lado, constatamos em diferentes livros representativos do mtodo silbico, a proposta de que sejam realizados exerccios nas prprias pginas dos livros, o que facilita a descrio da escolha do mtodo de alfabetizao.

    preciso que nosso olhar sobre as cartilhas ganhe complexidade pois so diversas as relaes que podem ser estabelecidas. As necessidades de ensinar a escrever ou ler, ou ensinar os dois processos simultaneamente so um dos determinantes de formas de livros. O espao destinado ou no produo escrita do aluno nos livros e isto tem repercusses grficas e econmicas na produo do livro guarda relaes com uso individual e/ou coletivo. Muitas vezes a direo para determinado destinatrio o aluno - pode ser subvertida quando o mesmo material ocupa um lugar de guia e consulta apenas para o professor. Tambm as relaes entre a organizao do livro e as necessidades do ensino simultneo so elementos que precisam ser somados a esta complexidade.

    2.2.3 Outras possibilidades de anlise: comparao entre diferentes ttulos ou edies de um mesmo livro e outros aspectos editoriais.

    Podemos localizar em diferentes exemplares, uma rede de citaes (gnero textual, escolha de personagens e de exerccios) que permitem verificar a influncia de determinado modelo de livro que obteve sucesso e esta compreenso melhor alcanada quando comparamos ttulos diferentes. Por isto, uma descrio em ficha analtica de um modelo de lio ou de uma seqncia didtica restringe as possibilidades de anlise, quando no conhecemos outros ttulos. preciso abrir o livro folha por folha e dispor de exemplares para manuseio e a comparao com uma srie de livros permite descobrir continuidades e rupturas.

    Por outro lado, h estudos que empreendemos que dependem da existncia de diferentes verses do mesmo livro, conforme o que realizamos sobre alteraes em algumas verses dO livro de Lili, no sentido de buscar pistas de reordenamento grfico que extrapolam o texto e que remetem a uma forma de nacionalismo (Frade & Maciel, 2003) e o que foi realizado sobre algumas verses da Cartilha Analytica, que mostra a retirada de diversas marcas de escolarizao em verses posteriores de 1923 e mesmo a mudana das tcnicas editoriais de fabricao de uma edio outra que indicia para escolhas de imagens e ilustraes que vo alm de explicaes pedaggicas.. (Frade, 2004) .

    Mesmo sem contar com dados bibliogrficos que explicitem quem fez as alteraes e porque, a anlise material permite verificar mudanas nas tcnicas de impresso e de ilustrao, a diminuio ou aumento e pginas, a retirada ou acrscimo de lies ou exerccios e de instrues aos professores e a mudana em alguns textos.

    possvel, assim, descobrir como cada livro dialoga com seu tempo e que concesses so feitas em relao a uma proposta original. Enfim, constatam-se atualizaes na materialidade do campo editorial e no campo da pedagogia e seu iderio sobre mtodos, contedo, professor, infncia e aprendiz. Este processo nos faz vislumbrar a atualizao tanto das prticas de alfabetizao quanto das prticas editoriais e culturais ao longo do tempo.

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    Mencionamos, brevemente, a necessidade de um estudo mais aprofundado das relaes estabelecidas entre recursos grficos, ilustraes e os textos. Constatamos que h diferentes recursos visuais que aparecem nas pginas, que nos remetem ao universo das tcnicas, como o caso do uso dos mesmos clichs tipogrficos em livros de diferentes autores ou de vrias formas de adornar ou completar uma pgina quando aparecem espaos em branco. Alm disso, muitas vezes fica a indagao: este recurso foi escolhido porque estava disponvel da editora ou porque foi uma escolha pedaggica? A anlise destas relaes nos faz buscar explicaes as mais diversas: ora o mundo das tcnicas de reproduo e ilustrao explicam as escolhas textuais, ora as escolhas textuais determinam a ilustrao. Parte destas questes tem sido tratadas em alguns estudos monogrficos (Frade, 2004 e Lana e Frade, 2004).

    Os resultados permitem concluir que mtodos e iderios de alfabetizao podem se constituir

    num foco privilegiado para pensar os livros didticos voltados para o ensino inicial da leitura e da escrita, mas estes mtodos no existem sozinhos e dialogam com mtodos de ensino em geral, com frmulas editoriais, com recursos tipogrficos e grficos e com a posio de autores e editores no mercado editorial e intelectual. Mtodos de alfabetizao tambm possuem realizaes diversas. Por outro lado, livros no so s textos e muitas das anlises feitas sobre o seu contedo se concentram na esfera metodolgica, lingstica ou ideolgica, sem considerar um conjunto muito mais complexo que seu interior e exterior revelam. Ao mesmo tempo em que possuem singularidades que os destacam, os livros didticos tambm se nutrem de modelos grfico-editoriais existentes nos repertrios de livros que circulam na sociedade: tanto para rupturas, como para continuidades. Assim pedagogia da alfabetizao, cultura escrita e produo editorial se cruzam, de maneira complexa, nas pginas de um mesmo livro didtico

    Apesar da riqueza das anlises do objeto impresso, para avaliar toda a rede de relaes que fazem um livro ser produzido, divulgado, comprado e usado necessrio recorrer a outras fontes como programas de ensino, revistas de ensino, manuais pedaggicos destinados formao inicial de docentes que podem revelar tendncias pedaggicas de instituies de formao e ainda documentos de sistemas de ensino que demonstram sua posio pedaggica e sua poltica de livro didtico. Listas de pedidos e remessas existentes nos arquivos pblicos tambm permitem verificar a circulao dos livros. Afinal, o que significa um impresso sem o uso?

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